Jmm Livro Cinema

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1 Sobre cinema fotografia e outras artes João Maria Mendes Índice Apresentação ................................................................................................................. 3 Que coisa é o filme ......................................................................................................... 4 Entre realismo e artifício ............................................................................................................... 6 Manovitch e o cinema digital ........................................................................................................ 10 Indexicalidade directa, indicialidade ............................................................................................. 12 O filme: primeira abordagem ........................................................................................................ 17 O corpo do filme ........................................................................................................................... 20 Nova realidade .............................................................................................................................. 24 Visível, invisível: είδος, δέα, εκών, εδωλον ............................................................................... 26 Duplos e estranhamentos .............................................................................................................. 31 A aventura deleuziana ................................................................................................................... 34 Uma “ontologia”, duas recepções? .............................................................................................. 37 Bazin e os realismos ..................................................................................................................... 39 Centralidade de Orson Welles ...................................................................................................... 43 Ritornello — Cinema, poesia e prosa ........................................................................................... 45 O cinema do fluxo ........................................................................................................................ 49 De volta ao povo dos espelhos ..................................................................................................... 54 Facialidades ................................................................................................................... 60 A figuração cristã contra o interdito mosaísta .............................................................................. 60 Frontalidade .................................................................................................................................. 64 Estádio do espelho, Gaze .............................................................................................................. 66 Temas e personagens .................................................................................................................... 67 Papel dos acheiropoietos .............................................................................................................. 68 A doutrina de Niceia II ................................................................................................................. 70 Agrafagem aos nomes .................................................................................................................. 72 Aura, técnica, estética ................................................................................................................... 73 Præfigurare e defigurare .............................................................................................................. 75 Relações com a mimesis ............................................................................................................... 76 A prisão litúrgica .......................................................................................................................... 78 Presença, transcendência, imanência ............................................................................................ 78 Acheiropoietos, facializações, fotografia ...................................................................................... 81 Máquinas de quatro olhos ............................................................................................................. 82 A paisagem ................................................................................................................................... 85 Passagem por Lévinas .................................................................................................................. 86 A intranscendência de Agamben .................................................................................................. 88 Sontag, Tournier, Barthes ............................................................................................................. 90 Novos trabalhos da figuração ........................................................................................................ 100

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Sobre cinema fotografia

e outras artes

João Maria Mendes

Índice Apresentação ................................................................................................................. 3 Que coisa é o filme ......................................................................................................... 4 Entre realismo e artifício ............................................................................................................... 6 Manovitch e o cinema digital ........................................................................................................ 10 Indexicalidade directa, indicialidade ............................................................................................. 12 O filme: primeira abordagem ........................................................................................................ 17 O corpo do filme ........................................................................................................................... 20 Nova realidade .............................................................................................................................. 24 Visível, invisível: είδος, ἰδέα, εἰκών, εἴδωλον ............................................................................... 26 Duplos e estranhamentos .............................................................................................................. 31 A aventura deleuziana ................................................................................................................... 34 Uma “ontologia”, duas recepções? .............................................................................................. 37 Bazin e os realismos ..................................................................................................................... 39 Centralidade de Orson Welles ...................................................................................................... 43 Ritornello — Cinema, poesia e prosa ........................................................................................... 45 O cinema do fluxo ........................................................................................................................ 49 De volta ao povo dos espelhos ..................................................................................................... 54 Facialidades ................................................................................................................... 60 A figuração cristã contra o interdito mosaísta .............................................................................. 60 Frontalidade .................................................................................................................................. 64 Estádio do espelho, Gaze .............................................................................................................. 66 Temas e personagens .................................................................................................................... 67 Papel dos acheiropoietos .............................................................................................................. 68 A doutrina de Niceia II ................................................................................................................. 70 Agrafagem aos nomes .................................................................................................................. 72 Aura, técnica, estética ................................................................................................................... 73 Præfigurare e defigurare .............................................................................................................. 75 Relações com a mimesis ............................................................................................................... 76 A prisão litúrgica .......................................................................................................................... 78 Presença, transcendência, imanência ............................................................................................ 78 Acheiropoietos, facializações, fotografia ...................................................................................... 81 Máquinas de quatro olhos ............................................................................................................. 82 A paisagem ................................................................................................................................... 85 Passagem por Lévinas .................................................................................................................. 86 A intranscendência de Agamben .................................................................................................. 88 Sontag, Tournier, Barthes ............................................................................................................. 90 Novos trabalhos da figuração ........................................................................................................ 100

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Sobre o fim dos fins — a questão do fechamento da obra ......................................... 106 Freud espreita por instantes ........................................................................................................... 108 Corporações e academias .............................................................................................................. 110 Uma certa ideia de acabamento .................................................................................................... 113 O peso dos cânones ....................................................................................................................... 116 Eco e a obra aberta ........................................................................................................................ 118 Tradições de inacabamento ........................................................................................................... 119 Papel dos modernismos ................................................................................................................. 123 Inacabando ..................................................................................................................................... 125 O conceito de intermedialidade ................................................................................... 128 Campos de aplicação .................................................................................................................... 130 Uma comunidade de conceitos ..................................................................................................... 133 Intermedial, intermediático ........................................................................................................... 135 Um texto de Gaudreault e Marion ................................................................................................ 136 Objectos multi-suportes ................................................................................................................ 138 Remediação e seu universo ........................................................................................................... 139 Sobretudo, investigar .................................................................................................................... 141 Cinema, estudos interartes e intermedialidades ........................................................ 146 Relance arqueológico ................................................................................................................... 146 A pintura e o cinema em Bazin .................................................................................................... 151 O picturalismo de Antonioni ........................................................................................................ 153 A pintura de Edward Hopper e o cinema hopperiano .................................................................. 157 O pintor e o seu modelo: La belle noiseuse ................................................................................. 160 Imagens mentais e espelhos de Borges ........................................................................................ 162 Migração, aculturação .................................................................................................................. 165 Um diferendo sobre a teoria ......................................................................................................... 167 Um certo mal-estar ....................................................................................................................... 171 Generalidades sobre palcos transitários, elogio do novo ludus mundus .................. 177 Ludus mundus ............................................................................................................................... 179 O melhor lugar .............................................................................................................................. 180 Bazin, outra vez ............................................................................................................................ 181 Hibridizações ................................................................................................................................ 183 O céu das tecno-ciências e o chão das artes ................................................................................. 186 Madalena e o túmulo vazio .......................................................................................................... 187 Imersos na transição ansiosa ........................................................................................................ 188 Excursus, prescrutando um céu nublado ...................................................................................... 190 Sobre dois filmes: Tabu de Miguel Gomes e Deste lado da ressurreição de Joaquim Sapinho .......................................................................................................................... 194 AviagemdeMiguelGomesaumparaísoperdido..................................................................................194AviagemdeJoaquimSapinhoaopietismoflagelante...........................................................................202 Da autoria de João Maria Mendes e Jorge Leitão Ramos, uma entrevista de 1985: António Reis e Margarida Cordeiro, viagem a uma paixão ......................................... 217 O esplendor da obra ...................................................................................................................... 219 Compulsão .................................................................................................................................... 220 Intimismo ...................................................................................................................................... 221 Posfácio: gossip e jogos de censura ...................................................................................... 223

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Apresentação Os textos que aqui se reunem resultam, quase todos, da preparação de aulas de Licenciatura e de Mestrado no Departamento de Cinema da Escola Superior de Teatro e Cinema e grande parte deles conheceu, em primeira versão, edição inicial pela Biblioteca dessa mesma Escola, como textos de apoio para diversas unidades curriculares de primeiro e segundo ciclo do ensino superior. A maioria dessas primeiras versões foi igualmente divulgada no Repositório Científico de Acesso Aberto de Portugal e no site do Centro de Investigação em Artes e Comunicação (CIAC), de que o autor é membro fundador e investigador integrado. Entre eles, os textos relativos às Intermedialidades — «O conceito de intermedialidade», «Cinema, estudos interartes e intermedialidades» e «Generalidades sobre palcos transitários, elogio do novo ludus mundus» — foram escritos com vista à preparação de um Mestrado em Estudos Interartes e Práticas Intermediais, entretanto aprovado, e desenvolvidos no início de um projecto de investigação articulado com esse novo curso. Parte deles foi posteriormente adaptada ao leccionamento do autor no curso de Doutoramento em Artes, em que o Instituto Politécnico de Lisboa se associou à Universidade de Lisboa. De algum modo, eles prolongam a reflexão sobre Cinema que o autor iniciou com Por quê tantas histórias – a importância do ficcional na aventura humana, editado pela MinervaCoimbra em 2001, Culturas narrativas dominantes – o caso do cinema, editado pela EDIUAL em 2009, e Novas & velhas tendências no cinema português contemporâneo, editado pela Gradiva em 2013 (este último resultante de outro projecto de investigação que o autor coordenou, e que foi publicado em forma de obra colectiva).

João Maria Mendes

Janeiro de 2013

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Que coisa é o filme

En aquel tiempo, el mundo de los espejos y el mundo de loshombresnoestaban,comoahora,incomunicados.Eran,además,muy diversos; no coincidían ni los seres ni los colores ni lasformas.Ambosreinos,elespecularyelhumano,vivíanenpaz;se entraba y se salía por los espejos. Una noche, la gente delespejo invadió la tierra. Su fuerza era grande, pero al cabo desangrientas batallas las artesmágicas del Emperador Amarilloprevalecieron.Ésterechazóalosinvasores,losencarcelóenlosespejosylesimpusolatareaderepetir,comoenunaespeciedesueño, todos losactosde loshombres.Losprivódesu fuerzayde su figura y los redujo a meros reflejos serviles. Un día, sinembargo,sacudiráneseletargomágico.

JorgeLuisBorgeseMargaritaGuerrero,Manualdezoologiafantástica,1957

Supondo [no Manual de zoología fantástica] a autonomia dascriaturas do espelho, Borges não propõe uma meditação, milvezes feita desde o Parménides, (...) sobre o isomorfismo e oheteromorfismo do representante e do representado; antesimaginataisserescomoforças...

Jean‐FrançoisLyotardinFigurations,1973 O que é o cinema? O termo designa e recobre um conjunto de realidades muito diversas que é necessário identificar para se compreender a sua extensão. Se o olharmos do ponto de vista da sociologia e da economia da cultura, por exemplo, ele designa uma instituição multifacetada que se afirmou desde os primeiros anos do séc. XX com o seu peso social próprio (comparável ao do livro, do teatro, do circo, da ópera), com as suas empresas de produção, distribuição e exibição, as suas organizações e manifestações nacionais e internacionais, sendo a maior parte da sua actividade juridicamente regulada. E remetendo sempre para o comércio das suas obras e para a indústria que, em grande parte, as produz. Os estudos que o observam deste ponto de vista — ou como parte do sistema dos media, das clássicas indústrias culturais ou das “novas” indústrias criativas — pertencem mais à Sociologia ou Economia das Artes e das Culturas do que aos Estudos em Cinema, no sentido estrito de Film Studies ou de Cinema Studies. Tal instituição tem a sua história própria, ela mesma subdivisível num conjunto de segmentos diferenciados: história geral da arte e da indústria cinematográfica, história das suas organizações, dos modos de produção (articulada com a dos financiamentos), das tecnologias do cinema, da distribuição e da exibição articulada com a história do espectáculo cinematográfico e da sua recepção (o que abrange boa parte dos estudos em spectatorship, em cineclubismo, etc.). Também existe uma história dos géneros, estilos e “escolas” cinematográficos, esta cruzando-se tradicionalmente, quer com os estudos de estética cinematográfica, quer com o das “teorias do cinema”, que só são entendíveis no seu contexto histórico e no dos modos de produção. Estas histórias são tradicionalmente entendidas mais como parte dos Estudos em Cinema (Film Studies) do que da História, dada a especificidade dos conhecimentos que requerem: não é frequente encontrarmos licenciaturas, mestrados ou doutoramentos em história do cinema na área da História.

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Todos estes enfoques suscitam interdisciplinaridade e articulam-se com duas das tradições já mencionadas, as dos estudos das teorias e das estéticas do cinema, que muito cedo adquiriram relevância, marcadas por sucessivas normatividades e pelas polémicas delas decorrentes. Estas duas áreas — as das teorias e das estéticas — foram-se desdobrando, por sua vez, noutros segmentos mais específicos pertencentes ao grupo genérico da articulação entre o cinema e outro ramo do saber: Cinema e Psicologia (ou Psicologia do Cinema), Cinema e Psicanálise, Cinema e Iconologia, Cinema e Teoria da Imagem, Cinema e Narratologia, Cinema e Semiologia — muitas vezes ocupando-se, quer do que o cinema faz, quer do modo como o que faz é percepcionado e recebido pelo espectador. Esta última faceta também se autonomizou e deu origem aos estudos em spectatorship. Mais recentemente, e sobretudo a partir da reflexão de Gilles Deleuze (1983, 1985), vimos desenvolver-se uma área de estudos que podemos designar por Cinema e Filosofia. O ensino e a divulgação de práticas cinematográficas específicas deram desde muito cedo origem a manuais introdutórios ou especializados, destinados às formações técnicas sectoriais que o cinema requer: “introduções ao cinema”, manuais de fotografia e para o conhecimento técnico da captação de imagem e som, “gramáticas” da imagem (umas mais, outras menos dependentes da relação entre as imagens em movimento e o “texto”), manuais de montagem, de iluminação, de escrita para o ecrã. Esta área, mais ligada à reprodução de skills (competências técnicas) do que ao knowledge (conhecimento teórico), acompanhou o cinema desde o seu início, conheceu um forte surto durante os anos 40-50 do séc. XX, herdando da estabilização das metodologias profissionais do studio system e das principais cinematografias europeias durante os anos 30-40, regrediu durante os anos 60-70 devido às experimentações da New Hollywood e do cinema “moderno” europeu e ressurgiu com expressão irregular na transição dos anos 70 para os 80, estendendo-se pela década seguinte, temporariamente mais centrada nos EUA. O cinema e a reflexão que ele suscita também geraram e geram uma actividade crítica e publicista mais dirigida aos públicos cinéfilos do que às formações técnicas e académicas, embora por estas últimas frequentemente referida e utilizada: livros monográficos sobre realizadores, por vezes em forma de livros-entrevista, sobre cinematografias nacionais ou regionais, análises de filmes, edições de scripts, comentários sobre filmes no sistema dos media. Uma vertente mais popular deste subgrupo tem como objecto, já não os realizadores, as cinematografias ou a análise de obras, mas os actores entendidos como protagonistas da mediatização dos filmes e a sua ligação ao star system. Embora a sua expressão seja muito heterogénea, esta última vertente subsiste quase exclusivamente no sistema dos media. Esta enumeração sumária — e que não visa a exaustividade — da amplitude e diversidade dos enfoques suscitados pela actividade cinematográfica ao longo da sua história, e da importância das suas abordagens teóricas (o cinema representa hoje uma área a que se referem milhares de novos livros e artigos por ano) tem sido relembrada por sucessivos autores (Aumont, Bergala, Marié e Vernet, 2008: 205) que dedicam os seus trabalhos ao universo do ensino e da formação:

“Talvez, a bem dizer, quase não haja produção humana que não seja desde cedo acompanhada de uma reflexão formal, ‘teórica’, ou pelo menos (...) de uma observação, de uma contemplação aprofundada dessa mesma produção. No caso do cinema, podemos decerto anotar que a sua invenção, que ocupou todo o séc. XIX, não apanhou de surpresa a especulação intelectual; e não é menos notória a constatação da

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contemporaneidade quase total entre o surgimento do cinema como espectáculo, depois como arte e meio de expressão, e a sua teorização”.

O cinema também deve ser entendido como aparelho (apparatus), no sentido de estrutura complexa de determinada organização ou instituição e do conjunto de dispositivos técnicos, económicos, culturais e ideológicos de que ela se dotou para desenvolver as suas actividades. Mas aparelho de jogo, que ganha em ser parcialmente distinguido dos tradicionais aparelhos produtivos, fazedores de bens de consumo e que alteram materialmente a nossa relação com a natureza e o mundo. À medida que se foi tornando numa indústria, o que sucedeu muito depressa, o cinema organizou-se segundo o modelo do mundo do trabalho e deu origem a um grande número de profissões (algumas delas “criativas”, mas a maior parte delas gerando um funcionalismo próprio — um mundo de funcionários ou de apparatchiks — sem o qual um aparelho criado à imagem e semelhança do mundo do trabalho avaria e não funciona). Mas as necessidades a que o cinema responde, como aquelas a que a pintura e a fotografia respondem (e também o teatro ou a ópera), são simbólicas e imaginárias — ele ocupa-se a dar forma ao refazimento contínuo da imago ou das imagines do mundo. Correndo o risco de criar inimizades no meio da cinefilia, arrisco-me a dizer que, mais que “trabalhar”, os criativos do cinema agem “jogando” ou “brincando” com o dispositivo aparelhístico posto à sua disposição, como o pintor ou o fotógrafo “jogam” e “brincam”, o primeiros com os seus pigmentos e suportes, o segundo com a black box que a sua câmara constitui, e de que ele conhece sobretudo os inputs e os outputs. Usando a relativa permutabilidade dos termos na nossa linguagem corrente, poderíamos dizer que o trabalho do realizador cinematográfico ou do fotógrafo — que pode ser muito intenso e exaustivo — consiste em jogar ou em brincar com as potencialidades dos dispositivos aparelhísticos com que lidam. Mas seria subverter a separação fundamental entre duas naturezas distintas da acção humana: o trabalho, “punição divina” (ganharás o teu pão com o suor do teu rosto), que historicamente se tornou na matriz social da condição humana, e a ποίησις (poiesis, poética, “criação”), de que a criação de imagens (narrativizadas ou não), embora pressupondo o domínio de técnicas, faz parte. Alguns destes jogadores criativos desviam a utilização do aparelho a seu favor e tornam-se autores de obras distintamente reconhecíveis devido às suas “pequenas diferenças excessivas”. No seu seminário japonês sobre realização cinematográfica, por exemplo, Pedro Costa explicou longamente como se opôs ao manual de instruções da câmara digital com que fez um dos seus filmes, fazendo o contrário do que os seus construtores ofereciam — imobilizou-a num tripé em vez de usufruir da focagem perfeita em constante mobilidade. Em termos flusserianos (Flusser, 1983 a: 44), e glosando com ele a possibilidade do fotógrafo ou do cineasta romper com o aparelho da tecno-cultura em que vivemos imersos, saindo da heteronomia em direcção à autonomia, poderíamos ironizar do seguinte modo:

“1. O aparelho é infra-humanamente estúpido e pode ser enganado; 2. Os programas dos aparelhos permitem a introdução de elementos humanos não-previstos; 3. As informações produzidas e distribuídas por aparelhos podem ser desviadas das intenções dos aparelhos e submetidas a intenções humanas; 4. Os aparelhos são desprezíveis. (...) A liberdade é jogar contra o aparelho. E isto é possível”.

Entre realismo e artifício Separando-nos desta abordagem algo enciclopédica do universo cinematográfico,

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regressamos a um espaço a um tempo mais comum e mais singular, o da relação que cada espectador mantém com o cinema e os seus filmes; é sobre esse espaço que aqui reflectimos.

O cinema interpõe qualquer coisa — os seus filmes — entre nós e o mundo. Interessa-nos esclarecer o que são eles — cinema e filmes — na sua hecceidade, para os podermos situar numa fenomenologia ou, mais simplesmente, entre as coisas e os entes do mundo, ou entre os artefactos artísticos e técnicos que acrescentamos ao mundo. E fazemo-lo tendo como pano de fundo uma área da δόξα (doxa: para os gregos clássicos, opinião) que designamos por cinefilia, muito dependente dos hábitos sociais de recepção cultural, e onde vivem em quiasma convicções, juízos, doutrinas e posturas ideológicas contraditórias, com os seus cânones e heresias.

Situamo-nos na proximidade do arco de reflexão que vem de Münsterberg a Arnheim, a Béla Balázs e Jean Epstein, a Bazin e aos seus Cahiers du Cinéma, a Jean Mitry, a Pasolini e Tarkovski, até Deleuze e ao colectivo da revista Traffic, fundada por Serge Daney — arco plural e que transporta consigo um corpus de referências a um universo mais vasto, envolvendo, quer a interdisciplinaridade atrás referida, quer a história acontecimental dos discursos marcantes que, desde o início, acompanharam o cinema. Escolher esta fileira de autores significa privilegiar a reflexão sobre que relações mantém o cinema com o real, sobre que ícones e mundos cria ele, e sobre que relações mantemos nós com essas criações e criaturas. Em busca da simplicidade possível, referimo-nos aqui ao cinema como o dispositivo técnico que, precedido por décadas de azáfama inventiva, conhecemos desde 1895, produzindo a impressão de movimento ao projectar, à velocidade de 24 imagens fixas por segundo (no cinema primitivo essa velocidade começou por ser de 16 - 18 imagens por segundo), fotogramas sensibilizados em continuidade. Mas esse dispositivo técnico nunca parou de se transformar e é preciso observá-lo nas suas sucessivas idades tecnológicas (coisa que não faremos aqui), para entendermos em que consistiu a evolução dos meios que lhe permitiram perseguir o seu principal objectivo — a actualização e o refazimento da imago ou das mil imagines do mundo. Contemporâneo do avião e do automóvel, o cinema começou por oferecer o espelho do mundo com os Lumière, como disse Jean Epstein (1946: 186):

“O cinema não foi de início senão um olhar registador, interessando-se superficialmente por todos os espectáculos do mundo”.

Mas logo a seguir oferecia a ilusão fantasista com Méliès e a narrativa visual com William e G. A. Smith, o segundo dos quais já mostrava, em 1900, os primeiros grandes planos de um relógio, de um canário, de um olho e da cabeça de um gato, vistos através de uma lupa e integrados num plano geral (Collet e Philippe 1989: 812-813). Diferentemente do avião e do automóvel, porém, o que o cinema tinha para oferecer ao seu spectator era a viagem imóvel, por ele imaginariamente vivida na obscuridade néo-cultual da sala de projecções e na concha do seu cadeirão.

Bazin, católico próximo do personalismo de Emmanuel Mounier, e que se afirmou como um dos principais defensores do “realismo ontológico” do cinema, escrevia, em «Le mythe du cinéma total», cuja primeira impressão data de 1946, depois retomado em Qu’est ce que le cinéma? (1985: 19-24), que o cinema é “um fenómeno idealista” que “quase nada deve ao espírito científico” (19). Entre os seus precursores e promotores, diz ele, Edison foi sobretudo um “bricoleur genial”, e Niepce, Muybridge, Leroy, Joly, Demeny, Louis Lumière foram, ou “monomaníacos, hurluberlus, bricoleurs” ou, “no seu melhor, industriais engenhosos” (id. ibid.). De resto, eram, todos eles, animados por um desejo arcaico, que a descoberta de “um

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suporte transparente, maleável e resistente, e [de] uma emulsão sensível seca, capaz de tomar uma imagem instantânea” (20), tornou realizável:

“O mito director da invenção do cinema é (...) a concretização daquilo que domina confusamente todas as técnicas de reprodução mecânica da realidade nascidas ao longo do séc. XIX, da fotografia ao fonógrafo: o mito do realismo integral, da recriação do mundo à sua imagem, (...) na qual não pesasse a hipótese da liberdade de interpretação do artista...” (23).

Mas, noutro texto antologiado em Qu’est ce que le cinéma?, «Le réalisme cinématographique et l’école italienne de la Libération», de 1948 (1985: 257-285), Bazin exprime com clareza a “contradição” básica desse “realismo”:

“O realismo na arte não saberia proceder senão por artifícios. Qualquer estética escolhe forçosamente o que vale a pena salvar, perder ou recusar, mas quando se propõe explicitamente, como faz o cinema, criar a ilusão do real, tal escolha constitui a sua contradição fundamental, a um tempo inaceitável e necessária. Necessária porque a arte não existe sem essa escolha (...). Inaceitável, porque tal escolha se faz (...) à custa dessa realidade...” (269-270).

E o que é um filme? Quanto ao filme propriamente dito, começaremos por dizer, aceitando participar numa clássica discussão, que ele está preso ao real filmado, como a fotografia ao fotografado, devido à indexicalidade, ou indicialidade, das suas imagens (Dubois: 1983; Schaeffer, 1987; Krauss: 1990; Lefebvre: 2012) e por isso foi desde os seus inícios, como a fotografia, percepcionado como “nova alquimia”, como um perturbador sucedâneo dos antigos αχειροποίητος cristãos (acheiropoietos: imagens não fabricadas por mão humana, como as lendárias “impressões” do Mandylion de Edessa, do véu de Verónica, dito “verdadeiro ícone”, vero eikon, ou do sudário de Turim). O Mandylion de Edessa (um pano onde Jesus terá impresso o seu rosto molhado, oferecendo-o a um pintor que não conseguia retratá-lo devido à luz que dele irradiava: o episódio está referenciado desde o séc. IV na História da Igreja de Eusébio de Cesareia, 1.13.5-1.13.22) é uma peça guardada num antigo hall barroco, hoje Capela Matilda, no palácio residencial dos papas de Roma; raramente visto em público, o British Museum conseguiu exibi-lo, entre outras relíquias cristãs, no Verão de 2011. O véu de Verónica (com que, segundo os Actos de Pilatos, um apócrifo do séc. VI, ela limpou a face do Cristo a caminho do Calvário) desapareceu em 1608 do relicário que o guardava na basílica de S. Pedro; em 2001, um jesuíta alemão anunciou tê-lo descoberto num pequeno convento capuchinho em Manoppello. O sudário de Turin é supostamente o lençol funerário que envolveu o corpo do Cristo depois da sua morte na cruz e está guardado na catedral de S. João Baptista, na mesma cidade. O que os três panos têm em comum é desconhecer-se, ainda hoje, a técnica de impressão que neles gravou as respectivas imagens. Voltaremos a falar deles no capítulo Facialidades. Ora, como diz Lefebvre (loc. cit.:14), analisando o estatuto da imagem fotográfica à luz da semiologia pragmática de Peirce, a fotografia [e portanto, por extensão, o filme: a imagem foto-cinematográfica] tanto pode representar como ícone (representação por semelhança, como na pintura); como index ou índice (representação por co-naturalidade com o referente, dada a sua ligação material ao objecto fotografado ou filmado: as imagens do filme e da fotografia começaram por resultar da inscrição fotoquímica, num suporte físico, das emanações de luz dos próprios objectos fotografados ou filmados); ou como símbolo (representação por hábito ou convenção, devido a códigos culturais em uso), pelo que não pode ser apreciada exclusivamente em função da sua relação indexical ou indicial com o objecto fotografado. Também outros autores (Dubois, 1983) pensaram a fotografia a

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partir das três categorias básicas de Peirce, sendo as qualidades indiciais da fotografia a singularidade (é referido aquele objecto específico), o testemunho (certificação ou prova da hecceidade do objecto) e a designação (denotação, capacidade de o identificar e apontar). Geneticamente a imagem fotográfica é, assim, e antes de mais, um ícone que também é índice e símbolo. É a seguinte a passagem de Peirce (1894: §3), publicada um ano antes da apresentação do cinématographe dos Lumière, que sustenta estas considerações:

“Há três espécies de signos. Primeiro os semelhantes, ou ícones, que servem para transmitir ideias das coisas que representam simplesmente por as imitarem. Segundo, há indicações, ou índices, que mostram algo das coisas por estarem fisicamente conectadas com elas. (...) Terceiro, há símbolos, ou signos gerais, associados ao que significam pelo uso”.

Ao mesmo tempo, o filme foi e é objecto de todas as trucagens, deformações e misturas que introduzem o artifício e o falso nas suas figurações, e isso desde Méliès, que inventou o primeiro “truque” por acidente: filmava na praça da Ópera, em Paris, quando a película se partiu e a máquina bloqueou; demorou um minuto a colar a película e retomou o seu plano fixo. Ao projectar as imagens, viu que um grupo de homens, vários carros e um autocarro se transfiguravam, em continuidade, num carro funerário e num grupo de mulheres (Méliès, 1929). Mas sobre as trucagens disse também Jean Epstein (loc. cit.: 187):

“As trucagens estão extremamente próximas do processo pelo qual o espírito humano fabrica para si mesmo uma realidade” (itálico meu).

Esta dupla natureza do filme — a um tempo eminentemente “verdadeiro” e eminentemente “falso” — dá-lhe um estatuto ambíguo, que nunca deixou de ser, ao longo da sua história, objecto de fascínio, mas ao mesmo tempo de desconfiança e questionamento.

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A questão do realismo cinematográfico é das que desde mais cedo atravessa a história das teorias do cinema, enraizando-se na recepção ocidental do Aristóteles da Poética, para quem toda a arte imita a natureza, e nas relações da nova arte com a pintura e a fotografia. O realismo assim considerado enraíza-se, portanto, num naturalismo que o ultrapassa e o inclui. No extremo oposto a esta posição e representando um paradigma anti-realista, encontramos gestaltistas como Rudolf Arnheim que, no seu

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O cinema como arte (1932), defende que, se o cinema se tivesse limitado a reproduzir mecanicamente a realidade, nunca teria sido considerado uma arte. Para Arnheim, o filme nunca deve procurar ser sobretudo o lugar de um encontro literal com a realidade, antes deve reinventá-la, interpretá-la, modelá-la. E de novo inversamente, para Kracauer, a ideia de que o filme “fotografa literalmente a realidade”, associada a uma outra, a de que as categorizações e abstracções da técnica e da ciência nos impedem de ver o mundo real e físico, dá ao filme a possibilidade e a responsabilidade de no-lo revelar, acordando-o do seu “adormecimento” e “redimindo-o” (Kracauer: 1960).

Também Bazin (1985), em textos dos anos 40, assenta o seu “realismo ontológico” na indexicalidade directa da imagem foto-cinematográfica e na “transferência de realidade” do objecto fotografado ou filmado para a película, ignorando deliberadamente o que pode subjectivizar ou relativizar essa imagem e aproximá-la do ícone ou do símbolo que a imagem da pintura sempre foi. Este realismo assente na “co-naturalidade” da imagem foto-cinematográfica e do seu objecto ignora também as condicionantes culturais (determinantes do gosto e, por vezes, da própria compreensão das imagens) e, à la limite, as condicionantes históricas e técnicas do trabalho do fotógrafo, suprimindo qualquer enfoque relativista que ajude a compreendê-lo e transportando, para único primeiro plano, o dogma da indexicalidade directa como superior a quaisquer outras considerações. Porém, como vimos, Bazin admitirá que qualquer realismo vive do artifício e do falso, e reconhecerá que a profundidade de campo em Renoir, Welles e Wyler, por exemplo, “altera a realidade a partir de dentro”, como veremos adiante.

Estes diferentes exemplos revelam como é antiga a discussão fundamental sobre o que fazem o cinema e os seus filmes. Nos seus livros sobre o cinema, enfim, Deleuze (1983, 1985), respeitando embora a radicalidade de Bazin, considera que uma tal “realidade adicional” (a acrescentada pelo artifício) não resolve o problema da relação entre o filme e o real, e que só a “imagem-tempo” ou a “imagem-cristal”, impondo-se à tradição da “imagem-movimento” e da “imagem-acção”, torna o filme num meio de “devolução” do real ao espectador . Manovitch e o cinema digital

Numerosos autores que pensam o cinema no âmbito da “revolução digital” contemporânea vêm anunciando a sua “morte” desde a década de 90 do séc. XX. A discussão sobre a “morte” do cinema dominou como um espectro o toldado céu do centenário oficial do cinématographe dos Lumière, em 1995, mas começara bem antes, ecoando nela o progresso da concorrência da televisão e do vídeo, o novo ambiente audiovisual e multimédia, o surgimento dos new media sediados no computador individual e a sua influência cumulativa nos filmes. A década de 90 foi marcada pela emergência de um novo mercado para os jogos cinemáticos de computador e para a sua interactivade, que rapidamente ultrapassaram o volume de negócios cinematográficos à escala global e se apresentavam como geradores de uma nova experiência imersiva que ao mesmo tempo substituiria a postura do “velho” espectador “passivo” do cinema, transformando-o em “utilizador” das novas imagens animadas por computador, das “novas” imagens trimensionais, etc. (Mendes, 2001 a: 415-459).

Lev Manovitch terá produzido, na transição do séc. XX para o séc. XXI, a mais influente síntese dos desafios lançados ao cinema pela “revolução digital”, discutindo-os, precisamente, em torno da ideia de “realismo” que atravessou a história das

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cinemáticas e que sempre se baseou, de Balázs a Bazin e de Sontag a Barthes, na indexicalidade da imagem foto-cinematográfica — a sua ligação “ontológica” ao real fotografado ou filmado, ou a co-naturalidade de uma e outro. Os seus argumentos partem da ideia de que as novas imagens em movimento, sintéticas, bidimensionais ou tridimensionais, produzidas em computador, visam e estão destinadas a suplantar o realismo baziniano, levando o cinema a perder irreversivelmente o seu lugar centenário de principal re-apresentador indicial da realidade (Manovitch, 2001: 185-191, 293-302):

“Realismo é o conceito que inevitavelmente acompanha o desenvolvimento e a assimilação da computação gráfica tridimensional. Nos media, nas publicações comerciais, nos textos de investigação, a história da inovação e da investigação tecnológica é apresentada como um progresso em direcção ao realismo — a habilidade para simular qualquer objecto de tal modo que a imagem computorizada se torna indistinta da fotográfica. Ao mesmo tempo, sublinha-se constantemente que este realismo é qualitativamente diferente do realismo baseado nas tecnologias ópticas da fotografia ou do filme, porque a realidade simulada não está indexicalmente [ou indicialmente] ligada ao mundo existente”.

Se é verdade, diz o mesmo autor, que os 3D computer graphics usam, para criar a ilusão da profundidade, um conjunto de referenciais geométricos não particularmente diferentes dos de Giotto e da pintura renascentista, esse facto só acentua o regresso à picturalidade da experiência cinemática, vencendo décadas de hegemonia ideológica da indexicalidade. Para Manovitch, que segue, nesta matéria, os passos de outrem (Comolli, 1971: 121-142), o cinema lutou continuamente, ao longo da sua evolução tecnológica, e apesar do seu “dogma” da indexicalidade, contra o sistemático défice de realismo dos seus dispositivos — e fê-lo sempre por adição e substituição de artifícios técnicos no seu dispositivo: adicionando a si mesmo o som, o filme pancromático, a cor, tudo o que lhe garantisse ampliar o efeito de realidade; e substituindo as técnicas necessárias à preservação e melhoria desse efeito, por vezes produzindo fortes alterações de estilo de realização e de mise en scène, como no regresso da profundidade de campo com Welles e Wyler, nos anos 40 do séc. XX. Ou seja, a indexicalidade do cinema foi sendo sucessivamente garantida, ou melhorada, pela evolução tecnológica e por novos instrumentos artificiosos, que desactualizavam os anteriores e levavam ao seu abandono (pelo menos temporário). Ora, o salto agora representado pela imagem digital e pelas imagens produzidas em computador significa que o efeito de realidade sempre procurado pelo cinema já não se apoia apenas em gravações do real feitas através de lentes e que a imagem deixa de ser entendida como um “depósito” de realidade (Manovitch, loc. cit.):

“O cinema é a arte do index, uma tentativa de fazer arte a partir de pegadas [footprint]. (...) Mas o que sucede à identidade indexical do cinema quando passa a ser possível gerar imagens foto-realistas inteiramente feitas em computador (...)? A construção manual de imagens no cinema digital é um regresso às práticas pró-cinemáticas do séc. XIX, quando as imagens eram pintadas e animadas à mão. (...) Assim, o cinema já não pode ser claramente separado da animação: deixa de ser um media da tecnologia indexical e torna-se num sub-género da pintura” [itálicos meus].

É este o aríete da argumentação de Manovitch em 2001: o cinema, que tudo fez para passar, aos olhos da sua recepção, por uma arte do index baziniano, regressa, cem anos depois do seu nascimento, e por via das imagens digitais infinitamente manipuláveis, à sua época primitiva, porque os seus filmes voltam a ser feitos de muito mais do que apenas imagens “reais”: além destas, também são feitos de imagens digitais, computer graphics, pintura, processamento de imagens, composição, animação computorizada em 2D e 3D. Independentemente de usar os

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mais caros e sofisticados meios de animação, apenas disponíveis para os produtores dos grandes blockbusters internacionais, ou os mais amadores dos softwares disponíveis para os cineastas desmunidos de meios financeiros, conclui Manovitch (loc. cit.):

“O cinema digital é um caso particular de animação que usa imagens reais entre muitas outras componentes. (...) Nascido da animação, o cinema empurrou-a para a sua periferia, para, no fim, se tornar num caso particular de animação”.

Três notas sobre estes argumentos de Manovitch, que visam dar o golpe de misericórdia no “realismo ontológico” baziniano: em primeiro lugar, pode parecer estranho que o objectivo principal da imagem digital seja o de emular um realismo tão eficaz quanto o da indexicabilidade fotográfica: tanto progresso para nos levar de volta ao ponto de partida? Em segundo lugar, o próprio Bazin, excepcionalmente intuitivo mas menos sistemático, reconhece, como atrás referimos, que o realismo cinematográfico vive de artifícios, ou seja, que o efeito de realidade da imagem foto-cinematográfica depende da evolução do dispositivo e dos seus meios técnicos; em terceiro lugar, e talvez mais importante do que “vencer” ou “ultrapassar” a argumentação baziniana, a nova ponte lançada pelo cinema digital, e que, de facto, restabelece uma ligação às práticas pré-cinematográficas e às do cinema primitivo, volta a dar ao cinema e aos seus filmes a natureza compósita da arte que começou por estar próxima da pintura e da fotografia e que nunca abdicou, desde Méliès, das trucagens e “efeitos especiais” (ricos e pobres) que não punham em causa a indexicalidade, antes tinham esta última como material de base sem o qual não seria possível fazer filmes. É talvez essa a razão porque o cinema de animação foi explicitamente relegado para um lugar tão claramente separado do “cinema do index” (a animação não visava o mesmo tipo de efeito de realidade). E que faz compreender o renovado interesse pelo cinema primitivo, relançado por investigações históricas tão relevantes como a desenvolvida em Early Cinema: Space, frame, narrative (Elsaesser & Barker, 1990). Indexicalidade directa, indicialidade “O cinema é a arte do index”, diz Manovitch. Ora, não é nem nunca foi, apesar da importância central da indexicalidade da imagem foto-cinematográfica, se tivermos em conta a sua caracterização peirceana atrás citada. Mas, embora melhor entendida no âmbito da definição peirceana das significações da imagem, a questão da indexicalidade ou indicialidade da imagem foto-cinematográfica é relevante para o apuramento de que coisa é o filme, porque é ela que instala o paradoxo constitutivo das imagens da fotografia e do cinema, que por um lado estão coladas ao real pelo dispositivo que as gera, e por outro o transubstanciam e transfiguram, dissociando-se desse real e de algum modo “negando-o”.

No caso da imagem foto-cinematográfica, é a presença real do objecto fotografado diante da lente da câmara que permite falar de indexicalidade ou indicialidade directa (Lefebvre, loc. cit.). Mas há numerosos factores adicionais que a relativizam: o gosto estético do fotógrafo; as lentes, a luz e o filme escolhidos; a abertura do diafragma e a velocidade ou duração da exposição; o trabalho laboratorial de revelação e impressão; eventuais defeitos, voluntários ou acidentais, da captação da imagem, (por desfoque, por excesso ou falta de luz, ou por outro erro provocado por inabilidade do fotógrafo, ou por limitações da própria câmara utilizada); o tratamento, o processamento e a manipulação editorial, hoje muito mais acentuados pela edição e pós-produção digital. Estes e outros factores não diminuem necessariamente a indicialidade original da

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imagem, mas podem aproximá-la, para quem a observa, da pintura, do desenho ou, como vimos com Manovitch, de imagens construídas em computador. Ou seja, e de novo em contraste com o “realismo ontológico” de Bazin, não é possível escamotear a ambivalência existente entre a “objectividade” e a “subjectividade” da fotografia. Por outro lado, os rayographs e os fotogramas de Man Ray, Berenice Abbott ou Susan Derges, entre outros, embora resultando de um dispositivo fotográfico, muitas vezes denegam a indexicalidade, impedindo o reconhecimento do objecto representado. Mas dada a centralidade da obsessão com a indexicalidade directa, que como um íman parece atrair parte da reflexão sobre o cinema para a discussão do seu “realismo ontológico”, vale a pena revisitar, com alguma atenção, os textos de Bazin, alguns dos quais de 1945 (1985: 9-17; 63-80), Sontag (1977) ou Barthes (1980) que contribuiram decisivamente para a sustentar. Ao abordarmos o “realismo ontológico” da imagem fotográfica e cinematográfica, regressamos ao Bazin de há 60 anos pelo facto de ele tanto ter insistido em que a imagem fotográfica não representa o objecto fotografado, antes o re-apresenta figurado, sem outra operação, por um processo fotoquímico de que está ausente a subjectividade humana (a do pintor, por exemplo) — argumento que viria a ser retomado por Sontag e Barthes. Deliberadamente, ele não tem em conta os elementos subjectivos da fotografia, limitando-se a considerar o dispositivo fotoquímico e o “automatismo” da câmara — o seu perfil estritamente “mecânico” ou “maquínico”. Bazin (loc. cit:152) recorda a este respeito a morte de Manolete, filmada durante uma corrida, para dizer que o que fica no filme é o real propriamente dito, embora “filósofos e especialistas de estética” ainda hesitem sobre o estatuto dessas imagens — que, em todo o caso, não são representações. Antes, em «L’ontologie de l’image photographique» (loc.cit.: 9-17), abrira o seu texto com uma evocação do embalsamamento como exemplo obstinado de luta contra a morte (também Sontag e Barthes ligarão a fotografia ao passado e à morte); diz ele (9):

“Uma psicanálise das artes plásticas poderia considerar a prática do embalsamamento como um facto fundamental da sua génese. Na origem da pintura e da escultura, ela encontraria o ‘complexo’ da múmia”.

Pouco depois (10), lembra que Luís XIV já não se fez embalsamar, contentando-se com fazer pintar o seu retrato por Lebrun — mas neste caso não acreditamos na identidade ontológica do modelo e do retrato: o segundo, ícone do primeiro, ajuda-nos, por via da semelhança, a não o esquecer, vencendo o tempo pela perenidade da forma e evitando-lhe assim uma segunda morte, esta simbólica: o desaparecimento da sua imagem da nossa memória. A semelhança tentada pelo retratista é, assim, o âmago do problema do realismo em pintura, que a fotografia inventada por Niepce, primeiro, e o cinematógrafo dos Lumière, mais tarde, julgaram tornar obsoleto:

“... A fotografia e o cinema (...) satisfazem definitivamente (...) a obsessão do realismo [através de] uma reprodução mecânica de que o homem está ausente” (12).

Mas o devir obsoleto da pintura foi, entretanto, mil vezes desmentido pela própria pintura, desde Niepce até aos nossos dias. Já Benjamin (1931) reconheceu que não foi a pintura no seu conjunto a principal vítima da fotografia, mas sim um seu sub-género de época, o pequeno retrato portátil, herdeiro directo dos ícones bizantinos que se levavam em viagem ou para a batalha. E bem mais perto de nós, um pintor como Jacques Monory perguntava-se, em 1972: “Para quê pintar? Porque não inscrever directamente a imagem [fotográfica, ou um seu sucedâneo] no suporte?” (Lyotard 1973: 203-204). Ou seja, a pintura podia facilmente canibalizar a indexicalidade directa e iconizá-la ou torná-la símbolo — o que de facto passou a fazer sem hesitar, ora por importação directa, ora transformando-a, ora “pintando fotografias”, por vezes

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em telas de grandes dimensões museológicas, como no hiperrealismo dos anos 60-70. Marginalmente, recordemos o facto importante de que, ao mesmo tempo, são esses os anos em que a fotografia é apropriada pelos museus e, acedendo-lhes, passa a ser impressa em dimensões que permitam pendurá-la em paredes e ser contemplada como pintura. Mas voltemos ao “realismo ontológico” de Bazin: em nota de rodapé na mesma página, acrescenta ele, numa pequena frase decisiva:

“... Poderíamos considerar [a fotografia] como (...) uma tomada de impressão digital do objecto por via da luz”.

Foi esta ideia da impressão digital do objecto por via da luz (Manovitch prefere a expressão footprint, como vimos) que estabeleceu a natureza da indicialidade directa da imagem fotográfica, imago lucis opera expressa, como dirá depois Barthes, em tom de ritornello. Bazin desenvolve-a nas páginas seguintes, substituindo o termo representação por re-apresentação e referindo-se a um transfert de realidade da coisa para a sua reprodução (13-14):

“Esta génese automática [da fotografia] alterou radicalmente a psicologia da imagem. A objectividade da fotografia confere-lhe um poder de credibilidade ausente de qualquer obra pictórica. (...) Somos obrigados a acreditar na existência do objecto representado, de facto re-apresentado, ou seja, tornado presente no tempo e no espaço. A fotografia beneficia de um transfert de realidade da coisa para a sua reprodução.”

De novo em nota de rodapé, Bazin diz que, para melhor entendermos o lugar ocupado pela imagem fotográfica,

“...seria preciso introduzir aqui uma psicologia da relíquia e da ‘recordação’, que igualmente beneficiam de um transfert de realidade procedente do complexo da múmia”.

Bazin acrescenta que o sudário de Turim (a que Barthes também se referirá) realiza a síntese da relíquia e da fotografia (embora desde a sua datação pelo carbono 14, em 1988, portanto bem depois da morte de Bazin e de Barthes, saibamos que ele não é anterior a 1260 nem posterior a 1390). Sublinha ainda Bazin — num apontamento naturalmente extensivo ao cinema — que o registo do objecto real através de uma operação fotoquímica dá à fotografia um valor que ultrapassa [itálico meu] a sua qualidade estética. E fá-lo nos seguintes termos, voltando a evocar metaforicamente o embalsamamento (14):

“A imagem [fotográfica] pode ser pouco nítida, deformada, descolorida, sem valor documental, [mas] procede, pela sua génese, da ontologia do modelo (...). A fotografia não cria eternidade como a arte, antes embalsama o tempo, subtraindo-o apenas à sua corrupção. Nesta perspectiva, o cinema surge como a realização, no tempo, da objectividade fotográfica”.

Por outras palavras, e como já tínhamos observado, a fraca iconicidade da imagem foto-cinematográfica não diminui a sua indicialidade. Pouco depois (16), sobre o mesmo tema, mas alargando-o às relações entre imaginário e real, escreve Bazin:

“As virtualidades estéticas da fotografia residem na revelação do real (...). [Nela,] a distinção lógica entre imaginário e real tende a ser abolida. Qualquer imagem deve ser sentida como objecto e qualquer objecto como imagem, [produzindo] uma alucinação verdadeira”.

A ideia de que o ícone revela, ou desvela, o real, tornando visível o invisível através de um trabalho de “mostração” e sendo mesmo condição da sua “epifania” é tipicamente grega, envolvendo o apagamento da fronteira entre imaginário e real, e discuti-la-emos no capítulo “visível, invisível”, a propósito do mundo metafísico dos

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gregos clássicos. Quanto à “alucinação verdadeira” daquele que vê tal revelação, ou assunção de uma aparência pelo real invisível, ela refere-se a um ver implicado, crente e volitivo, que é mal representado pela dicotomia sujeito percepcionante – objecto percepcionado.

Bazin virá, ainda, a sublinhar a diferença entre o olhar da câmara e o olhar humano (17), um tema de que Merleau-Ponty também se veio, no mesmo ano (1945), a apropriar: a fotografia, diz ele, permite-nos

“admirar, na sua reprodução, o original que os nossos olhos não teriam sabido amar”. É um apontamento que nos remete para o Aristóteles da Poética, para quem a mimesis artística nos faz apreciar, nas suas representações, o que nos “repugnaria” na vida real.

Dissémos que também Sontag e Barthes, comparando, num território epistemológico ainda próximo de Bazin, o que fazem pintura e fotografia, vieram a glosar o tema da indicialidade. De facto, Sontag (1977: 136) escreveria, a este respeito, o seguinte, em termos que os amadores de fotografia não desdenhariam, em meados do séc. XIX, subscrever:

“Enquanto uma pintura, ainda que conforme aos padrões fotográficos da semelhança, nunca é mais do que a afirmação de uma interpretação, uma fotografia nunca é menos do que o registo de uma emanação (ondas de luz reflectidas pelos objectos), um vestígio material daquilo que foi fotografado e que é inacessível a qualquer pintura”.

Barthes (1980: 871) viria, sem citar Sontag nem Bazin e apresentando a sua reflexão como genuinamente original, a fazer-se eco deste argumento, tratando o “referente” fotográfico como o real fotografado e referindo a “co-naturalidade” do índice fotográfico e do seu objecto:

“...Toda e qualquer foto é de algum modo co-natural ao seu referente. (...) Chamo ‘referente fotográfico’, não a coisa facultativamente real para a qual uma imagem ou um signo reenviam, mas a coisa necessariamente real que foi posta diante da objectiva, e sem a qual não haveria fotografia. A pintura (...) pode fingir a realidade sem a ter visto. O discurso combina, decerto, signos que têm referentes, mas esses referentes podem ser e são frequentemente ‘quimeras’. Ao contrário destas imitações, na fotografia, nunca posso negar que a coisa tenha estado lá ”.

Insistamos num ponto crucial: a indicialidade não desaparece necessariamente com as trucagens e os efeitos especiais de que o cinema sempre foi, igualmente, uma gigantesca fábrica, por via do trabalho da câmara e do dispositivo óptico utilizado, do trabalho com o décor ou em laboratório. Nem os históricos espelhos do “processo Shuftan”, nem o uso de maquetes pelos estúdios, nem o pictograph ou o simplifilm, onde lentes substituíam os espelhos, nem os fundos fotográficos ou cinematográficos obtidos por projecção de imagens muito ampliadas (um processo conhecido por transparência) e que permitiram durante décadas que uma paisagem previamente filmada “corresse” para além da janela de um comboio ou que uma estrada vista em travelling para a frente, ou para trás, fosse “percorrida” por um carro (imóvel no estúdio e provavelmente transformado para efeito das filmagens), alteram a definição básica da imagem como “emanando” do objecto filmado. Em todos estes procedimentos, bem como em todas as sobreposições de imagens em laboratório (fondus enchainés, layerings vários), cada componente separada da imagem final mantinha a sua indicialidade original. Hoje, com as imagens numéricas e feitas em computador, muitas vezes misturadas com imagens “reais” (recordem-se os argumentos de Manovitch), a questão torna-se

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mais complexa, regressando-se a um estádio de fusão entre a indicialidade fotográfica e a antiga representação pictural — um processo que foi praticado pelo cinema desde a construção de cenários parcialmente pictóricos e, mais tarde, virtuais. A questão da indicialidade, ou da indexicalidade directa da imagem foto-cinematográfica, transvasou há muito dos parâmetros bazinianos que a constituiram, metamorfoseando-se e adquirindo novos rebatimentos, designadamente éticos, em polémicas como a que opôs Claude Lanzmann (autor de Shoah, um documentário de 1985, de 9,5 horas, sobre os campos de extermínio nazis e o ghetto de Varsóvia) e seus aliados (Wajcman, 2001: 47-83. Pagnoux, 2001: 84-108), por um lado, e Didi-Huberman (2001;2004), por outro, em torno do estudo, por este último, de quatro fotografias feitas por um Sonderkommando em Auschwitz, em Agosto de 1944.

Invocando a sua metodologia para a construção de Shoah, onde optou por apenas ouvir sobreviventes e testemunhas directas, Lanzmann atacou o uso de imagens de arquivo fotográfico dos campos para abordar a “solução final”, alegando que tais imagens já só podem funcionar como “provas” (no sentido jurídico), e que tais provas já não são necessárias a ninguém. Em apoio de Lanzmann (que além de cineasta, é director da Les Temps Modernes, onde Wajcman e Pagnoux publicaram os seus textos), Wajcman acusou Didi-Huberman de ceder à “fetichisação religiosa”, à “captação hipnótica”, à “encantação mágica” e ao “amor generalizado pela representação”, hoje sobretudo protagonizado pela televisão, que o interesse de Didi-Huberman por novas imagens reais de Auschwitz representaria. Pagnoux foi mais longe, acusando Didi-Huberman de transformar o campo de extermínio num “objecto fotogénico” e de fomentar doentiamente uma “fruição do horror” próxima da pornografia e moralmente insuportável. Lanzmann, por seu turno, disse numa entrevista que, se tivesse encontrado um filme feito por um SS em que se visse a entrada de vítimas para uma câmara de gás e, depois, o resultado do gaseamento, não só nunca teria utilizado tal filme como o teria destruído “por razões óbvias, ponto final”. Para os seus críticos, portanto, Didi-Huberman estaria a promover, através da sua chamada de atenção para imagens da realidade, um voyeurismo tão intolerável quanto desnecessário.

Didi-Huberman (2004) respondeu-lhes que as fotos “arrancadas ao inferno do campo” pelo Sonderkommando (quatro imagens onde se vêem mulheres despidas encaminhando-se para a câmara de gás e cadáveres de recém-gaseados à beira de uma vala comum fumegante onde os corpos são incinerados) são documentos “preciosos”, obtidos em condições de clandestinidade extrema — os Sonderkommandos de Auschwitz eram regularmente eliminados; que essas fotos dão parcialmente testemunho das mortíferas rotinas quotidianas do campo; e que é inaceitável prescindir de imagens de arquivo para documentar em que consistiu a “solução final”, apesar delas pedirem, sempre, uma análise séria das condições materiais em que foram obtidas e do seu valor documental. Para Didi-Huberman, mostrar tais imagens e analisar as condições em que foram obtidas faz parte do trabalho obrigatório do historiador, tanto mais quanto elas dão expressão imagética aos rolos de textos dos Sonderkommandos enterrados no campo (a maior parte dos quais se perderam, porque o solo do campo foi saqueado após a libertação por camponeses polacos à procura do “ouro judeu”), bem como a depoimentos como os de Primo Levi, de Robert Antelme e até a relatórios nazis sobre a vida nos campos da morte, como o do SS Filip Müller.

Como pano de fundo desta polémica emerge o uso descuidado de imagens dos campos obtidas aquando da libertação destes pelos aliados: em inúmeros casos, imagens de um campo foram apresentadas como sendo de outro, mal legendadas,

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insuficientemente identificadas, geralmente não datadas e apresentadas sem autoria — amalgamadas pela propaganda aliada numa campanha de comunicação que visou, sem grandes preocupações de rigor, fazer para a opinião pública do imediato pós-guerra uma “pedagogia do horror” nazi, mostrando em imagens as suas atrocidades e os seus crimes contra a humanidade. O filme: primeira abordagem

Voltemos à segunda das nossas questões iniciais: que coisa é o filme? Aqui, não o abordamos enquanto suporte material impressionável (sucessão dos tipos de película, etc.) que integra a história técnica do dispositivo cinematográfico a par da história dos aparelhos de captação de imagem e som, dos sistemas de projecção e dos utensílios de pós-produção. Antes o abordamos enquanto obra e objecto estético complexos — o que o espectador vê no ecrã. Deste ponto de vista, o filme — até ontem maioritariamente impresso em película, hoje maioritariamente em suporte digital — é o objecto comunicacional e/ou artístico resultante do dispositivo cinematográfico, e que pede para ser percepcionado enquanto tal, como corpo plástico feito de imagens e sons e que propõe uma experiência perceptiva idiossincrática, ocupando um lugar próprio entre nós e o mundo, entre a experiência perceptiva do mundo para nós e do mundo em si, entendidos como sendo uma e a mesma coisa. Por ser esse o lugar que ocupa, disse-se por vezes que o filme, entendido como obra que resulta do dispositivo cinematográfico, estabelece uma mediação e é, por isso, uma coisa ou objecto intermedium. Compreende-se, para efeitos de inventário categorial, a intencionalidade topológica da definição, mas ela favorece um equívoco considerável sobre o que seja o filme e sobre o modo como o percepcionamos: independentemente da efectiva mediação — resultante, em primeiro lugar, da indexicalidade directa das suas imagens — que o filme oferece entre nós e o mundo, e à semelhança do que foi infindavelmente repetido sobre as artes ao longo da modernidade e sobre os modernismos artísticos em particular, o filme só lateralmente remete para outra realidade para além da dele mesmo. Merleau-Ponty dirá até que o filme, “forma complexa”, “unidade melódica”, não remete senão para si próprio — é auto-referencial. Dada a relação particular que existe entre a sua imagem e o objecto filmado, ele duplica de facto, a seu modo, o real (Mendes, 2009: 15-17), mas fá-lo criando uma nova realidade que ocupa um espaço próprio entre nós e o mundo, e acrescenta-se à nossa percepção do mundo, alterando-a. O filme altera o que vemos e percepcionamos do mundo e influencia a nossa experiência vivida, insistindo na sua maiêutica do ver, na sua identidade de parteiro do ver. No âmbito da reflexão sobre a ideia de cinema que vem de Münsterberg a Deleuze, diremos que o cinema é uma escola do ver que nunca deixou de estar em instalação, e que cada um dos seus filmes é uma aula dessa escola, uma aula do ver. Apresentando o cinema aos seus contemporâneos em The Photoplay, quase em simultâneo com a estreia de The Birth of a Nation, de Griffith, Münsterberg, psicólogo de profissão e néo-kantiano de formação, descreve-o sobretudo como um dispositivo que replica e objectiva o funcionamento da mente humana e que de diversos modos a espelha. Ele preocupa-se sobretudo com a actividade mental gerada no espectador diante das imagens em movimento, da mobilidade da câmara, da escala de planos e da nova figuração do real que o filme produz, abordando o seu tema em função de quatro ângulos: a “profundidade e o movimento”, a “atenção”, a “memória e a imaginação” e as “emoções”. Referindo-se por exemplo à impressão de profundidade de campo e de movimento produzida pela imagem bidimensional projectada no ecrã, diz ele (Münsterberg, 1916: 56):

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“De facto vemos a profundidade e no entanto não podemos aceitá-la. Algo inibe em nós a crença em que as pessoas e paisagens projectadas são mesmo plásticas. Mas não são certamente apenas retratos: as pessoas movem-se em direcção a nós ou afastam-se, e o rio flui de facto para um vale distante. E no entanto a distância a que as pessoas se movem [no ecrã] não é a do nosso espaço real, (...) e aquelas pessoas não são de carne e osso. O que caracteriza a percepção da photoplay [do filme] é uma experiência interior única [do espectador. E pouco adiante, 70-71]: Vemos genuína profundidade nas imagens, sabendo a cada instante que essa profundidade não é real e que as pessoas não são realmente plásticas. É apenas uma sugestão de profundidade criada pela nossa actividade (...). O mesmo se passa com o movimento, que também é por nós percepcionado (...) e que depende em grande parte da nossa reacção. Profundidade e movimento chegam a nós, no mundo das imagens em movimento, não como factos brutos mas como uma mistura de factos e símbolos”.

Como muitos autores posteriores (Benjamin, 1936), Münsterberg põe em evidência a capacidade do cinema, quando comparado com o teatro, para multiplicar, via escala de planos, os pontos de vista do espectador sobre a acção ou sobre as personagens. Eis o que ele escreve então sobre o grande plano (close-up) e os seus efeitos na atenção do espectador (loc. cit.: 87-88):

“O grande plano objectivou no nosso mundo perceptivo o nosso acto mental de atenção e deu à arte um meio que transcende de longe o poder de qualquer palco teatral. O grande plano foi introduzido bastante tarde mas adquiriu de imediato uma posição segura: quanto mais elaborada a produção, maior e mais competente o uso deste novo meio artístico.

A época em que Münsterberg escreve o seu ensaio, tendo o cinematógrafo atingido os seus vinte anos, é a do deslumbramento permanente com as novas expressões e figurações que ele vai progressivamente oferecendo. Mas, facto raro na época e antecipando-se acentuadamente à reflexão posterior sobre o cinema, o que lhe interessa são, tanto as novas performances expressivas, como o efeito perceptivo que elas geram. Veja-se o que ele diz sobre o cut-back (flashback) e as forward glances (flashforwards) no que toca à sua relação com a “memória” e com a “imaginação” (loc. cit.: 95-96):

“O caso do cut-back é semelhante ao do close-up. Neste reconhecemos o acto mental da atenção, naquele o acto mental de recordar. O que no teatro resultaria apenas da nossa mente está, no filme, nas próprias imagens, como se a realidade perdesse a sua conexão contínua e desse forma às solicitações da nossa alma (...). Outra versão do mesmo princípio vemos nas imagens que antecipam o futuro da acção (forward glances): a função mental aqui envolvida é a da nossa expectativa (...) ou imaginação. [E mais adiante, 105-106:] O elemento temporal desapareceu, irradia em todas as direcções (...). O mundo objectivo é moldado pelos interesses da mente. Acontecimentos distantes uns dos outros, que não poderíamos presenciar ao mesmo tempo, fundem-se agora no nosso campo de visão, reunidos na nossa consciência”.

Ou seja: já em 1916, Münsterberg vê o cinema como um dispositivo que, produzindo uma nova realidade, veio colar-se, por osmose e semelhança, à própria actividade mental do espectador perceptivo, figurando-a e objectivando-a nas suas imagens em movimento. Para ele, o cinema coincide com e dá forma a uma série de processos mentais do espectador; e o filme é entendível como uma “arte do espírito” que “conta a história humana ultrapassando as formas do mundo exterior (...) e ajustando os acontecimentos [que mostra] às formas do mundo interior”. Muito mais tarde, Arnheim (1954; 1969) também considerará que a arte e a sua percepção resultam da actividade criadora do espírito, que dá sentido ao mundo e lhe

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atribui perfis físicos (forma, cor, dimensão, luminosidade, etc.), mas admitindo que tais perfis são, apesar de tudo, o “reflexo” do que se encontra no mundo. Entretanto (e explicitamente com Bazin), o pensamento crítico sobre o cinema formulará, por exemplo face à “montagem de atracções” ou “associativa” de Eisenstein e da escola russa, o juízo de que esta é “autoritária” ou “manipuladora” da percepção do espectador. Mas para Münsterberg, em tempo de consagração de Griffith e do seu The Birth of a Nation, o que prevalece é o maravilhamento diante da capacidade do filme para replicar e se apresentar como duplo dos mecanismos de percepção de quem o vê. Ora, o fenómeno da criação de uma nova realidade opera, quer no filme ficcional, quer no documentário, quer mesmo nas antigas newsreel: a criação da nova realidade não depende de géneros nem da aparentemente maior ou menor proximidade do filme em relação ao real, antes é inerente à hecceidade do filme. Esgotada a sua primeira função de informar visualmente sobre acontecimentos recentes, as newsreel depressa adquiriam essa hecceidade — e muitas vezes foram, de resto, canibalizadas pela ficção: recordem-se as imagens da primeira guerra mundial e as tomadas de vistas lumiéristas de Paris no Jules et Jim de Truffaut, tornadas indistintas da ficção; ou, mais tarde, as imagens de reportagens televisivas da invasão de Praga em 1968, integradas em A insustentável leveza do ser, de Philip Kaufman, 1988. Ou seja: nunca uma alegadamente mais “verista” relação com um “referente” alterou a posição e o estatuto do filme como ente significante e interposto entre nós e o mundo. E isto apesar da indicialidade das suas imagens, que é a mesma da fotografia e que originalmente separou um e outra da pintura. O que a indicialidade fez foi separar fotografia e filme do estatuto categorial da representação pictórica, propondo-os como re-apresentações do real propriamente dito (Bazin, 1985: 9-17) ou como figuração (no sentido de dar figura a) colada ao real existente. Vimos que a tripla marcação peirceana da imagem foto-cinematográfica (como ícone, índice e símbolo) ultrapassa as críticas de Manovitch ao “dogma” da indexicalidade e permite analisar essa imagem num contexto mais vasto e mais pictural. Acresce, ainda em matéria de indexicalidade, que o que seja o referente de um filme tem igualmente alimentado uma discussão que não parece ser fácil encerrar conclusivamente. Autores contemporâneos (Aumont et al, loc. cit., 2008: 72) insistem na natureza categorial do referente cinematográfico:

“No que respeita à linguagem cinematográfica, a imagem de um gato (significante icónico + significado ‘gato’) não tem como referente o gato particular que foi filmado, mas sobretudo toda a categoria dos gatos: é preciso, de facto, distinguir entre o acto da tomada de vistas, que requer um gato particular, e a atribuição de um referente à imagem vista por aquele ou aqueles que a olham. Exceptuando o caso das fotos de família ou do filme de férias, um objecto não é fotografado ou filmado senão como representante da categoria a que pertence: é para essa categoria que ele reenvia e não para o objecto-representante que foi utilizado na tomada de vistas”.

Os mesmos autores ilustram a seguir esta afirmação com exemplos como o de Crin Blanc (Albert Lamorisse, 1953): as imagens do cavalo do filme não têm por referente a meia dúzia de animais semelhantes uns aos outros que foram necessários para as filmagens, mas o tipo categorial e idiossincrático de cavalo selvagem ali representado. O mesmo se poderia dizer, acrescentamos nós, da meia dúzia de Fords Thunderbird descapotáveis que foram necessários para filmar o carro de Thelma & Louise (Ridley Scott, 1991) e de mil outros exemplos. Mas porque razão deveriam as “fotos de família” e os “filmes de férias” — diante dos quais tendemos a dizer “este sou eu”, “aquela é a minha irmã” — escapar à definição

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geral da imagem foto-cinematográfica? Tal excepção não parece sustentável: voltando à imagem do gato, tal imagem também pode ser vista como um significante icónico que remete para o significado “categoria dos gatos a que ele pertence”, mas que tem como referente o gato particular que foi fotografado ou filmado, e a que está ligada pela indexicalidade directa, por mais artificiosamente trabalhada que a imagem tenha sido. Do mesmo modo, a personagem Elsa Bannister, incarnada por Rita Hayworth em The Lady of Shangai (Orson Welles, 1947), pode ser o significante icónico que remete para o significado femme fatale do film noir e para o referente Rita Hayworth, ou o mesmo significante icónico remetendo para o significado Rita Hayworth (e seus restantes desempenhos) e para o referente femme fatale do film noir. É a este jogo de possibilidades que se reporta a discussão sobre as potências de referenciação da imagem foto-cinematográfica. Tal jogo parte de três petições de princípio distintas sobre o modo como este tipo de imagem significa e representa ou re-apresenta o real fotografado ou filmado: a petição herdada da linguística e expressa por Aumont et al.; a petição proposta por Peirce (tais imagens podem ser ao mesmo tempo ícones, índices e símbolos); e a petição herdada do “realismo ontológico” de Bazin, Sontag e Barthes, para quem a indexicalidade directa é o valor determinante da natureza e da percepção de tais imagens. Em nosso entender, e sem prejuízo do interesse teórico da discussão, a proposta pragmática da semiologia de Peirce é a mais capaz de responder à questão colocada: a imagem foto-cinematográfica pode ser um ícone que também é índice e símbolo; um índice que também é ícone e símbolo; ou um símbolo que também é ícone e índice. O corpo do filme Insistamos na nossa segunda questão: que coisa é o filme? O filme apresenta-se-nos como corpo no sentido que lhe deu Raymond Bellour (2009), exprimindo a intencionalidade do realizador e subjectivizando, por meios técnicos e pelo savoir faire artístico deste, as formas e conteúdos do mundo. Por os subjectivizar, dissocia-se deles, sem no entanto poder rejeitar a indicialidade das suas imagens. Entendido como corpo, o filme dá às suas imagens e figurações autonomia e hecceidade identitária, separando-se dos olhares heteronómicos herdados, depois de com eles ter aprendido. Este trabalho, esta separação, podemos, usando uma metáfora corrente, defini-lo como animista: trata-se, como se disse ao longo de séculos, de dar “alma” às coisas, “alma” que o realizador viu nelas ou lhes insuflou. Apesar da sua indicialidade, todas as imagens do filme são ficções que metamorfoseiam o real, o que nos afasta do estrito “realismo ontológico” defendido por Bazin. O filme torna-se, assim, imago metafórica do mundo — pode desvelar, revelar o real, ou perfis invisíveis do real. A resposta à questão de saber como dá o artista (aqui o cineasta) essa “alma” às coisas vem sendo tentativamente formulada desde a Crítica da faculdade de julgar de Kant, quando (§ 49), referindo-se ao “génio artístico”, ele explica, propondo a novidade de cada representação artística (e o progresso linearista que ela instaura) que tão acarinhada será pelos modernos e pelos modernistas:

“Este (...) talento [o génio] é (...) aquele que designamos por alma; de facto, exprimir e tornar universalmente comunicável o que é indizível no estado de alma aquando de certa representação, quer a [sua] expressão pertença à linguagem, à pintura, à plástica [escultura], (...) exige a faculdade de captar (...) o jogo da imaginação e de o unificar num conceito que pode ser comunicado sem o constrangimento de regras — conceito que, por essa razão, é original e lança uma nova regra [itálicos meus] que não teria sido possível deduzir de nenhum princípio ou exemplo precedente”.

Por outro lado, ao tornar-se imago metafórica do mundo, o filme oferece uma

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fotogénese (luminiscência ou fosforescência) específica a esse mesmo mundo, com os seus objectos, paisagens e personagens, entendida como Cavell (1992: 30-38) a entende e de que dá testemunho a re-apresentação do real em forma de fantasma, resultante do desejo de o transfigurar. No filme, as coisas são vistas como sendo outras, como escreveu Eisenstein (1944) a propósito da chaleira fumegante de Dickens: o filme feiticisa as coisas ou facializa-as, oferecendo delas outra figura, e propende a lidar com elas em regime de estranhamento, no regime da “inquietante estranheza” que foi primeiro estudada por Freud e que adiante referiremos com mais detalhe. Dito de outro modo, qualquer objecto fotografado ou filmado é ou pode ser signo de outra coisa, remetendo para um imaginário individual ou socialmente determinado que de algum modo o transfigura, dando-lhe polissemia e convidando-nos a ver nele um invisível não explicitamente referenciado. Com as suas imagens e os seus sons, o seu ritmo e a sua duração, a sua luz e atmosferas, a sua maior ou menor unidade e homogeneidade, o corpo do filme propõe-se à nossa percepção e contemplação como um todo expressivo, à semelhança de qualquer outra obra de arte. O que o corpo do filme — massa plástica feita de imagens em movimento e sons — propõe ao espectador, é que este o entenda como metamorfose e outra figura do real e seja capaz de activar, através da sua inteligência perceptiva, a ligação imaginária entre o que vê no ecrã e o que vê no real. O que o filme propõe ao espectador não é que nele “encontre” o real (exercício que a pintura tinha saturado com o retrato e o trompe-l’œil), mas o inverso: propõe-lhe que nele mergulhe e seja depois capaz de ver, no real, e nele inscrever, percepcionando-o emocionalmente de um modo novo, o que começou por ver no ecrã (o exercício de matriz idealista a que Bazin chamou “alucinação verdadeira”): novas figurações que o filme lhe revelou e que ele poderá, ou não, inscrever na experiência vivida. Um olhar educado pela imagem não percepciona o mundo de modo banal, porque inscreve no mundo o que aprendeu com a imagem. Dito de outro modo: o jogo hermenêutico do espectador diante do filme replica autonomamente o jogo hermenêutico do realizador diante do real filmado. Se e quando o jogo hermenêutico do realizador e do espectador se cruzam ou aproximam, o espectador entra no quiasma onde se indistinguem a re-apresentação do real, sempre dependente da indicialidade das imagens, e a sua transfiguração por via dos artifícios do filme: o enquadramento e a mise en scène do real e/ou das ficções, o trabalho com a luz e o som, a découpage, o plano, a montagem e a elipse. Tal transfiguração resulta, assim, do artifício e do falso, e faz pensar, entre outros e por exemplo, nos exercícios de caméra-stylo (Astruc, 1948). Veremos, com Bazin e Deleuze, como a pregnância das imagens e da sua duração tende sempre a regressar, um pouco como no retorno do recalcado, à definição do que seja o cinema e os seus filmes. O espectador emociona-se, enquanto a sua percepção age diante do corpo do filme, com isto ou aquilo que nele vê (e em primeiro lugar por via do punctum que Barthes referiu a propósito da fotografia). Mas a este respeito recordemos o óbvio, que por vezes não vemos: onde se originam as emoções, qual é a sua χώρα (khora: para Platão, o espaço ou lugar no espaço onde as formas se materializam) e o seu habitus? As emoções só existem em nós, espectadores: não estão contidas nas imagens. O filme é um objecto inanimado. São os espectadores que, reagindo-lhe, se emocionam diante dele. Dir-se-á: alguém canta emocionadamente para uma gravação sonora, alguém filma uma criança que chora desesperada. O som gravado e o filme não contêm emoções? A resposta é: contêm o registo tecnicamente conservado dessas emoções (Bazin falará a este respeito de “embalsamamento do tempo” e invocará a

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morte do toureiro filmada na arena); mas a banda sonora e o filme não percepcionam nem vivem emoções, são apenas o seu registo. Esta é a face morta e a hecceidade tecnológica da indicialidade.

Para a fenomenologia, este é um tema claro: o sujeito é um cogito perceptivo e o percepcionado está inteiramente do lado do objecto — exactamente como no caso do espectador diante do filme: o “eu” do espectador é um sujeito transcendental, em primeiro lugar feito de olhar omni-perceptivo, mas que vê uma ilusão (palavra a que Bazin também adere) — uma metamorfose do real produzida pelas imagens em movimento. Por isso o “realismo” baziniano, e a ideia de “epifania” do “real revelado” que lhe está associado, têm, para a fenomenologia, o seu limite nessa ilusão.

Rompendo com esta leitura, Deleuze considerou, no primeiro dos seus livros sobre o cinema, que a fenomenologia não fornecia dados suficientes para explicar o que acontece diante do filme. É certo que ele parece ter lido Merleau-Ponty sobretudo parafraseando a Logique du cinéma de Albert Lattay, e pouco terá atendido à análise existencial da Phénoménologie de la perception (Merleau-Ponty, 1945). É provável, assim, que a fenomenologia tenha mais a dizer sobre que coisa é o filme do que Deleuze pensou. De qualquer modo, é conhecida a sua crítica à fenomenologia e a Merleau-Ponty (Deleuze, 1981): para o autor de L’image mouvement, uma e outro são pré-cinematográficos, retomaram dos clássicos o aparelho essencialista do ver e a dicotomia sujeito-objecto, e em matéria de cinema ficaram-se pela imagem estroboscópica. Por isso ele lhes prefere Bergson: à ideia fenomenológica de que “toda a consciência é consciência de qualquer coisa” (que coloca um sujeito percepcionante face a um objecto percepcionado), Bergson opôs que “a consciência é qualquer coisa” (sugerindo a releitura dessa dualidade a partir do próprio acto perceptivo). Para Deleuze, a fenomenologia só conhece a visão das coisas naturais e a partir da ancoragem do sujeito perceptivo no real, e sempre entendeu o cinema (talvez porque os fenomenólogos não frequentavam o cinema: Deleuze, 1981) como ilusão e irrealidade, sem perceber que o sujeito perceptivo é ele próprio uma imagem-movimento e que o seu cérebro é um conversor permanente do que os olhos vêem — outras imagens-movimento.

Emocionando-nos, reaprendemos com o corpo do filme a ver e a imaginar: ver e imaginar estão profundamente implicados um com o outro (Walton, 1990: 295) e imaginar é vermo-nos a nós mesmos envolvidos no que imaginamos. Há tempos, depois de um visionamento de Les 400 coups, de Truffaut, um aluno dizia-me, estupefacto com as suas próprias emoções, que tinha ficado medusado pela Paris do filme e que desejaria lá viver para sempre. Eu perguntei-lhe: Lá, naquela Paris, a preto e branco? Resposta: Sim, lá, a preto e branco. Como dissémos atrás: as imagens são ficções; mas as emoções ficcionais são experienciais, incorporam-se e inscrevem-se no vivido do espectador. É também neste sentido que o cinema e os seus filmes são uma escola do ver (Gombrich e Eribon, 1983). Por vezes, nas aulas dessa escola, participam ajudantes oriundos da própria figuração: o envolvimento do espectador ou do público foi estimulado, em certa pintura, na fotografia e no cinema, pelo espectador interno, aquele que observa a cena dentro do quadro, da foto ou do plano, duplo ideal do spectator e que o convida a ver e a imaginar através dele.

Uma nota lateral ajuda-nos a entender outra dimensão deste fenómeno: a psicologia cognitiva terá dado, na última década, passos iniciais eventualmente decisivos para o conhecimento dos dispositivos cerebrais que viabilizam, por imitação de outros (talvez incluindo dramatis personæ retratados por indicialidade directa), a compreensão e aprendizagem das suas aptidões e intenções, o que pode contribuir

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para a descrição do tráfego de influências exercido pela imagem de outrem sobre o seu spectator. De facto, a descoberta dos neurónios-espelho (mirror neurons) em primatas e depois em seres humanos, na década de 90, ofereceu uma chave de compreensão da capacidade de imitar outros e da aquisição de linguagens. Os neurónios-espelho são células que disparam na concretização de acções mas também quando se observa um outro ou outros (em princípio conspecíficos) nessa concretização, possibilitando a compreensão, quer da acção, quer da intenção do(s) outro(s), e permitindo a imitação do que o outro está a fazer como se o observador estivesse, ele mesmo, a realizar essa acção. São, assim, suportes da imitação enquanto actividade cognitiva. Desde a sua descoberta, os neurónios-espelho têm sido associados a diferentes registos comportamentais (imitação, aprendizagem de novas aptidões e entendimento da intencionalidade de outrem, e alteraram a teoria da mente (Gallese, 2005; Rizzolatti, Fogassi, & Gallese, 2006). A descoberta permitiu também alargar a reflexão sobre a compreensão da intencionalidade de conspecíficos, a partir da observação, à transmissão de cultura (Tomasello, Carpenter, Call, Behne, & Moll, 2005). Quanto ao jogo hermenêutico atrás referido, e que é central na experienciação do fenómeno cinematográfico, ele instaura, assim, uma série de mediações: a que pré-existia entre o corpo expressivo do filme e o real, dada a indicialidade das suas imagens (e eventualmente dos seus sons); a que se activa no espectador diante do corpo expressivo do filme, pondo-o em contacto empático com este, mas também com a intencionalidade e a subjectividade do realizador; a que lhe dá consciência de estar diante de um dispositivo técnico imersivo e que determina a sua posição, levando-o a identificar-se com o olhar da câmara — o que Jean-Louis Baudry designou por “identificação com o aparelho de base” do cinema (Baudry, 1978); e a que surgirá depois, por via do filme, entre o espectador e o real. O espectador interage com o filme e com o dispositivo cinematográfico (nas três primeiras destas mediações) ou com o real interpretado pelo filme (na quarta) projectando num e noutro a sua experiência interior, deixando-se trabalhar emocionalmente pelo que viu no filme, aprendendo, com ele, a ver, e aceitando que este altere a sua percepção do mundo, o que nele vê.

Imbuído do espírito de Iena nos primeiros anos do séc. XIX e desenvolvendo uma “ciência da arte totalmente especulativa”, escrevia Schelling, na sua Filosofia da arte (1999: 357), sobre as artes figurativas:

“Toda a arte figurativa é a configuração do infinito no finito, do irreal no real. Como em geral procura essa transformação do ideal em real, [então] a mais perfeita manifestação do ideal como real, a absoluta transformação do primeiro no segundo, têm de assinalar o cimo da arte figurativa”.

Deleuze, escrevendo sobre o cinema (1983: 84), respondeu-lhe exprimindo o desejo baziniano de “alucinação verdadeira” e esperando que o cinema veja a substância (ουσία) no acidente e o rosto na máscara (persona), mas invertendo os termos do mestre de Hegel:

“[O cinema] não se confunde com as outras artes, que visam sobretudo um irreal através do mundo; ele faz do próprio mundo um irreal ou uma narrativa: no cinema, é o mundo que se torna na sua própria imagem, e não uma imagem que se torna mundo”.

Pouco importa, como reconhece Deleuze desde as primeiras páginas da sua reflexão sobre o cinema em L’image-mouvement, que sejam muito maioritários os filmes que não exibem os poderes do cinema acima referidos, acantonando-se numa cegueira prosaica que adiante comentaremos através de Heidegger, referindo-nos à “cegueira

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ontológica” — a que impede que se veja o ser. Estas linhas são escritas em defesa da experiência eidética da aventura humana no mundo (vinda do εἶδος grego: ideia, mas também aparência, forma) que o cinema e os seus filmes nos proporcionaram e proporcionam. Como diz, com acentuada humildade, o colectivo da Traffic, logo no cartão de visita que apresenta a revista:

“Vivemos um momento em que, cada vez mais, falamos de imagens. Tanto modernas (‘novas imagens’, imagens de síntese) como arcaicas (mitológicas, religiosas, picturais). E entre essas imagens há as do cinema. As imagens do cinema são muito preciosas porque constituem, para duas ou três gerações de todo o mundo, um verdadeiro arquivo de recordações, um tesouro de emoções armazenadas e também uma fábrica de questões. Chegou o tempo de usar o cinema para questionar as outras imagens — e vice versa”.

Nova realidade Que coisa é o filme? A resposta a esta questão inclui o reconhecimento de que ele funciona para o espectador como uma nova realidade, que se acrescenta e convive com as outras — as naturais e as artificiais. A questão de saber porque é o filme percepcionado como uma nova realidade e não como um exercício mimético de mostração “fiel e verdadeira” da realidade em que estamos imersos é muito vasta e presta-se a diferentes enfoques. Bazin, como veremos adiante, considerava (1985: 63-80) que o “realismo” de Welles e Wyler, a duração das suas cenas e a redução do papel da montagem permitiam à imagem cinematográfica “inflectir, modificar a realidade a partir de dentro”. Entre estes enfoques, a questão também pode ser abordada como relevando da psicologia da Forma (Gestalttheorie), a partir das históricas primeiras linhas de Merleau-Ponty (1945) no único texto completo que dedicou ao cinema:

“Agrupamos as estrelas em constelações como já os antigos o faziam, mas muitas outras configurações do mapa celeste são, a priori, possíveis. Quando nos apresentam a série:

a b c d e f g h i j . . . . . . . . . .

emparelhamos sempre os pontos segundo a fórmula a-b, c-d, e-f, etc., quando os grupos b-c, d-e, f-g, etc., são, em princípio, igualmente prováveis. O doente que contempla a tapeçaria do seu quarto vê-a subitamente transformar-se, se desenho e figura se tornam fundo, enquanto o que se vê habitualmente como fundo se torna figura. O aspecto do mundo alterar-se-ia profundamente, para nós, se conseguíssemos ver como coisas os intervalos entre as coisas — por exemplo o espaço entre as árvores numa avenida — e reciprocamente como fundo as coisas mesmas — as árvores da avenida”.

Segundo esta leitura, o que o filme nos propõe com as suas imagens em movimento é um espaço-tempo (e aqui sublinhemos a dimensão tempo, duração, essencial à experiência perceptiva) onde figura e fundo coalescem, subvertendo a percepção visual prevalecente na nossa experiência do mundo e dos outros. Nós não vemos como o automaton cinematográfico vê. Na imagem cinematográfica projectada no ecrã bi-dimensional, os “intervalos entre figuras” de Merleau-Ponty oferecem-se à nossa percepção tão relevantes quanto estas últimas — o que significa que nela, como na fotografia, tudo é figura — e é por isso que é rigoroso dizer que o filme cria uma nova realidade e pede para ser percepcionado em si mesmo: não vemos um rosto como um grande plano cinematográfico o vê, não vemos a profundidade de campo de um corredor ou de um salão como certas lentes a vêem, não vemos uma paisagem como um enquadramento ou uma panorâmica cinematográfica a vê. O cinema não vê

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como nós, e vice versa. E também os cada vez mais frequentes filmes em 3D não apagam esta diferença, antes a acentuam. A tendência frequente para antropomorfizar o olhar da câmara, tornando-o numa extensão do nosso olhar, falha inteiramente esta diferença constitutiva da nova realidade que o dispositivo cinematográfico gera e nos dá a ver.

Como escreveu Paul Klee na abertura do seu texto «A Confissão Criadora» (1920), rejeitando a prevalência da mimesis: “A arte não reproduz o visível, torna visível.” Ao dar a ver essa sua nova realidade, torna-nos também em seus videntes, por vezes em vedores. O espectador de cinema vê no filme aquilo que a câmara captou (o mundo e os outros tornados uma nova realidade) e vê-se a si próprio a ver o olhar da câmara que cria essa nova realidade, que se acrescenta às outras. No olhar do espectador cruzam-se e coalescem, como vimos atrás, diversos olhares: o seu próprio olhar diante do que o filme mostra e que o torna vedor, o seu próprio olhar pasmado perante o dispositivo cinemático, o olhar intencional do realizador representado pelo olhar da câmara, os olhares intra-diegéticos no seio do enquadramento, plano ou cena. E a experiência do espectador é sempre imersiva, mesmo que o filme mostre brechtianamente o dispositivo cinematográfico, na convicção de que, fazendo-o, se “distancia” desse espectador. A esta situação de sobreposição simultânea das percepções chamou Merleau-Ponty quiasma: “É preciso que aquele que vê não seja ele próprio estrangeiro ao mundo que vê”. Mas isso não significa que, se o filme não tivesse sido feito, veríamos o que ele vê na realidade do mundo onde vivemos imersos: o filme torna visível o que nos era invisível na realidade desse mundo, de um modo que implica a reversibilidade do tornado visível e do vidente, nos termos gregos formulados por Goethe: “ce qui est au-dedans est aussi au-dehors” (o que está dentro também está fora), citado por Merleau-Ponty (1966: 106). Também Kant (o da Crítica da faculdade de julgar, § 49) é por ele lateralmente invocado a este respeito:

“Kant diz com profundidade que, no conhecimento, a imaginação trabalha em proveito do entendimento, enquanto na arte o entendimento trabalha em proveito da imaginação” (1945).

É a seguinte a passagem de Kant invocada por Merleau-Ponty, passagem que de algum modo se distancia da “revelação” grega e que abre um par de páginas sobre o que seja o génio, estendendo-se até ao fim do § 50:

“As faculdades da alma (...) cuja união, numa certa relação, constitui o génio, são a imaginação e o entendimento. [Mas] enquanto no uso da imaginação com vista ao conhecimento, a imaginação se submete ao constrangimento do entendimento (...), numa perspectiva estética ela é livre, a fim de fornecer (...) uma matéria rica e não elaborada para o entendimento (...)”.

Ora, a situação de quiasma perceptivo identificada por Merleau-Ponty suscita aquilo a que podemos chamar a “experiência interior” do espectador, que merece, sem prejuízo do que a psicologia dela diz, ser entendida, extremando a sua definição, no sentido batailliano (Bataille, 1981: 15), tendo embora em conta que este último reflectiu num território eminentemente paradoxal, desejando uma mística sem mística, uma crença sem crença, uma transcendência sem transcendência:

“Entendo por experiência interior o que o hábito chama experiência mística: os estados de êxtase, de maravilhamento, de emoção meditada. Mas penso menos na experiência confessional, sua referência até hoje, do que numa experiência nua, livre de amarras ou de laços de origem seja a que confissão fôr. É por isso que não gosto da palavra mística”.

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É preciso situar e contextualizar a reflexão de Merleau-Ponty (contemporânea da de Bazin) para entendermos a sua dimensão e inscrição epocal. Escrevendo no fim da segunda guerra mundial, próximo das ideias estéticas de Malraux, da fenomenologia, da psicologia da Forma e de Sartre como porta-voz da nova filosofia existencial, diz ele, reformulando por sua vez a estabilidade da dicotomia sujeito-objecto, e propondo em vez dela a “inerência” de um e outro:

“Esta psicologia e as filosofias contemporâneas têm em comum o carácter de nos apresentarem, não, como as filosofias clássicas, o espírito e o mundo, cada consciência e os outros, mas a consciência lançada no mundo, submetida ao olhar dos outros e aprendendo deles o que ela é. Boa parte da filosofia fenomenológica ou existencial consiste em espantar-se com essa inerência do eu ao mundo e do eu aos outros, em descrever-nos esse paradoxo e essa confusão, em fazer ver a ligação entre o sujeito e o mundo, o sujeito e os outros, em vez de a explicar, como faziam os clássicos, recorrendo ao espírito absoluto”.

Merleau-Ponty sublinha que não compreendemos um filme pelo pensamento — daí a sua referência a Kant — antes acedemos a ele pela percepção que ele nos impõe — percepção, acrescentamos nós, articulada com a vida sensitiva, os afectos, as emoções e os sentimentos. Exigindo-nos um acto de inteligência perceptiva, o filme convida-nos, assim, a partilhar um πάθος (pathos: paixão, excesso, sofrimento) — o seu πάθος. Pouco antes escrevera o mesmo autor sobre o que o cinema pode mostrar, insistindo sobre o seu olhar exterior, sobre a importância das condutas e comportamentos das dramatis personæ (o que evoca irresistivelmente a prevalência das acções no Aristóteles da Poética) e rejeitando a ideia de que o sentido dos filmes é acessível por via de operações do pensamento racional:

“...É pela percepção que podemos compreender a significação do cinema: um filme não se pensa, é percepcionado. É por isso que a expressão do homem pode ser, no cinema, tão interpeladora: o cinema não nos dá, como o romance fez durante tanto tempo, o pensamento dos homens, dá-nos a sua conduta ou comportamento. (...) Sentiremos muito melhor a [sua] vertigem se a virmos do exterior (...). Para o cinema como para a psicologia moderna, a vertigem, o prazer, a dor, o amor, o ódio, são condutas.”

Visível, invisível: είδος, ἰδέα, εἰκών, εἴδωλον A questão do visível e do invisível, que tanto interessa o cinema por via do que ele pode ver e dar a ver, remonta à Grécia clássica e atravessa toda a filosofia ocidental, reportando à dualidade sensível-inteligível, sucessivamente traduzida até à dicotomia kantiana do mundo fenomenal e do mundo numenal, que ao mesmo tempo remete, mais genericamente, para a antiga dualidade corpo-mente ou corpo-alma. O transcendental contemporâneo — de que o cinema é cúmplice — abandona esta dualidade e significa que a antiga metafísica e a antiga transcendência se rebateram sobre o mundo corpóreo e ôntico, o dos entes, nos quais é igualmente necessário ver algo que não tem existência material, o ser. Quando, na sua reflexão sobre a técnica (1954), Heidegger evoca a teoria das formas de Platão, recorda os termos εἶδος (eidos, figura, forma sensível de algo) e ἰδέα (ídea, gémeo do primeiro e quase seu sinónimo em Platão, mas também traduzível por ideia) para designar o que está entre o mundo sensível, a que acedemos em primeiro lugar pelo olhar, e o mundo essencial, a que só acedemos pelo saber, pelo conhecimento. No entanto, o deslizamento semântico entre os dois termos é notório na interpretação do filósofo alemão. Diz ele (Heidegger, 2007: 385):

“Nós, contemporâneos, deixámos de ser capazes de entender o que significava para Platão arriscar a palavra είδος para designar o que impera em tudo e em cada coisa. Se

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είδος significa, na linguagem quotidiana, o aspecto que uma coisa visível oferece aos nossos olhos sensíveis, Platão, no entanto, ousa designar por essa palavra algo completamente incomum, o que exactamente nunca será possível captar com os olhos sensíveis. E ainda não concluímos sobre o que há de incomum nesta atitude, pois ἰδέα não designa apenas o aspecto não sensível do que é sensivelmente visível: ‘aspecto’, ἰδέα designa e é também o que faz a essência do que é possível ouvir, tocar e sentir, daquilo que de algum modo é acessível”.

Diz por seu turno Fernando Belo (1992: 8) escrevendo sobre a relevância de Heidegger nesta mesma questão e sublinhando a importância do ver (com os olhos sensíveis ou com os olhos da alma):

“O inteligível é concebido na matriz do olhar sensível e da luz, é o que ‘vê-com-os-olhos-da-alma’ o eidos das coisas ou entes, vivos ou não. Platão conceberá a Ideia eterna de que o eidos (forma, aspecto) de cada coisa é cópia, Aristóteles definirá a ousia, substância e essência, idêntica nos entes da mesma espécie”.

O mundo metafísico grego era um mundo que dependia da bipolaridade essência-aparência, e de onde estava ausente a ideia de representação (que é posterior, e que herdámos do latim repræsentatio). Para os gregos, as imagens do mundo eram, assim, o próprio mundo: o εἰκών (eikon, ícone, imagem) dava aparência a uma essência, ou ideia, invisível. Ele era imagem, figuração, forma, o que pode ser visto, o invisível tornado visível, imagem do invisível. Muito mais tarde, mas herdando desta mesma concepção, o Cristo ainda é o εἰκών de Deus, feito à sua “imagem e semelhança”, οµοιωσις θεω, (homoiousis Theo), sendo a οµοιωσις — semelhança — entendida como processo: é o devir semelhante ou o tornado semelhante. Neste sentido, que os cristãos herdaram directamente do platonismo, o εἰκών é a forma, a manifestação ou a figuração do que, sem ele, não pode ser visto. O εἰκών dava forma, não só ao invisível (o mundo das ideias) mas também ao indizível (Deus não tem nome, é inomeável). Na sua versão mais antiga, o εἰκών foi sombra, reflexo, antes de ser duplo fiel, cópia ou reprodução de algo (a sua formulação como cópia surge no livro X da República de Platão). Já herejes entre os primeiros cristãos, e recuperando para si aquele conceito mais arcaico, os gnósticos consideravam o Cristo, não como um Deus em carne e osso, mas sim como um fantasma “que não deixava pegadas quando andava” — aquilo a que Bazin teria chamado uma “alucinação verdadeira”. Na República, a objectivação do εἰκών como artefacto — cópia e simulacro, já consideraremos a diferença entre os dois — produzido por artesãos ou artistas, retirou-lhe o seu sentido inicial, mais alucinatório e desassossegador, que se referia a uma maior incerteza ou insegurança existencial. Depois de Platão, a cultura ocidental não mais cessou de colar a imagem ao real, primeiro no esforço de a fazer representar o “invisível verdadeiro”, depois para a considerar um analogon de algo existente e concreto e evacuar dela a referência ao invisível — esforço em grande parte inglório, dado que o ser é invisível e que dificilmente prescindimos de ter contacto com ele por via das formas. Em termos modernos, o sentido original de εἰκών é melhor dado pelo termo simulacro, embora este corresponda mais exactamente ao εἴδωλον, (eidolon, ídolo) de Epicuro e de Demócrito. As εἰδη (formas, na sua tradução latina) platónicas não são os εἰδώλα (simulacros) de Epicuro ou de Demócrito: os εἰδώλα, que também podemos designar por ideias-imagens, são representações que os objectos enviam aos sentidos e causam a percepção (note-se como a indexicalidade das imagens foto-cinematográficas reiteram, glosando-a tecnicamente, esta acepção dos εἰδώλα); os εἰδώλα de Demócrito e de Epicuro são, assim, percepções e sensações passivas,

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enquanto as εἰδη platónicas são actos do espírito que incluem a capacidade de dar forma e de conceptualizar. No vocabulário herdado do platonismo, porém, o εἴδωλον remete em primeiro lugar para uma forma semelhante a... mas sem consistência ontológica. A querela entre εἰκών e εἴδωλον é, no vocabulário herdado do platonismo, a matriz conceptual de todas as políticas da imagem de que somos herdeiros e exprime aquilo a que tantas vezes chamámos a crise da imagem.

Vale a pena observar a diferença entre εἴδωλον e εἰκών com algum detalhe: o εἴδωλον é o que é visto como se fosse a própria coisa embora desta não seja senão um duplo ou um simulacro ilusório — sombras de mortos no Hadès (Odisseia XI, 476), sósia de Helena criada por Hera (Eurípides, Helena, 33), efígie ou retrato que, num funeral, oferecem o ausente ao nosso olhar, ou ainda o que pode ver-se num espelho sem no entanto “lá estar” (Le Robert: 2003): produz ilusão, ao contrário do εἶδος/ἰδέα de Platão (Crátilo, 89b 3), forma “verdadeira”. Por produzir ilusão, o εἴδωλον adquiriu cedo a conotação pejorativa de figuração inconsistente que se encontra nos Septantes (II Reis, 17, 12) e na acusação de “idólatras” feita pelos iconoclastas contra os “adoradores de imagens” (Le Robert, ibid.). O εἰκών, também por oposição ao εἴδωλον, é a efígie ou o retrato que reproduzem fielmente o seu modelo (Platão, Sofista, 235d-e): é o vero-símil, valor positivo da µίµησις (mimesis, imitação por semelhança), enquanto o εἴδωλον distorce o modelo ou o falsifica, impondo a sua presença intra-mundana: o εἴδωλον implica, assim, a declaração de que “o não-ser é”, e exerce, por excelência, a função de instaurador de um real falso. Logo depois de Platão, o verosímil ganha o poder de ser “mais verdadeiro que o verdadeiro” (Aristóteles, Poética, 9, 1451a 36.38). De facto, o que está aqui em causa é uma inquietação central, a inquietação grega perante o perigo da autonomia da vida das formas e dos seus efeitos — a autonomia das imagens que tendem a substituir o real, ocupando o seu lugar. Inquietação ou desassossego que regressam hoje, num mundo progressivamente mais conquistado pelo virtual, onde a experiência de contacto com o mundo e as coisas é cada vez mais inteiramente mediada por imagens (as da fotografia, do cinema e da televisão, por exemplo). Para além dessa mediação que é sustentada pela indexicalidade dessas mesmas imagens, porém, muitas construções imagéticas “hiper-realistas” contemporâneas (parte das fabricadas em computador, por exemplo) mantêm, como na pintura, a iconicidade sem indicialidade, visto que o objecto “por detrás” delas já é apenas um algoritmo ou um programa informático — como notava Manovitch. Assim regressam o temor e o tremor originais, feitos de incerteza ontológica, sobre o que seja “realmente” o mundo das imagens na sua relação com o invisível, com o que não é atingível pelos sentidos. O que sobretudo se teme, como os gregos temiam, é que o mundo das imagens seja instaurador de real (Cruz, 2000) ou de uma fantasmagoria tão poderosa como ele, e que produza os seus efeitos autónomos, afirmando-se como força legítima e imparável independentemente do que a funda, substituindo a antiga φύσις, a sua autopoiese e a sua desocultação verdadeira. O crescendo da virtualização do mundo contemporâneo reaproxima-nos da primitiva desconfiança grega face às imagens e à sua aparente consistência, e reactualiza a clivagem clássica entre o εἰκών e o εἴδωλον, que o cristianismo viria a tornar em trave mestra da sua política da imagem. Um tal temor é da mesma natureza do que o sentido perante a hipótese de uma cada vez maior autonomia da vida das máquinas, que, artefactos humanos como as imagens, acabariam por nos substituir e por mandar em nós, como no 2001 de Stanley Kubrick.

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Para os gregos, que viviam num mundo frágil de imagens que davam “aspecto”, aparência e forma ao invisível, e que sempre procuravam o invisível nas imagens, essas imagens desvelavam ou desocultavam o real verdadeiro, e por isso estavam em íntima relação com a ἀλήθεια (alêtheia), a “verdade” do mundo que revelavam, e que envolvia o processo de dar forma e visibilizar. Esse trabalho de desocultação materializava-se no εἰκών — como tanto insistiram os iconófilos de Bizâncio e a diplomacia teológica de Roma. Ainda hoje, quando observamos uma imagem do ponto de vista estético, procuramos nela o invisível, o ser para que ela remete — como sabemos da nossa experiência de contempladores de pintura, de fotografia ou de imagens em movimento, porque também no filme procuramos o invisível para que ele remete. Esse ser invisível pode ser representado pela aura benjaminiana, que ora está moribunda, ora já morreu, ora ressuscita e quer regressar ao nosso habitus. O medo das falsas imagens resulta, assim, da clivagem entre εἰκών e εἴδωλον (na acepção de simulacro, ídolo, duplo, aparição, fantasma, espectro), como se este viesse replicar o trabalho de dar forma a..., mas operando uma desacreditação desse trabalho. Esta acepção do εἴδωλον é crucial para entendermos o lastro da oposição entre os dois termos. Se o εἰκών estava ligado à ἀλήθεια, à desocultação verdadeira, o εἴδωλον carreava, não a desocultação desse verdadeiro ser das coisas, mas de outras ideias a que dava igualmente forma, embora podendo, essas ideias, ser falsas ou inventadas. É esta leitura da clivagem entre εἰκών e εἴδωλον que será totalmente recuperada pelos primeiros séculos do cristianismo (o judaísmo manteve-se sobretudo iconoclasta), resolvendo-se depois do cisma de Bizâncio o “conflito” entre o primeiro e o segundo: o εἰκών manter-se-á como o lado necessário e desejável da figuração; o εἴδωλον será interditado por reproduzir a antiga idolatria pagã, correspondente a uma idealidade “má” ou “falsa”. O ícone cristão salvaguarda, na figura, a “boa transcendência, infigurável antes da incarnação divina”; o ídolo pagão dá presença intolerável à “transcendência falsa e mal fundada”. O interdito “Não criarás ídolos” exprime o conflito entre as duas figurações. A guerra, como se sabe, foi muito longa e mortífera entre iconófilos e iconoclastas, desde as batalhas de Bizâncio e do cisma irreversível entre a Igreja do Oriente e a de Roma, até às fogueiras acendidas para queimar idólatras — um tema que visitámos com mais detalhe em Facialidades. Este longo historial, o do risco que o εἰκών sempre corre de se tornar εἴδωλον para quem o cria e para o seu spectator, torna possível pensar a mediação grega das imagens entre o homem e o mundo em função da idolatria, entendida como substituição do mundo pelas imagens criadas pelo homem (Flusser, 1983 b):

“As imagens são mediações entre o homem e o mundo. O homem ek-siste [Heidegger], o que significa que não tem acesso imediato ao mundo. As imagens tornam o mundo acessível e imaginável pelo homem. Ao fazerem-no, interpõem-se entre o homem e o mundo. Deviam ser mapas mas tornam-se ecrãs. Em vez de apresentarem o mundo ao homem representam-no, põem-se a si mesmas no lugar do mundo, de tal modo que o homem passa a viver em função das imagens que produziu. Deixa de as decifrar, antes as projecta para o mundo ‘exterior’, e assim o mundo passa a ser como as imagens — feito de cenas e situações. A esta inversão da função das imagens podemos chamar idolatria, e hoje bem sabemos como o mecanismo funciona, porque as imagens técnicas omnipresentes [fotografia, cinema, televisão] passaram a reestruturar a ‘realidade’ e a torná-la num cenário imagético. Isto envolve um tipo de olvido particular: o homem esquece-se de que produz imagens para encontrar o seu caminho para o mundo, e passa a procurar o seu caminho nas próprias imagens. Já não as decifra, vive em função delas: a imaginação torna-se alucinação”.

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Dito de outro modo: as imagens substituem vicarialmente o mundo, o representante ganha importância contra o representado e impõe a este último a sua hegemonia, contribuindo decisivamente para a construção social da realidade, baseada no apagamento da distância que separava εἰκών e εἴδωλον. A diferença entre εἰκών e εἴδωλον também é, deste modo, entendível à luz do tipo de alucinação que eles provocam: o primeiro é uma “alucinação verdadeira”, o segundo uma “alucinação falsa”. Observemos então deste ponto de vista a questão de saber que coisa é o filme: o filme, enquanto fenómeno, phainomenon, reporta à phantasia, à imaginação — e a imaginação é o processo de “trazer-ao-aparecer” o real (Escoubas, 1986: 176), de propiciar o desvelamento do real. O filme, onde εἰκών e εἴδωλον convivem desde sempre dada a sua ficcionalidade congénita, é precisamente, devido à iconicidade e a indicialidade das suas imagens (tidas por analogons dos objectos filmados), instaurador de real, propondo-nos figuras que ora são desvelações e desocultações do “verdadeiro” mundo, ora invenções mal-fundadas de mundos mal-fundados. É por isso que a nossa relação com o filme é inevitavelmente herdeira da antiga desconfiança e mal-estar gregos diante das imagens, e do estranhamento diante dos poderes destas — que conhecemos, quer do mundo actual, quer da longa duração. Este mal-estar e estranhamento sempre re-actualizados substituiram a antiga iconoclastia e as fogueiras, mas ainda leva alguns a considerar que os ecrãs do cinema e das cinemáticas contemporâneas são “demoníacos”. Ao mesmo tempo, porém, e como diz Lanzmann (2000:15), realizador de Shoah, em sintonia com a clássica emoção dos gregos diante das imagens e seus poderes, e apesar da sua recusa obstinada do uso de imagens de arquivo para evocar os campos de concentração e os de extermínio [aqui citado por Sylvie Rollet (2011: 191)]: “O que não podemos ver, é preciso mostrá-lo”, e assim voltamos ao είδος e ao εἰκών platónicos. Comenta Rollet:

“A fórmula pressupõe, pelo menos, que a ‘imagem’ seja distinta do visível, e que, sendo-o, não possa ser produzida senão por um gesto de mostração. Ora, a produção dessa imagem pensada como ‘desvelamento da verdade’ requer a ‘arte da narrativa’ (Lanzmann, 2007:19). Ou seja, a revelação do acontecimento em toda a sua verdade não ocorre senão no termo de um processo que associa duas temporalidades distintas: o tempo da tomada [da imagem] — onde a imagem de súbito aparecida rasga o véu do visível — e o tempo da meditação, onde, de aparição em aparição, a verdade ganha corpo”.

O pedido feito por Deleuze ao cinema contemporâneo — o de que participe na reconstituição da nossa confiança no mundo real depois de dele tanto se ter afastado — é, para nós, indissociável da reconsideração do temor e tremor grego diante das imagens, do imperioso “regresso às coisas” proposto por Husserl e ainda do regresso à φύσις (geralmente, mas redutoramente, traduzida por natureza), ao “mundo e à terra” de Heidegger, coincidindo com a releitura, por um amigo (Belo, loc. cit.: 54), com quem estamos em empatia sobre estas matérias vai para meio século, do filósofo que substituiu Husserl em Friburgo, e onde se alerta para o risco da perda da dimensão do sagrado (no sentido de Bataille, mas a associação é minha), que sempre deu às comunidades humanas a dimensão da dignidade e da altivez (Bataille diria soberania mas, de novo, a associação é minha):

“O que, porventura, há de mais admirável na lição de pensamento em Heidegger, é a confiança que ele encontrou nesse primeiro pensamento grego da Terra como desvelamento abrigante, confiança que, não tendo nada a ver com optimismos que a

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conjuntura torna hoje insensatos, nos previne que o destino que foi aberto há vinte e alguns séculos contém ainda possibilidades abertas, em que as nossas decisões se farão. Ele lê a técnica como a última possibilidade da metafísica, o seu ‘acabamento’, já que ela desdobrou tudo o que havia a desdobrar no seu campo de causalidade. A única possibilidade ainda em aberto é a da habitação poética da Terra, mas abre-se, por assim dizer, num abismo de catástrofe, de crise”.

Relevante para o que nos ocupa aqui é, de facto, o que Heidegger (1968: 215) diz sobre a cegueira ontológica, aquela que nos impede de ver o ser no mundo, porque aquilo que está sempre-e-já disponível para qualquer olhar é precisamente o que deixámos de ser capazes de reconhecer:

“Do mesmo modo que existem cegos da cor, também há cegos da φύσις, (...) que não são senão um género dos cegos do ser (...) e que são, não só mais numerosos que os cegos da cor, mas também mais poderosos e obstinados, até porque estão mais escondidos e geralmente não são reconhecidos como tais. Por isso os cegos do ser acabam por passar por únicos videntes autênticos”.

Interpretando livremente Deleuze, e esboçando uma síntese de resposta à questão de saber que coisa é o filme: o filme, artefacto da τέχνη (teknê: arte, técnica), ajudaria os cegos ontológicos a voltar a ver o ser da φύσις, do mundo, como antes o fizeram as artes, tornadas próteses oftálmicas e oferecendo outros olhos à mente (oferecendo o “olhar-da-alma” ao olhar sensível). Duplos e estranhamentos O cinema e os seus filmes propõem ao espectador, através da encenação das suas dramatis personæ (ou de personagens “reais” no documentário), um jogo de identificação-projecção herdeiro do “estágio do espelho” de Lacan (que funda, exactamente, o nascimento do espectador), da projecção narcísica, do desejo mimético (Girard, 1961, 1963) e dos mecanismos básicos da catarse aristotélica. Mas, para além da identificação do espectador com determinada personagem — a figura mais “popular” deste mecanismo — já em 1956 se propunha (Morin, 1956: 110) que as projeccções-identificações são, no cinema, polimorfas e multímodas, levando o espectador a percepcionar tanto o semelhante como o estranho como seus duplos, e estendendo-se este mecanismo aos espaços, às situações e à acção do filme. A projecção-identificação seria, assim, muito mais diversa e contraditória do que a resultante da afinidade electiva entre o espectador e uma determinada personagem. De facto, o fenómeno da identificação-projecção do espectador com o que o que o filme mostra, tem sido apreciado (Aumont et al., loc. cit.: 187-202) como mais volátil do que a simples identificação maciça com uma determinada personagem, e sobretudo em três aspectos mais relevantes:

Em primeiro lugar, com base no célebre exemplo de Hitchcock: uma personagem entra no quarto de outra e vasculha as suas gavetas, enquanto esta outra começa a subir as escadas em direcção ao quarto; mesmo que a primeira seja um vilão, o espectador tenderá a projectar-se na sua situação, desejando-lhe que se despache, para não ser surpreendido pela chegada iminente da segunda. Ou seja, o espectador tende a identificar-se difusamente com as diversas personagens e as situações que elas vivem, mesmo de modo contraditório, “vestindo as suas diversas peles” e projectando-se em cada uma das situações.

Em segundo lugar, com base na imediata captação da atenção do espectador por um filme que se começa a ver a meio (um fenómeno que se banalisou com a televisão): embora desconheça o que precede a cena em que mergulhou, o espectador percebe

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quase automaticamente o que está a ver, identificando espaços e décors, a atmosfera da cena e a acção das personagens (o que dizem ou fazem), porque não é estranho ao que está a ver; como disse Lacan: “se ocupamos de imediato o nosso lugar no jogo das diversas intersubjectividades, é porque nos sentimos em casa seja onde for”. Em terceiro lugar, com base na identificação que o espectador sente com a multiplicidade dos pontos de vista oferecidos pelo filme, por exemplo numa découpage clássica, onde cada plano representa um novo p.d.v., facto que recorda a semelhança proposta por Münsterberg entre o filme e o processo mental do espectador. Estes três exemplos sugerem com clareza a pluralidade das identificações que entram em jogo no visionamento do filme, mesmo se no conjunto dessas identificações existe alguma hierarquia (elas coexistem em diferentes graus de relevância), o que permite falar de primeira, segunda ou terceira identificação. Uma outra abordagem dos mecanismos polimorfos de projecção-identificação do espectador de cinema com as componentes espaciais e o role-playing das dramatis personæ em determinada situação é, por exemplo, a de Nick Browne (2009: 125-140) na sua análise da cena “uma refeição na estação de Dry Fork, a caminho de Lordsburg”, em Stagecoach de John Ford — onde o espectador é suposto entrar empaticamente em contacto com as diferentes personagens (o grupo reunido para a viagem) em função do papel que cada uma supõe desempenhar e representar face a cada uma das outras. As dramatis personæ que representam para nós o “homem visto de fora” de Merleau-Ponty, e cujas condutas nos interpelam, são nossos duplos simbólicos (não duplicam o real: são nossos duplos ficcionais) e fazem parte da nova realidade que o filme nos propõe. A figura do duplo, que atravessa desde que há memória toda a criação ficcional — religiosa, poética, literária, teatral, operática, pictórica, fotográfica — foi, como lembrou Freud (1919), trabalhada a fundo por Otto Rank (1914) “na sua relação com a imagem do espelho, com a sombra, com os génios tutelares, com as doutrinas relativas à alma e com o temor da morte”. O cinema e os seus filmes mostraram desde muito cedo uma atracção particular pelo duplo, e uma forte propensão para o abordar, quer figurando-o de modo banal (fundando-o na sua semelhança connosco), quer em forma de figurações extremas (literalmente peripatéticas: figuradas de modo exagerado), mas podendo ambos produzir, numa forma como na outra, a “inquietante estranheza” sobre a qual também Freud escreveu. O duplo “peripatético” está presente nos filmes desde antes de Nosferatu e Frankenstein até às réplicas de humanos em Solaris de Tarkovski e em Blade Runner de Ridley Scott, passando por uma extensa galeria de “monstros” produzidos pela ficção científica e pelo cinema de terror. Mas não é a perspectiva peripatética da ficção científica ou do cinema de terror que nos interessa aqui, porque ela hipostasia, com vista ao espectáculo, figuras e comportamentos do mundo real, dando de umas e outros uma imagem redutora e excessivamente estereotipal. Pelo contrário, é na medida em que se tornam íntimos da nossa experiência, partilhando os nossos dramas e valores, e portanto na medida em que se tornam nossos semelhantes — outros incluídos na diversidade das alteridades humanas com que interagimos — que os tocantes ou assustadores replicants de Solaris ou de Blade Runner nos interpelam, ganhando para nós relevo e significação. O duplo ficcional é, nesta medida, e antes de mais, a figura com quem mantemos relações de simpatia (do grego συµπάθεια, significando sofrer em conjunto e com compaixão) e de empatia (do grego ἐµπάθεια, “paixão”, mas também resposta adequada à situação de outro por partilha efectiva do seu sofrimento), porque encarna imagens especulares mais ou

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menos deformadas de nós próprios, e porque “vive” num habitus que também re-conhecemos. Essa simpatia e empatia são frequentemente invadidas, a partir de dentro, por um estranhamento que Freud designou por Unheimliche (inquietante estranheza), e que resulta da escorregadia oposição entre dois termos, a Heimlichkeit (intimidade partilhada, familiaridade, empatia, sentimento de pertencer ao mesmo grupo ou de “estar em casa”, “à vontade”, geralmente associada à amável sociabilidade e ao deleite) e ao que é experienciado como Unheimliche (tudo o que devia manter-se secreto e escondido mas que se manifesta ou reaparece, na acepção de Schelling, ou a transformação do conhecido e do íntimo em perturbador e inquietante). Por isso, noutro lugar (Mendes, 2009: 15-17) chamei ao que as imagens do cinema nos oferecem dádivas perturbadoras. Para Freud, a Unheimliche não é, realmente, nada de novo ou vindo de fora, mas antes algo desde sempre familiar e que o recalcamento tornou outro. Falamos de escorregamento ou de fluidez entre os dois termos porque o que há entre a Heimlichkeit e o que passa a ser Unheimliche é uma passagem corrente, um deslizamento da primeira para o segundo, como uma revelação, mas que pode acontecer como acontece o sossegado fluir da água de um riacho.

Ora, a relação entre Heimlichkeit e Unheimliche interessa particularmente ao cinema e aos seus filmes, depois de ter interessado todas as modalidades da ficção. Como escreveu Freud no seu artigo de 1919 (p. 31-32), a ficção intensifica, dispensada que está da prova do real, a inquietante estranheza, e leva o seu receptor a sentir, segundo o preceito do Aristóteles da Poética, que nos apraz ver figurado pela arte o que nos “repugnaria” na vida real:

“O que é estranhamente inquietante na ficção, na imaginação, na poesia, merece, de facto, um exame à parte. A inquietante estranheza na ficção é muito mais plena e rica do que na vida real; ela engloba completamente esta última e inclui outra coisa que não encontramos na vida real. O contraste entre o que é recalcado e o que é ‘ultrapassado’ não pode ser transposto para a inquietante estranheza da ficção sem um esclarecimento — porque o domínio da imaginação implica, para poder ser valorizado, que os seus conteúdos sejam dispensados da prova da realidade. O resultado, paradoxal, é que, na ficção, muitas coisas não são estranhamente inquietantes, mas sê-lo-iam na vida real; e também que, na ficção, há modos de provocar efeitos de inquietante estranheza que não existem na vida real”.

Freud exemplifica este fenómeno com as almas de Dante e os espectros de Shakespeare (e assim regressamos aos duplos peripatéticos), que nunca chegam a ser estranhos nem inquietantes nas nossas mentes ou em seus palcos, porque o leitor ou espectador adapta o seu juízo às condições da realidade ficcional e, nessa nova realidade, aceita relacionar-se com os espíritos e os fantasmas, pela mão de Coleridge e da sua willing suspension of desbelief (Mendes, 20o1 b: 160-161), como se eles tivessem uma vida real idêntica à nossa realidade material. Algo deste fenómeno invade, de resto, o degrau inconsistente onde nos encontramos em situação de quiasma com entidades ficcionais a quem não exigimos o predicado da existência, embora as usemos na interpretação-justificação do mundo, como utensílios da nossa retórica e dos nossos jogos de linguagem: estão nessa situação Deus e os seus anjos, o Centauro e Pégaso, Édipo e Jocasta, D. Quixote e Antígona — figuras que criámos para que, como diria Didi-Huberman, mandem em nós; e sobre cada uma das quais decidimos, na nossa singularidade, quem é εἰκών e quem é εἴδωλον — quem desvela o real ou instaura falsos mundos. Descobre-se sem surpesa, nas reflexões sobre a Unheimliche, um Freud herdeiro de Kant (loc. cit., § 49), quando este diz:

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“O poeta ousa dar uma forma sensível [versinnlichen] às ideias da razão que são os seres invisíveis, o reino dos santos, o inferno, a eternidade, a criação, etc. , ou ainda a coisas que conhecemos da verdade de exemplos da experiência como a morte, o desejo e todos os vícios, bem como o amor, a glória, etc., mas elevando-os acima dos limites da experiência, graças a uma imaginação que se esforça por rivalizar com a razão na realização de um máximo, dando-lhe forma sensível numa perfeição de que não há exemplo na natureza”.

Mas Freud tem consciência de que a inquietante estranheza não se limita às almas de Dante e aos fantasmas de Shakespeare nem requer a presença do sobrenatural, e está porventura, como nós, mais interessado no tratamento ficcional desse efeito quando o autor se limita a trabalhar com base na “realidade corrente”:

“...O caso é outro quando o autor parece manter-se no terreno da realidade corrente. Nesse caso ele assume todas as condições requeridas para fazer surgir na vida real o sentimento da inquietante estranheza (...). Mas, neste caso, o autor pode reforçar, multiplicando-o, o efeito (...), para além do grau possível da vida real, fazendo surgir incidentes que, na realidade, não aconteceriam, ou que nela seriam muito raros”.

É curioso que Freud identifique como expedientes autorais correntes o recurso à limitada probabilidade ou à implausibilidade das situações criadas, incorrendo o autor, nesse caso, em práticas ficcionais que já Platão, na República, censurava aos poetas, por lhe parecer que cultivavam o inverosímil e o eticamente reprovável com o único objectivo de tornar a vida mais intrigada e excitante — uma prática a que Deleuze virá mais tarde a opor-se também, lamentando que tanto cinema tenha contribuído, com as suas histórias peripatéticas e espectaculares, para o descrédito contemporâneo no mundo real. Noutro registo, Merleau-Ponty (loc. cit.) sugere sobre o cinema do seu tempo, não a respeito da inquietante estranheza de Freud, mas sim da nova realidade que o filme constitui, algo que é igualmente entendível à luz das liberdades do autor ficcional e do desafio de decifração em que o espectador se vê envolvido e que aceita:

“Um filme significa (...) como uma coisa significa: um e outra não falam a um entendimento separado, dirigem-se ao nosso poder de decifrar tacitamente o mundo ou os homens e de com eles coexistirmos. É verdade que, na vida corrente, perdemos de vista o valor estético da mais mínima coisa percepcionada. Também é verdade que, no real, nunca a forma percepcionada é perfeita — há sempre algo de desfocado e de tremido, e como que um excesso de matéria. O drama cinematográfico possui, para o dizermos assim, um grão mais apertado do que os dramas da vida real, passa-se num mundo mais exacto do que o mundo real”.

A aventura deleuziana Que coisa é o filme? Conduzamos a nossa reflexão sobre esta pergunta para um domínio tecnicamente mais preciso, em torno de alguns instrumentos do cinema que marcaram a sua história: no segundo capítulo do seu L’image-mouvement, e depois de ter estabelecido a ligação matricial entre o movimento e a duração bergsoniana e o movimento e a duração nos filmes, Deleuze refere-se ao quadro e ao plano, ao enquadramento e à découpage como conceitos operativos básicos da construção cinematográfica, antes de se ocupar de outro, a montagem. Uma micro-colagem de citações permite-nos seguir o seu pensamento nesta matéria, tendo os leitores em consideração que, em português, a palavra “quadro” (cadre) remete sobretudo para a pintura, e a palavra “enquadramento” (cadrage), essa sim, é usada no léxico técnico da fotografia e do cinema, designando o acto de “enquadrar”, literalmente “pôr no quadro”. Deleuze usa ali os dois termos, porém, como quase-sinónimos, referindo-os ambos ao acto de organizar o visível num campo visual fechado.

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“Chama-se quadro à determinação de um sistema fechado, relativamente fechado, que inclui tudo o que está presente na imagem, décors, personagens, acessórios. (...) Os [seus] elementos são, ora dados em grande número, ora em número restrito. O quadro é, assim, inseparável de duas tendências, para a saturação ou para a rarefacção” (p. 23). “O quadro sempre foi geométrico ou físico, consoante constitui o sistema fechado em função de coordenadas escolhidas ou de variáveis seleccionadas”(24). [Por outro lado, pode haver muitos enquadramentos num só:] “Portas, janelas, guichets, lucarnas, vidros de carro, espelhos, são enquadramentos no enquadramento. Os grandes autores têm afinidades particulares com este ou aquele destes quadros segundos, terceiros, etc.”(26). “O quadro depende de um ângulo de enquadramento — o conjunto fechado é ele mesmo um sistema óptico que reenvia para um ponto de vista sobre o conjunto das partes” (27). [Resumindo:] “O enquadramento é a arte de escolher as partes de todas as espécies que entram num conjunto. Este conjunto é fechado, relativamente e artificialmente fechado” (31) [e determina sempre] “um fora-de-campo, ora em forma de um conjunto mais vasto que o prolonga, ora em forma de um todo que o integra”(32).

Muito pertinentemente, Deleuze apoia a sua reflexão sobre o quadro e o enquadramento, na sua articulação com a profundidade de campo, em trabalhos relativos à pintura, especialmente no capítulo «Plans et profondeur» dos Principes fondamentaux de l’histoire de l’art de Heinrich Wölfflin, relacionando-o com o que Bazin escreveu em «Pour en finir avec la profondeur de champ» no nº 1 dos Cahiers du Cinéma, sobre os dois aspectos fundamentais dessa profundidade. Num primeiro tempo, a profundidade é construída, como em Griffith e Feuillade, por diferentes espaços sobreponíveis, valendo cada um deles, isoladamente, por sua conta; mais tarde, como em Renoir e Welles, uma interacção directa estabelece-se entre os diferentes espaços que a profundidade abarca: num exemplo simples, uma mulher sobressalta-se no primeiro plano quando o seu marido entra pela porta do fundo (nota de rodapé p. 43). Note-se ainda, para a reflexão sobre a relação entre campo e fora-de-campo, a relevância de «Décadrages», de Pascal Bonitzer. Quanto à bibliografia que o acompanha na reflexão sobre a relação entre enquadramento e plano cinematográfico, o destaque vai para Qu’est ce qu’un plan?, do mesmo Bonitzer, e para Le cadrage au cinéma: l’oeil à la caméra, de Dominique Villain (então ainda inédito). Em pano de fundo, e entre outros (Jean Mitry, Claude Ollier), o texto Praxis du cinéma, de Noël Burch. Especificamente sobre o plano, durante muito tempo considerado a unidade básica da construção de um filme, diz Deleuze, tornando-o sinónimo da imagem-movimento:

“...O plano é a determinação do movimento que se estabelece no sistema fechado, entre elementos ou partes do conjunto” (32). “O plano é o movimento, considerado no seu duplo aspecto: translação das partes de um conjunto que se estende no espaço, mudança de um todo que se transforma na duração” (33). “O plano é a imagem-movimento. Ao ligar o movimento a um todo que muda, é o corte móvel de uma duração”(36).

Para explicitar pouco depois, comparando a experiência da frontalidade da câmara fixa do cinema primitivo com o nascimento da mobilidade da câmara e a proliferação dos raccords montados:

“Que se passava no tempo da câmara fixa? (...) O enquadramento era definido por um ponto de vista único e frontal. (...) O plano era uma determinação apenas espacial, indicando uma ‘fatia de espaço’ a esta ou aquela distância da câmara, do grande plano ao plano de conjunto” (39). Mais tarde, “com a mobilidade da câmara, o plano tornou-se móvel” e a montagem produzia o raccord dos planos, que podiam continuar a ser sobretudo fixos (40).

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Retemos destas passagens a atenção dedicada por Deleuze a dispositivos, procedimentos e usos cinematográficos que, vindos de literacias técnicas palimpsesticamente acumuladas e da sua apropriação, deram longamente forma ao ofício de realizador e ao seu aparelho instrumental. Mas o que interessa sobretudo Deleuze é o poder das imagens cinematográficas como ícones, enquanto instrumentos do ver: o filme como fenómeno, como corpo ou massa plástica, material visual propiciando uma experiência visual, mais que o que o cinema “como linguagem” — ideia que ele não partilha, separando-se, nesta matéria crucial, de Bazin como da semiótica estruturalista e da “teoria do texto” (Barthes, 1989: 370-374), por considerar que não é possível fundar linguisticamente o cinema e os seus filmes. Filósofo pós-nietzscheano do mundo sem Deus, Deleuze deu ao cinema, entendido como arte visual do tempo, uma “metafísica” liberta do dualismo platónico e recentrada no mundo e nas coisas; quando relê Bazin, evita o seu essencialismo ontológico e moral; quando relê Tarkovski, evita o peso da sua inspiração religiosa, do mesmo modo que, quando relê Epstein, evita os seus pressupostos cientistas. O seu movimento visa o estabelecimento de um plano de imanência que substitua a antiga transcendência, embora ele não se impeça de revisitar esta última como matriz da história da filosofia e da cultura. Apoiando-se primeiro em Bergson para reanalisar o movimento e o tempo, e depois nos signos de Peirce para repensar a definição de imagem, os dois livros de Deleuze representam, na primeira metade dos anos 80, uma síntese que não pode deixar de encarar o cinema, então em vésperas do seu centenário, como um todo à beira da sua consumação e completude final: ao pretender elaborar uma espécie de tabela de Mendeleev de todos os tipos de imagens cinematográficas conhecidas, Deleuze não pode, apesar do seu desejo de abertura e da sua explícita rejeição do sistema fechado, considerar o ainda possível senão como extensão do já dado, sendo que o terminus do já dado é para ele a imagem-tempo (herdeira do que Bazin chamou imagem-duração), entendida como figura final de uma história — pelo menos de uma história conceptual. Para trás ficam a imagem-movimento e a imagem-acção (herdeiras do que Mitry chamara imagem-agida do tempo do mudo). A um passo de gerar o que poderia tornar-se numa cine-filosofia, ou uma filmosofia, muito desejada por boa parte dos seus leitores, Deleuze parece redesenhar o seu projecto, antes propondo o cinema como um novo meio para abordar, como já foi escrito (Ishaghpour, 1989: 838) o ser e o pensamento. Explicando aos seus leitores americanos, no prefácio à edição em inglês do seu L’image-temps (1988), o que quer significar com a sua imagem-tempo, escreve Deleuze:

“...Aquilo a que chamamos estrutura temporal, ou imagem-tempo directa, ultrapassa claramente a puramente empírica sucessão do tempo — passado, presente, futuro. É, por exemplo, a coexistência de distintas durações, ou níveis de duração; um acontecimento simples pode pertencer a diversos níveis: as camadas de passado coexistem numa ordem não-cronológica. Isto passa-se em Welles com a sua poderosa intuição da terra, e também com as personagens de Resnais regressadas da terra dos mortos. (...) Devemos olhar para o cinema de antes da [segunda] guerra, e até para o cinema mudo, para vermos uma muito pura imagem-tempo que estava sempre a emergir, travando e acompanhando a imagem-movimento: uma natureza-morta de Ozu como uma forma de tempo invariante?”

Desde a reflexão de Deleuze sobre o cinema, a renovada atenção dada aos longos mergulhos perceptivos que as suas imagens podem oferecer, na sua relação com o

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tempo e com a duração (aliada, por exemplo, aos travellings, à profundidade de campo e ao plano-sequência), volta a identificá-lo como um dispositivo audiovisual eminentemente bergsoniano e desvaloriza a prevalência das suas performances narrativas clássicas. Se o que o cinema tem de melhor para nos oferecer é a materialização, em “imagens-cristal”, ou em “imagens-e-sons-cristal”, do “tempo” deleuziano — a passagem do espectador a um novo regime de percepção da duração, i.e., a percepção da duração e do tempo dilatados em registos que, como vimos, estão para além do que a percepção humana capta na vida banal — então, e por exemplo, a ideia de clôture ou de closure desloca-se da narratividade para a fruição da experiência imagética presentificada, desnarrativizada e, precisamente, “aberta” no sentido de Eco. Um certo sentido da completude emigra para o interior do filme e dissemina-se pelas diversas unidades que o compõem (plano, plano-sequência, sequência) e pelos movimentos de câmara (travellings, panorâmicas, outros), passando a interessar tanto a cada um deles quanto ao conjunto da obra entendido como “todo que é mais do que a soma das suas partes”.

Do ponto de vista narrativo, o fim dos fins acarreta o fim dos meios e o fim dos princípios, porque o que está em causa não é apenas a redefinição da closure da obra, mas a reorganização da totalidade dos seus conteúdos e formas, a maior autonomia semântica de cada uma das suas partes, componentes e fragmentos.

Como escreve poeticamente Sjoerd van Tuinen (2012: 70), acerca da imagem-tempo e da imagem-cristal de Deleuze:

“A imagem-tempo ‘torna visíveis, e criativas, as relações temporais que não podem reduzir-se ao presente (Deleuze 2006: 290; Deleuze 1989: xii). A sua pedra angular é a ‘imagem-cristal’, que substitui a forma empírica ou orgânica do tempo que passa pela sua forma transcendental ou espiritual, onde uma miríade de temporalidades virtuais coexistem — recordações, sonhos, mundos — fundindo-se com o fluir do presente, em durações heterogéneas que constantemente se alimentam umas às outras. (...) ‘O cinema, ainda mais que a pintura, comunica um relevo do tempo, uma perspectiva do tempo (...)’ (Deleuze 1986: 23-4, 112). Com a imagem-tempo, ele suspende as suas qualidades de representação e ganha o que Deleuze designa, com Nietzsche, ‘os poderes do falso’ (Deleuze 1989: 131). Precisamente quando o próprio mundo se torna uma ilusão, o cinema reinventa os seus poderes ilusórios, tornando visíveis devires que são ‘essencialmente falsificantes’. Nos termos de Daney: ‘A verdade da mentira é de ontem. Os poderes do falso são para hoje’ (Daney 1986: 198)”.

Uma “ontologia”, duas recepções? Que coisa é o filme? No arco que vai de Benjamin a Sontag e a Barthes, têm sido muito glosadas, em torno da ideia de contemplação, as diferenças na recepção da fotografia e do cinema — vale a pena recordar que só nos anos 60 - 70 do séc. XX a fotografia passou a ser pensada e feita com vista à sua exposicionalidade museológica, para ser pendurada em paredes, como Sontag descrevera em 1977 e Michael Fried de novo referiu recentemente (Fried, 2008: 335-337). Vimos que a indicialidade da fotografia e do cinema é a mesma, e que nesta medida podemos falar das imagens foto-cinematográficas como um todo. Significa isto que a sua natureza “ontológica” é idêntica, mas não a sua recepção? O argumento de Benjamin (1936) a favor da contemplação oferecida pela imobilidade da pintura, que forçosamente tem de aplicar-se igualmente à imobilidade da fotografia, e “contra” a mobilidade do cinema, que (apesar de o fascinar) impediria essa contemplação, é um argumento que se baseia num parti-pris sobre a suposta psicologia do espectador. Sem o citar, o Barthes de La chambre claire regressa,

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depois de Sontag e a mais de meio século de distância do argumento benjaminiano, à incomodidade que, como espectador, sente diante das imagens em movimento, que impedem a contemplação. Perceberemos melhor a natureza da questão se a abordarmos em termos flusserianos (Flusser, 1983 a: 7-8). O significado de uma imagem pictórica ou fotográfica está na sua superfície (ela é bidimensional, apesar de poder sugerir a tridimensionalidade) e pode ser apreendido por um simples relance; mas quem quiser “aprofundar” esse significado precisa que o seu olhar vagueie pela imagem, nela fazendo um scanning cujo percurso depende da estrutura da imagem (o que Barthes chamou studium) mas também do impulso íntimo do observador (o que Barthes chamou punctum). Esse scanning é, assim, determinado por um movimento parcialmente aleatório, mas o seu traçado é sobretudo marcado pela repetição e pela circularidade: estimulados pelo desejo de eterno retorno do mesmo, tendemos a re-contemplar e a reconsiderar elementos já vistos, a que dedicamos redobrada atenção e entre os quais estabelecemos novas relações compreensivas. A decifração do significado da imagem requer tempo e, em termos de teoria da comunicação, resulta da intencionalidade do emissor e da intencionalidade do receptor. Nesta operação — onde estão em diálogo mudo duas subjectividades — a imagem perde o seu relevo denotativo (a sua iconicidade e indexicalidade entram em entropia) e ganha relevo conotativo, apelando antes de mais à compreensão do seu significado. Qualquer imagem fixa suficientemente complexa se oferece a este scanning que visa a decifração do seu significado: não vemos de relance Os embaixadores de Hans Holbein (jovem), nem Las Meninas de Velásquez, nem as Tentações de Santo Antão de Bosch — demoramo-nos diante dos quadros. Mas a imagem em movimento é fugidia, furta-se à nossa atenção, já lá não está quando a queremos reconsiderar; daí o incómodo de Benjamin e de Barthes diante dela — incómodo que nasce da “impossibilidade” da contemplação e do recolhimento que o scanning propiciava. É conhecida a necessidade das crianças de rever sucessivamente o mesmo filme para compreenderem a complexidade das suas imagens: os re-visionamentos substituem a lenta e absorta contemplação da imagem fixa, porque a criança precisa de voltar diversas vezes ao já visto para re-ver e entender a diversidade dos elementos imagéticos, que vai percepcionando por fracções ou por camadas. Por esse motivo, qualquer imagem em movimento que ofereça ao seu spectator maior duração, ou maior persistência dos seus elementos constitutivos, é por este abordada à luz da sua experiência perceptiva da imagem fixa. Nesta discussão, a imagem cinematográfica é, precisamente, “salva” por Deleuze e pela sua imagem-tempo, a qual permite regressar, no mínimo, a um sucedâneo da contemplação oferecida pela pintura e pela fotografia, desta vez através da duração do plano ou de um número limitado de movimentos de câmara, e que ele opõe, precisamente, à imagem-movimento ou à imagem-acção (só por cegueira pensaríamos que a escolha das palavras é, nesta matéria, acidental: o movimento e a acção inibiriam a contemplação). Esta salvação deleuziana da imagem cinematográfica, este seu resgate por via da duração do plano ou de certos movimentos de câmara, ou pela escolha de lentes que garantam a maior profundidade de campo, envolve, associada à prevalência da stasis e dos “tempos mortos”, o regresso a algum essencialismo ontológico na definição do cinema: como se só merecesse ser designado como tal aquele que garante a fruição da duração nos termos deleuzianos. Mas também para Tarkovski a duração do plano é a instância decisiva da figuração cinematográfica (Le temps scellé, 138-139). E o argumento de Deleuze é forte, porque ele pretende, como

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vimos, que o cinema seja o instrumento da reconciliação do espectador com a realidade do mundo, depois de ter sido, com a sua propensão mercantil para a inverossimilhança e a implausibilidade, o instrumento do seu menosprezo e da sua méconnaissance. Mais: associada a este essencialismo salvífico, que terá devolvido ao cinema a capacidade de redimir a sua relação com o mundo grego e heideggeriano, alterando a percepção corrente do real (determinada pela “cegueira ontológica”) e fazendo-a mudar de esfera ou de regime, também, por seu turno, a natureza “rizomática” de qualquer projecto narrativo ou perceptivo faz implodir o antigo sentido de fechamento de cada obra, transportando-o para cada um dos planos, sequências ou planos-sequência filmados. A intencionalidade da closure não desaparece, mas sofre um tropos decisivo, dissociando-se da ideia de final de um todo e disseminando-se pela diversidade das suas componentes fragmentárias. Sem prejuízo da importância da chamada de atenção de Deleuze para a experiência perceptiva da duração e do “tempo em estado bruto” que a imagem cinematográfica pode oferecer (e que conhecemos da linhagem Stroheim - Flaherty - Renoir - Welles, como sublinhara Bazin), e que restabelece uma ligação directa com o que era “o espírito do cinema” para um Epstein ou para um Kracauer, não cremos, no entanto, que o preço a pagar pelo reconhecimento do primado da imagem e da sua instituição de uma sui generis percepção do tempo e da duração seja o desinvestimento na narratividade. Já Pasolini soube, no seu Empirismo eretico (1972), impedir-se de cair nesta armadilha simplificadora. O que Pasolini ali escreveu foi que a narratividade cinematográfica tinha sido “esmagada” por uma sua degradação “prosaica” (que hoje lemos como ligada à imagem-movimento e à imagem-acção de Deleuze), e precisava de renascer através de uma narratividade “poemática” predominantemente imagética (que hoje vemos ligada à imagem-tempo e ao cristal-tempo de Deleuze) — o que, nos seus termos, estava já a suceder com o nuovo cinema. Um exemplo simples ajudar-nos-á a reflectir sobre o que aqui fica dito: como escreveram Bordwell e Thompson (1979: 316-322), as qualidades cinematográficas de um plano são a fotografia, o enquadramento e a duração. Ora, sobre a duração, e especificamente sobre a duração dos planos longos com mudanças internas de enquadramento, dizem eles o seguinte, sem perderem de vista a questão da narratividade:

“As mudanças de enquadramento [dentro do plano] dividem o plano longo em sub-unidades significantes. Em As irmãs de Gion (Mizogushi, 1936), um plano longo inicia-se com Omocha e o velho, sentados quase face-a-face. Depois, preparando-se para o seduzir para que ele se torne seu protector, ela ergue-se e vai até ao outro lado da sala, seguida em travelling para trás pela câmara e, num segundo tempo, tenta provocar a sua compaixão. Ele vem consolá-la; a câmara aproxima-se no momento em que ele sucumbe aos avanços dela. Sem montagem, os movimentos da câmara marcaram etapas importantes da acção. Os planos longos são geralmente filmados em plano médio ou de conjunto (...). O espectador tem tempo para percorrer com o olhar um campo mais extenso (...).”

Bazin e os realismos Vejamos qual a herança principal de Bazin de que Deleuze se apropria. Como se perceberá, as preferências estéticas do autor de Qu’est ce que le cinéma radicam, embora ele nunca a ela se refira, na ultrapassagem da dicotomia entre forma e

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conteúdo, ou forma e matéria, estabelecida por Aristóteles e que Heidegger (1958: 230, 234) veio a comentar nos seguintes termos:

“A distinção [aristotélica] entre matéria [ὕλη] e forma [µορφή] é por excelência a avenida onde a filosofia ocidental se move desde há séculos. A distinção entre forma e conteúdo passa por ser o que há de mais óbvio” (230). [Ora,] a µορφή é dar a ver, mais precisamente sustentar-se no que se dá a ver e compôr-se aí; numa palavra: é a composição que se instala no rosto [das coisas], Gestellung in das Aussehen” (234).

A reflexão de Bazin, a que tanto se tem regressado, e que frequentemente é classificada como “indígena”, por resultar da acumulação de observações críticas sucessivamente publicadas (Aumont et al, loc. cit.) e nem sempre inteiramente coerentes umas com as outras, faz figura de paradigma da teoria do cinema que não se concebe senão em simbiose com a história deste e com a análise de filmes e da obra de cineastas, antecipando em meio século a opção de ocupar o lugar intermédio entre a “grande” e a “pequena” teoria, como recentemente se veio a caricaturizar (Bordwell e Carroll, 1996; Rodowick, 2006). Fazendo, em «L’évolution du langage cinématographique» (1985: 63-80), o balanço do cinema mudo, da primeira década do sonoro e das tendências que se afirmaram nos anos 40, Bazin sugere que o som parece não ter provocado uma revolução estética nos filmes, mantendo-se na passagem do mudo para o sonoro a relativa diversidade das práticas de découpage, mais configuradoras do que a emergência da banda sonora. Interessa-lhe mais o reconhecimento de algumas afinidades entre cineastas de 1925, de 1935 e da década 1940-1950 (por exemplo entre Stroheim e Jean Renoir ou Orson Welles, Dreyer e Bresson). Ou seja: mais do que a oposição entre mudo e sonoro, interessa-lhe analisar a persistência de valores que transitaram de um para outro, tendo como telão de fundo as divergências quanto ao modo de conceber e de fazer o cinema e os seus filmes. Os temas geradores da discussão são a découpage, a montagem, a profundidade de campo e a duração dos planos. Bazin pretende distinguir, no período em análise, entre os realizadores que acreditam na imagem e os que acreditam na realidade. Bazin dispensar-se-á de definir o que seja a realidade, provavelmente dando o conceito como adquirido pelo bom-senso e pela sabedoria das nações ou deixando à filosofia a sua discussão, mas explica o que entende por imagem, num parágrafo em que a ideia de representação volta a ser dominante, como se a questão da re-apresentação e da indicialidade, já por ele discutida, regressasse mansamente a um segundo plano, ou autorizasse mesmo o seu re-apagamento, em nome de outra causa maior:

“Por imagem entendo muito genericamente tudo o que pode acrescentar à coisa representada a sua representação no ecrã. Este acrescento é complexo, mas podemos entendê-lo essencialmente à luz de dois grupos de factos: a plástica da imagem e os meios da montagem (a qual não é senão a organização das imagens no tempo). Na plástica incluímos o estilo do décor e da maquilhagem, em certa medida o desempenho dos actores, a que juntam naturalmente a iluminação e enfim o enquadramento, que consumam a composição. Sobre a montagem, saída principalmente, como se sabe, das obras-primas de Griffith, escreveu André Malraux na Psychologie du cinéma que ela constituía o nascimento do filme como arte: é ela que o distingue de facto da simples fotografia animada e cria, por fim, uma linguagem”.

E o que faz a montagem? Fragmentando os planos, ela tanto pode ter como objectivo principal a sua própria invisibilidade, como nos filmes americanos “clássicos”, convicta de que o seu saber e as suas normas estão natural e estritamente ao serviço da

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lógica material ou dramática da cena, como pode tornar-se “paralela” (Griffith), “acelerada” (Gance em A roda) ou “de atracção” (Eisenstein), assente na metáfora ou na associação de ideias. Olhando para a “plástica” da imagem e para a montagem assim descritas, Bazin conclui que, nos últimos anos do cinema mudo, o cinema já dispunha de todo o arsenal de meios que lhe permitiam afirmar-se como um media (termo que ele não usa) consolidado. Nos anos seguintes, os soviéticos extremarão as potencialidades da montagem e os alemães as da plástica da imagem, como se o expressionismo da montagem e da imagem definissem “o essencial da arte cinematográfica”. Mas, acrescentará Bazin mais adiante, a montagem das estátuas dos leões de pedra de Eisenstein, para sugerir que o povo está a erguer-se como o animal, já seria impensável em 1932, e a mistura do cacarejar de galinhas no galinheiro com a conversa entre mulheres, feita por Lang em 1935, já então chocava, porque totalmente heterogénea ao resto do filme. Ora, diz Bazin, desde o mudo que cineastas como Stroheim, Murnau ou Flaherty faziam filmes onde a montagem quase não tinha lugar. São exemplos que evidenciam a existência de uma arte cinematográfica exactamente contrária aos expressionismos da imagem e da montagem. Estes cineastas não procuravam que as suas imagens acrescentassem nada à realidade, mas sim que a revelassem (subitamente, portanto, Bazin afasta-se da sua anterior definição de imagem, acima citada). No episódio da caça à foca em Nanook of the North, de Flaherty, filmado num só plano, a duração da espera é mais importante do que a eficácia sintética de qualquer montagem, e Bazin crê que essa duração é muito mais “emocionante” do que qualquer montagem de atracção. Com Murnau, que também pouca relevância atribui à montagem, é menos o tempo do que o espaço (“a realidade do espaço dramático”) o valor determinante, em filmes como Nosferatu ou Aurora. Diz Bazin, sublinhando o “realismo rigoroso” de Murnau e negando que este faça expressionismo:

“A composição das suas imagens não é, de todo, pictural, nada acrescentando à realidade nem a deformando, antes esforçando-se por mostrar estruturas profundas e relações pré-existentes que se tornam constitutivos do drama”.

Quanto a Stroheim, campeão do filme que não depende dos expressionismos da imagem nem da montagem, a aposta da sua mise-en-scène, diz Bazin, consiste em

“... olhar o mundo de suficientemente perto e com a insistência bastante para que ele acabe por revelar a sua crueldade e fealdade. Facilmente imaginaríamos (...) um filme de Stroheim composto por um único plano (...)”.

Concluindo a sua revisitação do cinema mudo, Bazin insiste, assim, em que não foi o sonoro que produziu uma clivagem significativa entre duas maneiras de fazer filmes, mas sim concepções do cinema e dos seus filmes que já pré-existiam e que continuaram a marcá-los por mais de trinta anos. A década seguinte — que precede a segunda guerra — é para ele a da consolidação da mestria do cinema “clássico” americano, que se especializa num punhado de géneros principais (a comédia, o burlesco, o musical e de dança, o policial e de gangsters, o drama psicológico e de costumes, o filme fantástico e de terror, o western), todos eles resultantes de um sistema de regras e de uma gramática destinados a tornar o cinema acessível a um vasto público incluindo a elite cultivada, e a do “realismo poético” francês, representado por Jacques Feyder, Jean Renoir, Marcel Carné e Julien Duvivier. É a década do “perfeito equilíbrio”, marcada por estilos de découpage e de fotografia claros e conformes aos temas, da consolidação do casamento entre imagem e som, dos grandes temas dramáticos e morais — não inventados, mas consagrados

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pelo cinema — promovidos ao estrelato. Sobretudo nos EUA, as trucagens visíveis como as sobreimpressões e até o grande plano perdem importância; e, na comédia, a câmara volta sistematicamente ao enquadramento das personagens acima dos joelhos, tido como o que melhor satisfaz a atenção espontânea do espectador. Bazin sintetiza estas aquisições do seguinte modo:

“Cerca de 1938, os filmes obedeciam a uma découpage resultante de princípios quase unânimes. A história era descrita por uma sucessão de planos cujo número pouco variava (mais ou menos 600); e a técnica característica desta découpage era o campo-contra-campo”.

A existência de uma “gramática” do cinema clássico e das formas e modos-de-fazer que lhe deram corpo tem sido sistematicamente discutida por diferentes gerações de estudiosos. Vale a pena ler, a este respeito, a discussão das propostas de Daniel Dayan (1974), que segue de muito perto as ideias de Jean-Pierre Oudart em «La Suture I» e «La Suture II» (Cahiers du Cinéma 211 e 212, Abril e Maio de 1969), por William Rothman (1975), que rejeita de modo frontal as ideias de Oudart e a colagem de Dayan a estas últimas. Oudart tinha defendido que na linguagem do cinema “clássico”, sustentada por um conjunto de convenções e de códigos visuais representados pela sucessão de pontos de vista e por campos-contra-campos, o trabalho da câmara e da montagem analítica, tornado invisível, representa, sempre, o ponto de vista de um actante ausente que se impõe “tiranicamente” ao espectador, obrigando-o a aceitar a “ideologia” da construção fílmica. Rothman responde que é preciso, em vez de acusar o filme “clássico” de “ideológico”, estudar seriamente e compreender o que levou Griffith e os seus contemporâneos a adoptar as normas e a estratégia da continuidade expressas pelas regras dos 30 e dos 180 graus, por exemplo, e que continuamos a precisar de uma história concreta das formas cinemáticas apoiadas em exemplos de época para percebermos a que necessidades responderam essas formas e como e porquê se estabilizaram como boas práticas cinematográficas. No fim da guerra, o néo-realismo italiano entrará em colisão com o “perfeito equilíbrio” dos anos 30-40, não tanto em matéria de forma, mas pela emergência de uma nova temática social que vai exigir e condicionar a mudança para um estilo muito mais despojado. Em Païsa ou Alemanha ano zero de Rossellini, como em Ladrões de bicicletas de Vittorio de Sica, por exemplo, afirma-se a recusa dos dois expressionismos anteriores, o da imagem e o da montagem; e Zavattini espera poder filmar 90 minutos da vida de um homem “onde não se passa nada”. Pergunta Bazin, mas a pergunta contém a resposta:

“Não é o néo-realismo um humanismo, antes de ser um estilo de mise-en-scène? E o seu estilo não se define essencialmente por um apagamento diante da realidade?”

Do ponto de vista dos meios técnicos entretanto disponíveis, Bazin chama sobretudo a atenção para a evolução representada, na fotografia, pelo surgimento da película pancromática nos anos 30 e pelos seus sucessivos aumentos de sensibilidade, que permitiram aos operadores tomadas de vista em estúdio com diafragmas muito mais fechados, ultrapassando os flous dos fundos, que se tinham tornado hegemónicos. A profundidade de campo podia, agora, migrar dos exteriores, onde sempre fora possível, para os interiores, onde estava reservada aos melhores mestres da técnica fotográfica. O que, naquele “perfeito equilíbrio” e na sua herança, mais incomodou os néo-realistas italianos, os italianos pós-néo-realistas, os franceses da nouvelle vague e os

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“modernos” europeus dos anos 60-70, foi o facto de o cinema dos grandes estúdios se ter deixado gramaticalizar e congelar por um programa informacional (um programa que dava forma a...) e pelos seus inúmeros funcionários (os apparatchicks do apparatus), reproduzindo no seu seio o modelo organizacional do que viria a ser a imensa fábrica fordista, com as suas rotinas técnicas, as suas hierarquias laborais e os seus procedimentos normativizados, e que visavam satisfazer um nível de eficácia comunicacional entendido como “boa prática” cinematográfica. Pondo em execução um tal programa, os grandes estúdios estavam, para todos estes “rebeldes”, a propor que as imagens técnicas do cinema, herdeiras das imagens técnicas da fotografia, invadissem, substituindo-as, a capacidade de imaginar e a própria vida quotidiana segundo códigos e regras imagéticas capazes de uniformizar o imaginário individual e social. Para os néo-realistas e seus herdeiros, tal programa iria, independentemente da óbvia qualidade de alguns dos seus filmes, liquidar a “magia” da antiga arte e a sua capacidade para continuar a criar mitos e para produzir a visibilização do real. Como frequentemente ocorre neste tipo de confronto, pareceu a todos os “rebeldes” que seria preferível fazer tábua rasa dos adquiridos dos grandes estúdios e regressar a uma liberdade de produção e de realização anterior às configurações industriais e mais próxima do que eram as imagens para os gregos clássicos. Centralidade de Orson Welles Mas, nos anos 40, as convenções e o “perfeito equilíbrio” da década anterior viriam, para Bazin, a ser postas em causa sobretudo por realizadores como Orson Welles e William Wyler, que adoptaram decisivamente a profundidade de campo. Eles não a “inventaram” — todo o cinema primitivo a usara, devido às condicionantes da fotografia. Mas agora, décadas depois da hegemonia da montagem, a profundidade de campo representa uma alteração profunda no que respeita à concepção do filme, de que dá testemunho a notoriedade e a influência de Citizen Kane (1941), comentada por Bazin, que, no mesmo gesto, evoca Jean Renoir:

“Graças à profundidade de campo, cenas inteiras são tratadas numa única tomada de vistas, podendo até a câmara ficar imóvel. Os efeitos dramáticos, antes pedidos à montagem, nascem todos, aqui, da movimentação dos actores no enquadramento previamente estabelecido. (...) Já Jean Renoir o tinha perfeitamente percebido quando escrevia, em 1938 (...): ‘Quanto mais avanço no meu ofício, mais sou levado a fazer mise-en-scène em profundidade (...), mais renuncio aos confrontos entre dois actores bem-comportadamente sentados diante da câmara como se estivessem no fotógrafo’ (...). Em Renoir, a procura da composição em profundidade (...) correspondia de facto à supressão parcial da montagem, substituída por frequentes panorâmicas e por entradas em campo. Ela suppõe o respeito pela continuidade do espaço dramático e, naturalmente, pela sua duração”. [ E, adiante:] “A profundidade de campo (...) é uma aquisição capital da mise-en-scène: um progresso dialéctico na história da linguagem cinematográfica. (...) Ela não é apenas uma maneira mais económica, mais simples e mais subtil de valorizar o acontecimento; ela afecta (...) as relações intelectuais do espectador com a imagem, e assim modifica o sentido do espectáculo”.

Bazin sublinha que os planos-sequência de Welles em Magnificent Ambersons nada têm de registo passivo, antes são a recusa de fraccionar o acontecimento — uma operação “superior” à montagem clássica. Se o enquadramento escolhido põe longamente determinado objecto em primeiro plano (o copo, a colher e o frasco de comprimidos no suicídio falhado em Citizen Kane), a montagem, que teria colado uma sucessão de planos (entre os quais um do copo, colher e frasco) para construir a mesma cena nos anos do “perfeito equilíbrio”, perde a sua função. Isto não significa que a montagem tenha desaparecido dos filmes de Welles gerados por planos-

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sequência com grande profundidade de campo: significa que a montagem tem de se moldar às exigências desta “nova” plástica da imagem.

A profundidade de campo, diz Bazin, oferece ao espectador uma relação com a imagem mais semelhante à que ele tem com a realidade (argumento a favor do seu “realismo”); torna mais activa a atitude mental do espectador, que já não se limita a ser guiado pela montagem analítica, antes sendo obrigado a fazer escolhas para que a imagem adquira sentido (argumento a favor do espectador “activo”); deste modo, a imagem perde univocidade semântica e ganha “ambiguidade”, e a trama do próprio filme, como em Citizen Kane, torna-se mais “incerta”, deixando de ser óbvia a sua “chave espiritual ou de interpretação” (argumento “metafísico”). No seu texto de 1948 sobre a «Escola italiana...» (1985: loc. cit.), Bazin reforça esta argumentação, explicando que Welles “devolveu ao real a continuidade”, que lhe tinha sido roubada pela découpage clássica:

“Orson Welles devolveu à ilusão cinematográfica uma qualidade fundamental do real: a sua continuidade. A découpage clássica, vinda de Griffith, decompunha a realidade em planos sucessivos que não eram senão uma série de pontos de vista, lógicos ou subjectivos, sobre o acontecimento. (...) Toda a revolução introduzida por Welles parte do uso sistemático de uma profundidade de campo inusitada. (...) Já não é a découpage que escolhe por nós a coisa a ver, conferindo-lhe uma significação a priori, é o espírito do espectador que fica obrigado a discernir, nessa espécie de paralelipípedo de realidade contínua que tem o ecrã por secção, o espectro dramático próprio da cena. (...) Graças à profundidade de campo da objectiva, Welles devolveu à realidade a sua continuidade sensível” (271).

ProfundidadedecampoemJeanRenoir(Larègledujeu)eOrsonWelles(CitizenKane)

É, assim, uma “linhagem” cinematográfica que ao mesmo tempo se afirma e se reconstitui — a que Bazin considerara “a mais fecunda” do cinema mudo, com Stroheim, Murnau ou Flaherty — entretanto “perdida de vista” ou “eclipsada” entre 1930 e 1940. É curioso como é tão evidente, em Bazin, a ideia de que a história do cinema se faz de solavancos, de recuperações ou regressos a conceitos e modos de fazer que, tornados minoritários, virão a ser repescados e reutilizados como inspirações salvíficas (recorde-se a argumentação de Pasolini a favor de um Cinema de Poesia contra a hegemonia do Cinema de Prosa). Retomando o fio da sua ligação às opções néo-realistas, dirá Bazin, aproximando o Visconti de A terra treme do Welles de Citizen Kane e de Magnificent Ambersons:

“O mais esteta dos néo-realistas, Luchino Visconti, revelava de resto, tão claramente como Welles, o projecto fundamental da sua arte em A terra treme, filme quase exclusivamente composto por planos-sequência onde a vontade de abarcar a totalidade do acontecimento se traduz na profundidade de campo e em intermináveis panorâmicas”.

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Para o autor de Qu’est ce que le cinéma?, essa linhagem, que ele designa por “tendência”, significa o relançamento do “realismo” nos filmes — entendido como um conjunto de procedimentos que respeitam mais o “real” — e interessa particularmente a narrativa fílmica, que se metamorfoseia, revendo o seu habitus e conceito. Eis os termos em que Bazin se exprime a este respeito, e onde voltamos a encontrar uma alusão à “escrita” cinematográfica e à caméra stylo de Astruc, prenunciando o surgimento do cinéma d’auteur:

“[A narrativa] volta a ser capaz de integrar o tempo real das coisas, a duração do acontecimento, que a découpage clássica substituía insidiosamente por um tempo intelectual e abstracto. Mas, longe de eliminar definitivamente as conquistas da montagem, [esta tendência] dá-lhe, pelo contrário, uma relatividade e um sentido. (...) Por outras palavras: no tempo do mudo, a montagem evocava o que o realizador queria dizer; em 1938, a montagem descrevia; hoje, pode dizer-se que o realizador escreve directamente em cinema. A imagem — a sua estrutura plástica, a sua organização no tempo — por se apoiar em maior realismo, dispõe, assim, de muitos mais meios para inflectir, para modificar a partir de dentro a realidade. O cineasta já não é apenas concorrente do pintor e do dramaturgo, torna-se um igual do romancista”.

Ritornello — Cinema, poesia e prosa O ritornello é o refrão ou forma recorrente usado na música barroca por compositores como Bach, Vivaldi e Handel, e que regressa no todo ou em parte, tornando-se por vezes, dada a sua repetição, na parte estruturante do todo.

Recuemos dois passos para abarcarmos mais paisagem. Cinema poemático contra cinema prosaico: será esta fórmula de Pasolini, hoje infinitamente glosada, bastante para a compreensão do diferendo subjacente ao que aqui está em causa, e que também diz respeito aos filmes de Antonioni que atrás comentámos? Voltemos em novos termos aos diversos explanada aqui expostos, assumindo o exercício de uma boa repetição:

Com frequência furtando-se a uma definição simples, o que fundamenta este diferendo é a busca de alianças insuficientemente argumentadas, mas empáticas, em torno de “uma certa ideia do cinema” que prefere não se definir a si mesma de outro modo, embora deseje ver-se reconhecida como um ἦθος (ethos: o espírito ou a marca distintiva de uma cultura ou de uma época) — a mesma “ideia de cinema” a que nos referimos no início deste texto, tentando explicitá-la. Mas nem sempre é fácil identificar com clareza o que pensam cineastas e estudiosos do cinema que, entrados que estamos na segunda década no séc. XXI, são hoje, sobretudo, bazinianos-deleuzianos, ancorando as suas posturas, convicções e juízos numa ética que se desdobra numa estética e que tem por principais bandeiras o Qu’est-ce que le cinéma de Bazin e os dois livros de Deleuze sobre o cinema (que por sua vez remetem, iluminando-as, para fileiras bibliográficas “sim-páticas”, com que estão em “sin-tonia”). O problema não reside na identificação argumentada de tais fileiras e do que elas representam como projecto de cinema e como desafio ou acto de resistência — pelo contrário: só essa identificação argumentada de uma comunidade de preocupações éticas e estéticas, de uma linhagem de aliados, permite o reconhecimento de adversários e da morfologia da paisagem onde uns e outros travamos a nossa infindável batalha. O problema reside na insuficiência da clarificação do que seja,

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para uns e outros, essa “certa ideia do cinema”, e na subsistência de cumplicidades impressivas que só de forma vaga expõem as suas convicções e os seus explananda. Por exemplo em Portugal, essa “certa ideia do cinema” apoiada em Bazin e em Deleuze teria igualmente tido por referência António Reis, se este alguma vez tivesse escrito sobre a actividade que, nele, se foi sobrepondo à de poeta, desde que foi assistente de realização de Manoel de Oliveira no Acto da Primavera. Mas Reis quase nada escreveu sobre o cinema, afora o que ficou em algumas entrevistas. Antes se dedicou a fazer uns poucos filmes e se entregou, ao longo de quinze anos na Escola de Cinema, a uma pedagogia que, influenciando embora gerações de alunos, foi exclusivamente oral. Deste modo tornou-se num Sócrates ou num Cristo do Conservatório, ainda hoje esperando por um Platão ou por evangelistas que, por anamnese, deitem em escrita a sua doutrina e expliquem que coisa era, para ele, o filme. Se ele tivesse escrito sobre cinema, teríamos hoje scholars e cineastas portugueses bazinianos-reisianos-deleuzianos, ou apenas bazinianos-reisianos, em vez de apenas bazinianos-deleuzianos. Estando assim o legado de Reis nas mãos de testamentários de uma pregação não-escrita, que o citam de memória, e estando ele próprio condenado a errar, como o fantasma do Rei Morto do Hamlet, pelos corredores da sua Escola, que o invoca mas não convida ao estudo das suas obras, dir-se-á que estas sim (sempre feitas com sua mulher Margarida Cordeiro), promoveram sem ambiguidade “certa ideia de cinema”, uma ideia “poético-etnográfica”, como em Maio de 2012 a descreveu Haden Guest, do Harvard Film Archive, apresentando ali o ciclo The School of Reis e acrescentando:

“Admirados por Joris Ivens, Jean Rouch e Jean-Marie Straub, os filmes de Reis e Cordeiro inventaram uma linguagem cinematográfica poeticamente liberta e hipnótica, um estilo e uma sensibilidade que estabeleceram o caminho da duradoura tradição do cinema radical português” [itálicos meus].

De facto, António Reis, poeta, professor e cineasta, mais facilmente pedia aos seus alunos que filmassem a partir de um par de versos de Apollinaire ou de Rimbaud, do que de um script pré-existente ou escrito para o efeito. Mas sobre a etnografia como instrumento fílmico era crítico, como claramente expressou numa entrevista aos Cahiers du Cinéma a propósito de Trás-Os-Montes (Daney & Oudart, 1977):

“....O olhar etnográfico é um vício, porque a etnografia é uma ciência que vem depois. Também pusémos de parte um olhar pitoresco ou religioso sobre o Nordeste. (...) Estudámos a arquitectura ibérica, porque a arquitectura das casas não nasceu ali de geração espontânea. Mas sempre com o objectivo de escolher, de intensificar. Porque se lemos uma paisagem apenas do ponto de vista da beleza, é redutor. Mas se pudermos ler ao mesmo tempo a beleza da paisagem, o seu aspecto económico, a geografia política da paisagem, tudo isso é a realidade da paisagem”.

Voltando à caracterização proposta por Guest, e passando sobre expressões que se referem à cinematografia de Reis como “poeticamente liberta” e “hipnótica”, cujo sentido seria vantajoso esclarecer, aquele outro adjectivo — “radical” — exprime, decerto, uma ligação a raízes, por um lado, e uma necessária obstinação militante, por outro. Mas a que raízes? Às do cinema? São demasiado diversas e foram-se gerando e crescendo em diferentes direcções, ao longo da sua história. Às do cinema português “artesanal e cosido à mão”, como melhor que outros tem dito João Botelho, um cinema mais da composição e do enquadramento do que do movimento e da acção? À terra e à natureza, ao mundo de Heidegger entendido como manifestação “verdadeira” do real, como Reis decerto tentou no seu Trás-Os-Montes de 1976? À abordagem

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“poemática” desse mundo, que evoca inevitavelmente o Cinema di Poesia de Pasolini? Reis partilhou decerto, com Paulo Rocha e outros, a ideia de cinema poemático vinda de Pasolini, mas teria sido necessário descrever a sua inscrição na experiência portuguesa de parte do cinema novo. E a obstinação militante, por seu turno, que ideia persegue? “Uma certa ideia do cinema”, decerto. Assim se fecha, sem mais explananda, o círculo hermenêutico sobre o que parece estar em causa: como o animal que gira em torno de si mesmo para morder a própria cauda, a discussão esgota-se numa frase de significação indefinida. Sumaríssimas descrições de conteúdos das suas aulas de “Introdução ao Estudo da Imagem”, por exemplo, ajudam talvez a perceber que ideias e preocupações tentava Reis transmitir aos seus alunos (texto recuperado por <antonioreis.blogspot.pt>):

“1. A IMAGEM 1.1 Imagem: polissemia do termo. A imagem icónica. Campo e fora-de-campo: escolher é eliminar. A imagem rectangular não é universal. A tecnologia condiciona a imagem. 1.2 A representação da profundidade. A imagem, um simulacro. Sistemas de representação não ocidentais. A perspectiva renascentista. A superfície plana como espaço autónomo. 1.3 O trabalho da luz. Fontes físicas – fontes místicas de luz. A organização do espaço como elemento narrativo. 1.4 O instantâneo: uma nova maneira de observar. A fotografia ‘directa’. O olho móvel e disponível”.

Ouvido no âmbito de uma investigação sobre as principais tendências do cinema português contemporâneo (Mendes et al., 2012: 539-540), Saguenail recorda os tempos da Escola de Cinema no Conservatório Nacional e põe em evidência uma evocação menos unanimista do ensino de Reis:

“O António Reis dava aulas de imagem e o Paulo Rocha, diria eu, dava aulas de cultura geral. Muitos dos estudantes da altura, e que se tornaram mais tarde cineastas, odiavam-nos. Os estudantes queriam era uma aprendizagem muito prática, muito chã. Aquelas coisas metafísicas, discutir uma ópera numa aula de cinema, para eles eram inadmissíveis. É como tudo: mais de 90 por cento vai ser lixo. Estamos a trabalhar para o resto”.

Felizmente, a reflexão deleuziana ofereceu, como vimos, uma chave-mestra de entrada nesta “certa ideia do cinema” — o “resto” de que fala Saguenail — de que aqui é questão; insistamos nela: do mesmo modo que Platão, na República, censurou os poetas pelo seu gosto pelo inverosímil espectacular, também Deleuze criticou o cinema por tanto ter contribuído para a actual descrença no mundo real, atulhando-o de enredos de acção e movimento que o desfiguraram, e representando-o como peripateticamente aventuroso e irreal, sobrecarregado de protagonistas e semi-deuses tão implausíveis quanto inexistentes, mas que entretêm. Deleuze crê, porém, a despeito dessa maioritária deriva, que, como dissémos, o cinema poderá reconciliar-se com o mundo real, através de uma nova atenção ao tempo, à duração, e ao que imagens e figurações são capazes de tornar manifesto. Volta, assim, a evocar-se Pasolini: o Cinema di Poesia é uma “reconquista”, a reconquista do território cinematográfico devassado e descredibilizado pelo Cinema di Prosa. O compromisso ético de que falei atrás é representado por esse desejo de resistência e reconquista.

Achamo-nos, assim, recorrentemente, em Portugal, no seio de um combate por “uma certa ideia de cinema” — transformada em nevoento ritornello — contra uma série de moínhos de vento que nunca conhecemos por cá: o cinema-espectáculo dominante do main stream e a sua tecno-cultura; a imparável reprodução fílmica da estrutura do

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romance do séc. XIX (de que ainda em 2003 se queixava Greenaway); as vulgatas néo-aristotélicas com os seus exauridos princípios, meios e fins. Tarefa árdua, a um tempo filosófica e mística (no sentido da experiência interior batailliana), reservada a quem sabe e pode levá-la a bom termo por se ter apropriado das “boas” τέχναι (teknai: artes, técnicas) cinematográficas. Trata-se de procurar e revelar, figurando-a, a realidade do mundo, fugindo à tentação de continuar a ficcionar para efeitos de entretenimento; e neste gesto de rejeição vai-se grande parte da narratividade do cinema “clássico”, do seu sistema fechado de convenções, da sua gramática. Eventualmente consumado (num dos seus possíveis graus) esse imenso adeus, a tentativa de revelação e de re-encontro com o mundo real (ao qual se pretende devolver densidade ontológica) só é concretizável por um trabalho técnico de figuração; mas figurar — no sentido de dar figura a, e que devíamos reaprender a usar como verbo: eu figuro, tu figuras, ele figura... — é necessariamente artificioso, e depende do que o cinema sabe poder fazer. Depois de ter abdicado do desejo de contar histórias causalmente articuladas, reproduzindo quase inevitavelmente clichés narrativos e imagéticos (sempre a mesma história: Aumont et al., loc. cit.), e dos modelos de découpage assentes na montagem analítica, esta “certa ideia de cinema” propõe-se produzir uma realidade cinematográfica que reinventa, oferecendo-lhe densidade ontológica, a realidade do dia-a-dia, surpreendendo por revelar novos perfis dessa realidade, para efeitos de contemplação e de reconhecimento da alteridade do mundo filmado. Em termos mais próximos de Tarkovski, trata-se, “religiosamente”, de ajoelhar e orar diante do real reinventado e mostrado, pelo corpo do filme, no seu esplendor esquecido, recalcado ou menosprezado. Um tal cinema existe, assim, para criar novas aparições do real. O principal perigo desta jornada consiste em cair numa crença de seita e em novos tiques maneiristas, quando procurávamos aliados com quem pudéssemos discorrer livremente sobre o mundo e as coisas. Como nos jogos de travessia de territórios desconhecidos, a encruzilhada é perigosa e pode encurtar, apagando o sentido da demanda, a viagem empreendida.

De facto, ao revelar e ao oferecer a percepção do mundo heideggeriano e pós-heideggeriano na sua permanência (stans) e no seu acontecimento (fluens), esta ideia de cinema precisa de hipostasiar o mundo da realidade banal, abordando-o de modo transcendental para forçar o emergir da sua imanência e para mostrar a sua substância identitária — algo que na vida corrente olhamos mas não vemos, e que o cinema nos pode dar a ver. O que a hipóstase do banal que deixámos de ser capazes de ver propõe, é a mostração de uma substância tida como realidade ontológica — o que se obtém figurando. Como diz o velho Lalande, hipostasiar significa ainda “transformar uma relação lógica em substância no sentido ontológico da palavra”, e até “oferecer sem razão uma realidade absoluta ao que apenas é relativo”, como quando Bergson escreveu, no seu L’évoluton créatrice: “devia ser grande, (...) a tentação de hipostasiar essa esperança...”

O emprego do termo hipóstase remonta à Epístola aos Hebreus, onde o filho de Deus é chamado καρακτέρ τες υποστάσεως (caractêr tês upostáseous) de seu Pai, “resplendor da sua glória, efígie da sua substância” (1.3). Hipostasiar é uma operação “mística”, não por visar o atingimento de um além, mas por pressupôr como possível um regime de correspondências entre o rosto banal do mundo e o seu sentido transcendental — um longe tornado perto, uma lonjura que se recuperou e que inunda de súbito o que nos rodeia — um sentido transcendental interpretado e revelado por uma τέχνη ou por τέχν α ι artísticas. O poder do cinema é também, neste sentido, o que as suas imagens — que, como já lembrámos, criamos artificiosamente para que

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mandem em nós — forem na sua relação com a antiga imago ou imagines do mundo e dos outros, entendida como construção mental formada a partir das frustrações e satisfações infantis. Sobrecarregada de afecto, tal imago pode deformar o real, influenciando a percepção do sujeito. O cinema do fluxo Num outro perfil contemporâneo do pensamento sobre o cinema, três curtos textos de 2002 e 2003, publicados pela revista Cahiers du Cinéma, estão na origem da reflexão que a partir deles se desenvolveu sobre o “cinema do fluxo” ou a “estética do fluxo”, e que recolocam, a seu modo, a questão de saber que coisa é o filme. São eles « Plan contre flux », de Stéphane Bouquet (nº 566 de Março 2002, 46-47); « C’est quoi ce plan? », de Jean-Marc Lalanne (nº 569 de Junho 2002, 26-27); e « C’est quoi ce plan (la suite)? » de Olivier Joyard (nº 580 de Junho 2003, 26-27). O primeiro apresentava-se como “a introdução a um folhetim teórico trimestral em torno de algumas questões estéticas de hoje”, o segundo e o terceiro são comentários aos festivais de Cannes daqueles dois anos. Os títulos do segundo e terceiro texto glosavam o de Pascal Bonitzer, « Qu’est-ce qu’un plan », in Le champ aveugle. Cremos ser vantajoso incluir numa curta meditação sobre estes textos as noções de “quadro” e de enquadramento, dada a sua natureza seminal ao longo de grande parte da história do cinema. Como se verá, e apesar da mudança de ideolecto que o informa e lhe dá pertinência epocal, neste recente desenvolvimento da reflexão sobre o cinema vêm rebater-se todas as questões históricas de Bazin sobre o “realismo”, a duração e a montagem, bem como a “imagem-tempo” e o “cristal-tempo” de Deleuze. É, também, uma discussão que pede para ser aproximada do terreno dos estudos interartes, dada a relação que, de novo, estabelece entre cinema e pintura, cinema e fotografia, cinema e artes plásticas geralmente entendidas. Apesar da mudança dos tempos e das formas, subsistem hoje cineastas para quem o enquadramento é ainda (como na tradição pictural), o primeiro princípio organizador do olhar do filme. Herdam da mais antiga tradição da academia e, se vivessem no século XVII, juntar-se-iam talvez a Poussin contra Caravaggio (Bouquet, 2002: 47), o primeiro defendendo o desenho e as “belas ideias” contra a voluptuosidade da cor e o menosprezo do desenho pelo segundo — querela que, na pintura, teve uma enorme posteridade. A relevância do desenho viria, no último quartel do século seguinte, a ser significativamente reiterada pelo Kant da Crítica da faculdade de julgar, § 53, nos seguintes termos:

“Entre as artes figurativas eu daria preferência à pintura, em parte porque, como arte do desenho, serve de fundamento a todas as outras artes figurativas, em parte porque ela pode penetrar mais profundamente na região das Ideias e alargar, em conformidade com esta, o campo da intuição, bem mais do que é permitido às outras artes”.

A fidelidade à construção pictural da imagem cinematográfica em função de determinado conceito e arquitectura do que vai ser visto atravessou, à sombra de Kant, toda a história do cinema e subsiste, como vimos, em cineastas inteiramente contemporâneos, para quem a ideia de enquadramento é solidária da ideia de composição — outra ideia-chave herdada da pintura e das artes em geral. Para falar depressa, diremos que estes cineastas “kantianos” antevêem o que vão filmar como uma pintura fora da tela (com o seu campo e fora-de-campo), e que é a ideia de “quadro” que os inspira nessa antevisão. Estas pré-figurações são também schemata (Gombrich, 1986: 280-281), imagens conceptuais construtivistas que constituem

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pontos de partida do visualizador (ou do vedor) e que vão sendo corrigidas e refeitas por tentativa e erro. Destes procedimentos correctivos resultam as figurações, desfigurações e refigurações que dão identidade fantasmática ao corpo do filme.

Quadro e enquadramento ocupam de resto, associados ao plano, nos manuais introdutórios ao cinema, um lugar relevante entre os primeiros conceitos abordados (Aumont, Bergala, Marié, Vernet, 2008: 12), porque, precisamente, representam a preocupação com o equilíbrio e a expressão da composição herdada da pintura — pense-se, para além dos casos que aqui abordámos, na sua importância em exemplos como A Paixão de Joana d’Arc, de Dreyer — e são, por isso, “materiais” de base com que o cineasta trabalha. Por vezes, realizadores sobrepõem cenas no interior do mesmo enquadramento e da mesma imagem, como fizeram Visconti e Antonioni, ou o Tati de Playtime. De certo modo, poderíamos também dizer que o plano nascido do enquadramento inicial é, para tais cineastas, uma animation de tableau, uma animação do quadro, se entendermos a expressão literalmente, e não no sentido técnico que a história das artes lhe estabilizou. E que esse plano, assim entendido, continuou a constituir a unidade mínima do filme. Não foi por acaso que o plano fixo, entendido como um regresso, nostálgico ou não, à gramática elementar do cinema primitivo, se tornou no instrumento dilecto de tantos cineastas “modernos” que cultivaram um cinema de autor; e que, pelo contrário, certas escolas americanas passaram a ensinar cinema com base no imperativo “Move the camera! Move the camera!” como exorcistas que esconjurassem uma possessão.

Pensar o filme em função do enquadramento e da composição, e pensar o plano como animação do “quadro”, é o que encontramos de Resnais a Antonioni, de Mizogushi a Ozu e de António Reis a Pedro Costa. É uma atitude em certa medida inventariável como “racionalista”, visto que o projecto do filme nasce do encadeamento previsional dos elementos que o irão construir: enquadramento, plano, (eventualmente plano-sequência), sequência, série de sequências, exprimindo uma ideia prévia de découpage e de mise en scène. Para este cinema, que atravessou o período “moderno” sem rejeitar o “classicismo” que o ligava à pintura, “o enquadramento permaneceu como composição pictural, o raccord como gerador de sentido, a montagem como sistema retórico e a elipse como condição da narrativa” (Lalanne, 2002: 26). Associado à découpage, este conjunto de instrumentos identificaram historicamente o trabalho do metteur en scène como sendo característico da τέχνη ou da ars cinematográfica. As competências requeridas para a apropriação pessoal deste conjunto de instrumentos foram transmitidas mais em oficina néo-medieval do que nos ensinos formais, passando muitas vezes de mestre a aprendiz e correspondendo a uma iniciação. Este conjunto de inscrições que definiam um ofício vão muito para além da distinção sumária entre cinema “clássico” e “moderno” e são-lhe conceptualmente anteriores, atravessando escolas e épocas: encontramo-lo desde Griffith e Murnau a Hawks e Hitchcock, mas também em Renoir e Rossellini, Welles e Ray, em Tarkovski e Kieslowski. Dominadas as τέχν α ι e o savoir-faire requeridos, sempre com uma mão na artesania e outra na arte, os autores — fossem eles “monomaníacos, hurluberlus ou bricoleurs”, para recordar os termos de Bazin — construíam a sua idiossincrasia, estilo e identidade através das suas “pequenas diferenças excessivas” e faziam cada um o seu percurso próprio da heteronomia para a autonomia. Anotar-se-á a distância a que esta leitura “picturalista” do cinema do enquadramento está de Bazin, para quem as imagens não deveriam “acrescentar” nada à realidade.

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A partir do meio da década de 90, porém, e em parte estimulada pelos novos dispositivos de captação e pós-produção de imagens e sons e pela sua relativa convergência nas novas plataformas digitais, surgiu uma nova geração de cineastas, no seio da qual tem sido possível identificar representantes de uma nova “estética do fluxo” (Bouquet, loc. cit.; Lalanne, loc. cit.; Joyard, 2003), mais herdeiros de Caravaggio do que de Poussin, e que se afastaram cada vez mais irreversivelmente do cinema “racionalista” a que acima aludimos, desejosos de repensar o enquadramento e o plano. Eis como Joyard (loc. cit.) expõe o que se passou, em função dos filmes vistos no festival de Cannes de 2003:

“Pensou-se, com Mulholland Drive [Lynch, 2001] e In the Mood for Love [Wong Kar Wai, 2000], que a experimentação sobre a narrativa se tornara na única marca forte da modernidade no cinema. Ela correspondia historicamente ao esgotamento do plano fixo como figura central do cinema de autor, e à transformação deste num maneirismo estéril. No seu melhor, como em Millenium Mambo [2001] de Hou Hsiao-hsien, a experiência sobre a narrativa e sobre o plano como unidade de base do cinema estavam ligadas. Desde 2002, surpresa: os filmes apresentados em Cannes marcaram o regresso em força do plano como lugar primeiro onde se constrói a radicalidade de uma visão. Jia Zhangke, Sokurov, Gaspard Noé, Kiarostami e os irmãos Dardenne tinham aberto a via, com sortes diversas. Desta vez ainda, os filmes formalmente mais audaciosos (...) repousavam numa maneira de repensar a criação do plano, sua composição e seu esgotamento na duração”.

Joyard compara sobretudo os long tracking shots de Elephant (Gus Van Sant, 2003), em que são longamente filmados adolescentes americanos passeando nos corredores do seu liceu, e os de Shara (Naomi Kawase, mesmo ano), atrás de dois miúdos primeiro, de um casal de adolescentes depois, no labirinto das ruelas de uma pequena cidade japonesa, para dizer que eles já nada têm a ver com a technique de filature (técnica de perseguição) ensaiada pelos irmãos Dardenne em Rosetta (1999) e O filho (2002), de câmara ao ombro ou sobre “dolly” atrás de um actor, atentos ao mais mínimo movimento da nuca deste: em Van Sant ou em Kawase, o plano, em vez de acabar, bifurca, ou porque um novo adolescente cruza o campo e passa a ser seguido pela câmara, ou porque algo ocorreu — por exemplo o vento trouxe a chuva — e a câmara “distrai-se” do que filmava e muda de objecto sem interrupção do plano. O tempo fílmico altera-se decerto, comunicando em primeiro lugar a dilatação de um presente que amplia a percepção da vida banal. Mas tais planos e suas eventuais bifurcações não perdem a relação com a narrativa, porque contêm eles próprios, por vezes, as suas elipses internas. Antes, Bouquet (loc. cit.), tentando inventar uma designação para esta “nova” maneira de fazer cinema, considerava, ao contrário do que Joyard sugeriria mais tarde, que ela rejeita a concepção clássica e moderna do plano, porque não quer ver senão a passagem infinita do mundo e das coisas diante da câmara, e que o seu modelo — sublinhe-se a apreciação claramente depreciativa — é o do reality show televisivo, que só produz espectadores passivos, solitários e narcísicos:

“Poderíamos chamar-lhe fluxo — por ser um princípio de desfile das coisas permanente e infinito — e opô-lo ao plano, série ordenada de composições ordenadas (ou sabiamente desordenadas). Loft Story [nome do reality show da Endemol adaptado, no Québec e em França, do original holandês Big Brother] seria uma representação típica e ideal deste princípio do fluxo, onde nada mais haveria para ver senão a pura passagem das imagens. Não se pode censurar Loft Story por não produzir pensamento, visto que a emissão pertence (teme-se que sem o saber) a um regime de imagens que proclama a abolição do discurso em proveito de um real interessante porque não organizado, não discursivo”.

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Nesta versão, que coisa é o filme? Longe da clássica arquitectura, voluntariosamente projectada pelos cineastas do enquadramento e do plano — construtivistas que eram, apostados em gerar sentido a partir dos dispositivos da sua τέχνη —, os cineastas “do fluxo” regressariam ao mundo de Leucipo ou Demócrito, para quem o mundo flui e varia constante e infinitamente, sem princípio nem fim, bastando filmá-lo, sem intervenção, tal como ele corre ou decorre diante de nós. De algum modo, tal opção exprime o regresso ao pesadelo de Pasolini: um plano-sequência infinito que gravaria em tempo real o fluir do mundo diante da câmara, numa daquelas alucinações borgesianas em que o mapa tanto se expande que se sobrepõe ao território, já dele não se distinguindo. O plano fixo, que coexiste no cinema do fluxo com os longos travellings e com a deambulação da câmara, já não é aqui o esgotamento do cinema de autor tardo-moderno, como em Reis, Oliveira ou Pedro Costa, mas apenas uma das posturas cinematográficas fortes diante desse fluir constante das paisagens, situações ou acontecimentos que não vêm necessariamente de... nem vão necessariamente para... parte alguma. Referindo-se a Unknown Pleasures (Jia Zhangke, 2002), diz Lalanne (loc. cit.):

“Unknown Pleasures comporta algumas stasis siderantes. A montagem é reduzida a um trabalho minimal: trata-se, simplesmente, de ligar entre si, como vagões, imponentes planos-sequência, verdadeiros blocos graníticos não divisíveis. Os momentos mais eufóricos do filme são aqueles em que tudo conspira para que o plano nunca acabe: a mobylette deixou de funcionar, a personagem abandona-a e continua a pé; a personagem sai do enquadramento, mas a câmara continua a filmar. A duração é o que fragiliza a composição perfeita destes planos-quadros. O tempo flui no plano como uma hemorragia interna, e não obedecendo a uma razão”.

Admitindo que um dos principais traços identitários do cinema “moderno” foi a sua obsessiva tarefa de desconstrução narrativa, emulando o que se passou desde os princípios do século XX com a literatura e o teatro, este cinema “do fluxo” só excepcionalmente guarda um tal traço: Naomi Kawase não complica nem baralha a narração, antes regressa à linearidade simples e escorreita das antigas fairy tales, agora tornadas menos loquazes, mais sombrias e, tanto quanto possível, esvaziadas de “intriga” ou de “enredo”, do mesmo modo que Apichatpong Weerasethakul restabelece (por exemplo em Tropical Malady, 2004), uma relação inspiradora com lendas e crenças da sua infância, ou que Hou Hsiao-hsien (por exemplo em Le voyage du ballon rouge, 2006) se limita a homenagear a fantasia de Albert Lamorisse (Le ballon rouge, 1956), interpondo no dia-a-dia parisiense de uma mãe actriz e seu filho uma baby sitter chinesa estudante de cinema. Não há aqui a “errância” nem a “descompressão narrativa” (Joyard, loc. cit.) que tanto cinema de autor nos ofereceu desde os anos 70. No entanto, fechando o texto que criou em 2002 a designação “cinema do fluxo”, escrevia Bouquet, criando entre este cinema e o Lynch de Mulholland Drive ou de Lost Highway uma ponte talvez forçada, e que o tempo parece não ter confirmado:

“Num seguimento deste escrito proporemos estudar os procedimentos rítmicos no cinema do fluxo, de que podemos dar aqui alguns exemplos: não atribuir às personagens (ou aos actores) um ser preciso, antes os deslocalizando (como Lynch em Mulholland Drive [2001] e Lost Highway [1997] — note-se, aliás, como os dois títulos aludem a percursos de estrada); torná-las inidentificáveis (Ashes of Time) [Wong Kar-Wai, 1994] ou intermutáveis (Flowers of Shanghai) [Hou Hsiao-sien, 1998]; evacuá-las como personagens para as conservar como corpos a-significantes (Time and Tide) [Hark Tsui, 2000]. Este Time and Tide (tempo e fluxo) usa igualmente outra estratégia essencial de tal cinema: fazer menos uma mise en scène do que pôr [corpos, coisas] em movimento ou em continuidade (daí o recurso incessante a passerelles, corredores, escadas, metáforas da passagem)”.

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O cinema “do fluxo”, ou “da fluidez”, ou “líquido”, de que também fazem parte filmes como Café Lumière, Good men, good women, Três tempos, de Hou Hsiao-hsien; Adeus Dragon Inn, The Skywalk is gone, O sabor da melancia, I don’t want to sleep alone, de Tsai Ming-liang; Eternamente sua e Síndromes e um século, de Apichatpong Weerasethakul; Em busca da vida, O mundo, Plataforma, 24 City, Still Life, de Jia Zhang-Ke; Juventude em marcha, de Pedro Costa; Fim dos tempos, O Último Airbender, The Happening, O sexto sentido, ou A Senhora da Água, de M. Night Shyamalan; e ainda os filmes de Claire Denis, Lucrecia Martel, Philippe Grandieux, um ou outro de Gus Van Sant, associa orçamentos reduzidos ao gosto pelos novos dispositivos digitais, e, à custa da sua entrada nos principais festivais internacionais, gerou nichos de mercado inesperados. Em boa parte, creio que é possível pensá-lo como um rebatimento estético da problemática ética, provinda da filosofia social, que Zygmunt Bauman debateu em Liquid Modernity e suas sequelas, descrevendo a “liquefacção” de todos os valores “sólidos” sobre os quais as sociedades ocidentais desenvolvidas assentavam, e o desmoronamento das arquitecturas sociais que tinham dado origem à própria ideia de “desenvolvimento” (Bauman, 2000) — um processo que seria extensivo aos “valores” do cinema.

É certo que o cinema moderno deu origem a mimetismos e maneirismos de fim de festa, como frequentemente sucedeu com artistas que chegaram tarde a escolas e épocas da pintura, da escultura ou da fotografia. Mas aquilo que hoje se designa por “cinema do fluxo” não representa um maneirismo pós-moderno (nesta designação caberia eventualmente o formalismo de um Wong Kar-wai em In the Mood for Love, de Tsai Ming Liang em I Don't Want to Sleep Alone, ele que tem por vezes sido apresentado como “o Antonioni de Taiwan”, de algum Edward Yang e de parte da nova vaga de Taiwan). A geração deste novo “cinema-instalação” trata os seus filmes como obras atmosféricas e sensoriais, oferecendo, para lá da narrativa (que por vezes volta a ser linear e simples como um conto de fadas inacabado e que de preferência está cheia de não-acontecimentos, de intervalos entre acções), um mundo e um real abordados em bruto e sem tematização — o mundo na sua versão mais imediatamente abordável pelas sensações, e que é “intensificado” pela filmagem, que o torna flutuação permanente e mera extensão no tempo. O cinema torna-se, assim, um olhar em acédia sobre um real fugidio, ou um dispositivo de intensificação de sensações. Em vez do significado da experiência, procura-se a sua intensidade.

O “cinema do fluxo” não é uma escola nem um movimento, e a sua consideração envolve uma atenção obrigatória a cada um dos seus autores e a cada filme, por vezes muito diversos. No entanto, há nele traços comuns relativamente identificáveis: por exemplo, a pouca narratividade, a pouca dramaturgia, que se tornam residuais e quase imperceptíveis, o destronamento da mise-en-scène, que deixa de gerir cenas e sequências, e cede o seu lugar a uma imersão sensorialista que faz o cinema regredir às suas origens, a um estágio de miraculação do mundo por via das imagens em movimento, um mundo fascinado pelo seu próprio espelho e de onde o conflito tende a desaparecer, como dele desaparecem as ideias de clímax ou de arco dramático, que se diluem no tempo indiferente ao que nele acontece.

Também existe com frequência, neste cinema, uma voluntária desistência do enquadramento e da composição vistos como heranças da picturalidade; os seus autores têm com um e outra uma relação deliberadamente débil, porque a câmara, ora sempre em movimento ora em longos planos fixos pouco preocupados com a composição, lhes parece indiferente, sublinhando a transitoriedade, a ausência de fronteira entre o campo e fora-de-campo, e vagueando, na sua fluidez, na tentativa de registar o mundo sem nunca atentar demasiado em nada do que nele se move. Nestas

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condições, também o plano deixa de ser a unidade básica do filme e a prise sur le vif e o respeito pela duração integral do que é filmado passam a ser outros traços comuns a alguns destes cineastas. Como diria Heidegger (loc. cit.: 224), seria ainda preciso apurar o que quer este cinema ver no mundo: o stans (o inalterável), ou o fluens (o passageiro), embora ambos pertençam à “continuidade incessante do que dura”?

Dizíamos no início: o cinema é o dispositivo técnico que permitiu simular o movimento com base numa determinada velocidade de projecção, em contínuo, de uma série de imagens fixas; o filme é o objecto comunicacional ou artístico resultante desse dispositivo, que, ao provocar uma alteração noemática do que mostra (usamos o termo referindo-o ao noema e à noesis husserliana), gera uma nova realidade imagética recheada de dádivas perturbadoras e suscita uma percepção específica, oferecendo-se como escola do ver. A questão que se põe aos filmes da estética do fluxo, ou da fluidez, ou líquida, não é diferente da que se pôs a todos os outros ao longo da história do cinema, como hipotéticas aulas do ver: conseguem eles, com a sua eventualmente nova concepção do enquadramento, do plano e da sua duração, com o quase desaparecimento da montagem e com a sua dieta narrativa, gerar duplos ficcionais do espectador e criar uma nova imago ou imagines do mundo, produzir a inquietante estranheza que atravessa a ficção e suscitar a experiência interior que marcou durante décadas a nossa vivência do cinema? Continuamos a sentir diante deles a simpatia e a empatia que nos levam ao choro ou ao riso? Independentemente da mudança que eles porventura representam, a sua identidade ontológica depende da resposta a estas questões. De volta ao povo dos espelhos

“Una noche, la gente del espejo invadió la tierra. Su fuerza era grande, pero al cabo de sangrientas batallas las artes mágicas del Emperador Amarillo prevalecieron. Éste rechazó a los invasores, los encarceló en los espejos y les impuso la tarea de repetir, como en una especie de sueño, todos los actos de los hombres. Los privó de su fuerza y de su figura y los redujo a meros reflejos serviles. Un día, sin embargo, sacudirán ese letargo mágico”.

Sacudirán ese letargo mágico: desde aquela noite de 28 de Dezembro de 1895, quando, no salão indiano do Grand Café do Boulevard des Capucines, Antoine Lumière apresentou o cinématographe, invenção de seus filhos Auguste e Louis, muitos sacudiram, de facto, essa mágica letargia, e pudémos voltar à empatia com eles, com e sem inquietante estranheza. Talvez o tenham feito em menor número do que seria de esperar: na sua maioria, “la gente del espejo” continua a “repetir, como en una especie de sueño, todos los actos de los hombres”, obedecendo à mais básica mimesis e encaixando-a em géneros pré-definidos. Quem sacudiu melhor essa letargia mágica e voltou a atravessar espelhos como Alice? O Charlot criado por Chaplin? A Letty (Lillian Gish) em The Wind de Victor Sjöström (1928)? A Pina (Anna Magnani) em Roma città aperta de Rossellini (1945)? O Terry Malloy (Marlon Brando) em On the Waterfront, de Elia Kazan (1954)? O Rocco (Alain Delon), o Renato (Simone Parondi) e a Nadia (Annie Girardot) em Rocco e i suoi fratelli, de Visconti (1960)? A Ester (Ingrid Thulin) em O silêncio, de Bergman (1963)? A Giuliana (Monica Vitti) em Il deserto rosso de Antonioni (1964)? A Marianne (Anna Karinna) em Pierrot le fou de Godard (1965)? O Jacques Tati de Trafic (1971)? O Willard (Martin Sheen) em Apocalypse Now e no seu Redux, de Coppola (1979-2001)? A Suzanne (Sandrine Bonnaire) em À nos amours, de Pialat (1983)? A Lula (Laura Dern) em Wild at Hearth, de David Lynch (1990)? Dissémos que são poucos mas subitamente parecem demasiados,

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reaparecidos todos num momento de aleph. E, naturalmente, a cada spectator o seu thesaurus, dado o jogo intersubjectivo em que ele se envolve. Quando, porém, conseguirmos passar da individualidade à singularidade, como sugeria Deleuze e Agamben também preferiria, talvez possamos regressar às coisas que o cinema nos ofereceu e oferece, a nós, singulares, e então bom será que possamos exprimir o que eles fizeram por nós. De facto, toda esta “gente” respondeu, a seu modo, à questão de saber que coisa é o filme. Por ter evocado toda esta gente dos espelhos, esta colecção de dramatis personæ, gostaria de desdobrar por um último e breve instante o tema do “regresso ao real”, do “regresso às coisas” e do respeito pela φύσις enquanto “desvelamento abrigante”, para pôr em evidência um seu rebatimento ético e para dele afastar a ideia retrógada, mas sempre tentadora, de que ele pode ser entendido como uma qualquer actualização da aurea mediocritas ou do fugere urbem horacianos, de que o arcadismo italiano se reapropriou com o seu bucolismo e o seu posterior namoro ao homo natura. E que sempre propende a ressurgir, quando em nós ganha relevo o pólo disfórico da nossa experiência das técnicas, e redescrevemos como catástrofe a hegemonia tecnológica na nossa civilização. De facto, não se trata de nada disso: a ser desviado do cunho grego, husserliano e heideggeriano que o marca, o “desvelamento do real”, o “regresso às coisas” e o respeito pela φύσις têm porventura outra dimensão, a da empatia com a “vida de pura imanência”, de que Deleuze se ocupou no seu último escrito (Deleuze, 1995: 3-7), definindo o campo transcendental como um plano de imanência, e este como “uma vida” (não a vida, mas uma vida, passando-se da sua consideração individual para a da sua singularidade, comum ao homo tantum). Significativo é, decerto, que, explicando-se sobre a que coisas e a que φύσις se regressa, as mais das vezes em situações ditas “extremas”, Deleuze se socorra de uma narrativa ficcional de Dickens (O amigo comum, III, cap. 3) que, segundo ele, diz o que há de mais fundamental sobre este movimento:

“Ninguém melhor que Dickens narrou o que é uma vida, tendo em conta o artigo indefinido como indício do transcendental. Um canalha, um sujeito execrável, desprezado por todos, é trazido a morrer, e dá-se que aqueles que dele cuidam manifestam uma espécie de solicitude, de respeito, de amor pelo menor sinal de vida do moribundo. Toda a gente se atém a salvá-lo, ao ponto de no mais profundo do seu coma o homem vil sentir qualquer coisa de doce a penetrá-lo. Mas, à medida que ele volta à vida, os seus salvadores tornam-se mais frios, e ele reencontra toda a sua grosseria, a sua maldade. Entre a sua vida e a sua morte há um momento que mais não é que uma vida jogando com a morte. A vida do indivíduo dá lugar a uma vida impessoal e, portanto, singular, que solta um puro acontecimento liberto dos acidentes da vida interior e exterior, isto é, da subjectividade e da objectividade do que acontece. Homo tantum, do qual todos se compadecem e que atinge uma espécie de beatitude. É uma hecceidade, que não é mais de individuação mas de singularização: vida de pura imanência, neutra, para lá do bem e do mal, porque só o sujeito que a incarna no meio das coisas a torna boa ou má. A vida de uma tal individualidade apaga-se em proveito da vida singular imanente a um homem que já não tem nome, ainda que não se confunda com nenhum outro.”

Se nos lembrarmos deste Dickens invocado por Deleuze, se o transformarmos em livro de horas e breviário, novos filmes voltarão a mostrar-nos a irredutível força da vida singular como parte do real que queremos ver revelado, e compensaremos melhor a deriva do cinema maioritário, que se dilui no muito mais vasto mundo do audiovisual e do multimédia, tornando-se, nele, tantas vezes, irrelevante ou indistinto.

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Facialidades

É possível a uma pessoa, independentemente do lugar onde nasceu e onde vive, tornar-se mediterrânica. A mediterraneidade não se herda, adquire-se. É uma distinção, não uma vantagem.

Pedrag Matvejevitch, Breviário Mediterrânico, 1987.

A figuração cristã contra o interdito mosaísta As áreas de investigação que recobrem o vasto período que vai da arte paleocristã à Bizâncio pós-iconoclasma e à lenta aurora da Idade Média estão desde há muito estabilizadas nas histórias das artes, têm sido por vezes objecto de fecundas abordagens multidisciplinares, e a sua imensa bibliografia especializada não tem parado de crescer, hoje mais acessível devido à progressiva difusão digitalizada de parte dos seus documentos. Não sendo nelas especialistas, o que aqui nos interessou foi a consideração de alguns dos seus elementos característicos como a frontalidade retratista, a passagem da representação mimética à figuração da encarnação divina (geradora de uma κοινή (koinè, língua helenística comum) e de uma αἴσθησις (aisthesis, percepção pelos sentidos e pelo intelecto) próprias, a complexa apresentação, pelas formas picturais, dos sentidos da παρουσία (parousia, chegada e presença) cristã, e o modo como a teologia se foi relacionando com elas, tentando domar e gerir a contradição entre a tendência para o regresso à idolatria via figurações cristãs e a pesada herança da interdição de figurar o divino, vinda da tradição monoteísta. Deixemos a um especialista (Veyne, 1987: 14-15), a tarefa de caracterizar, de um só fôlego, esse mundo imperial romano que fez sua a civilização helenística, adoptando, ao longo de cinco séculos de aculturação, a sua cultura, arte e religião, antes de nele intervir o cristianismo e a liberdade de culto outorgada por Constantino:

“...No momento em que começa a presente história reina uma civilização mundial (à medida do universo daquele tempo), de Gibraltar ao Indo: a civilização helenística. Um povo situado à margem, também ele helenizado, os romanos, conquista esta área cultural e completa a sua helenização. (...) Roma tornou-se grega exactamente como o Japão contemporâneo se tornou um país do Ocidente. (...) Os romanos são um povo que teve como cultura a cultura de um outro povo, os gregos.”

Cedo ou tarde, quem se ocupa de artes da imagem (pintura, fotografia, cinema...), ou sobre elas pensa, é confrontado com a questão de saber o que se operou no cristianismo, originariamente herdeiro da tradição mosaísta e da interdição de figurar, para que ele se tenha tornado na principal máquina figurativa da história daquilo a que chamamos Ocidente, entre o fim da antiguidade clássica e o limiar da Idade Média. É uma questão mediterrânica, que se joga entre Jerusalém, Roma e Bizâncio (ligada ao Egeu pelo mar de Mármara), mas também no Egipto com a sua arte copta e em Cartago, Chipre e Creta, em Éfeso e Edessa e na posteridade das paragens de Saulo de Tarso na Cesareia e em Sídon, Salamina e Antióquia, em Rodes, Patmos e Samos, na Galácia, Mísia e Macedónia, depois pela costa da Tessália até Atenas, e em cativeiro a caminho de Roma, por Malta e Messina. Questão a que é impossível escapar, porque, nesse mundo cristão de que somos herdeiros, ela sempre acompanhou a iconologia e a

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liberdade de figurar a divindade, e por extensão o sagrado (e seus limites). Questão decisiva, ainda, a um tempo figural e narrativa, porque a compulsão para figurar o Antigo e o Novo Testamentos formatou, em boa parte, a história das artes desse Ocidente cristão, amarrando-se aos textos kerigmáticos fundadores da nova crença, como a figuração grega e romana se tinham amarrado às suas fábulas e mitos, ao seu teatro e aos seus grandes textos épicos. A tradição mosaísta — a de Moisés, Ezequiel, Josias, iconoclastas que exprimiram a reacção do monoteísmo contra a materialização do divino nos ídolos do politeísmo — viu-se ameaçada desde o séc. II e sempre coabitou com a iconofilia popular, mas resistiu até aos séculos VIII e IX, no iconoclasma de Bizâncio. Quando este se extinguiu, cristãos orientais e ocidentais ultrapassaram “irreversivelmente” o interdito de figuração, passando a acarinhar e a proteger esta última, ao mesmo tempo que tentavam, por diversos meios, regulá-la (mas seguindo diferentes caminhos a partir do cisma de 1054 e da separação litigiosa das igrejas romana e bizantina). Nas artes do Ocidente cristão, a prevalência dos temas bíblicos só voltaria a ser posta em causa pelo regresso à figuração “clássica” e “humanista” da Renascença, e, ainda aí, de forma transitória e matizada. Didi-Huberman (1990: 608-621 ) coloca a questão de forma expressiva, atento ao seu pendor paradoxal :

“Viremo-nos (...) para esse Ocidente cristão cujo posicionamento face aos objectos figurativos é, a vários títulos, exemplar. Nenhuma outra cultura produziu tal quantidade de documentos e de monumentos figurados: os iconoclasmas e as destruições de todos os géneros nunca conseguiram reduzir essa impressão de que o Ocidente viveu, desde a aurora da Idade Média, num universo social e religioso onde os homens se moviam sob o olhar, ou mesmo sob a autoridade, das miríades de imagens que iam fabricando com diversos fins — fins que o antropólogo e o historiador devem elucidar tanto quanto possível. A produção e a extraordinária difusão desses objectos figurativos são tanto mais impressionantes quanto, à partida, se fundaram num ódio às imagens ou ‘ídolos’ pagãos, e que serviram, enquanto ‘ícones’, em questões de crença constantemente expressas em termos de não-visibilidade, de além, de Verbo divino... Este duplo paradoxo põe-nos imediatamente no âmago do problema: que devemos entender por figura no mundo cristão? ”

Por outras palavras, o que distingue essa figura do mundo cristão da esmagadora figuração clássica grega e helenística, o que distingue o εἰκών (ícone) cristão do εἴδωλον (ídolo) pagão, o que o separa dos retratos frontais e das figurações da vida quotidiana nos frescos de Pompeia, dos frescos e baixos-relevos dos sarcófagos romanos — questão tão genuinamente hegeliana, que sempre pôs em jogo a relação entre a manifestação artística e o espírito? O que emerge, no mundo cristão, que não tivesse já surgido antes dele? A resposta a esta questão é, aparentemente, simples: do ponto de vista da teologia cristã dos primeiros séculos, o que emerge nessa “nova” iconografia, que teima em se impor contra a iconoclastia mosaísta mas evita mal as acusações de idolatria, é a “figuração do infigurável”, a “visibilização do invisível”; essa nova iconografia tenta ultrapassar, sem a rejeitar, a representação mimética (condenada pela teologia porque produz ídolos), e instalar a figurabilidade da encarnação; se ainda procura a semelhança retratista com o modelo, o referente, privilegia a “verdade” figural do Verbo feito carne. E, na sua génese, como, precisamente, sabem os historiadores (Küng, 1994: 214-230), parte dessa “nova” figuração cristã, e sobretudo a sua discussão, é Oriental, embora ecoando por todo o Ocidente cristão, das contemporizações da igreja de Roma aos radicalismos da Europa carolíngia. As questões (anatemizantes e mortíferas) com ela relacionadas explodem em Bizâncio, sob o olhar atento das restantes Igrejas:

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“… Se as basílicas constantinianas e os seus mosaicos ainda eram comuns às Igrejas do Oriente e do Ocidente, os ícones (em grego eikôn, ‘imagem’) são o resultado de um desenvolvimento especificamente oriental. Este desenvolvimento ocorreu sobretudo nos séculos VII-VIII [segundo outros autores desde o séc. VI ou antes, como veremos, n.a.], quando as imagens já não desempenhavam apenas o papel de um piedoso memorial, mas eram objecto de uma veneração cultual : esperava-se delas que propiciassem o socorro do santo correspondente. Na época do Império Romano, toda a veneração de imagens era ainda tabu na Igreja (…). Eusébio, por exemplo, banira toda a representação figurada, inclusive da humanidade terrestre de Cristo (…). No final do séc. IV, Epifânio de Salamina ainda denunciava o culto das imagens, no qual só via uma nova forma de culto dos ídolos” (Küng, 219-220).

Objectar-se-á a Küng que a sua leitura se inscreve numa tradição que menospreza a importância da arte cristã de Roma, essa arte popular nascida da iconografia do Império, e que começou por recuperar desta última temas pagãos como as estações do ano (vida para além da morte), a fénix (ressurreição), os jardins (metáforas do paraíso), o navio, a palma. Fê-lo, primeiro como arte funerária — frescos das catacumbas, esculturas dos sarcófagos — ilustrando a commendatio animæ, depois nos baptistérios como em Dura Europos, e isto desde finais do séc. II e durante todo o III, quando surgem figurações do Bom Pastor (Ezequiel, XXXIV, 12; Lucas, XV, 4; João, X, 11), da Fracção do Pão na última ceia, dos ciclos de milagres de Cristo e de Pedro, pintados de modo ora “naturalista” ora “expressionista”. Tradição que menospreza, ainda, a arte cristã triunfal de finais do séc. IV e seguintes, nascida da liberdade de culto em 313, da oficialização do cristianismo por Teodósio I (379-395) e da fusão entre pax romana e pax christiana: a iconografia imperial, centrada na figura majestática do imperator ou basileus, desloca-se lentamente para a figuração do Cristo, que surge entronizado, Cosmocreator rodeado de assessores (e já não de discípulos), a quem transmite a traditio legis ; ou de pé, empunhando a cruz que simboliza a sua vitória. Nesse séc. IV, enquanto a capital do Império muda de Roma para Constantinopla, mas sobretudo nos séculos seguintes, e a Oriente, o vastíssimo programa de construção de basílicas, lugares de culto, martiria, baptistérios, financiado por donativos imperiais e da aristocracia recentemente convertida, propulsiona as artes visuais, encarregadas de decorar os novos espaços cristãos, agora triunfantes. De facto, no seio da orbis romana do séc. III e seguintes estabeleceu-se uma κοινή artística cristã, uma linguagem comum ao conjunto do Império (pensemos na arte copta e nos retratos frontais do Fayum, alguns do séc. I), e onde diversas influências regionais desempenham papel constitutivo. Dir-se-ia, parafraseando Hubert Damish, e por analogia com o conceito foucaultiano de epistemê, e o de paradigma de Thomas Kuhn, que entre Roma e Bizâncio se desenvolveu uma αἴσθησις entendida como “rede de vínculos estruturais e dos princípios reguladores, (…) dos meios técnicos (…), dos paradigmas formais e das semelhanças culturais e ideológicas, na qual se enreda a arte de uma época dada” (Damish, 1984: 37). A relevância de Bizâncio neste contexto prende-se com a natureza específica do ícone — objecto de culto também ali imposto pela crença popular — e por ser ali que vieram a extremar-se, durante o iconoclasma, as questões teológicas da figuração da divindade: o II concílio de Constantinopla dera, em 692, indicação para se figurar o Cristo “de acordo com o seu aspecto humano”. Mas essa determinação teológica terá propiciado mais idolatria — entre teologia e culto popular sempre houve um jogo do gato e do rato — e o conflito sobre a figuração do Deus-homem ganhou em seguida, no mundo bizantino, a maior amplitude histórica até então conhecida, exigindo a sua solução novas formulações

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teológicas, indispensáveis para sustentar a koinè artística e a consistência relativa da crença e suas manifestações.

Casal romano: pintura mural numa casa de Pompeia, século I d.C. A Virgem: catacumbas de Comodilla, Roma, séc. II d.C.

Tão vulnerável, desde o princípio, a tornar-se veículo de uma nova idolatria, com que argumentário veio a “figuração do infigurável”, a “visibilização do invisível”, a tornar-se idiossincraticamente cristã? A resposta a esta questão foi morosamente construída durante o iconoclasma bizantino, pelos teólogos iconófilos João Damasceno (n. circa 676, morte entre 754 e 787) o patriarca Nicéforo (758-829) e Teodoro Studita (759-826), cujas doutrinas dominaram a teologia em torno do segundo concícilo de Niceia, de 787, e depois dele (Parry, 1989: 164-183); e a sua chave-mestra é a seguinte: ao encarnar, o Deus infigurável e invisível tornou-se figura, visível. Como diz Didi-Huberman (loc. cit., 611), apoiando-se no evangelho de João: esse rochedo sobre o qual se ergueu toda uma crença, a encarnação de Deus em Jesus Cristo, tornou-se “na parada (enjeu) absoluta de toda a figuração”. No fundamental, toda a questão passou a residir no confronto entre os dois designativos, εἴδωλον (ídolo) e εἰκών (ícone): ídolo designando a totalidade das figurações que precedem a emergência e a socialização do cristianismo como aparelho de poder; ícone designando a imagem que figura a verdade da encarnação. Ídolo referindo-se às mil formas enganadoras da aparência; ícone referindo-se à aparição do novo factum que mudou o mundo, a natureza e o destino da experiência humana. Esta parada retórica, que hoje nos parece limitada a uma logomaquia elementar, estava destinada a inscrever-se, com numerosos avanços e recuos, na longa duração : Niceia II não pôs termo ao iconoclasma, e, quando este se extinguiu, seguiram-se, bem para além do cisma posterior, séculos de reiteração do argumentário conciliar: Bernardino de Siena (apud Huberman, id. ibid.) escreveria, ainda no séc. XV, na sua língua escolástica, e glosando ecos de João Damasceno em Bizâncio, que “o infigurável [se mostrou] na figura (...), o incircunscritível no lugar, o invisível na visão”. Mas a matriz da doutrina iconófila fora, de facto, estabelecida de forma simples pelo evangelho de João — o mais tardio dos quatro adoptados pelo cânone e muito distinto dos três sinópticos que o precederam —, na sua narrativa da última ceia, numa passagem de diálogo entre Jesus e Filipe (João, XIV, 8, 9, 10):

“Filipe disse-lhe: ‘Senhor, mostra-nos o Pai e isso bastar-nos-á’. Jesus disse-lhe: ‘Há tanto tempo que estou convosco e tu não me conheces, Filipe? Quem me viu, viu o Pai. Como podes tu dizer: ‘Mostra-nos o Pai’? Não acreditas que eu estou no Pai e que o Pai está em mim?’ ”

“Quem me viu, viu o Pai”. Ou seja: quem o viu, viu a consubstancialidade na encarnação. Inumeramente citada através dos tempos para fundar a visibilidade do Deus cristão tornado figura humana, esta passagem de diálogo da última ceia viria

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também a reiterar a importância do ver, do ver e crer , do ver para crer, do ver fundador de crença, no cristianismo — tão importante como a crença na ressurreição, diante da visão do túmulo vazio. A prevalência do ver sobre os restantes sentidos enraíza-se em Platão e desmerece a exigência háptica, táctil, de Tomé, o discípulo incrédulo que precisará de tocar a chaga, de pôr o dedo na ferida para acreditar. Esse ver é simultaneamente transcendente (exige que se veja através de, para além de...), mas ao mesmo tempo empírico e imanente (exerce-se nos limites da experiência). Transcendência e imanência não mais deixarão de se disputar no território da figuração e do visível : quando Niceia II diz que venerar uma imagem é venerar o protótipo, o referente nela figurado, foge à imanência para favorecer a mais conveniente transcendência (deve venerar-se, através da mediação da imagem, o que está para além, por detrás dela). A doutrina bem diz “Quem me viu, viu o Pai”, circunscrevendo ao Filho a visibilidade do primeiro. Mas para nele ver o quê? Em Roma, como na arte copta ou em Bizâncio, os pintores procuram e encontram, onde podem, as formas dessa nova figurabilidade — é esse o seu problema. Eles sabem, como Praxíteles e os retratistas de Pompeia ou do Fayum, que tal figurabilidade depende da imanência das formas que são capazes de propor, depende do que fica inscrito na materialidade da pintura; e que a transcendência é filha de uma teologia em apuros, incomodada pela imanência geradora de idolatria. A transcendência é uma poética de exegetas, que faz passar do não-ser ao ser uma interpretação; a imanência é uma poética vinda das τέχν α ι do artista, que faz passar do não-ser ao ser a obra propriamente dita, na sua materialidade. Está posta em cena uma inextinguível guerra de posições, onde transcendência e imanência se tornam antagonistas mortais, e que a encíclica Pascendi Domini Gregis, de 1907, ainda exprimirá, acusando os imanentistas de serem os principais fautores dos “erros do modernismo”. Transcendência e imanência sabem que, perdendo uma delas território face à outra, se arrisca a não ser senão a sétima face do dado que se imobilizou diante do nosso olhar. Frontalidade

Frontalidade — muitas vezes associada à imobilidade, à στάσις (stasis) do figurado — designa a vista frontal de figuras (designadamente humanas, mas também de animais e de objectos) numa obra de arte, e em primeiro lugar na pintura. O olhar frontal interpela directamente, “olhos nos olhos”, o do observador, seguindo-o quando este se desloca de um lado para o outro da figura pintada. Efeito especular, portanto, ou efeito das “máquinas de quatro olhos”, as de eye-to-eye contact, “rostos (…) ligados dois a dois” pelo olhar (Deleuze e Guattari, 1980: 208 e 217). A frontalidade tornou-se uma das questões que atravessam toda a reflexão sobre as imagens e as artes. No teatro, por exemplo, foi designada durante muito tempo por “facialidade”, por pôr frente a frente o actor, portador de ficção, e o espectador que o encara (Mervant-Roux, 2008). Na antiguidade romana tardia, na pintura paleocristã, nos retratos funerários do Fayum, mas também nos ícones bizantinos, na pintura carolíngia, o olhar frontal da figura pintada significou sucessivamente a boa índole do cidadão figurado, a afirmação de um protagonismo relevante, e depois santidade, ou omnisciência, ou que estamos diante do imperador, do monarca, hieraticamente figurados. Como se sabe, a frontalidade não é universal — a cabeça de perfil foi, no Egipto antigo, dominante na figuração de deuses e homens, embora com excepções (retratos funerários, precisamente); e há exemplos de frontalidade na figuração de deuses em vasos gregos, mas também de modo não dominante.

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Antes, porém, de convir à santidade, ao Deus-homem ou ao imperador, a frontalidade pictural serviu para exprimir a pessoa, o homem ou a mulher assim figurados, como se nos olhassem e nos interpelassem directamente. Paul Veyne abre a sua introdução ao “Império Romano” (loc. cit: 20-21) comentando o retrato frontal de um casal, encontrado em Pompeia, portanto anterior a 79 d.C., na casa dita de Terentius Neo — retrato semelhante aos do Fayum, no Egipto romano — e que, na lenta transição do paganismo helenístico e de Roma para o cristianismo, parece prefigurar a passagem do “homem cívico” ao “homem interior”:

“Com eles quebra-se o gelo: para os conhecer basta olhá-los nos olhos; eles próprios nos olham dessa maneira. Não é em todas as épocas que a arte do retrato admite uma tal troca de olhares. Este homem e esta mulher não são objectos, na medida em que nos vêem. (…) São o que nós somos e os olhares trocam-se, em igualdade, por um valor comum. (…) Este homem e esta mulher eram suficientemente ricos para se fazerem pintar. Só na aparência são simples indivíduos; este retrato, que poderíamos tomar por um instantâneo, fixou, como por acaso, as suas identidades [como] tipos individualizados de uma sociedade que se quer, simultaneamente, natural e ideal. O instante coincide com uma verdade sem idade e o indivíduo é uma essência”.

Séculos mais tarde, quando, experimentada pelo cristianismo desde as catacumbas, a frontalidade já adquiriu um claro valor religioso, passamos a vê-la proliferar em frontispícios de sacramentários, livros de salmos, leccionários: entre mil exemplos possíveis, veja-se Lucas no Evangelho de Stº. Agostinho ou de S. Cuthbert de Lindisfarne (século VII), o mesmo Lucas nos Evangelhos de Chad ou de Lichfield (circa 700). Como atributo de poder espiritual ou imperial, a figuração frontal, que se estende do séc. I d.C. romano até à Bizâncio pós-iconoclasma, ver-se-á revitalizada pelo revivalismo romano dos séculos IX e X, estendendo-se aos carolíngios e aos ottonianos. O seu uso em pintura foi por vezes descrito como exprimindo insuficiência técnica por parte do artista — o que é manifesto em parte da pintura das catacumbas e mesmo da arte paleo-cristã no seu conjunto, e se estenderá até Bizâncio e aos alvores da Idade Média — mas Arnold Hauser (2003: 35) respondeu a esta crítica desde 1951:

“A atribuição da frontalidade à ausência de capacidade técnica básica pode justificar-se em certa medida, mas o obstinado regresso a esta técnica, mesmo em períodos onde não estão em causa limitações involuntárias da intenção artística, exige outra explicação. Na representação frontal da figura humana, o virar para a frente da parte superior do corpo exprime uma relação directa e definida com o observador (...) A antiga arte oriental (...) estabelece uma aproximação directa com o sujeito receptor: é uma arte que ao mesmo tempo pede o respeito do público e mostra respeitá-lo”.

Comentando a figuração frontal do rei Harold na tapeçaria de Bayeux, Howard Bloch (2007) anota que a sua função é “ver e ser visto”, em contraste com a multidão dos restantes figurados, de perfil ou a três quartos, todos eles envolvidos na acção: “como na arte bizantina, a figuração de perfil é adequada à acção, enquanto a frontal se apropria ao sagrado”, ao poder imperial e à sua representação majestática, como nos mosaicos de Justiniano e Teodora. Salienta o mesmo autor (loc. cit.):

“Os mosaicos [bizantinos] incorporaram um sistema moral em que a frontalidade era reservada aos santos e os perfis às figuras satânicas — Satanás na Tentação, Judas na Última Ceia ou traindo no horto das oliveiras. Como observou Otto Demus, (2008) o olhar dos moralmente abjectos ‘não devia cruzar-se com o do observador’: a teoria iconográfica e o medo popular do mau olhado andavam de mãos dadas”.

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Estádio do espelho, Gaze A experiência da frontalidade — o olhar do outro que se fixa e se projecta em nós a partir da sua imagem frontal — remete directamente para a herança do “estádio do espelho” (stade du miroir) lacaniano, o processo em que a criança percepciona a sua própria imagem no espelho, vendo inicialmente nela um desconhecido mas identificando-a depois como sua. Deste modo, antecipa a apreensão e o domínio da sua unidade corporal e concretiza a sua individuação como sujeito/corpo separado dos outros mas vivendo entre outros. O processo decorre entre os 6 e os 18 meses de vida, precedendo a coordenação motora. Retomando, em 1949, um seu primeiro texto de 1936 sobre o mesmo tema, escreve Lacan :

“Basta entender o estádio do espelho como uma identificação no sentido pleno que a análise dá a este termo: a saber, a transformação produzida no sujeito quando este assume uma imagem — cuja predestinação, para efeito de fase, é suficientemente indicada pelo uso, na teoria, do termo antigo de imago. A assunção jubilatória da sua imagem pelo ser ainda mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação, que o pequeno homem é nesta fase infans, parece-nos, assim, manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica onde o eu se precipita numa forma (gestalt) primordial, antes de se objectivar na dialéctica da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, a sua função de sujeito” (Lacan, 1949: 449-455).

Poucas linhas depois, referindo-se de novo à imago especular, Lacan sublinhará a sua eficácia simbólica (expressão que toma de empréstimo ao Claude Lévi-Strauss de "L'efficacité symbolique", Revue d'histoire des religions, Janeiro-Março de 1949) e dirá que ela parece constituir o limiar do mundo visível :

“No que toca às imagos (...), de que é privilégio nosso vermos perfilarem-se, na nossa experiência quotidiana e na penumbra da eficácia simbólica, os rostos velados, a imagem especular parece ser o limiar do mundo visível” (id. ibid.).

Ora, se é na imagem especular do sujeito que se funda, para este, o mundo visível, isso significa também que é nela que se funda a posição de spectator de cada um de nós. É por esse motivo que numerosos autores passaram a admitir que, depois de Lacan, a reflexão sobre as artes, designadamente sobre a escultura, a pintura, a fotografia e o cinema, mudou — porque ele influenciou de modo decisivo todos os estudos em spectatorship. A dinâmica dos mimetismos homeomórficos e heteromórficos (o eu torna-se semelhante a outros e procura nos outros semelhanças consigo mesmo) é simultaneamente, dirá ainda Lacan, “formativa” e “erógena”, perpetuando a sua matriz cognitiva e libidinal.

Mais especificamente, os escritos lacanianos sobre o “estádio do espelho” tiveram repercussão directa na teoria fílmica a partir da década de 70 do século XX (Metz, 1975: 3-55 e 108-135), por se ter entendido que a imagem especular fundava globalmente o olhar, o “look”, the Gaze (originalmente o olhar fixo, intenso, deliberado que enfrentamos nas representações frontais — o gaze of direct adress —, ou que o spectator usa, por seu turno, para retribuir esse olhar ou para ver alguma coisa), mas que passou mais genericamente a designar as diversas formas de olhar, incluindo a de um autor (de imagens) em determinada obra. Este Gaze envolve também as relações de poder que ele próprio estabelece, como anota Jonathan Schroeder (1998: 208) :

“To gaze implica mais que olhar para — significa uma relação psicológica de poder em que o gazer é superior ao objecto do gaze”.

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Nas suas Notes on the Gaze, escritas para estudantes interessados em analisar as funções do Gaze nos media visuais, Daniel Chandler (1998) cita James Elkins (1996: 38-39), que descreve muito cinematograficamente os diversos tipos de gaze presentes quando visitamos uma exposição de pintura figurativa numa galeria de arte ou num museu:

“O meu, que olho para certa pintura; o da(s) figura(s) da pintura que olham para mim; o das figuras da pintura que olham umas para as outras; o de figuras da pintura que olham para objectos, ou têm o olhar fixo em algo exterior ao quadro, ou têm os olhos fechados; para além destes também se contam, frequentemente, o olhar do guarda da galeria ou do museu, que pode estar olhar para a minha nuca; os olhares das outras pessoas presentes, que podem estar a olhar para mim, ou umas para as outras, ou para as pinturas; e há outros olhares imaginários que rondam por ali: o do artista vendo a sua pintura; o dos modelos das figuras dos quadros, que se devem ter visto a si próprios ali figurados; o de todos os outros que viram aquela(s) mesma(s) pintura(s) — curadores e directores da galeria ou museu, compradores, etc.; e finalmente o das pessoas que nunca viram aquela(s) pintura(s) no original, mas a(s) pode(m) conhecer de reproduções ou descrições”.

Os tipos de Gaze estabelecem um código social/cultural do olhar: as crianças são ensinadas a encarar um familiar próximo para o ouvir, mas a não fixarem o seu olhar em estranhos; num qualquer lugar público, olhar fixamente alguém é geralmente entendido como atitude agressiva ou socialmente inadequada; em certos povos mantêm-se hábitos de não olhar directamente para certos parentes (por exemplo, um homem não deve olhar nos olhos a sua sogra); em certas relações hierárquicas, é proibido ou desaconselhado o olhar frontal dirigido a quem nos interpela; existem, assim, numerosos tabus do olhar, interiorizados pela generalidade dos actantes sociais como normas explícitas ou implícitas circulantes nas sociedades de controlo. E qualquer olhar (e sua duração) é qualificado como ocasional, ausente, abusivo, intrusivo, carinhoso, agressivo, etc., muitas vezes em conformidade com a qualificação da expressão facial correspondente. No mundo fílmico, a diversidade do Gaze é assumida, em primeiro lugar, pelo seu vocabulário técnico: falamos de gaze do spectator (o olhar do espectador dirigido à imagem no seu conjunto, ou à de uma pessoa, animal ou objecto em particular); de gaze intra-diegético (o olhar de uma personagem, ou animal, ou objecto, dirigido a outra ou outro); de direct gaze (o olhar frontal de uma personagem, ou animal, ou objecto, para a câmara); do olhar da câmara, do realizador ou do cameraman (o modo específico como a câmara vê pessoas, animais, objectos ou paisagens); de editorial gaze (o tipo de olhar “institucional” globalmente considerado, que inclui e determina a diversidade dos olhares que caracterizam o filme), etc. Temas e personagens Regressemos um passo atrás, aos primeiros tempos do cristianismo: à passagem da invisibilidade do Deus do Antigo Testamento à visibilidade do Verbo feito carne acrescentava-se, nas narrativas evangélicas, a dramaturgia das diversas figurações humanas de Jesus — do jovem que caminha sobre as águas e expulsa os vendilhões do templo ao corpo martirizado do crucificado no Gólgota, depois novamente transfigurado pela vitória sobre a morte e tornado corpo glorioso, luminoso, pronto a regressar ao Pai. Diz ainda Didi-Huberman (loc. cit., id. ibid.):

“O que o cristianismo no fundo procurava, nesta parada paradoxal da figuração, era ultrapassar os deuses demasiado visíveis do paganismo greco-latino e o Deus demasiado invisível da religião hebraica”.

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A narrativa evangélica da transfiguração, por exemplo, exprime bem o modo como esses textos propuseram visualizações seguras da encarnação divina. Em Lucas (IX, 29-32), Jesus tinha subido a montanha para rezar, levando com ele Pedro, João e Tiago, que, naturalmente, adormecem. Eis o que segue:

“... Aconteceu que, enquanto ele rezava, o aspecto do seu rosto se tornou outro, e a roupa que vestia [se tornou] de uma brancura fulgurante. E eis que dois homens conversavam com ele: eram Moisés e Elias, que, aparecidos em glória, falavam da partida dele e do que ia fazer em Jerusalém. Pedro e os seus companheiros tinham adormecido. Acordando, viram a sua glória e os dois homens junto dele”.

Cedo, desde os séculos III e IV, as figurações do Cristo ou da Virgem viram-se acompanhadas pelas de outras personagens das escrituras e de santos. Frescos proliferaram nas catacumbas romanas e depois nas basílicas. Em Bizâncio, bem antes do iconoclasma, as igrejas penduravam ícones nas colunas e pilares, nas paredes, ou expunham-nos já em capelas ou na προσκυνησις (proskinetarion), no coro — onde se punha o ícone do santo do dia. O que se passou antes da vitória da Εικονοστάσις (iconóstase), antes de as δέησις (deísis) monumentais (o Cristo ou a Virgem frontalmente representados entre duas outras personagens), por vezes alargadas a outras figuras (arcanjos, apóstolos), ou rodeadas de cenas do δωδεκάεδρον (dodecahedron, representação das doze festas do ano litúrgico), ou de episódios das vidas de santos, terem dominado os interiores dos templos? Para se operar esse enorme movimento de báscula, as figurações populares do visível e do invisível tiveram de ser “desanatemizadas” e “salvas”, viveram um longo rito de passagem, tiveram de ser “baptizadas” e de exorcisar a sua condenação inicial, para passarem de teologicamente mal-toleradas a sacramentalmente ungidas, a formas dominantes associadas ao culto. Vimos que a narrativa evangélica da encarnação tornou possível a passagem do invisível ao visível. E suscitou outra, ela própria eminentemente figurável, que contava o drama do Deus-homem multiplicando as personagens nele envolvidas — e dando origem a imparáveis figurações da anunciação, da madona com o menino, do baptismo às mãos de João Baptista, da transfiguração, da prédica e dos milagres, da ressurreição, da ascensão, bem como a retratos dos apóstolos, e mais tarde a figurações da prisão e flagelação, da crucificação, da pietà. Todos estes temas picturais não nasceram, naturalmente, em simultâneo, antes foram chamando uns pelos outros, porque eram elementos, episódios sequenciais da mesma narrativa — os mais tardios são os relativos à paixão e morte. Mas, uma vez picturalmente activados, todos e cada um deles não mais deixaram de se inscrever, ao longo de séculos, na ilustração da boa nova, num formidável mecanismo de repetição anamnésica que revela, a diversos títulos, o seu carácter a um tempo instituinte e obsessional. Papel dos acheiropoietos A tradição fez remontar a Lucas evangelista as primeiras pinturas de ícones (lembremos os S. Lucas pintando a Virgem de Guercino, Mabuse, Van Heemskerk, do quadro de Czestohowa, etc.), e multiplicou as referências a imagens de origem miraculosa, ditas ἀχειροποίητος (acheiropoietos), “não feitas pela mão humana”, como na lenda da Santa Face de Edessa, atribuída ao próprio Cristo, que teria “impresso” o seu rosto num pano, entregando-o a um pintor, Hannan, para ser enviado ao rei Abgar; a imagem terá, em 544, salvo a cidade de uma investida persa. Chegaram até nós outras histórias de acheiropoietos, todas elas dando testemunho de extraordinários feitos das imagens. Noutra versão da Santa Face, o rosto do Cristo foi

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milagrosamente gravado no véu de Verónica (Vera-eikon, Vera Icona) durante a subida para o Calvário. De um ponto de vista conceptual, esta imagem frontal do rosto suado e ensanguentado do Cristo, “gravada” no véu de uma virgem piedosa, é a matriz de toda a figuração icónica cristã, associada à dor, ao sangue e ao sacrifício, e geradora de uma obsessão penitencial, oposta à mimesis diabólica geradora da libido spectandi, a “pulsão de ver” idólatra e associada ao scandalum. Diz, noutro texto, Didi-Huberman (1989: 65-73):

“Quando Clemente de Alexandria [no fim do séc. II] pronuncia o seu anátema, que parece definitivo, contra as obras de arte — cujo modelo podia ser a Afrodite de Cnido, a célebre escultura de Praxíteles — fá-lo porque a sua beleza torna os homens érôtikoi, servos de um desejo do corpo, tanto mais perverso quanto tal desejo se manifesta por uma matéria inerte, feita como um engano, uma mentira (Protreptico, IV, 57). E quando Tertuliano [no mesmo período], declara idólatra todo o prazer de ver ou de ser visto — por exemplo, no teatro — fá-lo porque ‘toda e qualquer forma, grande ou pequena’ (omnis forma vel formula idolum se dici exposcit) é obra do diabo, ou seja, ídolo do paganismo” (cf. De idolatria, III, 1-4, e De Spectaculis, X, 1-13).

Não pintados por mão humana, os ἀχειροποίητος tinham a vantagem de serem parentes das verdades reveladas. Mas a proliferação de artífices nos mosteiros cedo concorreu com eles e os venceu: nos séculos VI e VII, em Bizâncio, os ícones já tinham invadido a devoção popular, que os exigia e neles se revia (nos séculos anteriores a igreja ainda fora sobretudo hostil à figuração, pelo menos “oficialmente”, apesar da importância crescente da arte popular de Roma no séc. III, e da arte triunfal do final do séc. IV e seguintes, que referimos atrás). Em sintonia com os especialistas da época, Küng confirma que o culto das imagens fora imposto “a partir de baixo”, pela crença popular, e que a teologia, “com as suas teorias da encarnação de Deus em Cristo”, e legitimando a pintura do divino na sua forma humana, tentou justificar retrospectivamente esse culto e corrigi-lo (loc. cit., 220). Diz ele, referindo-se tanto aos acheiropoietos como às devoções banalizadas e ao dilema teológico da ecclesia, espartilhada entre iconoclastas e iconófilos :

“Negar a possibilidade de representar Cristo equivalia a negar a encarnação (…). Foram sobretudo os monges que deram origem à nostalgia (…) do povo, que desejava ver e tinha sede de ajuda, que pretendia tocar com os dedos na graça e nos milagres (…). Atribuíam-se aos ícones milagres de todas as ordens : podiam curar doentes, ressuscitar mortos, expulsar demónios ou até intervir nas guerras, devolver as flechas ao seu lançador e perturbar o funcionamento dos dispositivos do assédio inimigo” (loc. cit.: 224).

Os ícones já então eram imagens portáteis que se passeavam em procissões, se levavam de viagem, em peregrinação ou para a guerra, para ali exercerem os seus poderes, para além de se exporem nas casas e nas lojas. No seu uso menos excessivo, mantinham viva a memória de um santo, instruíam os fiéis nos grandes episódios do Antigo e do Novo Testamentos. Não admira, assim, que o tema da superstição e da idolatria — que virá, como se sabe, a estar na origem do iconoclasma — seja recorrente nas abordagens de especialistas, associando-se aos restantes enfoques da questão. Diz, por sua vez, Catherine Jolivet-Lévy (1989: 879-883):

“Investidos, como as relíquias (...), de poderes sobrenaturais, os ícones são usados como objectos mágicos. (...) A distinção entre imagem e protótipo (a personagem representada) tende a apagar-se. (...) A multiplicação dos ícones nos séc. VI e VII, o culto cada vez mais fervoroso que lhes é prestado, ligado à crença na presença quase física da pessoa representada (...), conduzem a numerosos excessos. Desenvolvem-se práticas supersticiosas onde alguns vêem o regresso à idolatria”.

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No mesmo sentido argumenta Küng (loc. cit.):

“Desde os séculos V-VI, o mundo cristão oriental já não tinha qualquer escrúpulo em acender velas ou lâmpadas diante das imagens, na igreja ou dentro de casa, em queimar incenso, em beijar as imagens, em lavá-las liturgicamente, em vesti-las ou em ajoelhar-se diante delas — como era usual, noutros tempos, entre os não-cristãos”.

A doutrina de Niceia II Demoremo-nos pois, e por instantes, no iconoclasma: contra o regresso da idolatria pela mão da iconografia cristã, os imperadores iconoclastas de Constantinopla, apoiados em alguns bispos da Ásia Menor, ordenam a destruição e interdição das imagens de Cristo, da Virgem e dos santos entre 725 e 843 (com um breve intervalo que já referiremos) — embora os ícones tenham continuado a ser feitos clandestinamente no território imperial, ou livremente no Egipto, Síria, Palestina. Sabemos pouco sobre as motivações históricas do iconoclasma (Gouillard, 1989: 885-886): influência do Islão e do seu “aniconismo”, do judaísmo sempre próximo? Manobra de controlo de tropas estacionadas na Ásia Menor onde a iconoclastia era mais popular, associada a jogos de redistribuição de poderes na capital? Certo é que o édito de 725 do imperador Leão III condena sobretudo as representações icónicas do Cristo, poupando e exaltando a cruz nua, e invoca como argumento de autoridade a condenação dos ídolos por Moisés e outros patriarcas e profetas. O édito, entendido como herético em Roma e em Jerusalém e pelo próprio patriarca Germano, que abdica, abre a porta a um vasto período de perseguições violentas de que serão sobretudo alvo monges pintores e suas ordens monásticas, tratadas de idólatras, e que ao longo da crise emigrarão para Chipre, para a Crimeia e para Roma. O que está em causa é a superstição herdada do paganismo, mas sobretudo a perigosa indistinção entre a figura pintada e o seu modelo ou referente, que o ícone torna presente ou “quase-presente”. Niceia II restabelece temporariamente o uso das imagens, relegitimando-as por direito de tradição, e porque o seu culto — como explicitam, incansavelmente, os teólogos iconodulos, ou iconófilos dos séculos VIII e IX — não as tem a elas por objecto, mas sim aos seus modelos (assim se afastando os ícones cristãos dos ídolos do paganismo). A doutrina de Niceia é aceite pelas Igrejas (à excepção da carolíngia), mas anos depois, em 813, o exército traz para o poder um novo imperador vindo da Ásia Menor, que restabelece o iconoclasma. Entretanto, porém, os teólogos iconófilos tinham fixado a doutrina da veneração (e não da adoração) dos ícones, dirigida ao protótipo, cuja presença era garantida pela imagem. Recordem-se os termos em que o concílio autorizou o culto, embora sem pôr termo à querela, que se manteve por mais meio século (Denzinger, 1854; Küng, op.cit., 223-224):

“Quanto mais se olhar (...) para estas representações figuradas, mais os que as contemplarem serão levados a recordar-se dos modelos originais, a aspirar a eles e a testemunhar-lhes, ao beijá-los, uma veneração respeitosa [timetikê proskinesis], sem que seja uma adoração [latreia] verdadeira segundo a nossa fé, que só convém a Deus e a mais ninguém. Mas, do mesmo modo que se faz para a imagem da cruz preciosa e vivificante, para os Santos Evangelhos e para os outros objectos e monumentos sagrados, ofertar-se-á incenso e luz em sua honra, segundo o piedoso costume dos antigos. Com efeito, a reverência prestada a uma imagem remonta ao modelo original [prototypos] (Basílio, o Grande). Todo aquele que venera uma imagem venera nela a realidade que aí está representada”.

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É a reafirmação do ver transcendente de que falámos atrás. Escreve, por sua vez, Jolivet-Lévy (loc. cit.), em termos que revelam a subsistência do paradigma da representação mimética e da semelhança (Belting, 1994):

“Ícone e protótipo [ou modelo] não são da mesma essência, mas estão ligados pela semelhança [itálico nosso]. Da concepção do ícone, reflexo do protótipo e veículo da energia divina, decorrem as principais características da arte dos ícones: fidelidade a tipos iconográficos consagrados pela tradição e adopção de um estilo hierático, espiritualizado, apropriado a exprimir a presença do sagrado”.

Consagrados pela tradição: em grande parte, os pintores inspiravam-se uns nos outros, procurando em predecessores figurações a que se mantivessem fiéis. Küng chama a atenção, de passagem, para um importante argumentário néo-platónico vindo em apoio da reconciliação entre teólogos e devoção popular, e que estipulou a participação da imagem no seu protótipo divino :

“A veneração de que se rodeava a imagem dirigia-se ao original : ela visava, em realidade, Cristo, Maria ou os santos… Explicava-se agora isto em linguagem platónica : a imagem feita pela mão do homem participava [sublinhado nosso] do seu original divino. (…) Quem beija o ícone, diz-se agora, beija Cristo e os santos em si mesmos, cuja potência e graça estão presentes na imagem” (loc. cit.).

Argumentando a favor dos ícones contra o iconoclasma, escreveria João Damasceno, cujos escritos são um contributo maior para a inscrição da cultura iconófila (é esta sua fórmula que já encontrámos, reescrita por Bernardino de Siena, no séc. XV) :

“Visto que o invisível, tendo-se revestido da carne, apareceu visível, podes figurar a semelhança do Cristo que se fez Teofania”.

Figurar “a semelhança”: mas com base em que protótipo, se em Roma se chegara a pintar o Cristo, no séc. IV, como um jovem imberbe de cabelos claros e encaracolados (como em muitas figurações do Bom Pastor ), e se esse jovem imberbe, que nos encara com os seus grandes olhos, exigindo o double gaze, é ainda o “Cristo entronizado” pintado por Godesclac (parente de Carlos Magno), em 781-783? Para fixar um modelo e na tentativa de o impor, o próprio João Damasceno descreveria nos seguintes termos a figura do salvador, em que alguns dos nossos leitores reconhecerão as imagens sobrevividas até à catequese da sua infância, e as figurações do Cristo preferidas por Hollywood :

“Estatura elevada, abundantes sobrancelhas, olhos graciosos, nariz bem proporcionado, cabeleira encaracolada, atitude levemente curvada, tez distinta, barba escura, rosto trigueiro como o da Virgem, dedos longos, voz sonora, palavra suave. Extremamente agradável de carácter, ele é calmo, resignado, paciente, cheio de todas as virtudes que a razão figura num Deus-homem” (Marcadé, 1989: 744-750).

O teólogo ditava, assim, ao artista, as formas convenientes do que havia a figurar, impondo-lhe o protótipo inventado mais aconselhável e também, já então, mais frequente, e mais copiado pelos pintores. Na Igreja ocidental circulou, por seu turno, uma carta apócrifa de Lentullus, pró-consul da Palestina, ao Senado de Roma, onde o Cristo era descrito nos seguintes termos:

“Homem de estatura elevada, delgado, de face severa e cheia de virtudes (...). Cabelos cor de vinho: caem, até às orelhas, em anéis sombrios; das orelhas aos ombros, são ondulantes e brilhantes; dos ombros à cintura, partem-se em duas metades, como o usam os nazarenos. A testa é alta e pura; o rosto, liso e levemente avermelhado; o seu porte é doce e carinhoso; o nariz e a boca são perfeitos; a barba é espessa, da cor dos cabelos; os olhos são azuis claros” (id. ibid.).

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A principal excepção à adopção da doutrina de Niceia II, é, temporariamente, a de Carlos Magno, cabeça da Europa carolíngia, que faz frente aos iconófilos de Bizâncio e rejeita a veneração das imagens — o que sugere a repercussão, no mundo cristão dos séculos VIII e IX, do que estava em causa no iconoclasma oriental. Nos termos de Didi-Huberman (“Art et Théologie”, loc. cit.):

“...Em 790, Carlos Magno em pessoa fazia explodir um novo imbroglio teológico-político, recusando as conclusões do concílio de Niceia (...) ‘porque não foi com pintura que o Cristo nos salvou’ (Libri carolini, II, 28). E o bispo Cláudio, de Turim, no início do séc. IX, levou esta postura ao excesso, mandando destruir todas as imagens nas igrejas, mandando queimar cruzes e condenando o culto das relíquias. Casuisticamente, a Igreja romana tentava reprimir a intransigência iconoclasta, sem, porém, elaborar uma verdadeira defesa teológica da imagem comparável à que os ‘iconodulos’ bizantinos (...) se tinham encarniçado em erguer. O papa, em geral, contemporizava, tentava ser ‘realista’ e fazia por impor uma posição intermédia entre os riscos de comportamentos idólatras, por um lado, e as heresias iconoclastas, por outro”.

Se inicialmente o cristianismo herdara a interdição mosaísta das imagens, se Clemente de Alexandria e Tertuliano na sua Cartago tinham expresso, com extrema violência, o ódio ao mundo visível, o II Concílio de Niceia, cinco séculos depois, e ainda o Grande Concílio de Moscovo, de 1666-1667, voltaram a distinguir a figuração autónoma do Pai, radicalmente inacessível e “fonte” da divindade, e a do Filho, sua “imagem”, mantendo a interdição da primeira (interdição por vezes violada nas igrejas “ocidentais”). De iconoclasma em iconoclasma, o ícone foi-se rejustificando com base na cristologia : o Deus do Antigo Testamento manteve-se infigurável; o do Novo, o da boa nova, ofereceu aos homens a sua imagem encarnada. Entre iconoclastas e iconófilos, a teologia cristã regulou, em parte, os primeiros séculos da figuração iconográfica, tentando mantê-la obediente à exegese autorizada mas cedendo à fome de “imagens santas” da devoção popular. Apesar da vitória teológica aparentemente irreversível dos iconófilos de Bizâncio, a questão atravessou grande parte da história da figuração: a Reforma viria a gerar, no séc. XVI, um novo iconoclasma, desta vez no coração da Europa. Dir-se-á que, então, na luta dos reformadores contra Roma e a sua teologia, no seu combate à corrupção, às indulgências e ao culto dos santos, ao purgatório, aos sacramentos, ao estatuto da Virgem, a questão das imagens foi relegada para segundo plano. Mas Lutero proibiu o seu culto (embora não o seu uso), Zwingli mandou-as queimar e o rigor de Calvino contra elas é iniludível. Agrafagem aos nomes Regressemos aos séculos da consagração dos ícones; ao socializarem a multidão infinitamente fértil das figurações de santos, de episódios narrados nas sagradas escrituras, as “artes visuais” cristãs, tanto as eruditas como as populares, desempenharam outro papel fulcral no relacionamento com as verdades reveladas e com os textos sagrados : permitiram alargar o estreito espaço da sua exegese, exercida na língua policiada dos sucessivos aparelhos sacerdotais e abrindo, em seu torno, espaços de alegoria menos controláveis, porque precisamente produziam imagens, e não mais palavras, que era indispensável manter na sua literalidade, embora interpretadas. Para disciplinarem as suas figurações, diversas e sucessivas gerações de exegetas tentaram garantir o policiamento do sentido, obrigando as imagens a articular-se intimamente com os textos, nomes e palavras das escrituras. De facto, por um largo período que vai até à Renascença, as imagens passam a estar literalmente agrafadas às palavras das escrituras, passam a inscrever em si essas palavras.

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Essa associação imposta entre palavras sagradas e imagens por sagrar constituiu, assim, outro motor e outra novidade da figuração : o Verbo tinha-se feito carne, as imagens davam a ver um e outra; as artes visuais cristãs modificaram a legibilidade das escrituras a partir de dentro, fundindo-se com elas e interpretando-as figuralmente, ora em aliança com a polícia exegética, ora furtando-se subrepticiamente a ela, por vezes em matérias e representações estritamente marginais. Um exemplo forte das margens exploradas pela iconografia menos controlada pela exegese é a proliferação de apocalipses medievos (mas que se mantém até finais do séc. XV e até mais tarde), profusamente ilustrados, sobrecarregados de desenhos tão delirantes e cifrados quanto os textos que ilustram, recheados de bestiários fantásticos e de monstros imaginários. Como recorda Didi-Huberman (“Puissances...”), S. Boaventura viria, no séc. XIII, a consagrar a impressão, poderosamente deixada pelos textos sagrados, de que estes são a “floresta das florestas”, tantas vezes enigmáticos, acroáticos e indecifráveis nos seus quatro sentidos — historia, allegoria, tropologia, anagogia —, revelados por um Outro ele próprio indecifrável e pouco cognoscível. As imagens do cristianismo também se impregnaram desses quatro sentidos e se tornaram elas próprias narrativas, alegóricas, tropológicas e anagógicas. A intimidade entre palavras e imagens sob a égide e o poder da nominatio, tão característica das iluminuras e da figuração cristã medieval, a Oriente e a Ocidente, é comentada do seguinte modo por Didi-Huberman (loc.cit.) :

“A exegese tradicional tem até diversos termos técnicos, entre os quais o de litteratio, para designar esse incessante trabalho de florescimento figural em torno de um nome. Alberto o Grande e os seus discípulos, por exemplo, consagraram livros inteiros — entre os quais um De laudibus beatae Maria de cerca de duas mil colunas in-quarto — ao elogio figural do nome e das qualidades da Virgem. Também os nomes do Cristo ou da cruz obcecam a exegese e engendram, nela, um mundo proliferante de imagens e igualmente de cálculos numerológicos, de poemas ‘figurativos’, de cantos e de gestos rituais. O famoso De laudibus sanctæ crucis, de Raban Maur, composto no séc. IX, é também significativo a este respeito, articulando letras e números, acrósticos e palíndromos, cores e trajectos geométricos... com o único objectivo de invocar o nome de Cristo”.

Aura, técnica, estética Dificilmente encontraremos arte mais deliberadamente aurática do que essa que proliferou entre os séculos II e III e os séculos IX e X, como koinè de uma aisthesis partilhada e fruída, no Mediterrâneo oriental, em Roma e no Egipto, nas ilhas gregas e na Síria, até Bizâncio. A começar pela literalidade das auréolas ou nimbos circulares de luz branca que rodeiam a cabeça da Virgem nas catacumbas de Comodilla (Roma, séc. II), do Cristo Alfa e Ómega no mesmo local (séc. IV), e que depois encontramos até aos ícones bizantinos, partilhadas por anjos e santos. Mas, sobretudo, esta arte manifesta de modo quase excessivo a aura benjaminiana, “aparição única de um longínquo, qualquer que seja a sua proximidade” (einmalige Erscheinung einer Ferne, so nah sie auch sein mag), ao longo dos séculos que separam os ícones paleo-cristãos de Andrei Rublev. Tome-se, do Benjamin (1931; 1936), o observador de certa paisagem e o sentimento que o assalta durante a contemplação, e que não se reproduzirá a não ser por anamnésia de uma experiência única:

“Que é, em suma, a aura? Uma trama singular de tempo e de espaço : aparição única de um longínquo, por mais próximo que esteja. O homem que, numa tarde de Verão, se abandona a seguir com o olhar o perfil de um horizonte de montanhas ou a linha de um ramo que sobre ele deita a sua sombra — esse homem respira a aura dessas montanhas, desse ramo” (loc. cit.).

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As imagens ou esculturas nascidas mágicas e depois integradas em cultos religiosos, e das quais se esperava que manifestassem a divindade, alimentavam, próximas porque eventualmente se lhes podia tocar, mas longínquas porque manifestavam uma deidade que as ultrapassava, essa ambiguidade intrínseca à definição benjaminiana. Próximas porque abertas à comunicação háptica, táctil; mas longínquas porque suscitavam a nostalgia, a melancolia diante do que apenas se ouve longe, diante do que se afastou, diante do que há-de vir mas mais tarde, sempre mais tarde — uma nostalgia e uma acédia constitutivas da parousia cristã (a espera pela segunda vinda do Cristo). A propósito das teknai artísticas propriamente ditas, e dos procedimentos concretos dos pintores, Jolivet-Lévy (loc. cit) recorda que, em Bizâncio, a encáustica — mistura de pigmentos coloridos em cera derretida — foi a técnica característica dos séculos VI e VII, cedendo depois lugar à têmpera — diluição de cores em água e ovo — a partir do séc. VIII. O trabalho começava pela escolha da madeira, sobre a qual se colava a tela e um indumento de gesso. O esboço da figura ou da cena era então desenhado (mais tarde, marcado por incisões), dispondo o pintor de cadernos de modelos onde se inspirar (manual de Denis de Fourna, podlinniks russos). Sobre um primeiro fundo avermelhado aplicava-se um segundo de ouro, e só então a pintura se iniciava. No final, acrescentava-se o nome do santo ou da cena, aplicava-se um verniz protector, e trabalhava-se eventualmente a moldura ou o estojo de prata, por vezes decorados com incrustações de esmaltes e pedras preciosas. Posteriormente associada à relegitimação das imagens consagrada em Niceia, estabilizara-se também uma estética do ícone, posta em evidência, entre outros, por Olivier Clément (1989: 884-885):

“Redução interiorizante das orelhas e da boca, testa dilatada e luminosa, pescoço inchado pelo Sopro vivificante, rosto tornado ‘todo ele olhos’ (Corpus macarianum), ou seja, pura transparência, representação sempre frontal (...), tudo indica um ser tornado, a um tempo, ‘oração pura’ e puro acolhimento. (...) O ícone (...) faz surgir, e com certo rigor ‘retratista’, uma presença pessoal; o simbolismo mostra essa presença e todo o ambiente cósmico em seu redor, saturado de paz e de luz divina. Carnes e roupa são iluminados pela assiste (finas riscas douradas); animais, plantas e rochas são estilizados segundo uma espécie de essencialidade paradisíaca; as arquitecturas tornam-se um jogo surrealista [sic], desafio celeste ao peso deste mundo. (...) A Jerusalém celeste, ou seja, o universo transfigurado que o ícone sugere, (...) é iluminado pela glória de Deus (...). No ícone, a luz não provém de uma fonte precisa, está por todo o lado sem projectar sombras — os iconógrafos chamam ‘luz’ ao próprio fundo da imagem, e toda a realidade parece interiormente iluminada”.

Tais traços constituem um novo passo de saída do paradigma da representação mimética, refigurando rostos, corpos, espaços e fundos. Dir-se-á que o ícone e o seu valor mistérico, e não mimético, é um novo quase-sacramento da luz e da beleza divina, mostrando uma nova divino-humanidade fundada no Verbo feito carne e que cresce e se multiplica na comunidade dos santos, dos que viram a luz e a ela se entregaram, por vezes à custa do seu próprio martírio. Esta morosa vitória do figural e da figuração no cristianismo transfigura a imagem dos próprios templos, como diz o mesmo autor (id. ibid.):

“Toda a igreja, com a sua arquitectura, os seus frescos, seus mosaicos, constitui um gigantesco ícone que está para o espaço como o desenrolar da liturgia está para o tempo: ‘céu na terra’, simbolização da divino-humanidade, lugar do Espírito onde a carne-para-a-morte se metamorfoseia em soma pneumatikon, em corporeidade espiritual”.

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Præfigurare e defigurare Didi-Huberman salienta (contrariando o paradigma da mimesis) que o trabalho da figura nessa iconografia cristã cedo deixou de visar a semelhança com o protótipo ou modelo. Apoiando-se no Catholicon, dicionário do dominicano Giovanni Balbi escrito no séc. XIII, ele sugere que figurare só superficialmente significa representar uma coisa com o seu aspecto natural (forma naturæ); a um nível mais profundo e essencial, figurare é no Catholicon equivalente a præfigurare e defigurare, porque se trata de “transpor ou transportar o sentido [da coisa a significar] para uma outra figura” (in alliam figuram mutare). Trata-se, assim, de “se desviar da coisa para a dar a ver” — e é aí que ele vê a “poética da encarnação do Verbo”, a poiética, no sentido grego de forma de produção que oferece uma passagem entre o não-ser e o ser (Damish, 1984: 31), ou, noutros termos, uma ponte entre a potência e o acto. Num exercício de reconstrução do que seriam “os dez mandamentos (ou os dez constrangimentos) da figura cristã”, Didi-Huberman lista os seguintes procedimentos, como se, chegado tarde ao atelier do pintor de ícones mas ainda a tempo, lhe recordasse as exigências que o seu trabalho tem de satisfazer (loc. cit.: 615-620). Eis, num resumo que não faz justiça aos argumentos do autor, as dez tarefas do iconógrafo segundo Didi-Huberman : Translatio ou deslocação — comparável ao trabalho do sonho descrito por Freud em 1900, e aproximável dos signa translata (signos de deslocação) de Stº. Agostinho e do valor tropológico, figural e livre de que falou S. Jerónimo por oposição às histórias encerradas no seu valor manifesto : historia stricta / tropologia libera.

Memoria — Insensível ao tempo na sua acepção corrente e à história, a figura cristã constrói-se numa temporalidade e numa memória virtuais, à semelhança dos acontecimentos do Novo Testamento profetizados pelo Antigo, ou do Avé dito pelo anjo a Maria na anunciação, que inverte o nome de Eva, responsável pela perda do paraíso, enquanto Maria ia ser portadora do salvador. De facto, esta tarefa está intimamente relacionada com a temporalidade escatológica característica da parousia.

Præfiguratio, ou a iminência — Tomás de Aquino e Alberto o Grande insistiram em que devemos lembrar-nos do passado como do futuro : do pecado original como do juízo final, que estaria iminente. No seu dicionário, Balbi designava esta antecipação por præfiguratio.

Veritas — A figura refere-se à totalidade do tempo da experiência cristã, produzindo uma verdade escatológica dogmática, que a imagem transporta mas que a ultrapassa e só é entendida fora dela. Desenvolvendo este tema, voltaríamos a encontrar o combate entre transcendência e imanência.

Virtus, o virtual — Esta tarefa desempenha-se como se a figura obedecesse ao seguinte imperativo: “Não representes nem digas nada que seja inteiramente compreensível. Indica apenas, assinala sem designar, deixa agir em ti a potência do virtual”. Existiria, assim, uma indicação de procura deliberada de uma expressão pictórica ambígua, vaga, ambivalente, que viria a produzir o seu efeito desde as Virgens e arcanjos dos ícones bizantinos até à Gioconda de Leonardo.

Defiguratio, dissemelhança — “A grande eficácia da figura consistiria menos na representação do que na perturbação da ordem da representação”: na pintura, o menosprezo da semelhança retratista serve a busca de formas essenciais, adequadas à verdade escatológica e à situação de parousia. Na exegese, esta desfiguração exprime a diferença entre a imitação que mente (porque deixa escapar a forma essencial das coisas) e a imitação que diz a verdade (novamente escatológica); esta defiguratio

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pode estimular figurações deliberadamente metafóricas ou metonímicas, marcadamente simbólicas: o Cristo pode ser melhor representado pelo rochedo de onde Moisés faz jorrar água para dessedentar o seu povo, do que por um jovem barbudo suposto parecer-se com o filho de Maria. Desiderium, o desejo — Se procurava a dissemelhança natural, a figura cristã fazia-o para se projectar na desejada semelhança sobrenatural. É nesse movimento que reconhecemos a função anagógica da figura, o seu poder de suscitar uma subida para o alto. As figuras religiosas valeriam mais porque são aparições, do que pela sua aparência.

Præsentatio, apresentabilidade — Desprezado o seu valor de representação, a figura oferecia uma presença da mesma natureza que a eucarística, procurando, como na tarefa anterior, ser mais aparição do que aparência. Collocatio, a potência do lugar — O espaço deixa de ser natural, transfigura-se e passa a excluir-se da verossimelhança: a collocatio designa originariamente a operação de “pôr duas coisas heterogéneas no mesmo lugar”, muitas vezes produzindo alegorias: um jardim fechado pode figurar, numa anunciação, o corpo de Maria. Com frequência, os objectos dispostos no espaço pictórico onde tomam assento as personagens parecem sobrecarregados de sentidos simbólicos, ora facilmente entendíveis mediante chaves correntes de significação, ora de um exoterismo fechado à compreensão desarmada. Nominatio, o poder do nome — É a articulação, atrás mencionada, entre palavras sagradas, ou nomes, e sua figuração, em grande parte imposta pelo aparelho exegético, mas igualmente saboreada como geradora de sentido — numa agrafagem dos nomes às coisas que que manterá inscrita nas artes visuais cristãs até finais do séc. XV.

Estas desfigurações e deslocações, estas virtualizações dos lugares, estas formas de exprimir desejos e de fixar prefigurações, põem em evidência um trabalho sobre o real que não visa aproximar-se, mas sim afastar-se dele, e que contraria quaisquer leituras dos ícones enquanto representações ou vontade de representação do real observado. Mesmo um teólogo e historiador como Küng, não-especialista em artes visuais cristãs, sintetiza nos seguintes termos a missão e as normas que regem o trabalho do pintor de ícones (loc. cit., 225):

“Os ícones devem reproduzir os arquétipos celestes, os originais divinos. Como os vitrais multicolores da Idade Média, eles devem deixar transparecer o significado eterno das figuras humanas. Filósofos russos do séc. XX apostados em reflectir sobre a religião (E.N. Tubetzkoi, P.A. Florenski) ainda reforçaram mais uma teoria das imagens fortemente marcada pelo platonismo. Esta maneira de ver explica o simbolismo relativamente constante das cores e das formas, dos trajes e dos gestos, sobretudo do ouro simbólico (amarelo, ocre) que constitui sempre o fundo. Isto também explica que se opte por uma representação em duas dimensões, que pode espelhar o original, e, inversamente, pelo banimento da estatuária, banimento que a arte bizantina respeita escrupulosamente, sem dúvida porque nos primeiros tempos ela fazia lembrar demasiado os ídolos pagãos”.

Relações com a mimesis Tais considerações inscrevem-se na mais estrita tradição de menosprezo da mimesis pela estética hegeliana: interrogando-se sobre se a arte é aparência e ilusão, diz Hegel (1835), salientando que a realidade de que a arte se ocupa é mais elevada que a do mundo corrente, e é criada pelo próprio espírito:

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“Não é verdadeiramente real senão o que é em si e para si, a substância da natureza e do espírito — o que, manifestando-se no espaço e no tempo, continua a existir em si e para si (...). Ora, é precisamente a acção dessa força universal que a arte apresenta e faz aparecer. Decerto, essa realidade essencial aparece também no mundo ordinário — interior e exterior — mas confundida com o caos das circunstâncias passageiras, deformada pelas sensações imediatas, misturada com o arbitrário dos estados de alma, dos incidentes, dos caracteres, etc. A arte separa, das formas ilusórias e mentirosas deste mundo imperfeito e instável, a verdade contida nas aparências, para a dotar de uma realidade mais alta, criada pelo próprio espírito. Assim, longe de serem simples aparências puramente ilusórias, as manifestações da arte encerram uma realidade mais elevada e uma existência mais verdadeira do que a existência corrente” (Esthét., ed. Bénard, I, p. 17, ed. Jankélévitch, I, p. 26). (...) A pintura trabalha, é verdade, também para os olhos, mas os objectos que ela representa não são objectos naturais, com a sua extensão, reais e completos; eles tornam-se um reflexo do espírito, onde este não revela a sua espiritualidade senão destruindo a existência real, transformando-a numa simples aparência que é do domínio do espírito e a ele se dirige” (B., III, p. 341; J., III, p. 208).

Em resposta à questão de saber se, como desde Aristóteles muitos dizem, o objectivo da arte é a imitação, definida como a habilidade para reproduzir, com perfeita fidelidade, os objectos naturais tal como eles se nos oferecem no mundo corrente, escreve Hegel noutro momento (B., I, p. 37; J., I, p. 31):

“Tal reprodução é trabalho supérfluo, porque o que vemos representado e reproduzido em quadros, no palco ou alhures — animais, paisagens, situações humanas — é o que já encontramos nos nossos jardins, em nossa casa ou no círculo mais ou menos estreito dos nossos amigos e conhecidos. Mais: esse trabalho supérfluo pode passar por jogo presunçoso e que fica bem aquém da natureza. Porque a arte é limitada nos seus meios de expressão, e não pode produzir senão ilusões parciais, que não enganam senão um sentido; de facto, quando a arte se limita ao objectivo formal da estrita imitação, não nos oferece, em vez do real e do que vive, senão a caricatura da vida”.

A respeito da mimesis escreve Damish (1984: 33), reforçando, em termos mais agressivos, o argumentário hegeliano:

“Toda a arte de imitação implica fraude: fraude na mercadoria — as artes imitativas apenas produzem imagens e não autênticas realidades [Sofista, 265b]; fraude na produção — a imitação é apenas um modo de produção que não implica passagem ao ser, no pleno sentido do termo. Acrescida da astúcia que lhe é emprestada pelo fantástico que joga com o faux-semblant (o falso que se faz passar por verdadeiro, o que imita, e cuja possibilidade se torna verosímil). Mimesis humana, mas que tem uma correspondente divina : a poiesis que produz a totalidade dos fenómenos (que implica, ela própria, a passagem do não-ser ao ser) e se reveste dum mecanismo diabólico que origina os sonhos, os fantasmas, sombras e ilusões de óptica, em primeiro lugar o reflexo da água que vitimará Narciso, esse Narciso em que Alberti verá o inventor da pintura, fior di ogni arte”.

Mas o Damish que assim se aquece no fogo hegeliano, e sopra nele para o reavivar, é o mesmo que, a uma pedrada de distância, no fôlego seguinte (loc. cit., 35), volta atrás para repôr a questão central sobre a mimesis, porque, para se mimar o outro, é preciso de algum modo já fazer parte desse outro, o que requer uma semelhança entre imitador e imitado, e põe em jogo a identidade do primeiro. Que parte do imitado foi inevitavelmente, e por razões poiéticas, ou seja, pela arte da passagem do não-ser ao ser, apropriada pelo imitador?

“A pergunta tem certa importância se admitirmos que a mimesis, mesmo sob a forma degradada de uma teoria da imitação, terá regido, comandado, estruturado desde o início todo ou parte do campo atribuído às ‘artes’ no Ocidente”.

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Distraiamo-nos, portanto, mas sem a subestimar, desta aporia, que participa da dúvida de Hegel sobre se toda a arte ocidental não caiu sob a alçada da representação e da semelhança. Logo a seguir, na exposição hegeliana onde estávamos, surgem abruptamente, em forma de quase-anedotas, duas micro-narrativas laterais que são ecos das considerações sobre a natureza supérflua da mimesis no argumentário iconoclasta do Islão — porque os pintores produzem corpos sem alma, corpos a quem foi sonegada a vida — e onde ressoa, também, o desprezo platónico pelo trabalho da pintura:

“Sabe-se que os Turcos, como todos os maometanos, não toleram que se pintem ou se representem homens nem outras criaturas vivas. J. Bruce, durante a sua viagem à Abissínia, mostrou a um Turco um peixe pintado; o Turco começou por se espantar, mas depois disse-lhe: ‘Se este peixe, no Juízo Final, se erguer contra ti e se queixar de que lhe deste um corpo mas nenhuma alma viva, como responderás tu a tal acusação?’ E também o profeta, como está dito na Sunna, respondeu a suas mulheres Ommi Habiba e Ommi Selma, que lhe falavam das pinturas dos templos da Etiópia: ‘Essas pinturas acusarão os seus autores no dia do Juízo’ ”.

A prisão litúrgica Na tentativa de limitar os relacionamentos excessivos com imagens “mágicas”, de impedir o regresso da idolatria e de esvaziar a crendice popular no poder dos acheiropoietos e seus sucedâneos, o segundo concílio de Niceia tinha, em pleno iconoclasma, decidido que, de futuro, competiria aos bispos e ao clero determinar o que poderia e não poderia ser pintado, assim confinando os pintores de ícones a meros executantes e limitando a sua liberdade criativa, no que constituiu a primeira tentativa de controlo das artes por um aparelho eclesial cristão. A história posterior dos ícones mostrou que os artistas conseguiram manter autonomias criativas relativas, apesar dos frequentes regressos à norma bizantina e à tradição, e à permanência do controlo da arte pelas autoridades eclesiais ortodoxas, que sempre preferiram a stasis às mudanças dinâmicas. Como salienta Küng (loc. cit. 226):

“…A pintura de ícones tornou-se um acto religioso: não somente se reza e jejua antes de começar, se benzem as cores e os utensílios, como ainda a imagem, depois de terminada, é consagrada no decurso de uma cerimónia litúrgica especial, e a Igreja confirma a identidade da imagem e do seu modelo. Um ícone apenas é válido se reproduzir o nome do sujeito representado ou uma cena bíblica. Compreender-se-á, pois, que os ícones sejam mais do que meros exercícios estéticos (…). São uma espécie de sacramentais, ao lado da proclamação da palavra e da celebração eucarística”.

Esta resistência de um aparelho eclesial fundamentalmente conservador em matéria de procedimentos cultuais e litúrgicos ou para-litúrgicos, recorda-nos a força da fidelidade às formas históricas da realidade transcendental, no momento em que devemos ocupar-nos, a propósito dos ícones e das artes visuais cristãs, do peso e da influência da metafísica da presença. Presença, transcendência, imanência Recordemos de novo o que atrás diziámos sobre a “guerra” entre transcendência e imanência: o que é tornado presente na obra de arte figurativa? A presença, suportada pelo argumentário transcendental, torna-se, de facto, numa segunda “encarnação” do protótipo no material artístico propriamente dito: na pedra, no marfim, na madeira, na tela, nas cores e no desenho. Presença do sagrado, presença quase real do modelo ausente, presença de uma realidade metafísica superior à realidade corrente e criada pelo espírito... A questão da presença atravessa grande parte da história das figurações

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e do retrato : a figuração garante a presença de um protótipo ausente e verenado, procurando ser dele uma representação fiel apoiada na semelhança, como doutrinaram os iconófilos reabilitadores da imagem dos séculos VIII e IX? Ou, em vez de suscitar a presença fantasmada e espectral “garantida” pelos ícones bizantinos, em vez de participar num exercício aplicado de transcendência — o transporte, à presença do crente, do grande Outro actualmente ausente — antes chama a atenção para si própria, como parte do real que integra, mostra e exprime, sugerindo que, a haver divindade, ela está e se revela nas próprias coisas, no mundo, no homem (e no que deles é figurado), sendo-lhes imanente? Noutro texto, Didi-Huberman (1992) ataca directamente as posições onto-teológicas contemporâneas da metafísica da presença, de que George Steiner é hoje um dos mais populares representantes, através do que defende, por exemplo, no seu Real Presences (1989):

“O que é tudo, a seus olhos, é a gravidade e a constância, como ele diz, de uma presença superlativa, a presença real do sentido ‘pleno’. Steiner não esconde a vontade de restaurar (...) um transcendentalismo que se exprime em reivindicações ‘em última análise religiosas’. Não nos espanta, portanto, que o paradigma [que ele defende] possa ser o do ícone do culto bizantino e, mais explicitamente ainda, o do rito eucarístico propriamente dito. (...) Mas é preciso notar que essa presença, no enunciado peremptório da sua realidade, não oferece nada da abertura que diz oferecer. (...) É bem conhecida a operação matricial dessa deslocação filosófica exemplar: ela consistia, exactamente, em praticar uma nova abertura do ponto de vista, capaz de dar a uma expressão secular como essa da presença real o seu verdadeiro estatuto de fantasma obsessional. (...) [Ora], a presença nunca se dá enquanto tal, nunca se dá como último ponto de transcendência que o filósofo poderia apanhar em voo no ‘éter da metafísica’ ”(p. 155-156).

Que a presença real do representado seja, precisamente, uma das mais persistentes ilusões da representação mimética, transformada num cânone obsessional condenado a repetir trans-historicamente a sua aparição, mostra-o o facto de os conteúdos, temas e formas do ícone bizantino pouco terem evoluído, quanto à normatividade que lhes foi imposta, desde Niceia II, como se a história da figuração e a sua estética ali tivessem ficado, para sempre, jurídica e teologicamente congeladas. Observada como se fosse uma operação, regulamentada e normalizada, de atingimento de realidades transcendentes, o trabalho do pintor de ícones, tal como Steiner parece elogiá-lo, seria sobretudo um exercício de hipóstase no sentido pejorativo que, entre outros sentidos, lhe reconhece o Lalande (1988): construção de uma “entidade fictícia, abstracção falsamente considerada como realidade, sentido este que se manteve no uso do verbo hipostasiar (...); mais geralmente, [hipostasiar significa] dar sem razão uma realidade absoluta ao que não é senão relativo. ” Que seres e mundos são então os dos ícones do mosteiro de Sta. Catarina do Sinai, dos bustos e das Santas Faces do Cristo, da virgem entre S. Teodoro e S. Jorge, do Cristo reinante, todos dos séculos VI ou VII, das Madonas da Clemência (séculos VII ou VIII) e da Virgem Hodigitria (século XII) do S. Sérgio e das Cenas da vida de S. Nicolau (século XIII) da Hospitalidade de Abraão (fim do séc. XIV), ou da Transfiguração pintada por Teófano o Grego, a poucos decénios da queda de Constantinopla, para já não falar da enorme obra preservada de Andrei Rublev? O sentido do seu ser e o tempo a que esse ser se refere é o da παρουσία (parousia, na acepção de espera ou expectativa pela segunda chegada do Cristo: Mateus, 24-25; Revelação, 19:11 ss.; 20: 4-6):

“...Conservem-se despertos e estejam preparados, pois não sabem a data nem o momento do meu regresso” (Mateus, 25-13).

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Nesta acepção o tempo parou, não é mesurável, está suspenso, porque o seu próximo instante é precisamente regresso do Messias e o final dos tempos, demore ele a chegar o que demorar; esse final dos tempos, esse próximo instante, será a próxima nova realidade, que pode ser alterada e redefinida pela realização das promessas do salvador. Noutra acepção, o seu ser e o tempo que se lhe refere são ousia (substância), ambos determinando, na ordem ontológico-temporal, a presença, sim, mas porque a sua manifestação se refere a um modo determinado do tempo, o presente, para utilizarmos termos de Derrida (1968), transportando-os para fora do seu contexto original. Um presente e uma hecceidade (do latim escolástico ecceitas, de ecce, “eis”, como no “Ecce homo” de Pilatos apresentando o Cristo coroado de espinhos) figurais, talvez trabalhados pelos dez atributos de Didi-Huberman, separados da realidade corrente e inteiramente concebidos para dar forma sustentável à persistência de um mundo suspenso da temporalidade escatológica, onde passado e futuro são sempre passados presentes e futuros presentes (Derrida, loc. cit.). Esse mundo pintado, eminentemente aurático, é, ao mesmo tempo, o traço, o vestígio, o rasto persistentemente deixado por essa temporalidade escatológica que destruiu a ponte que a ligava à temporalidade do mundo corrente : a temporalidade escatológica da παρουσία não é divisível em partes, não há relógio que a meça, ela é a duração presentificada. Essa duração só não é infinita porque nela se ergue a esperança de que o final dos tempos surja reprogramado pela intervenção do salvador. E neste sentido pode, sim, ser ironicamente assimilada a uma hipóstase tal como a encontrámos no Lalande. Ou, como diz Derrida (loc.cit.), a um simulacro: “Esse rasto não é uma presença, mas sim o simulacro de uma presença que se desloca, se movimenta ou se reenvia para si própria; ela não ocorre propriamente (n’a pas propremente lieu), o apagamento pertence à sua estrutura” (op. cit., “La Différance”). Didi-Huberman, que se refere aos mesmos textos de Derrida (Ce que...: 157), conclui do seguinte modo:

“Eis portanto a presença entregue ao apagamento (...). Compreender-se-á, nestas condições, que não possamos usar a palavra presença a não ser precisando o seu duplo carácter não real : ela não é real no sentido que lhe dá Steiner porque não é um ponto de completude e de transcendência do ser; e também não é real porque só nos chega trabalhada, espaçada, temporizada, posta em traços ou vestígios — e acabamos de ver Derrida qualificar tais traços como simulacros”.

Simulacros resultantes, e em particular no caso da pintura de que aqui nos ocupámos, de teknai e procedimentos bem precisos (o que pintar primeiro, que cores e suportes usar, como figurar rostos frontalmente e em que posturas figurar os corpos), teknai onde vemos evoluírem diferentes “escolas” que as diversificam, dispersando-se no espaço e no tempo, mas inspiradas pelos mesmos princípios e pelos mesmos fins, partilhando uma hecceidade própria e eventualmente usando os dez dispositivos repertoriados por Didi-Huberman. Simulacros que figuram, na παρουσία, acontecimentos eufóricos permanentemente celebrados: a anunciação, a maternidade da Virgem, a prédica do salvador, seus milagres e sua transfiguração, a entrada triunfal em Jerusalém, a expulsão dos vendilhões do Templo, a ressurreição e a segunda transfiguração, a ascenção; e, mais tarde, acontecimentos disfóricos — toda a paixão e morte do salvador, figuradas pela agonia no horto das oliveiras, a traição de Judas, o julgamento, a flagelação, o ecce homo e o caminho para o Calvário, a crucificação, a descida da cruz e a pietà, sendo as duas partes — a eufórica e a disfórica — ambivalentes, e equilibrando-se, apoiada uma na outra, nas narrativas tornadas liturgia.

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A secessão cismática do início do séc. XI acabou por separar Roma e Bizâncio, e a tensa koinè, a complexa aisthésis que sobrevivera, no séc. IV, à mudança da capital para o Oriente, cindiu-se em dois mundos. O íman que as ligava perdeu a sua força de atracção, cedendo a uma “nova” bipolaridade; a coesão da koinè esboroou-se e cada uma das suas grandes partes emigrou para diferentes fractais. A pintura nascida do paradigma da encarnação evoluiu de forma progressivamente mais livre a Ocidente, foi liturgizada a Oriente para não poder libertar-se. Não cabe aqui a história da evolução artística e das escolas de ícones, onde seria necessário destacar o classicismo da dinastia macedónica, a opção, no séc. XI, por um estilo severo, que desmaterializou e espiritualizou as figuras, a re-humanização do séc. XII, o refinamento e a elegância da segunda metade do mesmo século e o nascimento do ícone feito em mosaicos; a escola de Chipre do séc. XIII, com as suas cores mais vivas e uma nova expressividade dos rostos; o período dito dos Paleólogos (1261-1453), durante a qual o ícone é reconhecido como arte maior e evolui a passo e passo com os murais, e onde se acentua a expressão de sentimentos e a concepção do espaço; um novo regresso à austeridade e à tradição em Bizâncio a partir de 1330; a proliferação de ateliers nos Balcãs e na Geórgia; o papel dos pintores gregos e a importância crescente das escolas russas vindas dos séculos XI e XII (Kiev, Vladimir, Suzdal, Novgorod), até que Moscovo se tornou, nos séculos XIV e XV, no principal centro de produção de ícones, iluminado pela arte de Andrei Rublev (1360/70-1430) e Denis (nascido cerca de 1450). Depois da queda de Constantinopla em 1453, a escola dominante passa a ser a de Creta (então sob domínio veneziano), que funde a tradição bizantina e a influência italiana. Caída por sua vez Creta em mãos turcas, em 1669, os pintores locais espalharam-se pelas ilhas jónicas (Zante, Corfu, Cefalónia) ou emigraram para Veneza. Entretanto, nos Balcãs, manteve-se a tradição bizantina, sob influência dos gregos e eslavos do monte Athos. E, a partir de meados do séc. XVI, desenvolvera-se uma nova escola na Grécia central, em Jannina e nos Meteoros... Entre os dois mundos, o de Roma e o de Bizâncio, subsistiram zonas onde a dupla herança exprimiu longamente um passado de miscigenações e de hibridismos. Mas essa secessão veio acrescentar-se à soma de outras que não pararam de se multiplicar no Mediterrâneo até aos nossos dias, tornando toda a área — a área da oliveira — num puzzle cujas unicidades só foram parcialmente asseguradas pela sucessão dos impérios regionais. Reconstituir laços a partir dos actuais fragmentos e ruínas pede uma poética como a de Pedrag Matvejevitch, outra vez apostada na passagem do não-ser ao ser. Mas ser o quê, hoje? Ouçamos o que ele sugere na frase que tornámos em epígrafe deste texto:

“A mediterraneidade não se herda, adquire-se. É uma distinção, não uma vantagem. Não se trata apenas de história ou de tradições, de geografia ou de raízes, de memória ou de crenças: o Mediterrâneo é também um destino”.

Acheiropoietos, facializações, fotografia O que o olhar de cada um de nós procura no olhar e no rosto do outro, em situação de double gaze, é a sua resposta àquilo que o nosso olhar e o nosso rosto para ele são. Projecção, identificação, simbiose, empatia, euforia e disforia, denegação, forclusão, rejeição — o jogo é vasto e multímodo, salvífico ou mortífero, e sempre passional. Na singularidade do rosto do outro buscamos o eco da nossa própria singularidade. Quando o olhar e o rosto do outro deixam de estar fisicamente presentes diante de nós e são substituídos pela sua figuração, a nossa pulsão escópica adquire a forma de um

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voyeurismo contemplativo: já não agimos perante a sua hecceidade viva, mas a sua stasis propicia e requer a nossa. A stasis frontal ou direct gaze da pessoa figurada, fotografada, filmada, convida ao regresso da interioridade que a pintura, nas suas diversas exposicionalidades, ofereceu, na longa duração, aos seus spectatores. A stasis frontal do rosto distorcido pelos diversos expressionismos ou pela sua figuração “primitiva” oferece, eventualmente, a experiência da Unheimliche, a inquietante estranheza sobre a qual Freud escreveu em 1919. Essa experiência transforma o rosto figurado em máscara de outra coisa, mas ele mantém-se ao mesmo tempo integralmente humano porque “tudo o que é humano me interessa” e é meu semelhante; continuo a procurar-me nele como no clássico espelho obscurecido que interrogo tanto quanto ele me interroga. O limite desta experiência que expande os lugares do reconhecimento só é atingido na terra de ninguém onde a figuração adquire valor de monstro, mas esse valor é eminentemente subjectivo, depende do vivido, dos fantasmas e da cultura de cada um de nós. As citações da escultura africana na pintura de Picasso, os rostos das suas demoiselles d’Avignon, por exemplo, não são, para nós, monstruosos. Imaginemos um filme em que cada actante (seja actor ou não seja) começa por se expôr em stasis frontal antes de começar a movimentar-se e a agir “de perfil e a três-quartos”, internando-se no mundo da história (se é que ainda há história nesse filme). Nós já vimos esse filme em Bergman, por exemplo no Persona (1966) e em certos capítulos do Cenas da vida conjugal (1973), ou em Godard, por exemplo no Deux ou trois choses que je sais d’elle (1967). Essa exposição pode até já não ser frontal, mas, embora furtando-se à frontalidade, continuar a oferecer ao spectator a contemplação da pessoa/personagem antes da acção ou depois dela, em todo o caso fora dela, como quem se submete deliberadamente ao juízo e à avaliação de quem a vê. Também já vimos esse filme, por exemplo, em Pedro Costa, no Casa de lava (1994). Na pintura contemporânea, os retratos de Francis Bacon, de David Hockney, de Lucian Freud ou de Marlene Dumas oferecem frequentemente essa frontalidade ou para-frontalidade mais ou menos distorcida. Os retratos picturais ou fotográficos de Chuck Close (por vezes grandes ampliações de daguerreotipos) são regressos, à frontalidade, de pessoas que vemos agir “de perfil ou a três-quartos” na vida real do quotidiano. O que distingue o gaze destas imagens frontais ou para-frontais do simples cliché banalizado pela socialização da fotografia são as características técnicas do objecto — a sua dimensão, a sua luz, a eventual excepcionalidade do suporte em que são impressas ou pintadas, ou seja, são as teknai que identificam aquele artista nas suas “pequenas diferenças excessivas”. Mas o simples cliché feito por um fotógrafo amador em forma de retrato frontal opera no spectator do mesmo modo que as obras de Chuck Close ou Lucian Freud : o fenómeno da interpelação directa pelo olhar do outro, a deliberada aceitação da auto-exposição por parte da pessoa fotografada, a sua pose interpeladora, não são necessariamente “artísticas”, transcendem os limites da arte e da não-arte. Máquinas de quatro olhos Gilles Deleuze e Félix Guattari propuseram, no seu Mille Plateaux, um novo enfoque das questões que aqui abordamos: “Le visage, c’est le Christ”, dizem eles (1980: 216). Breve nota sobre problemas de tradução : por que palavra traduzir visage? Face, rosto, cara, semblante? Eles escrevem sobre a “visagéité” (op. cit., 205-234), que os dicionários franceses (cf. Robert) não registam, como também os portugueses não registam o seu equivalente “facialidade”, (inglês: faciality) ou, pior escolha,

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“rostidade”, que poderiam designar a qualidade ou a hecceidade do que é face, rosto. Face, “parte anterior da cabeça humana e de outros animais da testa ao queixo”, é também, por associação, cada plano que limita um sólido, aparência, fachada, parede, frontispício. Fazer face é fazer frente, enfrentar; estar em face de é estar frente a, na presença de. Aqui, referindo-nos ao texto de Mille Plateaux, adoptaremos: para visage, face ou rosto; e para visagéité, facialidade, dando à palavra o significado de “atributos e poderes da face”, mais geral do que facialité designou na escrita francófona sobre teatro — onde, como vimos, significava o vis-à-vis, o face-a-face do actor com o espectador (a designação teatral para frontalidade). Eventualmente, usaremos também o termo “facialização”, (inglês: facialization) para designar o processo de tornar-se face, o devir face — por exemplo, de um objecto, de uma coisa, de uma parte do corpo. Como se verá, Deleuze e Guattari também quiseram dar expressão verbal à palavra paisagem, pelo menos criando a partir dela um infinitivo, “paisaigenizar”, e um derivado que indicasse igualmente o processo do tornar-se paisagem, do devir paisagem, “paisagenização”, que ingleses e americanos traduziram por lansdcapification. Em Deleuze e Guattari, facialidade é a “máquina abstracta” que transforma em face um grande número de objectos, quer naturais quer artificiais, fazendo-os participar dos atributos do rosto humano; e facialização é o processo, o processamento da facialidade. Primeiro por semelhança, ou seja: em obediência ao paradigma mimético, a frente de um automóvel é concebida como uma face, pedras e troncos de árvores fazem figura de faces, numerosas fachadas de edifícios ganham forma ou expressão de rosto humano. Mas, conceptualmente, a face começa por apenas ser, dizem eles, um sistema “parede branca / buracos negros”, sendo estes últimos os olhos, a boca, as narinas, como numa tela virgem que foi esburacada ou rasgada. Pode parecer pouco humana — até inumana, monstruosa — e não apenas a partir de certo grau de expressão ou distorção, mas também noutras situações banais : o grande plano do cinema torna-a paisagem lunar “com as suas superfícies brancas inanimadas, (...) os seus poros e assimetrias, os seus baços e brilhos, (...) os seus buracos” (id. ibid.: 233.) — e nunca faltaram cineastas, como Dreyer (A Paixão de Jeanne d’Arc, 1928), certo Bresson (Pickpocket, 1959), certo Bergman (Persona, 1966), certo Cassavetes (Faces, 1968), ou o Kiarostami de Shirin (2008), para quem o céu do cinema é o grande plano do rosto. Mas ao mesmo tempo o close-up é esse “monstro figurativo que dá expressão a tudo, mesmo às coisas” (Aumont, 2003: 65): uma faca, um relógio, a chaleira fumegante e dickensiana de Eisenstein. A importância do grande plano do rosto foi recentemente reabordada a propósito do “cinema face à catástrofe” e da evocação de filmes como Nuit et brouillard de Alain Resnais (1955) ou Shoah de Claude Lanzmann (1985), sobre os campos de concentração nazis (Rollet, 2011: 73-93 e 183-206). Usando um grande número de fotos de época, Resnais mostrava, dez anos depois do fim da guerra, o “inominável”. À chegada dos deportados a Auschwitz e diante das suas primeiras humilhações, grande plano do olhar de um prisioneiro que fixa frontalmente a câmara (7’51’’ do filme); diz o texto de Jean Cayrol: “Premier regard sur le camp: c’est une autre planète”. Em contra-campo, um pátio filmado de cima, cheio da multidão dos recém-chegados. O documentário está cheio de retratos frontais de mortos-vivos que nos olham, parte deles obtidos pelas tropas aliadas entradas nos campos e reenquadrados por Resnais. No filme de Lanzmann, que gravou numerosos testemunhos, um sobrevivente, Jan Karski, quer evocar o dia-a-dia no ghetto de Varsóvia, mas começa por não conseguir fazê-lo e sai de cena a chorar; numa tentativa posterior recompõe-se e desenvolve a sua narração; por vezes a câmara aproxima-se e ele fala em grande

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plano: o espectador reconhece no rosto marcado os traços da dolorosa anamnese: “A imagem-afecção é o grande plano, e o grande plano é o rosto” (Deleuze, 1983: 125). A “visagéité”, a facialidade de Deleuze e Guattari é, também e especialmente, um mecanismo psico-somático plenipotenciário, espécie de gestalt (formativa e erógena, como vimos a propósito do estádio do espelho) que funciona como conversor figurativo e simbólico de primeira grandeza, um sobrecodificador que hipostasia significantes: na vida sexual, por exemplo, “a mão, o seio, o ventre, o pénis e a vagina, a coxa, a perna e o pé serão facializados” (Deleuze-Guattari, loc. cit.: 209), passarão a ter atributos e poderes de face, de rosto, não para ou por se tornarem parecidos com estes — a facialização não opera sobretudo por semelhança — mas “para serem por ela sobrecodificados” e participarem dos atributos e poderes dessa face, desse rosto : “Tudo permanece sexual, não há sublimação; há, sim, novas coordenadas” (id. ibid.) — novas coordenadas para a definição daquilo a que a psicanálise chama objectos parciais, aqui definidos e simbolicamente metamorfoseados pelo processo da facialização. A erotização e a fetichização de um objecto são, assim, entendidas como resultantes de um processo de facialização. Ampliação da pulsão escópica de Freud, da Schaulust, da fruição do olhar, entre voyeurismo e exibicionismo? Talvez pudéssemos dizer, sobre este mesmo processo, que todo o corpo tem de se tornar rosto, tem de participar dele, tem de tornar-se seu subsidiário, seu esbirro e seu coadjuvante para ser erotizado pelo face-a-face. A face “devora” e contamina todo o corpo, consubstancia-o e torna-o seu adjunto essencial : todo o corpo se torna expressivo como ela. Numa metáfora pobre, diríamos que ao facializar-se, o corpo ganha uma intensidade e um halo libidinais. Regressamos, assim, ao estádio do espelho, à frontalidade e ao double gaze: dois rostos que se enfrentam tornam-se uma “máquina de quatro olhos”, presos um ao outro, ligados um ao outro pelo olhar ; o combustível dessa prisão afectiva é o eye-to-eye contact (loc. cit.: 208). Também na psicanálise, a estrutura de fechamento da pulsão escópica — que implica olhar e ser olhado — tem a forma de um anel de Moëbius. Deleuze e Guattari recordam o surgimento destas “máquinas de quatro olhos” na aleitação e adormecimento infantil, na relação mãe-filho, mas multiplicam os exemplos, sugerindo que estas “máquinas de quatro olhos” também exprimem, sempre, relações de poder (como atrás vimos com Schroeder) : “poder maternal que passa pelo rosto no aleitamento ; poder passional que passa pelo rosto do ser amado num transe amoroso ; poder político que passa pelo rosto do chefe (...) ; poder do cinema que passa pelo rosto da star e pelo seu grande plano...” (loc. cit.: 215). Outros emparelhamentos, mais próximos do que Freud designou por angústia (Augenangst) escópica: “Rostos de professora e aluno; de pai e filho; de operário e de patrão; de polícia e de cidadão; de juiz e de acusado” (loc. cit.: 217). Nestes casos, pressupostos como representações de conflito, o olhar de um é percepcionado como exprimindo a pulsão de morte de outro. Mas quando os autores citam o Henry Miller de Trópico de Capricórnio a propósito das “máquinas de quatro olhos” na sua versão de prisão afectiva, exprimindo a pulsão escópica como fonte da libido, é para sugerir que a única forma de quebrar o seu encanto é a fuga para a frente, a sua travessia:

“Já não olho os olhos da mulher que tenho nos braços, atravesso-os nadando, cabeça, braços e pernas por inteiro, e vejo que por trás das órbitas desses olhos se estende um mundo inexplorado, mundo de coisas futuras (...). Furei a parede (...) e os meus olhos já de nada servem, porque não me reenviam senão a imagem do conhecido” (loc. cit.: 209-210).

Que têm as figurações da face do Cristo a ver com tudo isto? Se Deleuze e Guattari dizem que a face do Cristo se tornou no paradigma do rosto humano, a partir,

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anotamos nós, da fixação das formas que acabaram por produzir o protótipo inventado de João Damasceno — ele próprio resultante da sedimentação de figurações reiterativas da mesma gestalt —, é porque essa face é a que Ezra Pound viria a designar como sendo a “do europeu-tipo, do homem sensual corrente, do erotómano banal (...). Não universal, mas facies totius universi” (loc. cit.: 216), na perspectiva euro-centrada da cultura cristã de que somos herdeiros. Essa face do Cristo foi-nos imparavelmente transmitida pela pintura, que reiterou as suas formas fundamentalmente repetitivas e foi apurando os seus traços desde a arte paleocristã à de Bizâncio, à da Idade Média e da Renascença, perpetuando dele uma versão frontal, a do Cosmocreator ou Pantocrator que os autores designam como “despótico”, e uma outra, mais tardia, a do Cristo passional e agónico, já não impondo o double gaze e desviando o olhar para baixo ou para os céus, ou, mais raramente, fechando os olhos. A frontalidade deixou-se ultrapassar quando já hegemonizara o campo da significação, dando lugar (mas mantendo o seu) a figurações que já não nos enfrentam forçosamente, como explicou Jean Paris (s.d.), comentado por Deleuze e Guattari :

“Duas figuras do destino, dois estados da máquina de facialidade. Jean Paris mostrou bem esses dois pólos na pintura, o do Cristo despótico e o do Cristo passional: por um lado, o rosto do Cristo visto de frente, como num mosaico bizantino, com os buracos negros dos olhos sobre fundo de ouro, e com toda a sua profundidade projectada para a frente; por outro lado, os rostos que se cruzam e desviam, a três quartos e de perfil, como numa tela do Quattrocento, com os seus olhares oblíquos traçando linhas múltiplas e integrando a profundidade no próprio quadro” [o gaze intra-diegético que atrás encontrámos a propósito do cinema] (Deleuze-Guattari: 227).

Deleuze e Guattari sabem bem que, se “o rosto é uma política” (loc. cit.: 222), se a “significância” e a subjectivização por ele produzidas são decisivas para os efeitos da frontalidade e para a formação das “máquinas de quatro olhos”, o mecanismo não nasce com o Cristo e suas figurações como “homem branco, universal cristão” ou facies totius universi. É verdade que eles não se ocupam directamente da frontalidade, nem da figuração da encarnação do Verbo, nem do nascimento da “divino-humanidade” no seu novo habitus da parousia cristã. Para eles, não é relevante que os frescos de Pompeia precedam de pouco a figuração cristã, ou que os retratos do Fayum herdem tão directamente a figuralidade e as teknai pictóricas do tardo-paganismo romano e helenístico. Se insistem na datação crística da “máquina de facialização”, se afirmam que o Cristo é metaforicamente o “ano zero” dessa máquina, é porque, ao contrário de episódios figurais precedentes (face-a-face entre o hebreu e o faraó, eventuais expressões helenísticas e asiáticas de frontalidade retratista anteriores à fixação do novo protótipo), a figuração paleo-cristã, e a que se estende à Bizâncio pós-iconoclasma, introduz uma ruptura, um corte, produz um movimento de báscula na figuração: o novo paradigma, pictoricamente rudimentar e primitivo, frequentemente naïf e regressivo diante do esplendor da arte helenística e seus ídolos, é alimentado por uma nova crença religiosa que em pouco mais de três séculos vai conquistar a cúpula do império, impondo-se “ideologicamente” e alterando toda a significação das figurações, “como gotas de vinho tinto numa água clara” (loc. cit.: 223). A paisagem Surge agora uma nova personagem: colando-se à face, ao rosto, emerge cedo (e impõe-se no Quattrocento), a paisagem; na história da pintura, face e paisagem tornam-se correlatos, e a partir de dado momento a primeira existe mal sem a segunda : o retrato pede um fundo, há cadernos de paisagens onde o retratista procura os

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motivos que comporão com o rosto a pintar (veja-se a pintura de Piero de la Francesca, Andrea Mantegna, Hans Memling, Giovanni Bellini, e depois a monumentalidade urbana em Gentile Bellini, Lazzaro Bastiani, Giovanni Mansueti e Vittore Carpaccio). Deleuze e Guattari chamam a atenção para essa complementaridade que se instalou naturalmente num vasto período da história da pintura:

“A educação cristã exerce ao mesmo tempo o controlo espiritual da facialidade e da ‘paisagenidade’[talvez pudéssemos dizer mais simplesmente paisagística, n. a.] : componham uma e outra, dêem-lhes cores, arranjem-nas numa complementaridade que reenvie a primeira à segunda e vice-versa. Os manuais sobre rostos e sobre paisagens formam uma pedagogia, disciplina severa que inspira as artes tanto quanto elas os inspiram”. [E depois, em nota na mesma página:] “Já Inácio de Loyola tinha juntado ao seu ensino exercícios de paisagem, com ‘composições de lugares’ respeitantes à vida do Cristo, ao inferno, ao mundo, etc.” (Id. ibid., 211).

Maurice Ronai escreveu sobre a paisagem “como rosto da pátria ou da nação” (Ronai, 1976), pondo em evidência que há formações sociais onde é particularmente querida a equivalência e a cumplicidade entre os sentidos do rosto e da paisagem; e a arquitectura semeia as suas construções, como rostos, nas paisagens que transforma, logo imitada pela pintura, que semeia paisagens em função dos rostos, e muito depois pelo cinema, que nos seus grandes planos trata os rostos, em primeiro lugar, como paisagens. Em Numéro Deux, de 1975, Jean-Luc Godard fará perguntar: “Et ta mère, c’est un paysage ou un visage? Un visage ou une usine?” (“E a tua mãe, é uma paisagem ou um rosto? Uma cara ou uma fábrica?”). Deleuze e Guattari desenvolvem a comunidade de sentido entre os dois correlatos, rebatendo-a, novamente, sobre a imagerie produzida, ao longo da história da pintura, pelas figurações do Cristo:

“Que rosto não convocou as paisagens que amalgamava (…), que paisagem não evoca o rosto que a teria completado (…)? A pintura usou todos os recursos e expedientes do Cristo-rosto (…) com um júbilo que vai da Idade Média à Renascença (…). O Cristo preside à facialização de todo o corpo (do seu próprio corpo) e à ‘paisagenização’ de todos os meios e lugares (os seus próprios meios e lugares)” (Deleuze-Guattari: 212 e 218-219).

O entendimento profundo entre rostos, corpos e paisagens, que determina em grande parte a própria ideia de composição — pensemos em Fra Angelico ou em Bonnard — crescera com a representação icónica da parousia e com os exercícios de afastamento do real corrente, em busca da “semelhança essencial”, exercícios descritos por Didi-Huberman a propósito do modus faciendi do iconógrafo. Passagem por Lévinas Breve referência à reflexão de Emmanuel Lévinas em torno da facialidade e dos “poderes” do rosto: Lévinas tornou a experiência do rosto do outro num dos temas centrais da sua filosofia; diante da nudez e da vulnerabilidade do rosto do outro, sentimo-nos (mesmo se apenas de modo fugidio) responsáveis por ele, tornamo-nos reféns (mau-grado a nossa eventual resistência) dessa responsabilidade; a experiência da alteridade é, assim, uma experiência de hospitalidade em relação ao outro. Derrida, que, para espanto de muitos, não hesitou em declarar-se sobretudo devedor de Lévinas, viria a extremar esta formulação, referindo-se à responsabilidade “infinita”, ou “sem limites” pelo outro. Mas o “rosto” de Lévinas não é aquele que aqui temos abordado: Lévinas designa por “rosto” qualquer parte do outro que expõe a sua vulnerabilidade à violência — a nuca, por exemplo. E a nudez essencial desse rosto (entendendo-se por nudez a revelação dessa mesma vulnerabilidade) está para além da

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sua identificação ou caracterização circunstancial, para além da sua figurabilidade:

“É quando vemos um nariz, uns olhos, uma testa, um queixo, é quando podemos descrevê-los, que vemos o outro como objecto. A melhor maneira de encontrar o outro consiste em nem ver a cor dos seus olhos” (Lévinas, s.d: 79).

Mas não ver a cor dos seus olhos impossibilita a geração das “máquinas de quatro olhos”, implica que hipostasiemos esse rosto e lhe demos a dimensão de um universal antropológico, de uma ideia para a qual remete a nossa experiência. Desse modo, esse rosto perde a sua fisicalidade e torna-se num significado abstracto. Ou seja, a abordagem ética do outro implica, para Lévinas, que o acto perceptivo seja ultrapassado, implica a “redução eidética” husserliana. Uma tal redução envolve forclusão do rosto figural, concreto, do rosto como significante (não estaremos então mais perto da Verwerfung, a rejeição freudiana, próxima de Ablehnen, afastar, declinar, Aufheben, suprimir, abolir, e Verleugnen, recusar, renegar?). É um enfoque anti gaze. A filosofia de Lévinas exige a desencarnação do rosto e prefere-o infigurável, desenvolve-se àquem do limiar da figurabilidade e evita o nosso objecto. Reteremos dela, no entanto, um par de traços relevantes; primeiro traço: o rosto do outro, dada a evidência da sua vulnerabilidade — diz Lévinas — é algo de desarmado e de desarmante, a um tempo “apelo ao homicídio” e “a própria injunção que o proíbe”: matar o outro, negando-o de modo absoluto, significa reconhecer que esse outro nos escapa irremediavelmente, de tal modo que só matando-o liquidamos o que ele é para nós; e, a contrario, o imperativo “Não matarás” é imposto pela vulnerabilidade absoluta desse rosto, mas esse imperativo actua “acima” da percepção:

“O homicídio, de facto, é banal: pode matar-se outra pessoa; a exigência ética não é uma necessidade ontológica. A interdição de matar não torna o homicídio impossível, antes perpetua a autoridade do interdito na má consciência do mal realizado” (id. ibid.: 91).

Segundo traço: nesta consideração ética e essencialista do rosto do outro, Lévinas toma explicitamente partido pelo olhar transcendental contra a imanência, e também pela existência de um Deus infinito e infigurável, que nunca encarnou nem se tornou um ente :

“A ideia importante, quando evoco o rosto de outrem, o traço do Infinito ou a Palavra de Deus, é a de uma significância de sentido que, originalmente, não é tema, nem objecto de um saber, nem ser de um ente, nem representação. Um Deus que me interpela por meio de uma Palavra expressa em forma de rosto de outro homem é uma transcendência que não se torna, nunca, imanência. O rosto de outrem é a sua maneira de significar. Também uso outra fórmula : Deus nunca toma corpo. Nunca se torna, propriamente, ente. É isso a sua invisibilidade (…)” (Lévinas, 1985: 171 - 182).

Próximo do judaísmo e tendo perdido toda a sua família na Shoah, Lévinas está, deste modo, mais perto de um George Steiner e de um Paul Ricœur do que de Deleuze-Guattari ou de Didi-Huberman. Sem pôr em questão a dimensão ética destas formulações — que, nele, se baseia numa fenomenologia transcendental — não é, como dissémos atrás, essa abordagem que aqui nos ocupa, porque, ao exigir a ultrapassagem da experiência perceptiva, ela suprime, no mesmo gesto, a abordagem estética e empírica, e com elas toda a imanência. Também Derrida admitiu, numa discussão com o pragmático Richard Rorty, que sobre numerosos assuntos “emitia simultaneamente ruídos transcendentais e não-transcendentais”, preferindo não optar por uns contra os outros. Para nós, que bem percebemos a hesitação de Derrida, é compreensível e respeitável que Lévinas tenha preferido separar a “ideia” de rosto do

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outro da sua morfologia, porque ele viu o nazismo (e, dizemos nós, que vimos todos os racismos) classificar a humanidade em diversos tipos, uns “superiores” e outros “inferiores”, a partir da diversidade dessas mesmas formas: como ele, também nós consideramos que pensar, depois de Auschwitz, não é a mesma coisa que pensar antes de Auschwitz. A diversidade das formas, porém, não é um estigma que nos obrigue a uma hipóstase: pelo contrário, a riqueza do rosto humano não reside na sua hipóstase mas sim na sua diversidade material, que não pode ser menosprezada ou apagada preventivamente, mesmo tendo em conta os erros excessivos e os crimes cometidos em nome dessa diversidade. Como num ritornello musical, voltamos ao que dissémos noutro lugar (Mendes, 2010), glosando Michel Foucault através de Paul Veyne :

É preciso exercer “um cepticismo sistemático diante de todos os universais antropológicos” (Veyne, 2008: 59-81). As ideias gerais são, todas elas, meta-empíricas (com o distanciamento reflexivo que o prefixo meta impõe), e resultam de inventários de traços comuns à multiplicidade dos particulares. A rede de universais de que dependeu tanta da nossa filosofia, da nossa ética e da nossa estética, bem como muitos outros saberes avulsos, não tem como referente senão esses trabalhos de Penélope com as palavras [ou com as imagens, acrescentamos agora], em que continuamente a vamos (a essa rede) construindo e desconstruindo.

A intranscendência de Agamben Que procuramos na figuração de rostos, na pintura, na fotografia, no cinema? O que é afirmado na repetição do sistema “parede branca / buracos negros” e na infinita proliferação das singularidades identitárias? Em La communauté qui vient. Théorie de la singularité quelconque, Giorgio Agamben (1990) actualiza, por sua vez, a importância foucaultiana da singularidade, já não entendida na sua relação com qualquer propriedade comum ou com um conceito (o ser vermelho, francês, muçulmano). A sua abordagem permite ultrapassar o impasse de Lévinas diante da figuração :

“A singularidade abandona assim o falso dilema que constrange o conhecimento a escolher entre o carácter inefável do indivíduo e a inteligibilidade do universal. Porque o inteligível, segundo a bela expressão de Gersonide [1288-1344, n. a.], não é um universal nem um indivíduo inscrito numa série, mas sim ‘a singularidade enquanto singularidade qualquer’ ”.

Diz Agamben que esta singularidade é, em primeiro lugar, definida fora de qualquer pertença que a determine : deixa de ser “um x pertencente a y” e “vê o dia por si própria”, gerando o seu fétichismo específico. O seu movimento, que poderíamos descrever em termos platónicos como “anamnese erótica”, é um movimento anafórico (anáfora: figura de retórica onde se repete muitas vezes a mesma palavra no seio de um período; no sentido litúrgico, parte central da missa) que não remete nem transporta o objecto para outra coisa ou lugar, mas para o seu próprio ter lugar, o seu acontecimento. Isto também significa que não vemos através dela – para além dela, como no ver transcendental ; vemo-la como pertencente ao plano da imanência entendido como totalidade do que há para ver, do visível. Ao contrário do que a exegese exigiu que víssemos nas personæ figuradas no seu novo habitus da parousia cristã — os protótipos “quase presentes” ou “realmente presentes” no ícone —, estas “singularidades quaisquer” querem ser vistas no que são, pelo que são, e apenas chamam a atenção para si próprias, tornaram-se auto-referenciais. Numa muito bela formulação, Agamben responde à pergunta : “de onde vêm as singularidades quaisquer, qual é o seu reino?”, invocando os limbos escolásticos de S. Tomás :

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“Para o teólogo (…), a pena infligida às crianças mortas sem baptismo, cujo único pecado é o pecado original, não poderia consistir numa pena aflitiva, como a do inferno, mas apenas numa pena privativa, como a ausência perpétua da visão de Deus. Todavia, e contrariamente aos danados, os habitantes dos limbos não experimentam qualquer dor nessa privação - porque não são dotados senão de conhecimento natural, e não sobrenatural: este último é implantado em nós pelo baptismo”.

Os limbos de S. Tomás, relidos por Agamben, são, para nós, a melhor metáfora das multidões riesmanianas (Riesman, 2001) e das “sociedades individualistas de massa” (Wolton, 1997) contemporâneas, laicizadas, dessacralizadas e que renunciaram à dimensão escatológica da parousia e ao seu encantamento. Todas as representações do indivíduo ou da pessoa vivendo o “silêncio de Deus”, a “morte de Deus”, encaixam, como peças de um puzzle, na substituição da parousia cristã, entendida como habitus ou ethos da divino-humanidade, por esses limbos criados para que fosse concedida uma nova forma de justiça àqueles que apenas são culpados de um pecado herdado. O que estabelece a “singularidade qualquer” dos seus habitantes é, portanto, a sua evasão da dimensão escatológica — eles estão para além da perdição ou da salvação ; a sua existência é o maior obstáculo alguma vez erguido contra a promessa de uma redenção/danação generalizadas, de que estão excluídos. Como diz Agamben:

“Tal como cartas que ficaram sem destinatário, estes ressuscitados permaneceram sem destino. Nem felizes como os eleitos, nem desesperados como os danados, as suas almas estão, para sempre, inundadas por uma alegria sem objecto. (…) A luz que cai sobre as suas frontes é aquela — irreparável — da aurora que se segue ao novissima dies do julgamento. Mas a vida que começa na terra depois do último dia é simplesmente vida humana”.

Estes entes deportados para os limbos tomistas, e perdidos, por isso, para a dicotomia exclusiva da salvação e da danação, não desempenham, assim, o papel de loose cannons on the deck, não ameaçam, pelo seu comportamento ou natureza a-responsável, nenhum edifício que deles dependesse: comentando estas passagens de Agamben, diz Slavoj Žižek (s.d.):

“Não podemos deixar de recordar a multidão de humanos que permanece em cena no final do Götterdämmerung, de Wagner, testemunhando silenciosamente a auto-destruição dos deuses ; e se essa multidão fosse a multidão dos felizes?”

O que há de particular neste novo habitus ou ethos definido como limbo tomista é que os seus habitantes, as “singularidades quaisquer”, estabelecem uma nova humanidade que substitui a divino-humanidade da parousia cristã, mas não como um novo universal antropológico. Mais adiante, no mesmo texto, Agamben analisa o surgimento medieval da ideia de “singularidade qualquer” como estando associada a um maneirismo, uma “maneira” de surgimento de cada ser que não é acidental nem necessária, antes designa o movimento no qual ele aparece, como quando se diz: “A espécie é dita maneira (...) no caso preciso em que dizemos: a erva desta espécie, ou seja, desta maneira, cresce no meu quintal” (citação de Ugucionne de Pisa). Por outras palavras, não se trata nem de uma essência nem de uma existência no sentido da bipolaridade cismática que foi pairando sobre a filosofia ocidental, mas de um modo de surgimento do ser que não advém de tal ou tal modelo, antes é, apenas, o seu modo de ser e, por esse facto, se mantém singular mas é múltiplo e reconhecível, válido para todos. Deste ser poderá porventura dizer-se, como disse Plotino e Agamben cita, não que “lhe aconteceu ser assim”, mas apenas que “é o que é, sem todavia ser senhor (maître) do seu próprio ser (...), servindo-se de si tal como é (...) porque ser assim é

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melhor” — um livre uso de si que não dispõe da existência como propriedade sua, sendo isso mesmo o seu ethos. Há outra razão porque este texto de Agamben nos interessa aqui, e que respeita ao modo como ele se posiciona no “combate” que atrás invocámos entre transcendência e imanência — “combate” onde ele articula, igualmente, definições do bem e do mal que não desenvolveremos aqui, mas a que não é possível escapar, dada a inscrição que delas propõe na sua exposição. Abordando esta questão, Agamben evoca a heresia de Amaury de Bène, cujos adeptos acabaram na fogueira no início do séc. XIII, porque, para eles, “Deus está todo em tudo”; esta convicção exprime, para o autor, a radicalização da doutrina platónica da chora, e, recordamos nós, está no centro da teologia imanentista ainda combatida, como vimos atrás, pela encíclica Pascendi Domini Gregis, de 1907 :

“O transcendente não é (...) um ente supremo que se sobrepõe a todas as coisas; em vez disso, o ter lugar de todas as coisas é o transcendente puro. Deus, ou o bem, ou o lugar, não têm lugar [não ocorrem], antes são o ter lugar [a ocorrência] dos entes, a sua íntima exterioridade. Divino é o ser-verme do verme, o ser-pedra da pedra. Que o mundo seja, que qualquer coisa possa aparecer e ter um rosto, que haja uma exterioridade e não-latência como determinação e limite de qualquer coisa; tal é o conteúdo do bem. Assim, precisamente, o seu ser/estar irreparavelmente no mundo é o que transcende e expõe cada ente mundano. O mal é, pelo contrário, a redução do ter-lugar das coisas a um facto como qualquer outro, o olvido da transcendência interna ao ter-lugar das coisas. Em relação a estas, o bem não está (...) em qualquer outro lugar : ele é apenas o ponto em que elas assumem o seu próprio ter-lugar [a sua ocorrência], tocando a intranscendência da sua própria matéria”.

Sontag, Tournier, Barthes Quando, ao longo dos anos 60 e 70 do séc. XX, os museus de todo o mundo, a começar pelas principais instituições de referência, se apropriaram da fotografia como mais uma arte entre as outras e passaram a expô-la com regularidade sem a hierarquizar, sem a classificar e sem dar preferência a géneros ou cânones, boa parte da bibliografia especializada deslocou-se, como acontecera com a pintura moderna e contemporânea, para os catálogos de exposições, predominantemente dedicados a autores e à sua obra. Mas, no último quartel do mesmo século, emergiram, fora dos catálogos, alguns textos de referência que ficaram como marcos das diversas abordagens contemporâneas da fotografia — abordagens epocais, mas que legaram traços relevantes à tardo-modernidade ou à pós-modernidade. Contam-se, decerto, entre eles : o On Photography de Susan Sontag (1977), resultante de uma série de artigos escritos pela autora para The New York Review of Books; “Les Suaires de Véronique”, de Michel Tournier (1978), incluído como “conto” ou “narrativa” numa recolha maior (e que, com “Tristan Vox” e “La jeune fille et la mort” compõe uma pequena trilogia do escritor-fotógrafo sobre a fotografia); e La Chambre claire, de Roland Barthes (1980). Qualquer dos três nos interessa aqui, porque todos eles se referem, enquanto reflexões sobre fotografia, à figuração do rosto, do corpo humano e a outras questões afins, quer a propósito do retrato quer de diversos outros “géneros” fotográficos. Mas vale a pena citar de imediato Susan Sontag, porque ela descreveu com precisão, há mais de 30 anos, o momento da apropriação da fotografia pelos museus, e seu efeito nos fotógrafos :

“O facto de os fotógrafos importantes já não quererem discutir se a fotografia é ou não uma arte, excepto para proclamarem que o seu trabalho não está envolvido com a arte, mostra até que ponto estão seguros do conceito de arte que o modernismo impôs:

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quanto melhor é a arte mais ela subverte os seus objectivos tradicionais. E o gosto modernista recebeu de braços abertos esta actividade despretenciosa que pode ser consumida, quase contra sua vontade, como grande arte. (...) Quando hoje (...) os fotógrafos negam estar a fazer obras de arte, é porque pensam estar a fazer algo ainda melhor. As suas rejeições dizem-nos mais sobre o estatutuo atormentado de toda a noção de arte do que sobre se a fotografia é ou não uma arte”(Sontag, 1977: 116).

A curta narrativa de Michel Tournier é uma parábola sobre a fotografia na sua versão de actividade que se apropria dos seus objectos (fotografar é apropriarmo-nos da coisa fotografada, escreveu também Sontag), pode devorá-los e tornar-se homicida: a cena passa-se em Arles (a Arles de Van Gogh e do Mistral, colada à Camargue), durante os Encontros Internacionais de Fotografia que ali se realizam anualmente, e em cujo dédalo urbano se passeiam, sob o sol de Julho, Ansel Adams e Ernst Haas, Jacques Lartigue e Robert Doisneau, Eva Rubinstein e Gisèle Freund, enquanto Cartier-Bresson evita contactos porque “teme ser, ele próprio, visto” e Brassaï traz o chapéu de chuva que, como ele explica, não mais largou desde o dia em que deixou de fumar. Logo após a curta apresentação, alguns dos participantes nos Encontros vão às águas da Camargue fotografar nus de um modelo, Heitor, “tipo mediterrânico, de estatutra média”, que se presta ao jogo “na sua animalidade natural”, e que traz ao pescoço um fio de cabedal que atravessa um dente furado — viremos a saber que lhe mandaram o amuleto de Bengala, que o dente é de tigre e quem lá o usa não será nunca devorado por tais felinos. No regresso, uma das participantes, Verónica, queixa-se da “banalidade” do modelo, com o qual só é possível fazer “bilhetes postais”; ela bem levou a sua Distagon de 40 mm, que distorce a perspectiva, mas o que fez com ela não passará de “originalidade barata”. Meditabunda, a fotógrafa confessa ao narrador que “não desdenharia fazer alguma coisa por aquele Heitorzinho, só que isso exigiria trabalho e sacrifícios…” Um ano depois, o narrador volta a encontrar Verónica e Heitor nos encontros arlesianos — ela na mesma, ele irreconhecível porque “emagreceu de forma quase alarmante”. Somos livres para pensar que Heitor remete, na sua posição de vítima, para o seu homónimo de Tróia, ou que o nome é apenas a marca necessária de uma “singularidade qualquer”; Verónica, porém, é a nítida reciclagem da virgem depositária do mais relevante dos acheiropoietos, reciclagem algo gnóstica de uma técnica que, caído o seu espírito no corpo, está destinada encarnar o mal. Possesiva e febril, ela assume-se como responsável pela metamorfose do modelo : se, no ano anterior, Heitor era bonito, e se podiam fazer dele bonitas fotografias, cópias conformes do original mas inferiores a ele, agora é fotogénico, e foi ela a tutora da didascália que o trouxe à fotogenia :

“A fotogenia é a faculdade de se conseguirem fotografias que vão mais longe do que o objecto real. (…) O homem fotogénico surpreende quem, conhecendo-o, vê as suas fotografias pela primeira vez; estas são mais belas do que ele, parecem desvendar uma beleza que até então tinha permanecido escondida. Ora essa beleza não é desvendada pelas fotografias, as fotografias é que a criam”.

Verónica fala por tiradas didácticas, como se viu e verá. O narrador visita Heitor e a sua tutora no casebre que ambos passaram a partilhar na Camargue, alugado por ela, e que mais parece um estúdio de fotografia, atafulhado de aparelhos, tinas, produtos químicos em canjirões. No que lhe parece o compartimento de Heitor, adormecido numa espécie de célula à parte, o narrador vê um mini-ginásio dedicado ao trabalho e sacrifícios da vítima para se tornar fotogénico ; e Verónica convida-o a ver as novas imagens que dele pôde obter após a metamorfose: “Aqui tem, diz ela, o verdadeiro, o único Heitor! Veja, veja!” Comenta o narrador, diante das imagens do transfigurado:

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“Seria de facto o Heitor, esta máscara cavada, toda ela saliência das maçãs do rosto, do queixo, das órbitas, a cabeça coberta de cabelos cujo anelado obediente parecia envernizado?”

De súbito, eis-nos, portanto, diante da estética do ícone bizantino, a que atás aludimos citando Olivier Clément. O Heitor transfigurado é o referente de imagens que vão mais longe do que ele, é o veículo transcendental que leva o espectador para além daquilo que o figura. O protótipo está a perder relevância, tornou-se em mero instrumento do ver, do olhar que procura as essências por detrás da existência, da contingêngia. Mas Verónica ainda não se calou, vai agora falar da importância do rosto no nu fotográfico:

“Uma das grandes leis do nu, em fotografia, reside na importância primordial do rosto. Quantas fotografias (…) são malbaratadas por um mau rosto, ou (…) por um rosto sem harmonia com o corpo! Lucian Clergue, de quem somos mais ou menos todos convidados em Arles, resolveu o problema cortando a cabeça dos seus nus. (…) É arte da grande, mas julgo-a reservada ao corpo da mulher [aqui Verónica explica que o corpo do homem não pode “perder a cabeça”, ao contrário do da mulher]. O rosto é a cifra do corpo (…), é o próprio corpo traduzido num outro sistema de sinais. E é, ao mesmo tempo, a chave do corpo. (…) O homem sem cabeça torna-se indecifrável. Nada vê, visto já não ter olhos. E transmite ao visitante o penoso sentimento de que foi ele próprio que se tornou cego”.

O rosto, cifra e chave do corpo: outra coisa não disseram Deleuze e Guattari em Mille Plateaux, como vimos acima, sobre o processo de facialização. Os olhos do figurado permitem ao spectator aceitar o convite para se tornar, com ele, numa máquina de quatro olhos. Mais : este trabalho do rosto requer a sua stasis, a sua imobilidade (somos imediatamente transportados para as poses de Daguerre e de Nadar). Explicará ainda Verónica, que acaba de citar Paul Valéry, lembrando ao narrador (trata-se de uma citação premonitória, de um flash forward, como veremos) que “a verdade é nua, mas por baixo do nu há o esfolado” :

“Há duas escolas de fotografia. A dos que caçam a imagem surpreendente, tocante ou pavorosa : estes percorrem as cidades e as aldeias, as praias e os campos de batalha, para de súbito colherem cenas evanescentes, gestos furtivos, momentos resplandescentes que ilustram, todos eles, a dilacerante insignificância da condição humana, surgida do nada e condenada a regressar ao nada. Hoje dão pelos nomes de Brassaï, Cartier-Bresson, Doisneau, William Klein. E há a outra corrente, que deriva inteiramente, quanto a ela, de Edward Weston : é a escola da imagem deliberada, imóvel ; a que visa, não o instante, mas a eternidade. Entre esses outros, Denis Brihat (…). Esta escola do imóvel tem quatro domínios reservados : o retrato, o nu, a natureza morta e a paisagem”.

Destes quatro domínios reservados da imagem deliberada, imóvel, baseada na stasis do modelo, só o nu — vade retro — não integra os elementos característicos da figuralidade da parousia cristã tal como a considerámos acima. Os outros estão todos lá, incluindo a paisagem e a sua simbiose com o rosto, tal como a abordámos através de Deleuze e Guattari. Adiante: o narrador confessa, atingido pela Unheimliche, que o que acaba de ouvir lhe sugere demasiadamente a morte; a fotógrafa responde-lhe, em desafio e acentuando nele essa inquietante estranheza, que ela ainda acabará por ir fotografar para a morgue, porque há nos cadáveres uma “verdade marmórea” que a atrai como o Renascimento foi por eles atraído :

“A arte do Renascimento é a descoberta do cadáver. Nem a Antiguidade nem a Idade Média haviam dissecado cadáveres. (...) Praxíteles olhara atletas em acção (...). É preciso esperar pelo séc. XVI e por André Vesalius para que nasça verdadeiramente a

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anatomia. (...) Quase todos os nus da época se põem a cheirar a cadáver : os manuscritos de Da Vinci e de Benvenuto Cellini estão cheios de estudos anatómicos, mas também em muitas figurações de nus (...) vivos se adivinha a obsessão do esfolado, [como no] S. Sebastião de Benozzo Gozzoli e nos frescos de Luca Signorelli na catedral de Orvieto”.

O narrador assusta-se mais e lembra a Verónica que, com esta propensão para a “bruxaria”, ela teria acabado, naquele tempo, na fogueira; ela responde-lhe que uma boa forma de evitar a fogueira, naquele tempo, era fazer parte da Santa Inquisição, e que quanto à fogueira propriamente dita, o seu lugar não seria decerto sobre ela, mas ao lado, nos primeiros camarotes, para ver e fotografar. De amoral, a Verónica de Tournier está a tornar-se diabólica. Dias depois da visita ao casebre de Verónica e Heitor, o narrador encontra a fotógrafa com ar constrangido, bebendo num bar da Arles pobre; ela fá-lo ler a carta de despedida de Heitor, que fugiu. Na carta, o modelo-vítima queixa-se de ter sido fotografado vinte e duas mil, duzentas e trinta e nove vezes pela sua tutora ao longo do ano, de já só ter pele e osso, de que nunca deveria ter-lhe entregue o colar do dente de tigre — que já reaveu — para que ela o tivesse mais nu, e garante-lhe que ela nunca conseguirá a pele dele nem o encontrará mais, porque ele se tornou “diáfano, translúcido (...), invisível”. Entre o narrador e a fotógrafa abandonada pela sua vítima instala-se um silêncio pesado, que o primeiro acaba por quebrar : explica ele que, movido pela curiosidade, foi saber mais sobre Vesalius e descobriu que, para além das dissecações de cadáveres que lhe permitiram fazer avançar a anatomia, ele também se dedicou, em Madrid, como médico de Carlos V, à vivissecção de prisioneiros para aprofundar a fisiologia, de tal modo que foi condenado à morte e depois salvo in extremis por Felipe II, sendo a pena comutada em peregrinação obrigatória à Terra Santa. No regresso de Jerusalém, porém, naufragou junto a Zante, ilha deserta onde acabou por morrer de fome e esgotamento. Comenta apenas Verónica, que foi ouvindo tudo “com um interesse crescente” : “Que vida maravilhosa, e como acaba bem!” A cena muda para novo inverno parisiense, longe dos encontros arlesianos. Em Paris, o narrador ouve de um mensageiro (Chériau, “gazeta viva da fotografia”), as últimas notícias de Verónica e Heitor : a fotógrafa achou e recapturou o seu “modelo mártir” e lançou-se com ele numa série de experiências de “fotografia directa”, sem máquina, sem película e sem ampliador, “o sonho da maior parte dos grandes fotógrafos, que sentem como uma (...) tara ignominiosa as sujeições técnicas do ofício”. Que faz ela então? Expõe à luz do dia enormes folhas de papel fotográfico, e depois “...mergulha o desgraçado (...) num banho de revelador (metol, sulfito de soda, hidroquinona, bórax) e deita-o, ainda encharcado, no papel fotográfico, nesta ou naquela posição. Por fim lava o papel com uma solução de fixador ácido e manda o modelo para o chuveiro”. Conta, mais, o mensageiro: “O pobre do Heitor foi hospitalizado com uma dermatose generalizada. (...) As lesões, provocadas (...) por produtos químicos, pareciam-se com as inflamações profissionais [dos] curtidores de peles, dos droguistas e dos gravadores”, mas atingiam partes improváveis do corpo — eritemas tóxicos nas costas, por exemplo. E conclui: “O que ele devia era fugir das unhas dessa bruxa, ou ela acaba por lhe arrancar a pele”. Final, Arles, Julho seguinte: o narrador é atraído pelo nome de uma exposição no âmbito dos Encontros, “Os Sudários de Verónica”. O material de divulgação inclui uma entrevista com a fotógrafa em que ela explica que mudou do papel para uma base mais flexível e mais rica, o pano de linho, tornado fotosensível por impregnação de

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brometo de prata. Embrulha nele o modelo, saído de um banho de revelador, “como um cadáver numa mortalha”, e ainda se conseguem efeitos mais interessantes pintando o modelo com bióxido de titânio ou nitrato de urânio. A fotografia tradicional, diz ainda Verónica, está, assim, ultrapassada, e “dermografia seria um vocábulo mais apropriado” para designar “estas novas criações”. Claro que o narrador corre para a exposição, instalada numa capela cujo chão e paredes estão atapetadas pelos sudários — panos de linho tintados pelos espectros negros e dourados “de um corpo achatado, alargado, enrolado, desenrolado, reproduzido em friso fúnebre em todas as posições”. Conclui o narrador: “Fazia pensar numa série de peles humanas arrancadas e depois estendidas ali como se fossem troféus bárbaros”. À saída, o narrador vê inesperadamente a fotógrafa e pergunta-lhe pelo modelo, por Heitor. Ela aponta os sudários que os rodeiam :

“ Está por aí... por aí. Fiz dele... isto. O que é que quer mais?”

Escreve Tournier, e a sua parábola fecha neste ponto :

“Ia insistir, quando vi algo que me reduziu definitivamente ao silêncio. Ela trazia, ao pescoço, o fio de cabedal, o fio que atravessava o dente furado do tigre de Bengala”.

A história da fotografia contemporânea incluiria, assim, episódios de terror criados pelos seus operadores, que a levariam a futuríveis assassinos, embora apenas movidos pela compulsão de extremar sempre mais as teknai da figuração, diminuindo cada vez mais a distância entre o “artista” e o seu “modelo”, e entre o figurado e o seu referente, e transfigurando esse “artista”, insensivelmente, em novas versões de Fausto, de Mr. Hyde ou de Jack the Ripper. Em La Chambre claire, Barthes escolhe a modalidade da narrativa de uma jornada introspectiva para reflectir sobre a fotografia. A primeira dificuldade que ele encontra, face à imagem fotográfica, e que, segundo ele, a distingue de qualquer outra, é a “teimosia” do referente em não descolar dela — uma espécie de reiteração tecnicizada da prisão referencial ao “protótipo”, que está “presente” ou “quase presente” na imagem, nos termos de Niceia II. Percepcionar o significante fotográfico parece reservado aos profissionais da fotografia (Barthes, 1980: 792) ; para o spectator comum, pelo contrário, o cachimbo fotografado é sempre um cachimbo (une pipe y est toujours une pipe) (Op. cit.: 793), a fotografia é invisível porque não é ela o que nela se vê (id. ibid) : “Este é o meu irmão, este sou eu em miúdo” (Op. cit.: 792) é o que o spectator comum diz sobre imagens fotográficas do seu irmão ou de si mesmo ; não vê nelas senão “o referente, o objecto desejado, o corpo querido” (Op. cit.: 794). Temos assim três entidades em presença : o operator (fotógrafo), o spectator (cada um de nós diante da imagem) e o spectrum (“o alvo, o referente, espécie de (...) simulacro, de eidôlon emitido pelo objecto” (Op. cit.: 795) : espectro porque o termo remete para espectáculo, por um lado, mas também para regresso do morto, por outro, duas dimensões que, para o autor, estão sempre presentes na imagem fotográfica).

Barthes chama studium ao interesse humano, geral, cultural, que o spectator comum exprime por uma imagem fotográfica ; e punctum àquilo que, “perturbando o studium”, salta da imagem “como uma flecha” e vem picar, ferir, atingir directamente o mesmo spectator (Op. cit.: 809). O reconhecimento do studium envolve a identificação da intenção do fotógrafo e a aprovação ou desaprovação dessa intenção — intenção que pode ser declinada nas funções correntes da fotografia : “informar, representar, surpreender, fazer significar, produzir desejo” (Op. cit.: 810). Há fotografias feitas para “chocar” o spectator ou para o “surpreender”, geralmente à custa do carácter “raro” do referente, ou porque são “proezas” técnicas, ou são fruto

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de trucagens fotográficas, ou são “achados” (trouvailles) inesperados, ou procuram a “excepcionalidade” da situação ou do objecto fotografados. Conclui Barthes, sobre este esforço contínuo do operator para fugir à banalidade e à irrelevância : “Num primeiro tempo, a Fotografia, para surpreender, fotografa o que é notável ; mas, cedo (...) decreta que o notável é o que ela fotografa ; o seja o que for (n’importe quoi) torna-se então no sofisticado cúmulo do valor” (Op. cit.: 814-815). Nada disto interessa Barthes particularmente ; por outras palavras, o infinito tumulto das imagens hora a hora difundidas pelo sistema dos media não lhe interessa a não ser na medida em que a sua identidade de sujeito cultivado lhe impõe, via studium, uma relação genérica e benevolente com algumas delas. Só o punctum, relação íntima estabelecida entre um pormenor, ou a atmosfera, de uma imagem, e os afectos que esse traço lhe provoca, devido à sua história pessoal de spectator, ao seu vivido, tem o poder de o prender, de o fascinar.

Compreende-se, assim, que seja sobretudo no retrato fotográfico — quer no de Daguerre e Nadar, quer eventualmente no retrato de um operator anónimo e ocasional — que Barthes procure fundar a sua relação com a fotografia, apesar da sua dificuldade em se reconhecer a si próprio nos milhares de fotos que dele se fizeram (por vezes retratos frontais, mas que não satisfazem o seu narcisismo). Numa passagem que parece ter sido escrita a pensar nele, dizia, anos antes, Susan Sontag:

“Há pessoas que ficam ansiosas quando vão ser fotografadas; não porque receiem, como os primitivos, ser violadas, mas porque temem a desaprovação da câmara. Pretendem uma imagem idealizada : uma fotografia de si mesmas com o melhor aspecto possível. Sentem-se rejeitadas quando a câmara lhes não devolve uma imagem que as faça parecer mais atraentes do que na realidade são. Mas poucas pessoas têm a felicidade de ser ‘fotogénicas’...” (Sontag, op.cit.: 82)

Barthes insiste então em que “toda e qualquer foto é de algum modo co-natural ao seu referente” (op. cit.: 851), e esboça uma primeira definição do que seja esse referente, distinguindo-o do referente da pintura :

“Eu precisava de conceber bem e, se possível, de conseguir dizer bem (...) em que é que o Referente da Fotografia é diferente do dos outros sistemas de representação. Chamo ‘referente fotográfico’, não a coisa facultativamente real para a qual uma imagem ou um signo reenviam, mas a coisa necessariamente real que foi posta diante da objectiva, e sem a qual não haveria fotografia. A pintura (...) pode fingir a realidade sem a ter visto. O discurso combina, decerto, signos que têm referentes, mas esses referentes podem ser e são frequentemente ‘quimeras’. Ao contrário destas imitações, na fotografia, nunca posso negar que a coisa tenha estado lá. Existe dupla posição conjunta : de realidade e de passado. (...) Tal constrangimento (...) é a própria essência, o noema da Fotografia. O que intencionalizo numa foto (...) não é a Arte ou a Comunicação, é a Referência, que é a ordem fundadora da Fotografia. (...) O que vejo [numa foto] esteve ali, nesse lugar que se estende entre o o infinito e o sujeito (operator ou spectator); esteve lá, e logo depois separou-se ; esteve lá absolutamente, irrecusavelmente presente, e no entanto já diferido” (Id. ibid.).

A fotografia, escrevera Sontag, compensa, a seu modo, a nossa precária relação com o passado:

“Uma fotografia é simultaneamente uma pseudo-presença e um signo de ausência. As fotografias, especialmente de pessoas, de paisagens distantes e cidades longínquas, de um passado irrecuperável, assim como uma lareira numa sala, são incitamentos ao devaneio” (Sontag, op. cit.: 25).

Esta associação entre a coisa necessariamente real que foi fotografada e a sua definição como pertencendo irremediavelmente a um passado perdido é agudizada, no

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texto de Barthes, pelo luto do autor pela sua mãe, e por uma foto antiga dela, em criança, no jardim de Inverno da casa onde nascera, de tal modo que a sua relação com a Fotografia passa a ser polarizada pela sua relação com aquela fotografia : “ao olhar uma fotografia, incluo fatalmente no meu olhar a concepção daquele instante, por mais fugaz que tenha sido, em que uma coisa real esteve imóvel diante do olho” (Barthes, op. cit.: 852). A esse instante de imobilidade, ele chama pose — e é essa paragem, essa stasis que lhe permite comparar fotografia e cinema:

“... O noema da fotografia altera-se quando essa Fotografia se anima e se torna cinema: na foto, qualquer coisa posou diante do pequeno buraco [da câmara] e ali ficou para sempre (...); mas no cinema, qualquer coisa passou diante do mesmo pequeno buraco : a pose foi levada e negada pelo seguimento contínuo das imagens : é uma outra fenomenologia, e por isso uma outra arte que começa, embora derivada da primeira” (Id. ibid.).

Este mal-estar diante das imagens em movimento, esta ansiedade e angústia genuínas, são os mesmos que encontramos no Walter Benjamin de A obra de arte..., que Barthes nunca cita, mas que se queixa igualmente, em 1936, de que o cinema roubou à imagem a possibilidade de esta se deixar contemplar longamente, num exercício de interioridade do spectator, exercício que requer tempo. A continuidade vertiginosa das imagens em movimento impediria, assim, uma experiência que só a stasis perpetuada oferecia. Em termos deleuzianos e guattarianos, é como se o cinema (mas não para estes autores) fosse culpado de ter inviabilizado a perpetuação das “máquinas de quatro olhos” de que falámos atrás. É a mesma angústia que também Susan Sontag refere no seu On Photography, e que se tornou numa angústia clássica, definitória da experiência do spectator de cinema. Dirá Barthes sobre mesma questão, algo adiante:

“No cinema, cujo material é fotográfico, a fotografia já não tem a mesma integridade, a mesma completude (...). Porquê? Porque a foto, apanhada num fluxo, é incessantemente puxada, levada para outras ; no cinema, decerto, há sempre referente fotográfico, mas esse referente escorrega (...), não se agarra a mim, não é um espectro. Como o mundo real, o mundo fílmico é suportado pela presunção de que ‘a experiência continuará a fluir constantemente no mesmo estilo constitutivo’ (...). A Fotografia, [pelo contrário], reflui da apresentação para a retenção” (Op. cit.: 862).

Mas que dizer então do cinema feito por montagem de imagens fixas, do cinema de fotografias como em Si j’avais quatre dromadaires, ou em La Jetée de Chris Marker e noutros filmes? Pouco importa, porque cedo ou tarde (e não necessariamente quando o spectator quer) o filme avança, por decisão do realizador, para outra fotografia, ou seja : a duração da contemplação sai do controlo do spectator, coisa que não sucedia na pintura ou na fotografia. Esta é uma das razões porque nos referimos aos textos de Barthes, Sontag e Tournier (e agora, por maioria de razão, ao de Benjamin), como abordagens epocais, apesar da sua importância : desde a socialização do vídeo doméstico e das cassetes VHS que o spectator passou a poder parar a imagem e voltar atrás na projecção, como se fazia e se faz com um livro, voltando vinte páginas atrás para reler uma frase. A experiência cinematográfica do spectator mudou a partir dos anos 80 do séc. XX, esvaziando grande parte das razões de queixa de Benjamin e de Barthes, e a que Sontag também alude. Eis o que escrevera Sontag a este respeito, comparando as imagens da fotografia e as da televisão:

“As fotografias podem ser mais facilmente memorizadas do que as imagens em movimento, pois não são um fluxo, mas fracções precisas de tempo. A televisão é uma corrente de imagens indiscriminadas, em que cada uma anula a precedente. Cada

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fotografia é um momento privilegiado convertido num pequeno objecto que se pode conservar e olhar repetidamente. Fotografias como a que apareceu na primeira página da maioria dos jornais do mundo em 1972 — uma criança sul-vietmanita, despida, que acabava de ser atingida pelo napalm americano, correndo pela estrada em direcção à câmara de braços abertos e gritando de dor — talvez contribuam mais para aumentar o repúdio do público pela guerra do que cem horas de atrocidades televisionadas” (Sontag, op. cit.: 26). [E, mais adiante, sobre fotografia e cinema propriamente dito:] “O tempo de visão de um filme é estabelecido pelo realizador e as imagens são percepcionadas com a lentidão ou a rapidez que a montagem permitir. Assim, a fotografia, que possibilita que nos detenhamos num único momento o tempo que desejarmos, contradiz a própria forma do filme...” (id.: 79).

Há outra razão porque o texto de Barthes nos surge datado, e que diz, ainda, directamente respeito à frontalidade, às “máquinas de quatro olhos” e ao seu uso na fotografia e no cinema. Exclama ele a este respeito, comentando imagens de uma reportagem sobre urgências hospitalares, que apesar da sua crueza não o atingem, não o tocam (Barthes, op. cit.: 878) :

“Ah, (...) se ao menos alguém, numa das fotos, olhasse para mim! Porque a fotografia tem esse poder — que perde cada vez mais, porque a pose frontal é habitualmente tida por arcaica — de olhar para mim olhos nos olhos (aí está outra diferença: no filme, nunca ninguém olha para mim; é proibido — pela ficção)”.

Ora, se é verdade que os primeiros manuais americanos sobre como fazer filmes insistiam, no início do séc. XX, na obrigatoriedade de o actor nunca olhar frontalmente para a câmara, sob pena de destruir o “mundo da história” em que se pretendia que o spectator mergulhasse, no exercício coleridgeano da suspension of desbelief — norma que foi longamente assumida pelo studio system —, não o é menos que La Chambre claire foi escrito vinte anos depois do surgimento da nouvelle vague francesa, onde Barthes teria encontrado numerosos exemplos de frontalidade dos actores e actrizes (a começar por À bout de souffle, de Godard, de 1958). Também Sontag se referira à frontalidade na fotografia, mas para sublinhar que ela esteve, com frequência, ao serviço da manipulação técnica do real, a começar pelo retrato — apesar das declarações de Émile Zola, ele próprio fotógrafo amador, para quem ninguém podia verdadeiramente dizer que tinha realmente visto uma coisa até que ela tivesse sido fotografada :

“Os membros da Farm Security Administration, projecto fotográfico do fim dos anos 30 [do séc. XX], todos eles com imenso talento — entre outros Walker Evans, Dorothea Lange, Ben Shahn e Russel Lee — tiraram dúzias de retratos frontais de cada rendeiro até estarem seguros de terem obtido o aspecto que pretendiam : a expressão correcta do rosto que transmitisse as suas próprias noções da pobreza, luz, dignidade, textura, exploração e geometria” (Sontag, op. cit.: 16). [E mais adiante:] “O que as fotografias tornam imediatamente acessível não é a realidade, são as imagens. (...) Agora todos podemos saber exactamente como nós, os nossos pais e avós éramos em crianças, o que era impossível antes da invenção das câmaras, mesmo para a reduzida minoria que mandava pintar os retratos dos seus filhos” (id.: 145).

Mas voltemos ao momento em que Barthes ia estabelecer a relação axial entre a Fotografia e a Morte, antes de formular nova comparação com o que faz o cinema :

“... Ao deportar o real [fotografado] para o passado, (...) [a fotografia] sugere que ele morreu. Assim, mais vale dizer que o traço inimitável da Fotografia (o seu noema) é que alguém viu o referente (mesmo que se trate de objectos) em carne e osso, ou ainda em pessoa. A Fotografia começou, aliás, historicamente, como uma arte da Pessoa [itálico nosso]: da sua identidade, do seu estado civil, daquilo a que poderíamos

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chamar, em todos os sentidos da expressão, o quanto a si (quant-à-soi) do corpo. Também aqui, do ponto de vista fenomenológico, o cinema começa a diferir da fotografia ; porque o cinema (ficcional) mistura duas poses : o isto aconteceu (ça-a-été) do actor e o do seu papel, de tal modo que (coisa que eu não experimentaria diante de um quadro) nunca posso ver ou rever num filme actores que sei que morreram sem experimentar uma espécie de melancolia : a melancolia da Fotografia” (Barthes, op. cit.: 853).

A fotografia (outro traço comum à análise de Sontag) certifica que o referente existiu ; há numerosos regimes jurídicos que a aceitam como prova, e na reportagem jornalística ela atesta que a narrativa se refere a factos reais. A imagem fotográfica é um “certificado de presença, o gene novo que a sua invenção introduziu na família das imagens” (Op. cit.: 859). Um pouco, diz Barthes, como “a-prova-segundo-São-Tomé-querendo-tocar-o-Cristo-ressuscitado” (Op. cit.: 853). Na prática, dirá o autor, a fotografia tem algo a ver com as imagens acheiropoiéticas de Bizâncio:

“A Fotografia tem algo a ver com a ressurreição: não poderíamos dizer dela o que diziam os bizantinos da imagem do Cristo que impregna o Sudário de Turim, a saber, que não foi feita pela mão do homem, sendo acheiropoietos?” (Op. cit.: 855).

O interesse da irónica comparação não advém de uma figura de retórica: não foram pintores nem artistas que inventaram a fotografia, foram químicos. Na verdade, a fotografia resulta dos sucessivos aperfeiçoamentos de um antigo dispositivo óptico (a camera obscura, essa sim, um dispositivo de pintores mas que não fixava a imagem) e da sua articulação com a cadeia de descobertas químicas que permitiram fixar em determinados suportes os raios luminosos emitidos por um objecto iluminado de certo modo. Foto-grafia, do grego φωτος (luz) e γραφη (inscrição, escrita) é um termo criado em 1836 por John William Herschel para designar a acção “inscrevente” da luz em superfícies sensíveis como o nitrato e o cloruro de prata, acção então estudada por Fox Talbot. Com o surgimento do daguerreótipo em 1839, passou a designar o processo físico-químico de reprodução pictural e de impressão permanente de imagens ópticas captadas em camera obscura, ou a arte de fixar, numa superfície sensível, a emissão luminosa, directa ou indirecta, de um objecto. A fotografia resultou, assim, da articulação de duas disciplinas distintas: óptica e fotoquímica, materializadas, respectivamente, pela camera obscura (inicialmente descrita por Giovanni della Porta no seu Magia Naturalis de 1558, descrição que foi precedida pela de Frisius em 1545) e pela placa sensível (em 1725, Johann Heinrich Schulze percebeu que o nitrato de prata escurecia sob a acção da luz, e trinta anos depois Beccarius observou o mesmo fenómeno no cloruro de prata). Um longo caminho de experimentações insatisfatórias conduz-nos a Joseph Nicéforo Niepce, que em 1816 obteve os primeiros negativos com cloruro de prata, e em 1822 conseguiu fixá-los com betume da Judeia. Da associação de Daguerre e Niepce nasceu a preferência pela placa de cobre argentado e a sua exposição a vapores de iodo, depois a escolha de placas iodadas e de vapores de mercúrio. Os procedimentos de Daguerre (Niepce morrera em 1833) foram adquiridos pelo Estado francês e, divulgados em 1839, acolhidos como uma “invenção incrível” (Kovalski & Glafikidès, 1989: 132-151). É por esse motivo, diz Barthes em consonância com os historiadores da fotografia, que “uma foto é literalmente uma emanação do seu referente” (Barthes, op. cit., 854). Niepce, diante da que é conhecida como a primeira fotografia, A mesa posta (circa 1822), e por mais que tenha sentido estar perante uma nova forma de pintura (o enquadramento oferecido pela camera obscura), terá percebido que estava a inventar

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um mutante, um ente novo que não era nem uma representação icónica nem o real, antes algo como o ectoplasma de qualquer coisa que realmente estivera diante do seu aparelho (Op. cit.: 859). Reencontramos aqui a fotografia da Verónica de Tournier, se não no seu rosto maléfico, pelo menos no seu rosto alquímico:

“Ao que parece, em latim ‘fotografia’ dir-se-ia imago lucis opera expressa, ou seja, imagem revelada, ‘saída’, ‘montada’, extraída (como o sumo de um limão) por acção da luz. E se a Fotografia pertence a um mundo que mantém alguma sensibilidade ao mito, não deixaríamos de exultar perante a riqueza do símbolo : o corpo amado é imortalizado pela mediação de um metal precioso, a prata (monumento e luxo), a que se junta a ideia de que esse metal, como todos os metais da Alquimia, vive” (Op. cit.: 854). “É exactamente porque a Fotografia é um objecto antropologicamente novo que ela escapa, parece-me, às discussões habituais sobre a imagem” (Op. cit.: 859).

Sontag recorda que a publicidade à primeira Kodak, de 1888, dizia confiantemente aos seus utilizadores : “Carregue no botão, nós fazemos o resto”. O “resto” era a garantia de que a imagem seria obtida “sem quaisquer erros” (Sontag, op. cit.: 55); armado com a sua nova caixa mágica, “o flâneur de Baudelaire, voyeur e naturalmente empático, podia agora capturar as esquinas escuras da cidade e os seus habitantes esquecidos” (Id.: 57), como fez Paul Martin em Londres, Arnold Genthe na Chinatown de São Francisco, Atget e mais tarde Brassaï em Paris. Outros, mas não esse flâneur, se dedicariam a fotografar, na senda de Nadar, os rostos, tão idealizados como o de Nefertiti, de Greta Garbo ou Marilyn Monroe — por vezes protegendo-os do olhar inconveniente da câmara, que via o que o olho humano não vê. De um modo como do outro, porém, a definição ontológica da imagem fotográfica como “emanação do referente” pouco mudou em função da diversidade de escolas, hábitos, épocas e modas, e nesta matéria Sontag está de novo perto de Barthes, antecipando-o:

“Ninguém pensa que que uma pintura de cavalete seja de algum modo co-substancial ao seu tema; apenas representa ou refere. Mas uma fotografia não se limita a prestar homenagem ou a assemelhar-se ao seu tema, é também parte e prolongamento dele e um meio poderoso para o possuir e controlar” (Id.: 137). “Enquanto uma pintura, ainda que conforme aos padrões fotográficos da semelhança, nunca é mais do que a afirmação de uma interpretação, uma fotografia nunca é menos do que o registo de uma emanação (ondas de luz reflectidas pelos objectos), um vestígio material daquilo que foi fotografado e que é inacessível a qualquer pintura” (Id.: 136).

Desde que a “alquimia” de Niepce e Daguerre substituiu a “mão de Deus” nos acheiropoietos, fotografia e, mais tarde, cinema, devolveram às questões relativas ao ícone e às imagens em geral a fortíssima ilusão da “presença real” ou “quase-real” do referente ou do modelo, obrigando a discussão a regressar à tabula (quase) rasa da Niceia do iconoclasma. Acheiropoietos e ícones de Bizâncio reaparecem explicitamente em certo cinema moderno e contemporâneo: numa cena do seu Histoire(s) du cinema - Une vague nouvelle (1998), J.-L. Godard sobrepõe rostos, entre os quais rostos de anjos músicos, a um tecido branco que limpa uma superfície, como tinha feito em Passion (1982) com a Asunción de la Virgen de El Greco. O tecido branco torna-se na tela-ecrã onde sucessivamente aparecem e se apagam imagens sobrepostas, oferecendo uma mise en abîme cinemática da pintura e evocando os acheiropoietos do paleo-cristianismo, numa cena do tipo mandylion (Bonfand, 2007: 224). Por sua vez, Tarkovski, “cujos filmes estão para o cinema como os ícones para a pintura” (loc. cit: 239), no antepenúltimo plano do seu Stalker (1979), sobrepõe layers de cor e luz até à saturação da imagem, onde irrompe uma chuva dourada que evoca o ouro dos fundos dos ícones de Bizâncio e que transfigura o que o espectador vê. É toda a técnica do

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antigo iconógrafo que irrompe reconstituída no ecrã, mas o ícone de Tarkovski é cinemático porque a sua aparição envolve o tempo e a duração da cena. “Carregue no botão, nós fazemos o resto”: os construtores das câmaras portáteis contemporâneas dizem o mesmo aos novos flâneurs do século XXI, mas entre estes já não há sobretudo turistas japoneses, contam-se cada vez mais cineastas de todas as idades, constrangidos a largar a película e a aceitarem o que a mudança tecnológica tem para lhes oferecer. Vista dos nossos dias, a história das imagens começa, como sempre, nas primeiras pinturas mágicas da “arte” rupestre e parece agora levar-nos a novas gerações de computação gráfica 3D e de hologramas — desactualizando, assim, as dermografias da Verónica de Tournier. Mas é pouco provável que a discussão sobre a natureza das imagens saia do círculo milenar dos seus argumentários dominantes. Hoje como desde a década de trinta do século XX, em que o studio system norte-americano se estabilizou como fábrica principal do cinema dominante, coexistem, nos mundos das imagens em movimento, diversos destinos cinemáticos. O cinema mainstream, distribuído para todo o mundo pelas principais majors, é cada vez mais um entretenimento destinado à infância, a pré-adolescentes e adolescentes, tidos por locomotivas de box-office. Mas entre as outras formas cinemáticas, sobretudo as que herdam mais determinadamente a experiência do cinema “moderno” e as linhagens de que este se reclamava, ganharam relevância figurações que interrompem ou suspendem a narrativa feita de continuidades lineares unárias, teleologicamente orientadas e finalistas. O regresso da stasis, do silêncio, a atenção dada aos tempos intervalares entre acções, o regresso do interesse não-narrativo por rostos e paisagens ou por inesperadas deambulações da câmara, significam que parte das cinefilias contemporâneas tem fome de imagens que já não proponham apenas o mergulho mimético do spectator na volontary suspension of desbelief descrita por Coleridge nem na anti-catarse militante da distanciação brechtiana. A interrupção ou a suspensão da narrativa, a oferta de uma figuralidade herdeira do retrato, o regresso à matriz arcaica da frontalidade e da para-frontalidade assentes na stasis (não apenas de rostos, mas também de corpos e de objectos) significam que há um cinema desejoso de oferecer ao spectator o tempo que a pintura e a fotografia lhe ofereciam, e que o cinema tão ansiosa e persistentemente lhe roubou. Essa oferta de tempo — que determina o ritmo do que está a ser mostrado — não se limita a rostos e paisagens, embora se entenda que o desejo que ela satisfaz tenha tomado consciência de si mesmo regressando às coisas em que historicamente essa oferta se fundou. O tempo, os lugares e os retratos que assim se oferecem não são metáforas da antiga parousia cristã nem estão subordinados a uma escatologia (apesar do que aprenderam com uma e com outra na transposição da transcendência para a imanência); mais se parecem com os dos limbos tomistas evocados por Agamben, e onde prolifera, alheada da dicotomia danação/redenção, a nova multidão das “singularidades quaisquer”. Novos trabalhos da figuração O problema da figurabilidade contemporânea — escrevemos estas linhas no final da primeira década do século XXI — é, porém, transversal a todas as formas cinemáticas e pós-cinemáticas com que lidamos, numa época em que cada vez mais imagens de todas as espécies são digitalmente processadas, apresentando-se a digitalização como a principal plataforma técnica para a sua concepção, fabricação e fixação. No cinema, a importância adquirida pela digitalização, pela CGI (Common Gateway Interface),

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pela computação gráfica em 3D e pelos softwares de montagem é hoje num fenómeno suficientemente massivo para que se tenha tornado obsoleto discutir se vai, ou não, tornar-se hegemónico. Ora, a diversidade dos procedimentos envolvidos na criação, tratamento e edição de imagens em computador suscitou novas questões, e rapidamente concluímos que nos falta, inclusive, vocabulário teórico e técnico que nos permita exprimi-las. O vocabulário de que precisamos tem de recobrir um vasto corpus que inclui, quer a reflexão feita por Benjamin na sua “Pequena história da fotografia”, quer as práticas que hoje se generalizam. Enquanto escrevíamos estas linhas decorria uma conferência internacional que a Georgia State University, de Atlanta, organizou sobre o tema geral Rendering the Visible (11-12 Fevereiro 2011; org. The doctoral program in Moving Image Studies, Georgia State University; url: http://communication.gsu.edu/movingimagestudies) — apenas um exemplo de iniciativa que exprime, entre outras, essa preocupação contemporânea. Rendering é, na computação gráfica, o processo de geração de uma imagem a partir de um modelo — modelo que contém, por exemplo, informação geométrica, e sobre a luz, a sombra, a textura e o ponto de vista relativo a um ou mais objectos tridimensionais cuja imagem se pretende criar. No chamado graphics pipeline, rendering designa o último passo que se dá para ver a forma final do objecto criado e sua animação. O termo pode ter sido adaptado da expressão the artist’s rendering of a scene (o acto performativo de criar ou representar uma cena, interpretar ou produzir um trecho musical, etc). Em português traduzir-se-ia, consoante o contexto, por produção, apresentação, tradução, interpretação, representação. Em todo o caso, o “modelo” de que agora falamos já não é o protótipo de João Damasceno nem o Heitor da Verónica de Tournier, e estas imagens já não são fotografias, já não são emanações de referentes que estiveram diante de uma objectiva nem os seus ectoplasmas. Explicando o seu interesse pelo termo rendering, os organizadores da conferência de Atlanta disseram propô-lo por ele poder oferecer uma entrada útil (simultaneamente técnica e teórica) na exploração das continuidades e descontinuidades da nossa compreensão da imagem tecnologicamente produzida, agora em ambiente determinado pela computação gráfica. Num momento em que a produção de imagens por sobreposição de um número cada vez maior de estratos ou camadas as torna, ao mesmo tempo, inteiramente reversíveis, o rendering resulta, por exemplo, das sobreposições de luminiscência (transparência, “translucência”, etc.), sendo que a luz já não se limita a “atingir” o objecto, antes o “envolve” de forma nova e complexa — mas resulta também da sobreposição e sucessão de diversas texturas, tonalidades e regimes de definição da imagem. O mesmo fenómeno pode ser descrito, nos mesmos termos, para a actual produção de sons complexos em computador, e, por maioria de razão, para a articulação entre imagens e sons. Na verdade, a nova imagerie da época digital e da CGI gerou novos “blocos de afectos” — é este o seu efeito mais significativo — que habitam e condicionam o nosso modo de a ver e a nossa relação com ela. Por exemplo, parte da cinefilia contemporânea reage mal à montagem excessivamente rápida de videoclips musicais que investem no efeito estroboscópico, avaliando-a à luz de critérios de montagem cinematográfica a que se habituou e fazem parte do seu vivido. Mas a fluidez da mudança de imagens resultantes de sobreposições, se relativamente lenta, produz um efeito “hipnótico” e é benevolamente lida pela mesma cinefilia, porque é compatível com o vivido cinéfilo anterior à actual geração de dispositivos de criação de imagens.

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A fixação de uma imagem complexa pode hoje passar por um grande número de etapas, metamorfoses e transfigurações, testando elementos infinitamente moldáveis e sempre reversíveis. Em termos de resultados finais, e no que ao cinema respeita, ela convida a uma apresentação dessas metamorfoses e transfigurações, por vezes de grande riqueza imagética, ao longo de durações relativamente extensas. Esta nova figuralidade envolve, assim, a passagem por um número cada vez maior de possíveis fixações da figura “final”, tornando mais incerto e escorregadio o processo de trazer a imagem ao seu ser. Esta fenomenologia não é “nova”: pintura, fotografia e cinema conheceram sobreposições, alterações artificiais de luz e recomposições integradas do que pretendiam figurar, para além de colagens e pastiches de toda a ordem (o mesmo se dirá sobre o som). Nova é a disponibilização simultânea de todos estes dispositivos na mesma plataforma, o disparar da experimentação e a sua total reversibilidade. O devir imagem torna-se mais multifacetado, titubeante e dubitativo, dependente de um maior número de variáveis expostas no trabalho e na experimentação do seu autor — o seu algoritmo mudou. O estatuto da imagem acabada torna-se mais frágil e problemático, porque ela é apenas uma forma possível entre muitas outras, uma forma mais determinada pelo seu carácter transitório, provisório. Ao mesmo tempo, a imagem pode resultar da associação de processos fotoquímicos e analógicos com os disponíveis na CGI, permitindo agenciar suportes e texturas que ainda há pouco tempo era difícil compatibilizar. Por tudo isto, o filme feito “sem câmara” passou a ser uma realidade. E as antigas “ontologias” da imagem tornam-se porventura mais frágeis, mais atentas à diversidade de figurações que os procedimentos oferecem até lhe ser atribuída uma forma “final” que é sempre, e apenas, mais uma mutação figural resultante do processo. Se o fantasma da stasis cinematográfica era a fotografia, agora essa mesma stasis pode ser oferecida apenas por transições, sem que nenhuma imagem acabe por ser apresentada numa “versão final”. Este modo contemporâneo de trabalhar a imagem distingue-se claramente, no entanto, da margem de aleatório deliberadamente deixada, por exemplo em certa pintura moderna e contemporânea, no atingimento do resultado final: os retratos de Marilyn Monroe impressos em silkscreen (serigrafia) por Andy Warhol comportavam voluntariamente uma margem de finalização imprevisível, margem devida à própria técnica de impressão, que incluía uma dose controlada de acaso na finalização. (Num interessante artigo de 2004, Steven Shaviro disse, a respeito dos retratos de Marilyn, que Warhol os quis assim porque Marilyn nunca conseguiu assumir a sua própria personagem, havendo nela uma espécie de deriva ontológica nunca resolvida) (Shaviro, 2004: 125–141). O tratamento digital de imagens e as Computer Generated Images podem incluir variáveis aleatórias como as serigrafias de Warhol, mas a figuração final não depende delas: também os resultados da intervenção dessas variáveis são reversíveis, podendo-se sempre voltar atrás e ao seu não-uso. Estes processos permitem, assim, um controlo dos resultados mais apurado e mais rigoroso do que qualquer técnica anterior, porque alteraram a definição dos procedimentos empíricos de tentativa e erro. Diante destas novas realidades, os organizadores da conferência de Atlanta esperavam que a noção de rendering, ou outras que se revelem teórica e tecnicamente capazes de designar as novas práticas inovadoras, contribua para reenquadrar e re-articular conceitos clássicos como os de “inscrição, fotogenia, punctum, contemplação pelo olhar fixo, materialidade, aura, analogia, contingência, virtual, arquivo, da Unheimliche freudiana (a inquietante estranheza), o trabalho de pôr em imagem, a indexação, a visualidade, a decadência”; e que contribua também para sedimentar conceitos mais recentes como os de “reversibilidade, entrelace, o devir imagem, o

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interface e o “glitch” (perturbação, erro ou disfunção súbita do dispositivo)” — estamos a citá-los no seu texto de apresentação (98). Ambiciosos objectivos. Mas, independentemente da esperança depositada na reciclagem de um termo para o transformar em chave de entrada em problemáticas novas, aqui deixamos a alusão a um projecto que dá conta do que se sente estar em jogo perante a acelerada alteração dos procedimentos “clássicos” e “modernos” de figuração. É sobre este pano de fundo, que nos últimos vinte anos se moveu a uma velocidade cada vez maior, que convém projectar o conjunto de questões que aqui abordámos. Bibliografia citada: AAVV, La Bible de Jérusalem, «Introduction à l’évangile et aux épitres johanniques», Édition du Centenaire, Paris, Les Éditions du Cerf, 13ª ed., 1990, 1523-1527.

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Sobre o fim dos fins — a questão do fechamento da obra

Como e quando sabe um pintor que o seu quadro está concluído? Como e quando sabe um compositor que a sua peça musical chegou ao fim? Como e quando sabe um romancista que já nada falta ao seu texto? Como e quando sabe um cineasta que a pós-produção do seu filme está fechada? A mesma pergunta pode, em princípio, ser feita a propósito de qualquer acto de criação artística. Se a abordamos aqui, é com vista ao esclarecimento das condições que eventualmente a reconfiguraram nas artes contemporâneas, e pensando em primeiro lugar nos jovens criadores que, enfrentando-a inevitavelmente no seu trabalho, podem ter interesse em explorar novos contextos da sua apropriação. No que toca ao cineasta, a resposta a esta questão pode ser irónica: o cineasta sabe que o seu filme está acabado quando se esgotou o tempo e o dinheiro para o pós-produzir. Mas tal resposta, que pertence ao anedotário da profissão e nos faz sorrir benevolentemente, como fariam respostas equivalentes a esta relativas à música, à pintura, ao romance ou às artes da cena, não é adequada e ilude a natureza da questão: a questão não se refere ao esgotamento dos meios de produção ou dos utensílios de trabalho de cada artista; refere-se à decisão artística de dar uma obra como finda, ou seja, refere-se ao sentido e à oportunidade do fechamento de uma obra, o que em francês se designa por clôture e em inglês por closure — e que envolve um trabalho que é feito em parte pelo criador, em parte pelo seu receptor: leitor, público ou espectador. A clôture francesa é a acção de terminar, de parar definitivamente uma coisa, de a dar por concluída. Clore uma coisa é fechá-la, pôr-lhe termo, dar-lhe fim. A closure inglesa é encerramento, oclusão. Para o leitor, público ou espectador de uma obra, a closure é o reconhecimento de um sentido ou sentidos perante uma obra independentemente de ela ser tida por fechada, incompleta ou inacabada (seja ela texto, imagem, cena, trecho musical), porque o cérebro (a actividade cognitiva) identificou semelhanças bastantes com percepções anteriores para reconduzir a significação actual à que a memória guardou. A questão do fechamento ou do não fechamento de uma obra subsiste no universo da criação artística globalmente considerada, quer no domínio narrativo, quer na música, quer nas artes plásticas, dos ecrãs e de cena. É neste vasto âmbito que aqui a abordamos, sem termos excessivamente em conta a especificidade da configuração que ela adquiriu e mantém em cada uma das artes a que aludimos. O enfoque que aqui propomos é anterior à especificidade do problema suscitada pela natureza de cada arte, suas teknai e skills, seus géneros e estilos, e espera ser sustentável numa perspectiva suficientemente transversal. A proposta conceptual do presente texto é, assim, a de que existe matéria de facto bastante para aproximar a ideia de desfecho, ou de fechamento, ou de final de uma narrativa, de um filme ou de uma peça de teatro, da ideia de acabamento de uma pintura ou de uma composição musical, porque todas elas têm em comum o significado da clôture francesa ou da closure inglesa, apesar de habitarem diferentes práticas e de se referirem a métiers criativos que, noutros aspectos, não são comparáveis. Uma tal indagação inscreve-se na fileira seminal da investigação desenvolvida pelo Umberto Eco de há cerca de meio século em Opera aperta (Eco, 1962) e La Definizione dell’arte (Eco, 1968), nos termos em que ele concluía, no segundo desses trabalhos, produzindo uma sugestão metodológica apoiada numa constatação:

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“ ... O primeiro passo a dar é (...) o de uma pesquisa interdisciplinar que, reduzindo a modelos descritivos os diversos fenómenos, possa permitir depois a evidenciação de similitudes estruturais entre eles” (1968: 268). (...) “A obra de arte vai-se tornando, de Joyce à música serial, da pintura informal aos filmes de Antonioni, cada vez mais uma obra aberta, ambígua, que tende a sugerir não um mundo de valores ordenado e unívoco, mas um leque de significados, um campo de possibilidades, e para chegar a isto requer cada vez mais uma intervenção activa, uma escolha operativa por parte do leitor ou espectador”(1968, 273).

A diversidade dos objectos a analisar — textos, quadros, criações musicais, encenações teatrais, fotos, filmes — não deve paralisar-nos, pelo contrário situa-nos directamente numa área de investigação que, sob influência anglófona, se foi tornando progressivamente mais relevante desde aqueles trabalhos de Eco, a dos estudos interartes. E a interdisciplinaridade a que ele se referia envolve disciplinas que não se recobrem necessariamente nem do ponto de vista metodológico nem do ponto de vista dos seus objectos — história e filosofia da arte, estética, história e sociologia da cultura, fenomenologia e psicologia da recepção — mas que podem oferecer enfoques e respostas complementares à elucidação de problemas específicos, sempre observados no seu contexto e historicidade. As homologias entre formas que geram padrões apesar da diversidade das suas aplicações, por exemplo, exprimem a transversalidade de constructs como no caso de certa pesquisa de Panovsky evocada pelo mesmo Eco:

“... pense-se nas pesquisas levadas a cabo por um Panovsky sobre as homologias entre o modo de organizar os elementos da planta de uma catedral gótica e o modo de organizar os elementos de um tratado teológico (homologias que permitem ao historiador de arte reconhecer critérios de actuação unitários no âmbito de uma mesma cultura)” (1968: 191).

“Critérios de actuação unitários no âmbito de uma mesma cultura”: de facto, a questão dos padrões de fechamento da obra de arte só é elucidável no âmbito de uma reflexão que parta da compreensão do conceito foucaultiano de epistema, ou do seu próximo aquário de Paul Veyne, no seio dos quais se desenvolve um dialecto veicular, uma linguagem artística comum ou parcialmente partilhada, geradora daquilo a que um Hubert Damish (1984) designou por aisthesis: uma “rede de vínculos estruturais e dos princípios reguladores, (...) dos meios técnicos, dos paradigmas formais e das semelhanças culturais e ideológicas na qual se enreda a arte de uma época dada”. No universo da ficção literária, o sentido de closure pode ser ironicamente representado pelo que levou Julian Barnes a escrever o seu The Sense of an Ending, de 2011, usando o mesmo título da série de conferências de Frank Kermode no Bryn Mawr College em 1965, marcadamente escatológicas, e publicadas em 1967 (na verdade o livro de Kermode intitulava-se The Sense of an Ending: Studies in the Theory of Fiction e inspirava-se notoriamente no The Structure of Scientific Revolutions, de T.S. Kuhn).

Comecemos pelos regimes e cenários artísticos onde a questão não se coloca, e que são porventura sintetizáveis em três grupos: 1. Tal como vivido pela diversidade das artes, o problema do fechamento ou não fechamento de cada obra nunca se pôs e não se põe para a execução, mimética ou outra, de formas pré-estabelecidas: o artesão que faz uma mesa ou uma cadeira sabe antecipadamente quando o seu trabalho estará concluído. O mesmo se passa com o arquitecto, que opera entre o projecto que desenhou e a sua construção. O pintor de ícones de Bizâncio seguia escrupulosamente um guião de procedimentos técnicos e

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estéticos para concretizar a sua obra, que a seguir era legitimada pelo poder eclesiástico (Mendes, 2011). O pintor japonês de determinado período e escola sabia quando os elementos pictóricos de que dependia a sua composição, e que lhe tinham sido transmitidos pelos seus mestres, já estavam na seda ou na madeira que pintara (Jordan, B. G. e Weston, 2003). Um violoncelista que interpreta uma partitura de Bach, os actores que representam uma peça de Shakespeare ou de Beckett, sabem quando o seu desempenho chegará ao seu termo. 2. Os criadores que trabalham com base em formas canónicas estabilizadas no seio de uma koinè ou de uma aisthesis tal como proposta por Damish também sabem quando o seu trabalho chega ao fim: um soneto está concluído quando a sua composição satisfaz a dimensão e as regras métricas e rimas que o definem. E, de um modo mais geral, há géneros que desde há muito condicionam e formatam os desfechos das obras que os satisfazem — no mínimo prefiguram um campo de finais possíveis — em função da pregnância da gestalt que os informa. Seja em que domínio artístico fôr, a obediência a um cânone inclui o conceito e o design da finalização da obra — como veremos adiante a propósito da obra-prima reconhecida pela antiga corporação. 3. Por razões decorrentes do medium em que trabalha e do construct aberto que o determina, quem cria hypertexts, hyper images ou seus equivalentes cinemáticos para o cyberspace sente facilmente que a questão está datada e não se coloca, porque o sense of closure, o antigo sentimento de completude experienciado pelo leitor ou pelo espectador perante o final clássico de um texto ou de um filme, ou perante um quadro do Quattrocento italiano, é precisamente o contrário da multi-linkagem e dos multi-nodes que transformam o contacto com a obra numa experiência interminável. Pelo menos em teoria, o hipertext e seus sucedâneos mantêm perpetuamente aberta a hipótese de conexão a novas ligações e associações. Neste universo, o sense of closure só subsiste voluntaristamente transportado, para alguns dos fragmentos ou dos links visionados ou consultados, pelo utilizador. É o utilizador que, se porventura sofre da nostalgia dos fechamentos, a satisfaz inventando-os — fazendo, aliás, o que sempre fez, desde muito antes da existência da Internet e da sua interactividade. O problema põe-se, sim, nos actos e nas obras de criação que não se conformam com géneros nem com formas canónicas e por isso enfrentam, caso a caso e sempre de modo imprevisto, a questão da sua própria conclusividade-inconclusividade e do seu acabamento-inacabamento, concebendo, como um acontecimento novo, e ao mesmo tempo, a sua forma final e o construct desta. Ou seja: o problema põe-se aos criadores que afirmam a sua autonomia face à heteronomia dominante (Mendes, 2009), rompendo com matrizes e soluções conhecidas, e provavelmente operando por pequenas diferenças excessivas, como disse Deleuze (Mendes, 2009). Como dar por concluída uma obra quando nada nos diz como concluí-la e não nos interessa, nem mesmo relutantemente, optar por finais ou por fechamentos heteronómicos? Tornando-a deliberadamente inacabada, deixando-a a meio? Mas a meio de quê, visto que a perspectiva do fim foi precisamente o que, eventualmente, se abandonou? Freud espreita por instantes A natureza e a resiliência da questão podem, porventura, por alegoria, ser esclarecidas à luz do que Freud escreveu em 1937 em Análise terminada, análise interminável, sobre a questão de saber quando é que a cura psicanalítica está concluída. Ele admite, de modo lapalissiano, que “uma análise termina quando o analista e o paciente deixam de se encontrar um com o outro para as suas sessões”. Mas, sobre o porquê desse fim das sessões, acrescenta de modo pragmático e profissional: “Qualquer que seja a

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posição teórica que se adopte sobre esta questão, o encerramento de uma análise é, para mim, um assunto de prática” [itálico nosso]. Ou seja: o analista decide, em determinado momento, que estão atingidos os objectivos que aquela prática concreta visava e que dela não há mais nada a esperar. Mas essa decisão exprime o ponto de vista parcial do analista, comporta uma forte margem de arbitrário e significa que, não conseguindo desatar o nó górdio da interminabilidade da análise, ele opta, como Alexandre, por o cortar. Analisemos por um breve instante os critérios que determinaram a decisão de dar a análise por finda. Mais tarde, noutro texto, Freud avançou quatro: primeiro, o paciente já não deve sofrer dos sintomas que antes apresentava e deve ter aprendido a lidar com as suas ansiedades e inibições; segundo, o analista deve considerar que um número apreciável de recalcados foram tornados conscientes e expressos; terceiro, a análise deverá ter tido efeitos suficientemente profundos no paciente para que não haja mudanças suplementares a esperar dela; quarto, terá sido possível atingir um nível de “normalidade psíquica” que se torne estável. Ou seja, estamos diante de critérios que dependem da subjectividade e da aposta, no sentido pascaliano (a aposta convicta na crença), do analista. Sucede, porém, que, desde o seu texto de 1937, Freud reconhecia que sintomas e comportamentos nevróticos podiam ressurgir e ressurgiam muito depois de concluída a análise, e que a noção de fim da terapia carecia, assim, de fundamento teórico. Por isso ele a reduziu a uma questão de prática. A analogia que pode propor-se entre a dificuldade destes procedimentos e critérios analíticos, por um lado, e a questão da determinação do fim de um processo criativo (com vista à concretização de determinada obra), por outro, é relativamente simples — começa e acaba cedo. Em primeiro lugar, a decisão de dar uma obra como acabada resulta de uma prática — a do criador — e obedece tanto a critérios pragmáticos como teleológicos: o criador decide arbitrariamente, apoiado no que o conduziu ali, que o trabalho está feito e que não continuará a “encontrar-se” com determinada obra em progresso para a concluir. Ele “dá-se por satisfeito” pela convergência que conseguiu entre a intencionalidade que o moveu e o resultado da expressão dessa intencionalidade. Esse grau de satisfação alcançado pelo criador deve incluir, para ele, a crença em que foi atingida a materialização, em formas, da ideia ou da intuição que o conduziu ali. Se o criador — por exemplo um pintor — considera para si próprio que tal convergência não foi obtida, sentir-se-á insatisfeito e achará provavelmente que aquele é um quadro “falhado”, ou “não conseguido”. Mas, mesmo que se considere satisfeito com o resultado alcançado, a mesma intencionalidade, a sua modulação ou reformulação é potencialmente geradora de novas buscas de formas e expressões, que beneficiarão do trabalho já concretizado e da apropriação de competências técnicas e estéticas adquiridas nesse trabalho. A redução da decisão do fechamento de uma obra a uma questão de prática tornou-se, de resto, e por força das coisas, ela própria canónica: um livro está acabado quando é publicado; um quadro está acabado quando é exposto e, ainda mais, se é vendido. Mas, se dificilmente o pintor pede o quadro de volta a quem o comprou para o concluir de outro modo, facilmente o autor altera o seu texto em sucessivas edições, como imparavelmente fez, entre nós, um Carlos de Oliveira e como mostram tantas edições críticas a caminho da ne varietur, quando e se esta existe. Por outro lado, a obra de arte produzida em situação de autonomia do seu criador é facilmente uma mensagem cifrada, encriptada, mas cuja cifra ou encriptação não estão integralmente na posse do criador nem do receptor, que experimentam

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diferentes cifras, o primeiro para a produzir, o segundo para a decifrar e interpretar. O primeiro organiza e agencia as suas formas de modo intencional mas não necessariamente transparente para si próprio; o segundo descodifica-as como sabe e sente. Entendidas como processos cognitivos, a produção e a recepção da obra de arte e dos seus códigos encriptados não obedecem na maioria dos casos, em situação de autonomia do criador, a gramáticas consensuais e partilhadas, antes toleram, no acto da criação como no da recepção, a situação de labirinto cognitivo, próximo daquilo a que o senso comum designa erradamente por “irracionalidade”, e que gera a polissemia da obra e o seu carácter “aberto”. É esta, decerto, a mais antiga acepção da abertura de uma obra: a sobreposição palimpsêstica ou labiríntica dos códigos e encriptações tornados obra abre, precisamente, espaço à hermenêutica, à explicação e ao comentário — actividades que por sua vez visam informar o gosto, desempenhando o seu papel de árbitro e de juiz, mas que podem ser absolutamente alheias à experiência estética e à contemplação. A poiesis e os seus explananda são experiências e exercícios distintos, e a primeira não depende essencialmente dos segundos para existir (a não ser por razões históricas de mercado), ao contrário dos segundos, que dependem inteiramente da primeira como o parasita depende do seu hospedeiro. Corporações e academias Vale a pena recordar, quando falamos de cifras e de encriptações, que, ao longo dos sucessivos núcleos de experiência que deram forma à história ou histórias das artes, o “mistério” e o “segredo” da obra-prima consistiram quase sempre na apropriação e no controlo excepcionais de técnicas tidas como difíceis, e cuja aprendizagem decorria protegida pelo segredo oficinal e corporativo: isto tanto foi verdade na Bizâncio dos ícones, na pintura japonesa e entre os primitivos flamengos, como no atelier Da Vinci ou no trabalho dos realizadores cinematográficos que se iniciaram como assistentes de Renoir ou de Antonioni. Essa “iniciação” aos “mistérios” e “segredos” da obra-prima representava aprendizagens tidas como só possíveis na transmissão pessoal, de mestre a discípulo, de competências artesanais ou artísticas difíceis de adquirir noutro contexto relacional. De facto, a história das relações entre heteronomia e autonomia foi pré-configurada pela história das corporações e academias: na Idade Média, a corporação dos “pintores e entalhadores de imagens” detinha o monopólio do ofício e determinava a entrada do aprendiz, aos doze anos, para um atelier onde a sua aprendizagem duraria cinco anos; o estágio de companheiro (oficial) durava mais quatro anos; e a produção de uma obra-prima fechava o ciclo da formação e conduzia à sagração do iniciado como mestre. Como escreveu Tenaguillo y Cortázar (2005: 413-423), introduzindo uma subtil e nem sempre rigorosa distinção entre o estatuto do artesão e o do artista:

«…O artesão realizava uma obra-prima, ou seja, uma obra difícil que lhe garantia o reconhecimento na sua corporação. Essa obra deveria ser perfeita e correspondente a um estilo, mas sobretudo garantia que estava adquirido um domínio da técnica. A obra-prima artística também era factor de admissão, mas punha em jogo a subjectividade estética do artista e do seu público — a questão pertencia ao domínio da recepção, e punha o problema paradoxal da eternidade da obra-prima, sabendo nós que os valores estéticos estão longe de ser eternos, antes estão sujeitos às variações históricas do gosto».

A corporação reconhecia. Mas desde cedo a protecção do Rei ou da Rainha, da Igreja ou da Universidade, ofereceram modos de escapar à formação e ao reconhecimento

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corporatista; na Itália renascentista, os Médici alargaram, na segunda metade do séc. XV, essa protecção e tornaram o artista num criador liberal, num alter deus liberto da sua anterior identificação com os ofícios manuais. A Academia de Florença, a partir de 1563, e a de Paris, a partir de 1648, redesenham a profissionalização do artista, que conhecerá novo cânone com a reforma, por Colbert (encarregado do mecenato real das artes e das ciências), da Academia de Luís XIV, empreendida nos anos 60 do séc. XVII e concluída em 1672. O artista — agora académico — passa a ser aceite, vê reconhecido o seu trabalho pessoal e produz o seu morceau de réception (pintura de história, cenas de género ou natureza morta e dois retratos) para a Academia, detendo esta o monopólio das encomendas reais. Nomeado por despacho, o artista-académico ora vive e trabalha no Louvre como um funcionário, ora ali recebe ensino gratuito, situação que se manterá até à Revolução e à dissolução de 1793. Os alunos começam por copiar os desenhos dos seus mestres, depois desenham gessos de esculturas clássicas e finalmente modelos vivos, sempre na perspectiva da imitação da natureza como feita pelos clássicos. Os professores dão aulas diariamente sob pena de pesada multa, desenham os modelos para ensinarem os discípulos e corrigem os desenhos destes últimos. A imitação de um mestre é uma etapa obrigatória da formação. Durante o período áureo da Academia, concluir um quadro consistiu em fazê-lo como o teriam feito Rafael, Michelangelo, Rubens ou, já nas vésperas da Revolução, como o teria feito Nicolas Poussin. A Academia declina depois da morte de Colbert, conhece sucessivos períodos de ortodoxia e de laxismo e vê-se substituída, em 1795, pela “Associação Revolucionária das Artes”, que dará lugar ao Instituto de França. Mas só bem mais tarde, com Delacroix e os românticos, com os primeiros salões de independentes e uma nova casta de marchands, a sociedade francesa se interrogará sobre quem é afinal artista, e se confronta pela primeira vez com aqueles que se declaram a si próprios como tais, recusando a herança corporatista e académica. Apesar da importância histórica do seu posicionamento individualista e anti-académico, não consideramos produtivo alimentar aqui, dada a questão que nos ocupa, o fantasma recorrente do artista romântico que, possuído por fúrias, cria em transe a partir do nada (a criação ex nihilo está vedada aos humanos) e é incapaz de falar do que faz, alimentando a clássica dicotomia entre ele próprio, que existe fazendo coisas, e o seu crítico ou comentador, que subsiste falando do que ele faz. Felizmente, a história das artes plásticas, da música, do teatro, da fotografia e do cinema está suficientemente cheia de artistas que falaram e escreveram sobre o que faziam ou fazem para que esse fantasma se tenha em grande parte — mas não totalmente — esvaziado (ele subsiste como o esqueleto no armário de cada artista). Existe, decerto, um estado segundo característico do trabalho de criação, entendível à luz do que sabemos sobre a atenção (a atenção dada a uma coisa exige desatenção em relação às outras) e a concentração. Esse estado segundo da concentração é característico de muitas actividades, e não apenas da artística. Mas, em muitos casos, o discurso do artista sobre a sua obra é um mergulho vertical na sua estética e técnicas, válido inter pares, por vezes acentuadamente poemático (no sentido heideggeriano de A origem da obra de arte) (Heidegger, 2005), e por isso esse discurso não é um objecto comum de comunicação. Mais: com alguma frequência, esse discurso, poemático e inter pares, entendível na comunidade cúmplice dos iniciados, sofre da síndrome de profundidade (evocada pelo Steiner de Real Presences) (1989): a certa distância da superfície, o mergulhador persuade-se de que consegue respirar na água, liberta-se do oxigénio e afoga-se.

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Escrevendo sobre a sua pintura e a de outros, Júlio Pomar (1986: 131) soube preservar-se desse afogamento: fechando o seu livro de modo particularmente vertiginoso e poemático, escreve ele na sua última página, travando-se, e à maneira de epílogo:

“Não me apetece continuar: este carreiro corria o risco de nunca chegar a um fim, visto que as imagens que o compõem se renovam com uma prática dia a dia retomada e questionada. E com a matéria da palavra a seduzir o acto de escrever, assim como a memória que lhe serve de suporte, suspeito que o meu discurso ameaça deslizar para esse olvido que nos de má vista deve fazer as vezes de preguiça do olhar”.

Mas este excursus sobre algumas características da criação não ajuda a ponderar a questão dos finais e do fechamento da obra — ajuda-nos, sim, a compreender que, fora dos moldes e dos constructs conhecidos, os finais são provavelmente sujeitos às mesmas cifras e encriptações a que se deu forma no desenvolvimento da obra. Ou seja, para um artista para quem continua, de algum modo, a fazer sentido o problema do fechamento da sua obra, esse problema não é significativamente distinto do agenciamento interno dos conteúdos e/ou formas que ele enfrentou e com que se debateu antes do momento da closure. Das grutas de Lascaux a Jean-Michel Basquiat e dos murais funerários egípcios a David Hockney, a abordagem, pelo pintor, do suporte virgem — papiro, papel, tela, tecido, madeira, vidro, parede, outros — está tão sujeita a saberes práticos e procedimentos técnicos de escola ou de época como à sua negação, de tal modo que a variedade infinita dessas abordagens torna o seu inventário descritivo meramente enciclopédico. Para citar exemplos “muito cá de casa”: seja o pintor dominado pela composição de formas e cores como João Hogan e Árpád Szenes, pela compulsão para o palimpsesto como certo Eduardo Batarda, pela profundidade labiríntica de uma azulejaria ou de mosaicos como certa Vieira da Silva, ou pela aparição da mancha luminosa e disforme como certo Noronha da Costa próximo de Turner, não são aqueles saberes práticos e procedimentos técnicos que geram a identidade das respectivas obras, mas a precipitação de cada um destes artistas em direcção a determinada concepção do achèvement du tableau, do acabamento da obra, da sua figura final. E essa precipitação, por mais incerta e errática que seja, exprime o sens of closure que resulta da obsessão de cada um por determinada ideia da completude. As composições abstractas de Eduardo Batarda onde uma rede de elementos negros acaba por “devorar”, sobrepondo-se-lhe, todo o quadro previamente pintado, são um bom exemplo de palimpsesto: o quadro passou por uma série de versões, qualquer delas entendíveis por um seu eventual “público” como finais, mas o autor “sabe” que ele ainda não está fechado. O investimento feito nesse percurso — entre o suporte virgem e a decisão de dar o quadro como acabado — exprime a dimensão do quadro como sistema e existência em devir: cada novo “acto de pintura” que o vai transformando, alterando-lhe a organização das massas, das cores, das linhas de composição, visa um sentido incerto e pode falhar; todos os equilíbrios e desequilíbrios por que a obra em devir vai passando podem ser assumidos como versões finais para o seu “público”, mas não para o artista, que persegue um fechamento que ainda lá não está. Entendido esse percurso como a “vida” do quadro, a sua conclusão é a sua “morte”. Uma comparação por contraste pode ser feita com a produção digital de imagens resultantes da sobreposição de sucessivos layers: como o rendering das sucessivas versões, ao contrário do que se passa na pintura, é sempre reversível, a ideia de versão final esboroa-se e perde pertinência: neste caso, a marcha do palimpsesto pode regredir, convidando o seu autor a ignorar o sens of closure, e a

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sentir-se confortável quando lost in the rendering. Sobre estas matérias escreveu Júlio Pomar uma passagem particularmente expressiva (loc. cit.:33):

“Um quadro nunca está acabado. É impossível acabá-lo (Motherwell). À falta de uma convenção exacta, o fim do quadro, na medida em que este é concebido como um processo aberto, depende da cortina imaginária que virá pôr termo às acção do pintor. Uma fractura, um acontecimento qualquer ou o simples esgotamento limitam muitas vezes o tempo de produção do quadro, talvez à maneira do enquadramento desleixado de uma fotografia de amador, o que acrescenta ainda mais arbitrariedade à arbitrariedade do quadro. A razão penetrante de Duchamp encontrou a bela fórmula definitivamente inacabado para o passaporte da Mariée” [ref. a La Mariée mise à nu par ses célibataires, même].

Mais adiante escreve Pomar (loc. cit., p. 47-48), explicando-se sobre as relações entre pintura e narrativa, e sobre o que fica narrado no quadro quando o seu autor o abandona à recepção — sublinhamos aqui esta sua passagem por vir de um pintor contemporâneo atento à história da pintura e ao que ela sempre inclui:

“Não há pintura sem narrativa. E aqui penso bem o que digo, pensando em Cézanne, em Matisse, em Mondrian (...). É nas obras mais despojadas de correspondências literárias, de lábios cerrados a toda a espécie de palavreado, que melhor podemos (...) seguir a narrativa — a traça — da pintura. A narrativa produzida pela própria pintura dá-nos o tempo da obra, em que (...) se sobrepõem acções de várias velocidades (...). [Há] dois tempos para o pintor — de cuja diferença o duplo deste (talvez sem o querer), o receptador do quadro, deverá aperceber-se. O primeiro seria o tempo da feitura, o tempo de efracção do suporte, o tempo que o quadro levou a ser pintado. (...) Essa narrativa — exclusivamente visual — mas que na maioria dos casos só minimamente permanece visível, será parasitada por outras narrativas, entre as quais a da representação do tempo. Este tempo representado seria, ora o instante da aparição, ora o resumo da acção descrita pela imagem, se ela se desmultiplicar ou se produzir em movimento — em movimento a reproduzir numa narrativa dramática (...). Esta narrativa dramática é o engodo da narrativa pictórica”.

Uma certa ideia de acabamento Invocando Motherwell, Pomar diz que é impossível acabar um quadro, e nós compreendemo-lo à luz da reflexão moderna e contemporânea sobre o sentido desse inacabamento — a ideia de fechamento foi mudando palimpsesticamente com a transfiguração das koinè e das aisthesis precedentes. Na sua época, ninguém perguntaria a Hans Holbein (Jovem), por exemplo, qual a sua ideia de acabamento de um quadro: observando Les Ambassadeurs, a convenção da ocupação total da superfície do suporte, a sua composição complexa e os equilíbrios a que obedece, a colecção de objectos meticulosamente escolhidos para figurarem entre o embaixador francês Jean de Dinteville e o bispo Georges de Selve, o chão de pedra trabalhada, o crucifixo que apenas se vislumbra atrás da cortina (no topo esquerdo da pintura) e a célebre anamorfose do primeiro plano, que, satisfazendo um gosto de época, se justapõe ao retrato num oblíquo impossível e dele parece querer saltar, percebemos até que ponto avançou o pintor na minuciosa intencionalidade do seu acabamento, ao mesmo tempo em concordância com a legis artis da sua época, mas produzindo uma obra-prima resultante da formatividade (no sentido de Pareyson) da sua busca individual. Numerosos autores, desde Mary Hervey em 1900 (Holbein's Ambassadors: The Picture and the Men) a John North em 2002 (The Ambassadors’ Secret) interpretaram infindavelmente o quadro; Hervey, historiadora, leu-o como um testemunho de uma

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missão diplomática difícil face ao previsível rompimento protestante com a Igreja de Roma; North, numa tradição iconológica que não desdenha a herança de Panovsky e os estudos de Aby Warburg, avançou chaves de leitura do quadro que põem em jogo astronomia, astrologia, numerologia e alquimia.

De facto, seria ocioso multiplicar os exemplos de preocupação com a ideia de composição e de acabamento na pintura, tão constantes e tão diversos foram, na longa duração, atravessando épocas e escolas. Bastará que se pense em Les demoiselles d’Avignon, de Picasso (1907), e na multidão de desenhos, esboços, aguarelas que o prepararam desde 1905, e onde são canibalizadas e digeridas as influências mais diversas (de Le bonheur de vivre de Matisse, 1906, da primeira versão do Grand Nu de Braque, 1906, das Grandes baigneuses de Cézanne, 1900-1905, da Mademoiselle Cha-u-Kao de Toulouse-Lautrec, 1896, dos nus femininos de Gauguin, da pintura anterior do próprio Picasso como La femme aux bas verts e o Nu bleu, quadros de 1902, mas também das Femmes d’Alger de Delacroix, das antigas cabeças ibéricas, máscaras africanas e objectos etnológicos que lhe serviam de modelo, etc.) para se perceber que o quadro é um melting pot e um concentrado de influências: uma espécie de enorme síntese e de balanço desafiador, cuja organização espacial cedo foi decidida, apesar dos esboços de composição se terem mantido até muito tarde, com supressão de figuras inicialmente previstas e redefinições de outras, mas sem alteração do equilíbrio de base que a enorme tela viria a respeitar. Note-se, por exemplo, a “natureza morta” em posição central no baixo da tela, que substituiu o vaso de estudos anteriores mas sem alteração do seu valor estrutural no equilíbrio da composição (interrogado uma vez sobre a subsistência, em algumas das suas telas, de elementos de composição comparáveis à natureza morta das Demoiselles de Picasso, Francis Bacon não soube como explicá-los e respondeu incomodado).

Osembaixadores,deHansHolbein(oJovem).Lesdemoisellesd’Avignon,dePicasso

No quadro de Picasso, a convenção da ocupação total da grande tela, a ideia de composição e seus equilíbrios, ainda herdam do Holbein Jovem e de numerosos constructs posteriores, mas o quadro pertence à abertura de um novo dialecto veicular e de uma nova aistheisis que já nada têm a ver com a representação fiel do real, propondo uma revolução no modo de o figurar e questionando, num mundo pós-fotográfico e que acaba de ver nascer o cinematógrafo, o que é, para a pintura, figurar esse real. E a rudeza deliberada da execução, o tratamento sumário dos tecidos que cobrem parcialmente três das mulheres, o uso abrupto da cor, as alusões a primitivismos artísticos, manifestam um simulacro de inacabamento que o pintor deliberadamente quis garantir no seu trabalho.

Por vezes, a minuciosa obsessão técnica com o percurso que leva ao fechamento de uma obra permanece extrema, mesmo que o resultado visado seja o de um

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“instantâneo” fotográfico de expressão cinematográfica, que apenas fixa, como por acidente, um momento do quotidiano banal: é o caso de A view from an apartment, fotografia trabalhada por Jeff Wall durante cerca de um ano, entre 2004 e 2005, e destinada a tornar-se numa transparência de grandes dimensões exposta em caixa de luz: para a realizar, Wall procurou e alugou por tempo indeterminado, em Vancouver, sua cidade natal, um apartamento que desse para o porto (pretendia fotografar um interior com vista para aquele determinado exterior); depois contratou como modelo a jovem à esquerda, na imagem, e pediu-lhe que o mobilasse e ocupasse como se nele estivesse a viver; durante esse trabalho preparatório, que durou meses, fotógrafo e modelo entenderam-se sobre a conveniência de acrescentar ao projecto de fotografia uma segunda personagem, a mulher sentada à direita, amiga da primeira. Wall fotografou a cena pretendida durante cerca de dois meses (Fried, 2008: 56-62) e acabou por combinar digitalmente uma selecção de diversas imagens obtidas a partir da mesma posição fixa da câmara, incluindo a vista da janela, porque pretendia para esta uma luz não coincidente com a do interior, interior que por sua vez transformara num estúdio e iluminara como tal. Na imagem final, a jovem de pé está a mover-se a pedido do fotógrafo, como que representando um papel previamente combinado, mas a personagem sentada nem sabia que estava a ser fotografada no momento em que Wall dela obteve a imagem que acabou por seleccionar (informações prestadas por Wall em entrevista). Deste trabalho moroso e complexo, como em muitos outros do mesmo autor, resultou uma imagem que, apesar da complexidade do percurso que lhe deu origem, pretende ter o look de uma fotografia banal, obtida por acaso, a meio de ocupações domésticas, por exemplo numa tarde de fim-de-semana — e que sugere uma narrativa inacabada, ou um fragmento de narrativa.

Uma palavra mais sobre a tensão entre abertura e fechamentos: a propensão para o fechamento, no sentido de closure e de clôture, está intimamente ligada à ideia de completude e de realização através da manifestação de um sentido final. O fechamento é, nestes termos, equivalente a um statement, a uma declaração conclusiva, mesmo que seja consubstanciado por um mero gesto de abandono da obra por parte do seu criador. Mas, nos nossos dias supostamente vítimas de uma crise de valores generalizada — que Zigmunt Bauman descreveu como modernidade líquida (Bauman: 2000) — a busca de fechamento exprime facilmente a tentativa de regresso a um valor seguro da idade das academias e dos cânones, compensando a incerteza e a ambiguidade de todas as aberturas e a hegemonia cultural dos relativismos.

Alguns sincretismos filosóficos motivados pela ansiedade gerada pela crise de valores (Lawson, 2001) voltaram, nessa busca de valores-refúgio, a defender que toda a experiência humana do mundo e da vida depende de uma rede tendencialmente infinita de closures, entendida como um fluxo cognitivo que invade todos os níveis da sensação e da percepção, da linguagem e da cognição, das matrizes de comportamento e do devir da acção. A esta luz, é a operatividade da closure que permite a geração de padrões e de imagens reconhecíveis ou conjecturais do real, a geração de modelos operativos e dos registos da memória; e todas as operações de conhecimento, sejam elas sensoriais, perceptivas ou intelectuais, pertençam ao domínio das artes ou da ciência, dependem da closure na medida em que é esta que permite o reconhecimento e a descrição de uma singularidade qualquer. Quando falamos da abertura (openness) do sensorial, do perceptivo ou do cognitivo, estamos, segundo esta perspectiva, a falar de aberturas que são geradas no seio do sistema das closures. As aberturas são posteriores às oclusões, resultam delas e fazem-lhes frente. I. e., ao serem geradas no seio desse sistema que as precede, as

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aberturas desafiam-no e constituem para ele uma ameaça — são episódios perturbados, no sentido clínico — na medida em que sugerem uma suspensão do funcionamento do sistema e requerem reavaliações perceptivas e cognitivas, e por isso reavaliações semânticas, de um qualquer particular. Para Lawson, quando dizemos que todas as artes modernas e contemporâneas tendem para a abertura, estamos a afirmar que essas artes assumem esse desempenho desafiador e reavaliador; mas a própria declaração “todas as artes modernas e contemporâneas tendem para a abertura” é, a esta luz, um exercício de oclusão, porque fixa e fecha o sentido de uma percepção e um conhecimento. Não nos deteremos aqui a discutir a extensão da operatividade que Lawson pretende atribuir à closure, embora tal extensão mereça, talvez, o comentário crítico que o Lalande (dicionário filosófico) em seu tempo fez sobre os “conceitos que, pretendendo tudo recobrir, acabam por nada designar”. Mas, se não reteremos do argumentário de Lawson a ideia de que o fechamento ou oclusão é o próprio organon do conhecimento do mundo e da instauração da linguagem, cremos que vale a pena guardar dele a ideia de que fechamento e abertura coexistem e se fazem perpetuamente frente como irmãos inimigos, e especificamente no domínio de que nos ocupamos aqui — o da criação artística e literária. Por mais arcaica e historicizada que seja, a propensão para o fechamento é desde há muito acompanhada e compensada pelo desejo e pelas inquietações da abertura e do inacabamento. E a abertura e o inacabamento sabem sobre si mesmos que são gestos autónomos contra a heteronomia, e que precisam desse lugar de litígio com o seu irmão inimigo para, nele, se firmarem e afirmarem o seu valor.

O peso dos cânones No domínio maioritário da heteronomia, a questão do fechamento-acabamento de uma obra gerou tipicamente ansiedade e angústia. Não é por acaso que, por exemplo, longe das artes plásticas, no âmbito técnico da escrita para o ecrã, tantos manuais que sonham ensinar guionistas a escrever histórias aconselham os neófitos a dotar-se previamente dos meios adequados — outline, sinopse, tratamento — antes de avançar para o script propriamente dito, a “peça para o ecrã”. Porquê? Porque desses meios adequados faz parte a descrição prévia do final; parte desses manuais sugere, aliás, que os neófitos comecem a escrever os seus scripts pelo fim, de modo a forçar a escrita que o precede a tornar-se decisivamente num percurso que a ele conduz. Esta metodologia herda da estrutura néo-aristotélica do princípio-meio-fim (cf. Poética) e funciona como uma medicina preventiva contra as derivas e o desnorte a meio do percurso. Os leitores “filosóficos” de Aristóteles, aqueles para quem a Poética não é separável da restante obra do estagirita, sabem que o elemento decisivo dessa estrutura em três tempos é o final (a materialização da perspectiva finalista) e que os dois outros são caminhos destinados ao seu atingimento. A angústia provocada pela adequação dos finais à narrativa que os precede também é conhecida da história heteronómica da música ou da pintura: acaba esta fuga ou este adagio segundo as normas da fuga e do adagio? Satisfaz o soneto as suas regras? Está o quadro terminado de acordo com a legis artis que o pintor quis satisfazer? Falta-lhe alguma coisa para estar reconhecidamente completo? “Falta-lhe”: na heteronomia, a ausência do final adequado é sempre entendida como uma falta, um manque à être. Convirá reconhecer, a este respeito, que, com frequência, o cânone de um género ou de uma forma não foi estabelecido pelo Urtext para que ele remete e que o justifica: mais do que a Poética de Aristóteles, por exemplo, foi a sua reconversão em vulgata

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por Lodovico Castelvetro (1505-1571), tido em Modena como “um novo Sócrates” mas mais tarde excomungado, e que publicou em 1570 La poetica di Aristotele volgarizzata ed esposta (Charlton, 1913), que influenciou o néo-clacissismo dramatúrgico e instituiu as três unidades (de acção, espaço e tempo) como norma não contestada durante um vasto período, apesar de um Shakespeare (1564-1616) apenas dela ter tido conhecimento indirecto e de, por vezes, a ter ignorado deliberadamente. Uma breve referência ao contexto e à relevância do tratado de Castelvetro: O concílio de Trento (1545-1563) foi a peça-chave da contra-reforma e a resposta da Igreja de Roma ao calvinismo e ao luterianismo, e é vantajoso estudar a sua articulação com o segundo renascimento (de meados do séc. XV a 1520), o tardo-renascimento (a época de Leonardo, de finais do Quattrocento aos primeiros anos do Cinquecento) e o maneirismo (a transição entre tardo-renascimento e maneirismo é sobretudo representada por Michelangelo: o maneirismo estende-se de cerca de 1520 a 1590). No que respeita à redescoberta dos clássicos e da Poética de Aristóteles, uma De arte poetica de Marco Girolamo Vida, publicada em 1527 mas referenciada desde 1516, refere-se a Horácio, Cícero e Quintiliano, difundindo os seus preceitos e defendendo a imitação [mimesis] dos clássicos e da natureza. Se a segunda metade do Quattrocento fora a era do experimentalismo e do inacabamento (poesia de Poliziano, Pulci e Boiardo), agora o bem-acabado, a estabilidade e o regresso aos cânones iriam tornar-se dominantes, sobretudo através da Poética de Aristóteles, tornada, a partir dos anos 30, na referência principal dos discursos sobre a arte: a sua versão latina, de Alessandro de Pazzi, surge em 1536; em 1548 surge o comentário de Robortello e no ano seguinte a tradução italiana de Bernardo Segni. Entre os comentadores há, então, os que privilegiam, como Daniello e Robortello, que a poesia é puro prazer, um prazer que torna pacífica e sensível a verdade filosófica universal; e os que sublinham nela a disciplina moral e civil que, através da catarse, purificará as emoções — é a posição defendida por Maggi, Lombardi e Giraldi Cinzio, e que se tornará hegemónica na segunda metade do Cinquecento, em sintonia com a nova autoridade tridentina e com a contra-reforma. Uma outra vertente da discussão ocupa-se das regras a cumprir pelos dois géneros literários maiores, o poema heróico e a tragédia, vendo esta última codificadas as três unidades aristotélicas de lugar, tempo e acção (não explicitamente previstas, como “unidades”, pelo estagirita). Em outros géneros, Petrarca e o seu uso do italiano tornam-se o modelo a seguir, enquanto na prosa ganha peso o modelo do Boccaccio do Decameron. Em 1570 sai em Viena, pela mão de Gaspar Stainhofer, a primeira edição de La poetica di Aristotele volgarizzata ed esposta de Castelvetro (o livro estava terminado desde 1567); a segunda edição, de P. de Sedabonis, sai em Basileia já postumamente, em 1576. O livro, escrito em italiano vulgar, consagra as três unidades “aristotélicas”, a função central e obrigatória da catarse e uma quantidade inusitada de preceitos e normas rigorosas para a construção da obra dramática, que se manterão invioladas até ao romantismo. Eis como Franco Pignatti (s.d.) descreve a estrutura interna do tratado:

“L'opera è divisa in sei parti principali, a loro volta divise in particelle che sono le porzioni di testo prese in esame. Ogni particella ha quattro sezioni: il testo greco, la "contenenza" (titolo sommario della particella), il volgarizzamento, la "sposizione" (cioè il commento). L'intelaiatura del trattato è data dalla combinazione delle tre componenti dell'imitazione indicate da Aristotele e delle loro articolazioni interne: materia (azioni migliori, simili, peggiori), strumento (numero [cioè danza]; numero

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'armonia [cioè musica]; numero'armonia'parole in un tempo; numero'armonia'parole in diverso tempo), modo (narrativo; rappresentativo; similitudinario)”.

Eco e a obra aberta Abordando na sua Obra Aberta, de 1962, a natureza da obra de arte como uma mensagem fundamentalmente ambígua, pluralidade de significados que coexistem num só significante, “um infinito contido num finito” (para usar a expressão de Pareyson), Umberto Eco referiu-se a quatro exemplos musicais (o Klavierstück XI de Karlheinz Stockhausen, a Sequenza pour flûte seule de Luciano Berio, o Scambi de Henri Pousseur e a terceira sonata para piano, de Pierre Boulez), que rompiam com a tradição da comunicação da música, por deixarem ao intérprete a liberdade de determinar a duração das notas e a sucessão dos sons. Tais partituras propunham ao intérprete um acto de relativa “improvisação criativa”, ou de “liberdade consciente”, distinto do ditado de uma partitura rígida. E acrescentava Eco, para esclarecer a diferença entre a obra fechada e a obra aberta:

“Qualquer obra de arte, apesar de acabada e fechada na sua perfeição de organismo exactamente calibrado, é aberta pelo menos porque pode ser interpretada de diversos modos, sem que a sua irredutível singularidade se altere”. [Fruir uma obra de arte torna-se então] “dar dela uma interpretação, uma execução que a faz reviver numa perspectiva original”.

Cremos que Eco se refere aqui, quer à interpretação dos instrumentistas convidados à “improvisação criativa”, quer à interpretação do receptor. Mas os seus exemplos significam que o fim do fim implica necessariamente o fim do meio e o fim do princípio: não é apenas o dénouement ou a clôture da peça que está em causa, mas sim a totalidade da sua organização interna enquanto linearidade ou labirinto de linearidades dirigida para determinado fechamento ou desenlace. Esta “desconstrução” é particularmente notória na narrativa e na música, no drama e no cinema, artes que têm directamente a ver com o tempo (tempo de leitura, duração da peça musical ou teatral, ou do filme). Mas também nas artes plásticas o sentido do fechamento é, de outro modo, e no contexto das suas teknai próprias, atingido pela mesma dinâmica, como vimos com Pomar. Não iludiremos a questão de que existe um limiar da interpretação a que Eco não se refere e a partir do qual a autoria muda: sob pena de chamarmos a atenção para o óbvio, os diversos estudos de Picasso sobre Las Meninas de Velázquez, por exemplo, são obras de Picasso, não de Velázquez. Ou seja, a “liberdade consciente da interpretação” de Las Meninas por Picasso não se faz sem que “a irredutível singularidade [da obra de Velázquez] se altere”. Pelo contrário, dá origem a outras obras, como quando Van Gogh pintou Le pont sous la pluie ou Le prunier en fleurs a partir de Averse soudaine à Atake e de Pruneraie à Kameido, de Utawaga Hiroshige. Van Gogh ou Picasso já não se encontram na posição dos funcionários da Academis de Colbert, embora ainda elejam os seus mestres e trabalhem a partir deles. Numa zona indecidível fica, aparentemente, mas na música, a interpretação livre das Quatro Estações de Vivaldi por Nigel Kennedy, por exemplo: Vivaldi está em Nigel Kennedy como Hiroshige está em Van Gogh, mas é impossível dizer que “as irredutíveis singularidades” de Hiroshige e de Vivaldi “não se alteram” nas interpretações de Van Gogh e de Nigel Kennedy. De facto, a questão parece ser bem mais simples: a história da pintura, da fotografia e do cinema, por exemplo, estão cheias de remakes e de obras feitas a partir de…, sem que esse facto diminua a autoria de uns e de outras. Mas Velázquez, Vivaldi e

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Hiroshige fizeram, obviamente, obras fechadas, que não se destinavam a ser recriadas em co-autoria com intérpretes, ao contrário dos exemplos citados de Stockhausen, Berio, Pousseur e Boulez, criadores musicais. Ou seja, a intencionalidade da autoria e a especificidade da arte praticada decidem sobre o âmbito em que se discute a abertura e o fechamento de uma obra. Os exemplos mais claros desta incomparabilidade entre obras fechadas e abertas vêm-nos da prática teatral: quando Shakespeare é mais uma vez reposto em cena no respeito do texto que dele nos chegou, a “irredutível singularidade” da sua obra não se altera — é respeitado o seu fechamento, independentemente da interpretação dos actores ou da qualidade da encenação. Mas se um autor contemporâneo redigir um mix de uma dúzia de peças de Shakespeare e o puser em cena, ninguém dirá que esse mix é de Shakespeare, porque a sua “irredutível singularidade” de autor de obras fechadas foi destruída. No seio do “novo” universo das obras abertas que analisava em 1962, Eco referia-se a um tipo particular de trabalhos que fugiam do seu fechamento material, e que designou por “obras em movimento”. Exemplos (da época) de “obras em movimento” seriam, na música, o já citado Scambi de Pousseur; nas artes plásticas, os mobile de Calder ou as obras de Bruno Munari; na literatura, o abortado Le Livre de Mallarmé, cujos fragmentos são intermutáveis (a sua ordem é arbitrária), podendo-se agenciá-los de diversas formas (a maioria dos textos foram destruídos por vontade do autor na sua morte, em 1898, mas ficou deles um bloco-notas que Jacques Scherer editou em 1957 com o título Le "livre" de Mallarmé). No seu Le livre à venir, Maurice Blanchot viria a referir-se ao bloco-notas de Mallarmé como um work in progress que “é sempre outro (…), nunca está lá, desfazendo-se incessantemente enquanto é feito”. É um lance de dados (un coup de dés) que abre uma série de possíveis, uma colecção de virtualidades a que foi acidental ou deliberadamente subtraída uma forma final. Tradições de inacabamento Regressemos à nossa questão central: o fechamento de uma obra — a consciência de que ela está bouclée — obedece a padrões explícitos ou implícitos de conformidade ou de inconformismo com procedimentos técnicos e artísticos datados e relativos a géneros e estilos, relativamente reconhecíveis pela heteronomia, pela recepção e pelos seus habitus — e neste caso as convenções de comunicação ou a sua ruptura dominam a prática do criador. Do mesmo modo que um conto moral ou um haicai vêm de diferentes pregnâncias da sua forma, também uma tela de um Van Eick ou de um Pollock representam diferentes conformidades com a ideia de completude. A propensão para a inconclusividade ou para o inacabamento atravessou toda a arte moderna, mas já está patente em algumas esculturas de Michelangelo (os Prisioneiros, ou Escravos), que sobre elas disse que trabalhar mais a pedra o teria levado a perder o essencial do já ali contido — uma lição bem aprendida, três séculos e meio depois, por Rodin e por Camille Claudel. Por seu turno, na literatura e no drama, Mallarmé, Virginia Wolf, Artaud ou Guyotat cultivaram estéticas do inacabamento que Michel Leiris ou Blanchot tentaram compreender e tematizar. No cinema, como salientou Dominique Païni (1997), Louis Feuillade adiou interminavelmente os desfechos dos seus folhetins, Rivette filmou como um pintor pinta, sem saber como ia terminar os seus filmes, Garrel finaliza os dele com montagens poemáticas repletas de ligações incertas ou indecidíveis. Em todos os registos artísticos, os expedientes do inacabamento geraram uma estética e uma inquietação contrárias à do acabamento: inachèvement contra bouclage, incerteza e ambiguidade contra conclusividade e fechamento.

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No domínio literário, o inacabamento da obra tornou-se — tantos são os exemplos — numa área de estudos e os contributos relevantes para tal área são hoje multitudinários, analisando textos deixadas a meio, ou tidos como works in progress, ou sucessivas versões da mesma obra, ou edições revistas e corrigidas, ou textos no fim dos quais se escrevia “continua”. Próximo, nesta matéria, de Francis Ponge, que desenvolveu, nos seus textos curtos e apontamentos, uma estética do “perpétuo inacabamento”, Valéry (1973) escreveu sobre os seus próprios cadernos que “tudo o que aqui está escrito tem o carácter de nunca querer ser definitivo.(…) [Os meus cadernos] são o meu vício. São também contra-obras, contra-acabados”. Trude Kolderup (2011) escreveu recentemente sobre o inacabamento de La Vie de Marianne e de Le Paysan Parvenu de Marivaux, atribuindo a esse inacabamento o termo corrente de marivaudage. Henri Coulet (s.d.) recorda a quantidade de inacabados que integram o cânone da história literária, desde o Conto do Graal de Chrétien até aos Caminhos da Liberdade de J.-P. Sartre, passando por L'Astrée d'Honoré d'Urfé, as Mémoires d'un honnête homme de Prévost, as Cento e vinte jornadas de Sodoma de Sade, Les Paysans de Balzac, Lucien Leuwen e Lamiel de Stendhal, Bouvard et Pécuchet de Flaubert. Michel Butor (1968, pp. 111-113) escreveu, sublinhando o maneirismo do inacamento, que “para que uma obra seja verdadeiramente inacabada (…), para que ela nos convide a continuá-la, é preciso que em certos aspectos seja especialmente cuidada, bem mais do que se quisesse apresentar-se como um objecto bem determinado”. Marelle de Julio Cortazar e os Cent mille milliards de poèmes de Raymond Queneau são, por sua vez, obras que discutem o seu próprio inacabamento, e inacabado ficou O homem sem qualidades de Musil — não apenas nem sobretudo porque o autor morreu antes de o concluir, mas porque os textos por ele dados para edição foram sendo marcados por uma progressiva interminalidade. Fora dos limites da literatura mas incluindo-a, e analisando casos de inacabamento em diferentes épocas na arquitectura, na escultura, na pintura, no cinema, na música, Isabelle Miller (2008) recorda Une partie de campagne, o filme adaptado de Maupassant por Jean Renoir, que foi abandonado em 1936 pelo realizador devido falta de dinheiro e a incidentes vários durante a rodagem, e que esperou pelo fim da guerra até que o produtor Braunberger decidisse, depois de ver os fragmentos filmados: “O filme está acabado e ninguém se deu conta disso”. Assim se viu concluído Une partie de campagne, que estreou em 1946 e se tornou depois uma obra-prima para os autores da nouvelle vague (mais detalhes sobre este episódio no posfácio). A mesma autora refere também o conhecido caso de Turner, que pintava a grande velocidade e acumulava em seu redor telas sobre as quais ninguém senão ele poderia dizer se estavam acabadas ou se eram ainda esboços ou works in progress: esse desprendimento turneriano em relação ao fechamento das obras acabou por contribuir decisivamente para a estética do inacabado. Substituindo os tradicionais percursos lineares em direcção aos seus dénouements, os reagenciamentos internos e os finais abertos são talvez, no que toca à narratividade, o paradigma histórico da transgressão do cânone néo-aristotélico e castelvetriano, associados ao crescendo da importância do fragmento auto-referencial que, na cultura europeia, ganhou reconhecimento desde Novalis. E têm equivalentes na música e na pintura, por exemplo quando na primeira uma peça termina deliberadamente a meio de uma frase (ou nos exemplos de liberdade do intérprete avançados por Eco, ou nas típicas jamm sessions de jazz), e quando na segunda qualquer inacabamento deliberado do que há para pintar sugere que o trabalho pictórico foi dado como bastante pelo pintor, independentemente da sua aparente incompletude.

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Como sugerimos atrás, o deliberado inacabamento da obra rompe com uma certa convenção técnica e estética do acabamento — com um determinado cânone histórico do acabamento —, sublinha a identidade da obra como fragmento e afirma a auto-suficiência semântica do objecto parcial assim produzido, desafiando a recepção outrora habituada à completude e ao travail bien fait, ou bien achevé. Do ponto de vista conceptual, este caminho pode ter levado, nos nossos dias ou quase, ao minimalismo e à anti-arte, à tela em branco, ao silêncio na música e ao filme sem imagens. Mas, por um lado, a ausência de obra não ocupa o lugar da obra; e, por outro, seria absurdo admitir que os reagenciamentos internos, os finais abertos, a música e a pintura deliberadamente inacabadas, só poderiam conduzir a estas experiências extremas. As formas de inacabamento deliberado exprimem também o desejo de perpetuar a obra como obra-em-progresso, e o seu não-fechamento significa por isso a vontade de não lhe dar a morte, nem mesmo a boa-morte dos fechamentos canónicos: a sua inconclusividade garantir-lhe-ia, assim, o carácter de ainda-em-curso, de obra ainda viva, que com sorte e com uma boa recepção lhe permitiria sobreviver mais tempo na longa duração. Não se estranhe aqui a alusão à morte como metáfora do fim: toda a vida acaba na morte; o dia acaba quando o sol ptolomeico “se põe”; toda uma cosmogonia aproxima a ideia de princípio-meio-fim da ideia de nascimento e travessia da vida. O final conclusivo de uma peça “bem acabada” espelha essa cosmogonia e revê-se nela. Invertendo os termos do aforismo latino ars longa, vita brevis, a “brevidade” da arte dar-lhe-ia, deste modo, uma “vida longa”. Creio que é esse o sentido mais forte do culto que parte da pintura e das estampas japonesas, por exemplo, votou ao fragmento, ao apontamento sumário, ao traço breve e ao instante efémero, associando-se à estética do haicai (a palavra portuguesa para haiku). Num sentido mais filosófico, o inacabamento deliberado pode também exprimir uma aporia sobre a dimensão escatológica dos finais e do acabamento, a desistência de um problema: se, em tempos de teologia negativa, perspectivar eticamente o que se faz em função de uma teleologia e de uma crença finalista passou a ser equivalente a não o fazer, num mundo marcado pela ausência ou pelo silêncio de Deus e pelo arrasamento da ética nas guerras modernas e noutros campos de morte, passando a ignorar-se a antiga fundamentação metafísica da acção, então a obra que discute o sentido e o valor da acção humana pode preferir suspender a sua intervenção escatológica e abdicar de discutir o seu próprio sentido e valor. Por outras palavras, a obra torna-se agnóstica e indiferente a tais valores, limitando-se a dar testemunho do figurado ou ficcionado sem se hipostasiar numa narrativa maior. A fruição de um instante substitui, nela, a sua integração num todo sempre invisível e que a transcende. Essa teologia negativa, que acompanha a laicização das sociedades e das suas culturas, e que conhece outra expressão no ganho de relevância da imanência contra a transcendência, ganha peso e torna-se hegemónica no Ocidente sob o peso das duas guerras mundiais que marcaram a primeira metade do séc. XX e com o crescendo de importância de filosofias como o existencialismo, e mais tarde o estruturalismo. O fim das “grandes narrativas” exprimiu essa crise, crise associada à do fim das ideologias que anteviam, cada uma à sua maneira, o fim da história e a sua “figura final” redentora, fosse ela a sociedade sem classes, o liberalismo radical ou a ressurreição e subida aos céus (ou pelo menos ao limbo) das santas singularidades-quaisquer. A antiga transcendência escatológica aterra e é substituída por um “novo” plano de imanência que subsume a totalidade da vida e do seu aqui-e-agora como o encontramos teorizado em Deleuze (1995: 3-7), Agamben (1996: 39-57), Didi-

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Huberman (2003: 90-120), Genette (1994) ou José Gil (2008), imanência que pode revelar, encenar ou fixar momentos efémeros, que recusam ser parte de qualquer todo e se afirmam apenas pelo seu valor próprio — eles passam a ser a nova “boa moeda” imanentista que expulsa a antiga, agora acusada de ser transcendente (não confundir com transcendental), metafísica, ilusória, alienante e “má”. Esta imanentização do real e da sua representação foi decisiva na passagem da modernidade à contemporaneidade, embora inspirada numa fileira que vem de Spinoza a Nietzsche. Nas artes, foi como se o ícone de Bizâncio se revoltasse contra a sua definição de representante de um ausente mais importante que ele, e passasse a reclamar apenas para si próprio a atenção de quem o contempla, garantindo que, para além dele próprio, nada mais há. Numa outra versão desta mesma crise, a obra de arte pode dar a ver o processo entrópico de uma utopia que se afundou, por exemplo manifestando-se como ruína e apresentando-se como significante de um significado morto, ou que já só subsiste na forma arruinada que a obra é e propõe. O artista pode ainda, numa redução simplificada e brutal da aporia acima exposta, desnarrativizar e des-hipostasiar abruptamente o objecto que cria e mostra, valorizando apenas a sua simples materialidade ou “objecticidade” e repondo em causa o mapa das fronteiras entre art e objecthood, como fizeram, por um lado os minimalistas, e por outro os curadores contemporâneos que transpuseram para galerias de arte objectos utilitários oferecidos nas prateleiras de supermercados; a simples migração de tais objectos para um novo espaço simbolicamente investido produziria, assim, a sua transubstanciação, repetindo-se deste modo o gesto provocatório inaugural que consistiu em expôr, no salão dos artistas independentes de Nova York, em 1917, um urinol genuíno de cerâmica industrial (Fontaine, de Marcel Duchamp). A fotografia e o cinema, que sempre usaram o real, seja ele natural ou artificial, como um ready made destinado a ser transformado em imagens, eventualmente artísticas, por meio de um dispositivo foto-químico, conhecem melhor que ninguém a genealogia e a sensatez do gesto de Duchamp — e não podem tê-lo nunca considerado provocatório, porque vivem desse gesto antes de viverem de qualquer outro. Não é por acaso que a reflexão sobre a expressividade da chaleira fumegante de Dickens se deve a Eisenstein, cineasta, e que o cinema propende a tratar os objectos, os locais e as atmosferas que filma como personagens, dando-lhes a mesma importância que a estes últimos. Recorramos uma vez mais a Pomar para o ouvir sobre o sentido do gesto de Duchamp ao levar para o Salão dos Independentes a sua Fontaine (loc. cit.: 63):

“A arte descodifica: o ready made é a expressão crua deste descaramento. Procedendo a uma espécie de experiência in vitro, Duchamp nada mais faz do que pôr a nu o casamento de conveniência entre o objecto tomado e o objecto reposto em circulação, entre a imagem recebida e a imagem devolvida. Assinando os ready made, isola (esteta tão refinado como um cientista no seu laboratório) a operação que grassa na base do comércio da arte — esse imenso domínio que vai do engano vil ao sonho alquímico”.

Com aquele gesto, Duchamp materializou várias das questões que aqui referimos — e repare-se que o fez há já quase cem anos: rompeu com a ligação entre a obra de arte e uma teleologia; descontextualizou um objecto utilitário propondo-o como obra de arte; ofereceu-o como fragmento auto-referencial que não autorizava a alusão a um todo ausente e de que ele faria parte. E radicalizou a opção pelo inacabamento, indo buscar um artefacto industrial de que nem era autor e oferecendo-lhe a posteridade numa releitura da sua “objecticidade”. Como todos sabemos, aquele gesto de Duchamp em 1917 traduziu e sintetizou, na prática, a vontade de ruptura de diversos modernismos do seu tempo, e legitimou várias contemporaneidades posteriores. Vale

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a pena compreender que, conceptualmente, esse gesto abriu as portas a um novo entendimento da relação entre o ready made e o objecto artístico, e que a abertura dessas portas beneficiou, inclusivamente, o cinema, levando-o a esclarecer o que é, para ele, o mundo real que filma. Justifica-se, assim, que gastemos algum tempo com a especificidade do problema cinematográfico na sua relação com o mundo, seus objectos, nomes e coisas. Papel dos modernismos

Muitas das questões sobre o acabamento-inacabamento de uma obra foram, apesar dos seus numerosos antecessores, suscitadas pelas práticas rupturantes dos modernismos artísticos e literários europeus, na larga primeira metade do séc. XX. Em áreas específicas como o cinema, duraram até meados da década de 70 (vale a pena ter em conta, nesta matéria, que nos EUA a ideia de modernismo se refere, na tradição instaurada por Clement Greenberg, a um período mais curto, que se inicia com a American Modern Art de meados do séc. XX, e em especial com o expressionismo abstracto e o trabalho de um Jackson Pollock). Dada a relevância do papel dos modernismos na questão que aqui nos ocupou, justifica-se que concluamos com uma palavra sobre eles e sobre a situação gerada pela sua “ultrapassagem”: Os modernismos desempenharam uma função histórica crucial na ruptura com academismos e cânones do séc. XIX, produziram obras de valor inestimável e reconfiguraram o nosso gosto e a nossa percepção estética do mundo, dos outros e das coisas. Em grande parte, reformaram e reformularam a nossa antiga ideia do que são e fazem as artes — as “belas” e as outras. Mas, com a degradação da ideia de revolução no último quartel do séc. XX, deixaram de ser percepcionados como vanguardas (essa metáfora eminentemente militar) e de figurar como os “amanhãs [estéticos] que cantam”. Passaram, não a “indicar o caminho”, mas a fazer parte do inventário cultivado das contemporaneidades emergentes e contraditórias. Amanhã cantará quem cantar, dependendo do destino intelectual e artístico que vier a ser o do actual liberalismo a-doutrinário e pós-moderno. Como diz a UNESCO (2001) na sua formiguista, mas deveras estimável, busca do bom-senso e da sabedoria das nações: a diversidade cultural é tão necessária à vida humana como a bio-diversidade é necessária à sobrevivência dos eco-sistemas naturais. Decididamente, teremos deixado de viver no império dos modernismos artístico-ideológicos, embora mantenhamos com eles uma relação rica e interessada. Fecha-se, porventura, o ciclo iniciado com o “Il faut être absolument moderne” de Rimbaud. Mas foi preciso esperar muito — pelos os anos 70 do séc. XX e por aquilo que por vezes é exageradamente descrito como “pós-modernidade” — para que os autoritarismos “aparelhísticos” associados à atitude modernista cedessem o seu lugar hegemónico. É significativo que, aliada à rejeição dos post and beam (pilares e vigas) arquitectónicos, modernistas e funcionalistas, tenha sido a nostalgia e a vontade de fazer renascer domus romanas de há vinte séculos (como a Getty’s Villa de Malibu, 1970-1975, projectada por Norman Neuerburg segundo a Villa dei Papiri de Herculaneum, ou o projecto de reconstrução da domus de Plínio, de Léon Krier, 1983, ou ainda, noutro registo, as casas néo-eclécticas que misturam indistintamente todos os estilos e épocas) que tenham “relegitimado” uma arquitectura anti-moderna e ostensivamente retro. Essa arquitectura voltou a prezar o ornamento e deixou de prestar culto à funcionalidade — num movimento que a seguir se estendeu, como num efeito de dominó ideológico, às restantes artes. E que “desautorizou” os modernismos, as suas rupturas revolucionárias e a angústia da “última obra”, que tinha de ser

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obrigatoriamente “melhor” e “mais revolucionária” do que todas as que a tinham precedido — objectivo que sempre foi inatingível mas com o qual vivemos ansiosamente cem ou mais anos. Dessa doença, pelo menos, o pharmakon pós-moderno tentou curar-nos, oferecendo-nos uma trégua existencial rara e apreciável: libertou-nos da tenaz estético-ideológica em que vivíamos, re-alargou livremente o leque do gosto e obrigou-nos a novos explananda sobre o que nos atrai e fascina, o que constitui, potencialmente, uma vitória da autonomia e dos argumentários bem fundados sobre a heteronomia colonial bem pensante e politicamente correcta. O problema é que, como o velho pharmakon grego, este pharmakon pós-moderno é igualmente venenoso e ameaça matar-nos (culturalmente) tanto quanto curar-nos: Apoiando-se por vezes numa crítica sumária da linearidade histórica, os pós-modernismos arquitectónicos, e depois pictóricos, cederam em boa parte ao gosto comercial dos novos “patos bravos” internacionais e tornaram-se, significativamente, em néo-conservadoras submissões ao mercado, ignorando a substância e as aquisições dos estilos de cada época, a sua historicidade, densidade e coerência interna: a sua crítica, por vezes “selvagem”, dos modernismos, deitou fora o bebé com a água do banho, o que levou autores como Yve-Alain Bois (1990: 473- 490) a defender que a única regeneração possível do pós-modernismo será feita via um “pós-modernismo-modernista”, “inteligente e culto”, e tão capaz de fazer a sua auto-crítica quanto os seus antecessores. No que respeita ao que aqui nos ocupou — o problema do acabamento-inacabamento da obra — é preciso acrescentar que, em resultado desta sumária e violenta operação pós-moderna, desta perda da noção de historicidade e dos seus valores patrimoniais próprios, que subitamente pretende transformar a história numa paisagem a-histórica onde todas as épocas e experiências se equivalem e nos são apresentadas como um catálogo de objectos disponíveis para serem “revividos” como contemporâneos, também deixámos de viver a obrigatoriedade do fim do fim, da concomitante desconstrução do meio e do princípio, ou mesmo o apagamento das grandes narrativas, como resultados incontornáveis do “processo histórico” modernista. O resultado desta operação não deixa de ser profundamente irónico: do mesmo modo que reconstruirá a Villa dei Papiri, a domus de Plínio ou o Empire State Building, um pós-moderno também tentará voltar a escrever como a Condessa de Ségur, Emilio Salgari ou Charles Dickens, e a tentar pintar como Tintoretto e Masaccio, tratando-os como objectos e formas a-históricos e eminentemente actuais. À luz deste regresso livre a todas as formas da história, desconstruir e impedir o ressurgimento dos fechamentos clássicos deixou de ser uma condenação — passou a ser uma opção entre outras, a-criticamente inventariada pelo novo catálogo das soluções disponíveis. No âmbito das narrativas, por exemplo, o abandono dos sucedâneos do itinerário do protagonista homérico e das jornadas do herói, na versão das funções de Propp ou na de qualquer sincretismo disneysiano-hollywoodiano, deixou de ser a missão histórica dos espíritos desalienados e passou a ser uma opção individual do gosto, eventualmente partilhável, mas não protegida por qualquer vanguarda intelectual ou artística. E, menos ainda, protegida por qualquer sucedâneo autoritário dos comités centrais vanguardistas da belle époque ou de uma sua qualquer, e tardia, variante jdanovista. É este o paradoxo ético da situação pós-modernista (formulação mais rigorosa do que a geralmente aceite situação pós-moderna): da batalha contra a linearidade da história nasceu, surpreendentemente, uma nova incultura que se apresenta a si própria como disfrutando do puro e simples mercado — assim haja quem lhe encomende, na posição de novos Médici, pirâmides

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egípcias ou a Villa dei Papiri. O real pós-modernista é cada vez mais um parque temático disneysiano, onde podemos passear ou viver. A presente situação não significa, portanto, que o fim do fim, a reorganização interna dos conteúdos e formas da obra e o questionamento das grandes narrativas e da sua teleologia transcendente tenham perdido actualidade ou tenham passado a preocupações obsoletas. Significa, sim, que tais programas perderam a sua antiga “legitimidade revolucionária”, e que, por já não terem as costas aquecidas pela sobredeterminação teleológica modernista, volta a ser necessário argumentar, compreender e explicar, para que volte a ser possível propor a sua contemporaneidade, o seu fascínio e os seus valores éticos e estéticos. Nada da sua experiência se perde: o que se perde é o contexto em que adquiriram, in illo tempore, o perfil de vanguardas. Em troca desse contexto, ganhamos outro onde olhamos mais distanciadamente para tudo o que ainda há pouco nos parecia inevitável, para tudo o que ainda há pouco interpretávamos como fruto da compulsão modernista. Em termos benjaminianos, este movimento de báscula é uma vitória contra o espírito destrutivo, desde que não se traduza na imposição de uma nova ignorância hegemónica. Inacabando Recoloquemos a nossa questão inicial: como e quando sabe um criador de obras de arte que determinada obra sua está acabada? Pensamos ter, talvez, deixadas entreabertas duas grandes hipóteses exploratórias de respostas a esta questão: 1. Se o artista se coloca na tradição da obra fechada, de duas uma: ou procede heteronomicamente e busca em semelhantes a solução para o seu problema, ou procede de modo autónomo e arrisca arbitrariamente uma figura final, do mesmo modo que arriscou autonomamente uma organização interna dos seus conteúdos e formas que se separam da norma ou do que ele supõe que a recepção está habituada a ver fazer. Na primeira hipótese não inovará, mas poderá ter fabricado mais uma obra-prima da heteronomia; na segunda, terá porventura inovado, sem que a sua novidade lhe garanta, no entanto, o selo de qualidade ou o reconhecimento que procurava. 2. Se, pelo contrário, o artista adopta conscientemente o desejo de obra aberta, é provável que releia e reconsidere as palavras de Pomar sobre o seu inevitável inacabamento. Talvez, por esta via, abdique deliberadamente de alguma completude da figura final, deixando mais espaço e mais esforço interpretativo ao seu leitor, público ou espectador. Numa obra musical destinada a vários intérpetes, por exemplo, ele poderá, como no jazz ou nos exemplos de Eco em 1962, deixar espaços de improviso criativo a diferentes instrumentistas que ocupam o meio da obra, sem questionarem o seu arranque nem o seu final. Mas na verdade, e por exemplo, a escrita de partituras como as analisadas por Eco (os seus exemplos de Stockhausen, Berio, Pousseur e Boulez) não parecem resolver o problema da abertura ou do fechamento da obra: é característico da música ser, pelo menos em parte, refeita ao ser reinterpretada, mesmo aquela que foi escrita para ser executada como um ditado do autor, como vimos com a interpretação das Quatro Estações de Vivaldi por Nigel Kennedy. Poderíamos caricaturizar dizendo que, em literatura e em pintura, a obra aberta foi tipicamente o cadavre exquis dos surrealistas, onde diversos autores acrescentavam conteúdos ou formas segundo uma parametrização pré-convencionada e que estabelecia a regra do jogo. Mas a abertura da obra de arte não é apenas nem sobretudo lúdica, antes determina a ontologia dessa mesma obra e a natureza da sua

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recepção. Na música, a obra aberta por excelência são as variáveis improvisadas (ou não) que se introduzem numa peça de jazz ou, mais ainda, numa jamm session (onde apesar de tudo é preciso combinar quem começa e quem acaba). No drama, é possível introduzir improvisos equivalentes a estes últimos, desde que satisfazendo parametrizações comparáveis às do cadavre exquis ou às das normas mínimas da jam session. Em todos estes casos, a obra de que estamos a falar é eminentemente colectiva e virtualmente irrepetível, independentemente do maior ou menor valor das performances individuais que nela ocorram. No domínio das performances individuais, a adopção de uma postura aberta faz-se resolutamente nos termos contingentes que evocámos através de Júlio Pomar quando este se refere ao inevitável inacabamento do quadro e à narratividade na pintura, termos que é possível tornar extensivos ao que se passa com a criação musical. Na literatura, por seu turno, abundam desde há cem anos os exemplos de abertura, se a entendermos no sentido da quebra de compromisso com o que foram os cânones do romance do séc. XIX. Mas, se é verdade que a estrutura do Ulysses de Joyce nada tem a ver com o folhetinismo thrilleriano de Dickens, esse facto dificilmente torna Ulysses mais aberto ou mais fechado do que A Tale of Two Cities: em ambos os casos o autor orienta-se por um ou vários statements, apoiado na organização interna e no sistema de closures que escolheu. O gesto individual mais próximo da abertura de uma obra pelo seu criador continua, porventura, como mostrou Virginia Wolf com As Ondas e outras obras, a ser o coup de dés de Mallarmé. A história do teatro também confirma, por sua vez, esse esforço de abertura das obras que atravessou todo o séc. XX mas que não desenvolveremos aqui. Quanto ao tipo de abertura ou fechamento que depende do leitor, do público ou do espectador, este continuará a decidir, em função do que sabe e sente e dos seus habitus, e como sempre tem feito (e também nos últimos vinte anos, desde a socialização maciça da interactividade digital), se prefere lidar com autores ou artistas que lhe propõem uma obra acabada, mesmo que aberta como naquele célebre coup de dés, ou se não consegue impedir-se de se inebriar com a velha sensação de se achar perdido numa paisagem desconhecida embora cativante, ou com a relativamente nova sensação de se achar lost in cyberspace — a experiência de deriva cuja porta de entrada continua a ser the rabbit’s hole. O deliberado inacabamento da obra pessupôs sempre maior exigência do criador face ao seu leitor ou ao seu público — maior exigência que, por vezes, e talvez paradoxalmente, veio a tornar-se indiferença à recepção da obra. Nas suas mil formas, esse inacabamento pôde e pode atingir a obra, não apenas como “todo” aparentemente incompleto, mas em cada uma das suas partes e componentes, porque não foi apenas o “todo” teleologicamente orientado que foi objecto da desconstrução moderna que alterou a percepção da obra de arte, mas sim a concepção “finalista” de cada fracção que o compunha ou compõe. Na realidade, toda a obra suficientemente complexa para poder ser objecto de desconstrução foi-o ao longo de toda a modernidade, num amplo movimento de reconcepção da sua estrutura que gerou a abertura e a ambiguidade de que Eco falava no início dos anos 60 do séc. XX. Esse processo, que, apesar da hostilidade de que é alvo por parte dos pós-modernismos, não se extinguiu nem desapareceu da criação artística, continuará in actu no trabalho dos artistas e dos autores. E não deixará de pôr à sua recepção todas as questões de relacionamento com a herança cultural e artística com que o trabalho criativo nos confrontou desde meados do séc. XIX.

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O conceito de intermedialidade Os estudos em comunicação ou em mediologia foram por vezes lugares onde se produziu léxico técnico de curta duração e que sobreviveu mal a inspirações temporárias. Contra esse verbalismo específico — que não é novo —, característico de certa investigação em humanidades, mais ocupada com a invenção de nomes do que com o conhecimento das coisas, preveniu André Lalande no seu Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, inicialmente publicado ao longo dos primeiros vinte anos do século XX, depois de inventoriar uma dúzia de sentidos para determinado conceito que não vem ao caso aqui :

“Concedo totum; mas sob duas reservas: a primeira é que, no estudo crítico do vocabulário, seja permitido escolher, entre as nuances contínuas da transformação semântica, os pontos mais importantes, para os fazer notar e sobressair, e isso sobretudo quando tais movimentos de sentido dão à mesma palavra (...) acepções (...) opostas; a segunda é que, no uso da língua, a elasticidade dos termos não sirva (...) para a enunciação de fórmulas especiosas, que soam bem, mas onde a impressão favorável produzida pelas palavras esconde ideias confusas, que se dissolvem quando analisadas; nem para a geração de sofismas, cuja fraqueza se manifesta mal os expomos” .

A primeira precaução perante o conceito de intermedialidade, inscrito desde há cerca de duas décadas no léxico técnico-científico das principais línguas ocidentais (em inglês intermediality, em francês intermédialité, em alemão intermedialität, em espanhol intermedialidad, em italiano intermedialità, muitas vezes usados preferencialmente nos respectivos plurais), respeita, assim, à sua especificidade, autonomia e âmbito semântico : trata-se de uma nova designação para velhas coisas, ameaçada pela entropia que apagou tanta novidade lexical transitória, ou refere-se a um espaço cuja dinâmica e mutações não põem em causa, antes reforçam a sua sedimentação, progressivamente mais legitimada pelo corpus teórico que a gera, e comprovada por práticas e observações rigorosamente descritas e reconhecidas como pertinentes? A palavra intermedialidade, referindo-se etimologicamente ao que se situa inter media, surgiu, de facto, na área de estudos aplicados de comunicação, designando práticas comunicacionais desenvolvidas simultaneamente em, ou para, diferentes media, ou usando meios e dispositivos comuns a diferentes media: imprensa, rádio, cinema, televisão, internet. A convergência dos media globalmente considerados para as novas plataformas digitais, a generalização das TIC como utensílios comunicacionais nas indústrias culturais e criativas, acompanhando a socialização maciça da Internet, tornou as intermedialidades mais dependentes da evolução tecnológica. Mas esta definição, que satisfaz parte da genealogia do conceito, é insuficiente para compreender o que intermedialidade passou, entretanto, a designar. Melhor tentativa é a produzida pelo Centre de Recherche sur l’Intermédialité (CRI), precursor nesta matéria, fundado por André Gaudreault e actualmente dirigido por Éric Méchoulan e Jean-Marc Larrue no Département d’histoire de l’art et d’études cinématographiques da Universidade de Montréal. Entre os materiais editados pelo CRI veja-se a revista Intermédialités, desde 2003 uma publicação on-line de referência sobre a intermedialidade, <http://cri.histart.umontreal.ca/cri/fr/intermedialites /interface/numeros.html>, e que define da seguinte forma o objecto dos seus estudos:

“O que está em jogo na intermedialidade é (…) proceder ao estudo dos diferentes

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níveis de materialidade implicados na constituição de objectos, sujeitos, instituições, comunidades, que só uma análise das relações pode evidenciar. Tal empresa exige a convergência de competências transdisciplinares, visto implicar o estudo dos corpus teóricos (sob o escalpelo de um novo aparelho conceptual necessário à passagem de uma lógica do ser a uma lógica da relação), uma perspectiva histórica (problema da constituição dos meios) e um enfoque experimental (problema da identificação das relações). A intermedialidade afirma-se, assim, não só como posição epistemológica (visando a instalação de realidades, mais do que as realidades já instaladas), mas também como plano de colaboração, por excelência, entre as disciplinas que os membros do CRI representam (história da arte, literatura comparada, comunicação, estudos literários, cinematográficos, audiovisuais, teatrais)”.

Esta definição tem a vantagem de apontar para diferentes dimensões da intermedialidade: uma dimensão epistemológica que põe à prova enfoques e vocabulários interdisciplinares; uma dimensão histórica traduzível em estudos aplicados que põem em evidência a genealogia da intermedialidade; uma dimensão experimental que acompanha e analisa práticas actuais. Uma coisa, porém, é garantir a consistência material do universo designado pelo conceito, outra bem diversa é vencer a resistência de cânones e de saberes consagrados contra a incursão do que é “novo”. A relativa resiliência das universidades anglófonas e francófonas, por exemplo, na inscrição da “nova” intermedialidade entre as suas áreas estabilizadas, em parte atribuível à desconfiança académica diante de novos termos resultantes da hiperactividade ideolectal, tem sido salientada por diversos autores, designadamente alemães (Cluver, 2006:11), aqui em tradução brasileira:

“Minha área de interesse foi denominada nos EUA, por muito tempo, ‘Artes Comparadas’, termo compreensível apenas para aqueles que o associavam a ‘Literatura Comparada’. Hoje em dia, a área em que atuo recebe, em inglês, o nome de ‘Interarts Studies’, que corresponde a ‘Estudos Interartes’, em português, e ‘Interartiella studier’, em sueco. A língua alemã, entretanto, nada tem a oferecer que seja etimologicamente comparável; ao invés disso, há anos se fala de ‘Intermedialität’ (Intermidialidade), em especial com referência às relações textuais que pertencem ao campo de interesse dos Estudos Interartes. Isso está, por exemplo, bem nítido no título da coletânea Literatur intermedial: Musik – Malerei – Photographie – Film [Literatura intermidiática: Música – Pintura – Fotografia – Cinema], organizada por Peter Zima em 1995”.

De facto, foi sobretudo na Alemanha e nos países europeus de língua alemã que a intermedialidade começou por ganhar os contornos de um campo de investigação autónomo, num movimento fortemente acompanhado pelo CRI de Montréal e por investigadores de língua francesa e holandesa. Persiste, porém, um grande déficit de traduções de originais alemães para outras línguas, sobretudo para o inglês. A falta de instituições anglófonas (europeias ou norte-americanas) equivalentes ao CRI ainda se faz sentir, tanto mais que a diversidade das línguas europeias convida a que textos e discussões se desenvolvam numa língua veicular comum — o que contribuiria para a fixação de boa parte do vocabulário técnico característico da área. Mas esta dificuldade tem sido compensada pela forte mobilidade internacional da comunidade de investigadores, que tem funcionado em rede e demonstrando forte capacidade de articulação interna. É relevante recordar aqui que André Gaudreault e François Jost (2000), no seu texto de apresentação do nº 9 de Sociétés & Représentations, dedicado ao tema « La croisée des médias », atribuem a Jürgen E. Müller “a ressurgência”, no campo dos media studies, do conceito de intermedialidade, “que já existe há algum tempo mas tem sido muito pouco usado”. É numa nota de rodapé que fornecem as seguintes

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indicações a este respeito:

“O termo foi ao que parece proposto pela primeira vez por Jürgen E. Müller, no final dos anos 80. Remetemos o leitor para o seu artigo « Top Hat et l’intermédialité de la comédie musicale » (Cinémas, vol. 5, nº 1-2, Outono de 1994, p. 211-220), onde o autor fornece (nota 6, p. 219) as referências dos seus trabalhos anteriores sobre a intermedialidade, sobre a qual adianta (p. 213) : « Se entendermos por intermedialidade que existem relações mediáticas variáveis entre os media e que a sua função nasce, entre outras coisas, da evolução histórica dessas relações, isso implica que conceber os media como “mónadas” “isoladas” é irrecebível (...)». Veja-se, do mesmo autor, Intermedialität : Formen moderner kultureller Kommunikation (Münster, Nodus, 1995). Outra fonte alemã : Franz-Josef Albersmeier, Theater, Film, Literatur in Frankreich. Medienwechsel und Intermedialität (Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1992), de que Müller publicou uma recensão no citado número da Cinémas. Ou, mais recentemente, a obra de Yvonne Spielmann, Intermedialität. Das system Peter Greenaway (München, Wilhem Fink Verlag, 1998).

Regressando à citação de Cluver, e tendo em conta a vasta tradição dos Interarts Studies nas instituições anglófonas, torna-se claro que parte dos conteúdos das intermedialidades neles se enraízam, autonomizando-se com maior clareza a partir da entrada maciça dos media electrónicos e digitais nos domínios das artes e da comunicação, e propondo-se reconfigurar parcialmente, ou trabalhar interdisciplinarmente, com áreas de estudo como os estudos literários, de media, em cinema, em sociologia e história das artes, outras. Como diz a Linnaeus University na apresentação do seu Forum for Intermedial Studies:

“Um problema das universidades contemporâneas é a extrema especialização que obsta à compreensão aberta e às interacções profundas das artes e dos media. Recentemente, porém, estudos em intermedialidade (…) nasceram em universidades da Europa e dos EUA. Os estudos intermediais foram historicamente precedidos (…) pelos estudos em media e em comunicação e pela investigação interartes”.

Surgem, entretanto, autores (Azcárate; Zepetnek, 2008: 66) mais impacientes, que têm reclamado contra o atraso com que as disciplinas e saberes tradicionais reconhecem a emergência sociocultural da intermedialidade autonomamente reconhecida, desdobrando mais a crítica de Cluver:

“Constitui, de facto, um paradoxo confuso, que nem as teorias sociais da modernidade, da moderna publicidade ou dos media, nem as teorias das humanidades que abordam as diversas formas culturais, tipos de textos ou géneros, dediquem atenção bastante ao facto de ‘o passado e o presente da cultura contemporânea e dos media serem parte e parcelas da cultura e de media intermodais e intermediais’ (Lehtonen, 2001: 71). É importante perceber que o processamento, produção e marketing de produtos culturais como a música, os filmes, a rádio, programas televisivos, livros, revistas, jornais e os dos media digitais determinam que, hoje, quase todos os aspectos da produção e distribuição são digitais” .

Campos de aplicação Dadas as diversas acepções do conceito de intermedialidade, devidas, sobretudo, à pluralidade das áreas de estudos e de práticas que ele designa, o plural intermedialidades pareceu preferível aos participantes da workshop organizada em Amsterdam em Junho de 2009 pelo Standing Committee for the Humanities da European Scientific Foundation (ESF) — Intermedialities: Theory, History, Practices — por reconhecerem que ao singular conviria uma definição única e genérica que fosse adoptada pelos estudos em literatura e em cinema, em

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comunicação ou dos media, pelos estudos em artes contemporâneas e em performance, e ainda pelos estudos dos new media, o que se tem revelado problemático, dando origem tanto a convergências como a divergências de sentido do termo. Isto mesmo foi reconhecido na comunicação de abertura do encontro (Verstraete, 2009: 8), apesar de a sua autora não fugir à definição do conceito no singular :

“Muita da investigação no campo da intermedialidade vem de disciplinas exteriores aos estudos de media e comunicação : estudos em literatura, em performance, história da arte, teoria do cinema, filosofia. Face à presença impositiva dos media digitais no campo das artes e da cultura, os investigadores adoptaram a noção de intermedialidade para reconceptualizarem os seus objectos de estudo — textos literários, pintura, filmes — perante o medium digital. Trabalhando nas fronteiras das suas disciplinas e procurando as passagens e ligações entre estas e os estudos em media, adoptam explicitamente uma posição entre margens e centro, entre artes e media”.

Algo de fundamental ficava esclarecido por estas palavras: no singular ou no plural, a intermedialidade ocupa, como a genealogia do termo indica, uma zona de fronteiras relativamente incertas entre as artes e o campo dos media reconfigurado pela sua própria digitalização generalizada. Isto significa que ela advém de um forcing tecnológico que, em poucos anos (embora, para o entender, seja necessário remontar à época da informatização das sociedades), obrigou a uma redefinição de objectos de estudo em áreas estabilizadas como a interartialidade — a dos estudos interartes. E significa também que, nessa zona de fronteiras incertas, a intermedialidade analisa em especial as passagens, os lugares de cruzamento e de interacção entre as artes e o campo (digitalizado) dos media, embora sem enjeitar a herança cultural e artística de todas as experiências interartes anteriores à digitalização : se a enjeitasse, seria um campo de estudos amnésico, contradição axial, sobretudo se atendermos à relevância dos enfoques historiográficos a que tem dado origem, e que se contam entre as principais orientações aplicadas da intermedialidade. Na sua comunicação de abertura da workshop de Amsterdam, a mesma autora especificava ainda (Verstraete, loc. cit.: 10), na tentativa de circunscrever com mais precisão o âmbito do termo :

“Ocorre intermedialidade quando se verifica a inter-relação de diferentes — e distintamente reconhecíveis — artes e media num determinado objecto, de tal modo que se transformam uns aos outros dando origem a uma nova forma de arte ou de mediação que ali emerge. Tais trocas alteram os media, suscitando questões cruciais sobre a ontologia de cada um deles, como quando Greenaway interroga o estatuto de imagens estáticas ou em movimento ao integrar nos seus filmes representações de fotografias ou de imagens digitais”.

Depois de ter sido relativamente bem acolhido no domínio das literaturas comparadas e dos estudos em comunicação, o conceito de intermedialidade tornou-se, na área artística, em primeiro lugar operativo nas artes plásticas e visuais, onde décadas de experimentação em cross media e mixed media prepararam a sua compreensão e aceitação. O fenómeno também ocorreu em Portugal, onde a dimensão intermedial começou por ser referida, mesmo quando de modo meramente alusivo, e por vezes sobreposta à de intermédia (Higgins, 1966), em designações de cursos de artes plásticas e visuais. Naturalmente que, mesmo quando inscreveram a intermedialidade no seu vocabulário e passaram a reconhecê-la como área autónoma de estudos, as instituiçoes de ensino superior não abdicaram dos estudos comparatistas e interartes, que precederam a generalização da ideia intermedial e subsistem e subsistirão, em muitas delas, como áreas ou ramos estabilizados e assentes numa tradição próxima dos Cultural Studies.

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Depressa, porém, a intermedialidade artística (a das artes plásticas e das artes visuais) passou a necessitar da proximidade de anteriores interdisciplinaridades e intertextualidades, dos cruzamentos e convergências das práticas daquele universo mais antigo e mais vasto — o das literaturas, das artes da cena e do ecrã (como vimos). Passámos a falar de intermedialidade texto-cinema, fotografia-cinema, teatro-cinema, performance-dança-teatro-música, música-cinema, etc., ou da associação cumulativa e convergente de diversas intermedialidades. Devido, sobretudo, à reescrita da história dos media à luz da intermedialidade, tornou-se hoje pertinente, por exemplo, falar de artes intermediais — aquelas que mais deliberadamente praticaram e praticam hibridações (ou hibridizações) e remediações na geração de novas obras. A expansão semântica do conceito permitiu compreender de forma alargada a sua génese empírica e pragmática, apoiada em materialidades, e analisar os seus campos de aplicação através de estudos de casos. A intermedialidade tornou-se, como diz o CRI, num novo campo epistemológico, repleto de novos objectos em análise. É possível, por isso, como também diz o CRI, elaborar uma história da(s) intermedialidade(s), apoiada em estudos de casos, que remonta a práticas comunicacionais mais ou menos complexas no sistema dos media, ganha relevo e significação nas artes plásticas e visuais — desde logo a partir dos “modernismos” e do “diálogo inter-vanguardas” de finais do séc. XIX e primeiros 30 anos do séc. XX (através dos “estudos comparatistas e interartes”) — e expande a sua influência nas diversas artes da escrita, da cena e do ecrã, mais tarde em íntima articulação com a importância crescente das TIC e da convergência digital. A releitura de exemplos modernistas e das vanguardas históricas pela história da intermedialidade tem sido inumeramente experimentada. Veja-se, a título de exemplo, um comentário contemporâneo (Gruber, Klemens: s.d.), a propósito de O Corno Magnífico encenado por Meyerhold em 1922, da forma ballet-ciné-sketch e de Within the Quota, Paris, 1923:

“A escrita no palco leva [em Within the Quota, n.a.] a uma colisão de dois sistemas de representação — apesar da presença decorativa das letras tomar logo o primeiro plano. Mas enquanto nesta peça ballet-ciné-sketch, como foi nomeada, um cameraman filma — ou faz de conta que filma — constantemente a ação no palco, a ilusão do teatro é defraudada: fica bem óbvio que não se trata de uma câmera em funcionamento, mas de um simulacro, uma câmera de papel maché, montada como adereço e símbolo, como modelo da intermedialidade. Deste modo o espaço ilusório do teatro é descomposto tendencialmente a um espaço crítico (Hansen-Löve 1992: 41), que expõe a própria construção medial, mesmo que a câmera seja aqui um mero simulacro. O cameraman é uma figura carismática dos anos 1920”.

Estudos clássicos sobre as relações entre teatro e cinema no expressionismo alemão, por exemplo, transformam-se em estudos de história intermedial, produzindo uma nova literacia. Experimentações cénicas que trazem para a cena dispositivos tecnológicos como o vídeo, a fotografia, o cinema, a televisão, a edição e a mistura de sons, mas também a pintura e a escultura, a instalação, são entendíveis como práticas artísticas intermediais. No caso português, e a título de exemplo, a explícita opção pela teatralidade registada em parte das cinematografias de Manoel de Oliveira, Paulo Rocha, João César Monteiro, José Álvaro Morais (Mendes, 2010), António Reis e Margarida Cordeiro, entre outros, ou o surgimento, na cena teatral, de cenografias virtuais, projecções vídeo em tempo real ou pré-filmadas, imagens de computador, mesas de mistura onde se produzem bandas sonoras durante o espectáculo, são

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indicadores de intermedialidade, histórica e contemporânea, entre as artes da cena e do ecrã, como a encenação de motivos fotográficos exprimiu e exprime a intermedialidade entre artes da cena e imagem fixa, ou entre pintura e fotografia. A prudência tem levado a uma compreensão “aberta” da intermedialidade como work in progress, que não tente encerrá-la numa definição “ontológica” e se mantenha atenta ao conjunto de processos tecnológicos intermediais entendidos “em devir”. Ao mesmo tempo, pretende-se, com este gesto prudencial, não reduzir a intermedialidade às suas componentes ou à análise daquilo de que é feita — o que lhe roubaria o carácter de objecto de estudo autónomo e dinâmico (Mariniello, 2000):

“Se, por exemplo, definimos a intermedialidade em termos de encontro e de relação entre duas ou mais práticas significantes — música, literatura e pintura, suponhamos, no seio de um media, o cinema —, o ponto de partida é ainda o da pré-existência e da identidade das práticas separadas, e o ponto de chegada exprime, por seu turno, os resultados desse encontro : a identificação dos momentos híbridos, a análise dos mistos, etc. O fluxo é analisado, portanto imobilizado e decomposto. [Ora], a intermedialidade está mais do lado do movimento e do devir, lugar de um saber que não será o do ser. Ou então é o lugar de um pensamento do ser já não entendido como continuidade e unidade, mas como diferença e intervalo”.

Outros autores (Rajewsky, 2005: 43-64) propõem subcategorias que identifiquem os diferentes tipos de objectos estudados pela intermedialidade. Poderíamos, assim, falar de intermedialidade no sentido estreito relativo à “transposição medial” como nos casos de adaptações cinematográficas, novelizações, etc., onde está em causa a mudança de conteúdos originalmente associados a um media para outro media. Ou de intermedialidade no sentido de “combinatórias mediais” concebidas como tal desde a origem, como nos casos da ópera, do cinema, teatro e performance, ou de misturas entre eles, mas também dos manuscritos acompanhados por iluminuras ou das instalações multimedia, mixed media ou intermedia tal como Higgins a entendeu em 1966 (referindo-se às artes que surgem entre media). Ou identificando “referências intermediais” de textos a filmes ou vice-versa, e mais especificamente em casos em que um texto canibaliza procedimentos técnicos característicos do cinema (zooms, dissoluções e montagem ou edição sequencial) mas também em exemplos de ekphrasis (Hansen, 2006; Munsterberg, 2009), referências cinema-pintura ou pintura-fotografia. Alguns objectos ou práticas intermediais podem acumular características presentes nestas subcategorias. E qualquer destas subcategorias pode ser analisada, ora na perspectiva diacrónica (que se refere à história e genealogia da intermedialidade nos diversos media) ora na perspectiva sincrónica (que se refere às práticas analisando as suas tipologias, funcionamento e grupo de pertença num momento dado ou na actualidade). Uma comunidade de conceitos Por outro lado, o enfoque histórico, filológico e semântico da intermedialidade refere-a a outros termos e conceitos que com ela partilham territórios mais ou menos tradicionais, adquirindo valor no uso corrente da linguagem académica e profissional. O conceito é, de facto, genealogicamente indissociável dos de interdisciplinaridade e multidisciplinaridade, intertextualidade, transmedialidade, remediação (ou remediatização), tradução/transdução, adaptação/recriação/transcriação, a partir dos autores que os desenvolveram e tematizaram. E esses autores podem ser, por exemplo, para interdisciplinaridade, multidisciplinaridade, transdisciplinaridade (se as entendermos na sua acepção de instrumentos básicos e eminentemente pedagógicos),

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Gusdorf G., Tschoumy J.A., Roosen A., lidos em Interdisciplinarité, Colloque international, Université de Liège, 1984. Ou Bailly J.M. e Schils J., em “Trois niveaux d'interdisciplinarité”…, in Des chemins pour apprendre, FNEC, Bruxelas, Janeiro de 1988. Para o conceito de intertextualidade, a autora de referência continua a ser a Julia Kristeva de 1967, com La révolution du language poétique. Para os conceitos de tradução / transdução / adaptação / transcriação, os autores de referência são Gilles Deleuze, Samuel Beckett, outros. Para o conceito de Intermedialidade, os autores de referência são Jurgen Müller, Ginette Verstraete, Irina Rajewsky, Ágnes Pethő, André Gaudreault, a revista Intermédialités do CRI, outros. É precisamente a partir de Jurgen Müller (2000: 106,107) que adoptamos a ideia de intermedialidade como eixo pertinente de observação das relações imbricadas entre artes e media na época actual:

“Nos últimos anos, a comunidade de investigadores reconheceu a importância do eixo de pertinência da intermedialidade. Na Alemanha, sobretudo com os trabalhos de Franz-Josef Albersmeier, Volker Roloff, Joachim Paech, Yvonne Spielmann — e também com os meus (por exemplo, Intermedialität. Formen moderner kultureller Kommunikation. Munster: Nodus, 1996) e Texte et médialité. Mannheim: Mana VII, 1987) — que, inspirando-se em Higgins, Aumont (1989), Bellour, Jost, etc., propuseram enquadramentos teóricos da investigação intermedial. Apesar das diferentes tonalidades teóricas dessas propostas — o papel específico da diferença entre media e forma (Paech), a função da heterotopia (Foucault) retomada por Barthes e Roloff, o interstício (Deleuze), os lugares de passagem (Benjamin), a determinação do «entre» (Bellour) —, é possível resumi-las numa fórmula: ‘A comunicação cultural tem hoje lugar como um complexo jogo inter media’ — como propus no meu livro Intermedialität “.

Se a intermedialidade fosse apenas um novo nome para velhas coisas (ideia rejeitada por todos os autores citados, de Cluver a Mariniello e a Rajewsky e de Azcárate a Müller), ela limitar-se-ia a analisar, como em parte dos estudos interartes de propensão predominantemente histórica, casos como as obras-primas de Tenessee Williams filmadas por Elia Kazan, as de Shakespeare filmadas por Orson Welles e muitos outros, as “transcriações” do próprio Beckett para televisão por encomenda da BBC, a influência da pintura de Edward Hopper no cinema contemporâneo (ou em certos tableaux vivants), a começar por J.-L. Godard e por Beineix, ou, mais próximo da antropologia visual das sociedades contemporâneas, quais os motivos porque a mesma pintura de Hopper determinou tanto enquadramento, tanta escolha de ambientes cromáticos e tanta imagem de cineastas contemporâneos, e até de jogos de computador, enquanto a de Julian Freud ou, talvez por maioria de razão, a de Francis Bacon, viram “barradas” essa remediação, por efeito de interditos e de tabus por examinar, embora as obras de Freud e Bacon tenham visto garantido o acesso, enquanto pintura não remediável, à Internet museológica e mais ou menos erudita. Estes estudos de casos, pertencentes, tanto ao domínio dos “estudos interartes”, como ao da “intermedialidade”, não estão, em boa parte, feitos, mas tarde ou cedo será interessante fazê-los, para compreendermos melhor o que nos condiciona na geração de sentidos e novas recepções destes sentidos, em determinadas circunstâncias socio-culturais onde o “gosto” se modifica, alterando o paradigma da recepção. E também para compreendermos de que depende, em determinadas circunstâncias concretas e para uma determinada comunidade, a admissão de cartos tipos de obras ao domínio reservado do “património universal”. Será que as representações da solidão do indivíduo humano, por Hopper, não põem em causa nenhum dos tabus maiores dessa solidão, limitando-se a contemplá-la com base num olhar exterior, contemplativo e

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protegido, gerador de acedia e de melancolia? Será que os nus de Julian Freud, pelo contrário, expõem, na melhor tradição da pintura, o que não é “remediável” pelo cinema nem pelo teatro sem abrir a porta à pornografia e ao voyeurismo? Será que as desformidades expressionistas de Bacon impedem, tout court, outra “remediação”, para além da canónica “reprodutibilidade técnica” de Benjamin? Eis três hipóteses de trabalho que não podem ser lidas, antes de desenvolvidas, senão como “petições de princípio” meramente intuitivas, detendo a potencialidade de inspirar estudos esclarecedores, mas, de momento, confinadas ao estatuto da antiga doxa (opinião) analisada na República por Platão. Hipóteses virtualmente interessantes, porque põem em jogo o que sabemos sobre a estratificação das formas de recepção social das artes, sobre a subsistência de um sistema de interditos menos alimentado, hoje, pela “superestrutura ideológica do Estado” do que pela desregulação e auto-regulação do sistema dos media, e porque convidam a uma reflexão interdiciplinar para a qual concorram os estudos interartes, os estudos em intermedialidade e os estudos em cultura. Intermedial, intermediático Há em Jürgen E. Müller (2006) um subtil deslizamento do intermedial para o intermediático, que o mesmo autor corrige mais tarde (Müller, 2010), mas onde ecoa o enraizamento da ideia de intermedialidade nos media studies da segunda metade do séc. XX. Duvidando da possibilidade de construir um mega-sistema compreensivo capaz de dar conta da totalidade dos processos em causa na intermedialidade, Müller propõe “um trabalho histórico, descritivo e indutivo, que nos conduzirá progressivamente a uma arqueologia e a uma geografia dos processos intermediáticos in progress”, sem nunca perder de vista que “a intermedialidade se desenvolve em contextos sociais e históricos específicos”, interessando “não apenas práticas mediáticas e artísticas e suas influências nos processos de produção de sentido num público histórico, mas também práticas sociais e institucionais”. Müller espera que a intermedialidade assuma, apesar da sua vocação releitora e reescrevente, uma postura menos invasora, menos intrusiva e menos imperialista do que as adquiridas, nos anos 70 do séc. XX, pela semiótica e pela teoria do texto. Por outro lado, uma arqueologia da intermedialidade nascida há vinte anos deve, em nosso entender, identificar a sua ligação aos estudos em cultura e à sociologia do conhecimento : ela surgiu simultaneamente como um conjunto de exercícios de ekphrasis e evidenciando uma nova consciência dos processos culturais, comunicacionais e artísticos que são parte da construção cultural e social da realidade nos sentidos explorados por Peter L. Berger e Thomas Luckmann (1966), pela instituição imaginária da sociedade de Cornelius Castoriadis (1975) e pelo construtivismo estruturalista de Pierre Bourdieu (1987) — pelo que estas referências, mesmo que remotas, fazem parte da sua genealogia. Müller recorda, a este respeito, que, quando a intermedialidade surgiu como “novo enfoque” da interacção entre os media, tinha como programa analisar : “a) os processos intermediáticos em certas produções mediáticas; b) as interacções entre diferentes dispositivos; c) a reescrita intermediática da história dos media”, privilegiando os efeitos socio-históricos destes processos. E é significativo que, contra as “ilusões perdidas” durante o processo de reprodução sistemática do objecto teórico da intermedialidade, o autor abandone o desejo de uma teoria-das-teorias, ou de um sistema-dos-sistemas, em favor de um enfoque mais centrado no repensar da história dos media, na ideia de resto (trace) ou de vestígio deixado num media por outro ou

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outros, durante os processos intermediais e de remediação. O que está em causa, para ele, é a materialidade das componentes heterogéneas repertoriadas nos procedimentos intermediáticos e identificáveis como vestígios deixados pelas trocas entre os materiais : a intermedialidade ocupar-se-ia, deste modo, de uma inter-materialidade radical e própria dos media quando definidos como em Gaudreault e Marion (um novo media é um “novo dispositivo, novo suporte tecnológico e/ou nova hibridação semiótica e/ou nova modalidade de recepção pública e de discursividade social”). No mesmo movimento, o Müller de 2006 pretende evitar a confusão entre os domínios da intermedialidade e os da interartialidade (noção emergente dos estudos interartes), porque, apesar do forte recobrimento parcial dos dois termos, “a intermedialidade opera num domínio que inclui os factores sociais, tecnológicos e mediáticos, enquanto a interartialidade se limita à reconstrução das interacções entre as artes e os procedimentos artísticos, inscrevendo-se numa tradição sobretudo poetológica”. Difícil separação: quando esboça uma genealogia da intermedialidade, todos os seus exemplos são artísticos ou relativos às artes : a ligação entre poesia e música em Aristóteles, ou entre música, poesia, pintura e filosofia em Giordano Bruno; o intermedium no Quattrocento italiano, no Renascimento e em Coleridge; a ideia romântica de que as artes estão entre os media; a experiência do poetic drama e da Gesamtkunstwerk wagneriana; já no séc. XX, a articulação, por Münsterberg, Balazs, Eisenstein, Bazin (com o seu argumento ontológico a favor de um cinema impuro), entre investigação teórica e práticas estéticas. Para Müller, é na intertextualidade dos anos 60 e 70, com Kristeva e Barthes, e na transtextualidade de Genette, que todo este percurso desemboca, mas recentrando a atenção de uma vasta área de estudos no media literatura. A descolagem da ideia de intermedialidade relativamente à intertextualidade representa precisamente o atingimento de práticas mediáticas para além do texto e da literatura — práticas que entretanto passaram a ser descritas como hibridações (ou hibridizações) : colagens, fusões, misturas no mesmo suporte de materiais e de elementos heterogéneos, sobreposições de conteúdos oriundos de diferentes artes ou domínios técnicos. A ideia de híbrido em McLuhan torna-se central para a teoria dos media contemporâneos, mas expande-se rapidamente para designar as relações homem-máquina, biológico-mecânico, real-virtual, dicotómico-rizomático e, passando a significar de mais, perde a sua especificidade, tornando-se excessivamente abrangente. É por estas razões que Müller prefere definir o território da intermedialidade como “uma arqueologia intermediática dos media nas redes das séries culturais e tecnológicas” (como ele faz na sua arqueologia da televisão, analisando as remediações, por esta última, da rádio, do cinema, do teatro, etc.), e que dê igualmente conta da emergência de novos fenómenos de recepção e da geração/sedimentação de novos públicos e sua mutação (por exemplo a substituição do espectador de teatro ou de cinema pelo user ou o surfer da internet e da interactividade). Um texto de Gaudreault e Marion É esta dimensão antes de mais arqueológica e historial que devolve importância ao artigo seminal de André Gaudreault e Philippe Marion (1999) «Un média naît toujours deux fois», onde, a propósito do cinema, se explica o seu lento e fluido nascimento numa fase inicial algo caótica, a sua institucionalização e finalmente a sua hibridização. No seu artigo, os autores tomam o cinema como exemplo do percurso que um media atravessa do seu nascimento à sua institucionalização socio-económica,

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recordando que o cinema não se impôs de imediato como media autónomo, antes representando, inicialmente, um novo meio para comunicar e difundir conteúdos e formas de media anteriores. E admitem, como hipótese de trabalho, que outros grandes media contemporâneos (eles referem a fotografia, a banda desenhada, a rádio, a televisão, a internet) tenham percorrido igualmente essa forma de duplo nascimento — o que autorizaria uma teoria do “duplo nascimento dos media”. A sua hipótese teórica é, assim, a de que são requeridas duas etapas cruciais para que um novo media (entendido, já o vimos atrás, como “novo dispositivo, novo suporte tecnológico e/ou nova hibridação semiótica e/ou nova modalidade de recepção pública e de discursividade social”) estabeleça o seu lugar, identidade e reconhecimento. O que segue, em recolhido, é a adaptação quase literal da ficha descritiva do texto de Gaudreault e Marion, disponibilizada pelo Centre de Recherche sur l’intermédialité. O artigo foi inicialmente por eles apresentado numa conferência em Montréal a 3 de Março de 1999. Nos termos desta ficha, provavelmente redigida pelos dois autores, os “dois nascimentos” descritos pelos autores são os seguintes:

1 — Um nascimento “integrativo”, “mimético”, ou falso nascimento, sendo o novo media prisioneiro do feixe de determinações ou dos géneros anteriores e já legitimados. Nesta fase, a sua prática faz-se segundo os usos socio-culturais (nessa época e numa certa colectividade) de outros géneros e media reconhecidos (séries culturais, tipo de espectáculos em voga, etc.). A necessidade de o tornar autónomo e de usufruir de uma especificidade mediática ainda não se faz sentir ou não parece pertinente, de tal modo que as novas possibilidades do media se exprimem em complemento, como dependentes ou em continuidade de práticas mediáticas mais antigas, reconhecidas e que ele parece prolongar. 2 — Um nascimento “diferencial” ou autonomização identitária: por via de deslizamentos ou de modificações de práticas, por via de mutações socio-económicas, etc., o media revela parte das suas especificidades expressivas (comunicacionais, estéticas, genéricas), existindo inter-relação entre essa abertura à autonomia e a evolução do media e do seu potencial próprio — que por sua vez coincidem com o reconhecimento institucional e o crescimento dos meios económicos de produção. Com o seu artigo, Gaudreault e Marion pretenderam: evidenciar o interesse do enfoque histórico e genealógico sobre o nascimento de um media para a análise de como os media e os géneros se entrecruzam, se interfecundam e interagem, quer na diacronia quer na sincronia, paradigmaticamente e sintagmaticamente; demonstrar como os discursos sociais e os usos culturais (a cultura mediática) constroem a identidade e o perfil genético de um media; confirmar que só a integração inicial numa continuidade, entendível como dissolução e absorção, gera a diferenciação e a afirmação identitária de um media, que surge então dotado de uma singularidade e de um génio mediático próprio — o seu verdadeiro nascimento. Tendo substituído mimeticamente os géneros e os media ambientes, e afirmado a sua singularidade, o novo media tornar-se-á alvo de reivindicações identitárias e aparecerá como território virgem, propício a novas criações e a novas experiências comunicacionais.

Mas vale a pena dar um passo atrás e voltar ao Jürgen E. Müller de 2000 (loc. cit.) para entendermos que tipo de tipologia era então proposta para descrever, pelo menos para efeitos de inventário, os diferentes enfoques sobre a intermedialidade. Com efeito, no seu texto, Müller cita um então jovem autor (Schröter, 2000) que lhe propos as seguintes distinções:

“Jens Schröter distingue os quatro tipos seguintes: 1. A intermedialidade sintética, ou seja, a fusão de vários media num intermedia, com as suas conotações polémicas e revolucionárias (a obra de Dick Higgins, por exemplo); 2. A intermedialidade formal ou transmedial, investigação néo-formalista de procedimentos formais (as publicações

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de Joachim Paech e de Yvonne Spielmann) ; 3. A intermedialidade transformacional, análise da re-representação de diferentes media num novo media (as publicações de Maureen Turim); 4. A intermedialidade ontológica, processo sempre presente nos media”.

Mais adiante, no mesmo texto, Müller explicava que o seu próprio trabalho ali (a genealogia da intermedialidade analisada num media como a televisão) pertence aos tipos 3 e 4 propostos por Schröter. Mas o que parecia saltar à vista, nas propostas e declarações do CRI, de Mariniello, de Müller e de Schröter, como, de outro modo, nas de Cluver, é que, circa 2000, a intermedialidade, enquanto área epistemológica que se autonomizava e se separava das que a precediam, se encontrava ainda em fase de descrição sistemática dos seus objectos, metodologias e aplicações, repertoriando-os e redescrevendo-os em sucessivos inventários analíticos, como sucedeu com qualquer nova disciplina de conhecimento na travessia dos paradigmas de Thomas Kuhn. Este trabalho de redefinição de âmbitos e de territórios não suprimia anteriores definições da intermedialidade oriundas mais estritamente dos estudos em comunicação ou em mediologia (e que ainda subsistem), antes as subsumia — como no caso da que a seguir transcrevemos:

“Na investigação em comunicação podem identificar-se três concepções de intermedialidade, relacionadas com diferentes definições do que é um medium. A primeira, mais concreta, diz que a intermedialidade é a combinação e adaptação de materiais separados que veiculam representações e reproduções por vezes chamadas multimedia, como nos shows de slides acompanhados por som ou nos canais audio e vídeo da televisão. A segunda diz que o termo denota um acto comunicacional baseado em diversas modalidades sensoriais simultâneas, como no cinema sonoro, que oferece em simultâneo sons e imagens em movimento. A terceira diz que intermedialidade refere as inter-relações entre medias enquanto instituições sociais, descritas em termos económicos ou tecnológicos como conglomerados ou convergências” (Klaus Bruhn Jensen citado in International Encyclopedia of Communication, ed. Wolfgang Donsbach, Oxford: Blackwell Publishing, 2008).

Objectos multi-suportes O mesmo se passa para termos que pertencem ao universo semântico da intermedialidade ou dele estão próximos, como transmedialidade: vejamos como as suas definições correntes se referem à estratégia de concepção de produtos multi-suportes, alargando assim a área de aplicações da intermedialidade a um novo perímetro:

“Transmedialidade refere-se a uma mudança (transformação) de um media para outro, quer de conteúdos quer de formas. Na era dos novos media, testemunhamos um mundo cada vez mais intermedial, onde as fontes de cultura são modificadas, digitalizadas e remediadas. A mesma história é contada de várias formas. Por exemplo The Matrix é um filme, um IMAX film, um DVD, uma animação, um jogo e está na Internet. Juntos, criam a experiência no seu conjunto. Como disse Jenkins: ‘o todo é valorizado pelos novos textos em novas plataformas’ (Jenkins 2006:95)..

Ora, a concepção de conteúdos e formas para diferentes suportes não é nova: as indústrias culturais, tal como as descreveram e criticaram, em seu tempo, Adorno e Horkheimer, praticaram-na durante décadas. Pense-se no cinema e na edição separada de bandas sonoras de filmes: West Side Story (1962) de Robert Wise e Jerome Robbins, trazia consigo a música de Leonard Bernstein, que viveu e vive a sua vida própria, editada em vinyl e em cd; Verdes Anos (1963) de Paulo Rocha trazia consigo a música de Carlos Paredes, que, editada em separado, também sobreviveu ao filme.

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Muitos outros filmes foram cinematizações de obras literárias ou deram origem a livros. Nas primeiras décadas do cinema, a cinematização de obras literárias correspondeu, muitas vezes, ao desejo da produção (pense-se no Studio System americano) de dar vida fílmica a obras que tinham obtido êxito como livros. Na tradição teatral, predominou longamente a re-encenação (recriação) de peças publicadas em livro. Nos casos de livros tornados filmes e cuja banda sonora foi editada à parte, estamos já diante de três suportes distintos. Nesses mesmos casos, se o livro de base foi uma peça de teatro levada ao palco, estamos diante de quatro suportes. Seria possível multiplicar os exemplos de projectos que se tornaram multi-suportes em todos os domínios das artes da cena e do ecrã. A seu modo, quer por via de exemplos como estes, quer por via das intertextualidades, citações e contaminações entre obras, as artes da cena e do ecrã são há muito intermediais e multi-suportes. Percorrendo um caminho inverso, teatro e cinema produziram obras de convergência, onde coabitavam (com o teatro ou o cinema) música, performance, dança. O cinema main stream, por seu turno, procurou em comics e em bandas desenhadas históricas personagens, sagas e narrativas que posteriormente relançou. O que é novo, desde o início dos anos 90 do séc. XX, em pleno surto e socialização dos computadores e das TIC, acompanhado pelo crescimento e evolução da www e por uma nova diversidade pluri-funcional dos ecrãs, é a concepção de projectos multi-suportes desde a sua “ideia” inicial à sua disseminação em diversos media. Exemplos como o de Twin Peaks de David Lynch (1992) mostram o surgimento de ideias que visaram desde a sua concepção tornar-se livro, filme, série televisiva e música editada em separado. Greg Roach concebeu para a produtora Fox o jogo X-Files, the Game, a partir da série televisiva homónima. A White Wolf Game Studio (criada em 1991) desenvolveu o projecto World of Darkness, que deu origem a uma saga de 13 novelas editadas em livro, a sucessivas gerações de jogos de computador ( do tipo role-playing games, RPG) com os respectivos manuais, e um jogo de cartas. A expansão de novos dispositivos comunicacionais associados à blogosfera veio alargar o campo mediático que pode interessar tais projectos. A análise das estratégias multi-suportes a que o mercado nos habituou pode, assim, ser um campo adicional de estudos de história intermedial — incluindo, naturalmente, exemplos contemporâneos. Mais recentemente, diversos autores usam o termo transmedia para designar estes objectos multi-suportes, desde que um dos suportes utilizados, pelo menos, ofereça uma experiência interactiva ao utilizador-espectador, e que nenhum deles corrompa a natureza dos conteúdos neles divulgados. Remediação e seu universo

Na sua incidência mais claramente epistemológica, o conceito de intermedialidade é, ainda, indissociável da já citada remediação (Bolter e Grusin, 1998): ao apropriar-se de conteúdos e formas de media anteriores, ou de outros media, cada dispositivo retrabalha, reedita, recria ou readapta esses conteúdos e formas, ajustando-as às suas capacidades próprias: o cinema “remediou” a fotografia, a música e o teatro, como a fotografia tinha “remediado” a pintura obrigando-a a afastar-se da mimesis mais ou menos naturalista; o teatro pode “remediar” o vídeo, a música, a performance, as “belas-artes” e o cinema. As artes cénicas, o cinema e a televisão “remediaram” conteúdos e formas da banda desenhada, das literaturas “maiores” e “menores”, do mesmo modo que artes e culturas eruditas “remediaram” artes e culturas populares, e vice-versa, e que jogos de computadores “remediaram” sagas míticas ou arquetipais e

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epopeias. A autonomia de cada media vive, em grande parte, da separação da sua heteronomia, como explicaram Gaudreault e Marion. Veja-se o que diz a contra-capa de uma das edições de Remediation sobre o que é designado pelo conceito:

“A crítica dos media continua cativa do mito modernista do novo: ela assume que as tecnologias digitais como a WWW, a realidade virtual e os computer graphics se devem divorciar dos media seus antecessores, usufruindo de um novo conjunto de princípios estéticos e culturais. Bolter e Grusin desafiam esta concepção, propondo uma teoria da mediação para a era digital: eles argumentam que os novos media visuais alcançam relevância cultural precisamente por homenagearem, rivalizando com eles e redesenhando-os, media como a pintura perspectivista, a fotografia, o cinema e a televisão. Chamam a este processo ‘remediação’ e anotam que também os antigos media redesenharam os seus antecessores: a fotografia remediou a pintura, o cinema remediou as artes cénicas e a fotografia, como a televisão remediou o cinema, o vaudeville e a rádio”.

A história das influências recíprocas, contaminações, adaptações e remediações entre artes ou entre modos de produção de obras de cultura é tão antiga quanto as próprias artes e as culturas, exprimindo o vasto e multímodo movimento de apropriação, por autores, artistas, técnicas e dispositivos, da experiência adquirida por outros autores, artistas, técnicas e dispositivos. Este fenómeno também pode descrever-se como uma contínua actividade de canibalização entre autores, artistas, técnicas e dispositivos. Nos anos 60 e 70 do séc. XX, cineastas como J.-L. Godard ou dramaturgos como Heiner Müller, por exemplo, militaram contra os direitos de autor ou contra a propriedade intelectual, defendendo que a canibalização de formas e conteúdos é o próprio motor das artes e da cultura. Mas intermedialidade não é sinónimo de canibalização (embora a subsuma), porque se refere mais genericamente ao contacto e ao uso comum de formas, conteúdos e dispositivos, ultrapassando as antigas fronteiras entre artes, técnicas, géneros e formas canónicas — num movimento proporcionado pela evolução tecnológica. Foi, aliás, a generalização das TIC e a sua entrada maciça no universo comunicacional, cultural e artístico, que levou à substituição do conceito de “indústrias culturais”, estudado por Adorno e Horkheimer em 1947, pelo de “indústrias criativas”, teorizado no Reino Unido pelo governo de Anthony Blair no final da última década do séc. XX e nos primeiros anos do séc. XXI. Se a década de 70 do séc. XX foi dominada pelo prefixo “meta” (meta-texto, meta-ficção, meta-cinema); se os anos 80 foram dominados pelo prefixo “pós” (pós-modernidade, pós-fordismo, pós-industrialização); se os anos 90 foram dominados pelo prefixo “hiper” (hipertexto, hiperficção, hipermercado), hoje vivemos anos dominados pelo prefixo “inter” (que herda das interdisciplinaridades, intertextualidades, estudos interartes), abrindo caminho ao domínio intermedial. Também é possível seguir a determinação semântica do termo intermedialidade através da bibliografia especializada a que a área de estudos tem dado origem, e a que vale a pena aludir de forma sintética (para além da referência atrás feita à “ressurgência” do termo pela mão de Müller) : por exemplo J. Sage Elwell (2006), tentando localizar os primeiros usos do termo intermedia, atribui-o a Dick Higgins nos anos 60, mas outros atribuem-no a Coleridge, por um uso inicial e não retomado do termo intermedium, num escrito de 1812. No entanto, como já foi descrito (Friedman, 1998),

“…Coleridge referia-se a um ponto específico entre dois tipos de sentido no uso de um medium artístico. Intermedium era para ele um singular, quase um adjectivo. Pelo contrário, a palavra intermedia de Higgins refere a tendência, nas artes, para se ser ao

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mesmo tempo um tipo ou forma de arte e uma maneira de ver ou conceber as artes”. Para Higgins, a designação intermedia referia-se a obras com as de John Cage, Nam June Paik e do movimento Fluxus, bem como às ‘works of art that fall between media’. Em 1999, o Centre de Recherches en Intermédialités (CRI), co-fundado na Université de Montréal por Gaudreault, Müller, outros, organizou a sua primeira conferência, ‘La nouvelle sphère intermédiatique’, e em 2000 publicou as respectivas comunicações na revista Cinémas (disponível on line). Outras conferências europeias sobre Intermedialidade tiveram mais recentemente lugar em Konstanz (2006), Växjö (2007) e Amsterdam (a ESF Exploratory Workshop: Intermedialities, em 12-14 de Junho de 2009, acima referida). Desde meados da década de 90, emergiu uma vaga de textos e publicações que abordam directa ou indirectamente a intermedialidade; entre elas: Icons - Text - Iconotexts. Essays on Ekphrasis and Intermediality (Wagner, 1996); Intermedialität: Formen moderner kultureller Kommunikation (Müller, 1996); Intermediality as Inter-esse. Philosophy, Arts, Politics (Oosterling/Plonovska-Ziarek 2004); Intermedia: Enacting the Liminal (2005); Intermedialität: Das System Peter Greenaway (Spielmann 1998); Intermediality (Semali/Pailliotet 1998); Framing Borders in Literature and Other Media (Wolf 2006). No conjunto, destaca-se, pela qualidade, a Intermédialités, editada pelo CRI, ou a Convergence (sobretudo os seus números especiais sobre Intermedia, de 2002, e sobre Hybrid Identities in Digital Media, 2005, editados por Spielmann). Em 2010, o livro Mapping Intermediality in Performance, editado por Sarah Bay-Cheng, Chiel Kattenbelt e Andy Lavender, alargou a reflexão à performance, às artes da cena e às práticas pedagógicas que as acompanham. No mesmo ano, Ágnes Pethő publicava, nas Acta Univ. Sapientiae, Film and Media Studies, nº 2 (da Sapientia Hungarian University of Transylvania, Cluj-Napoca, Romania), as comunicações apresentadas na workshop da ESF de Junho de 2009 em Amsterdam, que se tornaram no mais recente conjunto de textos de referência sobre cinema e intermedialidade (à data de redacção do presente texto). Sobretudo, investigar Trabalhar na área das intermedialidades significa sobretudo investigar — ora no universo teórico que as humanidades se habituaram a designar por reflexão fundamental, ora em aplicações e estudos de casos. A este respeito vale a pena recordar, respigando-a de textos de um projecto de investigação recente, o Main Trends in Contemporary Portuguese Cinema, (Mendes et. al., 2010) a seguinte citação, que mantém a sua pertinência no presente contexto : “a investigação nas áreas das artes e da cultura produz tradicionalmente mais dissertações resultantes de reflexão teórica do que trabalhos aplicados, articulados com a prática. Aqui, tivemos em mente a recomendação genérica sobre a investigação-baseada-na-prática, contida no relatório Reforming Arts and Culture Higher Education in Portugal” (Hasan, 2009) :

“A investigação baseada na prática, nas artes criativas e performativas e no design, tem potencial para estimular as economias culturais e criativas nacionais” .

No mesmo relatório, identificando os objectivos da investigação baseada na prática, nos domínios da arte e da cultura, escreviam os seus autores:

“Um problema do desenvolvimento de investigação em artes e cultura foi a tendência para se lhe adaptarem modelos e práticas vindas das ciências físicas e da natureza (onde investigação é sinónimo de produção de novos conhecimentos), o que levou amiúde à

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produção de textos quase-científicos que não fazem avançar a investigação baseada na prática no domínio específico das artes e da cultura. A investigação em artes e em cultura pode perseguir objectivos que incluem: A produção de novos conhecimentos. O teste de conhecimentos existentes para determinar as suas limitações. A reconstrução de saberes e conhecimentos perdidos. A compreensão, pelo público, da investigação em artes e em cultura”.

E acrescentavam ainda, referindo-se a uma dimensão que aqui também nos interessa:

“Uma questão própria das artes e da cultura tem sido o envolvimento de criativos (artistas, designers, performers) na investigação (...). Muitas vezes estes criativos confundirão as suas práticas independentes com investigação académica — como se fossem uma e a mesma coisa. Ora, não são: alguma prática será investigação, e outra não o será. A investigação conduzida em instituições de ensino superior obriga a um compromisso profissional que pode recobrir, mas se distingue, das práticas criativas independentes. O investigador terá de aceitar o seu papel de intelectual público (...), com o dever de devolver ao bem-estar social, cultural e económico os saberes adquiridos na investigação”.

Estas considerações interessam-nos, aqui, pelo contributo que oferecem à definição do que seja a “investigação em artes” — incluindo as artes intermediais — e pela repartição de mundos e metodologias representada por investigadores scholars, por um lado, e especialistas, por outro — sendo certo que qualquer investigação nestas áreas conta, inevitavelmente, com uns e outros. Significativamente, a partir da década de 90, surgiram variados programas de formação de 2º ciclo (MA) e 3º ciclo (PhD) na área das intermedialidades, em instituições norte-americanas e europeias do ensino superior, geralmente articuladas com Centros de Investigação. Este surto de novas formações, que mais tarde se expandiu para licenciaturas (BA), contribuiu para tornar as instituições menos mono-disciplinares e menos mono-mediais, dotando-as de capacidade para fornecer ensino a partir de “crossmedia resources” nos domínios das artes e dos media. O estudo da intermedialidade nas artes articula-se, nos termos da Bauhaus University (Weimar), “com os estudos em Cultura na era da medialização e da globalização”, e surge como área de formação estratégica nas sociedades do conhecimento e da inovação. Instituições europeias de ensino superior, como a Linnaeus University (Suécia), Bristol University (fc. BA Drama), Université Lumière (Lyon 2) ou a University of Essex, partiram das suas anteriores ofertas separadas de formação em cinema, teatro, literatura, escrita criativa, etc, para (sem delas abdicarem), proporem novas ofertas de formação interdisciplinares, transversais e associativas. A proximidade desta nova área de estudos com as de Estudos em Cultura (Cultural Studies) e Estudos em Comunicação (Media Studies) veio acrescentar, a esta área, sinergias produzidas por diferentes campos e por nova dinâmica docente. A Maastricht University, a Maastrich Theatre Academy, a Universidade de Siegen, a University of the West of Scotland), a Central School of Speech and Drama (U London), a VU Amsterdam, a Universidade de Bayreuth (Al.), seguiram esta tendência para autonomizar os estudos em intermedialidade; outras têm em curso esse programa. Em geral, a formação nesta área tende a ser entendida como um novo “corpus” extensivo aos três ciclos do ensino superior e muito apoiada na investigação. Por vezes, instituições europeias associaram-se para criar novos programas e formações: por exemplo, o BA em “European Media Studies” foi criado por uma

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parceria entre a Bauhaus de Weimar e a Université Lumière, apoiada pela "Deutsch-Französische Hochschule" (DFH-UFA). A European Science Foundation, associada às universidades de Strasbourg, VU Amsterdam, Università Cattolica del Sacro Cuore (Milano), Medienwissenschaft Universität Siegen, outras, tem dedicado particular atenção à nova área de estudos (cf. os workshops como o de 2009 em Amsterdam). Também a Complutense de Madrid criou o SIIM (Studies on Intermediality & Intercultural Mediation). Em outros continentes, o Massachusetts Institute of Technology (MIT), a Université de Montréal, diversas universidades americanas, a University of Canterbury (NZ) ou a Queensland Academy for Creative Industries (Australia) desenvolvem programas comparáveis, em articulação, ou não, com universidades europeias. Bibliografia citada: AAVV, Intermedialités, revista on line do Centre de Recherches en Intermédialités (CRI), Université de Montréal.

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Conversando com o realizador [José Álvaro Morais], Saguenail sublinha a importância, na época [princípio dos anos 70], dessa entrada do teatro no cinema, estruturante em O Bobo e que regressa, mais tarde, em Peixe Lua, no diálogo de Lorca que dá o nome ao filme. Responde-lhe José Álvaro Morais:

“Um fenómeno aliciante para mim (…) foi o descobrir o cinema novo alemão, com os Syberberg e os Schroeter, e assistir à emergência de toda uma leitura teatralizante da representação de cinema que era, até aí, impensável. Ou, pelo menos, há décadas que o era. E que, de repente, com o Ludwig, Requiem Para Um Rei Virgem [Syberberg, 1972], se tornou óbvia. Era uma maneira de fazer cinema, como continua a sê-lo, com o pouco dinheiro de que dispomos (…) em Portugal. É um modo de não ficarmos paralisados perante o modelo da narrativa tradicional”.

E logo a seguir, referindo-se especificamente a O Bobo:

“Tudo o que é supostamente a ‘realidade’ quotidiana d’O Bobo é quase sempre filmado em planos fixos, com alguma ocorrência de panorâmicas. Onde a câmara canta, se passeia e dança é dentro do teatro, o que é completamente impossível. Aquilo era teatro com quatro paredes. É completamente falso (…). O Paulo [Rocha] costumava dizer-me uma coisa que quase me ofendia. Era: ‘Porque é que o senhor não faz teatro?’ Ora, O Bobo é o contrário do teatro”.

O “contrário do teatro” (a imprecisão dos termos exprime bem a dificuldade de explicar em que consiste a manobra) era um amplo mas fechado espaço cénico sem espectadores, onde a câmara “cantava, se passeava e dançava” — um teatro exclusivamente concebido para ela. Este teatro feito apenas para a câmara, esta forma de desobediência à linguagem “realista” e “naturalista” do cinema dominante, este transporte, para o centro da velha acção cénica, do dispositivo cinematográfico, é uma das chaves de compreensão das opções de diversos cineastas portugueses desde o cinema novo. Encontramo-lo em filmes de Paulo Rocha, de Manoel de Oliveira e de João César Monteiro, por exemplo, ora como forma de inventar soluções expressivas para os problemas de produção gerados pelos baixos orçamentos dos filmes — uma trouvaille filha da falta de meios — ora como procura, à la Syberberg, de uma identidade cinematográfica de ruptura com a gramática e a narratividade herdadas do studio system e dos seus inúmeros neófitos.

Trata-se de tentar transformar uma fraqueza em força, como quem diz: Não há dinheiro para fazermos isto a sério? Então fazêmo-lo a brincar, mas levando a brincadeira muito a sério. A cena x deveria ser um interior-exterior em tenda real no meio de um acampamento militar, visitado por 50 cavaleiros que vêm fazer um ultimato ao rei? E não é possível produzi-la com os meios necessários à ilusão de realidade? Então teatraliza-se, sai-se deliberadamente para o falso e para a irrealidade, monta-se a tenda mas o acampamento é pintado em cartão, reduzem-se os visitantes a cinco e na melhor das hipóteses arranja-se um cavalo. José Álvaro Morais admite que o resultado pode ser kitsch, e que é precisa “lata” para o assumir (tal assunção representa um dos perfis da entrada oficial do kitsch no cinema).

Noutro registo, esta opção explica o que leva um Manoel de Oliveira a definir o cinema, em diversos momentos da sua longa carreira, como “teatro filmado” (cá estamos de novo diante da imprecisão dos termos: não se trata de colocar uma câmara fixa diante do palco do D. Maria, ou de filmar teatro com as três clássicas câmaras da televisão — embora, próximo deste último modelo, se tenham feito obras-primas, como As bacantes de Eurípides, no original Die Bakchen, magistralmente realizado para televisão em 1974 por Klaus-Michael Grüber, em 207 mn., a partir da sua encenação da mesma peça, no mesmo ano). Uma tal definição — “o cinema é teatro filmado” — presta-se a equívocos, porque se trata, sim, de explorar até a um novo limite e a um novo pathos — que só a câmara cinematográfica vê de muito perto — recursos expressivos característicos do teatro (o que Grüber fez), da pantomina, do circo, dos antigos autos, transformando-os em objectos patéticos e especificamente criados para o olhar cinematográfico, transformando-os em teatro que só existe no cinema, porque a mobilidade da câmara no interior do espaço encenado (inteiramente criado para ela) altera irreversivelmente a posição e o ponto de vista do espectador — como, precisamente, fez Syberberg.

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É verdade que, ao longo da história do cinema, se fez muito “teatro filmado”. Mas, ainda noutra vertente bem distinta destas, teatro e cinema também se interligam como em parte da obra de Ingmar Bergman, seguindo as pisadas do Kammerspiel film alemão dos anos 20, inspirado nas encenações de Max Reinhardt e no teatro do sueco Strindberg, e tornando-se intimista e naturalista como em Cenas da vida conjugal, de 1974, remontagem condensada de uma série de seis episódios feita para a televisão sueca (1º episódio: Inocência e pânico; 2º: A política da avestruz; 3º: Paula; 4º: Vale de lágrimas; 5º: Os analfabetos; 6º: No meio da noite numa casa obscura algures no mundo. Estreias entre 11 de Abril e 16 de Maio de 1973). Quase sem recurso a exteriores, filmando com diversas câmaras, Bergman está, aqui, apenas atento ao seu script, e ainda mais aos seus diálogos (às palavras) e aos seus actores (o filme é um vasto exercício sobre a palavra e a representação intimista). Mas esse é outro veio da teatralização do cinema, mediada pela linguagem e dispositivos televisivos, e que favorece em extremo, dada a proximidade das câmaras em relação à representação — a frequência de grandes planos prolongados, por exemplo — o voyeurismo do espectador. E não se trata de um modus faciendi particularmente novo: na genealogia do Kammerspiel film estão os trabalhos do argumentista Carl Mayer e do actor e realizador Lupu-Pick, 50 anos antes. É um “teatro cinematográfico” forte, mas que tem pouco a ver com o de José Álvaro Morais e com a aprendizagem de onde ele veio.

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Cinema, estudos interartes e intermedialidades É célebre a ruptura radical defendida por Bresson, nas suas Notes sur le cinématographe, entre a arte dos filmes e a do teatro: “Não há casamento entre teatro e cinematógrafo sem extermínio dos dois”. De tal modo que preferiu separar-se da própria palavra cinema, que lhe parecia irreversivelmente ligada à representação teatral, ao star system e à indústria, regressando à designação inicial da invenção dos Lumière. Para afirmar a sua autonomia, o cinématographe não devia usar “nem actores, nem direcção de actores, nem papéis, nem estudo de papéis, nem mise en scène”; em vez de actores e do seu “terrível hábito do teatro”, os filmes usariam “modelos encontrados na vida real”, para dar às personagens a possibilidade do ser em vez do parecer. O tom da ruptura, cem vezes repetida ao longo do seu livrinho de 1975, é dado pelo desdém com que o autor se refere às “mascaradas expressionistas” da Falconetti (em A Paixão de Jeanne d’Arc, de Dreyer) e pela resposta que lhes deu no seu O processo de Jeanne d’Arc. E o tempo não amaciou a intempestividade de Bresson, que ele tornou extensiva a outras artes:

“A verdade do cinematógrafo não pode ser a verdade do teatro, nem a verdade do romance, nem a verdade da pintura. O que o cinematógrafo consegue com os meios que lhe são próprios não pode ser o que o teatro, o romance, a pintura conseguem com os seus meios próprios”.

Mesmo quando mitigada, a radicalidade dos defensores da autonomia do cinema, incluindo os mais abertos à ekphrasis e à “fome de influências” interartes, é ainda hoje sobretudo bressoniana — as Notes sur le cinématographe são um dos evangelhos do cinema moderno. Depois de Bresson, porém, muitos cineastas que subscreveriam boa parte das suas Notes regressaram a uma ideia da arte dos filmes mais próxima da de Canudo, sublinhando o seu valor de síntese. Eis o que diziam em 1985 António Reis e Margarida Cordeiro, por exemplo (cf. entrevista no fim do presente livro):

“O cinema não é pintura, não é escultura, não é música, não é arquitectura, mas resulta de um agenciamento específico das potencialidades de todas as artes; resulta, para nós, da intimidade com elas e também, evidentemente, das novas sinergias, do olhar e da escuta que ele torna possíveis... O cinema tem sido sempre um olhar e uma escuta, a sua história é a história de determinados olhares e de determinadas escutas”.

Relance arqueológico Para fazer cinema, é pelo menos tão relevante conhecer o que ele fez como o que ele faz. Conhecer o que ele fez é apropriarmo-nos das formas que ele produziu ou criou, perceber que objectivos perseguiu ao criá-las, por que o fez, e como o fez. A literacia cinematográfica depende da nossa simpatia por linhagens de autores, técnicas e modos de produção de que nos tornámos íntimos e que alimentam uma poética e uma poetologia. Diferentemente, conhecer o que ele faz (o que ele “pode” ou “deve” fazer) tem sobretudo significado continuar a propor definições ontológicas do que ele “é” ou “deve ser”, muitas vezes recusando a diversidade das formas que o seu dispositivo propiciou. Conhecer o que ele “faz” tem igualmente significado propor normas de figuração (pense-se, por exemplo, entre cem outros exemplos possíveis, no Dogma 95), esquecendo, muitas vezes, que tais normas estão sempre ligadas a modos de produção, a novas ou velhas convenções que sedimentam códigos e gramáticas, e às mutações técnicas do dispositivo cinemático (a nouvelle vague francesa não teria existido sem a câmara ao ombro e o som directo).

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Nesta perspectiva, o regresso ao estudo do cinema primitivo e da sua época — as experiências do kinetoscópio (Edison, 1890), da Hale’s Tour (William Keefe, 1903), do cineorama (Raul Grimoin-Sanson, 1889) — a revisitação do “cinema de atracções” e do “cinema narrativo” nascente, a consideração da diversidade dos ecrãs e dos sistemas de projecção propostos desde muito cedo, têm permitido compreender a variedade de meios de que a experiência cinemática procurou dotar-se desde o seu início, independentemente do facto do filme narrativo, com uma duração padronizada e modelizada pelo dispositivo comercial (que, por sua vez, o propulsionou), se ter tornado a sua forma dominante. André Parente (2007: 17,18) chamou a atenção para a importância de experiências imersivas como o do panorama, invocando exemplos de 1900 para os relacionar com a imersão contemporânea oferecida pela realidade virtual e por instalações multimedia:

“Em 1900, na Exposição Universal de Paris foram apresentadas duas instalações panorâmicas notáveis. Com o Mareorama, o espectador viajava nos mares de Marselha, Yokohama, Nápoles, Ceilão, Singapura e China. A plataforma simulava um navio transatlântico com 70 metros de comprimento, com capacidade para acolher até 600 pessoas, que repousava sobre um sistema de suspensão, o qual simulava o balanço das ondas. [E] os irmãos Lumière apresentaram o Photorama, sistema de projeção de imagens fotográficas de 360 graus em rotundas panorâmicas de 20 metros de diâmetro por 10 metros de altura (…). O curioso é que, entre 1900 e 1906, os irmãos Lumière tenham investido mais esforços na comercialização do Photorama no que na do Cinematógrapho. Isto demonstra que os irmãos Lumière eram sensíveis não apenas à inovação tecnológica, mas também à criação de novos dispositivos de projeção. A imersão implementada pelo Mareorama e o Photorama fazem do Panorama o ponto nodal do desenvolvimento posterior do cinema imersivo (…), dos parques temáticos, dos atuais sistemas de realidade virtual e das instalações multimedia”.

OMareoramadeHugod’AlesieoPhotoramadosLumièrenaExposiçãoUniversalde1900

Também nesta perspectiva, é relevante perceber que os actuais “efeitos especiais”, cada vez mais digitalmente produzidos no cinema narrativo dominante, são a continuação, pelos meios técnicos disponíveis, do “cinema de atracções” que precedeu o “cinema narrativo”. Ou seja, o cinema narrativo dominante nunca prescindiu de incorporar em si o cinema de atracções: pelo contrário, depende dele para se auto-sustentar. Do mesmo modo, é o cinema narrativo dominante que mais precisa da 3D contemporânea, para garantir a permanência da sua representação “transparente” e “imediatista” do real (a immediacy de Bolter e Grusin, o “novo” realismo de Manovitch), e a permanência da ilusão de que o real e a sua imagem são uma e a mesma coisa — a permanência da willing suspension of desbelief que Coleridge descreveu.

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Se queremos saber o que o cinema é capaz de fazer, mais vale, portanto, saber o que ele foi sendo capaz de fazer. E a esta luz poderemos dizer, por exemplo, baseados na sua experiência, que o cinema figura (terceira pessoa do presente do indicativo do verbo figurar: eu figuro, tu figuras, ele figura...). E que as suas figurações, ou são cenas-fulgor, ou se condenam à irrelevância. Ao figurar, ele cria situações. Mas essas situações são, elas próprias, figuras. Dar a ver figuras resulta de um trabalho de facialização: todos os seres, entes e coisas filmados pelo cinema ganham o rosto que o cineasta lhes dá — pessoas, animais, plantas, objectos, espaços, tempos, sons. Pôr em cena é assim, e antes de mais, figurar. E figurar é atribuir aos seres, entes, coisas, etc., uma hecceidade estética — desvelá-los numa determinada forma, como entenderam os gregos clássicos, muito depois a gestalt e ainda o cognitivismo. Um passo mais (mas esse passo é meramente semântico) e diremos que o cinema transfigura o que filma, no sentido da transfiguração religiosa, e que o objectivo dessa transfiguração é dar a ver um real “novo”, pela apresentação de um perfil da realidade até agora encoberto. Se não fascinar, essa transfiguração condena-se à irrelevância. O objectivo da figuração é produzir afectos — um objectivo perseguido por meios estéticos e técnicos e que o cinema herdou da pintura e da fotografia, por um lado, e das artes da cena, por outro. Ao figurar, ao transfigurar o que filma, o cinema produz uma atmosferização específica dos seres, entes, coisas filmados: as suas imagens e sons mudam o regime ecológico do real filmado, dando-o a ver num novo perfil formal da sua imanência. A percepção do real transfigurado pelo cinema, como pela pintura icónica ou pela fotografia, ou pelas artes da cena, oferece um conhecimento afectivo desse real transfigurado. E o instrumento dessa cognição afectiva é a percepção e as sensações que a acompanham. Quando os filmes deixam de perseguir estes objectivos, tornam-se irrelevantes. O olhar da câmara — o que ela enquadra, o modo como se movimenta ou fica quieta, o que capta da figuração construída, o modo como se relaciona com as formas, a luz e a sombra, as cores, o som dos seres e das coisas que filma — é a parte do dispositivo cinematográfico que mais depende da articulação entre realizador e director de fotografia ou operador de câmara, e que herda da camera obscura e de todos os antecessores do cinématographe dos Lumière. Mas o dispositivo cinematográfico é mais complexo do que o “simples” jogo da captação: inclui o tratamento das imagens e sons em pós-produção, e depois o visionamento do produto final em deteminadas condições ecológicas (a tradicional sala de cinema escurecida, a nossa sala doméstica, o ecrã do nosso computador pessoal, espaços públicos à luz do dia, drive-ins nocturnos), além de também ser definido pelo habitus da posição do spectator e da sua situação psicológica enquanto tal. Assim entendido, o dispositivo cinematográfico é histórico e tem variado em função da evolução tecnológica da produção e exibição dos filmes, da “ecologia” da sua recepção e consumo cultural, e das mutações provocadas por ambas as coisas na definição da postura do spectator. É por isso que o conceito de dispositivo interessa às intermedialidades. Será o “dispositivo cinematográfico” comparável, por exemplo, com o dispositivo das artes cénicas, designadamente com o do teatro? O cinema é certamente um media ao longo de cuja história teve lugar um número exorbitante de ocorrências, operações, construções ou acontecimentos intermediais (e interartes), apreciáveis na variedade de interacções em que se envolveu com outros media (e outras artes). Mas esse facto não o define “ontologicamente” como uma arte intermedial. Define-o, sim, como uma ars combinatoria ou como um media que sempre se apresentou como lugar de confluência e de fusão de elementos oriundos de

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outros media e de outras artes, ora por necessidade técnica de remediar e reciclar experiências alheias, ora devido a uma “ansiedade de influências” (Bloom, 1973) que o acompanhou ao longo de toda a sua história.

A entrada dos Estudos Interartes nos Estudos em Cinema ou nos Estudos Fílmicos é mais fácil de entender: se, para usar os termos de Bloom, o cinema sempre viveu em “ansiedade de influências”, a relevância da sua relação com a pintura e a fotografia, a música, a dança e a performance, o teatro e a ópera, a literatura ou a arquitectura, está patente em toda a sua história, e inscrita no corpus de muitos filmes. Anteriores à dimensão intermedial, que, em princípio, põe sempre em jogo a interpenetração de dois ou mais media no surgimento de um objecto novo, os Estudos Interartes ocupam-se, de modo predominantemente interdisciplinar, das relações, interdependências e inter-influências entre artes tradicionalmente autónomas, mas que a modernidade aproximou — e a actual convergência digital acelerou, suscitando novas formas e figurações. Como diz o Departamento de Filosofia e Humanidades da Freie Universität Berlin, apresentando o seu programa internacional de investigação em Interart Studies:

“Durante muito tempo, os estudos artísticos viveram uma vida solitária. Tratasse-se de musicologia ou de estudos em teatro, de história da arte, de estudos literários ou fílmicos, cada disciplina definia-se claramente contra as outras sublinhado nosso] pelo seu objecto específico, pela sua metodologia e enfoque teórico. Nos últimos cinquenta anos, porém, observa-se uma tendência geral para minar as fronteiras entre os estudos artísticos tradicionais. Dois desenvolvimentos foram particularmente responsáveis por isto: primeiro, a crescente dissolução de fronteiras entre diferentes formas de arte — na performance, nas hibridizações e no multimédia; segundo, a esteticização da vida quotidiana — o atravessar de fronteiras entre arte e não-arte (...)”.

Qualquer história do cinema começa por nos recordar que o cinema primitivo se apropriou e inscreveu em si conteúdos, expressões e técnicas características de outras práticas. Sadoul (1949) abre a sua história evocando as sombras chinesas e a lanterna mágica, para logo acrescentar que elas não foram mais importantes, para o cinema, do que “a literatura, o teatro, a pintura ou qualquer outra arte nobre, ou do que as images d’Épinal, os almanaques, as marionetas, a caricatura ou qualquer outra arte popular ou desprezada”. E pouco depois, no capítulo «La mise-en-scène: Georges Méliès», explica numa dúzia de páginas como este prestidigitador, fabricante de autómatos e encenador, abastado proprietário do Théâtre Robert Houdin, passou a sua vida, desde 1896, a transpor para o cinema o que tão bem conhecia do teatro: “guião, actores, roupa de cena, maquilhagem, cenários, maquinaria, divisão em cenas ou em actos”, o que, diz Sadoul, marcou o cinema “até hoje”. No mesmo sentido escreve Cook (1996: 14-15) que o modelo de construção dos filmes de Méliès foi “a cena dramática representada do princípio ao fim” e filmada por uma câmara fixa cujo ponto de vista era “o do espectador de teatro sentado no centro da orquestra”, espectador esse que não encontraria, vendo um filme de Méliès, “mais manipulação narrativa do que ao ver uma peça de teatro com a mesma acção”. Hoje existe, nas áreas dos film studies, dos estudos interartes e da intermedialidade, um renovado interesse pelo cinema primitivo, porventura relançado por Elsaesser e Barker (1990), num livro organizado na perspectiva de uma “arqueologia dos media” (Early Cinema: Space, Frame, Narrative) e repleto de referências à teatralidade do novo medium e à fusão, no seu seio, de elementos oriundos de todas as artes de cena que dominavam o habitus do espectáculo nos seus primeiros anos. Já na década de 90 do séc. XIX, os exibidores organizavam os espectáculos de modo a que os filmes fossem acompanhados de narração oral, música e efeitos sonoros: nos talking films da

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época, os diálogos eram garantidos por actores atrás do ecrã e os anos seguintes foram dominados pela figura dos showmen itinerantes, que garantiam esses mesmos complementos e tinham muitas vezes começado por ser patrões ou membros de trupes de teatro itinerante, na maior parte dos casos negócios familiares (Chanan, loc. cit.: 174-188). A renovação deste interesse pelo cinema primitivo articula-se com o que Catherine Russell (2002) chamou “historiografia paraláxica” (parallax historiography), porque, no final do séc. XX, as tecnologias digitais dos novos media propiciaram uma série de passagens (no sentido benjaminiano) para o re-estudo do cinema primitivo, propondo paralelismos entre um e outros em matéria de relacionamento com os media anteriores, em matéria de invenção e prática de procedimentos técnicos, em matéria de não-linearidade dos progressos — por exemplo, um cinema “das atracções” tal como descrito por Tom Gunning (loc. cit.: 1990) coexistiu longamente, como paradigma, com o cinema “narrativo” que ia tornar-se no paradigma dominante — e convidando, assim, a que estes novos media fossem examinados à luz, comparativa, do que caracterizou o nascimento e a institucionalização do cinema, cem anos antes. Mais genericamente considerada, esta leitura dos primeiros anos do cinema está em sintonia com o que André Gaudreault e Philippe Marion (1999) escreveram em «Un média naît toujours deux fois» (Mendes, 2011a): os autores, estudando precisamente o nascimento do cinema (entendido como media), põem em evidência uma sua fase inicial, fracamente identitária, onde o novo dispositivo surgido com os Lumière nos últimos dias de 1895 é sobretudo suporte e veículo para outros media que o precederam, que dominavam o gosto e o habitus da época e de que ele se apropriou, aprendendo com eles e remediando-os. Esses media são a fotografia, obviamente, mas também o circo, o mimo, a comédia e a farsa, a pantomina — estas últimas, elas próprias remediações da antiga commedia dell’arte — o que deu origem ao cinema “de atracções” de que fala Gunning, destinado a conviver com as primeiras adaptações maciças de peças de teatro, romances e novelas que tinham obtido legitimação prévia no mercado do gosto, da cultura e do espectáculo — gosto esse formatado por séries culturais maioritariamente aceites. Numa segunda fase de maior autonomização do novo media, que conduz ao seu reconhecimento social e à sua institucionalização, acarretando mais meios de financiamento das suas produções, os seus conteúdos e formas próprias já consubstancializam uma gramática e um modus faciendi cinematográficos que estão socializados, geraram uma recepção específica com a sua literacia própria e lhe permitem rivalizar, enquanto espectáculo, com os media que ele canibalizou ou com os que, antes dele, dominavam o mercado (teatro, ópera, vaudeville, cabaret, e, de outro modo, a novela). O artigo de Gaudreault e Marion é, assim, um exercício exemplar de história intermedial, ou de reescrita, pela intermedialidade, da história dos media. Mas o que aqui saliento é que é do cinema-enquanto-media que eles partem para a proposta de uma teoria geral sobre o nascimento de qualquer media. Anote-se, no entanto, o que sobre estas matérias escrevia, três anos antes, Jürgen E Müller (1996: 47), sustentando que o cinema “foi intermedial” desde o seu surgimento, mas por razões diversas das apresentadas por Gaudreault e Marion (e aproximáveis das de Chanan), embora complementares:

“O cinema não é híbrido nem intermedial por ter trazido os seus precursores para dentro de si próprio (como pensava McLuhan), mas porque desde os seus momentos iniciais encontramos interacções e interferências mediais a quase todos os níveis. As

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suas condições técnicas, as circunstâncias das suas apresentações e as suas estruturas estéticas estiveram sempre marcadas por estas interacções”.

Na euforia dos primeiros anos do cinema e do início da sua institucionalização, são muitos os autores que põem em evidência a confluência interartes no novo medium: Canudo (1911) diz que ele será “pintura e escultura desenvolvendo-se no tempo”, “artes plásticas em movimento”; Münsterberg (1916) refere-se-lhe como photoplay e Lindsay (1915) propõe uma tipologia destas photoplays, que são “escultura em movimento”, “pintura em movimento” ou “arquitectura em movimento”. Apologias como estas acompanharam, como cumes poéticos entusiasmados, décadas da história do cinema. Uma vez institucionalizado, e conquistada a sua posição de media dominante ou hegemónico ao longo de dois terços do séc. XX, o cinema não poderia deixar de vir a ser objecto de numerosas dissidências, contradições internas e crises de identidade, até que outros media (designadamente a televisão, depois o vídeo e, já na época da convergência digital, utensílios como os computer graphics) começaram, por sua vez, a remediá-lo e a induzir nele vectores de hibridação. Hoje, a inter-relação entre cinema, televisão, computer graphics, hipermedia e jogos digitais tornou-se mais evidente, como parte de uma “cultura de convergência” recentemente tematizada (Jenkins, 2006), e que sugere uma nova αἴσθησις, característica de um novo Κοινή. A comunidade de investigação em intermedialidades é unânime em considerar que o cinema é geneticamente um media particularmente intermedia e recorda, a cada passo, na esteira de Jürgens, Gaudreault e Marion, Jost, que ele remediou desde o seu nascimento parte dos conteúdos de media precedentes, e que trinta anos depois já lidava, não apenas com imagens e legendas, mas com a palavra e a música incorporadas no seu suporte material — a película. Chamei, noutro lugar (v. capítulo seguinte) a atenção para os textos de André Bazin «Pour un cinéma impur», «Théâtre et cinéma» e «Peinture et cinéma», por se tratar de um autor a que tanta ontologia do cinema hoje continua a regressar, sendo que estes seus textos antecipam em quatro décadas o surgimento da intermedialidade na reflexão sobre o cinema, e que, entendendo-se embora a si próprios como parte de uma reflexão sobre a identidade do cinema, são, ao mesmo tempo, exercícios aplicados de estudos interartes (claro que Bazin não se refere, neles, nem à intermedialidade, que não é sua contemporânea, nem à tradição britânica e norte-americana dos interarts studies, que ele devia considerar mais próximos das literaturas comparadas e das artes plásticas). O que estes textos de Bazin têm de mais relevante para o que nos ocupa aqui é que o autor, ao contrário de muitos bazinianos que precisarão de o reler melhor, salienta a importância histórica e estratégica, para o cinema, de uma relação aberta e exigente com outras artes, estudando-as para as remediar (claro que Bazin também não se refere à remediação), e desautoriza a crítica, corrente no seu tempo (que é o de Sadoul), ao théâtre filmé, pedindo que ele se transforme, adquirindo mais competências, em théâtre cinématographique — e aprendendo com o que fizeram os seus contemporâneos Laurence Olivier, Orson Welles e Jean Cocteau, e viria, mais tarde, a ser feito por Ingmar Bergman, pelo neue kino alemão e tantos outros. A pintura e o cinema em Bazin Em «Peinture et cinéma», comentando as curtas metragens de Hemmer, o Van Gogh (1948) e o Guernica (1950) de Alain Resnais, entre outros filmes, Bazin segue a mesma estratégia de «Pour un cinéma impur» e dos seus outros textos do tipo «Cinéma et... » : ataca os preconceitos sobre a interacção e inter-influências entre o cinema e outras artes, defende maior proximidade entre o primeiro e as segundas,

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analisa casos para apoiar a sua argumentação. A Bazin é particularmente cara a autonomia da démarche cinematográfica de Resnais perante a obra de Van Gogh. Diz ele, numa passagem que me parece particularmente relevante para o tema do presente artigo :

“O realizador pôde tratar o conjunto da obra do pintor como um único e imenso quadro, diante do qual a movimentação da câmara é tão livre como em qualquer outro documentário. Da ‘rua de Arles’ ‘penetramos’ pela janela na ‘casa’ de Van Gogh, aproximamo-nos da cama do édredon vermelho. Resnais nem hesita em fazer um ‘contra-campo’ de uma velha camponesa holandesa que entra na casa”.

Ou seja, Resnais ignorou a reprodução fiel de cada quadro, limitado pelas suas dimensões e pela sua moldura, e visitou livremente as figurações do pintor, determinando o itinerário que achou conveniente e tratando o pintado como um continuum figural: reenquadrou, ateve-se a pormenores, passou de uns para os outros sem ter em conta a relação entre proporções dos quadros, aproximou-se e afastou-se do que quis, criou ligações visuais que nunca tinham sido explicitadas. O que interessa a Bazin não é a capacidade ou a incapacidade do cinema para reproduzir fielmente a pintura, é antes que Resnais tenha conseguido “tornar solúvel” a pintura na percepção e na “linguagem” cinematográfica, abstraindo-se do quadro e apropriando-se do que nele está pintado com aquilo que ele designa por um “realismo de segundo grau”. No Van Gogh de Resnais, o cinema não assume a função didáctica das fotografias num álbum sobre o pintor ou das projecções de diapositivos numa conferência: filmes como este, diz Bazin,

“...são eles próprios obras. A sua justificação é autónoma. (...) O cinema não vem servir nem trair a pintura, mas acrescentar-lhe outra maneira de ser. (...) Indignar-se com este facto é tão absurdo como condenar a ópera em nome do teatro e da música”. (...) O paradoxo [do filme de pintura] é que ele utiliza uma obra totalmente constituída e que se basta a si própria. Mas é precisamente por essa substituição em segundo grau, que ele lança sobre essa matéria já esteticamente elaborada uma luz nova”.

Eis matérias que os estudos interartes conhecem bem (e que a seguir evocamos a propósito do picturalismo de Antonioni, da influência da pintura de Hopper no cinema e de La belle noiseuse de Rivette) e que exprimem com clareza o que, quer eles quer a intermedialidade, consideram trocas e interacções entre dois media. A reflexão de Bazin sobre o Van Gogh de Resnais é transponível, por exemplo, para o interesse manifestado por J.-L. Godard, primeiro pela pintura de Renoir em Pierrot le fou (1965), depois pelos tableaux vivants de Passion (1982), com uma diferença substancial (neste segundo filme) em relação a Resnais: em Passion, os quadros de referência não estão presentes e a animação que eles suscitam abre-se a outra relação entre media — o cinema e o teatro. Sobre este exemplo de mediação entre uma pintura ausente do ecrã e a sua teatralização pelo cinema escreveu Joachim Paech (1989: 45), aqui citado por Ágnes Pethő (2010):

“Num tableau vivant só temos presente a memória da pintura, e não a pintura propriamente dita diante da câmara. O confronto entre cinema e pintura abre para um terceiro nível: o nível do teatro. Os tableaux vivants são na verdade cenas de teatro: em vez de entrarmos na pintura entramos numa espécie de espaço cénico. O espaço da pintura torna-se espaço teatral, onde os corpos figurados na pintura se tornam reais, descontruídos e interpretados por actores”.

Uma conceptualização diferente desta relação entre pintura, cinema e teatro é experimentada por Peter Greenaway em Nightwatching (2007), onde se misturam o olhar e o trabalho do pintor (Rembrandt), a animação do quadro por representação teatral e a observação dessa representação — numa deliberada procura de sobrecarga

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intermedial (que no entanto, tratando-se de cinema, converge para a superfície bi-dimensional do ecrã onde vemos o filme). Outro caso notório de interacção entre o cinema e outro media é o da dependência da nouvelle vague francesa, globalmente considerada, da literatura, como se os autores surgidos da crítica cinematográfica e da frequência da Cinemateca de Henry Langlois sentissem uma necessidade de legitimação que lhes seria fornecida pelo peso específico da ficção escrita. No entanto, essa dependência começou por ser marcada pela rejeição de outra, aquela em que alegadamente o “realismo poético” francês e o seu cinema de estúdio vivia das adaptações de obras literárias consagradas pelo gosto do público. Autores como Truffaut (Mendes, 2009) mantiveram uma relação estreita com novelas e romances, adaptando-os, por vezes fazendo pairar sobre os seus filmes uma voice-over de narrador omnisciente — como em Jules et Jim ou Les deux anglaises et le continent. O que torna Truffaut paradigmático do afastamento em relação aos seus antecessores é o gosto por literaturas “menores”, a começar pela novela policial que, nos EUA, tinha nas décadas de 30-40 inspirado um novo género fílmico, o film noir. Truffaut, como Godard (mas este usando a literatura como um território de pilhagem e exercendo sobre ela uma espécie de droit de cuissage, à semelhança do dramaturgo Heiner Müller), são apenas dois exemplos que se estendem a Eric Rohmer (muitos dos seus filmes foram previamente escritos como contos) ou, naturalmente, a Marguerite Duras. T. Jefferson Kline (1992) analisou esta dependência da nouvelle vague perante a literatura em termos psicanalíticos, definindo-a como uma relação quase-edipiana, onde a literatura desempenha o papel da autoridade inicialmente combatida e recalcada, mas destinada a regressar. O picturalismo de Antonioni A vasta bibliografia sobre a interacção pintura-cinema identifica maioritariamente ocorrências de citações (de quadros em filmes, de filmes em quadros) e a sua metodologia característica é a da análise de casos (Dalle Vacche, 1996; Thivat, 2007; Vancheri, 2007). São mais raros os casos dos autores que, sem prejuízo da análise de casos, se posicionam numa fenomenologia mais vasta, que tenta equacionar os registos de tal interacção à luz de condicionamentos e intencionalidades próprias do pintor e do cineasta (Bonitzer, 1985; Aumont, 1989; Bonfand, 2007). Bonfand, por exemplo, refere uma passagem de Histoire(s) du Cinéma: Une vague nouvelle (sobreposição de rostos em panos brancos que esvoaçam, como tentando imprimi-los neles), para sustentar que Godard vê o ecrã de cinema como a tela virgem da pintura, onde o processo indexical inscreverá o real à maneira do primitivo αχειροποίητος cristão. E refere o final de Stalker (antepenúltimo plano na zona: sobreposição de layers de cor e luz até à saturação da imagem) para sustentar que o cinema se faz, para Tarkovski, como os artistas de Bizâncio pintavam os seus ícones. Surgiria assim um Godard baziniano quanto à indexicalidade mas fascinado pela picturalidade, e um Tarkovski eminentemente pictural, mais interessado no ícone do que no index.

De facto, o cinema é multiforme e grandes cineastas modernos vieram a afastar-se do “realismo ontológico” de Bazin e da sua defesa da indexicalidade (e também da profundidade de campo como instrumento do realismo), e a abordar o real de modo diametralmente oposto ao que ele propôs. Tomemos um exemplo suficientemente representativo desta separação: a obsessão de Antonioni com a picturalidade do filme, tornada evidente em Il deserto rosso (1964) e que acompanhará o cineasta na sua obra posterior, passando por Blow-up (1966) e Zabriskie Point (1970), e vivendo novo pico em Il Mistero di Oberwald (1981), é um dos casos mais estudados de interacção entre

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pintura e cinema, e tornou-se num dos enfoques mais glosados na análise da obra do realizador, a par da sua desconstrução da narrativa clássica em L’Avventura (1960) e L’Eclisse (1962), do relevo por ele dado aos tempos mortos e à ambígua opacidade das suas personagens. Antonioni também foi pintor (como Greenaway, Kurosawa, Schnabel e Jarman) e um museu que mostra os seus quadros abriu entretanto na sua cidade natal. O movimento inverso também é relevante: pintores (como Dali, Picabia, Cocteau, Moholy Nagy ou Richter) não resistiram a experimentar o cinema.

Il deserto rosso é o primeiro filme a cores de Antonioni, tendo o seu título de trabalho começado por ser Azul, Verde. São conhecidas as fotografias das filmagens em que membros da equipa pintam de branco árvores e uma rua inteira, em Ravena; o realizador queria rejeitar a mimesis e, invertendo o jogo naturalista, forçar o real a adquirir o cromatismo e a figura desejados. Na verdade, o uso da pintura dos décors é muito mais extenso e sistemático no filme, em obediência ao objectivo que o autor frequentemente explicou (Chatman, 2004: 91):

“Quero pintar a película como se pinta uma tela; quero inventar as relações entre as cores, e não contentar-me com fotografar as cores naturais”.

Por exemplo, na cena em que as personagens Giuliana e Corrado fazem amor num quarto de hotel, o décor foi parcialmente repintado de plano em plano em diferentes cores e no fim da sequência tudo foi de novo repintado em rosa. Na fábrica, misturam-se as cores industriais pré-existentes e as acrescentadas pelo realizador, para criar a atmosfera e a imersão sensitiva pretendida — as tubagens pintadas de cores vivas evocam a pintura de Léger. Com frequência, Antonioni mandou primeiro pintar os décors com uma cor de base, neutralizando a sua aparência anterior, e sobre essa primeira camada de tinta voltou a pintar áreas de tonalidades mais intensas, picturalizando e artificializando tanto quanto possível o real a filmar e modificando profundamente a sua dramaticidade expressiva — um trabalho por que a découpage esperava, para o acentuar (Chatman, id. ibid):

“Um vermelho intenso caracteriza o interior da cabana [onde Giuliana, num grupo de conhecidos, se dedica a um jogo erótico]. É também a cor da trave da cama onde Corrado faz amor com Giuliana — oposta à do corrimão azul encostada ao qual ela aceita o amor mais frio de Ugo [seu marido]. A bandeira sinalizadora da quarentena [de um navio recém-chegado] e os fumos venenosos [dos décors industriais] são amarelos. Os interiores do hotel de Corrado — e até as plantas dos átrios — foram pintados de branco (...)”.

Querendo usar a cor para figurar estados de espírito das personagens e para atmosferizar lugares, num movimento que se extremará de novo, mas por outros meios, em Il Mistero di Oberwald, o realizador terá mesmo querido testar uma psicologia, ou uma simbólica da cor, como se torna claro numa entrevista concedida a Jean-Luc Godard (1964: 16):

“Pintámos o exterior da fábrica, que no filme é vermelho; quinze dias depois, os operários batiam-se entre eles. Pintámo-la outra vez de verde pálido e a paz voltou — o olhar dos operários precisava de repouso”.

Também em Blow-up o realizador mandou repintar o verde de uma vasta área de relva do Maryon Park, em Londres, o “lugar do crime” no filme, para garantir que ela ganhava força expressiva quando o fotógrafo-protagonista a atravessa ou procura, nela, o corpo da vítima. Depois, quando percebe que o corpo desapareceu e volta ao seu estúdio para procurar nas suas imagens o corpo que fotografou por acaso, o protagonista amplia sucessivamente as suas fotos, mas o grão dessas ampliações aumenta de tal modo que as imagens, de início indexicais por excelência, se tornam

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semelhantes aos quadros abstractos e pontilhistas que o fotógrafo menospreza (Antonioni usou no filme quadros do pintor britânico Ian Stephenson): o index fotográfico perde as suas funções peirceanas e torna-se equivalente a uma composição não figurativa, que não “representa” nem “re-apresenta” nada. Esta indistinção entre real e irreal é ironicamente hipostasiada na última cena do filme, a do jogo de ténis que os mimos (os mesmos do início do filme) jogam, num court do parque, sem raquetes nem bola. Mas, em Il deserto rosso, a preocupação de Antonioni foi por vezes inversa da vivida com a relva do Maryon Park, como anotou Flavio Nicolini, seu assistente de realização, no seu diário das filmagens (Nicolini, 1964: 59):

“O problema é eliminar o verde dos campos: plantam-se bambus amarelos, pinta-se a erva de amarelo. O que aborrece Antonioni não é o verde em si, é a sua presença demasiado natural, o seu peso perpétuo nos exteriores naturais, como um fundo (...) estranho ao clima da cena (...). É a grande batalha dos pintores que começa”.

Longe de referências à pintura em forma de citações — e no entanto a estrela negra sobre fundo amarelo na fábrica evoca motivos de Matisse nos seus gouaches dos anos 50 — existe em Antonioni uma genuína inscrição da experiência pictórica no trabalho do cineasta, que o leva a aproximar os dois media até onde pode. O título de Il deserto rosso é certamente uma alusão (nunca assumida pelo realizador) ao quadro La desserte rouge, do mesmo Matisse (1908), que surge explicitamente evocado no filme (Simond, 1995) embora alterando-se a dominante cromática — vermelho, verde e amarelo fortes no quadro, verdes acinzentados e um rosa esbatido na película. A obsessão com a artificialização da cor, com a sua psicologia e a sua simbólica voltará mais tarde em Il Mistero di Oberwald onde, além de continuar a pintar décors naturais, Antonioni experimentou pela primeira vez as possibilidades de manipulação da cor de um vídeo feito, por encomenda, para a televisão, alterando radicalmente toda a coloração do filme na pós-produção. A experiência foi desigualmente recebida mesmo pelos mais fiéis devotos do realizador, a parte dos quais não agradou o uso enfático e tautológico da cor. Mas, em Il deserto rosso, o picturalismo não se fica pelo trabalho da cor: está patente na concepção dos enquadramentos e na sua subdivisão interna — o filme trata por vezes janelas e portas, por exemplo, como quadros (ou molduras) dentro do quadro, no seio dos quais se vêm inscrever desdobramentos de cenas que se multiplicam no mesmo plano. E Antonioni evita deliberadamente a clássica perspectiva e a profundidade de campo, recorrendo maciçamente ao zoom e à teleobjectiva, que reduzem a imagem à sua chã bidimensionalidade. Além disso, o realizador procura o desfocado (flou), que rouba contraste e nitidez à imagem e transforma as suas linhas em manchas, tornando o décor mais irreal e mais abstracto — uma opção que lhe parece adequada quando quer evidenciar a “nevrose” de Giuliana, que precisamente se move entre dois mundos, um real e outro irreal, um nítido e outro desfocado. Como ele explicou na entrevista concedida a Godard, e onde sobressai o seu afastamento e recusa do realismo:

“No deserto vermelho trabalhei muito com o zoom para obter um efeito bidimensional, diminuir a distância entre as personagens e os objectos e conseguir que eles parecessem esmagados uns contra os outros. (...) E também usei muito a teleobjectiva para anular a profundidade de campo, sendo ela, como é, um elemento indispensável ao realismo”.

O picturalismo de Antonioni exprime-se ainda noutro tipo de exercícios: no final de Zabriskie Point (1970), a personagem Daria faz explodir imaginariamente, vingando a morte de Mark, a vivenda-modelo, incrustada nas rochas de Death Valley, onde o seu patrão da Sunny Dunes Realty se vai reunir com colaboradores. A vivenda é um ícone

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do poder do dinheiro, da affluent society americana e de um empreendedorismo obcecado pela exibição da sua riqueza, e alude directamente à villa de North by Northwest, de Hitchcock, e às casas do deserto de Frank Lloyd Wright. Antonioni filma longamente a sua explosão (usou para essa sequência dezassete câmaras), durante quase seis minutos, começando por uma série de tomadas de vistas do rebentamento da construção em plano geral — a repetição reitera a concretização do desejo de Daria — mas aproximando-se a seguir e desmultiplicando a destruição do seu interior objecto a objecto: explodem sucessivamente a cozinha e o seu frigorífico repleto de comida, a televisão que se encontrava ligada, as estantes de livros e de dossiers, um armário de roupa, móveis de exterior, toda a espécie de embalagens — ou seja: todos os ícones domésticos do consumismo ocidental voam em estilhaços, filmados au ralenti e vogando num espaço que já não é o interior da casa mas sim um exterior que tem o azul do céu como fundo abstracto, e que por momentos se confunde com imagens submarinas. A “subida aos céus” e o pairar suspenso dos estilhaços, que ora ainda figuram os objectos que eram instantes antes, ora se tornam fragmentos calcinados e irreconhecíveis que se vão desfazendo, assemelha-se cada vez mais a telas abstractas animadas — como se Antonioni pretendesse fazer ali uma animation de tableaux a partir das grandes telas do expressionismo abstracto de um Jackson Pollock. O exercício explicita, de novo, a vontade do realizador de picturalizar e subjectivizar até ao limite possível a conversão de uma colecção de símbolos de riqueza num monte de dejectos voadores. A casa explodida é uma maqueta feita para o filme e da altura de um homem, mas não os objectos do seu interior, que se desfazem numa chuva de detritos ao som de Pink Floyd (uma versão de Careful With That Axe, Eugene). A casa verdadeira, projectada por Hiram Hudson Benedict, fica em Carefree, a Nordeste de Phoenix. Mais uma vez, o filme teve uma recepção pouco entusiástica: depois dos problemas com as autoridades locais durante as filmagens, a crítica americana considerou que Zabriskie Point oferecia uma imagem ingénua e excessivamente simplificada da rebelião estudantil nos E.U.A., da sua aliança com o universo “hippie”, bem como da cega violência policial ordenada pelo establishment. O filme, que custara sete milhões de dólares, só fez 900 mil na box office doméstica. Mas concluamos sobre o picturalismo do realizador e sobre a sua obsessão de, através dela, tornar visível o invisível. Como diz Bonfand (2007: 131):

“Antonioni procura na pintura o que nela torna visível o não visto: a pintura é [para ele] ora uma lupa, ora um microscópio, um telescópio; imagem no tapete do visível, condição do seu aparecer, despoletador da fenomenalidade”.

Gianni di Venanzo tinha sido o director de fotografia de Antonioni para o preto e branco (Il Grido, 1957, La Notte, 1961, L’Eclisse, 1962, ele que também fizera a imagem da Eva de Losey, do Salvatore Giuliano de Rossi e do Otto e mezzo de Fellini); mas, ao dar o seu “salto” para a cor, o realizador preferiu trabalhar com Carlo di Palma (Il deserto rosso, Blow-up, Identificazione di una donna), o que decerto significa a confiança que nele depositava para levar a bom termo as suas desfigurações do real. Mas ainda trabalhou com Alfio Contini (Zabriskie Point, 1970 e Al di là delle nuvole, que, já doente, realizou com a ajuda de Wim Wenders), com Luciano Tovoli (Professione: Reporter e Il Mistero di Oberwald) e com Marco Pontecorvo (Il filo pericoloso delle cose, 2004, um dos sketchs de Éros — de que os outros realizadores são Soderbergh e Wong Kar-wai).

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A pintura de Edward Hopper e o cinema hopperiano

Um outro enfoque da permeabilidade entre pintura e cinema e da contaminação entre ambos é sugerido pela obra de pintores que exerceram uma influência duradoura em realizadores e directores de fotografia. Um dos casos hoje objecto de renovada atenção é o de Edward Hopper (1882-1967), a quem instituições como o Whitney Museum of American Art (N.Y., principal depositário da sua obra) ou a Hermitage Foundation (Lausanne) dedicaram em 2010 ciclos e exposições sobre a relação entre os seus quadros e a imagem cinematográfica. Num filme de Jean-Baptiste Roche feito neste segundo lugar, Frédéric Maire, director da cinemateca suiça, pôs em evidência a relação directa entre a pintura de Hopper e filmes de David Lynch como Mulholland Drive (2001) ou a série televisiva Twin Peaks (1990), relação que poderíamos alargar a Blue Velvet (1986); e mostrou a mesma relação com o Jim Jarmush de Stranger than Paradise (1982) ou de Broken Flowers (2005). Em geral, a reflexão sobre a pintura de Hopper e sua articulação com a imagem cinematográfica não põe o acento tónico na cinematização de quadros (apesar da forte excepção de Nighthawks e de várias outras telas), antes sublinha a empatia entre as técnicas de figuração do pintor e a generalidade do real visto pelos filmes: de certo modo, Hopper pintou o cinema; e a sua pintura, marcada pela imagem fílmica, deu lugar a um cinema hopperiano.

Inicialmente um ilustrador e um paisagista fascinado pela arquitectura, Hopper, ideologicamente conservador e que sempre recusou pertencer a qualquer escola, nunca se afastou de uma pintura figurativa que por vezes está próxima de Magritte, mas foi-se definindo a si próprio e viu-se reconhecido como um “pintor da interioridade”, da “busca de si mesmo”. Foi um criador lento e moroso, uma “testemunha silenciosa” em cuja obra ganham relevo personagens — sobretudo mulheres — que parecem entregues a uma perpétua meditação vazia, ou vivendo momentos do quotidiano mais anódino, e quase sempre iluminadas por uma luz especial, por vezes intensa — a luz hopperiana que torna a sua pintura tão idiossincrática. Halls e quartos de hotéis, casas e seus interiores, estações de gasolina, vistas de ruas de Nova York ou de pequenas cidades, compartimentos de pullmans e interiores de transportes públicos ou de cafés e restaurantes, muitos janelões de onde emerge a luz, são espaços recorrentes em toda a sua obra. Hopper e sua mulher viveram desde 1913 até ao fim da sua vida no mesmo apartamento de Washington Square, tendo como residênca secundária uma casa que construiram nos anos 20 perto de Cape Cod.

A memorabilia de Hopper foi-se enriquecendo de citações de cineastas que reconheceram e reconhecem a importância da sua influência nas respectivas cinematografias. Para citar os exemplos mais recorrentes no comentário contemporâneo, Hitchcock admitiu que a casa dos Bates, em Psycho (1960), se inspira na House by de Railroad (quadro de 1925), mas outros exteriores e motivos imagéticos de filmes seus reportam a quadros de Hopper: a casa de Carlota Valdez em Vertigo (1958), as pontes de Thirty nine steps (1935), as paisagens rurais e suas casas em Family Plot, seu último filme (1976). A mesma House by de Railroad inspirou a casa de Giant (1956), de George Stevens, e de Days of Heaven (1978), de Terrence Malick. Wim Wenders, que sempre se declarou discípulo de Antonioni e devedor de Hopper, recriou em The End of Violence (1997) um tableau vivant a partir de um dos quadros mais conhecidos do pintor, Nighthawks (1942). Dario Dargento fez uma cena de Profondo Rosso (1976) num décor que cita o mesmo quadro e Ridley Scott diz ter-se inspirado nele para criar a luz da noite urbana de Blade Runner (1982). Mas a relevância de Nighthawks no cinema começa bem antes: Hopper pintou o quadro depois de ter lido The Killers, de Hemingway, dando expressão pictural à atmosfera

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da novela; ao adaptar o mesmo texto ao cinema fazendo um film noir homónimo (1946), Robert Siodmark trabalhou a partir de Hopper e recriou o quadro no filme, a preto e branco, mas também se inspirou no Gas (quadro de 1940) para conceber um dos seus exteriores e noutros dos seus quadros para o hotel onde vive uma das personagens. Iniciadas as filmagens do seu clássico noir Force of Evil (1948), Abraham Polonsky levou o seu director de fotografia George Barnes a uma exposição de Hopper e disse-lhe: “É com isto que o filme tem de se parecer”. Outro director de fotografia de Hollywood, James Wong Howe, recriou interiores e personagens de Hopper em Picnic (1955), e o pintor influenciou o Douglas Sirk de The Tarnished Angels (1957).

No que toca a Wenders, o seu fascínio por certos traços da paisagem americana (estradas e carris ferroviários que atravessam espaços desertificados, estações de gasolina, casas ou bares solitários no meio de nada, personagens isolados que quase não falam) é inteiramente hopperiano, bem como o filme em que mais tentou evidenciar a sua relação com o film noir, Hammet (1982). Também a road movie de Dennis Hopper, Easy Rider (1969), atravessa um grande número de paisagens e de não-lugares hopperianos. As alusões imagéticas a Hopper são dominantes em filmes como Hard Times (1975) e Driver (1978), de Walter Hill, cuja fotografia foi feita por Philip Lathrop, outro hopperiano (vejam-se Point Blank, de John Boorman, 1967, que ele também fotografou, e o Hammet de Wenders, onde colaborou). Norman Mailer, admirador confesso de Hopper, incluiu no seu Tough Guys Don’t Dance (1987) uma montagem das casas por ele pintadas ao longo da costa de New England. A fotografia de Gordon Willis (que fez a imagem da trilogia Godfather e de muitos dos filmes de Woody Allen) tornou acentuadamente hopperiano o Pennies from Heaven (1981) de Herbert Ross. Outros directores de fotografia (John Bailey, Michael Chapman, László Kovács) evocaram a influência do pintor e Sam Mendes diz que a luz do seu Road to Perdition (2002) é a de Hopper, por exemplo a do quadro New York Movie (1939). Mas a influência do pintor é reconhecida por muitos outros cineastas, de Brian de Palma a Chantal Ackerman e de Arthur Penn a Todd Haines ou a Wayne Wang.

O primeiro elemento da vida e obra de Hopper que ajuda a compreender esta sua influência, quer directa quer difusa, em dezenas de cineastas e directores de fotografia, sobretudo a partir do início dos anos 60 do séc. XX, é decerto a sua própria cinefilia. Contemporâneo do cinema, o pintor viu todo o cinema mudo (concebendo cartazes para muitos dos seus filmes, hoje esquecidos) e manteve o hábito de “mergulhar” no cinema sempre que não sentia desejo de pintar. Essa ligação inicial está bem expressa, por exemplo, em águas-fortes como Night shadows (1921), que prenuncia uma longa relação com o enquadramento cinematográfico. O cinema que mais o influenciou foi, porém, o film noir americano dos anos 30-40, com a sua luz de estúdio fortemente artificial, os seus chiaroscuros muito contrastados, os seus enquadramentos que deliberadamente não reproduziam pontos de vista “naturais”. Trata-se de uma cinematografia que, em matéria de luz e sombra, se apropria fortemente da experiência do expressionismo alemão, mas adaptando-a às detective stories urbanas e frequentemente nocturnas da pop culture americana. Um dos filmes que mais nitidamente influenciou Hopper, entre a multidão de histórias de gangsters dos anos 30, foi o Scarface de Howard Hawks (1932), de que se notam traços nos seus quadros, quer no que respeita a enquadramentos, quer no tocante à luz contrastada e construída, que Hopper transformará em cor. Outros filmes que o terão influenciado na mesma época foram Little Caesar, de Mervyn LeRoy (1931) e The Big Gamble, de Fred Niblo (mesmo ano).

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Hopper, que começou a pintar sob a influência dos impressionistas franceses mas foi formado pela Ash Can School (onde Robert Henri foi seu mentor), ganhou a vida durante anos como desenhador de publicidade, artista gráfico e ilustrador, criando cartazes, capas de livros e revistas, e entrou cedo em contacto com o universo do cinema, que ia dominar durante décadas o imaginário visual americano, sobrevivendo longamente à socialização da televisão. Ele pintou sistematicamente a paisagem rural e suburbana do seu país, com destaque para a costa de New England e as suas vivendas e casarões isolados, mas também faróis costeiros, estradas, campos, casas rurais. Outro dos seus temas preferidos foi a vida urbana banal, suas cenas e momentos (incluindo vários interiores de salas de cinema) à mistura com uma vastíssima galeria de retratos de pessoas representadas em situação de stasis e de isolamento, maioritariamente entregues aos seus indecifráveis pensamentos ou a uma espécie de introspecção vazia. O tempo suspenso e o voyeurismo melancólico de muitas das telas de Hopper, sobretudo as que retratam cenas da vida urbana, cujas personagens nunca olham frontalmente o seu spectator, oferecendo-se, absortas, à observação deste último, põem em evidência um olhar ou um ponto de vista que muitos cineastas hão-de ter experienciado como eminentemente cinematográfico: as personagens parecem posar, em enquadramentos aparentemente simples mas trabalhosamente construídos, para a eternização de um momento de exposição a uma luz particular — Hopper dizia “nunca ter pretendido pintar senão a luz do sol na fachada de um prédio”.

Ele acabou por se tornar num dos principais expoentes de um novo realismo americano; mas o seu “realismo” transfigura uma realidade da América já trabalhada e filtrada pela pintura que o precede, pela fotografia e pelo cinema narrativo e, no seio deste, pelo film noir. Sobretudo entre os anos 30 e 50 do séc. XX, Hopper pinta uma imagem compósita da América da Grande Depressão e do posterior relançamento industrialista e urbano. A sua pintura é a representação de uma representação, porque o seu “referente” é a realidade já iconizada por todo esse trabalho figural, o real a que pintura, fotografia e cinema deram forma, interpretando-o e metamorfoseando-o. Por outras palavras, uma das principais forças da figuralidade de Hopper consiste na sua colagem a um real de segundo grau, já hipostasiado por uma série cultural de outras figuralidades dominantes, designadamente a dos filmes. Ele contribuiu, assim, para a sedimentação da meta-imagem de uma América transfigurada, produzida pela sobreposição palimpsêstica de uma série de figurações oriundas evidentemente da pintura, mas também dos estúdios de Hollywood e da pop e pulp culture, que trouxeram para primeiro plano a contradição entre a expansão do progresso americano e o isolamento e vazio existencial de cada um dos indivíduos das suas “multidões solitárias”, muitas vezes observados em regime de melancolia e de acédia. A obra de Hopper acrescenta-se assim, com os seus traços marcadamente pessoais e subjectivos, a uma estética da hipóstase visual americana: ele é um dos criadores da imensa galeria de images d’Épinal que inscreveram na nossa experiência de spectators uma imago da América que é a outra face da sua way of life.

Irrealidade e não-naturalidade da luz multifocal que evoca a dos estúdios (e que por vezes transforma a invisível fonte física de luz em fonte mística de luz, fabricando chiaoscuros inesperados); enquadramentos que não mimam o do olhar humano corrente (Hopper dizia ter visto muita vida a partir do metro aéreo de Nova York, o que aproxima por vezes o ponto de vista do pintor do de alguém no cimo de uma grua de cinema ou de uma escada magirus de bombeiros); preferência pela pintura de momentos de stasis que parecem figurar still frames cinematográficas, geralmente representando situações pró-narrativas ou proto-narrativas (e que atravessarão o

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imaginário visual americano até às untitled film stills de Cindy Sherman, 1977-80); todos estes traços da pintura de Hopper terão fascinado, acompanhando o progressivo reconhecimento da sua obra, sucessivas gerações de realizadores e directores de fotografia. Tanto mais quanto o “realismo” de Hopper nunca se interessou pela degenerescência e relativa desfiguração do corpo humano como no “realismo expressionista” de Lucien Freud, e ainda menos pelas desfigurações do devir-animal da pessoa como no expressionismo de Francis Bacon: manteve-se até ao fim na contenção de uma iconicidade dependente da semelhança, mais próxima da que ainda vemos nas têmperas de um Alberto Sughi dos anos 90. Mesmo que pensemos que existe uma viagem da figuração que leva de Hopper a Freud e de Freud a Bacon, a maior ligação das figurações de Hopper à iconicidade e aos “símbolos” de Peirce é território mais próximo e mais seguro para iconófilos como cineastas e fotógrafos.

Muitos dos seus temas e motivos vazios de personagens — quartos de hotel, interiores de bares, enquadramentos de quase não-lugares urbanos por vezes pintados de modo frontal (como em Early Sunday Morning, 1930) — parecem representados como espaços cénicos à espera dos seus actantes ou actores. Quando esses quase não-lugares se animam pela presença de alguém, muitas vezes em contacto directo com o exterior (uma janela onde o vento incha cortinados, uma luz solar baixa e intensa), a situação pró-narrativa parece convidar o cineasta a olhar aquele enquadramento como um ready-made à espera de ser posto em movimento e mais narrativizado. Lynch, também ele pintor, está sem dúvida entre os realizadores que mais utilizaram tais situações hopperianas como pontos de partida para cenas que, elas próprias, se limitam a ser fragmentos narrativos autónomos que não se integram em qualquer “grande enredo” que lhes dê outra significação ou sentido.

Por outro lado, a maioria dos quadros de Hopper convida, dada a sua composição, a uma contemplação demorada e à scannerização de todos os seus elementos pelo olhar do spectator, como sugerido por Vilém Flusser (1983). É compreensível, por isso, que parte do cinema hopperiano, como o de Wenders ou o do Lynch de Mulholland Drive, cultive o plano fixo e o movimento lento de câmara na exploração do enquadramento. Tem sido sublinhado por diversos autores que, embora Antonioni nunca se tenha referido à obra de Hopper, existe coincidência temática e do ver de um e outro: a solidão do indivíduo na grande metrópole moderna, a pequenez da figura humana nos grandes cenários arquitectónicos e urbanísticos, a atracção de ambos pela estrada vazia e pela paisagem desolada e só esporadicamente habitada, a incomunicabilidade individual ou a frieza das relações entre os dois membros de um casal, a vaziez aparente da experiência singular adulta, parecem convergir nas criações e criaturas de um e de outro. O pintor e o seu modelo: La belle noiseuse

Outra coisa sucede com os filmes que adoptam a prática da pintura como seu principal tema, inscrevendo-a no seu corpo a pretexto de produzirem retratos de pintores reais ou ficcionais. Que se passa, por exemplo, em La belle noiseuse de Jacques Rivette (1991), adaptado de Le chef-d’œuvre inconnu, de Balzac, por Pascal Bonitzer, Christinne Laurent e pelo realizador? Que coisa é La belle noiseuse?

Édouard Frenhofer (Michel Piccoli), um pintor de 60 anos que já não expõe há 25 e não tem esboçado nos últimos tempos senão auto-retratos, mas que teve sucesso nos anos 70, época em que foi publicado um livro sobre a sua obra, vive numa grande casa no Languedoc-Roussillon com Liz (Jane Birkin), sua mulher e durante muito tempo seu modelo (como foram Jeanne Hébuterne para Modigliani, Georgette para

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Magritte ou Josephine para Hopper). A última vez que tentou pintar uma obra-prima, La belle noiseuse, foi há dez anos, e Liz foi ainda, então, o seu modelo. O atelier de Frenhoffer ainda está cheio de estudos preparatórios desse empreendimento falhado: o pintor nunca concluiu o quadro e desde então está em crise, alimentando sobre si um discurso descrente e de auto-comiseração.

Um dia é visitado por Nicolas (David Bursztein), pintor jovem e promissor, pela namorada deste, Marianne (Emmanuelle Béart), e por um marchand e galerista amigo, Porbus (Gilles Arbona). Entre o atelier e um jantar tardio, Nicolas e Porbus desafiam Frenhofer a voltar ao seu projecto inacabado mas com um novo modelo: Marianne. Frenhofer admite de imediato a plausibilidade da proposta, como se estivesse desejoso de a ouvir. O “negócio” é feito na ausência da interessada, envolvendo-se Nicolas numa espécie de lenocínio, mas Marianne, que adormece à noite a rejeitá-lo, aceita-o ao acordar cedo na manhã seguinte, num volte-face interior e nocturno, como se posar para o velho demiurgo e deus selvagem fosse para ela um desafio faustiano.

Fechado este set-up, o filme, de 240 minutos (Rivette fez depois uma versão com metade da duração, a que chamou Divertimento), passa a girar em torno do pintor e seu modelo, um tema recorrente em Picasso mas também pintado por Matisse e muitos outros (e cinematizado por exemplo em A rapariga da Pérola, de Peter Weber, sobre a relação entre Vermeer e Gret) e em torno do obcecado trabalho do artista (como no Van Gogh de Pialat ou no El sol del membrillo de Erice). Nua em sucessivas jornadas de pose diante de Frenhoffer, que a obriga à imobilidade em posições exaustivas, Marianne acaba por começar a falar de si mesma e da sua vida num exercício que metaforiza a anamnese psicanalítica, enquanto o artista fala da arte e do que compulsivamente o leva a pintar. Torna-se óbvio que, se Marianne conseguiu dar à oferta de si mesma como modelo uma dimensão terapêutica, que faz nascer nela um discurso introspectivo, a Frenhofer só interessa o ícone nascido desse pathos, que excita o seu interesse pelo modelo — um interesse que não se abre à intersubjectividade senão nos termos “egoístas” do seu regresso à pintura.

A situação arquetipal de le peintre et son modèle (quando o pintor é um homem e o modelo uma mulher) presta-se a um duplo voyeurismo masculino: sempre exposto ao gaze do pintor como este o pretende, o corpo nu de Marianne torna-se no da escrava perante o seu caprichoso senhor — uma image d’Épinal da relação homem-mulher de que tanta pornografia se alimentou — e o espectador vê, maioritariamente através da câmara atrás do ombro do pintor, quer toda a cena, quer a maior parte do que Frenhofer vê. Mas, apesar da escolha deste registo perigoso, o filme não é “erótico”, ao contrário do que dele disse parte da sua recepção, nem é do erotismo que depende a relação “escaldante”, como também se escreveu, entre o pintor e o seu modelo: apesar da nudez longamente exposta da mulher diante do pintor vestido (e dos espectadores), o que está em causa em La belle noiseuse são as rotinas pesadas e reiterativas do trabalho criativo na sua versão de possessão e de loucura, e a inesperada capacidade discursiva que se esboça entre as duas personagens.

E também ali está em causa a tensa e insegura amoralidade da relação que a situação estabelece entre a transitória dupla pintor-modelo, por um lado, e os “seus outros” — Nicolas, Liz, Porbus, a irmã de Nicolas. Para voltar a pintar, o velho pintor precisa de uma mulher jovem como indutora e intermediária entre ele e a sua arte (já foi assim que, anteriormente, precisou de Liz), como dantes se precisava de uma vítima sacrificial para se obter o favor dos deuses: um suscitador. E Frenhofer não se inibe de apagar violentamente das telas de há dez anos o rosto de Liz, para o substituir pelo do

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seu novo utensílio sagrado, Marianne. Em torno desta cena rondam os outros, presentes, obrigados a escolher entre uma ética da vida e uma ética da arte. Como pergunta Frenhofer a Marianne em certo momento: estará ela disposta a que a arte a leve a pôr de lado a vida? A pergunta é extensiva a cada um dos restantes: até que ponto aceitará Liz ser substituída por Marianne na mente de Frenhofer? Até que ponto Nicolas “emprestará” Marianne ao velho pintor, decerto atingido por um desejo mimético como o descrito por René Girard? Até que ponto desempenhará o galerista- marchand, parte não menos interessada no que se passa, o seu papel de testemunha envolvida, de sacerdote daquele culto e de go-between entre os diversos pathos dos seus amigos?

O filme não tem clímax: as suas diversas tensões internas sobem até que Frenhofer dá por findo o seu trabalho — e o resultado é uma grande tela de um nu de costas e agachado, que poderia ser a representação simbólica, em termos peirceanos, de qualquer outra mulher, e que evoca o Picasso do período azul. Se o resultado é aquele, para que foi precisa tanta jornada de trabalho, tanta pose e exposição de Marianne, tantos esboços diferentes, tanta figuração em tantas telas preparatórias? Parece haver uma enorme desproporção entre o trabalho feito a dois — o pintor e o seu modelo — e a obra final. Mas o velho demiurgo conseguiu finalmente acabar o seu La belle noiseuse e apresenta-o agora ao outros como o seu primeiro quadro póstumo. O marchand está satisfeito: os quadros vendidos post mortem vendem-se mais caros. No fim, porém, na festa de despedida no jardim da casa, a incerteza paira sobre o futuro da relação entre Frenhofer e Liza — a arte pode ter destruído a vida — e Marianne recusa-se a partir na companhia de Nicolas: a última palavra do filme é o seu sonoro “Non”. A aventura faustiana correu mal para ela, não perdoará a Nicolas o seu desprendido lenocínio. O filme é também, assim, embora sempre centrado no trabalho da pintura, uma larga alegoria sobre a ilusão da posse — da posse de Marianne por Nicolas, de Frenhofer por Liza, do modelo pelo seu pintor. E sobre a inanidade do esforço inaudito para atingir um resultado frágil ou discutível, como se a obra, independentemente do seu valor, resultasse sempre de um pesadelo compulsivo e de uma expiação.

La belle noiseuse é, a par dos exemplos citados, um dos mais longos olhares cinematográficos (quatro horas de filme) sobre o processo criativo na pintura, no registo da relação entre o pintor e o seu modelo. Rivette manteve-se, nele, fiel ao que muito antes, como crítico dos Cahiers du Cinéma, tinha escrito: “Cada filme é um documentário sobre as suas próprias filmagens”. As mãos do pintor não são as de Piccoli, mas sim as do pintor Bernard Dufour, autor de todo o trabalho pictural no corpo do filme. Na novela de Balzac, o quadro final é um fragmento de um pé perdido numa confusão de cores: os amigos do pintor não o compreendem, e o seu autor morre depois de ter deitado fogo ao atelier onde o pintou — o mesmo atelier onde Picasso pintou Guernica. Na versão curta do filme, Rivette optou por um final aberto mais próximo da novela: não mostra o quadro, para sublinhar que não é no desfecho que reside a força do filme, mas sim no que se passa no seu corpo, cena a cena. Imagens mentais e espelhos de Borges Sentemo-nos imóveis diante de um vasto espelho como dantes pousávamos para um daguerreótipo e teremos de nós o equivalente a uma imagem fotográfica frontal, a nossa imagem especular e a do tempo preso no espelho, que é também a do antigo retrato frontal da pintura — aquele que suscitava a “máquina de quatro olhos” de cada vez que um visitante o encarava. Passado algum tempo movamo-nos diante do mesmo espelho, ora ainda olhando-nos nos olhos, ora atentando em zonas da imagem que

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solicitam um olhar não frontal, quer pelas razões do punctum, quer apenas porque estamos a scannerizar uma imagem complexa: por exemplo, movamos um braço e observemos o seu movimento, ou atentemos num pormenor do fundo, ou ergamo-nos de onde porventura nos sentáramos e apreciemos a alteração das formas na imagem especular: se dermos um pequeno passo para a direita ou para a esquerda teremos passado da fotografia ao cinema, da pose extática à imagem em movimento, e nesta situação o nosso olhar move-se como o olhar de uma câmara. O espelho e o nosso primeiro olhar sobre a nossa imagem nele é, desde Le stade du miror de Lacan, fundador da nossa condição de espectadores de nós próprios e de outrem: é nele que se forma a imago original de cada um e dos seus outros. Mas voltemos ao exercício descrito no parágrafo anterior: inicialmente extáticos, enquadrámo-nos num campo visual igualmente fixo cuja composição construímos — um campo foto-cinematográfico é um espaço definido entre os seus fora-de-campo. Em movimento, reenquadramo-nos — vamo-nos reenquadrando enquanto nos movemos diante do mesmo espelho. Estes enquadramentos e reenquadramentos diante do espelho invocam, ainda, o que tanta pintura fez, quer usando-o para enquadrar, quer vendo o que queria pintar por interposição de máquinas ópticas entre o olhante e o olhado, entre o vidente e o que ele queria ver — lembremo-nos da camera obscura de Vermeer e da moda dos dispositivos de visão que a pintura flamenga do séc. XVII tanto cultivou. Mas mantenhamo-nos lapalisseanos: quando saímos de diante do espelho, ele não guarda a nossa imagem. Guardar a nossa imagem é o que, em vez dele, fizeram o retrato pictural e o fotográfico — por isso se chamava aos daguerreótipos “espelhos com memória” — e depois o cinema, sendo que fotografia e cinema puderam alquimicamente requerer, para as suas imagens, a indexicalidade que as liga por ontologia ao fotografado — este esteve de facto diante da lente da câmara, e, uma vez revelado, o suporte de impressão reteve essa presença e o tempo dessa presença, aquele momento. Esta percepção da imagem fotográfica nunca foi, porém, universal: Jorge Luis Borges, entre outros, teve desde o seu primeiro livro (Fervor de Buenos Aires, 1923) consciência da experiência deceptiva que o daguerreótipo oferecia, próxima da que Barthes viria a narrar, em termos de vécu, no seu La chambre claire, de 1980. Ali escrevia Borges, que, por o ter feito em verso, preferimos não traduzir:

“Los daguerrotipos mienten su falsa cercanía / de tiempo detenido en un espejo / y ante nuestro examen se pierden como fechas inútiles / de borrosos aniversarios.”

Borges sente aqui algo semelhante ao desconsolo anti-fotográfico proustiano perante “essas fotografias de um ser diante das quais o recordamos pior do que quando nos limitamos a pensar nele”, desconsolo aparentemente herdado da avó do narrador de La Recherche, para quem a fotografia não era suficientemente “artística” (a personagem da avó exprimia provavelmente a crítica de Baudelaire ao Salon de 1859, muito partilhada na época pelos defensores da pintura). Proust produzia a sua anamnese literária a partir de imagens mentais involuntárias mais hápticas do que visuais: o som de uma colher num prato, o sabor de uma madeleine, o contacto da pele com um tecido. E sobre essas imagens mentais escreveu Sartre que não as vemos, distinguindo-as das imagens da pintura, da fotografia ou do cinema. O mesmo embaraço é comentado por Barthes em La chambre claire, na descoberta da fotografia da mãe — morta poucos anos antes — no jardim de inverno: por um lado a fotografia está obviamente ligada ao que foi mas já não é, isto é, à morte (como as fotografias de Beatriz Viterbo, recém-falecida, no Aleph de Borges, de que falaremos já a seguir). Mas por outro a ligação de Barthes a Proust determina a não publicação dessa mesma

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foto como ilustração do texto: Barthes prefere à fotografia sobre a qual está a escrever a sua imagem mental, furtando-a ao leitor e obrigando este último a imaginar algo que não pode ver. Da camera obscura e dos espelhos dos flamengos do séc. XVII à fotografia impressa e ao écran cinematográfico a distância é conceptualmente curta e remete-nos para um conto do mesmo Borges: vejamo-lo descrever, por metáforas, o Aleph que viu na casa da Rua Garay, “cristal que reflectia o universo inteiro”, “espelho universal de Merlin, redondo e oco e semelhante a um mundo de vidro”, “esfera cujo centro está em todas as partes e a circunferência em nenhuma”. Mas, fisicamente, e satisfeita a exigência prévia de obscuridade envolvente, como no cinema que víamos nas suas salas, o Aleph é “uma pequena esfera furta-cores de brilho quase intolerável”; Borges começa por crer que a esfera é giratória, mas depois percebe que esse movimento “do cristal do espelho” (...) “era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espectáculos que encerrava”. Muita interpretação recente dá o Aleph como uma antecipação visionária do que vieram a ser os nossos actuais ecrãs portáteis e dos mundos a que neles acedemos. Mas na época do conto (cuja editio princeps é de 1945), e para o Borges cinéfilo, amante de Von Sternberg e de Lubitsch e autor, com Bioy Casares, de scripts convencionalmente respeitadores dos géneros de Hollywood, o Aleph maravilhoso era decerto o objecto alucinatório proporcionado pelo cinema — melhor, pela passagem do dispositivo fotográfico ao cinematográfico. Certo é que não se referia à pintura — ele sempre declarou nada saber sobre ela, e essa declaração poderia decerto estender-se às restantes artes plásticas, o que nunca o impediu de apresentar artistas ou de escrever para catálogos de exposições. Talvez o texto em que Borges mais claramente exprime essa ignorância e essa insensibilidade seja o que escreveu para o catálogo da exposição de Juan Carlos Faggioli na galeria Wildestein (Tristezza, 2008: 81):

“Escrevo a partir do meu desconhecimento. Li Ruskin, agradam-me a pintura flamenga e a oriental — quanta ignorância no uso de termos tão gerais! — comoveram-me certos vastos e vagos ouros de Turner e certas firmes e quase inexploráveis gravuras de Dureno e Piranesi, mas não aspiro a ser o mensageiro desses momentâneos estados de alma. Tocam-me as palavras, não as cores nem as formas; a estrofe de um poeta menor pode inquietar-me mais que Rembrandt ou Ticiano. Confessada a minha invencível ignorância, pergunto-me o que é a pintura. (...) À semelhança das outras artes, a pintura é um meio, talvez o mais tangível e eficaz, de resgatar algo do que os séculos levaram. Rostos humanos só uma vez aparecidos, delicadezas de um sorriso ou dos crepúsculos, a mão de um rei sobre uma espada, a luz de uma manhã de inverno, céus terríveis da revelação de S. João, momentâneas nuvens, o que sonhos e vigílias viram, tudo isto uns pincéis podem salvar.”

Como todo o gosto conservador educado em academia pela pintura clássica, o gosto pictural de Borges privilegia nesta arte a evocação e uma espécie de ressurreição hipostasiada do passado. Pouca ekphrasis haverá, assim, entre pintura e a literatura de Borges, salvo em referências ocasionais a esta ou àquela gravura, a esta ou àquela tela reais ou imaginárias. Mas são muitas as referências à fotografia — desde logo, no mesmo Aleph, multiplicam-se as alusões a retratos fotográficos de Beatriz Viterbo, que produzem no narrador melancolia e a decepção atrás referida; e quando o narrador procura Carlos Daneri na casa da rua Garay, a criada pede-lhe que espere, porque o “menino” está na cave a revelar fotografias, entregue ao seu hobby como Ingres ao seu violino.

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Quanto ao cinema, sabe-se que a ligação é bem maior, quer porque Borges escreveu como crítico cinematográfico sobre Eisenstein, Ford, Welles, Hitchcock e outros, quer por via dos guiões de que foi autor e co-autor, quer pela revelação dos cineastas que preferia. Curioso é que Borges e Bioy Casares, que gostavam de westerns e dos filmes de gangsters do cinéma noir, tinham pelo cinema clássico e pelos seus géneros estabilizados uma queda e uma admiração profundas, não questionando nem a sua gramática, nem a sua semântica consideravelmente unívoca, nem as suas linhas narrativas que tão cedo se transformaram em clichés, como se elas fossem o destino expectável e natural do cinématographe. O mesmo, mutatis mutandis, se passa na sua relação com a música, que é forte mas centrada nos tangos e nas milongas de Buenos Aires. Piazzolla, que chegou a trabalhar com Borges e compôs a partir de textos dele, considerava-o musicalmente surdo, pouco sensível às sonoridades que não invocassem os subúrbios que ele amava. Mais do que ekphrasis ou influências interartes, há em Borges intertextualidade: diálogo, comentário e interpretação de textos reais ou imaginários pelos que ele próprio escreveu. Borges, que tanto inovou em matéria narrativa, só acabou por interessar tardiamente a um certo cinema — aquele que, nascido da nouvelle vague francesa, iria pouco depois tornar-se no cinema moderno europeu, precisamente apostado em romper com todas as gramáticas, estilos de realização e modelos narrativos consubstanciados nos géneros do studio system. Borges tornou-se então numa referência cada vez mais internacional e passou a ver-se citado em obras de Godard e Chabrol, Rivette e Scorsese, Narcisa Hirsch e Carlos Saura, entre muitos outros. O seu gosto pelos labirintos, pela mistura de tempos narrativos complexos e não lineares, pela fusão entre passado, presente e futuro, o seu desinteresse pela diegeses, acabaram por conquistar aqueles que, como autores, defendiam um cinema de arte contra o tradicional cinema narrativo e contra as suas convenções. Migração, aculturação O que atrás fica dito leva-nos porventura a uma primeira conclusão: dada a íntima relação do cinema, desde o seu nascimento, com outras artes e media cujos conteúdos, formas e técnicas ele reciclou continuamente, as práticas e ocorrências intermediais e interartes que o caracterizam são, maioritariamente, subsumíveis no que Bolter e Grusin (1999) designaram por remediation (remediação, remediatização) num dos livros mais influentes nos media studies contemporâneos, e amplamente citado pela investigação em intermedialidade (Remediation. Understanding New Media). E sugere talvez uma segunda: é que, se é fácil identificar as práticas intermediais nas artes da cena globalmente consideradas e no teatro ou na performance contemporânea em particular, porque tais práticas envolvem sempre o transporte, para o espaço cénico, de dispositivos tecnológicos que se incorporam de diversos modos no que ali tem lugar, expandindo a materialidade da cena através de outras presenças digitais, tal não se passa no cinema. O cinema é o que vemos na superfície bi-dimensional de um ecrã, seja ele o lençol ou a pantalha dos Lumière, ou uma das suas muitas transfigurações posteriores. No cinema, tudo o que ocorre aceita a redução a essa superfície bi-dimensional onde ele é projectado ou visionado e a que se acrescentou o som, sendo certo que a eventual figuralidade produzida por previsíveis hologramas animados ou por próximas mutações da realidade virtual já não corresponderão ao que desde 1895 designamos por cinématographe, moving pictures, filme. Por outras palavras, a intermedialidade no cinema não altera as condições identitárias do seu visionamento — ou a alteração dessas condições não é resultante da

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intermedialidade. Mas há um telão de fundo no qual se inscrevem todos estes factos: nas últimas duas décadas, acentuando um movimento que se iniciara antes, as imagens em movimento deixaram maciçamente as salas de cinema e passaram a ocupar fachadas de arranha-céus, estações de metro, outdoors de avenidas e de todo o tipo de espaços públicos, bem como os sistemas de home video, a www e os ecrãs de consolas, televisores e computadores onde jogamos jogos em 3D. A digitalização da imagem, os computer graphics e o progressivo desaparecimento da película enquanto suporte material do filme alteraram inevitavelmente as definições “ontológicas” do antigo cinema, cada vez mais encarado como património que as cinematecas e os museus conservam, e que, para efeitos de distribuição e exibição, só subsistirá digitalizado (a antiga profissão de projeccionista, por exemplo, está em extinção). Assim, a experiência cinemática globalmente considerada emigrou em massa, digitalizada, para um novo espaço público determinado pelos novos media, abandonando o seu anterior habitus e integrando-se numa ecologia mais artificial e mais reconfigurada pelas tecnologias da comunicação e pela convergência digital. O cinema passou a ser apenas uma parte dessa nova experiência cinemática. Nestas novas condições, faz sentido reactualizar o questionamento de Bazin sobre o que ainda é o cinema. Está a morrer? (questão que invadiu, já, a celebração do centenário do cinématographe). Dissolveu-se? Hibridizou-se? Intermedializou-se mais? A reflexão sobre esta migração maciça das imagens em movimento para novos espaços atravessou as duas décadas finais do séc. XX e é, portanto, com toda a sua bibliografia, anterior à entrada em cena dos estudos sobre a intermedialidade. Raphaël Lellouche (1992), por exemplo, sustentou que se começou a viver uma época de proliferação de ecrãs multi-funções e muito diversamente especializados, e que, mais do que da passagem de uma cultura da escrita para outra da imagem, como muitos autores da época disseram, se tratou da passagem de uma cultura do impresso para uma cultura, não da imagem, mas dos ecrãs — que tanto mostram imagens como texto e sons — (Chambat e Ehrenberg, 1988), ou da passagem do anterior continuum do impressso para um novo continuum dos ecrãs — uma nova alteração qualitativa da nossa ecologia. Recordamos aqui a sua descrição da proliferação dos ecrãs:

"Observemos essa superfície quase contínua dos objectos dotados de ecrãs com os quais nos confrontamos; estranharemos que esses ecrãs se tenham tornado no interface de tantas funções. Eles deixaram de estar adstritos a implantações específicas — escritório em vez de domicílio, ou interior em vez de espaço exterior e público — ou a um ou outro serviço especializado. Todos os ecrãs do nosso quotidiano têm os seus equivalentes especializados no domínio militar, bancário, médico, escolar, na visualização científica, etc.. Esta lista heterogénea mostra que, ao penetrarem em todas as esferas da nossa vida, os ecrãs não se limitaram a multiplicar-se (...) ; generalizaram-se e tendem a ocupar todo o espaço disponível enquanto interfaces cognitivos".

Em termos próximos dos que viriam a ser usados por Gaudreault e Marion, Lellouche defendeu que, de cada vez que surge um novo media, ele tende a integrar e a “re-semiotizar” o(s) media anterior(es), impondo um novo interface cognitivo e um novo tipo de experiência perceptiva, e eventualmente tornando-se hegemónico. Mas, acompanhando nesta matéria Chambat e Ehrenberg, Lellouche acreditava que, à semelhança do que se passou e passa nas outras mudanças de paradigma provocadas pela tecnologia, os novos media não “destroem” os anteriores, antes estabelecem com eles uma coexistência baseada na complementaridade : para estes autores, cada media preserva e mantém os seus conteúdos, os seus usos sociais e as suas condições específicas de utilização; no caso da passagem do continuum do impresso para o

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continuum dos ecrãs, isso voltaria a suceder, porque os ecrãs são suficientemente ricos para acolher a totalidade dos media precedentes. Ora, não foi essa a experiência do cinema diante da televisão, do video, do home cinema, da www e, mais globalmente, diante da convergência digital: a invasão dos grandes centros urbanos pelo automóvel não “matou” os cavalos e as carroças… mas expulsou-os irreversivelmente desses centros urbanos; também é verdade que o compact disc não matou o vinyl e que os gira-discos não tinham exterminado as grafonolas. Mas, se é verdade que o cinema sobreviveu durante duas décadas à profunda transfiguração da paisagem tecnológica e dos mercados do audiovisual, fê-lo em situação de erosão irreversível e isso em diversas frentes cruciais, desde o abate maciço dos seus antigos “templos” e sua substituição por multiplexes até ao quase desaparecimento da película, passando pelas alterações da sua gramática e da sua estética sob a influência da televisão primeiro, do vídeo e das novas plataformas digitais depois, da nova geração de computer graphics, e assistindo ao progresso imparável, no main stream, da nova profundidade albertiniana do 3D. O cinema introduziu o ecrã, em forma de lençol e de pantalha, no habitus da belle époque, e foi responsável por um grande número de transformações desse mesmo ecrã (Mendes, 2002), produzidas pela sua própria evolução tecnológica (cinemascope, panavision, vistavision, todd-ao, cinerama e outros widescreens). Mas, diante da proliferação de ecrãs de que falaram Lellouche, Chambat e Ehrenberg, entre outros, diluiu-se no seu seio, foi objecto de uma menorização e de uma aculturação brutais, passando a ser apenas um dos tipos de conteúdos neles visionáveis. Em entrevista publicada no jornal El País, o cineasta espanhol Pedro Almodóvar (2011) refere-se ao mesmo fenómeno mas em termos matizados, reconhecendo a importância, para o seu trabalho, das novas plataformas digitais, embora sugerindo a nova situação de pós Big Brother orwelliano que elas também proporcionam:

“Vivemos rodeados de ecrãs, de imagens em movimento, tanto na rua como nas nossas casas. Ou dentro dos nossos computadores. O computador converteu-se num artefacto dentro do qual vivemos, que nos reflecte, pelo qual chega a nós a realidade e que também nos permite relacionar-nos com outros, embora através dele também possam controlar a nossa intimidade sem nos pedir autorização (...). Para um realizador, esta maciça proliferação de imagens em movimento, em forma de quotidianidade absoluta, é muito interessante, porque a imagem é o nosso instrumento de trabalho; hoje, para um narrador, ou para a polícia ou para os detectives, ofícios que se parecem muito com o de narrador de histórias, as ferramentas que usamos para investigar, documentar, desenvolver uma história, enriqueceram-se enormemente”.

Um diferendo sobre a teoria

Ao mencionar, atrás, trabalhos de Bazin, Gaudreault e Marion, Jürgen E. Müller, Ágnes Pethő, estou a articular esta reflexão com base num autor francês, num québécois fortemente ligado à tradição europeia dos études cinématographiques, num belga, num alemão e numa romena. Poderia acrescentar-lhes François Jost (também francês). Esta escolha não é, decerto, ingénua, porque pressupõe uma distinção entre enfoques tradicionalmente oriundos da Europa e uma “nova” teoria do cinema que, nas últimas décadas, se deslocou para os Estados Unidos. Eis como Pethő (loc. cit.: 44, nota 11) comenta esta “separação”:

“Nos Estados Unidos, (…) a teoria do cinema continua ainda hoje a ser constantemente forçada a posicionar-se face às práticas [actuais] de realização e à crítica de filmes. Na Europa, por comparação, a teoria do cinema é compelida a encontrar o seu lugar, não tanto face à produção de filmes, mas no seio de disciplinas e instituições académicas

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tradicionais, em cujo contexto uma estratégia interdisciplinar pode parecer mais bem sucedida”.

A distinção assim proposta alude directamente aos apelos de David Bordwell (sempre lido na Europa como representante da film theory americana) e de Noël Carroll (1996) a favor do fim da teoria e da grande teoria sobre o cinema, entendidas como “especulações etéreas”, e da sua substituição por uma investigação mais fragmentária, mais aplicada e menos previsível, uma investigação “de nível intermédio” e mais ancorada nos filmes como objectos empíricos. E alude também, por outro lado, às críticas à teoria cinematográfica feitas por David N. Rodowick (2007), para quem “os estudos em cinema evoluíram, desde o início dos anos 80, para um descentramento dos filmes a favor do estudo dos media visuais e para uma regressão da teoria”. O que Bordwell e Carroll, por um lado, e Rodowick, por outro, têm em comum, para além da sua óbvia dissenção, é a crítica ao “fundamentalismo mediático”, que substituiu o objecto filme pelo objecto media (embora nenhum autor “intermedial” tenda a considerar a existência de media monádicos e separados uns dos outros, ao contrário de Bordwell e Carroll, que se mantêm centrados na mónada cinema; Rodowick, por seu turno, não acredita num cinema monomedial, e pretende reanalisar, a partir do “regresso à teoria”, as suas articulações com os outros media). Dificilmente este diferendo sobre a vocação e a serventia das teorias (grandes, médias e pequenas) se resolverá a favor de uma das partes: de facto, as teorias do cinema sempre se desenvolveram no seio da história deste, e seriam incompreensíveis fora dos contextos relacionais, económicos, socio-culturais e políticos que sempre as condicionaram, além de se referirem, sempre, aos modos de produção cinematográfica determinados por tradições continentais, nacionais, regionais (em sintonia com eles ou com eles rompendo). Os textos teóricos do kino-pravda, os textos de Eisenstein sobre a montagem, os manifestos do néo-realismo, da nouvelle vague, dos diversos cinemas-novos incluindo o neue kino alemão, do cinema pobre (herdeiro da arte povera), do Dogma-95, ou mais recentemente do cinema do fluxo, exprimem, todos eles, esse complexo de múltiplas determinações. Além disso, todos estes exemplos têm em comum o facto de serem constituídos por reflexões aplicadas, ou por análises de casos, que mantêm uma relação colaborativa com a construção da sua dimensão filosófica ou ainda, por vezes, doutrinária e normativa. É pouco crível que, na área da intermedialidade, como nas que a precederam e com que ela se articula interdisciplinarmente, a investigação deixe de ser constituída por aquilo a que as humanidades se habituaram a chamar reflexão fundamental, mas que sempre se apoia em exemplos concretos e em análises de casos. Cremos, por isso, que os apelos de Bordwell e Carroll, por um lado, e os de Rodowick, por outro, darão lugar a reconfigurações de práticas teóricas que não abdicarão dos seus instrumentos e metodologias idiossincráticos. Por outro lado, e como salientava recentemente um relatório sobre a reforma do ensino superior artístico em Portugal (Hasan, 2009), a investigação que fará avançar os estudos artísticos é a baseada na prática (practice based research): sem prejuízo da reflexão fundamental e historiográfica, a investigação não deve perder de vista as práticas artísticas suas contemporâneas, e com as quais mantenha relações de proximidade. Ganha relevância, no contexto desta discussão, e por exemplo, o facto autores como Bolter e Grusin (loc. cit.: 21) declararem, desde as primeiras páginas do seu livro, que os objectos que ali analisarão são sobretudo produtos da indústria nacional :

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“O que nos interessa é a remediação nos nossos media correntes na América do Norte, onde podemos analisar imagens, textos e seus usos específicos. As referências históricas (à pintura renascentista, à fotografia do séc. XIX, ao cinema do séc. XX, etc.) são oferecidas para ajudar a explicar a situação contemporânea”.

Porventura mais significativo é que, no capítulo especificamente dedicado ao cinema («Film»: loc. cit., 146-158), os mesmos autores centrem quase exclusivamente a sua atenção em filmes de Hollywood e da Disney para explicarem, por exemplo, como o cinema de animação faz a remediação de contos, mitos e lendas (Pocahontas, Anastasia, Beauty and the Beast, Alladin); Toy Story encontra ali o seu justo lugar de primeira longa-metragem integralmente gerada por computer graphics, e Space Jam ou Who Framed Roger Rabbit os seus lugares de híbridos onde personagens de cartoon interagem com actores humanos. Para analisarem a quebra da norma hollywodiana da “transparência”, os autores socorrem-se de Vertigo (Hitchcock, 1958), onde comentam o célebre track out/zoom in da câmara na cena da quase queda de Scottie no abismo, e os efeitos especiais do sonho da mesma personagem. A atracção de Hitchcock pela vertigem (ou por lugares altos de onde se pode cair) é, mais adiante, comentada a partir de exemplos como Rear Window, To Catch a Thief e North-by-Nortwest. Filmes mais recentes referidos pelos autores são Terminator 2, Jurassic Park, The Lost World ou Natural Born Killers. Excepção a este enfoque centrado na indústria cinematográfica dos EUA são a breve referência a Prospero’s Books e The Pillow Book, de Peter Greenaway, por causa dos exercícios fílmicos de remediação da palavra impressa ou manuscrita, e a L’arrivée d’un train en gare de La Ciotàt, dos Lumière, que lhes proporciona uma reflexão sobre o “cinema de atracções” que disputou o seu lugar com o cinema narrativo:

“Estes primeiríssimos filmes não se apresentavam a si mesmos como narrativas ficcionais, apenas ofereciam à audiência a maravilha de imagens em movimento realistas. Tal função do cinema inicial casava-se bem com o gosto, do final do séc. XIX, por teatros mágicos e formas de trompe l’œil”.

O capítulo é interessante, embora parecendo responder antecipadamente ao apelo de Bordwell e Carroll, apoiando-se inteiramente na análise de filmes — o que é normal e desejável—, mas filmes que fazem parte, salvo excepção, do património da indústria americana — o que confirma a intenção, anteriormente declarada, de trabalhar sobretudo a partir dos “media correntes na América do Norte”. O leitor de Remediation não deixará de reconhecer a amplitude das referências culturais e artísticas dos autores, que excede largamente um tal programa, excessivamente auto-centrado. E, conhecendo pessoalmente Jay David Bolter de sucessivas edições do seminário SAGA’s, organizado em Munique sob os auspícios do programa MEDIA europeu, o autor destas linhas pode confirmar que a paleta de Bolter e Grusin é tão “europeia” quanto “americana”. Mas o programa está lá, e o capítulo que aqui referimos também.

Ágnes Pethő, no seu relevante artigo de 2010, sumariando os paradigmas em que historicamente é possível enquadrar os diferentes tipos de ocorrências intermediais no cinema, lista o seguinte conjunto de elementos para um vasto mapa arquipelágico, também entendível como um variado programa de trabalhos intermediais:

1. A análise do cinema como experiência sinestésica, dando conta da multidão de remediações por ele efectuadas no âmbito das suas relações com outras artes e media.

2. A teoria cinematográfica transmedial, com incidências sobretudo narratológicas, onde se exprime a influência dos formalistas russos (Boris Eichenbaum, Viktor Shklovsky, Yuri Tinyanov, outros) na reflexão de autores como David Bordwell e

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Kristin Thompson (Bordwell, como é sabido, trabalhou sobre a narratividade cinematográfica a partir de conceitos como fabula e syhuzet). 3. As análises comparativas, os estudos interartes e os trabalhos do tipo “Cinema e…”), Cinema e Teatro, Cinema e Pintura, Cinema e Literatura…, mas que também se ocupam da interconexão genealógica entre os media que analisam (como no Literatur und Film de Joachim Paech, 1988), ou analisam ocorrências concretas de interartialidade (como nos trabalhos de Robert Stam, que examinam a reflexividade no cinema e na literatura). 4. A historiografia paraláxica de Catherine Russell e a arqueologia dos media, já mencionadas. 5. A modelização da intermedialidade cinemática e o mapeamento da retórica do cinema intermedial: nos termos de Gaudreault e Marion, a reflexão fundamental e as análises de casos (ou, nos nossos termos: a investigação baseada na prática) são as duas grandes “avenidas” da investigação, perseguindo a identificação de modelos gerais casuisticamente comprovados. Pethő propõe-se subdividir esta área nos seguintes sub-capítulos, de que privilegiaremos o item c): a) A intermedialidade descrita como rede ou sistema de inter-relações de convergência e transformação (como nos textos de Yvonne Spielmann sobre os filmes de Greenaway);

b) A teorização da percepção da intermedialidade no cinema — como experiência reflexiva, resto (trace), diferença, presença de parasita — na sequência das noções de diferença e trace desenvolvidas por Derrida (como em Paech, Joachim, 2000, «Artwork – Text – Medium. Steps en Route to Intermediality», escrito para a conferência da ESF Changing Media in Changing Europe em Paris, 26–28 de Maio, disponível na url: <http://www.uni-konstanz.de/FuF/Philo/LitWiss/MedienWiss/ Texte/interm.html> ; c) A intermedialidade cinemática descrita como acto performativo, “acção”: trata-se de identificar os “momentos” e “acontecimentos” intermediais no seu aspecto dinâmico, muitas vezes remediador, no sentido de Bolter e Grusin; acrescento, à margem do proposto por Pethő, e recordando a importância, para a investigação em artes, da practice-based-research, que este domínio de trabalho pode e talvez deva ser privilegiado nas escolas de ensino superior artístico que se ocupam de estudos interartes e/ou de intermedialidade. Mais: este domínio poderia e deveria inspirar análises de obras in progress que fizessem interagir, por exemplo, dança, teatro e música com o cinema.

d) A intermedialidade descrita em termos espaciais, lugar heterotópico como em Foucault :

“A heterotopia tem o poder de sobrepôr num só lugar vários espaços (…) incompatíveis entre si. Assim, o teatro faz suceder no rectângulo do palco uma série de lugares estranhos uns aos outros; o cinema é uma curiosa sala rectangular ao fundo da qual, num ecrã bi-dimensional, se vê projectado um espaço com três dimensões” (Foucault in «Des espaces autres. Hétérotopies», disponível na url: <http://foucault.info/documents/heteroTopia/foucault.heteroTopia.fr.html> .

e) Finalmente, a intermedialidade como parte do domínio do figural e seu mapeamento, como no caso dos tableaux vivants no Passion de Godard ou no de Nightwatching de Greenaway. É verdade que esta enumeração de “áreas de ocorrência intermedial” ou de “áreas de

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trabalho sobre a intermedialidade no cinema” tem um sabor algo heteróclito, parecendo construída por análise empírica e para efeitos de inventário. Mas tem a vantagem de apontar para os diferentes territórios teóricos e práticos onde se está a constituir uma zona de reflexão interdisciplinar que permite reler e talvez reprogramar parte do que lhe deu origem e a justifica. Boa parte destas áreas de trabalho tenderão a produzir uma espécie de mise en abîme intermedial, que a análise deverá saber pôr em evidência e descrever, interpretando os sentidos por ela produzidos. Um certo mal-estar

Há um fenómeno curioso que faz parte da paisagem da reflexão intermedial e em estudos interartes contemporânea e não deve ser aqui escamoteado: um número apreciável de estudiosos do cinema (especialistas em film studies) e de cineastas mostra, ainda hoje, relutância em admitir que a intermedialidade e os estudos interartes lhes interessam ou lhes dizem directamente respeito. E a primeira razão desse desconforto é que têm dificuldade em ver o cinema confundido ou misturado com outros media: se aceitam facilmente a relação entre o cinema e as outras artes, porque o põe ao nível delas, a diferença ontológica do cinema como arte e obra de autor coaduna-se mal, do seu ponto de vista, com a equiparação categorial do cinema à televisão (mais facilmente tida como rival ou inimiga mortal), à rádio ou à imprensa, ou ainda, mais recentemente, à www e às plataformas da convergência digital, que são por eles vistas, sobretudo, como dispositivo (ou simples gadget) comunicacional e como lugar de exibição de trailers e de distribuição. É uma questão de natureza e de grupo de pertença dos dispositivos : deste ponto de vista, só pontual e acidentalmente o cinema e os media pertencem ao mesmo grupo de actividade — e confundir um e outros requer uma observação tão distanciada que não possibilita a identificação das diferenças entre os objectos observados. O facto de os estudos em comunicação (communication studies, ou media studies) desde há muito terem integrado o cinema como seu objecto de estudos, e se interessarem pelo cinema como media, é, neste contexto, vivido como um mal menor, uma canibalização ou um abuso relativamente tolerável — porque, a seu modo, e mais uma vez, propicia a proliferação de comentários académicos sobre o cinema como arte e favorece a sua recepção como actividade pertencente à cultura erudita. Este mal-estar de scholars do cinema e de cineastas perante uma área de estudos que, embora referindo-se sistematicamente ao cinema e produzindo uma cada vez mais extensa bibliografia sobre ele, é vista como exógena à matriz cinemática propriamente dita, e que eles não assumem como “sua”, é uma constatação internacional. Diz a este respeito Ágnes Pethő (2010: 39, nota 7):

“Muito frequentemente, investigações que têm como objecto a intermedialidade cinemática são acolhidas por departamentos académicos de linguística e de literatura, que promovem enfoques interdisciplinares (por vezes para acrescentarem um sabor suplementar à sua oferta corrente de cursos e de tópicos de investigação), ou por departamentos de estudos em comunicação ou em media, e não por departamentos especializados em estudos em cinema”.

Já em 2009, em Amsterdam (na ESF Exploratory Workshop on Intermedialities : Theory, History, Practice), Pethő lançara o debate sobre essa resiliência dos film studies em estabelecerem um comércio durável com os estudos em intermedialidade, por medo de que a especificidade do medium cinematográfico se perca ou se dilua no seio de teorias vocacionalmente tendentes para a síntese, a síncrese e a convergência. De facto, as teorias do cinema têm-se esforçado, desde o nascimento deste último, e independentemente da sua diversidade, por se manter focadas na especificidade do

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medium, garantindo desse modo a sua legitimação, quer junto do discurso crítico, quer no âmbito do seu reconhecimento institucional. Hoje, quando o conjunto das mutações tecnológicas pressionam para que as suas técnicas e procedimentos se confundam com os de outros media audiovisuais — acentuando a tendência para que ele se movimente em zonas de fronteira que partilha com vizinhos — esse reflexo de auto-preservação mantem-se e, aqui e ali, agudiza-se, voltando a alimentar a reflexão ontológica auto-centrada. No caso português, a relativa iliteracia de parte dos cineastas, mesmo entre os das mais jovens gerações, diante da “convergência digital” ou diante das vertentes das TIC que mais directamente podem interferir na fabricação de imagens e sons, foi recentemente confirmada por um estudo (Mendes et al., 2013) que visou descrever e analisar a cultura organizacional e os métodos e formas de trabalho do meio cinematográfico. No entanto, não apenas boa parte desses mesmos cineastas filma com câmaras digitais, como a pós-produção de imagens e som dos seus filmes, e todas as misturas, mudaram de geração tecnológica, empurrando a película e a pós-produção pré-digital para uma posição cada vez mais museológica. Além disso, as cópias destinadas a distribuição e exibição são igualmente digitais. Ou seja : estes cineastas vivem activamente o paradoxo de terem de se iniciar no empowerment da convergência digital sem abdicarem da definição ontológica do cinema da era analógica e da película. A resiliência em aceitar que o cinema pode, sem perda de identidade, integrar o grupo dos media contemporâneos, é comparável a outra, apesar da mudança de escala do problema : boa parte dos cineastas também aceitaram mal ser classificados como “produtores de conteúdos para as indústrias culturais e criativas”. E no entanto, quando se olha para a cinematografia portuguesa predominante desde a época do cinema novo, ou seja, nas últimas cinco décadas, percebe-se que alguns dos seus traços mais persistentes — a forte relação com o teatro expressa no desempenho dos actores e na mise en scène, a propensão para uma cultura do enquadramento e da composição muito próxima da pintura, a estreita ligação à literatura pela transposição de uma linguagem trabalhada e de segundo grau para os scripts, que também se exprime na prevalência de duplas realizador-autor literário na concepção e redacção desses mesmos scripts, a preferência por planos fixos ou por movimentos de câmara lentos e cautelosos, a fuga a convenções da acção que Deleuze fez corresponder à image-mouvement — todos estes traços evidenciam que uma tal cinematografia pode e deve, até por razões de pedagogia, ser objecto de análise por parte dos estudos interartes da tradição “comparatista” e da reflexão intermedial. São, de facto, estas disciplinas que dispõem dos instrumentos teórico-práticos, do know how e da vocação necessários para, face a tal cinematografia, a compreender e valorizar. Na entrevista atrás citada, Pedro Almodóvar (loc. cit.), comentando a sua relação com as artes da cena, admite ter medo de montar uma ópera porque não se sente suficientemente preparado, porque não é “suficientemente fanático do género para entar nas suas convenções” e porque o preocupa “a imobilidade do espectáculo, a idade e a representação dos cantores”, mas para logo acrescentar que, se o fizesse, entregaria a William Kentridge [que dirigiu O nariz de Shostakovitch] “os cenários e tudo o que aparecesse no palco”. Por outras palavras: com uma parceria técnica e artística adequada, talvez o fizesse. Em contrapartida, sente-se perto de encenar teatro: “Antes, creio que devia dirigir teatro. É algo que ainda tenho pendente (...). Cada dia o vejo mais perto”. Não significa isto que, à semelhança de muita outra gente do cinema antes dele, de Orson Welles a Bergman e a Delvaux, Almodóvar exprime o

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desejo de travessia de fronteiras entre as artes da cena e as do ecrã, explorando o território das práticas interartes e o das intermedialidades? Decerto, a tentação, para um cineasta, de fazer teatro ou de montar uma ópera não significa necessariamente, hoje como ontem, a vontade de pisar terreno deliberadamente intermedial. Mas significa, sem dúvida, o reconhecimento da contiguidade artística e técnica de distintas práticas da cena e do ecrã, e a compreensão de que, em determinadas circunstâncias, perdem relevância as fronteiras históricas entre géneros e media. Por outro lado, é interessante observar o que diz o mesmo cineasta sobre a sua relação com as novas plataformas digitais, num meio cinematográfico que tende a desenvolver com estas uma relação estritamente utilitária e ainda marcada pela desconfiança (Almodóvar, loc. cit.):

“Gostaria de matizar a relação dos criadores com a Internet. Em primeiro lugar, somos todos internautas. Se eu estivesse a começar agora, em vez de super-oitos, faria vídeos que disponibilizaria gratuitamente no You Tube e dar-me-ia a conhecer globalmente, sem precisar de intermediários. E explodiria de felicidade se um milhão de internautas importasse gratuitamente a minha curta (...). Creio que este século se diferencia do anterior devido à irrupção da Internet nas nossas vidas. É algo tão importante que, para se medir o grau de liberdade que existe num país, enquanto no século passado se avaliava a liberdade de imprensa, hoje avaliamos o livre acesso à Internet, que não existe em Cuba ou na China”.

Não há bela sem senão: o progresso oferecido pela nova exposicionalidade que ferramentas como o You Tube representam é ainda obscurecido pela perda de qualidade de imagens e sons circulantes na Internet, por um lado, e pelos danos económicos e morais infligidos, pela pirataria digital, aos autores (Almodóvar, id. ib.):

“Para além dos prejuízos económicos, enormes, [provocados pela pirataria digital], preocupa-me o direito moral dos autores. As pessoas compram filmes na nuvem ou importam-nos por computador com uma qualidade técnica ínfima. Durante meses, um monte de gente, artistas e técnicos, deram o seu melhor para criar um produto com a maior qualidade, independentemente de o filme ser bom ou mau; mas ao cliente da nuvem ele chega convertido em subproduto: imagens escurecidas, desfocadas, com gente a passar diante do ecrã, som dessincronizado, etc. (...). O autor acrescenta-se à vasta lista dos seres mais desprotegidos por esta sociedade”.

Concluamos: o encontro de 2009 em Amsterdam deu ênfase à intermedialidade como “fenómeno que se enraiza, não só na história técnica da comunicação pelos media, incluindo a gravação de imagens e sons, mas também na tradição da colagem e da montagem no cinema e nas artes visuais, na história da reprodução e das formas televisivas, e em práticas mais antigas de referenciação e adaptação intertextual, bem como de experimentação artística de síntese” (o exemplo citado para ilustrar esta última é o Fluxus movement). Ao mesmo tempo, a sua acta informal (disponível em Scientific Report Intermedialities - European Science Foundation, versão html) também se referia à intermedialidade como “formas específicas de interacção (com diferentes qualidades, intenções, sentidos, histórias e efeitos) entre, ou no seio, de media específicos como o cinema, a televisão, o design gráfico, o hipermedia e os jogos digitais”. Na sua comunicação de Amsterdam, depois editada nas Acta Universitatis Sapientiae, Film and Media Studies, Volume 2, Ivo Blom (2010) estuda as portas e as janelas nos filmes de Visconti como instrumentos para enquadrar dentro do enquadramento (frame within a frame), de abrir a profundidade de campo para um segundo ou terceiro espaço, à luz do papel central desempenhado por estes mesmos motivos na

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pintura holandesa do séc. XVII — como na Vista de um corredor, quadro de Samuel van Hoogstraten (1662), na Carta de amor, quadro de Johannes Vermeer (1669) e em dezenas de outros. O texto de Blom tem como referência a iconologia de Aby Warburg e Ernst Panofsky, mas retoma a ideia de motivo trabalhada, por exemplo, por Michael Walker no seu Hitchcock’s Motifs (2005), chamando a atenção para as portas abertas da pintura holandesa como revelando o fascínio da época pelo enquadramento da profundidade à maneira albertiniana. Ao ler o texto, e para além da evocação já mencionada do picturalismo de Antonioni, não pude deixar de pensar em certos planos fixos da trilogia das Fontaínhas, de Pedro Costa, imagens do bairro enquadradas segundo uma estratégia semelhante. O exemplo apenas serve, aqui, para salientar a relevância da comparação entre estratégias picturais e fílmicas. No mesmo sentido, vale a pena conhecer textos e entrevistas de alguns directores de fotografia para entender a relevância de certa pintura (a de Caravaggio, por exemplo), na iluminação de certos plateaux cinematográficos. Trata-se, portanto, para além de aprender, de ensinar. E precisamente, outra preocupação da worshop de Amsterdam foi a de tentar perceber se a intermedialidade também pode ser entendida, na prática, como um utensílio educacional. Nos termos da sua acta informal: “Será possível ensinar jovens alunos a comparar artes e media? A usar um enfoque comparativo para estudar a teoria e a prática da intermedialidade, com especial ênfase na interacção entre as artes literárias e visuais, por um lado, e os media (publicidade, design gráfico, cinema, jogos de computador, websites, etc.), tal como os vimos evoluir ao longo do séc. XX e no princípio do séc. XXI? Como podem estas interacções ser compreendidas nos respectivos contextos históricos? Como podem as sinergias entre artes e media ser definidas, cartografadas, significadas e analisadas?” Os participantes acordaram em tentar organizar acções de formação com o formato workshop em situações como das “Universidades de Verão”, em promover formações de 2º e 3º nível de ensino superior (MA e PhD) e em contribuir para maior mobilidade de estudantes e professores. Bibliografia citada:

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BORGES, J. L. [1946], El Aleph. É a seguinte a passagem de Borges a que as citações se referem: “Cerré los ojos, los abrí. Entonces vi el Aleph. Lo que vieron mis ojos fue simultáneo: lo que transcribiré, sucesivo, porque el lenguaje lo es. Vi una pequeña esfera tornasolada, de casi intolerable fulgor. Al principio la creí giratoria; luego comprendí que ese movimiento era una ilusión producida por los vertiginosos espectáculos que encerraba. Vi el

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populoso mar, vi el alba y la tarde, vi las muchedumbres de América, vi un laberinto roto (era Londres), vi todos los espejos del planeta y ninguno me reflejó, vi en un patio de la calle Soler las mismas baldosas que hace treinta años vi en el zaguán de una casa en Fray Bentos, vi racimos, nieve, tabaco, vapor de agua. Vi un cáncer en el pecho, vi una quinta en Adrogué, vi un globo terráqueo entre dos espejos que lo multiplicaban sin fin, vi caballos de crin arremolinada, una playa en el Mar Caspio, vi los huesos de una mano, una baraja española, vi tigres, bisontes y ejércitos, vi todas las hormigas que hay en la tierra, vi un astrolabio persa, vi un monumento en la Chacarita, vi la circulación de mi oscura sangre, vi el engranaje del amor y vi el Aleph, desde todos los puntos, vi en el Aleph la tierra, y en la tierra otra vez el Aleph, vi mi cara, vi tu cara, y sentí vértigo y lloré, porque mis ojos habían visto ese objeto secreto y conjetural, cuyo nombre usurpan los hombres, pero que ningún hombre ha mirado: vi el inconcebible universo”. BRESSON, Robert, [1975], Notes sur le cinématographe, Paris, Gallimard, 1990.

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Generalidades sobre palcos transitários, elogio do novo ludus mundus

“Transitar: Percorrer; fazer caminho; andar; passar; viajar. Passar ou mudar de lugar, de estado, de condição. Mudar-se, passar a outro lugar” [Morais, Novo dicionário compacto da língua portuguesa, ed. Horizonte / Confluência, 1988).

Neste texto falaremos de “novos palcos” mas discretamente, respeitando a multidão de discursos que nesta matéria nos precedem e tendo presente que os palcos já muitas vezes se metamorfosearam. Não ignoramos o peso esmagador da experiência, e da bibliografia que ela suscitou, designadamente no séc. XX, em matéria de transfigurações conceptuais e arquitectónicas da cena. Tome-se a título de exemplo um “momento” entre cem outros bem conhecidos : o teatro simbolista, na transição do séc. XIX para o XX, quis tornar os palcos em não-lugares, desterritorializá-los e desenraizá-los da tradição italiana clássica, para poder regenerar “em sítio nenhum, ou em qualquer sítio” a própria hecceidade teatral : empreendimento utópico recentemente recordado (Pellois, 2011) a propósito do Instituto Jaques-Dalcroze em Hellerau (Dresden, de 1911), que tanto veio a ser oficina de criação como sala de espectáculo para Appia, Claudel, Craig, Copeau, Stanislavski, Diaghilev, Rachmaninov, Nijinski, outros. Antes, Craig (1905) lutara por um teatro emancipado da prisão textual e devolvido ao que no palco dele se fizesse, e trinta anos depois Artaud sublinharia que o teatro é “físico e não verbal”, ampliando o movimento emancipatório. Sobre o teatro de Artaud, escreveu Derrida que “não é um livro nem uma obra, mas uma energia, e neste sentido é a única arte da vida” (Derrida, 1967: 363). Mas se há marca que atravessa todo esse movimento de depuração é o esvaziamento do palco e de todo o espaço teatral, transformado em espaço virgem, tabula rasa, “nada” arquitectónico. Veja-se o que diz Claudel sobre Hellerau quando ali monta L’Annonce faite à Marie, logo em 1913 (Pellois, loc. cit.):

“A sala é um longo rectângulo de 42 por 17 metros, com 12 de altura. Não há palco fixo. Constrói-se o palco de que precisamos com praticáveis ou elementos móveis (…). Não há focos de luz visíveis. As paredes e o tecto estão cobertos por um véu branco e transparente atrás do qual se podem instalar lâmpadas eléctricas (…)”

E pouco antes, em carta a Lugné-Poe, actor e encenador, criador do Théâtre de l'Œuvre :

“(…) Você quer mais ou menos construir um teatro. Não o faça antes de ter visto Hellerau (…). Não repita o erro de Astruc, que construiu um bastião pretencioso e ridículo (…). Precisamos de nos desembaraçar radicalmente das pinturas, das esculturas, dos telões pintados, dos décors de cartão, das máquinas e de outras porcarias. É precisa uma sala nua como um atelier (…)” (Id. ib.).

Outro “momento” da transfiguração dos palcos: as décadas das pequenas salas e cafés-teatros da rive gauche parisiense, até ao Bilboquet de Marc’O, Bulle Ogier, Pierre Clémenti, Michelle Moretti, Jean-Pierre Kalfon, e à explosão pós-68, com o Open Theatre, o Radical Theatre, o Théatre Noir, o Magic Circus, à procura de periferizações deliberadas onde fosse possível agenciar novas teatralizações — com Peter Brook nas Bouffes du Nord, outros na Cartoucherie de Vincennes, na Gaîté ou

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no Palace, as itinerâncias (bem anteriores) do Living Theatre de Jullian Beck e Judith Malina com a sua ideia de happening, ou do Bread & Puppet de Peter Schumann. As numerosas metamorfoses do palco, no sentido estrito de espaço cénico, tentaram satisfazer, no teatro ocidental do séc. XX, todas as conceptualizações aparentemente possíveis, incluindo a redescoberta do espaço nu e vazio do teatro japonês. Tem sido possível evocar, de modo sintético, os principais traços dessa contínua reformulação, que também atingiu objectos e adereços de cena (Ouaknine, 1974: 74-81):

“Todos os encenadores do séc. XX (…) intervieram directamente no campo da relação entre actores e objectos, da representação e do espaço da representação: simplicação dos volumes em Craig; procura de circulação e de altura em Appia; despojamento cénico em Copeau; cenografia e biomecânica do actor em Meyerhold; relação ideogrâmica (dita distanciada) entre objecto e actor em Brecht; exploração lúdica dos adereços nos improvisos de Brook; mudança profunda da relação espacial actor/espectador em Grotowski (…)”.

Mesmo quando tardiamente, por contingência arquitectónica ou outra, o espaço cénico ainda dependeu da matriz italiana ou inglesa, a encenação passou a fazê-lo explodir na sala ou na rua, como fizeram o Living e o Bred & Puppet. Apesar da variedade das práticas e das soluções, desde os simbolistas a tendência mais pesada foi para a simplificação de todas as formas, para a rejeição ou abdicação do décor, para a renúncia à excessiva objectaria de cena (contra o preconceito de que a acumulação de adereços fait théâtre), para a nudez e o vazio do lugar onde se representa, aqui e agora, alguma coisa. A herança destes movimentos acabou por estabilizar uma versão do palco como não-lugar, u-topia no sentido literal grego. Mas o espaço da representação também foi muitas vezes repensado ao mesmo tempo que o espaço teatral no seu todo, envolvendo a relação entre o espectáculo ou acontecimento (happening) e o(s) seu(s) público(s), ou a co-presença do actor e seus espectadores (ou testemunhas), como já no instituto de Hellerau. Esta reconcentração na performance do actor numa cena esvaziada, espaço eventualmente pulverizado que pode incluir percursos e estadias no meio da audiência, dispersão da acção por salas contíguas, peregrinações no dédalo de uma arquitectura, tornando a cena mais móvel e menos dependente de um espaço convencionado, acentuou a imediaticidade e o hic et nunc do facto teatral (Ouaknine, loc.cit.):

“ O espectáculo já não se refere a uma história, a um ‘fora dele’, mas sim a um aqui e agora cuja significação é precisamente a partilha da imediaticidade. (…) Entender a espacialidade deste teatro, é recuperá-lo como uma arte da temporalidade, liberta da história e do lugar. (…) O espaço teatral diz-se no presente. Não como crónica jornalística, mas como ruptura da cronicidade, esquecendo o tempo ‘espectacular’ e saudando um tempo ‘real’, tempo do quotidiano, do sonho, da revolução”.

Derrida escreveu uma vez, sobre textos, no seu De la Grammatologie, que il n’y a pas de hors texte (não existe fora de texto), uma vez que tudo o que um texto faz está nele contido e é nele gerado. Por extensão poderíamos também dizer, sobre o palco e a cena teatral durante um espectáculo, e ao contrário do que aqui sugere Ouaknine, que il n’y a pas de hors scène (não há fora de cena), porque o que ali se faz e se passa é imersivamente auto-referencial e evacua o que lhe é exterior enquanto a coisa dura. Nesse sentido, nunca o espectáculo “se referiu a uma história” ou a um “fora dele”, porque nele converge, enquanto ele dura, toda a exterioridade que a ele conduziu. Cremos que é exactamente este o sentido do hic et nunc de que o teatro sempre se reclamou.

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Ludus mundus Para entendermos a que paradigma pertence, na transição do séc. XX para o XXI, a metamorfose dos palcos em espaços intermediais, precisamos de identificar os traços pertinentes do mundo exposicional (e tantas vezes descrito como tendo perdido a aura) onde vivemos na companhia das nossas artes, incluindo as da cena e do ecrã. Existe hoje um novo ludus mundus em situações como a multi-presença virtual de um número indeterminado de jogadores disputando o mesmo jogo em tempo real na Internet (por vezes milhões em simultâneo nos mais diversos lugares e não-lugares do planeta). O exemplo do jogo multitudinário apenas serve de metáfora para a proliferação de redes multi-usos que se instalaram com base na www. A dimensão lúdica, predominante neste novo habitus, é garantida pela nova tecnicização do nosso estar no mundo, oferecida pela mediação das plataformas digitais de comunicação, onde podemos associar os mais diversos conteúdos : texto, imagem, som, sendo que todos eles podem ser pré-gravados ou produzidos agora, em tempo real, podem ser imagens reais, desenhos, fotografias ou computer graphics, música que estou a fabricar “em directo”, imagens de mim próprio que estou a gravar e a difundir em simultâneo, conteúdos digitalizados de bibliotecas, ficheiros oriundos de cinematecas, de arquivos ou museus dos mais variados tipos, cada vez mais acessíveis por links mais rápidos e mais fáceis de utilizar. A blogosfera e as redes sociais digitais, a articulação entre telemóvel e computador pessoal, e entre ambos e a webtv, o surgimento de leitores de livros virtuais e de sucessivas gerações de Ipads ampliaram a socialização imparável do fenómeno telemático. Banalizando-se, e acompanhando o constante surgimento de gadgets adicionais, a descrição deste estado de coisas é trivia e moeda corrente desde meados da década de 90 do séc. XX. Gerou-se, assim, uma imensa rede potencial de novos palcos (e de novos “vícios privados, públicas virtudes”, a partir de uma miríade de novas “casas de chá do luar de Agosto”), rede cada vez mais determinada por interacções em tempo real, onde cada um pode ser editor e autor, espectador ou actor, passivo ou activo, agente ou agido, exibicionista ou voyeur. Por palco estou a entender, aqui, qualquer lugar físico ou virtual onde me enceno ou a um acontecimento real ou simulado, destinando-se essa performance a determinado público e sempre dependendo da presença em cena, real ou digital, de mim próprio ou de outrem. À sua maneira, trata-se da instalação virtual de uma nova espécie de parousia: o real antigamente prometido a cada um fugiu para as imagens e para os ecrãs, afastou-se e tarda a chegar (é agora o horizonte de vidas desrealizadas), e enquanto ele tarda (e tardará mais, até se tornar em terra prometida utópica, promessa por cumprir) cerzimos novos habitus na virtualidade. Tomando posição numa querela clássica sobre o uso e o abuso de tais dispositivos de mediação, anoto que a sua acessibilidade não gera, por si só, efeitos “alienadores” utópicos ou distópicos, eufóricos ou disfóricos. Apesar da tecnologia não ser neutra, e do seu uso estar sempre socialmente associado a fenómenos de inclusão e de exclusão, a sinais de pobreza ou de riqueza, os seus efeitos são função do grau de dependência em que cada sujeito caiu na fruição do dispositivo, comparável à dependência de uma substância, e que como esta pode gerar compulsões, obsessões. Na perspectiva optimista — isto é : admitindo que não nos tornamos vítimas voluntárias de um decisivo movimento de “desrealização” —, cada um pode ser, usando os utensílios disponíveis, parte de uma remediação do gran teatro del mondo veneziano ou do theatrum philosophicum de Foucault — o que Brenda Laurel tinha prefigurado no seu Computers as Theatre, e que já não se materializa apenas na second life virtual, esse cinema de bairro condenado a só exibir reprises e déjà vus.

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Cada utilizador é, assim, livre de se sentir, ou não (e na postura de fruição de que falámos a propósito do jogo multitudinário na Internet), diante de um palco ou rede de palcos reais ou virtuais (damos por obsoleta a questão de saber se, para ele, um filme, uma fotografia ou uma história contada oralmente são mais ou menos reais do que um avião, uma araucária ou uma dor de cabeça), experimentando uma nova forma de hic et nunc que redesenha a sua presença face a outrem e a sua percepção da presença de outrem. E também é verdade que essa “presença” pode ser inteiramente escamoteada : do skype interpessoal à interacção anónima na rede, sob pseudónimo ou representada por um avatar, todas as possibilidades de exposição do sujeito e da sua dissimulação são oferecidas pelo dispositivo — o que nos últimos anos pôs em jogo a questão das identidades virtuais e digitais. O melhor lugar Parece pouco crível que a actual transfiguração intermedial do palco mude profundamente o que o teatro tem sido na sua longa duração — um “laboratório do humano” que dependeu, historicamente, e em primeiro lugar, do que é feito por um ou mais actores perante um número variável de espectadores. Tal palco conheceu, antes desta, poderosas mutações. Mas a intermedialização pode alterar o trabalho do actor e a sua recepção, porque à co-presença física do actor e do espectador se acrescentam, via dispositivos de comunicação digital, percepções de presença a que o palco teatral não estava afeito, e que alteram a materialidade do que ele mostra e a maneira de o mostrar. A intermedialização do palco não é, assim, nem a morte do teatro nem a sua ressurreição : é, literalmente, a entrada em cena de meios digitais expressivos que multiplicam a informação carreada pelo espectáculo, acontecimento ou performance, e que convocam para o palco figurações, sonoridades e procedimentos que tradicionalmente eram vistos como seu “exterior” e agora o habitam por dentro, tornando-o mais auto-referencial. Veremos como André Bazin antecipou, nos anos 50do séc. XX, a discussão contemporânea sobre a importância da presença física do actor em cena, ou da co-presença actor-público, alargando-a ao cinema, cujo ecrã é “o contrário” do palco teatral. Na era dos media digitais, da edição e montagem em tempo real, e na duração útil de um espectáculo, de uma representação, o palco teatral surge naturalmente como o lugar de convergência onde podem coabitar todas as artes da cena e do ecrã sem ser posta em causa a presença hic et nunc que tem sido característica da coisa teatral : a presença hic et nunc pode ser física, pode ocorrer num ecrã ou ser meramente sonora, ou ser feita da mistura de todas — ou seja, pode ser real ou virtual/digital. A presença hic et nunc não é apenas satisfeita pelo facto de o actor se apresentar fisicamente perante o espectador naquele lugar previsto para o efeito : é também satisfeita por “aquilo” que se decide tornar presente, aqui e agora, nesse lugar previsto para o efeito, seja “aquilo” o que for : actor e figurantes, o próprio público, filme, som, televisão, ligação à internet, holograma, autómato, escultura. Apetecível lugar de convergência, portanto : não admira que uma nova geração de pensadores da cena e do palco tenha tornado esse lugar interconexado ou interconexável em objecto de nova reflexão quase escalotógica, entendendo-o como espaço hipermedia por excelência, ou, noutra acepção, como intermedial, quer porque ele se oferece remediado e como receptáculo multi-usos, quer porque se trata de explorar o que nele pode fazer-se acontecer, exprimindo o quê e com que finalidades, se elas existem. Como dizem os autores de Mapping Intermediality in Performance (Bay-Cheng; Kattenbelt; Nelson; Lavender et al., 2010 : 46):

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“Os media digitais complicam as presunções sobre a presença ao vivo. Os media do ecrã como o cinema e a televisão, mas juntemos-lhes (…) o dvd, os smartphones e os netbooks, constroem uma vivência e uma presença medial para além da proximidade física (…). Neste sentido, a presença define-se, não pela proximidade espacial, mas pela proximidade temporal, ou telepresença, que por sua vez se distingue da presença virtual (a consciência de si num ambiente simulado), pelas trocas sociais entre participantes, próprias da telemática. No contexto das redes e dos media sociais, a presença é cada vez mais definida pela participação, e não pela presença física partilhada (…). Percepções de presença existem cada vez mais como espaços transicionais entre o vívido e o digital (…)” .

Apesar da exacta distinção acima feita entre virtual e digital, não a adoptamos neste texto de modo sistemático, preferindo referir-nos genericamente ao virtual como contraponto do real, à semelhança da maioria dos autores que se ocupam das relações entre ambos. Bazin, outra vez André Bazin, no seu Qu’est-ce que le Cinéma, tem três capítulos onde discute as relações entre cinema, teatro e literatura, pintura, e que devem ser hoje relidos no âmbito dos estudos interartes ou da intermedialidade — porque antecipam de forma premonitória questões recolocadas pelos primeiros como pela segunda : são eles «Pour un Cinéma impur. Défense de l’adaptation», «Théâtre et Cinéma» e «Peinture et Cinéma». Estes textos fazem parte de um conjunto que inclui dois estudos de casos: « Le Journal d’un curé de campagne et la stylistique de Robert Bresson» e «Le cas Pagnol». Para Bazin, a “impureza” do cinema é congénita e advém exactamente das suas relações complexas com o teatro, o romance e a novela, e com outras artes. Valorizando as cinematizações de Shakespeare por Laurence Olivier e Orson Welles, bem como a de Les parents terribles por Cocteau, Bazin toma posição na querela sobre o “teatro filmado”, que marca parte da reflexão crítica da época, defendendo a sua transformação em “teatro cinematográfico” e distanciando-se da afirmação predominante de que o cinema nada ganha em manter uma relação de dependência com o que foi escrito a pensar em palcos. A sua leitura é mais complexa e matizada, evitando conclusões “simplistas” e propondo que cada “adaptação” e cada momento dessa relação sejam avaliados caso a caso. Apesar da sua discussão se centrar na busca de uma definição ontológica do cinema, objectivo desde logo explicitado pelo título da obra, Bazin sabe que está a comparar uma arte com mais de vinte e cinco séculos e outra com pouco mais de meio século, cujos patrimónios, herança e hegemonia sociocultural não podem ser pesados pela mesma balança; e sabe também que, na sua curta vida, o cinema começou por depender pesadamente de adaptações de teatro, depois de ter dependido do circo, do vaudeville, da comédia e da farsa, embora posteriormente o tenha compensado, devolvendo-lhe público por via da excelência de algumas cinematizações de peças teatrais. Essa relação é mais vasta e inclui os efeitos iconológicos do star system: Sarah Bernhardt é “agora” Greta Garbo; os “monstros sagrados” emigraram dos palcos para o ecrã, mas os palcos não desdenham ir repescá-los à sua nova pátria de adopção. Há duas questões centrais e prévias que estes textos abordam e que são particularmente relevantes para a intermedialidade contemporânea: a primeira respeita ao carácter insubstituível da presença física e hic et nunc do actor como idiossincrática do teatro, e que o cinema “não pode oferecer”; a segunda diz respeito

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ao que são os décors teatrais e os seus correspondentes cinematográficos — espaço aberto e natural contra espaço cénico gerado por uma arquitectura. Evocamo-las sumariamente, dada a sua articulação com as questões de que aqui tratamos, e anotando o prazer, não só “arqueológico”, com que se regressa aos textos de Bazin: Abordando a primeira das duas questões, Bazin cita o clássico L’essence du théâtre (Gouhier, 1943), para quem “o palco acolhe todas as ilusões menos a presença do comediante”, que não pode ser iludida. Inversamente, diz Bazin, “o cinema pode acolher todas as realidades menos a presença física do actor” (loc. cit.: 150). O que Bazin quer discutir é precisamente se há ou não presença do fotografado ou do filmado na fotografia ou no filme (é a questão que esteve na origem do iconoclasma de Bizâncio, em tempos de arte paleo-cristã, dada a relevância do ícone, sobretudo do não feito por mão humana, como o véu de Verónica e, muito mais tarde, o sudário de Turim): ele argumenta que a ideia de presença de Gouhier, partilhada como lugar comum por toda a crítica teatral do seu tempo, é anterior à fotografia, cuja imagem é o rasto (trace) deixado pelo próprio objecto, porque o que a câmara capta é “a sua impressão digital luminosa”, um seu “molde”, a sua “identidade (o cartão do mesmo nome não é concebível senão na era da fotografia)” (id. ib.: 151). Apesar do fotógrafo accionar a máquina, esta pode operar sem intervenção humana, e sobretudo a captação da imagem e sua posterior impressão dependem de elementos ópticos e químicos. Este argumento antecipa em duas décadas os de Susan Sontag (1977) e de Barthes (1980) sobre a fotografia : Sontag virá a escrever que “enquanto uma pintura, ainda que conforme aos padrões fotográficos da semelhança, nunca é mais do que a afirmação de uma interpretação, uma fotografia nunca é menos do que o registo de uma emanação (ondas de luz reflectidas pelos objectos), um vestígio material daquilo que foi fotografado e que é inacessível a qualquer pintura”. E Barthes dirá que “uma foto é literalmente uma emanação do seu referente”. Eu próprio (Mendes, 2010 : 36) comentei nos seguintes termos esta coincidência definitória:

Desde que a “alquimia” de Niepce e Daguerre substituiu a “mão de Deus” nos acheiropoietos, a fotografia e, mais tarde, o cinema, devolveram às questões relativas ao ícone e às imagens em geral a fortíssima ilusão da “presença real” ou “quase-real” do referente ou do modelo, obrigando a discussão a regressar à tabula (quase) rasa da Niceia do iconoclasma.

Bazin evoca a morte real de Manolete, filmada na arena, para concluir da necessidade de rediscutir a presença, no ecrã, do que é filmado, num novo quadro que torna obsoleto o de Gouhier (p. 152), e que no mínimo será necessário submeter a novas dúvidas, enquanto “filósofos e especialistas de estética” não forem capazes de definir o estatuto da imago fotográfica ou cinematográfica :

“No mínimo, não poderemos opor cinema e teatro com base apenas na noção de presença, sem primeiro descrever o que subsiste no ecrã, e que filósofos e especialistas de estética ainda não conseguiram esclarecer (...). Mesmo na sua acepção clássica, a ‘presença’ não nos parece cconstituir a essência irredutível do teatro”.

Sobre a segunda questão, relativa aos décors entendidos como locations, espaços da acção, que traz consigo a questão do palco teatral enquanto lugar cénico, diz Bazin (loc.cit.: 158) que nunca houve teatro sem arquitectura — átrio ou interior de catedral, arena de Nîmes, palácio dos Papas em Avignon, hemiciclo olímpico de Vicenza, anfiteatro rococó das grandes avenidas, estrado de feira sobre cavaletes — e que é nesse espaço específico e privilegiado, “real ou virtualmente distinto da natureza”, “materialmente fechado, limitado, circunscrito”, “caixa de três painéis” que se abre sobre “a sala”, que o teatro, “jogo ou celebração”, renova a sua liturgia, assente na

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co-presença actor-público. Eis um enfoque que nos traz de volta a nossa reflexão inicial sobre os palcos teatrais. Ora, ocupando-se agora de cinema, acrescenta Bazin (id. ib.: 161):

“No cinema é completamente diferente, porque ele recusa qualquer fronteira da acção. O conceito de lugar dramatúrgico não só é estranho ao cinema, mas contraria a própria ideia de ecrã. (...) No ecrã, o homem deixa de ser o centro do drama para se tornar (eventualmente) no centro de um universo (...). A história dos falhanços e dos (...) sucessos do teatro filmado será portanto a da habilidade dos realizadores para manter a energia dramática num meio que a reflicta ou, pelo menos, onde ela ainda ressoe o bastante para ser percepcionada pelo espectador cinematográfico”.

Enquanto o teatro precisa do seu palco, o cinema transforma em palco todo e qualquer espaço natural, construído ou virtual. Vale a pena sublinhar que é um dos mais obstinados defensores da autonomia e de uma ontologia do cinema, nos anos 50 do séc. XX, e não um artista intermedial dos nossos dias, o autor desta reflexões. Bazin desenvolvê-las-á em capítulos seguintes, significativamente intitulados «O teatro em socorro do cinema» e «O cinema salvará o teatro», que não analisaremos aqui mas cuja leitura / releitura aconselhamos vivamente. A sua conclusão não deixa dúvidas sobre o desejo de colaboração, subsidiaridade, de mistura e de mútua aprendizagem que inspira essas reflexões (id.ib.: 178):

“Não é por acaso que alguns dos maiores cineastas destes tempos são também grandes homens de teatro. Welles ou Laurence Olivier não vieram para o cinema por cinismo, snobismo ou ambição, nem mesmo, como Pagnol, para vulgarizarem os seus esforços teatrais. O cinema não é para eles senão uma forma teatral complementar : a possibilidade de realizar a encenação contemporânea tal como a sentem e a querem”.

Bazin profetizou que os críticos de 2050 já não distinguiriam uma novela adaptada ao teatro e depois ao cinema como três formas de arte, vendo-a como uma só obra em diversas expressões mediais. Hoje, parte desta diversidade de expressões converge para o mesmo lugar, o palco intermedial. Não se estranha, assim, que os animadores contemporâneos de estudos nestas áreas, como os da Mixed Cinema Network (Universidade de Leeds) tomem estes textos de Bazin como referências re-inspiradoras da sua reflexão, como sucedeu na conferência Impure Cinema: Interdisciplinary and Intercultural Approaches to World Cinema, na Leeds Art Gallery, em Dezembro de 2010.

Hibridizações Todas estas questões evoluíram sem perderem as suas referências fundamentais e têm, naturalmente, a sua história mais recente: os participantes (scholars e artistas) do colóquio de Besançon, em 2001, sobre as relações entre teatro e novas tecnologias (Garbagnatti e Morelli, 2006), partiam da constatação comum da presença crescente das TIC nos palcos teatrais e da sua penetração em toda a cadeia criativa, desde a concepção e escrita do guião do espectáculo à sua apresentação/representação e recepção. E constatavam que deste processo estava a resultar uma progressiva “hibridização” do teatro, cada vez mais contaminado pelo novo ambiente tecnológico da mudança de século, em obras experimentais que questionavam o lugar tradicional da arte teatral como “laboratório do humano”, laboratório antes instalado pela co-presença física do actor e do seu público, e doravante cada vez mais habitado por novas máquinas comunicacionais que, entre outras mutações consideráveis, alteravam a natureza e a recepção daquela co-presença identitária.

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Era, então, o caso de trabalhos como os do teatro da imagem de Robert Lepage ou o Hamlet-machine (virus) de Clyde Chabot, que ofereciam interactividade ao espectador em vez da antiga interacção entre ele e o actor. Ou o Côté noir/Côté blanc de Cécile Huet en 2001, “teatro para internet”, onde uma actriz discutia com uma janela web entendida como espaço cénico em ambiente virtual. Ou ainda os trabalhos “tecno-poéticos” de Jean Lambert-Wild, centrados na interacção entre o corpo físico do actor, as máquinas e suas imagens virtuais. O mesmo Clyde Chabot, descrevendo o seu Hamlet-machine, apresentava-o sem “euforia”, e atento às manipulações dos procedimentos, como resultando de um happening cénico-tecnológico complexo, onde os espectadores, que podiam utilizar um computador, um leitor de cd ou uma câmara digital, ocupavam o centro do espaço “teatral”, rodeados por ecrãs, técnicos e pela equipa artística, devendo actores e técnicos improvisar a partir da palavra dita ou escrita dos espectadores. Em contraponto com o entusiasmo dominante em torno da diversidade de casamentos entre o palco e as novas próteses comunicacionais, Bertrand Munin evocava ironicamente (loc. cit.), a propósito da Andrómeda de Corneille, a entrada triunfal das máquinas nos palcos do séc. XVII, coincidente com a descoberta parisiense das possibilidades técnicas exploradas por italianos. E textos de Plinio Walder Prado Jr. e Jean-Pierre Triffaux interrogavam-se sobre a sobrevivência do teatro no seio da revolução tecnológica em curso, o primeiro sublinhando que a co-presença dos corpos sempre permitiu a revelação do “outro” que o actor anamnesicamente produz, o segundo que o teatro se constitui precisamente como alternativa ao vade mecum internet, visto que o actor, que desde tempos imemoriais mistura real e virtual, pode (e deve, se entendemos bem o autor) exercitar um olhar crítico sobre a “videoesfera” (termo de Régis Debray na sua mediologia) e as TIC globalmente consideradas. São observações onde parecem ecoar as práticas de Peter Brook, Valéria Novarina ou Marco Baliani, que entenderam a chegada das TIC aos palcos como “dispersiva”, insistindo na re-humanização destes últimos através da simplicidade da presença física do actor. Num texto conclusivo (loc. cit.), e em sintonia com as abordagens mais disfóricas do palco intermedial, Daniel Raichvarg perguntava se, no futuro, ainda conseguiremos chorar, neste teatro que a sociedade tecno-ocidental está a forjar. Todas estas compreensíveis suspeitas pedem, como dissémos atrás, que revisitemos a reflexão, hoje com 60 anos, de André Bazin. Outros autores (Halévy, s.d.), que neste “combate” alinham com a “euforia” tecnológica, têm assumido que, longe de ser ferido ou mortalmente ameaçado pelas TIC, o palco teatral é, pelo contrário, o único espaço que torna possível o usufruto de todas as potencialidades contidas nas “novas tecnologias da representação”:

“Ao mesmo tempo lugar de espectáculo vivo com actores (…) e agenciamento, no espaço, de meios de representação variados, só o palco teatral pode articular a heterogeneidade das inscrições mediáticas tornadas possíveis pela digitalização. A presença humana pode figurar nele de modo directo ou mediatizada. Os sons podem ter ali produzidos em directo, pré-gravados, amplificados (…), modificados (…). As imagens podem passar em diversos suportes (vídeo, diapositivo, cinema, holograma, a três dimensões), serem modificadas em directo, etc. Longe de ser esmagado pelas novas técnicas de representação, o palco teatral é o lugar por excelência onde estas se revelam”.

O mesmo autor (loc. cit.) identifica estes traços de uma “mediologia em acto” em obras como House/Lights, do Wooster Group : actores produzem em palco acções simples, enquanto dançarinos, entendidos como metáforas dos seus desejos,

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atravessam a cena em ambiente de comédia musical, enquanto informáticos modificam as vozes dos actores dando-lhes diferentes expressões, enquanto extractos de filmes alusivos à acção passam em ecrãs sobre o palco e ecrãs video virtualizam a representação física. Duas mulheres sentadas no palco são transpostas, por mistura de imagens (câmaras estão a filmá-las) para o interior de um carro, onde aparentemente seguem viagem. Mas efeitos comparáveis podem ser apreciados numa instalação como Machinations, de Georges Aperghis, (Festival Agora, 2000), ou em Pantera imperial e Ricardo e Elena, espectáculos de Carles Santos (Théâtre de l’Odéon, mesmo ano). Acrescenta Halévy, sobre os efeitos narrativos de tais dispositivos:

“A representação de uma intriga narrativa é substituída pela apresentação de um agenciamento de elementos heterogéneos, por um dispositivo, o que provoca uma mudança determinante no funcionamento dramático, renovando com o que os estudos em teatro chamam dupla enunciação. (…) É o abandono da dramaturgia a favor de outra forma de gramática teatral: a dispositivologia”.

Um trabalho da Compagnie Adrien M. Exercícios de tecnologia para palco em Barcelona

Reconceptualizado como plataforma das convergências intermediais que convoca, o palco teatral surge como chora regeneradora das artes da cena e do ecrã. Tanto mais que, salvo acidente ou limitações técnicas precisas, qualquer lugar ou espaço pode ser adaptado, pela intervenção de artefactos simples, a palco para as artes de cena, como vimos atrás a propósito, por exemplo, de Hellerau : praça, refeitório, escadaria, quartel, enfermaria ou hospício, claustro e átrio de palácio, orla de bosque. O palco intermedial contemporâneo, o stage anglófono e a scène francófona, nada perderam da σκηνη (skênê, tenda) grega, da scæna latina, da ideia de arena, de plateau ou de tréteau, apesar de se terem desterritorializado ou voluntariamente exilado. Complicando a nossa semântica, palco e cena são ditos, em francês, pela mesma palavra, o que sempre levou ao duplo sentido das expressões mise en scène, entrer et sortir de scène, etc.: a cena é em Tebas, em Nova York, nas muralhas de... Mas o facto de o palco intermedial surgir de novo habitado, desta vez por objectos tecnológicos que multiplicam a expressão do que nele se faz, não significa necessariamente a sua reocupação pela quinquilharia aderecista e pelas máquinas de que Claudel queria libertar-se. Parte da reflexão actual sobre a teatralidade volta, aliás, a referir-se à “sala da iniciação” de Eleusis, onde sacerdotes-filósofos inventaram e exploraram um teatro solitário do corpo e do ritmo, sagrado e sem espectadores, como que entregues a um perpétuo e hipnótico ensaio criativo. Saídos do santuário, usaram-no no ensino dos mistérios, cultivando a cidadela interior. Na distância que separa estes movimentos iniciais e os tragediógrafos atenienses estão contidas pelo menos três ideias de teatro diacronicamente distintas mas que subsistiram na sincronia: a de um teatro secreto e esotérico; a de um teatro aberto apenas a iniciados; e a de um teatro-espectáculo festivo, epifânico e cívico — o dos festivais de Diónisos. Ora, todos eles subsistem no teatro contemporâneo, no não-

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intermedial como no intermedial, que desejam, retomando a expressão de Craig, convocar “mil cenas numa cena”. O céu das tecno-ciências e o chão das artes Observado de um ponto de vista exterior aos das artes, mas lateralmente atento à relação destas com as novas tecnologias — por exemplo o da sociologia do conhecimento — os palcos e as artes em geral não fazem mais do que reproduzir, a seu modo e nas suas condições próprias de existência, a discussão em torno do “gnostisimo tecnológico” contemporâneo (Martins, 1996: 171-196), que promete sucessivos upgrades da humanidade resultantes da “computopia” generalizada, mas sobretudo dos progressos da inteligência artificial, das biotecnologias e das tecnologias da reprodução. O progresso nestas áreas comanda a nova edição da crença na mutação acelerada do homem, porque são elas que redesenham as fronteiras da nossa intervenção na ordem natural, desestabilizando ao mesmo tempo éticas e teorias da sociedade muito sedimentadas. Mas, no caso das artes, é muito maior a sua proximidade de outras áreas, as das tecnologias da informação e da comunicação. As artes, como Luc Ferry longamente explicou a propósito dos modernismos, têm tendência a produzir uma forma própria de dança em torno dos saltos qualitativos das ciências e das técnicas, mimando as mudanças de paradigma kuhnianos de umas e de outras. Não se estranha, assim, que, a seu modo, as artes participem das discussões sobre a “reconfiguração do humano” ou a “pós-humanidade” provocadas por uma nova aliança com a mais recente geração de artefactos que tratam a mente humana como um embrião da futura inteligência maquínica (e em fase de ser por esta ultrapassada). Parte do fascínio actual das artes (as da cena e do ecrã entre as outras) pela tecnologização das suas práticas dever-se-ia então, deste ponto de vista, a esse voo fascinado em torno da luz ofuscante das tecno-ciências: também os cubistas, em seu tempo, pensaram interpretar bem a “quarta dimensão” de que falavam as ciências (Ferry, 1990: 232-262). E por que razão seria de esperar que as artes não manifestassem, em relação às outras técnicas, a curiositas, o desejo de desvio transgressivo e de expressão irónica ou crítica, muitas vezes em sintonia com uma pop culture, que são parte da sua identidade? Mas outra parte desse fascínio dever-se-á simplesmente à socialização, nas artes e entre os artistas, das “comodidades” oferecidas pelas novas tecnologias aos seus utilizadores — com as TIC, que já não são ameaças de laboratório, em primeira linha. Por outro lado, o “gnosticismo tecnológico” contém uma vertente deceptiva: apesar de todos os progressos e conquistas materializados no processo tecnológico da virtualização e da digitalização, o sonho de Descartes, que foi também o de Aristóteles, relativo ao nosso domínio sobre a natureza, não se concretizou senão muito insuficientemente. Não somos hoje, por via das técnicas, mais donos e senhores da natureza, porque elas próprias provocaram, nesta mesma natureza, alterações imprevistas e que violentam a sua autopoiesis. Somos — o que é diferente — mais donos e senhores (mais mestres, e também mais escravos) da tecnicização da nossa aventura humana no mundo. Contra todas as expectativas, e também contra todas as aparências, a “realidade de primeira ordem” de Watzlawick (a física, a material, a mais comprovável por observação ou porque lhe tocamos) e o “mundo virtual” pouco se recobriram : tornaram-se, sim, mais fortes e mais autónomos no seu interface. Neste movimento, a quantidade das nossas determinações naturais pouco se alterou (apesar de durarmos mais tempo ligados a máquinas de sobrevivência, e de termos começado a gerar vida em laboratórios); mas passou a conviver com um muito maior

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número de determinações virtuais. Por outras palavras: a tecnicização da nossa experiência do mundo foi progressivamente mais ganha pelo virtual, em desfavor da nossa relação com a “realidade”, de que a natureza sempre foi a primeira expressão. A maçã de Newton ainda cai da árvore por acção da gravidade, mas nós preferimos tomar conhecimento dessa queda numa bela imagem construída em computador. Não é por acaso que, no que toca aos palcos, que participam amplamente desta nova virtualização da experiência, se discute hoje quem, neles, vai pesar mais, se o “real” (a corporeidade material dos actores em cena e a sua milenária interacção com os públicos), onde nem tudo é possível, ou o “virtual”, incluindo a automação e a relação homem-máquina que ele transporta consigo, e que parece tudo possibilitar, como sugere Benasayag (Baquiast, 2008):

“No cerne da questão teatral, ponho a questão de saber a que necessidade orgânica responde a existência do teatro (…). Há aqui um problema antropológico, o da relação entre a civilização e o que designamos por real. Creio que o desenvolvimento exponencial do virtual traz consigo uma perigosa evitação do real. No virtual, tudo é possível. Ora, para que uma civilização possa desenvolver-se, ela tem de saber que, na relação com o real, nem tudo é possível (...). Podemos temer que a parte de artificial nos híbridos [que criamos] esmague a corporeidade herdada do humano e do animal tradicional. As possibilidades de proliferação do artificial serão bem maiores do que aquelas de que o biológico disporá. É a grande questão da nossa época: a partir de que momento os ditos enriquecimentos da espécie pelo artificial esmagarão as suas dimensões orgânicas”.

Máquinas humanizadas, inspiradas em nós mas que nos ultrapassam, e que depois nos vencem, mas ficando a sofrer para sempre a nostalgia do humano? Por esse caminho regressamos ao sotão escurecido onde arrumanos os transcendentais da ficção científica : os replicants de Do Androids Dream of Electric Sheep?, de (Dick, 1968), ou a sua adaptação por Ridley Scott em Blade Runner (1982); Solaris (Lem, 1961), ou a sua adaptação por Andrei Tarkovsky (1972) e por Steven Soderbergh (2002); a Matrix dos irmãos Wachowski (1999); ou até La invencion de Morel (Casares, 1940), onde máquinas de gravação e registo guardam a experiência de pessoas —“emissores vivos”— e lhes sobrevivem, tornando-se simulacros que se reproduzirão na “pós-humanidade”. Como diz o protagonista de Byoi Casares, a caminho de se tornar simulacro maquínico de si próprio ou sendo-o já, numa declaração que duplica outra, contida no prólogo de Jorge Luis Borges ao livro (I have been here before, But when or how I cannot tell: I know the grass beyond the door, The sweet keen smell, The sighing sound, the lights around the shore...):

“Esta isla, con sus edificios, es nuestro paraíso privado. He tomado algunas precauciones —físicas, morales — para su defensa: creo que lo protegerán. Aquí estaremos eternamente, aunque mañana nos vayamos, repitiendo consecutivamente los momentos de la semana y sin poder salir nunca de la conciencia que tuvimos en cada uno de ellos, porque así nos tomaron los aparatos; esto nos permitirá sentirnos en una vida siempre nueva, porque no habrá otros recuerdos en cada momento de la proyección que los habidos en el correspondiente de la grabación, y porque el futuro, muchas veces dejado atrás, mantendrá siempre sus atributos”.

Madalena e o túmulo vazio Muitos autores, interpretando os tempos, têm escrito àcerca da nova prevalência das imagens e dos ecrãs sobre as escritas e os textos, e àcerca da prevalência do virtual globalmente entendido sobre a presença física e factual. Serão decerto tendências fortes, mas o algoritmo que as determina não joga inteiramente a seu favor. Estamos,

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sim, diante de novos tipos de interacção entre real e virtual, interacção transportada para palcos teatrais remediados e invadidos por tecnologia comunicacional, mas onde continuam a ser dominantes a presença e o hic et nunc irrepetíveis (que hoje podem ser a um tempo reais, digitais, virtuais). Lateralmente, e não nos demoraremos nesta referência, isto significa também que estamos muito mais propensos, hoje, a mostrar em palco vidas exibidas como séries de acontecimentos momentâneos e irrepetíveis : entre outros, o sistema dos media forneceu-nos a chave necessária a essa nova passagem e os seus reality shows mostraram-nos, a seguir às séries televisivas, que o simples facto de respirar pode ser um acontecimento comunicável como drama. Retomemos o que de outro modo ficou dito atrás: o que há talvez de mais relevante, para o palco teatral, na nova interacção entre real e virtual, é que não parece garantido que a interacção entre dois actores “presentes aqui e agora” seja obrigatoriamente geradora de mais pathos do que a interacção entre um actor “presente aqui e agora” e a imagem de outro (ou dele próprio), se um e outra puderem interagir. A metáfora do sexo virtual, por exemplo via skype, em que dois parceiros se excitam um ao outro observando-se voyeuristicamente nos ecrãs dos respectivos computadores, ou até a do mais arcaico telefonema erótico ou obsceno, pago ao minuto como em certas formas de prostituição, é a que melhor desilude, alterando-os, o paradigma e o imperativo da presença física : há, pelo contrário, um fetichismo do virtual e do ausente, tão bem conhecido do Cocteau de A voz humana como do Brecht de A Judia, e até um fetichismo do inventado, bem conhecido do Edward Albee de Quem tem medo de Virginia Wolf. Ambos radicam na estática e desejosa perplexidade de Maria Madalena diante do túmulo vazio: à sua maneira, todos os ausentes são ressuscitados que não se mostram, estejam afinal mortos, longe na guerra, perto mas sob prisão, ou “apenas” desaparecidos. E o fantasma da falta que eles nos fazem pode gerar cultos — o outro ausente gera cultos, e gosta de se ver substituído por ícones que o figurem. Se eu encenasse hoje algum teatro para duas personagens, exploraria esse terreno: um só actor diante da imagem animada de outro, fantasma ou ectoplasma presente no palco em tamanho natural como num espelho de alfaiate, e com a qual (imagem) fosse possível interagir. De qualquer modo, tarde ou cedo partilharemos o palco com hologramas animados e respondentes (ou com autómatos inteligentes: veja-se Benasayag e Baquiast, loc. cit.). Mas, já hoje, não falta low tech para garantir a eficácia do dispositivo. Sabemos, desde Bizâncio e seus iconófilos, que o ícone ameaça sempre tornar-se ídolo, revelando tendencialmente mais força presencial e mais pathos do que a persona nele figurada. As imagens milagreiras, com quem falamos e a quem nos queixamos, são, ao longo de toda a história cristã e ocidental, maiores que nós. Como diria Didi-Huberman, na esteira de Warburg : criámo-las para que elas mandem em nós (Mendes, 2010). Porque haveria de ser diferente com as imagens digitais ou virtuais trazidas para o palco do teatro? Só a Alice de Lewis Carroll atravessa espelhos sem se magoar, bem o sabemos. Mas aqui não se trata, de momento, de atravessar nada : o espelho, o ecrã, o ícone bizantino, obscurecido como em Veneza ou luminoso como numa anunciação ou na estrada de Damasco, nunca deixarão de ter sobre nós o poder sublime com que os dotámos. Imersos na transição ansiosa Avaliemos agora a nossa situação presente e tentemos descrever o que a define. No estado actual das interacções aqui referidas, não se vislumbra que fim visam os palcos, que finalidade perseguem, para além de uma implementação sem quebra das

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relações maquínicas que a tecnologia suscita. A verdade é que não têm de perseguir qualquer finalidade (os fins e as finalidades estão em crise como os demais valores transcendentais). Basta-lhes garantir a exposicionalidade teatral do que neles se vive em forma de pathos. Mas dir-se-ia que esta época é vivida como um grande episódio em que estamos imersos, episódio auto-centrado, onde tendemos a fixar mais as árvores do que a floresta. Não perseguindo finalidades, não se orientando teleologicamente, o episódio (e o que nele fazemos) não faz parte de uma continuidade ou de um caminho em direcção a..., antes nos surge como coisa em si e que somos convidados a fruir. Não vamos a caminho do fim da história. Como sempre, somos, nesta matéria, mais semelhantes a carpas no seu aquário do que ao salmão que sobe o rio a contra-corrente. Apesar disso, este episódio, esta época, são vividos como uma transição: as mutações oferecidas ao palco teatral pela convocação das tecnologias comunicacionais proporcinam-lhe geometrias variáveis em matéria de formas e de conteúdos, geometrias essas que tendem a não se fixar, a não se deixar modelar nem modelizar. Este acentuado sentimento de que estamos a viver uma transição é partilhado por todas as artes da cena e do ecrã, a começar pelo cinema, que também ignora o seu destino e formas futuras. A memória esclarece as narrativas sobre donde vimos, mas não se adivinha a que porto de abrigo, ou outro, chegaremos. E, de novo, a transição (filologicamente tão próxima do transe e do prefixo trans-) é vivida, não como uma passagem garantida de um estado de coisas para outro, mas como uma coisa em si, com as suas virtualidades próprias, tidas como independentes da questão de saber de onde se vem e para onde se vai. Estamos nela como crianças no jardim dos baloiços. Como se a ponte que usávamos para atravessar o rio se tivesse tornado, de corredor de passagem, em casa que passámos a habitar — o que muda a poética do seu espaço. Porém, sabe-o a sociologia e sabemo-lo cada um de nós, os estados e as épocas de transição para um patamar incerto ou desconhecido geram ansiedade. Estamos, portanto, nela como crianças ansiosas no jardim dos baloiços. Os palcos, e todas as artes da cena e do ecrã, vivem em ansiedade este grande episódio transicional auto-centrado, o que mais os aproxima da situação de parousia que referimos atrás (e que é tendencialmente estática), e sublinha a importância do que neles acontece hic et nunc (o que põe em evidência a sua dinâmica). Natural é que o novo habitus criado em parousia instale as suas próprias rotinas e paixões. Mas há mais : este grande episódio transicional auto-centrado e vivido em ansiedade propicia uma discursividade oracular e pouco fundamentada sobre ele próprio : é característico da transição o fraco discernimento do que a envolve. Serão de esperar, sobre a transição, discursos proféticos, salvíficos, clinicamente discutíveis, insuficentemente argumentados, como num regresso às afasias beckettianas? E significará essa eventualidade que ainda não saímos do paradigma beckettiano? Questões a que não é possível dar resposta num texto desta dimensão. Perante a impotência hermenêutica para interpretar e esclarecer o sentido da transição ansiosa, crescem a acedia e a melancolia. O discurso sobre ela torna-se, deste modo, impressionista, predominantemente aforístico, ou ganha as tonalidades confusas das opiniões mal fundadas, porque precisamente lhe falta visão programática, antecipação do fim da história e o desejo de combate que sempre as acompanha. Voltemos dois passos atrás: as artes que os gregos clássicos mais prezavam — eles, com quem, mal ou bem, tanto aprendemos a pensar — eram as que partilhavam com a natureza a actividade geradora desta última, ajudando-a a fazer o que ela não faria sozinha: a medicina, a agricultura, a ginástica, a política (Platão, Leis: 889d). Eis o

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que ainda hoje explica o nosso fascínio perante a inteligência artificial, as biotecnologias e as tecnologias da reprodução que atrás referíamos, à luz do “gnosticismo tecnológico” comentado por Hermínio Martins. Depois, a um nível mais baixo e mais tardio (Gil, 1990 : 367), a arte fez surgir simulacros (os da pintura e da música, por exemplo), divertimentos que em nada participam da “realidade verdadeira” de Platão. Aristóteles retrabalhou, na Física e na Poética, a distinção platónica entre natural e artificial, insistindo em que toda a arte mima a natureza: téknê mimètai tèn physin. De facto, como se lê desde as primeiras linhas da Poética, a mimèsis não é apenas característica dos eikonopoios (pintores miméticos), mas também dos tragediógrafos e de todo o teatro. A filosofia moderna de Hume (a do Treatise de 1739–1740) viria a redesenhar esta concepção, propondo uma nova descrição da percepção do real, e como que suspendendo a ideia de mimesis:

“O princípio fundamental da filosofia moderna é a opinião relativa às cores, aos sons, aos sabores, ao calor e ao frio, a saber, que são apenas impressões no espírito, derivadas da acção dos objectos exteriores, e sem qualquer semelhança com as qualidades dos objectos”.

Mais perto de nós, a partir de Baudelaire e de Mallarmé (embora herdando da tradição romântica), a artificialidade da arte “absolutamente moderna” passou radicar-se na auto-referencialidade e na rejeição dos referentes externos: a mimèsis platónica e aristotélica entrou em crise diante de todos os modernismos, sem no entanto se desvanecer, e até hoje: é verdade que as maquetas numéricas de objectos tridimensionais produzidas por computador resultam de cálculo e de programação que substituem a mimèsis do eikonopoios ; mas, como dizem os teóricos da remediação (Bolter e Grusin, 1999), a cópia fiel do real (immediacy) e as figurações auto-referenciais (remediation) coexistem nos media contemporâneos como duas teleologias que não se anulam uma à outra, antes remetem uma para a outra como numa mise en abîme concebida por um relojoeiro suiço. No teatro, a auto-referencialidade é determinada pela imediaticidade da experiência partilhada, hic et nunc, de um acontecimento efémero que envolve actores e o seu público. O que há de novo nos seus palcos é o pathos gerado pela nova especularidade e pela nova interacção com a presença virtual ou digital de entes e de coisas que deixam de ser parte de um referente supostamente externo, porque, como os actores e o público, foram convocadas para o interior da cena, determinando a nova expressão do acontecimento teatral. Excursus, prescrutando um céu nublado Irritado por certa leitura de que já darei conta e, talvez por isso, propenso a glosar uma relíquia marxista, direi, a terminar, que um espectro ameaça as artes, e talvez as artes da cena em especial: o espectro da O-Ring theory of economic development e dos seus efeitos sociais, que repõe a questão de saber que relação existe entre o devir contemporâneo da economia e das sociedades e o devir, no seu seio, das artes e das culturas. Como vê o pensamento económico e social um conjunto de práticas e modos de vida que insistem e insistirão no projecto desviante de serem dádiva gratuita e incómoda, potlatch e consumação? Entre os muitos autores indirectamente visados pelas críticas de Viviane Forrester no seu livro L’horreur économique, de 1996, estaria decerto — não fora o anacronismo — Daniel Cohen, defensor da globalização e autor de Richesse du monde, pauvretés

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des nations, de 1997. Neste livro, Cohen refere, para explicar como a produção assistida por computadores mudou a realidade social, um curto ensaio (Kremer, 1993: 551-575), "The O-Ring theory of economic development". O-Ring é a designação do anel tórico de junção patenteado nos EUA em 1937 (uma peça simples e tradicionalmente fiável), cuja disfunção provocou a tragédia do vai-vem espacial Challenger em 1986. Kremer extrai deste caso a lição de que, numa cadeia de produção altamente exigente e sofisticada, a mínima disfunção de uma componente menor pode pôr mortalmente em causa todo o investimento e o seu resultado. Por outras palavras, projectos difíceis de implementar requerem equipas de competências elevadas e homogéneas, e componentes inteiramente fiáveis. Diz Kremer que não foi por acaso que Charlie Parker e Dizzy Gillespie, entre outros, trabalharam juntos, como também não é por acaso que as melhores firmas de advogados contratam as melhores secretárias : este fenómeno de emparelhamento dos maiores talentos, como nas afinidades electivas, significa que, comenta Cohen na esteira de Kremer, os melhores se procuram uns aos outros, como também os medíocres se atraem entre si. E isto, na perspectiva de ambos, tanto vale para as artes como para o mundo do trabalho, onde, hoje, pequenas diferenças entre performances individuais podem dar origem a grandes diferenças salariais : um informático contratado pela NASA para trabalhar no projecto espacial será muito mais bem pago do que outro que faz “praticamente o mesmo trabalho” numa cadeia de supermercados. Eis um conjunto de considerações que aceitamos tornar extensível às exigências das práticas artísticas em geral, e às que lidam com tecnologias sofisticadas em particular. De resto, todas as artes que resultam de um trabalho colectivo — como é maioritariamente o caso nas da cena e do ecrã — sempre exigiram a partilha e a articulação de elevadas competências inter pares e estão habituadas a evitar que um pormenor as inviabilize ou desacredite. Mas a O-Ring theory e as suas selectividades também atingem a ideia de comunidade solidária e a escola : no ensino secundário francês, por exemplo, os liceus que procuram destacar-se pela excelência do seu ensino abandonaram a antiga composição heterógena e igualitária das turmas em favor de uma hierarquia que privilegia as classes européennes, mais elitistas e que oferecem mais e melhores competências aos alunos. Eis como Cohen descreve esse fenómeno (loc. cit.: 89) — e é aqui que a sua exposição adquire o valor de uma agressão inesperada às artes e ao ensino artístico :

“Estas hierarquias constroem-se em função de opções que vão desde as prestigiosas ‘turmas europeias’ [‘classes européennes’ no original, n. a.] até às de ‘música’ ou ‘teatro’. Está tudo dito. À imagem da fábrica fordista, a escola pública sofre o efeito paradoxal da escolarização de massa : torna-se mais segmentada e por isso, (…) vector de novas desigualdades“.

Estará, de facto, “tudo dito”? O que é curioso é que Cohen pertence, decerto, à elite que considera Beethoven e Shakespeare (mas talvez não John Cage e Beckett) grandes génios da humanidade. Um pouco adiante, e a propósito das “mundializações” em curso, diz ele, aliás (id.ib.: 98), homenageando o criador do Teatro Nacional Popular de Villeurbanne, entretanto falecido:

“Interrogado sobre o papel do teatro numa sociedade repleta de imagens vindas do mundo inteiro, Roger Planchon respondia recentemente que tal papel sairia, (…) não diminuído, mas reforçado da ‘mundialização’, porque só o teatro consegue manter a

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proximidade humana entre uma obra e os seus espectadores. (…) A brutal abertura das nossas sociedades a um mundo mais ‘vasto’ provoca (…) uma procura de relações sociais mais próximas”.

Cohen parece aderir à resposta de Planchon — “só o teatro consegue manter a proximidade humana entre uma obra e os seus espectadores”. Mas então em que ficamos? Ou bem que o ensino artístico é avaliado pelo “horror económico” como sendo a cloaca do sistema, last chance saloon antes da travessia do deserto, onde menos qualificados podem obter saberes práticos oferecidos por sucedâneos dos desvalorizados cursos de especialização tecnológica; ou bem que o mesmo “horror económico” o reconhece como o lugar de onde emergem, por vezes, grandes génios da humanidade, mentores e garantes da proximidade salvífica entre humanos da era pós-humana. Do ponto de vista do cálculo de probabilidades, é improvável que tal ensino possa ser avaliado simultaneamente das duas formas. Para admitir as duas ao mesmo tempo é necessário sustentar sobre ele um discurso baseado em dissoi logoi, em argumentários mercenários, onde se diz impunemente uma coisa e o seu contrário. E quanto aos génios, não se amplie a falácia : bem sabem todos os sistemas de ensino que eles tendem a dar-se mal nas escolas, quer a sua genialidade seja matemática, quer artística, e quer estejam inscritos nas “classes européennes”, em “música” ou em “teatro”. O patético da avaliação de Kremer e Cohen é que, na lógica compreensível mas socialmente perversa das classes européennes, o ensino das artes, como os outros, também aprendeu historicamente a defender-se, também aprendeu a requerer para si a excelência e a ser classista, e fê-lo com frequência ao longo dos tempos modernos, quer antes quer depois da aclamação da US Constitution de 1787 e da Constituante de 1789, tornando-se ele próprio selectivo e exclusivista — um modelo que ultrapassámos e a que não desejamos regressar. Outra coisa é o facto de Charlie Parker e Dizzy Gillespie se procurarem para tocar juntos, independentemente das escolas e das classes que frequentaram ou não. Mais antiga e pelo menos tão fiável quanto a O-Ring Theory é a evidência, admitida por Voltaire na sua correspondência de 1760, de que les beaux esprits se rencontrent. Ora, essa evidência não depende sobretudo da coincidência de histórias de vida ou da concepção dos seres humanos como decalcomanias uns dos outros. Só poderes totalitários continuam a acreditar que, para sermos genuinamente felizes e performativos, devemos procurar os nossos consortes na nossa seita ou no nosso partido. Bibliografia BARTHES, R., (1980), La Chambre claire, Paris, l’Étoile/Seuil/Gallimard, republ. in Œuvres complètes, vol. V (1977-1980), Paris, Seuil, 2002, 785-890, ISBN 2-02-056730-X; trad. port. Manuela Torres, Lisboa, Edições 70, 1981.

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Sobre dois filmes: Tabu de Miguel Gomes e Deste lado da ressurreição de Joaquim Sapinho

Dois filmes portugueses destacavam-se, pela sua notável recepção internacional, no final de 2012: Tabu, a terceira longa-metragem de Miguel Gomes, e Deste lado da ressurreição, a quarta de Joaquim Sapinho. O top ten da revista Sight & Sound (resultante das escolhas de cerca de uma centena de críticos) colocou Tabu, de Miguel Gomes, na posição de segundo melhor filme de 2012, e a redacção dos Cahiers du Cinéma na de oitavo entre os dez melhores. Haden Guest, da Film Comment, classificou o filme de Sapinho como um dos dez melhores de 2011 e organizou, a partir dele, uma mostra de cinema português no Harvard Film Archive — mostra que dali seguiu para os Anthology Film Archives de Nova York. A crítica de cinema internacional mantinha assim, apesar da sua diversidade, um “partido português”, como costumava dizer Paulo Rocha. E isto quando o governo de Portugal suspendeu, na sua predatória política de austeridade, a totalidade do financiamento ao cinema, não contratualizando os subsídios atribuídos em 2011 e não abrindo concursos para novos projectos em 2012. Justificando a escolha dos Cahiers, Jean-Philippe Tessé, actual director-adjunto da publicação, escreveu que os filmes escolhidos são “exemplos de uma radicalidade que não se assemelha a nada” e que “não busca consensos” — declarações que Guest poderia igualmente subscrever, embora em apoio de uma lista diferente (1). Por seu turno, sobre o filme de Sapinho, escreveu Guest que é uma “fábula elegantemente minimalista sobre um surfista-monge em busca de fé e transcendência a partir do mundo material”. Também Sangue do meu sangue, de João Canijo, de 2011, fez um interessante percurso internacional (2). A viagem de Miguel Gomes a um paraíso perdido Miguel Gomes ironiza por ter ganho o prémio Alfred Bauer, de inovação, na Berlinale, com o que ele próprio considerou ser um filme old fashion, feito a preto e branco no antigo formato 4/3, em película da extinta Kodak, e metade do qual é quase mudo embora narrado por uma voice over muito literária, vinda de Les deux anglaises et le continent e de Jules et Jim de Truffaut, ou, mais remotamente, do Sunset Boulevard de Billy Wilder e do film noir dos anos 40-50. O cineasta diz que pretendeu, emudecendo metade de Tabu, homenagear o cinema sem som e especialmente o de Murnau (a quem foi buscar o título do seu último filme, de 1931: Tabu, A Story of the South Seas, bem como as designações das duas partes do filme, Paraíso e Paraíso Perdido, e o nome da sua protagonista, Aurora). Murnau escreveu o argumento de Tabu com Robert H. Flaherty, que filmou a sua cena de abertura mas não chegou a co-realizá-lo, como inicialmente previsto. O realizador nunca antes tinha estado em África, mas decidiu fazer um filme sobre o Lost Paradise dos retornados portugueses, muitos deles desenraizados, no princípio da segunda metade dos anos 70 do século XX, como boers ou pieds-noirs sem metrópole a que se sentissem verdadeiramente ligados. A image d’Épinal desse Lost Paradise, encontrou-a o realizador na periferia de Lisboa, num centro comercial do Cacém de Cima onde, aparentemente, retornados fizeram crescer, como uma instalação, a réplica camp de uma “selva” africana — e depois em Moçambique, onde

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só a co-produção brasileira, alemã e francesa lhe permitiu filmar: o financiamento português (privado) não chegava para tal aventura. Diz o cineasta que a ideia de Tabu lhe veio do que uma familiar lhe contou sobre uma vizinha idosa e temperamental que temia a empregada africana com quem vivia, e de, nas filmagens de Aquele querido mês de Agosto, ter conhecido elementos de uma banda que chegou a tocar na África “branca” dos anos 60. O filme abre com um prólogo filmado em 16mm e finamente humorizado, passado no tempo do mapa cor-de-rosa ou do ultimato britânico, onde um explorador, viúvo recente e inconsolável, versão livre de Livingstone ou de Capelo, Ivens ou Serpa Pinto, é perseguido pelo fantasma da esposa e acaba por se lhe juntar, entrando por um rio onde um herzoguiano crocodilo o devora, enquanto os seus batedores e carregadores africanos se põem a dançar, celebrando o seu passamento num inesperado ritual. Terá o réptil passado a viver possuído pelo espírito do morto, assombrando como um espectro as personagens das duas seguintes partes do filme? Na segunda parte de Tabu, o marido da jovem Aurora oferecer-lhe-á um crocodilo bebé que se tornará numa quase mascote e que invoca o “triste e melancólico” réptil do prólogo — embora o animal não desempenhe, em todo o filme, senão o vago papel de um MacGuffin hitchcockiano, que interliga, com as suas efémeras aparições no ecrã, as pontas dos três tempos da narrativa. Miguel Gomes crê que o cinema não pode competir com a realidade e que, ao tentar substituí-la, está sempre condenado a falhar. Mais lhe vale, por isso, tentar ser “honestamente irreal”. Sente-se próximo de Apichatpong Weerasethakul e do seu gosto por histórias que não procuram ser realistas nem naturalistas — essas são, para ele, a moeda do mainstream. Sendo Tabu um filme sobre a anamnese e o tempo, o seu crocodilo poderia ser um elefante, animal cuja esperança de vida é idêntica à do homem e a que tradicionalmente atribuímos uma memória invulgar, e que subsiste na África onde o cineasta filmou. Se escolheu o crocodilo, foi porque ele “já cá estava antes de nós [surgiu há 248 milhões de anos, sendo contemporâneo dos dinossauros] e provavelmente nos vai sobreviver”, e foi testemunha da ascensão e queda de todas as paixões humanas — uma argumentação que Apichatpong não desdenharia. A primeira parte do filme, Paraíso Perdido, filmada em 35 mm, passa-se na Lisboa pós-colonial “dos nossos dias”, no fim da vida de Aurora (Laura Soveral), que, idosa e sofrendo de progressiva demência senil, pânicos súbitos e imprevisíveis delírios, vive com Santa (Isabel Cardoso), uma austera empregada africana, e passa o tempo a socorrer-se junto da vizinha, Pilar (Teresa Madruga), católica, mais nova e que aparentemente se envolve em causas sociais. Pilar prepara um relatório para uma comissão “Justiça e Paz”, participa em manifestações e espera alojar uma jovem polaca da comunidade de Taizé, que afinal a engana para pernoitar entre amigos durante a estadia em Lisboa. Além de se preocupar cada vez mais com a idosa vizinha — o que leva Santa a sugerir-lhe que se ocupe preferivelmente da sua própria vida —, Pilar tenta não magoar um amigo pintor, cujos quadros só por delicadeza pendura nas paredes. Quanto a Aurora é, aqui, tão caprichosa e impositiva como uma antiga star, ainda desejosa de ter um mundo a seus pés (o mundo que lhe resta: o de Santa e Pilar). Ironia suplementar: quem paga o trabalho de Santa e as despesas e mesada da velha senhora é a sua filha ausente no Canadá — a mesma que nasceu décadas antes no Paraíso extinto — na segunda parte do filme. No hospital, à beira da morte, Aurora pede a Pilar que encontre um certo Gianluca Ventura (Henrique Espírito Santo), de quem, só depois o saberemos, se despediu para sempre há uma eternidade, mas que quer rever uma derradeira vez. Num último

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delírio, diz a Santa que vá a casa tratar do crocodilo — não vá ele comer “um dedo” (leia-se no “dedo” o que se quiser) ao seu velho ex-amante. Na mente de Aurora, o passado morto ressuscitou e invade, como num pesadelo, o presente que se esvai. Pilar encontra de facto o desconhecido, abandonado num lar do Cacém, mas ambos chegam tarde de mais ao hospital — Aurora morreu entretanto. Depois do funeral, de regresso ao lar de Gianluca, Pilar sugere que tomem um café — no centro comercial da “selva” camp — e o homem profere ali, falando de Aurora, a declaração que abre a segunda metade do filme: “Ela tinha uma fazenda em África, no sopé do monte Tabu”, idêntica à frase de abertura das memórias de Karen Blixen no Out of Africa: “I had a farm in Africa, at the foot of the Ngong Hills”. De um grande plano de Ventura “nos nossos dias” passamos a outro de Aurora na África portuguesa de 50 anos antes, em 1960, onde ficaremos até ao fim do filme, sem regresso à Lisboa actual ou às personagens sobrantes da primeira parte, apenas acompanhados pela voice over do narrador: do Paraíso Perdido passámos ao Paraíso ficcional de antes da irreparável perda, onde Aurora vive o seu episódio Karen Blixen/Meryl Streep, e Tabu transforma-se num filme sobre a memória e o tempo, seus pesadelos e fantasmas. É também um filme sobre coisas desaparecidas: a personagem e a África colonial.

Miguel Gomes diz que, na primeira parte do filme, quis abordar personagens banais do quotidiano, que noutro contexto ficcional seriam secundárias. Ou seja, transformou personagens “secundárias” (Aurora, Santa, Pilar e o seu pintor) em personagens “principais”. E, sem enjeitar as referências internacionais para que Tabu aponta, reinvindica a sua filiação num cinema português onde João César Monteiro e Pedro Costa desempenham, para si, o papel de figuras tutelares — que, pelo seu talento e apesar da sua liberdade, conseguiram manter o apoio do ICA e o financiamento ao cinema português. As relações das três mulheres entre a meia e a terceira idade têm, nesta primeira parte, um sabor vagamente almodovariano, e vivem mais da atmosfera e dos diálogos, na fronteira do patético, do que da acção. A câmara pouco se move, mas movem-se por vezes coisas inesperadas — por exemplo no longo plano com o fundo rotativo do casino, onde Aurora perdeu tudo e conta a Pilar o sonho com “macacos peludos” que ali a levou.

Aurora (Laura Soveral) no Paraíso Perdido de Tabu. Gianluca (Carloto Cotta) e Aurora (Ana Moreira), 50 anos antes, no Paraíso

A opção por contar a história em acédia e à rebours — começando pelo fim da vida de Aurora, que ora perde todo o dinheiro no casino, ora acusa a empregada (que frequenta aulas de alfabetização e lê o Robinson Crusoé) de a perseguir com macumbas, ora procura desesperadamente a ajuda da vizinha — dá à evocação africana que vai seguir-se o valor de um vasto flash back autónomo e sem retorno,

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onde ganha inteligibilidade o que veio a ser o destino e o devir dos dois ex-amantes. Numa das entrevistas que concedeu em torno do filme, e que aqui citamos de memória e não literalmente, diz o realizador:

“O que marca o filme é ser em duas partes, como outros meus. A segunda parte é um presente — o sonho estranho de Aurora na primeira é uma chamada, um apelo à ficção que chega na segunda. (...) A segunda é quase uma sessão de espiritismo: falar com o passado é quase como falar com mortos”.

Interrogado (por Dennis Lim, do New York Times) sobre porque recorre tanto a narrativas em duas partes, Miguel Gomes ilude a questão, respondendo que a parte mais importante é “a terceira, a que depende do ponto de vista do espectador sobre o filme, e não do realizador”: o cinema, diz ele, é uma arte “participativa”, e cada filme deve “conter um espaço de liberdade para o espectador”. A segunda metade do filme, Paraíso, filmada em 16 mm no Gurué zambeziano (norte de Moçambique, já perto do Malawi) e que por vezes evoca, no seu preto e branco, a imagem televisiva dos anos 60, ocupa-se dos amores e folias da Aurora de meio século antes (agora Ana Moreira). Ali se revela a ligação amorosa entre a então jovem senhora, in illo tempore rica herdeira de uma plantação de chá e que está grávida de seu marido, e o mesmo Gianluca (agora Carloto Cotta), in illo tempore anódino aventureiro e baterista de banda musical, e centra-se na fazenda próxima do imaginário monte Tabu. Quando, nessa segunda parte (num mudo tecnicamente pouco mudo: não há diálogos, mas há a voice over do narrador, sons da natureza e música), Miguel Gomes filma a vida insustentavelmente leve dos brancos no seu paraíso, põe-os a andar de bicicleta em estradões secundários como o triângulo amoroso de Jules et Jim. Quando filma a felicidade dos amantes clandestinos no seu misbehaviour, põe-os a caminhar, apressados, entre árvores num campo acidentado, como o casal derivante e a caminho da sua perda em Pierrot le fou, de Godard. Não são exactamente citações, são apropriações pessoais de uma ekphrasis inter-cinemática, e de um modo de fazer característico dos primeiros anos daquela nouvelle vague. A “homenagem” de Miguel Gomes não se limita, portanto, ao óbvio cinema mudo e a Murnau: é mediada por Truffaut e Godard, onde também encontrávamos os travellings do cineasta de Aurora e Nosferatu, e está próxima de parte do cinema de Oliveira (a digressão das imagens sob a narração em Singularidades de uma rapariga loura) ou do moderno primitivo de Straub-Huillet. E há mais referências dispersas: o bigode do Gianluca de 1960, que acompanha à bateria o “Be my Baby” (não o das Ronettes: o cover dos Ramones, de 1980), pode evocar o de Errol Flynn ou o de Gérard Philippe em Les grandes manœuvres, de René Clair, de 1955; a jovem Aurora vestida para caçar pode recordar a Katharine Hepburn da African Queen. Como diz o realizador:

“A África que filmei está mais próxima do Feiticeiro de Oz do que de qualquer realidade. (...) Não tentei refazer Murnau, nem Tarzan, e ainda menos dar uma lição de história, fazer um documentário ou um planfleto contra o colonislismo — em 2012 já não precisamos de explicar que ele talvez não fosse o regime mais justo do mundo”.

A África de Miguel Gomes é a que ele conhece desde o King Solomon’s Mines de Haggard ou o Mogambo de John Ford e dos filmes da Hollywood dos anos 50, uma África sucessivamente fabricada pelas ficcções cinematográficas, sem esquecer a Merryl Streep de 1985 e os filmezinhos domésticos em super-8 feitos por africanistas dos anos 60 (que filmavam os seus piqueniques, passeios, festas de aniversário). E a jovem Aurora é suposta ter sido conselheira técnica de um imaginário filme de

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Hollywood chamado It will never snow again over Kilimanjaro, um título que glosa The Snows of Kilimanjaro de Ernest Hemingway (a short story de 1938). Miguel Gomes gosta de se referir aos seus filmes como “comédias musicais” que deslizam e se deixam contaminar por outros géneros. Em Tabu, ele evita a abordagem política do colonialismo, vendo neste uma oportunidade estética para evocar, através de uma colecção de images d’Épinal, os comportamentos leves e irresponsáveis dos jovens colonos da época: para ele, o ventre de Aurora, grávida, que vai crescendo ao longo da segunda parte do filme, é “uma bomba relógio que acabará por explodir, como a situação política nas colónias portuguesas da época”. As ideias para os seus filmes vêm-lhe também de outros filmes, como explicou noutra entrevista (Christopher Bell, Indiewire 16.12.2012: «NYFF: Miguel Gomes On 'Tabu' And The Pleasures And Phantoms Of Cinema»):

“Tendo visto e digerido muitos filmes, eles nem sempre se mantêm claros na minha cabeça, estão vagamente misturados, como fantasmas. Tenho todas aquelas sensações de filmes que vi, uns recentes, outros antigos, e creio que há espaço em cada filme para lá deixar entrar esses fantasmas. Eles podem voltar a estar muito vivos, podem fazer parte da realidade (...). Deixemos os fantasmas de outros tempos entrar no filme que estamos a fazer”.

É também, segundo ele, o que se passa no Holly Motors do Leos Carax, por exemplo:

“Impressionou-me. Todos os fantasmas do cinema — a comédia musical, o thriller, o filme de terror, o filme político, entram na fita”.

E não faltaram a Tabu nem o imprevisto nem a “catástrofe” financeira que obriga um realizador a repensar integralmente parte do seu filme, a reduzir drasticamente o seu projecto. Como explicam Rui Poças (director de fotografia) e Vasco Pimentel (responsável pelo som) numa entrevista ao Libération:

“O Aurora (de Cristi Puiu, Roménia, 2010) obrigou o Miguel a mudar o nome do filme: foi por isso que ele passou a chamar-se Tabu. Filmámos três semanas em Lisboa e outras três em Moçambique [Miguel Gomes diz que foram nove em Lisboa e cinco em Moçambique], mas entre as duas partes voltou a haver crise de produção (já não foi a primeira): o produtor disse-nos que estava excluído ir filmar em África, não havia dinheiro, era preciso esperar um ano ou dois. O script moçambicano previa um casamento com cem figurantes, quantidade de casais a dançar, a noiva devia chegar sentada num elefante, devíamos filmar em dez décors diferentes uma grande quantidade de sequências. Reunimos, o Miguel deitou o argumento africano para o lixo e decidimos partir quase sem meios, sabendo que íamos ter de reinventar toda a história em profundidade — e foi o que fizemos, improvisámos”.

O próprio Miguel Gomes resume o que se passou, numa entrevista do mesmo jornal:

“É um sistema que funcionou com os meus dois primeiros filmes, embora não queira que o meu produtor se habitue a ele: escrevo um argumento para 300 actores, 200 macacos e três extra-terrestres, uma história passada em três continentes, e então o meu produtor diz-me que está bem, mas só se o filmarmos em Lisboa, no meu quarto e com dois actores, um dos quais sem uma perna. [Na parte africana de Tabu], por vezes toda a equipa técnica entrou em campo para criarmos aquela micro-sociedade colonial, e a câmara filmava sem ninguém atrás dela (...). Escrevíamos as cenas em post-its e eu por vezes não sabia o que ia fazer delas na montagem, mas foi preciso trabalhar assim por causa da falta de meios (...). Sabia que teria de reescrever a voz off na montagem, para estruturar a matéria filmada às escuras”.

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A aventura africana foi reinventada dia-a-dia por aquilo a que o realizador chama o seu “comité central”: ele próprio, a co-argumentista Mariana Ricardo, o assistente de realização Bruno Lourenço e o montador Telmo Churro. Nada disto, porém, retirou dimensão ao filme: no Le Monde, Jacques Mandelbaum escreveu que Tabu “é um filme de uma colossal ambição sobre a construção e o declínio do imaginário ocidental”, e Aureliano Tonet descreveu-o como um film-fleuve, comparando-o com O Rio de Jean Renoir, o filme preferido de Miguel Gomes.

Sobre a opção pelo preto e branco, lembra Rui Poças:

“A opção pelo preto e branco foi feita logo de início mas tornou-se hoje um luxo, há pouca escolha de película e em Portugal já nem há laboratórios que a revelem. O 16 mm moçambicano foi revelado num laboratório alemão que ia fechar dois meses depois. Mas usámos negativo verdadeiro nas filmagens e verdadeiro preto e branco para as cópias. Quanto ao formato 4/3 foi o formato original do cinema, é a chave da relação com o antigo mudo”.

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. .

O affaire Aurora-Ventura replica genericamente, na África portuguesa de vésperas do início das guerras coloniais, o caso da baronesa Karen von Blixen-Finecke com o caçador-aviador Denys Finch Hatton, tal como evocado no Out of Africa de Sydney Pollack, de 1985 (adaptado do livro homónimo de Blixen, publicado sob pseudónimo em 1937). Inspira-se nessa outra ligação amorosa mas deforma-a, dando-lhe uma dimensão mais portuguesa: Ventura não é aviador e não voa com Aurora sobre pink flamingos, nem os Maasai ou um seu equivalente integram o telão de fundo da segunda parte de Tabu. Em contrapartida, Aurora e Ventura guardam algo da inocência infantil que os faz verem desenhos de animais nas nuvens do seu paraíso, e ignoram ingenuamente que este está a dois passos de se tornar num inferno. Diz Miguel Gomes, referindo-se com amável displicência (característica do discurso que o realizador tem vindo a construir sobre a sua forma de trabalhar e os seus filmes) àquilo em que as memórias de Blixen se tornaram no cinema: “Manter uma colónia, nos anos 60, quando quase todos tinham dado a independência aos países africanos, é tão disfuncional [itálico nosso] como viver uma história de amor do género Robert Redford e Meryl Streep em África Minha, sendo que ela [Aurora] está grávida do marido e a barriga vai crescendo. Há essa cegueira de não lidar com as consequências, sejam elas um bebé ou a inevitabilidade política de dar a independência àqueles países”. Disfuncional? Os paraísos coloniais foram sempre territórios de todos os tipos de excessos, também passionais. A história de Karen Blixen, dinamarquesa africanista tornada produtora de café na África Oriental Britânica (depois Quénia) entre 1913 e 1931, passa-se igualmente num tempo em que a colónia era considerada, pelos seus residentes brancos, um paraíso ou a concretização de uma utopia feliz; e pouco há de “disfuncional” ou de misbehaviour na breve paixão entre a baronesa e o seu amante: ela e o caçador só assumem a sua relação depois do marido de Karen ter sido por ela afastado de casa. Diversamente, em Tabu, Aurora, produtora de chá e caçadora que quase nunca falha um tiro, e Ventura, que de si mesmo diz não ser mais que um “miserável bandido” — o que Finch Hatton nunca foi — trilham um igualmente breve caminho partilhado, mas marcado por “crimes de amor”. Os fantasmas de Anna Karenina e do conde Vronsky também pairam, ainda que a grande altitude, sobre o que se passa na África imaginada de Miguel Gomes, apesar de Aurora acabar resgatada pelo marido no Paraíso depois de, em catástrofe, ter assassinado um amigo

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do amante e de ter dado à luz durante a sua fuga com Ventura.

Carloto Cotta e Ana Moreira num cartaz de Tabu. Robert Redford e Meryl Streep em Out of Africa

Jean-Paul Belmondo e Anna Karina em Pierrot le Fou. Passeios de biclicleta em Jules et Jim

Recapitulando, para melhor se entender o exercício narrativo: a inversão diegética da primeira e segunda parte de Tabu, separadas por uma elipse de meio século, faz, aqui, a especificidade do relacionamento entre fabula (os acontecimentos tal como se passaram cronologicamente) e syuzeth (o modo como a narração deles se apropria). Eis a fabula: Um matrimónio convencional e sem história entre colonos ricos, na África portuguesa de 1960, é perturbado pela traição da mulher — disrupção do equilíbrio inicial — que, apesar de grávida, se apaixona por um aventureiro e vive com ele uma paixão secreta que a levará a tentar fugir com ele. A fuga falha porque a mulher mata um amigo comum do marido e do amante para proteger este último, e em seguida dá à luz no mato, entregando-se ao cuidado de nativas, enquanto o amante desiste da fuga e manda chamar o marido — reposição brutal do equilíbrio inicial. A mulher regressa ao leito nupcial com uma filha nos braços e o amante é salvo por um comunicado de um movimento de libertação que reclama para si a execução do morto — uma mentira salvífica, que os inocenta, quer à mulher quer a ele; mas a sua aventura correu mal e acaba. Os amantes põem termo à sua relação numa dolorosa troca de correspondência e não mais se vêem. Cinquenta anos depois, na Lisboa de 2010, sentindo-se morrer, a mulher tenta rever uma última vez o seu antigo amado para dele se despedir e tudo falha outra vez — ele não chega a tempo a esse último encontro. Mas o falhanço do encontro leva-o a invocar compulsivamente a ligação passada, quebrando o seu segredo e transformando-o em romance.

Mais do que fazer um melodrama agridoce a preto e branco (contando, uma vez mais, com o incontornável zelo de Rui Poças na fotografia), o realizador quis abordar com delicadeza e ironia, sublinhadas pelo ritornello do piano (as Variações pindéricas sobre a insensatez, de Joana Sá), a memória nostálgica e ficcionalizante de retornados que perderam o paraíso e com ele se perderam a si mesmos. Ao fazê-lo, idealizou uma África colonial que, se fosse a cores, seria rosa. Mas quis também que neste empreendimento o dispositivo cinematográfico fosse moderno, que a evocação fosse feita de fragmentos, que os voltefaces das personagens dispensassem a retórica explicativa e que os conteúdos mostrados fluíssem sem grande continuidade nem dramatização até ao seu final, feito de clichés emocionais — redimidos enquanto conteúdos e reabilitados enquanto formas. O que Tabu mostra e conta já foi cem

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vezes mostrado e contado, mas não com tão aguda consciência do que foram esses modos de mostrar e contar. Paraíso transforma o passado, através da narrativa de Gianluca, numa colecção de momentos que dão romance à memória de uma história de vida. Anacronismos e incongruências menores que retiram a Paraíso o rigor de filme de época — que Miguel Gomes não quis fazer — são parte dessa anamnese tardia e pessoal em que a memória amalgama e confunde, sem no entanto perder o seu sentido ou o seu norte. O filme poderia também chamar-se cliché ou nostalgia, numa homenagem ao que os clichés melancólicos sempre escondem mas podem, ainda, revelar.

A voz-off reescrita na montagem organiza as cenas improvisadas em África

Miguel Gomes percebeu os poderes do falso, e por isso os tiros de Tabu soam tanto a pólvora seca como os de À bout de souffle, do Godard de 1959. Ao mesmo tempo o filme esboça uma conversa fascinada com o maravilhamento do antigo cinema, restabelecendo um laço só aparentemente naïf com as suas lágrimas e suspiros e, ainda, reaprendendo com as suas modernidades de há mais de meio século. Que filme vê Pilar comovidamente, no início da primeira parte de Tabu? Decerto o prólogo, ou talvez a sua segunda parte — a invocação de um misbehaviour amoroso na África colonial de 1960, hipostasiada pela memória de Gianluca, parte de um mundo irrecuperável e do qual tudo o vento levou. Ou, como sugere o próprio Miguel Gomes, Paraíso é a cinematização do que Pilar e Santa “vêem” na narrativa de Gianluca, uma espécie de alucinação. Em qualquer dos casos, Tabu roça o procedimento da mise en abîme e da história dentro da história, que o realizador diz ter ido buscar à Xerazade das Mil e uma noites, sem nunca chegar a assumi-lo. Esta soma de escolhas, sobretudo a fluidez do encastramento narrativo das duas metades do filme e a consistência de ambas com a ironia do prólogo, revela um cineasta que cresceu depois de A cara que mereces e de Aquele querido mês de Agosto, e explica decerto a boa imprensa que o filme tão imediatamente granjeou, apoiando a sua boa recepção internacional: depois de premiado na Berlinale (também com o prémio da crítica), Tabu ganhou o Lady Harimaguada de Prata no Festival de Las Palmas e compartilhou (com Csak a szél de Bence Fliegauf, Hungria, e Io Sono Li, de Andrea Segre, Itália) o Prémio Lux de Cinema atribuído pelo Parlamento

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Europeu, conquistando assim o direito de projecção em salas e festivais dos 27 países membros da UE. Garantiu igualmente exibições nas duzentas salas do Télérama, na América latina e na Rússia. É raro que um filme português alcance em pouco tempo tão extensa exibição internacinal.

O espectador de Tabu não sente o caos que terão sido as filmagens em África, é convidado a entender o contágio entre as suas partes e talvez não estranhe a extensa voz off que estrutura a sua segunda metade. Na entrevista do Indiewire atrás citada, Miguel Gomes fez questão de sublinhar a sua indisciplina relativamente àquilo que ele considera serem as normas narrativas subsistentes no main stream:

“Agora há script doctors e isso confunde-me — os scripts estarão doentes e precisarão de ser medicados? (...) Julgo que o suposto modelo desses script doctors é o cinema clássico americano. Mas não sei que cinema viram eles e acho que lhes falta qualquer coisa. Pense-se no Rio Bravo do Howard Hawks: os maus estão presos e o seu gang vem libertá-los e talvez matar o John Wayne e o Dean Martin, que estão com medo e, para espantar o medo, se põem a cantar. OK, é um standard do género. Mas quando acabam, que fazem eles? Põem-se a cantar outra canção. Ora, issso é completamente disfuncional e anti-padrão (...). Porque é que o Hawks fez aquilo? Pelo prazer. Também eu montei a estrutura de Tabu deste modo pelo prazer, quer o meu, quer, espero, o dos espectadores — o prazer de ultrapassar regras até ao fim. Hoje em dia há uma sobre-simplificação, nem sempre houve estas estruturas tão rígidas em três actos, havia muitas nuances. Muitas vezes as coisas não foram assim tão lineares”.

A viagem de Joaquim Sapinho ao pietismo flagelante É outro e mais arriscado o jogo de Joaquim Sapinho em Deste lado da ressurreição. Nas palavras do realizador, que vem construindo uma doutrina cada vez mais pessoal e de propensão metafísica sobre o que devem ser o cinema e os seus filmes, trata-se aqui de filmar o invisível, o mergulho silencioso de cada um em si mesmo; para ele, o cinema que apenas filma “o que ali está”, diante da câmara, é tautológico e, à la limite, inútil. Diálogos intimistas e minimalistas, planos lentos, ausência da continuidade oferecida pelos contra-campos, grande proximidade entre a câmara e os corpos e rostos dos actores, marcam o filme de Sapinho, feito sobretudo para o “país do cinema” que o realizador conhece da sua agenda internacional e que pode tornar-se no seu Shangri-La, como sucedeu com Manoel de Oliveira e poderia ter sucedido com João César Monteiro. O cineasta diz ter restabelecido aqui um laço com o seu primeiro filme de escola, que também era um filme “de mar”, e que começou a trabalhar a ideia de Deste lado da ressurreição em 1998, não muito depois de Corte de cabelo (1995). O projecto, então intitulado A Regra, obteve financiamento estatal em 2000 mas as primeiras filmagens esperaram até 2007 (pelo meio meteram-se A Mulher polícia, de 2001, e a pós-produção de Diários da Bósnia, de 2005) e foram várias vezes interrompidas porque Sapinho não encontrava o seu protagonista nem estava satisfeito com as imagens da água. Retomaram em 2009. Em 2012, já com o filme nas salas, parecia querer continuar a filmá-lo, voltando ao Guincho com Pedro Sousa (o actor principal, ex-campeão de surf) para fazer mais planos que já não poderia usar, como se estivesse a acrescentar material para um redux, uma próxima ressurgência, o “brought back” de um projecto interminável.

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Que se passa em Deste lado da ressurreição? Um jovem surfista que se afastou da mãe e da irmã depois da morte do pai, também ele surfista, regressa às águas do Guincho após uma longa ausência, supostamente na Austrália — mas de facto após uma iniciação religiosa entre franciscanos do Convento dos Capuchos, na serra de Sintra, poucos quilómetros acima da praia. É na água que a conversão começa: como dizem agnosticamente os surfistas de antes da revelação, “Deus é o mar e a praia é a nossa Igreja”. Sapinho parece ter sido particularmente sensível a La pesanteur et la grâce, de Simone Weil (1947), livro resultante dos blocos de notas da autora e que ela nunca pretendeu editar, legando os manuscritos a um amigo, Gustave Thibon, que acabou por organizá-los para publicação póstuma (ela morrera em 1943). O que Weil ali escreve, em forma de aforismos, é uma experiência de revelação, de conversão. “É descendo que se sobe”, diz Sapinho, glosando-a genericamente e referindo-se aos sucessivos mergulhos do seu surfista na água verde do Guincho. O realizador tentou filmar um par de hierofanias (manifestações do divino) no sentido de Mircea Eliade (3): o dia-a-dia torna-se no locus de místicas revelações e objecto de um “realismo espiritual”, propiciando uma espécie de Close Encounters of Another Kind. Alguma crítica considerou implausível a ligação entre o surf e o convento, a passagem entre aquele mundo inicial e este mundo confessional. Num depoimento divulgado entre os materiais de apresentação do filme, o próprio realizador propôs uma narrativa simples dessa passagem — a narrativa de uma visão: no Guincho, percebeu que surfistas locais dormiam por vezes nas ruínas dos Capuchos e uma vez subiu a serra com eles, saltou o muro do convento e sentou-se no claustro, decidido a pernoitar ali. De súbito, acrescenta,

“...veio um (...) nevoeiro (...) que num segundo fez desaparecer o claustro e depois o próprio convento. Na confusão das portas e das janelas escondidas vi os monjes nas suas tarefas quotidianas (...), totalmente absorvidos numa oração interior (...). Eu sabia que o Pedro Sousa era um desses monjes. Foi assim que começou o Deste lado da ressurreição”.

Não será coincidência que o monje-surfista de Sapinho se chame Rafael, um dos mais icónicos arcanjos da tradição judaico-cristã, “rosto do nosso rosto” como sobre ele escreveu Marc Lorient, que voa de um mundo para o outro, como dele diz Milton em Lost Paradise; o seu nome significa “Deus cura” — foi Rafael que curou Tobias da cegueira e é ele o Angelus nostræ medicus salutis e o guia de todos os caminheiros que buscam a divina luz. Quis Sapinho que o arquetipal anjo da guarda, que no filme também evoca iconicamente uma imitação de Cristo, se re-convertesse à mortificação pietista do Monte da Lua do séc. XVI? Sim, quis. Lá iremos.

O filme é composto por dois blocos principais acentuadamente experimentais, a que se acrescenta um terceiro: o primeiro bloco é o do surf no Guincho, filmado na água com uma câmara bricolée. Todas as tonalidades do verde do mar local passam para o filme, por vezes gerando, a câmara na água, genuína pintura abstracta em movimento, onde o protagonista espera por uma onda ou se afunda, então rezando submerso ou quase morrendo afogado, talvez na esperança de ressuscitar ali mesmo. Sapinho obteve, no mar do Guincho, imagens que se aproximam da saturação de luz tarkovskiana, misturando figurativo e abstracto e apostando numa espécie de irridescência que ele refere como “esplendorosa”. A inscrição maior que o filme deixa no espectador é porventura a dessas imagens de Nuno Cardoso, o engenheiro-surfista responsável pelas filmagens com a câmara sub-aquática, que inventou para ela uma caixa de protecção e esteve todo o tempo na água com Pedro Sousa. E também, noutro registo, o som de Mário Dias e Nuno Carvalho, artefacto inteiramente pós-

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produzido, porque Sapinho diz ser “um cineasta do mudo que depende totalmente do som” e que gosta de tratar este último “como uma escultura” autónoma, concebida em paralelo com a banda imagem.

Pedro Sousa (Rafael) nas águas do Guincho. À direita: “Praying hands” de Albrecht Dürer

O segundo bloco é o da iniciação de Rafael à vida no convento, filmado exclusivamente à luz de velas de dois pavios nos estreitos espaços das celas, capela e corredores daquela arquitectura gélida e pobre de finais do séc. XVI, originalmente forrada a cortiça. Ao “cinema do corpo”, mais do que de personagens, acrescenta-se aqui o “sonambulismo acordado” do primeiro Philippe Garrel. O surfista em conversão passa meia hora de filme a flagelar-se na obscuridade de um quase-sepulcro e a formular a matricial disponibilidade do novo servo de Deus: “Senhor, aqui estou. Só te tenho a ti. Que queres que eu faça?” Sapinho reabriu imaginariamente, para os monjes que “vira” no nevoeiro, uma casa reclusiva destinada à sobrevivência pietista, à pobreza e à mortificação, coisas vindas do paradigma franciscano tardo-medieval, e que funcionou como convento entre 1560 e 1834 (data em que a revolução liberal o fechou). A opção por não usar luz artificial e por não escolher um suporte mais sensível, dá à cor e à textura da imagem um sabor pouco contrastado e que tende para o monocromático ou para a saturação, afastando-se do que foi, aqui, a matriz imagética do realizador — os chiaroscuros de Georges de La Tour, que também encontramos, com outras expressões, em Caravaggio ou em certos retratos de Rembrandt, e sobre os quais Vittorio Storaro tanto reflectiu em Scrivere con la luce (4). O modo como Sapinho filmou o mar e o convento repõe, por outro lado, a velha questão foto-cinematográfica do realismo e do artifício: o cinema cria as suas imagens usando o mundo como matéria-prima, como material plástico oferecido e disponível. O enquadramento, a luz, o movimento da câmara, a sua distância face ao objecto filmado, a montagem, ora privilegiam a “crença no mundo” (o cineasta quer ser fiel à imagem do mundo que o olhar humano conhece e trabalha em prol do realismo), ora a “crença na imagem” (o cineasta cria um mundo próprio de imagens que se sobrepõe ao que o olhar humano capta do mundo e trabalha em prol do artifício). Ao mesmo tempo, contrariando esta diferença, a indexicalidade da imagem foto-cinematográfica propõe sempre a indistinção dos dois registos, das duas intencões. Sapinho apoia-se nessa indexicalidade, em tempos pilar do realismo ontológico de Bazin, para defender que o seu modo de filmar revela o que o mundo “realmente é” — não uma imagem artefacta, mas o mundo real na sua essência e como nunca o tínhamos visto. O resultado desta tentativa é, porém, diferente nas imagens da água e nas do convento. Apesar de tentar filmar o mar e o convento como nunca os tínhamos visto, a diferença entre o primeiro e o segundo depende do artifício que a técnica usada permite fabricar. As imagens do surfista na água produzem um efeito de realidade próximo do realismo baziniano; as imagens do convento resultam

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muito mais artificiais, porque nem a luz nem a sensibilidade do suporte garantem o mesmo efeito de realidade.

Velas de dois pavios nos Capuchos de Sapinho

O Recém-nascido de Georges de La Tour (1640), auto-retrato de Rembrandt aos 22 anos (c. 1628) e estudo de Caravaggio para O beijo de Judas (c. 1602)

Duas das cenas apenas iluminadas a velas em Barry Lyndon de Stanley Kubrick, 1975 Já Stanley Kubrick prescindira de qualquer fonte de luz eléctrica para as cenas iluminadas a velas no seu Barry Lyndon de 1975 (por ele adaptado de um texto de Thackeray de 1844), porque queria filmar grandes interiores no genuíno ambiente do séc. XVIII. Para o fazer, pediu a Ed Di Giulio, da Cinema Products Corp., que adaptasse, a uma câmara Mitchell BNC, lentes de câmara fotográfica Planar, da Zeiss, de 50mm e com f / 0.7, especialmente feitas para as alunagens do programa Apolo da NASA (tratava-se de lentes muito rápidas e preparadas para muito baixas luminosidades). Di Giulio conseguiu satisfazer o pedido usando um adaptador e acrescentando-lhe um sistema de zoom que, com duas rotações, focava de infinito a 150 cm. É conhecida a preocupação de Kubrick: ele quis aproximar o seu filme da pintura de Antoine Watteau, Thomas Gainsborough e William Hogarth (veja-se o The Country Dance deste último, de 1745, cuja luz e ambiente Kubrick tentou transportar para o filme) e desejou animar numerosas cenas a partir de telas destes e de outros autores – não só no que respeita aos enquadramentos e à luz natural, mas também ao movimento, expressão corporal e atitudes das personagens, suas poses e roupas. O filme, hoje reconsiderado entre os melhores trabalhos do realizador, foi friamente

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recebido na época, mas valeu-lhe uma carta entusiástica de Akira Kurosawa — o japonês declarava-se rendido, precisamente, ao seu picturalismo.

O principal mérito de Sapinho, nestes dois blocos de Deste lado da ressurreição — o da água e o do convento — é o de ter tentado furar o espesso manto de imagens irrelevantes que nos rodeia e nos impede de ver o que, para além desse manto, também é visível. Figurar e dar forma a esse “invisível” é um esforço que conhecemos desde a Grécia clássica, e a que certa fileira de cineastas, na esteira de pintores e fotógrafos, se manteve fiel. Os universos da água e do convento terão nascido daquilo a que Italo Calvino chamou, ocupando-se de «Visibilidade» nas suas Lições Americanas (5), e inspirando-se em Dante e em Inácio de Loyola, “cinema mental”: imagens da “alta fantasia”, que precedem as oníricas ou as da percepção sensível e se instalam como “visões interiores”, inspirando programaticamente a morfogénese das que ficarão inscritas no suporte cinematográfico. Sapinho saberia que tinha de evitar a todo o custo as imagens do surf televisivo e a sua gramática elementar, bem como as figurações “artísticas” decorrentes dessa telegenia, sob pena de nada conseguir acrescentar a uma imagética do surf que, mal nasceu, se tornou bastante e convencional. E que não queria usar as “sugestões emotivas da arte sacra da Contra-Reforma” (de novo Calvino) no convento, quer por fidelidade à via capuchinha, quer porque as imagens dessa arte eram sempre uma via para remontar ao seu significado pré-estabelecido, em vez de serem imaginadas pelo fiel (como Loyola defendeu). Se, no convento, a sua inspiração foram os chiaroscuros da pintura renascentista, na água foi o desejo compulsivo de romper com o império da televisão.

O terceiro bloco, mais próximo do mundo “banal” embora muito filmado no registo de “cinema do corpo” que referimos, é o de Inês, irmã mais nova (Joana Barata) e da mãe (Sofia Grilo) do protagonista: vivem juntas num apartamento; a irmã está a concluir o ensino secundário, à beira de férias de verão, quando lhe dizem que Rafael voltou e está a viver numa caravana, entre ruínas, no Guincho (as ruínas fazem raccord com as do convento). Passa a procurá-lo seguindo para a praia na sua vespa vermelha, até que o encontra, mas ele pouco fala com ela — está a meio da sua viagem interior e não quer ou não sabe explicar-lhe o que se passa consigo: incomunicabilidade da conversão. Inês espera poder passar o verão na caravana e aprender surf com o irmão, sem saber que ele voltará a desaparecer para o convento e para a longa noite da sua nova entrega. Perto do fim, a mãe junta-se à filha na caravana mas Rafael evita-as, foge ao encontro. Depois, em casa, Inês ouve alguém tocar à porta. Terá sido ele. Mas ela não vai abrir e o filme acaba. Terá sido ele, ou a porta é ali um objecto que se anima, como em certo Kieslowski (o computador no primeiro filme do Decálogo)? Neste bloco, em casa da mãe e da irmã, cortinados e panos leves de cores fortes, encontrados por Patrícia Ameixial, invadem o ecrã e evocam irresistivelmente a pintura de Mark Rothko. Uma nota em hors-texte, se houvesse hors-texte: a escola de Inês é a carismática Padre António Vieira, de 1959/64, desenhada por Rui d’Athouguia (da escola do Porto, um dos mais emblemáticos arquitectos da Escola Moderna portuguesa, co-projectista do Bairro das Estacas e da sede da Gulbenkian), que Sapinho filmou, namorando a sua fotogenia, longe das intervenções da Parque Escolar. A quietude da escola, no filme, já não se lembra de que as suas rampas e corredores foram, no remoto “verão quente” de 1975 e ainda depois dele, palco de verdadeiras batalhas — as numerosas incursões de motoqueiros fascistas que, armados de correntes metálicas, dali queriam expulsar os estudantes de esquerda.

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O que surpreende talvez neste Sapinho — quem sabe se o surpreenderá também a ele — é a sintonia profunda entre o itinerário do seu Rafael e a jornada arquetipal do protagonista das mais clássicas estruturas narrativas: o filme inicia-se no mundo normal e protegido do surfista, as águas do Guincho, líquido ambiótico que acolhe as suas rotinas no que parece ser uma situação de equilibrio homeostático entre ele próprio e o seu habitus. Mas nessas águas está em curso uma disrupção fabulosa — a sua conversão: o locus amœnus do surfista vai tornar-se no lugar onde ocorre a hierofania de Eliade, mesmo se ela não é aqui inteiramente convincente. O surfista responde ao apelo ou à chamada para a aventura espiritual e, atravessando um limiar decisivo, entra como noviço no convento — uma genuína descida à gruta ou à cave onde vai enfrentar o antagonista (ele próprio) num combate decisivo (a mortificação e a auto-flagelação). Separou-se do seu mar e escolheu iniciar-se ou ser iniciado a uma crença que é um novo modo de vida: entre o Guincho e os Capuchos encontrou a sua estrada de Damasco. O convento é o mundo especial dessa iniciação, um mundo de trevas e de noite agostiniana. Ali, é apoiado por um mentor (o prior ou um irmão mais velho) que o acompanha como director de consciência e que lhe oferecerá o objecto salvífico (o seu livro de horas). Grande parte desse percurso é filmado em planos extáticos, sublinhando convencionalmente — refiro-me à convenção dos filmes sobre a transcendência — a cumplicidade necessária entre stasis e ascese. Concluída a iniciação num percurso em que o protagonista quase morre (simbolicamente), recebe o seu hábito conventual — o prémio — e torna-se possível que regresse à família, pelo menos de visita (será ele quem toca à porta da irmã e da mãe no fim do filme, um pouco como o filho pródigo), mas transfigurado pela prova e tornado mestre de dois mundos — o do surf e o do retiro pietista. Conclui-se o ciclo mais típico dos ritos de passagem de Van Gennep: separação, iniciação, regresso, mesmo se o regresso é incerto e ambíguo. A “jornada do herói” reencontra a matriz suméria do Gilgamesh e estamos, portanto e também, paredes meias com o universo de Propp — o do conto maravilhoso — e com o de Todorov: equilibrium, disrupção, reconhecimento da disrupção, regresso ou instauração de um novo equilibrium. É caso para dizer: chassez le vieux récit, il reviendra au galop. Mas é em Eliade que encontramos a melhor explicitação deste percurso: o conventinho é a cabana iniciática da floresta de que ele fala a propósito da fenomenologia da iniciação e dos ritos de passagem (Le sacré et le profane, 160-161), onde a morte simbólica do neófito implica uma regressão ao estado fetal, um regressus ad uterum, e precede a sua ressurreição como homem novo ou o seu segundo nascimento. Para que o guião iniciático se cumpra, tem de haver morte da condição profana do neófito e seu renascimento no mundo sagrado (loc. cit., 167). O mergulho nas águas precede a iniciação como um vasto prolegómeno: ainda segundo Eliade,

“a sacralidade das águas e a estrutura das cosmogonias e dos apocalipses aquáticos só são entendíveis à luz do simbolismo aquático, único sistema capaz de articular todas as revelações particulares das inúmeras hierofanias”.

Um “homem velho” morre por imersão nas águas, e dele nasce um novo ser regenerado (loc. cit., 114, 115), como escreveu João Crisóstomo sobre o baptismo:

“Quando mergulhamos a cabeça na água como num sepulcro, o homem velho é imerso, engolido por inteiro; ao sairmos da água, aparece o homem novo” (J. C., Homilia 25 sobre o evangelho de João, 2).

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É esse o itinerário de Rafael no filme de Sapinho: do baptismo nas águas do Guincho à iniciação neófita na cabana da floresta. Ainda nos termos de Eliade, extrapolando-os para aqui: o mar e o convento são, no filme de Sapinho, lugares “sagrados”; os espaços da mãe e da irmã pertencem ao mundo “profano”. Os conteúdos explícitos do filme não se preocupam excessivamente com a sequência de acções de Rafael, mas ela parece clara: da back story faz parte que terá aprendido surf com o pai, que este se separou da mãe e morreu novo não se sabe como, que o filho o procurou durante essa separação mas não foi ao seu funeral nem voltou a ver a mãe e a irmã não se sabe porquê, e que pouco depois terá procurado refúgio no convento (desaparecimento que a mãe preferiu ocultar com uma imaginária “ida para a Austrália”). Quando o filme começa, literalmente in media res, Rafael fez uma pausa no seu retiro iniciático e voltou ao Guincho, talvez hesitante sobre as suas opções; mas na água decide regressar ao mundo dos monjes — a conversão decisiva está em curso. A irmã procura-o e encontra-o, mas ele não lhe é sensível. Volta ao convento e o seu regresso é saudado pelo prior como se já ninguém ali o esperasse. A sua iniciação final será decerto irreversível: é improvável que o novo capuchinho continue a fazer a navette entre a praia e a reclusão monástica.

. . .

No seu La pesanteur et la grâce, Simone Weil escrevia que “a atenção, no seu estado mais elevado, é igual à oração: exige fé e amor” (edição Plon, 1988, 134). Sapinho diz que o seu filme pertence a um cinema “da espera” e “da atenção”: fora da água, onde forçosamente está sempre em movimento, a câmara move-se pouco, preferindo que as personagens a procurem ou diante dela manifestem, de muito perto e se possível, a sua interioridade; diz ele que o seu cinema é mais de “comunhão” do que de “comunicação”. O obstáculo é que, como bem sabemos, as máscaras e as personæ, por si sós, são quase sempre aparições opacas, que guardam para si o seu mistério, isto é: não são transparentes — nem mesmo quando filmadas na grande tradição retratista da pintura, como por vezes faz Pedro Costa, mas não é o caso aqui. Pedro Costa está mais próximo dos cineastas que aproveitam a stasis e o grande plano de rostos para os tornar objecto de veneração contemplativa, como faziam os pintores de ícones bizantinos. Mas é esse o problema do “cinema do corpo” e da extrema proximidade entre a câmara e o actor: tal proximidade não revela necessariamente, por si só, qualquer interioridade, nem garante o atingimento de qualquer sublime. Pelo contrário, pode apenas aproximar muito mais o olhar da câmara dessa opacidade. A questão tem a idade do cinema: para tentar a revelação da interioridade, essa proximidade carece de contexto dramático que a produza e de representação (de trabalho de actor) como no Faces de Cassavetes, no La passion de Jeanne d’Arc de Dreyer, no monólogo final de Françoise Lebrun em La maman et la putain de Jean Eustache, ou no “diálogo” de grandes planos entre a Anna Karina de Godard e a Falconetti de Dreyer em Vivre sa vie; é dificilmente alcançável por um modelo bressoniano. Bresson pedia aos seus modelos (ele não queria actores nos seus filmes) que não representassem nem exteriorizassem emoções ou sentimentos: por isso detestou o filme de Dreyer. Metade das Notes sur le cinématographe de Bresson é precisamente sobre a substituição de actores, oriundos do “terrível hábito” da representação teatral, por modelos a quem se pede que sejam apenas “involuntariamente expressivos”. Escreveu ele, nas suas Notes sur le cinématographe,

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de 1975, na sua escrita telegráfica e quase encriptada, entre cem outras notas sobre o mesmo tema:

“Um actor está no cinematógrafo como num país estrangeiro: não fala a mesma língua” (p. 13, ed. Gallimard, 1990). “Nada de actores (nem de direcção de actores). Nada de papéis (nem de estudo de papéis). Nada de mise en scène. Em vez disso, usar modelos encontrados na vida. Ser (modelos) em vez de parecer (actores) (p. 10). “Pôr sentimentos no rosto e nos gestos é a arte do actor, é teatro. Não pôr sentimentos no rosto nem nos gestos não é o cinematógrafo. Modelos expressivos involuntários (e não inexpressivos voluntários)” (p. 82).

Ficou para a história a sua brutal referência à representação da Falconetti de Dreyer:

“À falta de verdade, o público agarra-se ao falso. O modo expressionista como Mlle. Falconetti erguia os olhos para o céu, no filme de Dreyer, arrancava lágrimas” (p. 129). No Processo de Jeanne d’Arc tentei, sem teatro nem mascaradas, encontrar, com palavras históricas, uma verdade não-histórica” (p. 131).

Fico com a sensação de que as Notes sur le cinématographe (todas elas, e não apenas as sobre modelos e actores) são o livro de cabeceira de Sapinho. E de que o realizador usou Pedro Sousa e Joana Barata como modelos bressonianos, mas que aceitou trabalhar com a actriz Sofia Grilo, a única que “representa” em Deste lado da ressurreição. De facto, como Pedro Costa, Sapinho pertence a uma geração de cineastas em quem a marca de Bresson é indelével: para alcançarem a transparência de um rosto (a expressão de uma sua interioridade) sem produção de contexto dramático ou representação, precisam de regressar à contemplação extática oferecida durante séculos pela pintura retratista e pela imagem fixa. Mas, como escreveu Jacques Aumont (6) no seu Du visage au cinéma, de 1992, depois de recordar que a história do rosto e do grande plano no cinema é muito vasta, rica e plural, e conheceu todo o tipo de experiências e de doutrinas:

“No fundo, foi por ter querido espremer o rosto cada vez mais, como um velho limão já sem sumo — no sentido de expressão, de verdade, pouco importa — que [o cinema] acabou por mostrá-lo definitivamente vazio, vazio de interioridade, de expressão, de facialidade” (183). Mas, acrescentou Aumont a fechar o livro: “Tentado [agora] pela perda do rosto como por tudo o que lhe chega da pintura, o cinema não pode, porém, ignorar que essa perda acarretaria a sua. Ele tem, por isso, de continuar a produzir o rosto, mesmo se o extenuou” (203).

Não é por acaso que Sapinho também diz que o que lhe interessa é a transcendência (daí talvez o surpreendente mergulho no pietismo auto-flagelador do séc. XVI, com que Felipe II tanto empatizou quando tomou posse do reino de Portugal). Pelo nosso lado, e sem pretendermos usar aqui de grands mots, diremos que as experiências de Sapinho ganharão em tornar-se um dia imanentistas, no sentido em que Deleuze uma vez escreveu sobre um cinema da imanência. A questão é relevante porque existe uma diferença filosófica incontornável (que também interessa as práticas artísticas) entre transcendental e transcendente, diferença que não pode ser ignorada por um cineasta que tem dez mil livros em casa: O transcendente continua a propor que mantenhamos uma relação de essência com o que está acima de nós, num plano sobrenatural, e é por natureza eminentemente crente e religioso; é aquilo que procura o surfista-monje de Sapinho. Personagens que desejam a transcendência olham para cima e para o céu em busca de Deus como o

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arcanjo olhava, e transformam a sua experiência em rituais vividos como missas: transformam os seus corpos do dia-a-dia em corpos cerimoniais (a repetida auto-flagelação de Rafael). O transcendental, pelo contrário, agarra-se, desde Spinoza, à materialidade e à existência das coisas, ao ser dos objectos e dos corpos, a que ele chamava substância, estabelecendo um plano de imanência onde se projecta tudo o que antes julgávamos existir “acima” de nós. No céu, já não vê senão nuvens, por mais belas que sejam — e é bom que o sejam. Personagens que buscam a imanência olham em seu redor e procuram-se no mundo, nas coisas e nos outros: mundo, coisas e outros tornam-se, para eles, expressivos. Não é o que faz este surfista-monje — nem o seu criador. O filme religioso tende com frequência a esvaziar o dia-a-dia dos seus detalhes irrelevantes, concentrando-se na redenção do real, do sensual e do profano defendida por Kracauer e retomada por Schrader, como entre outros relembrou Hagen no seu «Transcendence in films: Some Thoughts» (7). Fazendo-o, tenta oferecer uma arena interior onde o combate do protagonista seja emocional e empático, um pathos onde ele se torna obstinado, auto-referencial e por vezes narcísico — um percurso efectuado na borderline entre a santidade e a crise psicótica. É um exercício em que também Sapinho se aplicou, evitando a dispersão e concentrando-se no design elementar do percurso de Rafael. Só o mundo exterior da mãe e da irmã do protagonista oferecem ao espectador um magro contraponto a este mergulho na jornada da conversão. Mas é um mundo contaminado pela morte do pai e o desaparecimento do filho e irmão: elas tendem a dormir juntas, acompanhando-se uma à outra na solidão, e Inês afasta-se dos seus amigos na escola antes de romper, também, com a mãe — por ela lhe ter mentido sobre a ausência de Rafael. A reflexão e a bibliografia sobre a transcendência no cinema são muito vastas, de matriz essencialmente cristã e reportam quase sempre ao desejo de mostrar, através de signos imagéticos e sonoros, uma realidade sobrenatural. Recorde-se por exemplo a extensa obra de Amédée Ayfre, contemporâneo de Bazin, sobretudo Dieu et le cinéma (1953) e Conversion aux images (1964), ou o livro que escreveu a meias com Henri Agel, Le cinéma et le sacré (1961), ou ainda o clássico The Transcendental Style in Film, de Paul Schrader (1972) e o mais recente Ils ont filmé l’invisible, de Pierre Prigent (2003), onde são analisados filmes de Axel, Bergman, Bresson, Dreyer, Tarkovski, Von Triers (8). Por outro lado, as principais comunicações sobre transcendência e cinema, apresentadas no Convegno Internazionale “Poetica e Cristianesimo” da Pontificia Università della Santa Croce (Roma, 2003), por exemplo, estão disponíveis on line e convergem em grande parte, quer quanto aos autores de referência quer quanto aos cineastas estudados, manifestando a crescente coerência interna da comunidade de investigadores e a estabilização do corpus analisado. Mas a discussão entre transcendência e imanência continua actual, por exemplo em «Immanence and transcendence in the genesis of form» de Manuel de Landa (9), e foi sobretudo relançada por Deleuze e Guattari e pelo seu rebatimento da transcendência no «plano de imanência» — rebatimento a que Sapinho é alheio enquanto cineasta. Schrader, por sua vez, introduziu a sua discussão com um velho aforismo Zen que mantém pertinência enquanto metáfora das passagens entre transcendência e imanência:

“Quando comecei a estudar o Zen, as montanhas eram montanhas; quando pensei ter entendido o Zen, as montanhas deixaram de ser montanhas; quando finalmente o entendi de facto, as montanhas voltaram a ser montanhas”.

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A especificidade da conversão do Rafael de Sapinho pede uma discussão compreensiva, que permita clarificar as intenções do realizador e a natureza da experiência proposta em Deste lado da ressurreição. Pelo modo como procura a transcendência, o filme presta-se a ser visto como o conto da imparável conversão de um alter-ego de Sapinho, não às ecuménicas Universiæ Ecclesiæ, à Ecclesia Dei ou a uma das heresisas, por vezes magníficas, que sempre viveram nas suas margens, mas à sua tão ibérica e localista versão auto-flageladora e pietista de finais do séc. XVI. Tal escolha não está isenta de evidentes riscos: a conversão de Rafael, surfista e quase arcanjo, não é uma conversão à Igreja corrente, é uma redução exótica e deliberada do protagonista a essa estirpe datada e regional da crença, tão anacrónica como seria o seu ingresso como noviço num béguinage medieval ou a sua transfiguração num cátaro do Languedoc. O pietismo auto-flagelador dos capuchinhos pode ser entendido como uma cama de Procusto masoquista e um ninho de auto-violência para a (ainda) contemporânea fome de divino. Porquê, então, usá-lo no filme? Porque foram os capuchinhos, e não outros, que habitaram os Capuchos, dirá talvez Sapinho, invocando a história do convento. Mas será apenas por isso? Melhor que nós, saberá o cineasta se merecia atravessar tão estreito e mordente limiar, porque o mais pesado não-dito do filme é provavelmente a culpa do surfista face ao pai morto, face à mãe e irmã ou face a outros — e a compulsão para a sua negra expiação. Junto de um mentor que se debate com um problema de recursos humanos (“Tantas almas por salvar, e nós tão poucos”), o novel flagelante nem morre nem ressuscita: quer expiar os seus pecados mas continua a viver mal com a vida e consigo mesmo, num mal de vivre sem esperança. A disciplina herdada dos flagelantes punia o pecado e a culpa próprios ou alheios e assentava numa vulgata dualista, segundo a qual para salvar a alma era indispensável mortificar o corpo: “dar-lhe uma lição”, como ainda se diz para justificar uma sova, ou tantas “lições” quantas as tidas por necessárias. Essa velha simplificação popular da tradição platónica e gnóstica, que a Igreja de Roma adoptou de bom grado, alimentou durante séculos a ideia de corpo sacrificial e terá derivado para numerosas formas de masoquismo associadas ao tradicional silêncio (e ao secretismo) monástico. Foi, decerto, muito longamente tolerada: na prática, nunca foi formalmente condenada pelo aparelho romano, porque representava a luta contra o hedonismo em geral e contra o homo eroticus em particular. E a carga de culpas que a Igreja de Roma transportava relançou a sua popularidade durante a Contra Reforma. Mas porque razão um jovem surfista do séc. XXI adoptaria para si o látego auto-punitivo do paradigma romano medieval? Afinal, no advento da Era Aquariana, ele bem poderia estar em processo de conversão budista, acrescentando-se a todos os Jaimal Yogis, Ross Anthony e Greg Gutierrez deste mundo, que se esforçam por relacionar Zen and Surfing (veja-se, do primeiro: Saltwater Buddha - a surfer’s quest to find Zen on the sea), ou tornando-se adepto da “dark green religion” de Bron Taylor, ou ainda fundando no Guincho uma congregação néo-cristã como a da californiana Huntington Beach. É esse o mistério de Deste lado da ressurreição, para o qual o filme não fornece qualquer chave, a não ser a referência histórica ao que o convento de facto foi. Porquê ter trocado o Zeitgeist néo-hippie pelo do pietismo do séc. XVI? Aparentemente, Sapinho quis evitar que a conversão do seu Rafael pudesse ser confundida com qualquer mania provinda da New Age, da Age of Aquarium cantada no Hair de 1967 ou de qualquer dos proto-misticismos seus sucedâneos, o que condenaria o surfista a

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encarnar uma simples variante de personagem de série televisiva. O antídoto contra esse risco de contágio terá sido o pietismo auto-mortificador, com selo de garantia de catolicidade (embora hoje semi-arrumado no museu de cera da Igreja) e com outro peso no historial das conversões: para grandes males, grandes remédios. A estupefacção e a repugnância diante do percurso de Rafael é, aliás, no filme, representada pela mãe do protagonista (que decerto aceitaria melhor uma sua deriva New Age, mais moderna): para ela, a conversão do filho ao pietismo capuchinho, que ela esconde da filha, é tão incompreensível como seria a sua adesão ao satanismo da Marquise de Montespan. Na mãe do surfista-monje, Sapinho antecipou o previsível desconforto de parte dos espectadores do filme: ela rejeita aquela conversão, desiste do filho e tenta impedir o contacto entre ele e a irmã, como se fosse preferível tudo fazer para apagar, do vivido de ambas, tal experiência. Talvez por isso Sapinho sustente que “aquela mãe e aquele filho nunca poderiam encontrar-se, pelo menos nesta vida e neste mundo”. Ora, a única forma de entender a opção do protagonista é pactuando com esta de modo compreensivo, como faria um para-médico diante de uma crise extrema: aceitando perpetuar a admissão de que os caminhos de Deus são insondáveis e levando a temporary suspension of desbelief de Coleridge ao velho topos onde a ficção nos pede que nos tornemos candidamente cegos a todo e qualquer anacronismo. Mas fazendo-o entramos no domínio do fantástico, subimos ao antigo degrau inconsistente onde se estabelece o sacrum commercium entre o divino e o humano, que sempre precisou de ser defendido por um conveniente Cerberus. Veja-se o que diz a Saudação às Virtudes de S. Francisco, ainda hoje adoptada pela Província Portuguesa dos Frades Menores Capuchinhos:

“A santa obediência confunde todos os desejos dos sentidos e da carne; traz o corpo mortificado na sujeição ao espírito e na obediência ao seu irmão, e faz o homem submisso a todos os homens deste mundo; e não só aos homens, mas ainda a todas as bestas e feras, para que possam fazer dele o que quiserem, na medida em que lá do Alto o Senhor o permitir”.

Não nos alongaremos de mais sobre os inefáveis monjes cuja aparição iluminou Sapinho no nevoeiro dos Capuchos. Mas vale a pena lembrar que, estando o conventinho em construção, Felipe II obteve de Roma o desmantelamento dos franciscanos conventuais, tão ricos em casas e bens que até para o rei eram “pestilentos”, e que os capuchinhos e arrábidos representaram, nesse início da Contra-Reforma de Trento, o regresso ao despojamento e à pobreza originais da ordem — a mesma pobreza e o mesmo despojamento que Sapinho quis ver nos surfistas do Guincho. Quanto à disciplina capuchinha, o Livro de doutrina espiritual de Francisco de Sousa Tavares, divulgador, em 1564, do recojimiento de Francisco de Osuna e do programa pietista, pugnava pelo retiro enclausurado e pela oração mental em substituição da oração verbal ou jaculatória, furtando-se à igreja carnal e ao seu espectáculo — enquanto o Santo Ofício acendia jubilatoriamente autos-de-fé nas praças públicas e eliminava um a um os alumbrados do Livre Espírito, entre outros, decerto menos especialistas em sobrevivência mas bem mais interessantes (10). Aqueles capuchinhos souberam evitar eficazmente o mundo onde viviam — um mundo onde se começava uma disputa teológica numa qualquer sacristia e se acabava denunciado num tribunal da Inquisição.

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Mais relevante para o que aqui nos ocupa é que, ao mesmo tempo que cultivava êxtases e visões interiores na senda do Camino de Perfección de Teresa d’Ávila (11) — transes que Bernini viria cem anos depois a pôr em mármore, dando-lhes expressão orgasmática — esse dócil pietismo, que nunca se afastou um milímetro do paradigma medieval da curia romana (12), desconfiava das imagens como via de acesso à divina luz, hesitando de novo, como sempre fizeram os que “não eram carne nem peixe”, entre iconofilia e iconoclastia. Nesta matéria, os capuchinos herdavam mais do Carlos Magno de 790 que, rejeitando as conclusões do concílio de Niceia, afirmava: “Não foi com pintura que Cristo nos salvou”. Isto apesar das imagens terem sido firmemente defendidas pelo influente Francisco de Holanda, em 1548, no seu De la pintura antigua, e em termos inequívocos:

“La Santa Madre Iglesia, alumbrada del Espíritu Sancto, grandemente favoresce y conserva la espiritual Pintura como perfecto libro de historia del passado y como memoria muy presente de lo que está por venir” (13).

Mais: nascia o conventinho quando Francisco de Monzón, no seu Norte de Ydiotas, de 1563, (14) propôs a representação figurada como ponto de partida para a exegese, invertendo o antigo papel das simples ilustrações e iluminuras. Também ele, como o prior de Sapinho, queria salvar multidões, mas reconhecia nas imagens o elixir que iria ajudá-lo nessa tarefa missionária. Tudo isto, “curiosidades” no mínimo preciosas para pintores e cineastas que acreditam que as imagens podem mudar o mundo, foi publicado em Lisboa pouco antes e pouco depois da aterragem dos capuchinhos no Monte da Lua, andando a lusa elite a hispanizar-se na órbita da Contra-Reforma e do Santo Ofício, e quando ainda ninguém previa a fantástica catástrofe de Alcácer Quibir, provocada uma dúzia de anos mais tarde por um adolescente insano a quem deram um reino — este reino, que abarrotava de bajuladores e pietistas.

. . .

Concluamos numa órbita mais próxima do filme: Haden Guest sublinha a proximidade entre Deste lado da ressureição e a “enigmática poética visual” de João Pedro Rodrigues (os dois fizeram-se realizadores na Escola de Cinema e colaboraram em mais de um projecto). Estamos de acordo: João Pedro Rodrigues e Joaquim Sapinho partilham uma “enigmática poética visual” e genericamente pertencem à mesma família de cineastas. Na sequência da estreia do filme no festival de Toronto (secção Visions, destinada aos filmes que “mais expandem as possibilidades poéticas do cinema”), o Harvard Film Archive montou, também pela mão de Guest, e já em 2012, a mostra “School of Reis” — evocando os filmes de António Reis e de Margarida Cordeiro e dos realizadores que, com maior ou menor razão, se reclamam dos ensinamentos e da influência do primeiro; entre eles Sapinho, João Pedro Rodrigues, Pedro Costa, Vítor Gonçalves, Manuela Viegas. Entre Toronto e os arredores de Boston, onde o Harvard Film Archive exibe as suas escolhas, e depois nos Anthology Film Archives de Nova York, exprimiu-se, assim, um novo interesse americano por um “renascimento do cinema português”, representado por parte da geração que fez os seus primeiros filmes nas décadas de 80 e 90. Se alguém que, como o autor destas linhas, viveu a Escola de Cinema (actual Departamento de Cinema da ESTC) nos últimos 25 ou mais anos, pode objectar algo a este amigável revisionismo que a transfigura em “School of Reis”, será meramente o facto de ela ter sido, não apenas a Escola de Reis — que, felizmente, também foi —

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mas, mais pluralmente, a Escola de Alberto Seixas Santos, Paulo Rocha, Fernando Lopes, Manuel Costa e Silva e tantos outros do “cinema novo” português, para apenas mencionar a geração dos fundadores. Desvalorizar a pluralidade desses contributos significa ignorar aquilo a que a crítica internacional chamou durante quatro décadas, com maior ou menor justeza, escola portuguesa e que, na sua diversidade, inclui a “School of Reis”, mas não se resume a ela. Em Tabu, Miguel Gomes (também ele antigo aluno da Escola de Cinema) quis prestar, aproximando-se do antigo cinema, uma homenagem à irrealidade cinematográfica entendida como paraíso, contando uma história de um tempo extinto que também glosa a extinção desse antigo cinema, e assim a sua nostalgia é dupla: tem como referentes o Lost Paradise da África colonial e o das cinematografias do tempo do mudo, sobretudo representadas por Murnau. Em Deste lado da ressurreição, Sapinho quis experimentar, na era do cinema digital, uma nova maneira, igualmente primitiva, de obter imagens que nos mostrem o mundo tornado invisível pelas imagens irrelevantes que nos cercam. A delicada nostalgia do mudo e o desejo de tornar visível o invisível ter-lhes-ão dado a notoriedade que alcançaram e o poder de re-cativar uma nova atenção da crítica internacional para o cinema que alguns portugueses fazem. São dois filmes diversamente melancólicos, que marcarão as carreiras dos seus realizadores como turning points pessoais, e mostrarão, no futuro, que não faltava vitalidade ao cinema português destes anos de chumbo em que vivemos. Significativas são, decerto, as melancolias que os animam: no caso de Tabu, a de certa África perdida e imaginária, como espaço cénico acentuadamente despolitizado de uma aventura passional; no caso de Deste lado da ressurreição, a orínica actualização de uma espiritualidade de época que parece homenagear uma portugalidade mística, e que o realizador apresenta como tão idiossincrática quanto resiliente. Por abordar ficam, de momento, as condições de produção que O Som e a Fúria (mais a Shellac Sud, Komplizen Film e Gullane Filmes), no primeiro caso, e a Rosa Filmes, no segundo, puderam oferecer aos dois realizadores para o desenvolvimento dos respectivos projectos, pelo menos no que respeita ao tempo de rodagem e, talvez, de pós-produção. Qual acabou por ser o financiamento efectivo de ambos os filmes? E como foi ele usado, sobretudo no segundo caso, já que é óbvio que entre a ideia inicial e a sua concretização foram passando, não meses, mas anos? Em tempo de crise generalizada como a que vivemos, a análise deste perfil habitualmente silenciado pela crítica e pelo sistema dos media pode ajudar jovens realizadores portugueses a pensar utilmente as suas normas e formas de trabalho. É um tema que abordámos numa obra colectiva, Novas & Velhas Tendências no Cinema Português Contemporâneo (15), mas a que vale a pena regressar filme a filme, actualizando a sua investigação aplicada. Em nota final e não tão à margem do que aqui discutimos como possa parecer: estes dois filmes de Miguel Gomes e Joaquim Sapinho devolvem-nos, em toda a sua dimensão, o problema da exibição cinematográfica no Portugal de hoje. Faltam salas de tipo “estúdio” onde obras como estas — mas não apenas portuguesas — possam ter uma exibição prolongada, porque o seu público se alimenta de informação inter-pessoal, cujos efeitos de contaminação e contágio requerem muito mais tempo do que o habitualmente dedicado a uma simples campanha de lançamento mediático. São filmes que terão mais público (embora sempre de nicho) se projectados numa rede limitada de salas médias que alimentem o cinema “de arte e ensaio” através de calendários de exibição menos ansiosos e apressados do que os estritamente

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“comerciais” (16). Numa palavra, filmes como estes precisam de mais tempo em sala para se encontrarem com os seus públicos. Uma tal rede de salas precisaria de cobrir Lisboa e Porto e as demais cidades onde existe ensino superior, e a sua programação poderia ou deveria prever numerosas reprises. A alternativa é a que João Botelho experimentou com o seu Filme do Desassossego, de 2010: andou meses com ele ao colo pelo país fora, na rede de cine-teatros reabilitados por Manuel Maria Carrilho, a apresentá-lo e a discuti-lo, e nessa saga descobriu que é possível multiplicar os públicos de um filme “difícil”, desde que o autor tenha disponibilidade para se dedicar a um tal exercício de maternage com a sua própria obra. A talhe de foice emergem duas passagens das Notes sur le cinématographe (17), de Bresson, a primeira das quais adquire hoje um valor profético, enquanto a segunda antecipa o que aqui dizemos sobre a inadequação das salas a filmes como os que aqui comentámos:

1. “O futuro do cinematógrafo pertence a uma raça nova de jovens solitários que filmarão gastando nos filmes até ao seu último cêntimo e sem concessões às rotinas materiais do ofício” (p. 124). 2. “Devíamos ter em Paris uma pequena sala muito bem equipada, que não passaria senão um ou dois filmes por ano” (p. 130).

Notas 1. É a seguinte a lista de Guest: 1 - The Turin Horse (Béla Tarr, Ágnes Hranitzky); 2 - Le Havre (Aki Kaurismäki); 3 - This Is Not a Film (Mojtaba Mirtahmasb, Jafar Panahi); 4 - Correspondence (Robert Fenz); 5 - Once Upon a Time in Anatolia (Nuri Bilge Ceylan); 6 - Cold Weather (Aaron Katz); 7 - We Need to Talk About Kevin (Lynne Ramsay); 8 - The Deep Blue Sea (Terence Davies); 9 - Deste lado da ressurreição (Joaquim Sapinho); 10 - That Summer (Un été brûlant, Philippe Garrel). E o top 10 (que lista onze filmes) da Sight & Sound: 1 - The Master (Paul Thomas Anderson); 2 - Tabu (Miguel Gomes); 3 - Amour (Michael Haneke); 4 - Holy Motors (Leos Carax); 5 - Beasts of the Southern Wild (Benh Zeitlin); 6 - Berberian Sound Studio (Peter Strickland); 7 - Moonrise Kingdom (Wes Anderson); 8 - Beyond the Hills (Christian Mungiu); 9 - Cosmopolis (Cronenberg); 10 - Once Upon a Time in Anatolia (Nuri Bilge Ceylan); 11 - This is Not A Film (Jafar Pahani and Mojtaba Mirtahmaseb). E finalmente a lista dos Cahiers: 1 - Holy Motors (Leos Carax); 2 - Cosmopolis (David Cronenberg); 3 - Twixt (Francis Ford Coppola); 4 - 4:44 Último Dia na Terra (Abel Ferrara); 5 - In Another Country (Hong Sang-Soo); 6 – Take Shelter (Jeff Nichols); 7 – Go go tales (Histórias de Cabaret, Abel Ferrara); 8 - Tabu (Miguel Gomes); 9 - Faust (Alexandre Sokurov); 10 - Keep The Lights On (Ira Sachs). Filmes portugueses integram, assim, o top ten dos Cahiers pelo quinto ano consecutivo: em 2011 O estranho caso de Angélica (Manoel de Oliveira) obteve a segunda posição; em 2010, Morrer como um homem (João Pedro Rodrigues) a sétima; em 2009, Singularidades de uma rapariga loura (Manoel de Oliveira) a quinta; e em 2008 Juventude em marcha (Pedro Costa) a segunda. 2. Sangue do meu sangue obteve o grande prémio do júri no festival de Miami, prémio da crítica internacional e menção especial do Otra Mirada (da TVE) em San Sebastian, prémio de melhor filme nos festivais de Pau (França) e Curitiba (Brasil), prémio New Vision do Crossing Europe em Linz (Áustria), e do público no festival internacional do cinema d’autor (D’A) de Barcelona, além de vários nacionais. O filme passou ainda nos festivais de Toronto (Canadá), Busan (Coreia), Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte (Brasil), Turim (Itália), Edimburgo (Escócia), Palm Springs e Austin (EUA), Ficunam (México), Vilnius (Lituânia), BAFICI Buenos Aires (Argentina), Istambul (Turquia) e da Cidade do Panamá. 3. ELIADE, Mircea, Le sacré et le profane, Paris, Gallimard, 1965. 4. STORARO, Vittorio, Scrivere con la luce, Milão, Mondadori / Electa – Academia dell’imagine, 2001-2003. (Prima Parte: La Luce,2001; Seconda Parte: I colori, 2002; Terza Parte: Gli Elementi, 2003). 5. CALVINO, Italo, Lezioni Americane — Sei proposte per il prossimo milennio, Milão, Garzanti, 1990. Tr. port. Seis propostas para o próximo milénio, Lisboa, Teorema, 5ª ed., 2006. 6. AUMONT, Jacques, Du visage au cinéma, Editions de l’Etoile / Cahiers du Cinéma, 1992.

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7. HAGEN, W. M., «Transcendence in Film: Some Thoughts», url: <http://home.snu.edu/dept/swccl/Hagen.pdf>, consultada em Dezembro de 2012. 8. Ver também LINDWAL, Terry, «Religion and Film», in Communication Research Trends, Centre for the Study of Communication and Culture, vol. 23 (2004) nº 4, url: <http://cscc.scu.edu/trends/v23/v23_4.pdf>, consultada em Dezembro de 2012. 9. DE LANDA, Manuel, «Immanence and Transcendence in the Genesis of Form», 1997, url: <http://pt.scribd.com/doc/20258586/DeLanda-Immanence-and-Transcendence-in-the-Genisis-of-Form>, consultada em Dezembro de 2012. 10. Sobre os Alumbrados portugueses, defendeu António Vítor Ribeiro em 2009, na Universidade de Coimbra, uma reveladora dissertação de doutoramento intitulada O Auto dos Místicos — Alumbrados, profecias, aparições e inquisidores (séculos XVI-XVIII), disponível na url: <https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/10246/3/o%20auto%20dos%20m%C3%ADsticos.pdf>, consultada em Dezembro de 2012. Embora menos percutantes do que os Alumbrados da Extremadura espanhola, os de Portugal não deixaram de suscitar o empenho do Santo Ofício, enredados na teia místico-pietista e acusados de feitiçaria, falsas profecias e falsas visões, bem como de burla e amoralidade. 11. ÁVILA, Stª. Teresa d’, Camino de Perfección (Pasión Mística), ed. Pío Baroja, Ulan Press, 2011. 12. Sobre o “paradigma medieval da igreja romana”, cf. KÜNG, Hans, O Cristianismo, Essência e História, Lisboa, Círculo de Leitores, 2002. 13. HOLANDA, Francisco de, Da Pintura Antiga (1548), introdução, notas e comentário de José da Felicidade Alves, Lisboa, 1984; Diálogos em Roma (1548), introdução e notas de José da Felicidade Alves, Lisboa, 1984. 14. MONZÓN, Francisco de, Norte de Ydiotas (1563), Biblioteca Nacional Digital, url: <http://purl.pt/23144/2>, consultada em Dezembro de 2012. 15. MENDES, J.M. (coord.) et al, Novas & Velhas Tendências no Cinema Português Contemporâneo, Lisboa, Gradiva, col. Artes e Media, 2013. 16. Tabu estreou em Portugal a 5 Abril de 2012 e fez 21.169 espectadores nas salas nacionais, obtendo uma receita bruta de € 106.682,51 e atingindo a sétima posição no ranking das 29 longas-metragens portuguesas estreadas ao longo do ano. 60% do financiamento de Tabu foi português, mas de origem privada — o ICA apenas apoiou o filme. Deste lado da Ressurreição estreou a 15 de Novembro e tinha feito 2.199 espectadores até 19 de Dezembro (últimos dados de box office disponíveis à data da redacção do presente texto), com uma receita bruta de € 11.736,70, ficando em décimo sétimo lugar no mesmo ranking. Os cinco filmes portugueses mais vistos em sala, em 2012, foram Balas & Bolinhos – O Último Capítulo, de Luís Ismael (255.477 espectadores, € 1.294.670,85 de receitas); Morangos com Açucar — O Filme, de Hugo de Sousa (236.856 espectadores, € 1.225.910,81 de receitas); Aristides de Sousa Mendes — O Cônsul de Bordéus, de Francisco Manso e João Correa (50.086 espectadores, € 251.446,85 de receitas); Linhas de Wellington, de Valeria Sarmiento (49.330 espectadores, € 227.522,86 de receitas); e Florbela, de Vicente Alves do Ó (40.875 espectadores, € 175.964,41 de receitas). No mesmo ano, O Gebo e a Sombra, de Manoel de Oliveira, fez 5.983 espectadores e € 29.782,42 de receitas; e Em Câmara Lenta, de Fernando Lopes, 1.167 espectadores e € 4.679,25 de receitas. Em 2011 e 2010, Sangue do Meu Sangue, de João Canijo, tinha feito 21.168 espectadores; o documentário José e Pilar, de Miguel Gonçalves Mendes, 11.579; o Filme do Desassossego, de João Botelho, 11.551; O Estranho Caso de Angélica, de Manoel de Oliveira, 2.724; e Cisne, de Teresa Villaverde, 2.340. Nada de particularmente novo nas salas portuguesas, portanto. 17. BRESSON, Robert, Notes sur le cinématographe, Paris, Gallimard, 1975, 1990.

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Uma entrevista de Maio de 1985

João Maria Mendes, António Reis, Margarida Cordeiro e Jorge Leitão Ramos durante a entrevista de Maio de 1985. Foto de José Tavares (Diário de Lisboa).

António Reis e Margarida Cordeiro — Viagem a uma paixão

Por tanto se voltar hoje a falar de António Reis e da sua influência em cineastas que foram seus alunos na Escola de Cinema, numa altura em que se sente a falta gritante do restauro e edição em dvd dos filmes que fez com Margarida Cordeiro, reeditamos a seguir a entrevista com os dois cineastas publicada na edição de 14 de Maio de 1985 do Diário de Lisboa, pp. 6-7. Foram seus autores João Maria Mendes (na altura chefe de Redacção do jornal) e Jorge Leitão Ramos (então crítico de Cinema do mesmo jornal). O primeiro parágrafo resume as sínteses de primeira página e de abertura da entrevista. A partir do segundo parágrafo, a transcrição é fiel ao texto então publicado, salvo pela correcção de ocasionais gralhas e de pontuação. Esta entrevista junta-se, assim, à colecção de materiais já actualmente reunidos pelos autores do notável blog <antonioreis.blogspot.com>.

Jaime, Trás-os-Montes e agora, estreado com bastante atraso em Portugal, Ana: uma cinematografia poderosíssima e profundamente portuguesa, que faz emergir um casal de cineastas tomado de um amor louco pelo cinema e pelo mundo que filma, pelas atmosferas que cria. António Reis e Margarida Cordeiro, geralmente pouco propensos a conceder entrevistas, são os nossos convidados de hoje à Mesa DL. Este é o relato de uma conversa sobre uma obsessão: um casal de cineastas explica a um jornalista e a um crítico de cinema que não pode deixar de fazer o que faz, e porque se tornou radical na defesa do seu próprio trabalho.

. . . Afastado o gravador de som para que ele não condicionasse qualquer movimento da conversa, reduzida deliberadamente a tomada de notas a meia dúzia de palavras dispersas e meramente alusivas, o texto desta entrevista é ordenado apenas pelas associações da memória. Extractos do diálogo regressam, chamando uns pelos outros

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dada a sua cumplicidade, para serem escritos. Assim foi feita esta entrevista com António Reis e Margarida Cordeiro, realizadores de cinema, autores de Ana, agora em exibição num auditório do Forum das Picoas, e de Trás-os-Montes. Ana será um filme destinado a marcar a cinematografia contemporânea, mas não nos referimos, aqui, a ele, numa perspectiva crítica (esse trabalho já foi feito nestas páginas: v. a crítica de Jorge Leitão Ramos no DL de 9 de Maio). O que começa por emergir da memória dessa conversa de três horas com os seus autores é o obstinado rigor da preparação e realização do filme: planos, sequências, enquadramentos previstos com meses, anos por vezes, de antecedência em relação às filmagens. Dias esperando, com toda a equipa suspensa algures no Nordeste transmontano, determinada luz sobre determinada paisagem. Lojas devassadas em busca de certa seda porque ela quebra e cai melhor, perante a câmara, do que o cetim. Folhas secas de castanheiro ou uma arca de micas preciosamente conservadas e depois transportadas até ao preciso terreno, ao exacto ângulo, aos únicos poucos segundos em que deviam entrar em cena. Articulações cromáticas estudadas até à exaustão, ruídos naturais registados e trabalhados como complexas sinfonias pelo prazer de criar, primeiro, mas também na esperança do espectador ideal capaz de ser cúmplice desse trabalho, adivinhando-o e fruindo-o até à derradeira minúcia. Haverá — crêem os dois cineastas — quem pela vibração, intensidade e contornos do som distinguirá no filme os ventos lunares, puras deslocações das massas de ar no espaço, daqueles outros que arrancam a vegetação à terra. Haverá quem distinga os insectos nocturnos dos diurnos... — Joris Ivens — evoca António Reis — ia ser operado. Era uma operação de vida ou de morte, ele não sabia se iria acordar da anestesia. Pois ele disse-nos, no hospital, que adormecera com as imagens de Ana na memória. Indícios de fruição individual do filme, trazidos por António Reis: — O filme passou quatro vezes numa sala de Berlim, a última das quais a pedido de jovens. A juventude alemã é muito especial, e a de Berlim talvez mais ainda, sem dúvida devido às dilacerações complexíssimas que vêm desde a guerra. Ora, um desses jovens levantou-se depois da projecção, virou-se para mim e saiu-lhe isto: “Eu só queria dizer-lhe... Obrigado!”. O que o acontecimento tem de especial é que na sala, apinhada, rebentou uma sala de palmas em corroboração do que ele fez. Outro jovem veio procurar-me a sós, deu-me um beijo e agradeceu-me: “Eu sou grego”. “Porque eu sou grego”, ouviu o realizador. E esclarece: — Estas posições individuais de espectadores que se transformam em comunidade, em multidão, são para nós infinitamente mais importantes do que o comentário ou a crítica institucionais. O destinatário da obra é sem dúvida incerto e os seus autores lançam, com ela, uma rede de que se ignora o que vai capturar. Neste caso, entre as emoções privadas que António Reis e Margarida Cordeiro recordam — como as que citamos — irromperam também entusiasmos como o de Marguerite Duras, e interesses de produtores estrangeiros pelo seu trabalho, mal reconhecido entre nós. — Nós não concorreremos mais aos planos de produção do IPC... É impossível aceitarmos as suas imposições: pedem-nos cem páginas de script, quando nós só poderíamos apresentar-lhes página e meia. Não trabalhamos assim. (Acrescenta Margarida Cordeiro, explicando-se: Eu não sei mentir”. E António Reis: “É verdade.

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Não sabe”). — Além disso — continua ele — ao abrir uma excepção às suas próprias regras para o Manoel de Oliveira, o IPC condenou-se moralmente a transformar a excepção em regra e, na ausência da explicitação de critérios, aliás sempre discutíveis, o pior dos cineastas pode agora abordá-lo requerendo a excepcionalidade igualmente para si... O esplendor da obra O casal realizador de Ana está envolvido numa guerra sem quartel em torno das condições de afirmação da obra. Por um lado, eles rejeitam a passagem do filme no circuito comercial, como já fizeram com Trás-os-Montes, porque é diminuto o número de salas a que atribuem suficientes condições de projecção e de som. A esta posição radical responde histrionicamente a Comissão oficialmente criada para avaliar as obras em exibição, negando a Ana a classificação de “filme de qualidade”. Por outro lado, ao recusarem as normas de recurso ao apoio do IPC, António Reis e Margarida Cordeiro auto-excluem-se do financiamento de Estado, mas, reconhecido noutros países o valor do seu cinema, este torna-se objecto do entusiasmo de financiadores estrangeiros. Velhas histórias, estas de sucessivas formas de exílio no seu próprio país. A posição radical que assumiram nesta guerra (um gesto do dedo ao braço explica: “Se concedemos um mínimo que seja, tomam-nos o máximo que podem”), enraíza-se num respeito total pelo fulgor de cada obra de arte. Assim, estão contra a corrente que hoje domina a circulação dos objectos culturais. Por exemplo, são inteiramente contra a passagem de cinema na televisão: — Não é possível ver-se o Couraçado Potemkine na televisão e dizer-se que se viu o Couraçado Potemkine. A mudança de meio não convém a nenhuma obra de arte. Ver um original de Piero de la Francesca não é a mesma coisa que ver a sua reprodução num livro de bolso. Estar na Capela Sistina não é a mesma coisa que ver fotografias dela num álbum. Os frisos do Parténon num museu de Londres não são os mesmos que na Acrópole a que foram arrancados, falta-lhes a luz de Atenas e o contexto arquitectónico a que pertencem. No livro de bolso, no álbum, na televisão, a imagem é meramente alusiva ao original, ilustrativa do original. Tomar uma coisa pela outra é típico de quem pensa que se pode fazer a audição de uma sinfonia numa sala sem quaisquer condições acústicas, e no caso de isto ser defendido por cineastas é sintoma da sua inteira incapacidade para lidar com o que o cinema é, e permite fazer. A perda é gigantesca em ímpeto da obra, em fulgor, em riqueza, em quantidade de informação passada. Há que ser inteiramente radical nesta matéria, em defesa da originalidade e da presença irredutível de cada obra de arte. Até certos poemas da idade clássica deixam de ser os mesmos quando os imprimimos em corpos e tipos tipográficos totalmente diversos daqueles a que se destinavam quando foram escritos, ou se os editarmos num papel “não-te-rales”... Perguntamos-lhes se não é, então, possível fazer filmes para a televisão. — É sem dúvida possível, mas tratar-se-á então de filmes feitos especificamente para esses meios técnicos, com um conhecimento rigoroso da sua linguagem, com outra morfologia e outra sintaxe. Mudar de meio implica mudar de gramática. Serão, em todo o caso, filmes completamente diferentes daqueles que actualmente fazemos. No máximo, a passagem, na televisão, de cinema que foi feito para salas, pode servir de “introdução” a esse cinema, mas é sempre uma introdução alusiva, ilustrativa do que são, realmente, esses filmes quando passados no meio para que foram feitos.

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Compulsão Queremos saber o que significa para eles fazer cinema e de súbito as tonalidades de base da conversa acentuam-se velocíssimas, a paisagem torna-se obsessional, estamos em território sagrado e mutante. António Reis torna-se mais tumultuoso, mais empático, o seu débito exprime uma grande vontade de comunicação no limite do envolvimento emocional. Margarida Cordeiro torna mais activas as defesas, passa a desconfiar mais das palavras, pede compreensão para o que é indizível através delas, torna-se claro que são fundas as razões porque não costuma dar entrevistas. — Fazer cinema é para nós um objecto de desejo e o que nos move é compulsivo, não podemos fazer outra coisa, é impossível fugirmos-lhe, e neste sentido há nisto uma espécie de fatalidade. Filmar é em parte uma regência de acasos, mas é sobretudo uma regência de núcleos emocionais. Nós não filmamos senão o que amamos profundamente. De resto, que dizer sobre o que é o cinema? Tem-se a sensação de que está tudo dito. Para mim (é agora Margarida Cordeiro que fala), a arte mais perfeita, mais complexa, é a música. O cinema ainda não é isso, mas tende para isso... Se eu fosse Deus tornava-me música, ou desejava regressar como música numa próxima encarnação. “Por outro lado o cinema não é pintura, não é escultura, não é música, não é arquitectura, mas resulta de um agenciamento específico das potencialidades de todas as artes, resulta, para nós, da intimidade com elas e também, evidentemente, das novas sinergias, do olhar e da escuta que ele torna possíveis... O cinema tem sido sempre um olhar e uma escuta, a sua história é a história de determinados olhares e de determinadas escutas. Não é literalmente, claro: há filmes mudos em que o som parece irromper, explodir. Eles estão densamente povoados de sons... “O Cinema que fazemos é também uma experiência radicalmente individual; construímo-lo, sem dúvida, a partir da nossa viagem interior. Ele destina-se à comunidade, sim, mas nós cremos que se faz tanto mais para a comunidade quanto mais se é radicalmente individual — é esse o percurso próprio da arte. “Por tudo isso, nós sobretudo gerimos intensidades, definimo-nos como cúmplices e íntimos nessa actividade compulsiva, é como se partilhássemos um segredo poderosíssimo... “Perguntam-nos se o real que filmamos é assim, se aquele Trás-os-Montes lá está como o filmámos. Está, sim... Existe e está lá, mas ele é filtrado por nós — e qual a arte que não filtra o real? Qual a representação que não filtra o representado? Quando a Comissão de Qualidade diz que o nosso cinema não é naturalista nem outra coisa, quando tropeça em géneros e não consegue classificá-lo, está de facto a tropeçar no nosso olhar e na nossa escuta*.

Margarida Cordeiro é psiquiatra. Perguntamos-lhe se esse olhar e essa escuta estão marcados pela psiquiatria, pela necessidade de compreender o normal a partir do patológico, visto que o segundo expõe tantas vezes as componentes do primeiro. Não há qualquer hesitação na resposta, a que se junta António Reis, como se para eles essa questão fosse um ponto de partida e também um ponto de chegada: —Justamente, para nós não existe qualquer fronteira entre o normal e o patológico. É totalmente impossível estabelecer a partilha entre os dois campos.

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António Reis e Margarida Cordeiro durante a entrevista. Fotos José Tavares (Diário de Lisboa)

Intimismo Intermezzo: apesar da carga onírica do cinema de António Reis e Margarida Cordeiro, e da própria conversa que com eles mantivemos, numa entrevista como esta acontece o contrário do que sucede quando passamos a escrito um sonho: os seus conteúdos, em vez de se condensarem, ocupando apenas uma mão-cheia de linhas, desdobram-se e ampliam o texto. Apressemo-nos, portanto; façamos com que apenas nos acenem de longe, como num galope apressado, regiões inteiras do diálogo. Sobre o que compõe o real: “tudo”, dizem eles. Sobre a não necessidade de uma história nos filmes: Margarida Cordeiro insiste em que o cinema não tem de ser narrativo, embora ela própria pudesse desejar fazer um filme com base num romance, por exemplo Madame Bovary. Sobre a inexistência de um cinema urbano em Portugal: António Reis diz-nos que não existe um cinema que nos fale das cidades enquanto monumentos, história, factos de civilização, e revela-nos que poderia desejar fazer um filme sobre o Porto. Em ambos os casos, porém, o olhar e a escuta seriam os do seu cinema: não-narrativos, não-sociológicos... Ana foi feito ao longo de seis anos. Eles percorreram 80 mil quilómetros para o levarem a cabo. O filme custou cerca de 15 mil contos (metade do preço corrente de uma produção equivalente, quando o terminaram). Realizadores, argumentistas, autores dos diálogos e de parte dos outros textos do filme, figurinistas, cenaristas, António Reis e Margarida Cordeiro — sobretudo ele — mergulharam a fundo nas tarefas de produção, porque isso faz parte da sua aposta, mas também dado o reduzido orçamento com que trabalharam. Escolheram de novo a região onde tinham feito o filme anterior, Trás-os-Montes, de onde Margarida Cordeiro é natural. O actor principal de Ana é a própria mãe da cineasta. A este respeito vale a pena apontar que eles representam uma simbiose que passou a ser característica de algumas personalidades da cultura contemporânea, simbiose que é ao mesmo tempo uma maneira de estar na vida sem que isso signifique um “estilo” ou uma “escola”: trata-se da vontade, feita actos, de não separarem os seus investimentos e envolvimentos familiares dos restantes investimentos que os ocupam. Eles falam dos seus filmes como da mãe Ana ou da filha de ambos, cujo acompanhamento, nos primeiros anos, chamaram exclusivamente a si próprios, longe de infantários e de outros circuitos de enquadramento infantil. Fazem questão de sublinhar que em todas estas opções o envolvimento e a responsabilidade de ambos é extrema, e marcada pela mesma paixão. Filhos, filmes, relações com outrem, com o passado, com uma região...

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Coisas e entes queridos foram, assim, invocados nesta conversa, tanto quanto os filmes e o cinema. É uma atitude intimista e talvez por isso, por esse intimismo, eles supõem que os acusam de desinteresse pela “política”, pelas causas genéricas, pelas opções e problemas actuais do nosso viver colectivo. António Reis acabaria por responder, a este respeito, a uma pergunta que, na verdade, não fizemos: — Passa-se connosco exactamente o inverso disso: nós somos pessoas profundamente preocupadas com o País, com o que lhe está a acontecer. É nesse sentido que deve ler-se a nossa paixão e preocupação por Trás-os-Montes, alvo de todas as destruições e de todo o desprezo possíveis, mas por onde passou o que de melhor a Europa teve — o que continua a perceber-se, de modo subterrâneo, nos seus povos e lugares. Mas a calamitosa destruição e o desprezo a que é votada Trás-os-Montes levarão a coisas como esta: os nossos políticos actuais ainda virão a precisar de filmes como Ana para poderem saber em nome de que país, de que passado, de que povos falam. O cineasta tinha-nos dito, sobre as paixões desencadeadas pelo filme entre jovens, em Berlim, que Ana lhes dava o que eles nunca tiveram — o peso imponente, e a aparição tímida, de uma riqueza cultural e tecnológica milenária e quase submersa, que irrompe à tona. Raízes alheias, que comoveram jovens estrangeiros até às lágrimas. São as nossas. Seremos já tão outros que perdemos, como um bando de cegos numa paisagem estranha, a possibilidade de nos reconhecermos nos nossos lugares, com os nossos próprios rostos, à nossa própria luz?

Frases da entrevista destacadas pelo DL: Os nossos políticos ainda virão a precisar de filmes como Ana para saberem em nome de que país, de que passado, de que povos falam. Fazer cinema é sobretudo gerir núcleos emocionais. Nós só filmamos o que amamos profundamente. Os filmes passados na televisão são meras alusões a si próprios, do mesmo modo que estar na Capela Sistina não é o mesmo que ver fotografias dela num álbum. O espectador ideal é aquele que seria nosso cúmplice até à última das minúcias.

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Posfácio: gossip e jogos de censura Não resisti à tentação de fechar estas reflexões sobre o cinema e os seus filmes com uma quase anedocte brejeira que mostra como o cinema e os seus bastidores, à semelhança das artes da cena e seus bastidores, se articulam muitas vezes de forma inesperada e surpreendente com a vida vivida fora do palco e do plateau. O episódio dá, assim, forma a um posfácio pícaro e com um traço de vaudeville, mas é ao mesmo tempo uma daquelas histórias que a vida recalca até que seja esquecida, por conveniência dos interessados ou de quem deles herda. Assim evocado, parece uma larga sinopse ou um pequeno treatment para uma longa-metragem de época, que alguém uma vez filmaria se conseguisse vencer as resistências que o projecto não deixaria de suscitar, e se encontrasse actores dreyerianos ou modelos bressonianos capazes de figurar os protagonistas reais. Vou contá-lo velozmente, acelerando em recta final, apesar das diversas peripécias que o compõem: Há muitos anos, preparando umas aulas que não cheguei a dar e que envolveriam referências a obras de arte desaparecidas durante a Segunda Guerra Mundial, deparou-se-me o caso do quadro L’origine du monde, de Courbet, sobre o qual corria então que estaria, por circunstâncias dignas das Mil e Uma Noites, na posse de uma actriz francesa que fez cinema entre o princípio dos anos 30 e o fim dos anos 40, desaparecendo em seguida dos ecrãs. Há quem tenha passado pelo cinema como numa viagem metempsicótica entre outras, mas deixando nele um qualquer rasto indelével antes de a ele ter renunciado — e era o caso da actriz em questão, que a seguir nomearei. Comecemos pelo quadro: como todos sabem, L’origine du monde é um óleo sobre tela de 46 por 55 cm que retrata em grande plano o sexo de uma mulher e as suas coxas abertas, o ventre e um seio do modelo, cujo rosto está fora de campo. Tanto quanto se sabe, Courbet pintou-o em 1866 por encomenda de um diplomata, Khalil-Bey, coleccionador de arte com um acentuado pendor para os nus femininos e eventualmente erotómano, e que então representava o império otomano em Paris. Uma historiadora (Haddad, 2000) conta que Bey, doente de sífilis, pediu ao pintor um quadro que representasse a um tempo “a fonte dos seus prazeres e dos seus tormentos” e que se dispôs a pagar por ele 20 mil francos, quando La femme au perroquet, do mesmo Courbet mas três vezes maior, estava então avaliado em apenas seis mil. Sabe-se, por uma descrição do quadro escrita por Maxime du Camp, que Bey pendurou o quadro, velado, na sua casa de banho, o que faz pensar nos antigos ícones que eram resguardados da vista comum por panos ou véus. Diz dele o escritor, que o viu em casa do diplomata turco (Du Camp, 1878):

“Na casa de banho, via-se um pequeno quadro escondido por um véu verde; afastando o véu, ficava-se estupefacto ao ver uma mulher nua, de frente, extraordinariamente emocionada e convulsa, notavelmente pintada, reproduzida con amore como dizem os italianos, e última palavra em termos de realismo. Por inconcebível esquecimento, porém, o artesão que copiara o modelo natural negligenciara a representação de pés, pernas, coxas, ventre, ancas, peito, mãos, braços, ombros, pescoço e cabeça”

L’origine du monde, que não corresponde exactamente ao enquadramento descrito por Du Camp, veio a ter uma história algo rocambolesca: dois anos após tê-lo adquirido, o diplomata turco, arruinado pelo jogo, vendia a sua colecção (incluindo Le bain turc de Ingres e outro Courbet, Les dormeuses ou Le sommeil) e durante mais de vinte anos não mais se ouviu falar do quadro. Até que, em 1889, Edmond Goncourt diz tê-lo

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visto entre outras aquisições do marchand Antoine de la Narde, desta vez escondido por um cache também de Courbet, Le château de Blonay. E comenta-o nestes termos: “Este ventre é belo como a carne de um Correggio”. Julga-se que pouco depois o quadro foi comprado por Emile Vial. Mas em Junho de 1913 é a galeria Behreim-Jeune que vende L’origine du monde e o seu cache a um barão e banqueiro húngaro coleccionador de arte, Mór Lipót Herzog, que fica com o cache e oferece o que ele esconde ao compatriota e amigo Ferenc Hatvani, também ele aristocrata, coleccionador e pintor. Noutra versão da história, é Hatvani quem compra o quadro e oferece o seu cache a Herzog. Os dois óleos partem então para Budapeste. Sabe-se que, como Bey, também o novo proprietário de L’origine du monde o pendurou na sua casa de banho. Em 1945, no fim da guerra, os haveres por ele depositados num banco húngaro, incluindo o quadro, são pilhados pelas tropas soviéticas (e não pelos nazis, como durante anos se afirmou). Um ano depois Hatvani parte para a França, conseguindo resgatar uma dezena de pinturas pilhadas, entre elas o seu Courbet. Noutra versão da história, o aristocrata foi autorizado a partir para França em 1947 levando um único quadro e escolheu L’origine du monde. Ao contrário do que rezava a lenda quando conheci a história do quadro, a actriz de quem falámos só entrou, afinal, na posse de L’origine du monde em 1955: comprou-o com o seu marido, num leilão de arte, por milhão e meio de francos. Levaram-no para a sua casa de campo, “La Prévôté”, em Guitrancourt, a uma centena de quilómetros de Paris. A actriz em questão já abandonara o cinema há meia dúzia de anos e era Sylvia Maklès, aliás Sylvia Bataille, aliás Sylvia Lacan. O novo proprietário de L’origine du monde era o casal Jacques e Sylvia. Jacques ia tornar-se num dos psicanalistas mais influentes da segunda metade do séc. XX e Sylvia fora a Henriette de Une partie de campagne, o filme que Jean Renoir abandonara, inacabado, no verão de 1936, por falta de dinheiro, devido ao mau tempo (chuva a mais durante as filmagens) e outros incidentes; deixou o filme a meio para começar outro — Les bas fonds. Nessa altura Sylvia ainda era casada com Georges Bataille, embora já dele se tivesse separado, e o escritor entrou no filme como figurante: por instantes faz nele um dos seminaristas medusados pelo que dela vêem na cena do baloiço; o outro seminarista é Henri Cartier-Bresson, que trabalhou no filme como assistente. A cena do baloiço começa por evocar um quadro do pai de Renoir, La balançoire, mas é suficientemente extensa para, no final, passar a evocar Les Hasards Heureux de l'Escarpolette, de Fragonard. O desempenho de Sylvia no filme foi sobretudo celebrado pela cena de amor na ilha, porque Renoir decidiu terminá-la com muito grandes planos do rosto de Henriette, onde corre uma enigmática lágrima, o que oferece uma interpretação equívoca do que ali se passou.

Sylvia(Henriette)eClaudeRenoir(directordefotografia).Grandeplanofinaldacenadailha. A acreditar em Philippe Sollers, que conviveu mais de uma década com o casal Lacan, a sobrevivência do apelido Bataille no nome da actriz, e as boas relações entre

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George e Sylvia até muito depois do divórcio, vieram mais tarde a constituir para o psicanalista, quando ele se tornou numa instituição, uma questão embaraçosa — ele passou a querer evitar o estigma do primeiro casamento de Sylvia. Apesar de todos terem mantido um contacto amigável até tarde, o nome Bataille tornou-se, para Lacan, numa espécie de tabu: Bataille era o autor “maldito” de uma vasta obra que inclui L’Érotisme, L’Éxpérience intérieure, La part maudite, e de ficções em grande parte recebidas como obscenas ou resultantes de um erotismo mórbido, entre as quais Madame Edwarda, Ma Mère, Histoire de L’Œil, Le Mort. Sollers referiu-se, numa entrevista, a esse “embaraço” causado pelo apelido Bataille na área familiar de Lacan, homem público, professor e personagem mediático, nos seguintes termos (Sollers, 1982):

“É evidente que o nome Bataille era um problema considerável na região Lacan. E que até Laurence Bataille [filha de Sylvia e de George], sofreu as suas consequências. Uma vez jantei com ela e dei-lhe conta da minha admiração sincera e contínua por seu pai, com quem ela se parecia muito. Ela interrompeu-me e disse: ‘Ouça: não. Quando se escrevem certas coisas, é preciso pensar nos filhos’, etc. Assim são as famílias. E por isso o nome Bataille foi censurado, embora tenha continuado nos endereços e moradas, etc. É qualquer coisa que já devia estar estudado há muito tempo e que me deixa estupefacto: o papel do nome Bataille na... região, que também incluía as irmãs de Sylvia. Nada disto foi estudado porque se tornou tabu. (...) Porque é que o apelido Bataille foi deixado cair por esta constelação familiar, sobretudo hostilizado pelas mulheres? Ele terá tornado as filhas não-casáveis... Ser-se Bataille era mal visto pelas matriarcas da região, muito mal visto. Dava má reputação. Aconteceu o mesmo com Picasso. Picasso e o minotauro também deixaram péssima reputação: representavam uma vida indesejável, com liberdade a mais”.

O facto é que Lacan tinha pertencido ao grupo Acéphale, liderado por Bataille, que ambos tinham frequentado o ensino de Alexandre Kojève e que se mantiveram próximos na travessia dos anos 50, apesar de Lacan só uma vez citar Bataille nos seus Écrits. Lacan terá até chegado a fazer alguma investigação para L’Érotisme (Ryder, 2010). Sylvia, por seu turno, manteve-se próxima do seu primeiro marido até à morte deste, em 1962. Nascida Maklès em Paris, em 1908, de pais judeus romenos, tinha-se casado aos 19 anos com Bataille, então com 30, e teve dele uma filha, que vira a ser a psicanalista Laurence Bataille (1930-1986), referida por Sollers na citação acima. O casal separou-se em 1934 (antes de Une partie de campagne, portanto), mas só se divorciou depois da guerra, em 1946 — o apelido Bataille ocultava o Maklès, que era um perigo na França ocupada). Entretanto, a partir de 1939, ela passou a partilhar a sua vida com Lacan, de quem em 1941 também teve uma filha, Judith, que viria a ser a filósofa Judith Miller, presidente da Fondation du Champ Freudien, criada por seu pai em 1979. Judith foi, ainda, registada com o apelido Bataille e só pôde usar o do pai a partir de 1964 (veio a casar em 1966 com o psicanalista Jacques-Alain Miller e tornou-se então Judith Miller). A situação era complicada porque quer Sylvia quer Lacan mantinham, nos primeiros anos da guerra, os seus primeiros casamentos: quando Judith nasceu, Sylvia já não vivia com Bataille há sete anos embora mantivesse o seu apelido, mas Lacan e Marie-Louise Blondin (Malou), sua primeira esposa, continuavam juntos e Malou e Sylvia estiveram até grávidas, ao mesmo tempo, de Lacan. Foi aliás esse facto que levou ao divórcio precipitado do psicanalista e de Malou, de quem entretanto nascera Sybille (em finais de 1940). Sylvia e Lacan só casaram em 1953 e viveram juntos até à morte dele, em 1981. Ela sobreviveu-lhe doze anos e morreu nos últimos dias de 1993. Quando compraram L’origine du monde estavam, portanto, casados há dois anos.

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Numa das versões da história, foi Sylvia quem fez questão de comprar a tela, que pretendia oferecer ao marido. Noutra, talvez mais credível, Lacan comprou o Courbet a conselho, ainda, de Bataille e de André Masson (e o intermediário da compra terá sido Pierre Granville, coleccionador de Dijon e passeur d’art). Vimos que L’origine du monde, tido por escandaloso no séc. XIX, andou resguardado por caches que o escondiam, fugindo e evitando diversos tipos de censura, e os Lacan mantiveram essa tradição: Sylvia pediu a Masson, casado desde 1934 com sua irmã Rose, que pintasse, para o esconder, algo que, da mesma dimensão e enquadrado na mesma moldura, sobre ele deslizasse para o tapar. E Masson assim fez, pintando numa fina lâmina de madeira uma versão soft e vagamente surreal do indiscreto Courbet — uma quase-paisagem que alude à imagem do quadro. O cache era desbloqueado por uma mola invisível e Jacques só a íntimos mostrava o que ele escondia: o casal temia chocar a vizinhança e até a mulher-a-dias, que não “compreenderiam” o que fazia tal obra na respeitável “La Prévôté”. Lacan era e continuou a ser um coleccionador extravagante e as suas recepções e pantominas em Guitrancourt fizeram história — ele era um actor nato, como Sylvia reconheceu, embora desprezasse os actores.

O cache encomendado por Sylvia a André Masson para L’origine du monde de Courbet Esse gosto pela teatralidade também pode o autor destas linhas confirmá-lo. Para além das suas lendárias performances de orador no Seminário, que foi pensado para ser ouvido e não lido, Lacan foi em 1972 dar uma aula-aberta a Lovaina e a sua entrada no anfiteatro conhecido por Grande Rotonde, cheio, foi hilariante, fumando um enorme charuto e querendo saber de todos se o ouviam bem. O autor destas linhas estava lá e testemunhou os factos: 20 minutos depois de iniciada a lição, um jovem activista da Internationale Situationniste quis fazer o seu número, interrompeu o convidado, derramou sobre os seus papéis um saco de pipocas ou equivalente e lançou-se numa diatribe inflamada contra a sociedade do espectáculo de que o orador faria parte e declarando que estava ali para fazer a revolução.

Lacan interrompido pelo situacionista Anatole Atlas na Grande Rotonde de Louvain, 13 de Outubro de 1972

O incidente durou mais de cinco minutos, durante os quais Lacan arrancou sucessivas salvas de palmas à assistência: sem nunca largar o seu charuto, aceitou a interrupção contestatária e esforçou-se por integrá-la na sessão, de tal modo que o jovem se sentiu

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obrigado a passar de novo à acção, sob pena de se ver “recuperado” pelo maître, e voltou a atirar-lhe com pipocas. Só então alguns dos organizadores intervieram e expulsaram da sala. Lacan reacendeu o seu charuto, que entretanto se quebrara, e prosseguiu como se nada tivesse sucedido. O episódio, gravado, tem estado disponível em <http://www. youtube.com/watch?v=hmh7-jqxYoA&feature=endscreen>, no vídeo «Lacan parle». Mas voltemos a Sylvia, que viveu com dois dos expoentes do pensamento francês do séc. XX, ambos rebeldes e tão adulados como mal-queridos, e que parece ter apagado em si uma carreira de actriz que chegara a alguma notoriedade. Em jovem, ela fora decerto uma das femmes nouvelles cuja imagem de liberdade e cosmopolitismo se enraíza nos anos 20, o tipo de mulher cujo retrato foi escrito por Victor Margueritte em La Garçonne, de 1922: livre, independente, interessada por todos os modernismos e pelo jazz e partilhando o frenesim dadaísta e surrealista de entre deux guerres. Uma década depois, é nesta nova ecologia parisiense que ela conhece Bataille e mais tarde Lacan, e passa de um para o outro, com um intervalo de anos mas sem atribuir importância aos casamentos formais. No sofisticado círculo intelectual e artístico da época, porém, não há, salvo excepção, mulheres que tenham ganho o estatuto ou a aura de Breton, Éluard, Aragon, Dali, Crevel, Péret: eram mais acompanhantes, amantes e musas do que protagonistas de génio ou árbitros do gosto — funções quase exclusivamente masculinas. Recorde-se que foi em 1928 (o ano de edição de Histoire de l’Œil de Bataile) que Aragon publicou sob pseudónimo Le con d’Irène, outro dos textos mais licenciosos da época. E entre os tipos de femmes nouvelles que então proliferavam, Sylvia estaria decerto entre a femme-enfant e la bête capturée) dois dos objectos de desejo mais comuns e estereotipados pelo cinema), dado o contraste entre o seu rosto juvenil e a sua maturidade física. De facto, manteve até tarde essa juvenilidade: já casada com Lacan parecia, vários testemunhos o confirmam, mais sua filha do que esposa; e uma das suas irmãs admitia que, na família Maklès, pensar sempre fora uma coisa de homens. No que toca a Une partie de campagne, que Renoir adaptara a partir de Maupassant, Luchino Visconti e Jacques Becker também trabalharam no filme como assistentes de produção e realização — e nunca deixaram de o recordar. Esquecido, destruído pelos alemães durante a ocupação, o filme (cujos negativos tinham sido salvos por Henry Langlois) só no fim da guerra foi re-visionado pelo seu produtor inicial, Pierre Braunberger, e este pediu a Marguerite Houlé (Marguerite Renoir), que fora scriptgirl nas filmagens, que montasse os seus quase 40 minutos. Ajudaram-na Jacques Becker e Pierre Lestringuez, e Joseph Kosma fez a música. Une partie de campagne estreou finalmente em 1946 e viria mais tarde a tornar-se num filme de culto para a primeira geração da nouvelle vague francesa. Braunberger confessou, por altura da estreia, que em 36 estava apaixonado por Sylvia. Mas a actriz e Renoir tinham cortado relações depois das filmagens, porque Sylvia não perdoou o abandono do filme pelo realizador: se Une partie de campagne tivesse estreado em 1936, como previsto, a vida de Sylvia no cinema teria talvez sido outra, porque o filme a teria projectado como actriz de primeiro plano. Com a guerra de permeio, aqueles dez anos foram fatais para a sua carreira. Sylvia começara como actriz no grupo Octobre, animado por Jacques Prévert, e participou em Le crime de M. Lange, de Renoir (foi depois deste filme que Renoir decidiu atribuir-lhe o principal papel em Une partie de campagne), Jenny e Les portes de la nuit de Marcel Carné (que ela detestava), L’affaire du courrier de Lyon de Claude Autant-Lara e Maurice Lehmann. Filmou ainda com Marcel L’Herbier,

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Jacques Feyder, Robert Siodmark, Charles Meré e Paul Schiller, Yvan Noé, Christian Camborant e Pierre Colombier, Léon Mathot, Jacques Constant, Christian Jaque, Pierre Caron. Entrou num sketch de Rossellini e a última vez que filmou foi com Jacques Manuel, em 1949. Em 1939 tinha ganho o prémio Suzanne-Bianchetti, também atribuído a actrizes como Audrey Tatou, Geneviève Bujold, Simone Signoret, Isabelle Adjani, Isabelle Huppert. Com a guerra e a ocupação alemã, a sua ascendência judia impediu-a de trabalhar e ela saíu de Paris, para o Sul, entre 1940 e 1944, onde Lacan a visitou regularmente. A seguir à guerra só conseguiu voltar ao cinema em papéis menores e em 1949 desapareceu definitivamente do grande ecrã e decidiu tornar-se apenas, por mais de 30 anos, Madame Lacan. O facto de ter mantido o apelido Bataille até tão tarde prende-se, para além da guerra e da perigosidade do seu apelido de solteira, com a sua marca de actriz — uma actriz não muda de nome artístico a meio da carreira. Há um episódio do início da guerra que revela um traço intrépido e obstinado de Lacan na defesa e protecção de Sylvia: tendo esta e sua mãe declarado às autoridades a sua ascendência judia, o psicanalista dirige-se ao comissariado de polícia onde os documentos ficaram, consegue trazê-los de lá (aparentemente rouba-os de uma pilha de papéis) e queima-os, para acabar de vez com a ameaça que eles representam.

Martin e Elfried Heidegger com Lacan em Guitrancourt, 1955. Feldberg 1956: Sylvia e Jacques Lacan com o urso Slajov.

Além de Rose, mulher de Masson, as duas outras irmãs de Sylvia, Simone e Bianca (esta prematuramente morta num acidente), casaram respectivamente com o filósofo Jean Piel (que herdou de Georges Bataille a revista Critique) e com o dadaísta e surrealista Théodore Fraenkel, médico. Os casamentos das irmãs Maklès mostram o universo a que todas pertenciam desde os anos 20 e que incluía André Breton, Raymond Quéneau, Jacques Prévert e muitos outros intelectuais e artistas. Esquecido o cinema, Madame Lacan passou a ser, a partir de 1953, a anfitriã da vida social do casal: recebia, decorava, organizava encontros e fins-de-semana, conversava. A casa de Guitrancourt passou a ser visitada por Bataille, Merleau-Ponty, Lévi-Strauss, Michel Leiris. E Sylvia convidou para ali Eisenstein, Buñuel, Georges Limbour, Giacometti, Max Ernst, Duchamp, Picasso, Breton. Também Martin Heidegger e sua mulher Elfried passaram vários dias em “La Prévôté”: Lacan e Heidegger discutiam filosofia e Sylvie acompanhava Elfried, que nunca terá abandonado o seu anti-semitismo (Roudinesco 1993: 299-300). “Ele era adorável. A mulher era horrível, era nazi”, disse deles Sylvia aos 84 anos (Hunt 1995: 179). Conheceria ela o passado de

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Heidegger? Só depois da morte de Lacan, Sylvia aceitou emprestar pela primeira vez L’origine du monde para uma exposição em Brooklyn, em 1988, e uma segunda vez em 1992, para a exposição Masson organizada em Ornans. A seguir declarou evasivamente que o quadro, cada vez mais citado, fotografado e recenseado nos catálogos da pintura de Courbet, tinha ido para o Japão. Foram Sollers e a revista Art Press que revelaram que o quadro pertencia aos Lacan. Depois da morte de Sylvia, o Estado francês aceitou o quadro por dation no âmbito da satisfação das obrigações fiscais da herança Lacan. O Museu d’Orsay recebeu-o e expõe-o desde 1995, finalmente sem cache. A história do quadro foi posteriormente contada num documentário de 1996, L’origine du monde, de Jean-Paul Fargier, feito para a televisão franco-alemã Arte, e sobretudo em L’Origine du monde, Histoire d’un tableau de Gustave Courbet (Savatier, 2006). Em 1995 Jamer Hunt, um doutorando em filosofia da universidade de Rice, Texas, defendeu uma tese de 190 páginas intitulada Absence to Presence: The Life History of Sylvia [Bataille] Lacan, procurando descrever “as forças que a mantiveram fora do registo histórico e crítico do trabalho dos seus dois maridos e contribuiram para a sua oclusão”. A hipótese que ali formula é a de que Bataillle e Lacan partilhavam a mesma visão falocrática das mulheres, vendo-as como “objectos de troca” à luz do Essai sur le don de Marcel Mauss e da ideia de Lévi-Strauss de que o princípio organizador da sociedade foi a troca de mulheres entre os homens — uma ideia que Gayle Rubin viria a retrabalhar no seu The Traffic in Women: Notes on the Political Economy of Sex. Lacan teria, assim, simbolicamente “roubado” Sylvia a Bataille, num obscuro exercício de desejo mimético como o descrito por René Girard — uma hipótese que a cronologia das relações entre os três, infelizmente para o doutorando, não confirma. Depois de um longo assédio, Hunt acabou por entrevistar Sylvia, então com 84 anos, e metade da sua dissertação de doutoramento como filósofo é o thriller e o diário de bordo desse encontro — o que não deixa de ser revelador sobre o modo como se filosofa em Rice, Texas. Algures, nas suas páginas, Benoît Jacquot, que foi à “La Prévôté” filmar o psicanalista para um par de documentários para a televisão, lembra-se de Sylvia ajeitando e retocando o marido antes e durante as filmagens, preocupada com a sua aparência e performance: a antiga actriz desaparecera para se transformar na primeira-assistente de um novo tipo de actor. Bibliografia DU CAMP, Maxime [1878], Les convulsions de Paris., Hachette, 1889.

HADDAD, Michèle [2000], Khalil-Bey: un homme, une collection, Paris, Éditions de l’Amateur.

HUNT, Jamer [1995], Absence to Presence: The Life History of Sylvia [Bataille] Lacan, Rice University, Digital Scholarship Archive, url: <http://scholarship.rice.edu/handle/1911/16832>.

ROUDINESCO, Elisabeth [1993], Jacques Lacan: Esquisse d’une vie, histoire d’un système de pensée, Paris, Fayard.

RYDER, Andrew [2010], «Inner Experience Is Not Psychosis: Bataille’s Ethics and Lacanian Subjectivity», in Parrhesia, nº 9, pp. 94-108.

SAVATIER, Thierry [2006], L’Origine du monde, Histoire d’un tableau de Gustave Courbet, acompanhado por um caderno fotográfico, Paris, Bartillat, 2006.

SOLLERS, Philippe [1982], Le trou de la vierge, url: <http://www.pileface.com/sollers/article.php3?id_ article = 260#section1>.