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jl JORNAL DE LETRAS, ARTES E IDEIAS JOÃO LOBO ANTUNES ESCREVE SOBRE O IRMÃO ANTÓNIO O PERCURSO COMUM, O CANCRO DO ESCRITOR E COMO ELE O TRANSFORMOU EM SOBÔLOS RIOS QUE VÃO. NIKIAS SKAPINAKIS J.J. GOMES CANOTILHO ESCREVE SOBRE JURGEN HABERMAS GONÇALO TOCHA A RETROSPETIVA NO MUSEU BERARDO A CONSTITUIÇAO EUROPEIA LIDA PELO JU- RISTA E CIENTISTA POLÍTICO PORTUGUÊS CORVO, O FILME DA ILHA DECLARAÇÕES DE AMOR À LÍNGUA PORTUGUESA 32 anOS DE JL ANO XXXI NúMERO 1082 21 DE MARçO A 3 DE ABRIL DE 2012 PORTUGAL(CONT.) 2,80€ QUINZENáRIO DIRECTOR JOSé CARLOS DE VASCONCELOS

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JLJORNAL DE LETRAS, ARTES E iDEiAS

João Lobo Antunes escreve sobre o irmão AntónioO pERcuRSO cOmum, O cANcRO DO EScRiTOR E cOmO ELE O TRANSfORmOu Em SObôLOS RiOS quE vãO.

nikiAs skApinAkis

J.J. Gomes cAnotiLho escreve sobre JurGen hAbermAs

GonçALo tochA

A RETROSpETivA NO muSEu bERARDO

A cONSTiTuiçAO EuROpEiA LiDA pELO Ju-

RiSTA E ciENTiSTA pOLíTicO pORTuguêS

cORvO, O fiLmE DA iLhA

DEcLARAçÕES DE AmOR À LíNguA pORTuguESA

32ANOS

DE JL

Ano XXXI número 1082 21 de mArço A 3 de Abril de 2012 Portugal(Cont.) 2,80€ QuInzenárIo director José Carlos de VasConCelos

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02O poeta, ensaísta e crítico literário João Rui de Sousa, 83 anos, foi dis-tinguido com o Prémio Vida Lit-erária da Associação Portuguesa de Escritores / Caixa Geral de Depósi-tos. O galardão, no valor de 25 mil euros, é atribuído de dois em dois anos, e já foi entregue a autores como José Saramago, Eugénio de Andrade, Mário Cesariny ou Vítor Aguiar e Silva.Nascido em 1928, em Lisboa, João Rui de Sousa formou-se em Agrono-mia e em Ciências Histórico Filosó-ficas.Estreou-se na escrita na revista Cassiopeia, da qual foi um dos fun-dadores. Circulação (1960), “A Hi-

pérbole da Cidade” (1960), Corpo Terrestre (1972), O Fogo Repartido (1983), Enquanto a Noite, a fol-hagem (1991) são alguns dos seus livros de poemas. Mais recente-mente, em 2008, editou Quarteto para as próximas chuvas. Fez crítica literária no JL, integrando o ‘quarte-to’ composto por Fernando Guima-rães, Manuel Frias Martins e Ernesto Mello e Castro. No ensaio publicou, entre outros, Fernando Pessoa empregado de es-critório e António Ramos Rosa ou o Diálogo com o universo. Editou ainda Antologia e Poesias Comple-tas, de Adolfo Casais Monteiro.

viDA DE pOETA pREmiADA

bREvE ENcONTRO

“É um incentivo, uma palavra de ânimo para alguém que não tem por hábito andar nas parangonas

João rui De sousA

02. DESTAQUE

AteLier utopiADE miguEL pALmA,NO pORTO

vAi AcONTEcER

Um conjunto de trabalhos preparatórios de diversas obras de Miguel Palma, numa exposição que é uma espécie de prolongamento do seu próprio atelier. Chama-se justamente Atelier Utopia, inaugura-se a 25 de Março, na Galeria da Fundação EDP, no Porto, e tem curadoria de Bruno Leitão. Permite des-vendar, nas suas várias fases e em diferentes peças, o próprio processo cria-tivo do artista, nascido em 1964 e que começou a expor nos anos 80. Tem re-alizado numerosas exposições no país e no estrangeiro, entre as quais a recente Linha de Montagem, no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian. Patente até 1 de Julho.

JL: O que significa este prémio? Como o sentiu?João Rui de Sousa: Fiquei muito surpreendido e ‘embatucado’ , até por causa dos nomes dos meus antecessores.É um incentivo, uma palavra de ânimo para alguém que não tem por hábito andar nas parangonas. Julgo que é um reconhecimento de um trabalho de mais de meio sé-culo, tanto na poesia como na crí-tica literária e no ensaio. O prémio é também para aqueles que, sos-segada e silenciosamente, me têm apoiado e incentivado ao longo dos anos. Partilho-o com eles.Deve-se muito aos outros.

É poeta, ensaísta, crítico e in-vestigador. Para si, ao longo dos anos, qual destes papéis tem sido o principal? Sem desprimor para as outras artes, julgo que é o papel de poeta. A poesia é mais espontânea, a mais

criativa das artes. Embora considere que há muita criatividade na crítica e no ensaio. O prof. Jacinto Prado Coelho dizia isto muitas vezes. Mas creio que a poesia, postas as coisas nos pratos da balança, é a que pesa mais no meu percurso.

Mas pesa sem pesar... Sim.Dá-me liberdade. Num en-saio há um condicionalismo. Fala-se sobre qualquer coisa, ao passo que na poesia fala-se sobre nós próprios, sobre o que vem à cabeça, à alma.

Está a trabalhar num novo livro? Tenho um livro de poemas em preparação, mas não está fechado. Ainda estou hesitante quanto ao tí-tulo. Será algo sobre Lisboa a que chamarei Um roteiro sentimental ou Uma cartografia sentimental.Trata-se da Lisboa que eu tenho vi-vido e que me tem tocado aqui ou ali. É Aquele que está mais próximo de ser editado...Jl FrAnciScA cUnHA rÊGo

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Linguas e culturas latinas: dos riscos da incompreensão ao desafio da in-tercompreensão é o tema do 6º Festla-tino, Festival Internacional de Culturas, Línguas e Literaturas Neolatinas, que se realiza em Recife, no Brasil. A 29 de Março, a partir das 9, na Residência André de Gouveia da Cité Interna-cional Universitária de Paris, de-corre um dos seus seminários pre-paratórios. Esta iniciativa conta com organização de Ana Paixão e José Manuel Esteves, da Universidade de Paris e Saulo Neiva, da Univer-sidade de Clermont. O Festlatino tem como objectivo principal con-tribuir para o reforço das ligações entre culturas latinas.

Portugal no Brasil: pontes para o presente é o título do 6º colóquio internacional que o Polo de Pes-quisa sobre Relações Luso-Brasi-leiras (PPRLB), vinculado ao Centro de Estudos do Real Gabinete Portu-guês de Leitura, promove de 9 a 13 de Abril, no Rio de Janeiro, para as-sinalar o Ano de Portugal no Brasil.

No próximo JL daremos o devido destaque a esta iniciativa que conta com a participação de investiga-dores e professores universitários de ambos os países. A comissão orga-nizadora é constituída pelos profs. doutores Gilda Santos, Luciana Salles, Mônica Genelhu Fagundes e Roberto Loureiro.

Os desempregados vão entrar gratuitamente em museus e monumentos, e beneficiar de descontos nos teatros nacio-nais e na Cinemateca Portuguesa. É uma medida da Secre-taria de Estado da Cultura que entra em vigor a partir de dia 27. Para beneficiar dos descontos basta a apresentação de um comprovativo de inscrição no Instituto de Emprego e Formação Profissional ou qualquer outro documento emi-tido pela Segurança Social. Na Cinemateca Portuguesa, o bilhete fica a 1,35euros, no Teatro D.Maria II, a 6 euros. No São João o desconto é de 50%, e nos espectáculos da Com-panhia Nacional de Bailado e do São Carlos é de 25%.

6º FestLAtino

Descontos pArA DesempreGADos

portuGAL no brAsiL

Eduardo Prado Coelho será ho-menageado a 29 de Março - data do seu aniversário - na Casa Fer-nando Pessoa, em Lisboa. A partir das 14:30 (e até as 19horas) serão lidos textos da sua autoria. Haverá uma seleção disponível para os parti-cipantes - organizada por Maria Ma-nuel Viana e Margarida Lages - mas cada um poderá ler qualquer texto que trouxer. Nascido em Lisboa, em 1944, filho do prof. catedrático Ja-cinto do Prado Coelho, Eduardo li-cenciou-se em Filologia Românica, na Faculdade de Letras, da Universi-dade de Lisboa. Deixou uma vasta bibliografia uni-versitária e ensaística - também em inúmeros jornais - destacando-se um longo estudo de teoria literária.

DiA eDuArDo prADo coeLho

03. DESTAQUE

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02. DESTAQUE

A Almedina vai reabrir, no Rio de Janeiro, a Livraria Camões, encer-rada em janeiro pela imprensa Na-cional Casa da Moeda (INCM), adianta ao JL, em primeira mão, José Miguel Marques Mendes, CEO daquele grupo editorial. “Vamos fazer todos os esforços para não deixar morrer esse projeto histó-rico”, afirma o responsável. Durante os próximos cinco anos, mediante um contrato de arrendamento, a Almedina vai explorar a livraria, mantendo a aposta forte na litera-tura, o que fez de Camões nos úl-timos 40 anos, um dos pilares da promoção da literatura e da cultura portugueses no Brasil. É o final feliz de uma noticia que, em janeiro do ano passado, suscitou vários pro-testos, assim que a INCM anunciou o seu encerramento. “Esta livraria é ponto de referência fundamental, umbigo dos estudantes de Litera-tura Portuguesa no meu pais, desde um tempo em que nenhuma obra portuguesa era editada no Brasil e ela nos supria do que preciso fosse”,

argumentava na altura, Maria Lúcia dal Ferra, profª titular da Un. Fe-deral de Sergipe, num dos abaixo--assinados que então circularam, in-cluindo em Portugal, por iniciativa de Maria Teresa Horta, Manuel Alegre e Manuel Mendes. Foi ao ler estas no-ticias que os administradores da Almedina, um dos mais dinâmicos novos grupos editoriais portu-gueses, o maior na área do Direito, mas também com forte ligações ao ensaio e as Ciências Sociais nome-adamente através da chancela edi-ções 70, decidiram avançar. O pró-prio José Miguel Marques Mendes contactou a imprensa Nacional Casa da Moeda, chegando a um acordo nas últimas semanas. Agora, serão feitas obras de melhoria para uma abertura nos próximos meses. “Não estão previstas grandes inter-venções mas queremos aproximar a livraria à imagem que temos em Portugal”, explica o administrador. Em Portugal, as Livrarias Almedina têm a marca dos arquitetos Fran-cisco e Manuel Aires Mateus, cujos

projetos para o grupo já foram pre-miados. No Rio de Janeiro, no en-tanto, o espaço, na Rua Bitencourt Silva, no centro do Rio, é menos versátil pois tem apenas 70 m2 e um mezanino logo à entrada. “Mas será sempre um espaço bo-nito”, grande José Miguel Marques Mendes. A reabertura da Livraria Camões surge na sequência de in-ternacionalização do grupo Alme-dina e da inversão da sua estra-tégia fora do pais. Não é uma aposta nova. Não é uma aposta nova. No Rio de Janeiro, o grupo chegou a ter um showroom, entretanto encer-rado, só com livros seus e mantem ainda um site dirigido aos leitores brasileiros (www.almedina.com.br). Mas até agora, assegura o adminis-trador, ainda não havia uma “estra-tégia arrojada e global”. “Até há bem pouco tempo a Almedina era apenas exportadora e distribuidora. Agora vamos apostar na edição e na venda de livros em todo o espaço da Luso-fonia”. À semelhança do Rio de Ja-neiro será criada mais uma livraria

no Brasil, em São Paulo – estão a ser estudadas três possibilidades – e até ao final de 2012, outras em an-gola e Moçambique. Neste três pa-íses vão avançar também equipas para a edição de livros na área do Direito, seguindo o modelo usado em Portugal: texto de lei, por um lado, e legislação comentada e ano-tada, por outro. “Sempre com a co-laboração de autores locais” asse-gura José Miguel Marques Mendes. Entre os títulos já previstos destaca--se a Constituição Brasileira, co-mentada e anotada por especialistas, sob A direção do prof. José Joaquim Gomes Canotilho. Sem revelar os montantes envolvidos, o CEO da Almedina garante que se trata de um investimento significativo que requererá “muito músculo, suor e motivação”. É o que tem pedido aos seus colaboradores dizendo-lhe que se trata de “uma nova era dos Descobrimentos”. Sem megaloma-nias, apenas procurando criar, em parceria, “boas obras”.

LivrAriA cAmões, no rio, reAbre com A ALmeDinA

DGArtes suspenDe Em 2012, a Direção-Geral das Artes (DGArtes), não vai abrir os concursos para os apoios pontuais e anuais às artes, anunciou semana passada Samuel Rego, di-retor do organismo. Noutra frente o mesmo respon-sável fez saber que, no pró-ximo mês de abril, inaugura um novo concurso para a atribuição de apoios finan-ceiros a projetos artísticos que se desenvolvam no estrangeiro,considerando que, “no atual contexto, a existência de dispositivos

de internacionalização di-rigidos ás artes é crucial para o fomento do empre-endedorismo e para o alar-gamento de mercados no setor artístico”. Com uma dotação financeira de 600 mil de euros, a linha de apoio destina-se a um má-ximo de 100 candidaturas de entre as áreas artísticas tuteladas pela DGArtes, entre as quais a arquite-tura, artes visuais, dança, design, fotografia, musica e teatro.

04. DESTAQUE

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02. DESTAQUE

DGArtes suspenDe

Exposições, cinema, musica, conferencias e encontros gastronómicos são algumas das atividades que com-põem a Festa da Francofonia que decorre em oito ci-dades portuguesas- Lisboa, Porto, Caldas da Rainha, Coimbra, Espinho, Guimarães, Setúbal e Vila Nova de Gaia- até 24 de março. Hoje, quarta-feira 21, pelas 18 horas, no auditório do Institut Français du Portugal, em Lisboa, François de Closets, escritor e jornalista, autor de mais uma vintena de ensaios sobre a sociedade contemporânea francesa é o arador da conferência l´orthographe, une passion française. Lá force (in)tran-quile dês annés 80: questions posées à lá culture fra-çaise é outra das conferencias desta festa, a 22, a partir das 9 e 30, na Faculdade de Letras do Porto. Na mú-sica destaque para o concerto de 23, às 18, no Palácio da Foz, em Lisboa, do violinista Krasimir Dzhambazov.

FestA DA FrAncoFoniA

Só em datas ou números ́ redondos` temos assinalado de forma especial os aniversários do JL. Quando com-pletamos um ano de existência, em-bora deforma discreta, naturalmente o fizemos. E depois só na centésima edição, íamos no 4º ano de vida (en-tretando, face ao êxito do jornal (passáramos de quinzenário a sema-nário), dedicamos uma capa à “efe-méride”. Uma capa com o 100 ocu-pando-a toda, do mesmo grande pintor e desenhador, João Abel Manta, que fizera as cinco primeiras capas com números e nas nossa pá-ginas deixara uma extraordinária série de retratos e ilustrações, que já são são parte do património ar-tístico português dessa época. A partir daí, o nº 200 teve só uma cha-mada, e apenas nos nº s 500 e 1000 (e no 1001, prolongamento o ante-rior, mas dedicado aos escritores e artistas mais novos, que sempre es-tiveram também no centro da nossa atenção) voltamos aos destaques de capa e às edições com matérias es-peciais. Como aconteceu nos 20 e 25 anos, quando aqui deixaram a sua

opinião e o seu testemunho sobre o JL grandes figuras do mundo lusó-fono, incluindo alguns Presidentes da Republica. A que vem esta ´conversa`, se não fazemos agora nada de compa-rável? Não fazemos, mas assinalamos a entrada no nosso 32º. ano de pu-

blicação ininterrupta sem nenhuma falha, ao longo de 1082 edições, com um “tema” que nos é particularmente caro: a Língua Portuguesa.A Lingua Portuguesa, que como ali se su-blinha, é fundamento e uma das principais razões de ser, se não a principal, do JL, que por ela, pela sua dignificação, valorização, ex-pansão e divulgação, desde o início se tem batido em ´todas as frentes`. Batido pela língua portuguesa, por tudo o que significa em si mesma,

como nosso e mais belo património, ontem, hoje e sempre; e como elo mais forte da nossa ligação com os países de idioma comum, instru-mento mais poderoso da lusofonia, a devem defender, ensinar, pro-mover, com destaque para o seu Instituto internacional (IILP). IILP

sobre o qual inúmeras vezes aqui es-crevi, pugnando, sem qualquer êxito, nestas colunas e fora delas, para que fosse feito o necessário para que cumprisse pelo menos uma parte dos fins com que foi criado, o que continua a não acontecer. Se agora assinalarmos, mesmo de forma dis-creta, este aniversário, é também porque julgamos impor-se fazê-lo na situação de crise tão gravre que vivemos, com reconhecida inten-sidade também nos media. Assim,

impõem-se dizer que continua este JL que há muito tempo tanto consi-dera uma espécie de “milagre”. “Mi-lagre”, digo eu, só possível graças a compreensão e ao apoio de todos que, a vários níveis, sabem o que sig-nifica para o nosso pais, a nossa cul-tura e a nossa língua (e apesar do descaso de outros que tinham obri-gação de o saber…), no âmbito de uma empresa como a Impresa e com o esforço dos que o fazem, a co-meçar pelos nosso colaboradores. E muito haveria a acrescentar. Sublinho apenas crer que esta edição cons-titui uma boa amostra de que o JL continua a ser e a representar como único órgão de comunicação social português e de língua portuguesa com a sua qualidade, a sua perio-dicidade, as suas características, os seus combates. Pela nossa parte con-tinuaremos assim, a existir e resistir, como “jornal de letras e ideias” livre e independente, português e lusófono, na fidelidade incessante renovada e rejuvenescida, aos seus valores, prin-cípios e objetivos de sempre.

“continuaremos a existir e re-sistir como JL, livre e indepen-dente, português e lusófono

JosÉ cArLos De vAsconceLos EDiTORiAL

05. DESTAQUE

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02. DESTAQUE08. TEMA

'DecLArAções De Amor'à LínGuA portuGuesA

A cristALinA músicA DAs esFerAs

A Língua Portuguesa é e sempre foi fundamento e pelo menos uma das principais razões de ser do JL (ler comentário, na p. 3). Assim, quando chegamos aos 32 anos, assinalámo-los com outras tantas curtas “declarações de amor” ou “cartas de amor” à nossa Língua. Foi isso que pedimos a criadores de todo o vasto espaço do idioma comum, embora acentuando que poderiam escrever sobre ela de qual-quer outro modo ou ângulo - como é o caso da crónica de José Luís Pei-xoto (p. 43). E na próxima edição haverá mais. Jl mÁrio clÁUdio

Meu amor, Todos os dias te en-contro, e todos os dias te perco. Já na luz da meninice, quando em minha inconsciência trocava as sí-labas da tua voz, me habituavas ao êxtase, afagando-me e traindo- me, e propondo-me os mistérios que te habitam. Como acontece com os que muito se amam, e que por causa disso sofrem a tirania dos códigos, e a arbitrariedade das reformas, a nossa história tem sido alegre e triste', e ora arrebatada, ora paciente. Sobrevivemos entretanto por es-tratégias dificílimas, e que nos con-denam à perpétua inquietação. Se te persigo em excesso, empe-nhando- me na procura com de-masiada energia, afastas-te de mim num elegante volteio, tocado pela sombra do desprezo. E logo me sobressalto na tua ausência, e me lanço na busca do que te conforma, a aragem ciciante, a agitar as silvas onde as amoras despontam, a áspera nasalação, gritada por Clitemnestra no ato de apunhalar o seu homem. Acostumei-me ao calor da tua pre-sença, e tão inseparável de mim te tornaste que te confundem comigo, e me tomam por aquilo que tu mesma és sibila deste cabo da Eu-ropa, a irradiar oráculos pelas sete partidas do mundo. Muitas vezes te calei no coração,

Tão inseparável de mim te tor-naste que te confundem comigo, e me tomam por aquilo que tu mesma és, sibila deste cabo da Europa re-

ceoso de que o ímpeto do desejo te erodisse sem remédio, e confesso que não raro abusei da tua entrega, ar-rastando-te por sonoros labirintos, ou por perigosas acrobacias, e co-brindo-te de adereços que apenas me perdoavas pela juventude do afeto que me entontecia, Com o tempo

porém ensinaste-me o segredo do respeito, e consenti em tua discreta e solene integridade, Jamais me ne-gaste o gosto de te poupar às seví-cias que por aí, e impunemente, te humilham, colocando-te diante de espelhos que te deformam, e mago-ando-te no que de mais íntimo pos-suis, a fim de que, muito para além da carne, o puro espírito se revele, Percebi em suma por que motivo não existe em toda a Terra engenho bastante para te traduzir, harmó-nica como voas em tua funda es-sência, incompatível com truques e arranjinhos, e adversa aos circunló-quios com que te iludem a verdade, À medida que envelheço, e me sinto igual a ti, há paisagens do teu corpo de que me vou esquecendo, lembrando-me todavia, e como que por milagre, de muitas que su-punha não guardar na memória. Todos os dias te encontro, e todos os dias te perco. Não será isto indício de que um no outro nos en-gastámos, e de que morreremos no abraço que ninguém ousará des-manchar? Quero dizer-te assim que, viajando ambos, tu e eu, pela cristalina música das esferas, ao si-lêncio da eternidade é que nos de tinamos, e à glória efémera do tal verbo em que tudo principia. Beijo-te os pés, meu amor.

(cARTA À LíNguA pORTuguESA,pROfETiZANDO AmOR ETERNO, E EXpRimiNDO um vOTO DE SiLêNciO)

"Tão insepará-vel de mim te tornaste que te confundem comigo, e me tomam por aquilo que tu mesma és, si-bila deste cabo da Europa

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02. DESTAQUE

estA nossA LínGuA GerAL

continuo ApAixonADo...

LínGuA e eniGmA

09. TEMA

JOSé EDuARDO AguALuSA

JOãO ubALDO RibEiRO

EDuARDO LOuRENçO

Sou um angolano de origem por-tuguesa - o que faz de mim quase um brasileiro, e há longos anos que me acho no papel de passageiro em trânsito pelos diferentes territórios onde prospera a nossa língua. Esta deriva, quase sempre feliz, tem con-tribuído para aumentar o meu inte-resse pela vida das palavras. Venho descobrindo algo, que sendo óbvio, ainda tantos (sobretudo em Portugal) insistem em não ver: a força desta nossa língua, a sua vi-talidade, resulta do facto de ter sido desde sempre uma construção con-junta, uma extraordinária aventura comum, unindo primeiro povos ro-manizados e populações árabes, pro-venientes da colonização africana da península ibérica, e depois, na se-quência da expansão portuguesa, mais e mais africanos, indígenas bra-sileiros, indianos e malaios. Com a passagem dos séculos uma vi-gorosa torrente de vocábulos afri-canos, brasileiros e orientais, foi-se somando ao património original. Palavras que se perderam em Por-tugal, enraizaram-se nos crioulos de Cabo Verde e da Guiné- Bissau, ou no português sertanejo do Brasil.Quanto mais me apaixono pela

nossa língua, e mais me aproximo dela, melhor a vejo, inteira, na sua diversidade. A língua segue sendo uma só, embora rio de muitas águas, a cada dia mais largo e mais profundo.Nunca como hoje houve tanta cir-culação de pessoas, de ideias, de pa-lavras, no espaço da nossa língua. Nunca estivemos tão próximos quanto agora. São portugueses que emigram para Angola ou para o Brasil. Brasileiros que, tendo vi-vido longos anos em Portugal, re-gressam a casa. Brasileiros, por outro lado, a fixarem-se em Angola. Todo este trânsito vem democrati-zando ainda mais a língua comum. Não existe hoje um centro de poder. Portugal recebe tanto quanto dá. Jo-vens portugueses falam como ango-lanos. Angolanos apropriam-se de termos brasileiros. Muitas vezes não se trata sequer de importação’ mas de regressos. O que eu amo, pois, é este idioma democrático, plurinacíonal, que a todos pertence e a todos igualmente se entrega e enriquece. Esta nossa Língua Geral. Jl JoSÉ edUArdo AGUAlUSA

Querida Língua Portuguesa, Como se ainda não sou-besses e precisasse dizer-te: continuo apaixonado por ti desde a primeira hora em que te ouvi. Cada dia mais apaixonado, na verdade. Penso em ti o tempo todo, agra-deço aos céus tua convivência, que a cada dia me acres-centa. Não ignoro que tens muitos valorosos e melhores amantes, mas não me causam ciúme, porque sei que é da tua natureza provocar o amor de todos nós, todos nós te pertencemos e cada um tem contigo uma experiência única. E isso não impede que sempre queira de ti casa-mento indissolúvel, bem querer eterno, enlevo sem fim.

Prometo intransigente fidelidade, completa lealdade - e de ti não peço nada e peço tudo, peço que continues linda e face ira como sempre foste e que nunca deixes desvalidas as nossas almas amorosas, pois que, se não vi-vemos sem ti e sem ti não saberíamos nem quem somos, tu também não vives sem a nossa devoção.

Do orgulhosamente teu, desde sempre,

JoÃo UbAldo ribeiro

O coração do enigma para cada povo é o da língua em que a sua lei-tura do mundo se manifesta como mistério ao mesmo tempo lumi-noso e obscuro. É na língua e na língua só que somos virtualmente imortais. Tudo se passa como se não pudéssemos ser sujeitos dela. Somos falados antes de a falar e falamos para nos falar. Sem co-meço nem flm. Só no séc. XVIII quando o Ocidente começou a es-quecer a língua como "dom de Deus" um ato recapitulativo de um verbo criador do mundo, o mis-tério dessa revelação com o sujeito criadora, ao mesmo tempo da voz, da consciência dela e do sentido da sua nomeação de toda a reali-dade, se converteu no enigma dos enigmas. Começou então a nossa marcha do Deserto. Falamos para povoar o mundo. E ao mesmo tempo para regressar a essa linguagem antes da línguagem, a essa língua divina, a do homem

ainda não separado do universo e de si mesmo, sujeito de múltiplas lín-guas mas lembradas da única que dizia o Ser sem o mutilar, aquela que fala no silêncio do mar e nos cala. Todas as línguas do mundo de-

senham nele o bem pouco mítico arquipélago de BabeI. O mistério de cada uma participa dessa aven-tura humana sob a forma de um ri-zoma. Só a História singular de cada uma delas desvela os seus segredos. Não são os mesmos para o Japão,

ou Bornéos, isolados milénios dos seus vizinhos, que os do ramo indo europeu onde a nossa mergulha as suas raízes. Essa raiz sânscrita só para fllólogos terá algum sentido. Para nós, mortais comuns, bastanos misteriosamente, ou quase, a nativa herança lusitana. Foi aquela que se derramou no mundo juntamente com o castelhano como as pri-meiras línguas no mundo do Oci-dente. Nem ela nem a dos nossos vi-zinhos têm os dias contados. Até onde podemos imaginar--lhe futuro, essa língua, hoje de va-riados tons, é um dos mais insólitos milagres linguísticos imagináveis, dada a sua origem tão modesta. Este simples estatuto devia poupar--nos todas as glosas apocalípticas acerca da sua perenidade. Como os amores miticos de Pedro e Inês, a língua em que eles couberam ar-derá até ao fim do mundo.Jl edUArdo loUrenço

"Essa língua, hoje de varia-dos tons, é um dos mais insó-litos milagres

ALbERTO DA cOSTA E SiLvA

A beLezA Do munDo, nA FormA DAs pALAvrAs

Esta língua faz-me. Está em meu corpo como o sangue. Sou o que ela quis que eu fosse, desde que, na primeira meninice, descobri que um gato é um gato, e não un chat, e um cão é um cão, e não a dog. Foi por meio dela que me abri para a beleza do mundo, pois o que via, ouvia e sentia tinha e tem a forma de palavras. Nunca sonhei em outro idioma e, se me comovo com Dante e Shakespeare, é diferente a emoção com que leio Camões. Neste escuto uma voz que, sendo dele, é minha. Sinto que lhe imito a alegria, a tristeza, a indig-nação e o espanto. É com a saudade de seus versos que nos entendemos todos os que falamos esta língua que guarda o sabor da aventura de camponeses que se tor-naram marinheiros. Jl Alberto dA coStA e SilVA

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02. DESTAQUE12. TEMA / LÍNGUA PORTUGUESA 13. TEMA / LÍNGUA PORTUGUESA

nuno JúDicepRESERvAR A DifERENçANum recente abaixo-assinado contra o fim das huma-nidades na escola francesa, alguns dos melhores inte-lectuais desse país perguntavam se a França se teria tor-nado suicidária. Por aquilo a que hoje assistimos em Portugal, a situação não será muito diversa. Nas univer-sidades, a moda é a dos cursos em inglês talvez para in-glês ver; nas grandes livrarias, o panorama é o de best--sellers dispostos como detergentes numa prateleira de supermercado; e se ainda se ouve falar do país num sentido mais positivo do que as notas das agências de rating, isso deve-se a pessoas - cineastas, músicos, es-critores, arquitetos, etc. que se distinguem no plano internacional; e acrescentaria a esta lista algumas em-presas como a Renova (cujo papel nos representa com a imaginação que falta a quem nos governa, e não digo isto com ironia mas para elogiar essa empresa). Numa altura em que nunca houve tanta gente tão bem prepa-rada, em particular das novas gerações, há um total de-saproveitamento das suas capacidades. Se o futuro não é negro, é porque o povo tem a consciência histórica de que já passámos por coisas piores, e sempre sobrevi-vemos. E isso deve- se quase em exclusivo à língua por-tuguesa: foi ela que preservou a nossa diferença em re-lação ao resto da Península, impedindo uma absorção que pareceria natural por parte de Castela; e é através de quem a cultivou e cultiva - em Portugal mas também no Brasil e, agora, nos novos países de língua oficial portuguesa - que passamos por entre os pingos de uma crise de consequências ainda imprevisíveis sem per-dermos alguma crença na nossa continuidade, ao con-trário da Europa que parece já não acreditar em nada que valha a pena. Jl nUno túdtce

mário De cArvALhovALSA mAcAmbúZiASaúdem-se Paio Soares e Pero Meogo, dos prímórdíos, Reverência - por todos - ao enorme Luís Vazo Recorde--se o bom António Ferreira. Vivam os grandes escri-tores que ergueram uma língua de cultura. Posto isto, a tristeza de ver o português destruído pelos tratos que lhe dão no ensino e nas televisões. Outros re-sultam destes. O capitalismo quer consumidores. O ci-dadão não está no projeto. Desvalorizam a literatura, escondem a história, suprimem a etimologia, mini-mizam o vocabulário. Orientam o ensino para os anún-cios. Puro charlatanismo. Rasuram o teatro, as letras, o cinema, a ópera, a pintura. "Serviço público"? Lasti-mosa fraude do écran. Caso de prisão efetiva. Em Por-tugal já não existe massa crítica capaz de recuperar. A esperança é o Brasil. Removida a jagunçada banqueira e latifundiária o Brasil cresce culturalmente. O desvio Ohio- jamaicano que, antes, poluiu a Wikipédia e pro-duziu aberrações . colonizadas como "mídía", "mause", "checar", etc., pode ser superado. O Brasil criou autores dum português (do Brasil) lídimo, como Machado de Assis, Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. Em Parati ouvi falar um português perfeito, com o uso corretis-simo da mesóclise. Estes saberão mostrar-se à altura da bela e rica língua universal que herdaram da Europa. Quanto mais afas-tados da pobreza, mais gente culta haverá, capaz de as-cender à índole da língua. Para estes, o acordo orto-gráfico será apenas um pormenor (feio pormenor). Enquanto o português de Portugal soçobra, nesta valsa rnacambúzia que é a nossa sina. il mÁrio de cArVAlHo

Luís cArDosopáTRiADe todas as vezes que me pedem para falar da língua portugue- sa a minha primeira reação é de recusa, dado que já fiz uma centena de declarações sobre o assunto e tenho medo de me repetir ou de me contradizer. Tenho afeto pela língua com que muitos escritores por quem tenho respeito e admiração se ex- pressam' apesar de não ser a minha língua materna. Quando co-mecei a escrever as primeiras palavras, fi-lo em língua portuguesa. Lembro- me do pão quente com man-teiga com que o filho do padeiro me pagava pelas re-dações que lhe escrevia. Não, não era sopa. Lamento mas em Tímor ninguém comia a sopa. Não .constava na ementa do nativo. Lembro-me do rosto da colega de turma quando recebeu a minha primeira carta de amor e ficou com a face vermelha. TIve então consciên- cia da utilidade ímpar das palavras. Falar da língua por-tuguesa é também falar daqueles que um dia a utili-zaram nas montanhas de Timor para expressarem os seus sentimen- tos por todo o drama que estavam vi-vendo. Creio que sabiam o peso exato de cada palavra e do seu alcance. Alguns verteram lágrimas amargas ao escreverem as mesmas palavras que teriam extraido de um poema de um escritor que estuda- ram no Liceu. Outros morreram sem ter visto o verdadeiro alcance das suas palavras. No imaginário timorense, repartido por várias lín- guas nacionais, Pátria diz-se Pátria. O grande contributo da língua por- tuguesa para a cons-ciência de um povo, cujas tradições se alicerçam em mitos e crenças. Hoje tudo isso está subvertido pelos interesses ins- talados em Timor. Os mitos já não são o que eram o e as crenças valem o que valem. Excetoo barlake” que o povo tem de pagar. A um preço tão alto, que só Deus sabe ... oIL ‘Sarlake - Contrato matrimo-nial segundo os usos e costumes tradicionais, em que a família do noivo se compromete a pagar o dote à fa-mília da noiva. Jl lUíS cArdoSo

João De meLoA miNhA LíNguA pORTuguESANão me veio do berço nem do ventre materno. Eu e minha mãe herdámo-la de uma nau capitaina que aportou em pleno século XVI, carregada de povoadores que el- rei mandara a desembravecer as longes terras que se alcandoravam sobre o oceano ocidental. Depois a minha língua portuguesa subiu comigo pelo tempo acima, ano após ano e de terra em terra, até ser a "casa do ser que lá não mora", como no verso de Vitorino Nemésío. O verbo "povoar" foi por isso um dos mais belos: aprendi a conjugá-lo antes dos outros (ou então era daí que de- rivaram todos os verbos para mim, não sei). Vede como nele vibram as cordas sonoras dos pri-meiros passos sobre a pele da ilha! Chegaram, esco-lheram um ponto da cota mais afeiçoado ao desem-barque, entraram terra dentro e, subindo ao dorso de uma falésía não muito elevada (da qual se podia vigiar o horizonte contra as ameaças do corso e da pirataria), aí montaram casas, abrigos, defesas contra a cruel ru-deza dos ventos marítimos. Se bem que áspera sobre a erva, a língua dos nautas não deixou de me parecer graciosa, feminina. Mesmo naqueles sons aguçados, os-sudos, ou nos ditongos medievais, ou nas suas sílabas rochosas como os esporões e os calhaus do basalto. Era (e é ainda) a nossa língua de quatrocentos e quinhentos: a de Fernão Lopes e Gil Vicente! De cada vez que apor-tavam naus vindas de Lisboa ou do Oriente, iam à foz da rib iras "fazer aguada" (outra bela palavra portuguesa!) deixavam ao povoadores memória de outras que ainda ali não existiam. Muitas coisas (aves, árvores, frutos, especiarias) não possuíam nome: havia que apontar o dedo para as nomear - ou tão-só para exigir a sua exis-tência. A vida (minha, nossa) tem luz própria por causa dela - essa estrela de uma língua portuguesa que hoje ilumina a noite europeia, africana, asiática e brasileira. Contemplo-a nos sons, no corpo, na música das pala-vras. São as minhas ágeis, redondas, cantadas, elididas, verdadeiras, únicas, amadas palavras portuguesas. Que se dobram, multiplicam, aceitam gramáticas de outros povo e das suas línguas. E delas nascem frases, versos, ortografias, artes poéticas da prosa e da poesia. “Trans-forma- se o amador na coisa amada”, Luís de Camões. “O que em mim sente está pensando”, Fernando Pessoa. Trago em mim, no coração, palavras eleitas por aquilo que me sugerem: “melancolia” é talvez de todas a mais bela. E sempre que sinto o apelo da distância e os passos perdidos das viagens que não flz, ocorrem-me essas pa-lavras prévias que dão voz e rumo e caminho aos lu-gares do meu mundo desconhecido: mãe, sal, firma-mento, montanha, música, amor, mulher...Jl JoÃo de meio

Só para ti tiMinha pátria, minha língua Linha pátria, minha mínguaJuro-te, se fores minha gramática Eu serei tua sintaxe. É que, em ti, gosto de tudo Dossons,dosecos,dasurdez Até das tuas rimas fáceis Em extáse, em extáse. Certo, nem sempre nos entendemosDesgosto quando dizes atempadamente E tu enxofras com os meus isso é suposto. Mas não tem mal Um dia, num presente distante Voaremos juntos a uma ilha deserta Lá cantarás só para mim E eu, enflm (prometo que sim) Calar-me-ei de vez Só para ti. Seremos não mais uma língua e seu falante Tão só uma palavra(uma palavra simples o meu amante)Jl rUi Zink

rui zink

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02. DESTAQUE13. TEMA / LÍNGUA PORTUGUESA

mAnueL ALeGre

nÉLiDA piñon

GermAno ALmeiDAvALSA mAcAmbúZiA

O AmOR TENAZ

fAZER pARTE DO quE SOu

é A LíNguA quE mE EScREvEheLDer mAceDo

Sempre senti que, em português, não sou eu que penso ou escrevo. É a língua que me pensa, é a língua que me escreve. Se isso é amor, não sei. Nas outras línguas que também uso, os pensamentos vêm antes das palavras. Na língua em que sou, as palavras levam-me para além do que poderia ter pensado. Sim, deve ser amor. Aprendi em África esta língua em que me tornei es-critor, na mais remota Alta Zambézia, onde havia um velho muito velho que me contava histórias num por-tuguês de vogais abertas por outra língua que teria sido a sua, repetindo cada frase sempre com as mesmas pa-lavras, dizendo as vozes dos bichos, das plantas, do fogo, do vento, dos rios, conjurando os movimentos e as formas do universo com as suas grandes mãos da cor da terra, acocorados ambos no jeito africano de contar e de ouvir histórias. Sem que eu então o soubesse, es-tava a ensinar-me a língua da poesia. Como poderia de-pois haver qualquer outra? No entanto, depois, agora, vivo há mais anos em terras onde não falam a minha língua do que vivi na-quelas onde aprendi a ser quem sou em várias partes de África, de Portugal, do Brasil. É bom? É mau? Não sei. Poderia talvez ter escolhido ser escritor nesta outra língua estranha que me rodeia como se eu fosse uma ilha num mar alheio. Mas sei que não tenho escolha. E não tenho escolha por também ter aprendido com o bardo africano da minha infância que a língua portu-guesa é tão una e tão diversa como o universo que ele invocava com as vozes das suas mãos do tamanho da terra. Jl Helder mecedo

Não acredito em grande poesia ou literatura que não tenha o sentido, o dom da língua. Para mim o poema é algo que está dentro da língua. Há uma música se-creta da língua. E é com essa música que posso cantar de amor como em nenhuma outra língua do mundo. Sou um homem do extremo Ocidental da Europa, cresci a ouvir o marulhar do Atlântico, onde nasceram os ritmos e os decassílabos de Camões. Creio que toda a nossa língua está marcada por esse ritmo. Nas suas har-monias e nas suas dissonâncias, nas suas vogais azuis e verdes e nas suas consoantes sibilantes. Tem a cor do mar e o assobio do vento Oeste. Amo essa cor, esse as-sobio, esse murmúrio. E o cheiro a alga e sal. E o sol e o sul que estão dentro das sílabas. Há na minha língua uma aspiração universalista e, ao mesmo tempo, uma nostalgia da errância e um sentimento de exílio em re-lação à pátria física e à circunstância histórica concreta. Há na minha língua uma página chamada Atlântico, onde há sempre uma viagem que não acaba até outros mares e outros poemas. O meu amor começa na música secreta da da minha língua, porque a minha língua fez a minha pátria e porque pátria e língua portuguesa são sempre o outro lado da viagem, da errância e de outras pátrias. Oxalá o JL possa continuar esta viagem de amor e circum navegação. Jl mAnUel AleGre

Acaso lhe confessei meu amor pela lingua que me ungiu desde o berço? A lingua morena que é minha fortuna e me faz rainha? Com a qual escrevo livros, teço desa-tinos, enfrento enigmas, ganho pouso e graça, o mo-delo narrativo para a escriba que sou? E que transcreve os impropério humanos, os ais dos navegantes, a inten-sidade apaixonada dos amantes prestes a se perderem para sempre? Ela, contudo, é susceptível, ressente-se quando lhe sofreiam o uso desmedido dos vocábulos. Julga que seria como prendê-la com cordas às camas secas de um quarto de hotel com luz néon. Assim, sigo-lhe os ditames, deixo que ecoe em meu coração. Afinal, ela me estruturou o pensamento, cedeu-me o vizinho, os acordes de Mozart, facilitou que eu inquirisse sobre o significado de ser parte da poética da existência, da epopeia do cotidiano. Esta lingua, que é prólogo e epílogo, faz meu corpo existir. Com ela viajo pelo mar do destino. Já pelas ma-nhãs, ela em pessoa abre as cortinas da representação cênica do mundo e assopra-me a aragem do mistério. Como resposta, ativo à realidade, faço cintilar o seu timbre sensível, circunscrevo-me ao picadeiro humano. Sua sombra, porém, desapiedada, priva-me às vezes das cartas de amor resguardadas entre os lençóis que recendem a jasmim. Castiga-me com o fracasso. Mas consolo-me sabendo que enquanto o verbo projetar sua luz incisiva sobre o inventário da arte, eu não me exi-larei do mundo. Jl nÉlidA Pinon

Como prenda de aniversário pelos seus 32 anos, o JL quer apenas uma coisa: uma declaração de amor à lingua portuguesa! Ainda que insólita, seria uma prenda relativamente fácil de se dar se uma declaração de amor não implicasse o uso de "eu amo- te" , pedregulho entre todos o mais difícil de deixar o recôndito do coração e sair pelas ruas cantando, razão por que os cabo-ver-dianos sempre preferiram substitui -lo por expressões mais neutras, "Um creb tcheu!" , "Mi é dôd na bô" ... No entanto, esse presente é tanto menos custoso quanto é certo o JL sequer identifica a grafia em que gostaria de ver esse amor confessado, parece ser-lhe in-diferente um antes ou um depois do último acordo or-tográfico. A mim parece-me bem! Assim em pleno pe-ríodo festivo, não seria de bom tom terçar armas sobre os méritos e deméritos de uma ou outra forma de escrever a língua portuguesa, tanto Camões como António Vieira certamente se declarariam horrorizados se regressassem agora e vissem no que tem vindo a ser transformada a língua que tanto amaram e tão bem cultuaram. Ou não, bem podia acontecer que qualquer deles acei-tasse a evolução que se tem verificado ao longo dos sé-culos com a sua língua, afinal das contas o próprio con-ceito de díalétíca ensina que nada é perene, e ainda bem (leio hoje um texto D. Dinis ou de Fernão Lopes e dou graças por essa língua ter deixado - as formas arcaicas e crescido até onde se encontra hoje, e donde terá de partir para novos desenvolvimentos, desse modo com-prazendo aos que virão a aprender a amá -la e a usá-Ia. Sou cabo-verdiano, também faço resistência ao uso do verbo “amar”, e certamente que não será ainda desta vez que a norma doméstica será violada. Mas sequer preciso, o meu pais tem a língua portuguesa como ofi-cial e a cabo-verdíana como materna, eu cresci alimen-tado por ambas sem nunca diferenciar qual das duas era mais suculenta pois que as usava indiferentemente, e por isso ambas fazem partem do que sou, razão por que não quero viver sem nenhuma delas, sei que perder urna me amputaria em metade. Jl GermAno AlmeidA

hÉLiA correiA'pOR Ti Eu TROcO A NOiTE pELO DiA'Por ti eu troco a noite pelo dia,Como é o natural de uma paixão.Do fado e dos poetas que seria,E dos amantes, sem a escuridão?E salta-me no peito o coraçãoSe certa voz murmura e pronunciaPalavras já tão ditas mas que sãoPedaços de um segredo que arrepia.De Gregos descendente, de LatinosCom pouca corrupção dileta herdeira,'Menina e moça, ó flor de verdes pinosAlém da Taprobana transportadaE sempre renascida e sempre inteira,Eis a dito a língua, minha amadaJl HÉliA correiA

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02. DESTAQUE16. LETRAS

SôbOLOS RiOS quE vãOO irmão prof. de Medicina, neurologista, cientista e também ensaísta, Premio Pessoa, evoca o percurso comum com o irmão escritor, a grave doença deste e como ele transformou essa experiência "num admirável, e mal disfarçado relato autopatográfico" num dos seus livros mais famosos. JoÃo lobo AntUneS

Até terminarem o curso, os dois ir-mãos, separados por pouco menos de dois anos de idade, partilharam o mesmo quarto, acanhado e aus-tero. Nas paredes apenas a foto-grafia a preto e branco de Charlie Parker, o saxofonista maldito. Em vértices que se opunham em dia-gonal, um divã estreito. Cada um tinha uma estante / secretária onde habitavam duas bibliotecas inci-pientes que eles quase não parti-lhavam. Havia mesmo uma certa rivalidade hostil. O conteúdo dis-tinguiu-os desde muito cedo. Num lado, alinhava-se ciência nas fór-mulas simples das narrativas de Rómulo de Carvalho e da colecção Que Sais-Je- um prenúncio da sua devoção a Montaigne?-, além de romances, filosofia e alguma po-esia. No outro, vivia sobretudo po-esia que ia sendo arquivada numa memória prodigiosa. Aliás ambos a musculavam na procura da "vasta e infinita profundidade" de que falava Santo Agostinho. Quer o tempera-mento, quer a expressão de outras fa-culdades como a vontade ou a inteli-gência, por exemplo, os distinguiam.

Um estava marcado pelo ferro impe-rioso de um certo sentido do dever e estudava muito; o outro estudava pouco, mas escrevia páginas e pá-ginas que acabavam invariavelmente cesto dos papéis. Ambos frequentavam medicina. Um cresceu médico com o gosto pela escrita; o outro tornou-se escritor e aproveitou a medicina para alimentar a sua ficção. Tornou-se assim um "la-drão", como dizia de si próprio o grande médico poeta William Carlos Williams, porque "ouvia as palavras, frases conhecia pesas e lugares - e usava tudo isto nos seus escritos". O médico nunca se aventuro na ficção, embora guardasse um ma-nancial infinito de histórias. Mas não era capaz de atravessar aquela fronteira sem guarda, para além da qual o mundo singular da clí-nica revela a sua intimidade mais secreta. Contentou-se assim toda a vida, a beber as emoções contidas nas narrativas que ia ouvindo, bem ciente do facto de que a doença nos conta muitas vezes os seus segredos "in a casual whisper", na palavra de um sábio cirurgião inglês.

Concluído o curso, partiram: o mais novo para Nova Iorque, o mais velho para Angola. Um, foi aprender um ofício; o outro, foi aprender a guerra. Ambas as experiências dei-xaram marca indelével e moldaram decisivamente os sus destinos de ci-rurgião do cérebro e de caçador das vidas alheias. Este tornou-se famoso na selva da escrita, acumulando pré-mios e honras. o outro ganhou algum reconhecimento dos pares e um pú-blico modesto que apreciava aquilo que escrevia sob a forma de ensaio, o modelo de reflexão em que tentativa-mente, escoava a sua forma de pensar. É provável que cada um não lesse muito do que o outro escrevia, amador e profissional tão diversos no estilo e no conteúdo, mas havia entre eles um respeito quase so-lene pelo mister de cada um, pois reconheciam a seriedade do com-promisso que tinham assumido. Formavam pois um binómio com-plexo, razoavelmente equilibrado, mas mantinham ao longo dos anos uma distância quase cerimoniosa, que parecia diluir um afecto cuja profundidade era difícil de medir.

Até que um dia…Até que um dia foi diagnosticado ao irmão es-critor um cancro no intestino, e um clarão súbito iluminou com esplen-dorosa nitidez a intimidade de uma relação que ambos, no fundo, talvez desconhecessem. O médico foi ime-diatamente chamado, porque na-quela família de seis irmãos todos reconheciam a sua autoridade nestas matérias, sustentada talvez por uma sageza precoce, além do sangue-frio e racionalidade operativa com que olhava de frente o inimigo. A impas-sibilidade daquele cancro, naquele irmão, deixoulhe, no entanto, o co-ração suspenso. A notícia soara-lhe como o re-picar de um enorme sino na nave de uma catedral vazia. E logo sentiu aquele espasmo interior que ele tão bem conhecia e sempre lhe enco-lhia as vísceras nas ocasiões sérias. De imediato vestiu o seu trajo de "sobrehomem" que exsudava con-fiança na ciência, que enxotava as estatísticas fúnebres e que garantia que a eternidade estava, apesar de tudo garantida.

Dois anos depois, António Lobo Antunes (ALA) transformou a sua experiência num admirável, e mal disfarçado relato autopatográfico - para usar a nomenclatura certa-, cujo título foi buscar a Camões, Sô-bolos rios que vão. O livro chegou--me em 13 de Outubro de 2010, com uma dedicatória simples: "Para o meu João". Logo ao fim das pri-meiras páginas me surgiu uma invencível vontade de sobre ele escrever, e o incluir, como (ines-perada) preferência pessoal, neste cânone singular que concede aos seus autores uma absoluta liber-dade de escolha. Poderei explicar a minha por duas razões simples: em primeiro lugar, por considerar esta narrativa uma obra prima desta va-riação particular do género biográ-fico; em segundo lugar, porque há muito percebi que só devo escrever sobre o que me apetece, embora esta não seja condição e, muito menos, garantia, de qualidade intelectual ou estética. Será demasiado simplista classificar esta narrativa como uma história "médica", como as que es-creveu Chekhov, por exemplo, que, segundo dizia, ilustravam o "estofo

vulgar da humanidade". Ou, então, como as últimas novelas de Philip Roth, a mais recente das quais, Ne-mesis, fui lendo em paralelo com estes "Sôbolos rios", e que combina uma fira descri´ão clínica e epide-miológica de uma doença terrível - a poliomielite -, com a desespe-rada tentativa dos sus heróis de en-contrarem uma explicação para a incompreensível crueldade de um deus com uma alma sem ouvidos nem olhos. O livre de ALA está, quanto a mim, talvez mais próximo de Ravels-tein de Saul Bellow, aliás duplamente biográfico, porque é a história combi-nada das doenças de Allan Bloom e do autor, ou até do De Profundis de José Cardoso Pires, mas, em relação a este, o livro de ALA tem uma outra complexidade e opulência literárias. Devo dizer que a leitura inocente, a pura e dessinteressada imerão na escrita, não é possível quando está condicionada pelo propósito de es-crever sobre o que se lê. Não é que o não faça sempre com um lápis na mão, timbre do “verda-deiro” intelectual, que segue há sé-culos o conselho de Erasmus no seu

António Lobo

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02. DESTAQUE17. LETRAS

“De Copia” de 1512.Mas, nestas circunstâncias, esta é uma leitura a dois tempos, pois, à primeira apreensão do sentido do discurso, segue-se um segundo mo-vimento, uma nova leitura, da qual emerge um outro juício, mais ana-lítico, a confirmação da impressão inicial de que o livro contém algo de precioso, como se - e perdoe-se a infeliz metáfora-, na primeira se debatesse o brilho de um pequeno diamante, e na segunda se liber-tasse este da ganga que o prende. Muito se fala da dificuldade da leitura das obras de ALA. Percebese proquê. A sua escrita exige o foco de uma concentração absoluta pela complexidade da sua estrutura nar-rativa, que possui uma tal energia interna, que nos precipita numa lei-tura vertiginosa. Mas esta vertigem tem de ser controlada, sem o que o sentido do que se lê nos escapa irremediavel-mente. Ou seja, esta leitura obriga ao recurso equilibrado às mais so-fisticadas facultades dos espïrito, e admito que a corte eneorme de de-votos so livros de ALA tenha apren-dido um modo próprio de o ler. No meu caso a leitura era interrom-pida ao fim de dois capítualos, pois deixava exausta as redes neuronais

devotadas a tal função e exigia o repouso sinapses esgotadas. Para o leitor desprevenido, parte da dificul-tade deve-se ao facto de esta narrativa se aproximar do modelo que se tem chamado de “stream of consciou-sness”, que, neste caso, não se con-fina ao que sucede num dia, como no Ulysses ou em Mrs Dalloway, mas em dez, dez dias que se sucedem num fluxo tenebroso. A leitura é ainda exigente pelo menos por dois outros motivos. Em primeiro lugar, pela necessidade de não largas o fio do tempo narrativo, pois este obriga op olhos da inteli-gência a mirarem simultaneamente uma dízia de écrans que revelam cenas diferentes que ocorrem em tempos distintos em caótica dia-cronia. O que é evidente, mesmo para este não especialista, é o do-mínio assombroso da técnica, a caà-cidade de mantener a coerência da narrativa sempre tão tensa quanto a corda de um violino. Uma analogia musical que me pareceu apropriada à medida que ia ava avançando seria talvez a “Sagração da Primavera”. Em segundo lugar pela abundância das personagens. Algumas surgem ines-peradamente, com a impertinência de um “Jack-in-the-box”; outras são figu-rantes ocasionais e silenciosos que vão

aparecendo de forma recorrente, ou-tros ainda atores secundários numa comédia dramática se é permitido o oxímoro. Herói só narrador. Em contraste com a complexi-dade da estrutura da obra, a es-crita é de uma extraordinária sim-plicidade. Ala tem em relação ao diálogo, o que Mozart tinha em relação à música - um ouvídio ab-soluto. O discurso é um “stacatto” de frases muito curtas: “Porque me atraiçoaram voçês?”; “Não foi por mal senhora”; “Tira os sapatos da poltrona”; “Há quatro anos não me visitas a campa”; “ Estás óptimo”; “Quando cresceres comrpeendes”, cada uma absolutamente certeira. Algumas têm o registro de uma metafísica ditraída: “Porque motivo não morres?”. Outras são desabafos impacientes--”Alcancei a veia e perdia-a”. E no meio desta prosa, vamos tropeçan--do em metaforas e imagens de uma luminosa veracidade:-”Minha mãe antes dos pulos algemados no terço”; “E ficaram ambos ciercunflezos de melancolia”; “O granito que segre-gava lagartitxas” essa lagartitxa a “aprender a ser pedra numa falha do muro”; “ninhos de cegonha pin-gavam chaminés abaixo”. O que é contado neste livro, tão

contidamente biográfico - “Anto-ninho” e “Antunes” assim se chama o herói - é a história da estadia do autor no hospital onde foi operado a um cancro do intestino entre 21 de Março e 4 de Abril 2007. Cada dia é uma estação de uma via sacra cujo final o autor não revela. Para mim, reconheci nele muito que me era familiar, porque nele encontrei fragmentos de vida que eu já co-nhecia antres do livro ser escrito - personagens, cenários, situações re-tiradas do património familiar, da memória coletiva privada. Por isso, escrever sobre este livro é quase uma traição, a revelação do segredo de um truque de magia. E, no entanto, senti-me confor-tável com esta intimidade ficcional, que anulava, pelo argumento de uma cumplicidade de muitas dé-cadas, a respeitável distância entre o autor e o leitor. Mas para vencer a curiosidade irresistível de co-nhecer como ALA vivera a experi-ência aterradora da doença, e para tnetender melhor, era preciso cris-talizar em forma escrita muitas im-pressões desta viagem “sôbolos rios”. Por outro lado, o meu inte-resse derivava ainda do facto do es-critor - que acontece ser meu irmão - estar a falar do meu ofício, cujas

múltiplas faces são mais justamente apreciadas por quem olha para nós, porque não se inventou ainda o es-pelho que nos devolve tal imagem.Esta é a memória episódica de uma doença tal como esta se desenrolou no quotidiano de um internamento hospitalar. As referências explícitas à razão deste e à natureza da doença que o determinou encontram-se dis-persas e quase submersas na narra-tiva, mas emergem, como golfinhos, com uma periocidade sem regra, como que para recordar o que cons-titui o cerne do sofrimento do autor, muitas vezes inscrito num mundo onírico ou mesmo alucinatório. O contraste entre a autoridade imperial do médico, sempre iden-tificado como o “homem do pingo no sapato”, e a vulnerabilidade ab-soluta do doente marca toda a narrativa. Ao herói resta o refúgio regressivo nas memórias de uma in-fância vivida no cenário que ALA constrói a partir de recordações das férias em Setembro numa vila de Beira Alta, nessa casa cujo casta-nheiro grande lhe dava o nome, e num tempo em que ainda ninguém morrera e éramos todos felizea, para recorrer ao verso pessoano. GonçAlo roSA dA SilVA

AntunesAntónio Lobo

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02. DESTAQUE18. LETRAS

E é na árvore, naquele castanheiro tão fértil, que ele encontra uma me-táfora adequada ao cancro que o aflige: o ouriço que vai "aumentando em silêncio", porque como disse um outro escritor, Harold Pinter, as cé-lulas cancerosas "have forgoten how to die I and so extend their killing life", renovando-se implacavelmente como os ouriços do castanheiro. Era nessa casa que conviviamos com um avô que morreu, mais novo do que nós somos agora de um mesmo cancro, que ele recorda a ler na varanda o "jornal com o seu apare- lho de surdo" e de quem her-dámos, como nossa mãe, esse traço genético. O ritual da morte nessa terra da Beira Alta era bem dife-rente da liturgia urbana, a que as agências funerárias da Benfica da nossa infância garantiam uma lú-gubre solenidade - Benfica é dona de um vasto cemitério, onde se en-contra o jazigo familiar. A morte que o autor descreve era a dos an-jinhos vestidos de branco levados à sepultura em caixão aberto for-rado de setim, acompanhados de "outras crianças vestidas de serafun de guarda ao caixão", com "asas mal coladas nas costas". As personagens que habitam a nar-rativa são, naturalmente, os fantasmas dessa infância: Vírgílío, homem da la-voura de uma senhora dulcíssima que ele provavelmente amava em silêncio, e que conduzia uma carroça puxada por uma burra, a "Carriça", que nos parecia enorme, o senhor Vigário, a Dona Irene que, dizia-se, tocava uma harpa que nunca ouvimos, o senhor Casirniro da loja que vendia tudo e, no alto da escada de uma casa quase se-nhorial, D. Lucrécía, , pergunta: "O que se passa com o miúdo?" E a resposta é de uma franqueza crua, de uma frí-gida neutralidade clínica: passa-se que há "células podres do intestino a in-vadirem - no destruindo os pulmões, os rins, o fígado", uma traição mons-truosa de uma parte do corpo, subita-mente tornado inimigo: "ele a encher--se e esvaziar -se num ritmo penoso, cada célula uma boquinha aflita, cada nervo um arrepio brando". E o "mé-dico do pingo no sapato" mostrava ao dono do hotel onde, em miúdo, apa-nhava as bolas de ténis com que o

pai jogava com uma enigmática in-glesa loura" o "ouriço da doença" . E dizia: "Não sei se consigo desprendê--lo do ramo", salpicando o discurso de sentenças curtas, num presságio omi-noso: - "Não gosto desta vértebra". Afinal era necessário esperar" o resul-tado da peça/ e que curioso chamar peça à doença" . Mesmo assim, a es-perança não e submete pois essa criança: "tinha a certeza de não morrer nem se tornar num retrato que um suspiro emoldura". O nevoeiro do despertar da anes-tesia é magistralmente descrito: "Formas que iam, vinham e tor-navam a ir, se sobrepunham e afas-tavam, rodavam lentamente ou ele-vavam -se e caiam depressa ( ... ) Tentava dar nome às formas e não achava os nomes ( ... ) Não tinha corpo, era uma forma entre os res-tantes formas". E no acordar a voz da mãe:' "Começa a dar por nós". Ainda incapaz de falar, contudo, "o começo da língua e um tubo a atra-vessar os dentes". ( ... ) Se apenas falando, embora não desse pelas frases, tinha a certeza de ser". Só mais adiante, quando começa a er-guer-se de uma amnésia movediça, ele recorda a anestesia, "invisível no excesso de brancura. / Feche o pulso com força / e fechou o pulso intimidado a pensar / Socorro". A vulnerabilidade é absoluta, como se o eu autónomo, o eu social o tivessem abandonado, desistido dele próprio: "Puseram-lhe fraldas e não estranhava as fraldas, lim-pavam-no com um pano e as suas intimidadas a balouçarem inúteis". E ainda: "Sentia a urina na algália não lhe pertencendo, atravessava--o apenas como as recordações e as ideias o atravessavam apenas, o pas-sado remoto, o presente alheio, o futuro inexistente". O esvaziamento de si era aterrador: "via caras e não conhecia ninguém, falava-Ihe e não escutava, ocupavam-se dele e não era dele que se ocupavam". Deixara de ser "pessoa sem dar conta, era um peixe numa água mais espessa que a água, a que outros chamavam ar e ele chamava ar igualmente antes da dor que não chegava a dor". Já antes notara que logo após o acordar "embora a incisão principiasse a

maçá-lo", aquilo não era dor ainda: era a "vizinhança da dor". De olhos já abertos vai regis-tando o que se passa: "Se uma cam-painha tocava traziam um biombo e atrás do biombo agitações, mur-múrios, as lâmpadas pestanejavam sinais". Uma "empregada de hotel corrigiu- lhe os pingos do soro e as narinas observadas do traves-seiro gigantescas". E ainda notando: "Morreu alguém no hospital, ele ou outro porque mais vozes no cor-redor, mais passos e a porta fechada num com licença apressado" .Ele era o destinatário de frases curtas, sem uma pitada de afeto (mesmo que simulado): "Vamos meter um antibiótico no soro", "Não se en-tende esta febre", "Uma picadinha", "Hoje em dia temos mais recursos". O tempo é agora sentido de outro modo: "Os relógios marcam as horas uma a uma mas os dias sucedem-se aos pulos, vão de sábado a quinta e de segunda a sexta, semeado de in-tervalos que a lembrança perdeu". À medida que os dias correm parecia ganhar uma outra lucidez, mas o refúgio na infância é ainda o mais seguro. Os comboios que via passar da varanda da casa, re-cordam -lhe a carta que escrevera a Deus no Natal pedindo-lhe um comboio elétrico. Mas Deus de-lega na avó a resposta seca: " - Ele acha muito caro". Descobre "como o mundo se modifica ao darmos-lhe atenção", um mundo de flores, frutos, insetos, pássaros e gatos. Agora pa-rece- lhe que tudo isto fora imagi-nado: "inventei esta doença que por seu turno se inventa conforme in-venta o hospital, os médicos e a fan-tasia do morrer". Já quase no final chega uma ex--mulher: "Ainda que não acredites, e é evidente que não acredites, não nos vemos há anos, sou o que dei-xava a toalha obliqua no toalheiro e tu endireitavas irritada comigo / - Nem isto sabes fazer?". Ela senta--se na ponta do colchão esperando que ele não lhe tocasse; "e não to-quei a fim de não ser expulso por um cotovelo maçado / - Não se pode dormir?" Está assim reduzido à con-dição de viúvo que antes descrevera assim: "o viúvo que se esquece das

coisas, o tubo da graxa sem rolha ( ... ) só metade da cama desfeita e na outra metade um vazio a que se ha-bituara como ao avental no gancho". Deixei para o fim aquilo sobre o qual é mais difícil falar - a súplica in-sistente que a personagem dirige aos pais. A mãe é um ser discreto, mas é ela que surge no fim da história. Como eu sempre escrevi, a doença, quando vence a morte, é como um regresso após uma viagem, uma odisseia atribulada, a excursão de "uma vida cheia de passados e não sabia qual deles o verdadeiro". Na sua viagem chega a um porto tran-quilo, agora "sentado no chão à me-dida que a mãe enjeitava a máquina de costura e a enrolar-se nas penas para a ouvir cantar. O pano caíra: "A enfermeira já desligara o écran, ti-rara a agulha do soro, fechara o oxi-génio" . Já o vestiram de outro modo e a avó comentara: ''Assim compos-tinho até pareces um homem". A mãe fizera -lhe a risca no cabelo, mas era o mesmo menino que nas-cera com "três quilos e duzentas numa toalha de linho", "três quilos e duzentas de secreções e pregas e um cordão roxo no umbigo". Mas já nascido ainda desejava que a "mãe o lambesse como I fazem as ovelhas". Mais enigmática é a per-sonagem do pai, a quem o liga uma cumplicidade que nasce de uma his-tória "louche" com uma empregada doméstica: "- Sabes o quê paizinho? / nunca o tratava por / - Paizinho / e todavia existiram ocasiões em que no interior de si / - Paizinho / e ele abor-recido com o / - Paizinho".Esta é uma admirável, pungente e an-gustiante descrição da orfandade da doença, orfandade para a qual muitas curas têm sido propostas, mas todas com pouco préstimo, por- que esta é uma solidão que a voz ou a presença dos outros, mesmo quando desejadas, só fugazmente aliviam. O enigma do título só no final é decifráveis, e a sua escolha não poderia ser mais justa pois, como escreve Camões em certo passo, "Bem são rios estas águas, /Com que banho este papel; /Bem pa-rece ser cruel! Variedade de mágoas/ e confusão de Babel".Jl

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02. DESTAQUE19. PUBLICIDADE

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02. DESTAQUE20. LETRAS / LIVROS

“Diabolica e requintada, a poesia de Golgona Anghel é uma maquina im-placável de irrisao” (Antonio Guer-reiro); “Especie de enciclopedismo para pós-apocalipticos, o saber dispo-nibilizado nos poemas não é afronta, nem pompa – é vestígio.” (Hugo P. Santos); “[Este livro]é um dos mais in-teressantes de entre aqueles que foram publicados nos últimos tempos em Portugal e um dos melhores escritos por uma jovem poeta” (David Teles Pe-reira). A receção foi entusiasta, como se vê. Vim Porque me Pagavam, agora em reedição, confirma a voz de Golgona Anghel como uma das mais ambiciosas da novíssima vaga de po-etas recentemente surgidos. Dir-se-ia que a profusão de livros de poesia publicados e de poetas revelados nos últimos três a cinco anos é sinal de uma nova agitação de águas, um pouco como o que há dez anos sucedeu, quando entre uma poesia “sem qualidades” e uma outra linguagem, de aposta mais imagética e, por isso, menos des-critiva e coloquial, se estabeleceu uma, nem sempre foi a poesia, em si mesma, que ficou ganhando com o debate. Golgona Anghel assume, em todo o caso, não querer per-tencer exatamente a filiação al-guma, por muito que certos re-cursos não estejam longe do que

veio a ser mais comum: conceber o poema como narrativa de episó-dios banais e de circunstância. Não raro; encontraremos as mesmas imagens e atmosferas decadentes e uma anulação do trabalho retó-rico que à poesia exigia… Anghel, em todo o caso, podendo descrever esse mundo pós-apocalíptico de que fala Hugo P. Santos, nem por isso sacrifica à mera descrição ou à enunciação autobiográfica aquilo que mais lhe importa, a saber: rir de tudo, como se, mesmo sem ser evi-dente, falasse com a tradição vinda de Cesariny ou de O’Neill, de Adília Lopes ou mesmo de Tiago Gomes. É, pois, uma poesia culta que se quer apresentar ao leitor como des-pretensiosa e sardónica para com a erudição literária. Sobra, pois, a visão de uma cultura de capitadas, entregue ao cepticismo que mina as relações, a vida e toldade uma ne-gritude o riso e o sorriso do sujeito destes poemas. Detestar o Doutor Fausto é, tao-só, fazer de conta, te-atralizar um “não quero saber” que vai bem com o “engraçadismo” vi-gente neste tempo alarve e de riso fácil. No limite, quer-se, aqui, ser contemporâneo do humor (ultima arma da indigência) à portuguesa, aquele que se vê nas inteligentes sessões de stand up comedy. O

título, alias, é todo esse programa. De facto, falando-se de Trakl, de Cioran, do jovem Werther, e quando tudo poderia indiciar um discurso catastrofista e decetivo, artificial-mente de adesão aos suicidados da história, eis que a voz da enunciação corta com essa ambiência cultura-lista no texto e declara: “ O mais di-fícil foi, no entanto,/ desaparecer para depois surgir/ com estas luvas anti-bacterianas/ e os comprimidos bacterianas/ e os comprimidos anti--stress.” (p.75). Nem o corvo, já em-blema literário escapa à irrisão de Golgona. Esmagado contra a porta da casa, é a própria Literatura que se esmaga. E por isso, em Vim Porque me Pagavam - e para alguém que veio de fora esta titulo esclarece muito. O elenco da visão é, não raro, enume-rativo, convidando a ler-se nesta po-esia mais do que está escrito. Pode-se fazer a lista das figuras que aqui des-filam: das empregadas brasileiras aos “sonhos transatlânticos” e ver-se-á, enfim, a preocupação maior desta po-ética – ser a voz deste “tempo deter-gente”. Literalmente Golgona consegue comunicar com o leitor uma visão da realidade que, por alegoria, metaforiza o que se observa: “ A depressão começa a andar na moda/ Fiz diabetes, cortei as veias duas vezes,/ fugi de casa, gastei uma mulher em cada livro,/ perdi a

paciência, o rumo da historia,/[…]/(tinham entretanto inventado a tele-visão)/ no minúsculo/ buraco negro/ duma bala” (p68). O certo é que, vendo a realidade cinzenta dos dias, acaba-se por edificar uma mascara que está na posse de um saber (repete-se o verso “porque eu sei que”) o qual é, na ver-dade, conferido pela Literatura. Para-doxo: entre dizer-se que se faz po-esia porque sim, e assumir, sem pejo, que ela é feita porque há vá-rios modos de se pagar a quem a faz, Golgona acabo por deixar o leitor perante os estilhaços deste livro. Ultima questão, pois: Há cria-tividade nos textos de Golgona An-ghel, é certo. Mas lembremos, para o futuro dos seus livros, o que um dia escreveu M.S. Lourenço, em Os Degraus do Parnaso: “[…] A situ-ação que atualmente se vive é a da abolição da diferença entre o lite-rato e o analfabeto secundário, ne-gociando ambos um consenso de mediocridade, o qual produz uma legitimação reciproca e sem con-flitos. […]. E, assim, o escritor legi-tima a plebe audiovisual, não fazendo exigências retoricas ou prosódicas ao seu público, enquanto este por sua vez legítima o escritor não fazendo exigências, nem de forma, nem de es-tilo.” (pp.68-69). Esperemos para ver. Jl AntÓnio cArloS corteZ

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02. DESTAQUE21. LETRAS / LIVROS

cArLos noGueirAA SáTiRA pORTuguESAPublicado na coleção Textos Universi-tários de Ciências Sociais e Humanas, este livro corresponde à tese de dou-toramento que Carlos Nogueira apre-sentou em 2008 à Faculdade de Letras do Porto. Nasce pois no âmbito acadé-mico, sem contudo deixar de ser atra-tivo junto de um público mais alar-gado. Para isso, contribui largamente a clareza e fluidez discursiva do autor, mas também o facto de se ocupar da sátira; um género que se enraíza na mundividência portuguesa de todas as épocas, mas sobretudo em períodos de crise, quando o sentimento intimo de desordem dá lugar à catarse, pela denuncia dos vícios, defeitos e injus-tiças sociais. O livro, que ganha assim em atua-lidade, sobressai alia no nosso pano-rama editorial, pelo folego da síntese que empreende em torno do objeto de estudo: a tradução da “sátira na poesia portuguesa, mas também o pensamento, o sentimento e o dis-curso satíricos em geral”(p.19). Fundamentalmente, a estratégia adotada pelo autor assenta numa estrutura tripartida: o primeiro ca-pitula onde procura combater al-guns vazios e dogmatismos teóricos (p.21-88), um estudo diacrónico da nossa poesia satírica (apreendida sincronicamente no quadro teórico que marcou os vários períodos ou movimentos literários – p.89-561) e por fim uma análise critica, “simul-taneamente comparatista e disjun-tiva” , de três autores representativos

da maturidade satírica portuguesa: Nicolau Tolentino, Guerra Junqueiro e Alexandre O’Neill (p.563-736). Na primeira parte do estudo, o investigador começa por desfazer o equívoco (muitas vezes enraizado no senso-comum) que opõe lirismo a sátira, como se esta realização fosse incompatível com a sublimidade do discurso lírico. O que o autor nos demostra é que a poesia satírica – contrariando qual-quer hierarquia dos géneros ou pre-conceito de estilo – não representa mais do que um modo derivativo, ple-namente integrado no modo lírico (p.168), cuja visão complementa, par-tilhando alias muitas das formas, téc-nicas e mecanismos retóricos (p.56). Á semelhança do que outros estu-diosos observaram para o quadro es-pecífico da lírica galego- portuguesa, Nogueira defende que os textos satí-ricos, na sua generalidade, tem de ser vistos como exercícios integrados no mesmo código formal e ideológico que, ao longo dos seculos, presidiu também ao registo amoroso ou ele-gíaco. Isto mesmo se encontra larga-mente examinado na segunda parte do trabalho, onde o autor acom-panha a evolução da poesia satírica portuguesa, desde a época medieval ate á literatura contemporânea. Ao longo de 400 páginas, percorre a dia-cronia, focando sobretudo os poetas canónicos, mas também outras vozes importantes para a compreensão da sátira, como os poetas populares, os

célebres cantores de intervenção ou a mais genuína oralidade anonima do cancioneiro tradicional. Na impossibilidade de contem-plar todos os nomes que fizeram a história da nossa sátira (ate pela inacessibilidade material de muitas obras, que nunca chegaram a vir a lume), a estratégia de Carlos No-gueira passa, antes de mais, por evitar a “mera inventariação e en-cadeamento de poetas” (p.739). In-versamente, procura articular visões de síntese com a individualidade das obras selecionada, confrontando, a cada momento, a prática poética dos autores com teorização que simul-taneamente foram empreendendo, por vezes até de forma contraditória. O resultado é uma história crítica da nossa poesia satírica, centrada na “reflexão, teórica e prática” (p.739), que permite, desde logo, reconhecer duas grandes linhas estruturais: uma mais benévola e contida ao nível dos meios expressivos; a outra mais con-tundente, pelo usa da imprecação e das obscenidade (p.420). Os três poetas exemplares, que apa-recem destacados no último capitulo, ilustram justamente essas tendências. Nicolau Tolentino de Almeida, cuja teorização entronca no pro-desse ac delectare horacianos, re-presenta o olhar simultaneamente lúdico e morigerador de quem de-ambula pela cidade (p.740), aten-tando nos pormenores, para edi-ficar a caricatura irónica que faz

desta sátira uma autêntica represen-tação visual da condição humana portuguesa em finais do séc. XVIII (p.614). Guerra Junqueiro, cujo conceito de sátira sugere a contundente execução corpórea sobre um objeto (p.621), re-presenta a máxima seriedade de uma poesia agónica e panfletária (p.647), fundamente comprometida no jogo político-social da altura. A impre-cação da poesia, apaziguada por ins-tantes de recolhimento elegíaco, é um cruzamento de varias tonalidades iró-nicas e sarcásticas (p.685), cuidadosa-mente geridas ao nível retórico, para provocar efeitos junto das massas. Finalmente, Alexandre O’Neill re-presenta um conceito de sátira am-bíguo, conjugando a indignação sub-versiva com o inevitável trago da decepção magoada (p.702). O ímpeto demolidor da sua sátira irrompe dia-bolicamente num calão sexualmente ofensivo (p. 700), que a todo o mo-mento procura subverter os preten-siosismos da cultura totalitária (onde a linguagem poética se insere). Do geral ao particular, Carlos No-gueira disponibiliza assim, neste livro, uma leitura estruturada a vários níveis, que alia a seriedade dos trabalhos aca-démicos ao incomparável gozo que só os textos satíricos proporcionam, na actual conjuntura de crise. Também por isso, a sua leitura é incontornável. Jl elSA PereirA

>>>cArloS noGUeirAA SÁtirA nA PoeSiA PortUGUeSA e A PoeSiA SAtiricA de nicolAU tolentino, GUerrA JUnQUeiro e AleXAndre o’neill.FUndAçÃo cAloUSte GUlbenkiAn/FUndAçÃo PArA A ciÊnciA e A tec-noloGiA, 828PP, 45 eUroS.

O Teu Rosto Será o Último, Prémio Leya 2011, primeira obra de João Ri-cardo Pedro, um romance de apa-rente leitura simples, fluida, suave, é sustentado, no entanto, por uma es-trutura de grande complexidade. Ainda que labiríntica, a estrutura es-tética que suporta a totalidade do ro-mance emerge, primeiro, através de um estilo harmónico, cruzando e fundindo inúmeros espaços, tempos e personagens, umas permanentes, outras avulsas e, segundo, por via de uma rede solta de inúmeras e di-versificadíssimas acções e situações. Seja pelo primeiro, seja pelo segundo elemento da composição, é um ro-mance que exige uma atentíssima lei-tura que, porventura, só numa poste-rior releitura conquistará o leitor. Já munido de um certo grau de conhe-cimento das linhas estruturantes do romance, o leitor usufruirá, então, de um verdadeiro prazer estético. Os capítulos curtos e os pará-grafos soltos parecem resultar de uma voluntária contenção narrativa, que subtilmente deixa de suspeitar o sentido da mente deste um rasto de significação que, colado e cru-zado aos restantes, vai gradualmente compondo na consciência do leitor

a estrutura e o sentido do romance. Intermedeia diálogo e narração em períodos brevíssimos, compondo blocos de textos que, em jeito de pu-zzle, se vão organizando na mente do leitor, forçando-o a reconstruir a cronologia e a ordem estrutural. Estilisticamente, O Teu Rosto Será o Último balança entre a frase curta, condensada, de timbre, lírico, de evi-dente inspiração visual ou cinemato-gráfica, exprimindo sinteticamente a preparação ou o resultado da acção, e uma detalhada descrição da reali-dade exterior (ex.: pp. 132-33, pro-cesso estilístico repetido ai longo do romance), leitmotiv do nouveau ro-mance francês da década de 60, re-produzida em Portugal por Artur Portela Filho e Alfredo Margarido. Neste sentido surgem, entre perí-odos narrativos, descrições porme-norizadas da ida ao supermercado, da entrada no prédio da habitação até à abertura da porta do apartamento de Queluz… Mais sugerindo que descrevendo, existe indubitavelmente uma mestria no exercício da ligação harmónica e umbilical entre o plano na história contemporânea portuguesa de Salazar a Cavaco Silva, e o plano da ficção.

Neste sentido, não existe apenas o lan-çamento de pontes entre ambos os planos, como se a História se consti-tuísse como horizonte de fundo da ficção, e esta se evidenciasse como destaque daquele, como aconteceu na maioria dos romances portugueses. Diferentemente, João Ricardo Pedro consegue de tal modo entrelaçar e fundir a História real com as persona-gens que ambas se tornam indistinguí-veis no corpo do texto. Ao contrário da maioria dos romancistas portu-gueses vivos, incapazes de dominar narrativamente as diversas dimen-sões do tempo, o autor não começa nenhum capítulo nem nenhum pará-grafo com o tão parasitário quanto es-teticamente horrível “entretanto” (ou, nos clássicos como Pinheiro Chagas e Mendes Leal, “entrementes”). Abordando a história contempo-rânea portuguesa desde a década de 1950 até à actualidade, o nar-rador faz o leitor entrar nela pela mão da família Mendes: Augusto e Laura; pais, António e Paula; filho e neto, Duarte. São assim três gera-ções que, entre uma aldeia não no-meada (com nome de “mamífero”) na serra da Gardunha e Queluz, às portas de Lisboa, reflectem, para

além da idiossincrasia individual, banhada de lirismo, a tragédia exis-tencial de terem vivido em Portugal. A tragédia é expressa no drama-tismo consubstancial às constantes mortes escritas no romance: o avô materno morre torturado pela PIDE; o avô paterno morre entre-vado, após um ataque de coração quando assistia, no Fundão, à pas-sagem da Volta a Portugal em bici-cleta; a mãe, Paula, morre com um cancro na mama, o pai, António, sofrendo de stress de guerra, sui-cida-se após a morte da mãe, com o conhecimento e consentimento do filho, Duarte; Celestino, o pro-tegido do dr. Augusto Mendes, sui-cida-se ou é morto (não se sabe); a morte sinistra do Índio, menino pobre da aldeia; o próprio Duarte, em criança, motivado por uma pulsão biológica, mata um animal, que depões na cama dos pais, mu-tila formigas e despe-se à frente da menina Luísa, com quem, no final do romance, porventura ca-sará (não se sabe); o dr. Augusto Mendes isola-se nos contrafortes da serra da Gardunha, abando-nando definitivamente o Porto (não se sabe a causa). Ou seja, o

elemento trágico dissemina-se pela totalidade da narrativa, sempre en-volto numa escrita lírica, e Du-arte, “o maior beethoviano do seu tempo” (p.76), abandona o piano após três desmaios quando tocava Bach, considerando que a música (a arte) lhe amputava ou sugava a vida, como a mulher austríaca, fale-cida em Buenos Aires, no hotel Po-licarpo, amputara a perna direita para se identificar com a mulher amputada do quarto de Bruegel pa-tente no museu de Viena. Tragédia expressa liricamente, O Teu Rosto Será o Último (que rosto?, o de Duarte?, o de Luísa?), pela sua qualidade, honra o mais avultado galardão literário português, e o seu autor veio para ficar, de certeza. Jl miGUel reAl

os DiAs DA prosATRAgéDiA LíRicA

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02. DESTAQUE22. LETRAS / LIVROS

pepeteLADE LuANDA A bENguELA, Em buScAR DO SOmbREiROCom o seu último romance, A sul. O Sombreir, Pepetela convida os leitroes a (re)visitar os primeiros tempos da ocupação colonial por-tuguesa dos territórios de Angola, altura em que a coroa portuguesa pertencia ao rei Filipe de Espanha, Viviam-se momentos particular-mente conturbados com o país sub-jugado por outro mas que man-tinha o seu desejo de dominação de terras e povos de além-mar. É, pois, a história da conquista do ter-ritório que se tornará a futura ci-dade de Benguela que o autor nos traz, abrindo-se de forma descon-certante e promissora de grandes aventuras contades em tom irónico e expedito: “Manuel Cerveira Pe-reira, o conquistador de Benguela, é um filho de puta”. Ao longo de perto de pquarto centenas de páginas, Pepetela cons-trói uma narrativa através de um jogo complexo e interessantíssimo de fragmentos de histórias indivi-duais e da História oficial que se en-trelaçam e se sobrepõem de forma surpreendente.O entrecho arqui-teta-se segundo dois níveis tempo-rais, aos quais correspondem nar-radores com poder e conhecimento diversos. A História surge como uma forma concreta, como o re-sultado de experiências vividas por personagens que, alternadamente, vão tomando a palavra para con-tarem a sua perpetiva dos aconteci-mentos e de quem neles participou.. Estes retratos de memórias indi-viduais (de, entre outros, Manuel Cerveira Pereira, o padre Simão de Oliveira, a bela Margarida, Carlos Rocha) são balizados por comentá-rios de um narrador que, por não pertencer ao tempo da história, tem um conhecimento total não só dos acontecimentos e dos seus interve-nientes mas também do desfecho e

das consequências dos atos prati-cados nas primeiras décadas do sé-culo XVII. Vários indícios assim como co-mentários desta curiosa perso-nagem, tais como “era realmente um grupo multicultural, como se diz hoje” ou “a sua morte anun-ciava o fim da colónia de Benguela independente de Luanda. Mas isso nem Mulende, nem Carlos, nem Kandalu, nem os mudombe oua as jagas podiam perceber”, ou ainda “tornou-se [a igreja de Jesus] na sé da cidade já depois de 2000”, per-mitem-nos situá-lo na contempora-neidade. Esta circunstância propor-ciona-lhe o distanciamento críticio e fundamentado que utiliza em abundância no realto da conquista de Benguela. Neste livro, o autor regressa a um diàlogo peculiar com a História que tinha encetado em 1997, com a pu-blicação de A Gloriosa Família - O tempo dos flamengos (GF). Como várias vezes se tem afirmado, a obra de Pepetela funda-se numa inces-sante (re)visitação da História de An-gola: dos seus mitos, das suas per-sonagens, dos acontecimentos que marcaram o percurso da construção da nação. No entanto, nesse incon-testável continuum temático existia, até à publicação deste novo romance, um exceção (utlizando este termo no sentido etimológico: de um fenó-meno limitado e restrito) no trata-mento diegético e construção efabu-lativa desse tem, que era de GF, cuja a singularidade resulta da intrincada e sábia mescla entre documentos his-toriográficos e a efabulação literária. Recorde-se que em GF se narram os sete anos ( de 1642 a 1648) de ocu-pação holandesa de Luanda. Abre--se a narrativa com a citação de um excerto de um texto fundamental da historiografia de Angola, da autoria

de António Oliveira Cadornega: História Geral das Guerras Ango-lanas, que apresenta um cidadão de Luanda, Baltazar Van Dum, que se torna, pela mão de Pepetela, no pro-tagonista do romance. Para além deste texto basilar da historiografia angolana, outras epígrafes de outros tantos documentos historiográficos (devidamente indentificados através de referências bibiliográficas com-pletas) abrem os vários capítulos, re-forçando e aprofundando o diálogo

entre a literatura e a História.Essa singularidade de construção diegética na produção romanesca do escritor é agora contrariada com a publicação de A Sul. O Sombreiro (ASS), que se constitui como um feliz e admirável regresso à mete-ficção historiográfica (tal como a de-finiu a Linda Hutcheon), ao tempo que antecede aquele narrado em GF(Manuel Cerveira Pereira chega a Luanda com o cargo de capitão--mor nos primeiros anos do século XVII e morre em 1626, cerca de dé-cada e meia antes da dominação ho-landesa). Com efeito, a ameaça da ocupação holandesa de Luanda já pesponta na narração, havendo re-ferências fugazes às intenções de conquista dos holandeses das terras

ocupadas pelos portugueses, nome-adamente no relator do governador.Em ASS, o questionamento da His-tória faz-se pelo viés de um atu-rado diálogo com os ducumentos historiográficos por detrás do qual se adivinha um intensa pesquisa documental, aliás confirmada ex-plicita mente em nota autoral de posfácio e de modo mais subtil ao longo dos relatos. Num jogo, a que Pepetela já habituara os seus lei-tores, somos confrontados com re-ferências a factos apresentados e comentados pelo narrador que su-brepticiamente nos vai dizendo do seu trabalho de pesquisa. Por isso, referindo-se as fontes consultadas, ad-verte-nos que “os registos não men-cionam” as informações necessárias para tornar o seu relato mais completo, ou ainda que não pôde encontrar “refe-rências explícitas nas crónicas”. O diálogo com o leitor leva ainda o narrador a especular sobre as nossas atitudes perante a leitura, adivinhando as nossas expectáveis curiosidades ou desconfianças. Assim, de modo iró-nico e desconcertante previnenos, em texto diferenciado da mancha grá-fica e destacado por parênteses retos, para salvaguardar qualquer distração nossa: “[Aviso desinteressado aos lei-tores: inútil procurar os nomes num mapa, pois nem eles estão bem es-critos, vindos todos de tradição orla e corrompidos pela péssima audição dos portugueses para as nossas lín-guas, nem fazem parte da paisagem há muito tempo.]”. O jogo com o leitor, na procura da sua cumplici-dade, estende-se ainda à construção discursiva. Ao jeito da estrutura para-lelística da lírica trovadoresca, os incipit dos capítulos retomam a expressão que encerra o capítulo imediatamente anterior, criando um efeito de prolon-gamento textual e de esbatimento da convencional interrupção do parágrafo

, por via da repetição vocabular. surpre-endendo o leitor com insólitasa reutili-zações de palavras ou de conceito. ASS constitui-se como um misto de epopeia, de relato de viagem e de romance de aventuras, que nos ofe-rece uma imagem das lutas que mar-caram aquele período da ocupação colonial de Angola, vista segundo várias perspectivas, tantas quanto os narradores que tomam a palavra. Desse alargado conjunto, destacam--se duas vozes que pertencem a duas personagens em torno das quais se constrói a intriga: Manuel Cerveira Pereira e Carlos Rocha, e que in-voluntariamente trlham percursos paralelos. Uma indesejável coin-cidência liga a indesejável coinci-dência liga a existência de Carlos Rocha, um alegado descendente de Diogo Cão, à do governador, que os leva a percorrerem os mesmo cami-nhos, a contatarem com os mesmos indivíduos, a buscarem igual des-tino. Os seus relatos constituem-se como testemunho de um fazer hu-mano no tempo, intensificado pelo registo na primeira pessoa dos nar-radores, que assumem, desta forma, o papel de testemunhas presen-ciais daquilo que viram, ouviram ou construíram e que agora contam. A busca do passado é assim em-preendida pelo viésda experiência individual complementada pela apropriação diegética do docu-mento historográfico. A narrativa nasce de um jogo de espelhos, onde cada uma das perspetivas(a pessoal e a oficial) se reflete na outra que a deforma e enriquece, permitindo uma visão plural sobre os indiví-duos e os acontencimentos que mar-caram as primeiras décadas do colo-nialismo seiscentista em Angola.Jl AGriPinA cArriço VieirA

“A obra de Pe-petela funda--se numa in-cessante (re)visitação da História de Angola

>>>PepetelaA SUl. o Sombreirod.Quixote, 360 pp.,15 euros

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02. DESTAQUE23. ARTES/CINEMA

rui morrisonO ATOR DE fERNANDO LOpES

Tem sido o ator de Fernando Lopes assim como o Leonardo Di-Caprio do Scorsese. Os papéis que tem interpretado têm muito do realizador lá dentro? Não é exatamente um alter-ego. Mas estes dois últimos filmes do Fernando têm uma componente pessoal muito forte. São temas diretamente ligados a si-tuações da vida dele. N'Os Sorrisos do Destino parte de uma experi-ência pessoal. E este Em Câmara Lenta tem que ver com o seu uni-verso, as suas preocupações e o seu olhar sobre a vida e sobre a morte.

Há um sentido de despedida? Espero que não. Tem uma ideia poética, de nadar até ao fim do mundo. Não tem nada a ver com Os Sorrisos do Destino, que era um filme mais naturalista. Este tem uma componente poética maior, a própria linguagem utilizada não é coloquial. Portanto, é um filme que ganha outra dimensão para além do realismo. Quase todas as perso-nagens bebem uísque. Isso é uma

marca pessoal que Fernando Lopes põe nos filmes. Eu bebo uísque nos seus filmes desde O Delfim.

Há uma grande proximidade entre os dois? Desde o primeiro filme que fiz com ele criou-se uma cum-plicidade única. Quase que não é preciso conversar. Compreendo--o muito bem. Conheço bem o seu cinema. A certa altura, quando ele faz o plano, eu sei logo o que ele pretende. Os próprios temas dos filmes são muito fáceis de entender, de entrar neles. Há uma grande compreensão de parte a parte. Não houve grandes conversas para des-cobrir a personagem. Foi tudo muito fácil. Ele também me conhece muito bem, sabe o que eu posso dar. Esta personagem não é simpática, apesar de, a determinada altura, sentirmos alguma compaixão. Ele próprio acaba por se deitar na cama que fez, neste caso, no mar. É um indivíduo egoísta, independente-mente do trauma principal forte que o marca. Além da culpabilidade, a

perda do irmão leva-o a não se en-tregar. Não é um egoísmo puro, é um medo de voltar a perder. Não se entrega nem à mulher, nem à amante. Apesar de gostar dela, não abdica de uma certa distância, de um local de conforto, revelando até alguma covardia. O filme tem po-esia de forma explícita, concreta-mente através de citações do Ale-xandre O'Neill. Claramente. Há ali uma influência óbvia. O filme po-deria ser dedicado ao Alexandre O'Neill. A minha personagem é um admirador do O'Neill, tal como o Fernando. O poeta também é uma referência para a personagem no que concerne à sua relação com as mulheres. É assim que ele se justifica.

Neste caso o filme partiu de um livro, adaptado pelo Rui Cardoso Martins. O guião está muito dis-tante do original? Não li o livro. Há alguns casos em que é importante ler o livro. Aqui, se-gundo o Rui Cardoso Martins me disse, é uma adaptação bastante livre. Há uma distanciação e, por isso,

não me ia interessar muito o livro. Há outros casos em que ler o livro é importante, como O Delfim, claro, ou A Morte de Carlos Gardel, adap-tado pela Solveig Nordlund. O livro é um livro e um filme é um filme. É um filme cheio de fantasmas. Sim, aquelas pessoas andam todas à de-riva. É como um navio que anda à deriva, com os fantasmas na borda. Aliás, a Ma Vie é a única personagem positiva, que vai para a frente. Todos os outros são autodestrutivos.

Como é que é trabalhar com o Fernando Lopes? Ele dá uma liberdade que muitos realizadores não dão. Espera que os atores tragam coisas. Acontece vá-rias vezes eu dizer-lhe: “Pensei em fazer isto assim”. Se ele não gosta da ideia diz logo que não funciona; caso contrário, deixa experimentar. Isso é muito estimulante para o ator. Sentimo-nos mais integrados no projeto. Jl mAnUel HAlPern

Rui Morrison é o ator de Fernando Lopes desde O Delfim. De al-guma forma serve-lhe de espelho, sobretudo nos últimos filmes, em que experiências pessoais do realizador tomaram conta das persona-gens. À volta de uma chávena de café, o protagonista de Em Câmara Lenta conversou com o JL sobre a personagem, o cinema e a poesia de Fernando Lopes.

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02. DESTAQUE24. LETRAS / ESTANTES 25. LETRAS / ESTANTES

Na mesma magnifica coleção (dos CTT) de livros/ál-buns a que nos referimos na Estante (das ideias) na nossa edição de 22 de Fevereiro, descrevendo as suas ca-racterísticas essenciais – acaba de sai um novo volume, A Palavra e a Imagem, de Paulo Mendes Pinto(PMP). Tema que tem a ver, como sempre, com o lançamento de novos selos, incluídos na parte inicial da obra, em que se estudam ou versam 50 episódios bíblicos através de outras tantas obras de arte portuguesas - desde, no Antigo Testamento, “A criação dos animais” ( retábulo de Grão Vasco na Sé de Lamego) até, no Novo Testa-mento, a “Ascensão de Cristo” (óleo atribuído a frei Carlos, no Museu Nacional de Arte Antiga). O texto abrindo com citações bíblicas, diz ou explica o que sig-nifica cada um desses episódios. Num curto prefácio, o teólogo padre Joaquim Carreira das Neves escreve: “O presente livro é um ato de coragem onde se con-juga a estética da pintura com a hermenêutica da pa-lavra (...) É este telejornal da Palavra feita imagem que PMP nos entrega para passarmos da leitura significante à leitura significada. Esta leitura vem de longe, das ca-tacumbas de Roma e de todas as catacumbas das nossas “cavernas” platónicas cristãs em demanda da luz da palavra feita mistério e feita imagem. O colorido polié-drico da imagem rompe com a teologia apofática para regressar ao “não falar” e “não dizer” da imagem. O ícone é sempre um “mais” colado à Palavra como a fotografia do amado ou amada na presença da sua au-sência. "Esta coleção dos CTT vai em 150 títulos Edi-tados e a uma das obras “recenseadas”. No penúltimo JL, A tradição do pão em Portugal, de Mouette Barboff, foi agora atribuído o prémio de melhor livro do mundo sobre pão, do Gourmand World Cookook.

ficçãO

_PAUlo mendeS Pinto_A PAlAVrA e A imAGem_ed. clUbe do colecionAdor doS correioS,176 PP.

_lUíS rAinHA_18 PAlAVrAS diFíceiS_tintA-dA-cHinA,192 PP, 16, 20 eUroS

_PAtríciA melo_lAdrÃo de cAdÁVereS_QUetZAl, 208 PP, 15,50 eUroS

_roberto bolAño_A PiStA de Gelo_trAdUçÃo de criStinA rodriGUeZ e ArtUr GUerrA_QUetZAl, 200 PP, 16,50 eUroS

_JoÃo edUArdo FerreirA_AZUl 25 linHAS_APenAS liVroS, 76 PP. 4,90 eUroS

JOãO EDuARDO fERREiRA

pAuLO mENDES piNTO

LuíS RAiNhA

pATRíciA mELO

RObERTO bOLAÑO

EuDORA WELTY

“Claro que todas as palavras são ocas. O que pode valer é o eco que dentro delas provocamos”. É o trabalho sobre a própria escrita, entre aforismos e poesia, o que mais cativa na mais recente obra de João Eduardo Fer-reira, publicado na Apenas Livros. Azul 25 Linhas tem a forma de um diário, como é ex-plicitado pelo autor no prólogo: um pequeno bloco azul oferecido por um amigo no Natal que quis preencher. Mas não se encontra aqui uma escrita espontânea dia-rística, do género conta corrente. Há um trabalho sobre a forma, que aproxima o livro da poesia ou de algum outro género indefinido.

Angiogénes, Derrelicção, Eletroplasma, Iatrofobia, Mne-mosfera, Pirofania, Sizígia. São mesmo palavras difíceus as que dão títulos a estes contos. Mas é na sua decifração, através da história que se conta, que está a base deste jogo de letras. Nascido em 1962, Luís Rainha tem formação em engenharia e sociologia, sendo hoje diretor criativo da agência de Publicidade Laranja Mecânica. Nestas três atividades talvez se encontre o segredo destes contos: histórias do quotidiano envoltas em modos de contar muito di-versos. De resto, a atenção à forma é um dos traços que mais se distingue neste livro, já que ao lado de histórias “normais” outras assumem a forma de alíneas, de bi-bliografia comentada e de banda desenhada (com dese-nhos de João Fazenda). Distinguido com uma menção honrosa no VIII Prémio Nacional de Conto Manuel Fonseca, 18 de Palavras difíceis é o quarto livro de Luís Rainha, depois de Noites de Lisboa, Últimas Palavras e O Último Segredo de Fátima.

“Um ano antes, eu era gerente de telemarketing numa central em São Paulo, responsável pela venda de aparelhos de ginástica, desses que você dobra, co-loca em baixo da cama e não usa nunca mais”. Assim era, de facto, a vida do narrador do novo livro de Pa-trícia Melo, que em Portugal passou a ser editada pela Quetzal. Agora, este homem de meiaidade encontra--se no meio do Pantanal, perto da fronteira com a Bo-lívia. Está em fuga, longe dos olhares, jáque fora impli-cado, em São Paulo, no assassínio de uma mulher. E se a sua já estava condenada, pior ficou quando viu, numa tarde de domingo, um avião cair. Uma nova fuga estava prestes a iniciar-se. Como em Matador, Mundo Per-dido, Inferno ou Jonas, o Copromanta, o estilo de Pa-trícia Melo é reconhecível desde a primeira linha. Um narrador na primeira pessoa, uma ação contínua e um suspense em crescendo. Ingredientes explorados ao limite em Ladrão de Ca-dáveres, que não deixa de se referir á violência que as-sola os confins do território brasileiro.

Quando publicou o seu primeiro romance, aos 40 anos, Roberto Bolaño estava seguramente longe de imaginar o sucesso que os seus livros alcançariam, sobretudo depois da sua morte e da descoberta do minumental 2666. Instalando o fenómeno à escala mundial, re-grassam agora às mãos dos leitores essas obras iniciais, como este A Pista de Gelo, justamente a sua estreia. Aqui, não será exagerado dizer, encontramos todos os elementos que suportaram a fama internacional de Bo-laño. Uma fértil imaginação, em enredo intricado, uma especial atenção à violência e a noção de que nunca sa-beremos realmente o que aconteceu. Que o digam os três narradores deste romance, ins-tados a explicar um crime que não cometeram mas que, na verdade, podiam ter evitado, cada um à sua maneira. Sob este pretexto, o escritor chileno, que se fixou nos anos 70 em Espanha, onde morreu em 2003, toca nos temas da corrupção na política o amor, o de-senraizamento, a amizade e os sonhos perdidos.

”Aquilo que faço quando escrevo sobre uma qualquer personagem é tentar entrar na mente, no coração e na pele de um ser humano que não sou eu. Quer se trate de um homem ou de uma mulher, velho ou novo, com pele negra ou branca, o principal desafio é o salto em si. O ato da imaginação de um escritor sobrepõe-se a tudo”. Eis a arte poética de Eudora Welty, que passou a vida inteira a captar a essência do sul dos Estados Unidos da América, os seus habitantes e ilusões. A par de uma variada obra como contista, a escritora, que nasceu em 1909 e morreu em 2001, é também autora de cinco ro-mances, o último dos quais agora publicado pelo Re-lógio d`Água. Passados muitos anos desde o dia que abandonou da cidade onde cresceu, Laurel Mckelva re-gressa a casa devido à morte do seu pai. Será também um retorno ao passado, que recordará para chegar a novas conclusões.

_eUdorA Welty_A FilHA do oPtimiStA_trAdUçÃo de mArGAridA PeriQUito_relÓGio d`ÁGUA, 144 PP, 12,50

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02. DESTAQUE25. LETRAS / ESTANTES

_JoÃo tordo_o bom inVerno_biS leyA, 302 PP, 7,50 eUroS

_HArUki mUrAkAmi_SPUtnik, meU Amor_biS leyA, 272 PP, 7,50 eUroS

_StieG lArSSon_A rAinHA do PAlÁcio dAS correnteS de Ar_biS leyA, 732 PP, 9,95 eUroS

_dAn bUrStein, Arne de keUZer e JoHn-Henri HolmberG_oS SeGredoS dA rAPAriGA tAtUAdA_trAdUçÃo de mAriA mAnUel cArdoSo dA SilVA_ASA, 320 PP, 18,90 eUroS

_cArloS AdemAr_o bAirro_oFicinA do liVro_346 PP, 14,90 eUroS

STiEg LARSSONQuAtro thriLLers

De boLso

Depois de Intervenção, e editora Europa-América prossegue a publicação das Obras de Robin Cook, o es-critor e oftalmologista norte-americano reconhecido como o fundador do 'thriller médico'. Cura (368 pp, 19,75 euros) é o 30.º livro do autor dos bestsellers In-tenção Criminosa ou O Corpo Estranho, e conta a his-tória de Laurie Montgomery, uma médica legista de Nova Iorque que, após um longo período de ausência, regrassa às suas funções para enfrentar um caso com-plexo, que envolve crime organizado e duas empresas recémcriadas de biotecnologia. Com o selo da Clube do Autor, sai tambem um novo título de outro dos escritores mais populares da atual li-teratura de suspende: O Jogo da Verade (436 pp, 18,95 euros), de David baldacci. Um proprietário de uma em-presa de armamento (Nicholas Creel) e um 'gestor da perceção' (Dick Pender) unem-se para encenar e fazer circular o vídeo de um homem a ser torturado, com o objectivo de criar uma guerra á escala mundial. Mas o 'jogo' encontra um adversário inesperado, Shaw, o herói sem nome próprio que também protagoniza o seu A Conspiração do Silêncio. "Serras de gesso zumbiam, água corrente tamborilava e o pó de osso pairava no ar como farinha. Três mesas ocupadas. Vinham mais corpos a caminho. Era terça-feira, 1 de Janeiro, dia de Ano Novo". Assim começa o 16.ºlivroda saga policial de Patricia Cornwell.

É daqueles que leu a trilogia Millenium e soube-lhe a pouco? Então este livro é para si. Não, não se trata de uma continuação, nem dos famosos inéditos que o es-critor sueco terá deixado no seu computador. É antes um trabalho de investigação que cruza jornalismo e crí-tica literária, entrevistas e depoimentos, de forma a le-vantar um pouco o véu de um dos maiores fenómenos editorais da última década. Dividido em quatro partes, a primeira trata de um homem que conquistou o mundo, a biografia, os amigos, as influências, os temas. A segunda, centra-se na Suécia, pano de fundo dos seus policias e de tantos outros autores que aproveitavam a onde de Stieg Larsson. A terceira tenta dar um retrato íntimo do escritor. Por último, a quarta reúne um con-junto de textos sobre a trilogia Millenium.

Em comum têm apenas o formato. Três novos livros de bolso, três escritas incrivelmente diferentes. Em O Bom Inverno, João Tordo apresenta-nos uma reflexão sobre os dias de um aspirante a escritor viciado em episódios (e nas maleitas) da serie Dr. House. Há uma viagem que o leva a um encontro de escritores que lhe vai mudar a vida. nem ele sabe muito bem porquê mas o inverno - muito para lá da estação do ano - vai chegar. Também é uma aspirante escritora, a personagem principal do ro-mance de Murakami. Sumire escreve sem parar. Sobre tudo, sobre nada. Frases atrás de frases. Pensamentos, imagens, que se perdem sem um rumo definido. Per-manentemente insatisfeita, à procura da sua voz lite-rária, descura o seu único amigo, sobretudo a partir do momento em que se conhece Miu, uma mulher sofisticada (e casada) por quem se apaixona. Um tri-ângulo invulgar onde se revela toda a mestria de um dos mais interessantes escritores japoneses da actuali-dade. Não chegou a ser reconhecido em vida pela sua magnífica trilogia Millenium. O escritor sueco Stieg Larson morreu antes de ver o sucesso alcançado pelo seu trabalho - previa escrever dez volumes. Nesta ter-ceira parte, a protagonista Lisbeth Salander recupera nos hospital dos ferimentos de que foi vítima por parte do pai e do meio-irmão. Assassinos e violados sempre funcionaram à margem da lei com o apoio de alguns elementos da SAPO, a polícia de segurança sueca. Mas tudo isso vai mudar e Lisbeth - com ajuda de Mikael Blomkvist, Dragan Armanskij, Anita Gannini, entre muitos outros - vai finalmente alcançar a sua liberdade.

cArLos ADemArum pOLiciAL SOciOLógicOÉ um empolgante policial que as primeiras páginas prometem, mas como a vida, os romances também dão muitas voltas, e a narrativa acaba por deslindar não apenas o mistério de um crime, mas as razões e en-quadramentos sociais e históricos, vivências e dinâmicas suburbanas de um bairro da periferia de Lisboa, daqueles chamados problemáticos, a Cova da Moura. E o bairro é mesmo o protagonista de O Bairro, o sexto livro de Carlos Ademar, 51 anos, que se estreou com A Casa da Rua Direita, em 2005, tendo posteriormente publicado O Homem da Carbonária ou Memórias de um Assassino Romântico.Inspector da Polícia Judiciária, operacional da secção de homicídios, anos a fio -actualmente dá aulas na Escola de Polícia Judiciária - , o escritor nem precisou de fazer uma aturada investigação no local, porque conhece o terreno como as palmas das suas mãos. A partir da morte a tiro de um polícia na Cova da Moura, em 2005, um facto verídico, que fez primeiras páginas dos jornais da época, Ademar dá-nos a realidade "pura e dura" de um lugar que transcende a ficção. Porque no seu romance só a realidade é mesmo dura. Os seus polícias, o seu inspector Barata, são puramente humanos.

JL: Há no seu romance uma pre-ocupação com o enquadramento social e histórico, a par da intriga policial. Porquê? C.A.: Está tudo ligado. Sirvo-me das histórias policiais para falar de ou-tras coisas. E fazendo essa contextu-alização, enriquece-se a própria his-tória que se conta, assim como quem lê o livro. É importante ir sempre à génese, neste caso, perceber porque aqueles acontecimentos ocorreram ali e não noutro sítio qualquer. E, na-turalmente, que as personagens que se vão descobrindo no livro tem a ver com um passado, com as compo-nentes culturais e familiares, com o grupo social em que se desenvolvem.

O bairro é o protagonista do livro? O desafio foi esse. Interessava-me falar das suas dinâmicas, da própria arquitectura, da forma como cresceu. As populações são migrantes, de-senraizadas, naturalmente sem estabilidade, sem muito a perder. E por tudo isso, estão mais dis-poníveis para arriscar. Não têm lastro, nem âncoras. A ideia foi dar conta do quotidiano de um bairro com essas características, da forma como as pessoas nele in-teragem, da criação dos galgues, com os seus líderes, da rivalidade entre eles, dos guetos, dos medos e da forma como tudo isso interfere na vida dos residentes.

Criou algumas personagens femi-ninas muito fortes como Ângela… Ou Alzira, uma mulher com 70 e tal anos, que se vê na contingência de tomar conta das crianças com 4, 5 anos, porque os filhos e netos foram presos por tráfico de droga. A pouca estabilidade que existe num bairro como aquele é sem dúvida criada pelas mulheres. Presto-lhes uma homenagem. O objectivo do livro é também fazer com que os lei-tores quando ouvirem falar de factos ocorridos nestes bairros, quando no-tícias sobre eles lhes entrarem pela casa dentro, possam perceber melhor o porquê das coisas.

Partiu justamente de um desses factos, a morte de um polícia ba-leado na Cova da Moura, em 2005. Porquê? Pareceu-me que era uma his-tória que merecia ser contada. Até porque, embora a nossa sociedade felizmente não seja particularmente violenta, os episódios que são con-tados ocorreram numa altura em que se atingiu um patamar de vio-lência pouco comum. Claro que as coisas não se passaram rigorosa-mente assim. Acrescenta-se a ficção a todas aquelas histórias, muitas que eu próprio vivi no terreno. Procuro guiar-me por aquela velha máxima: nunca permitir que a verdade es-trague uma boa história.

E não precisou de fazer uma pes-quisa sobre o local… Não, não. Nem precisei de lá ir para saber exactamente o nome das ruas. Tenho todos os cruzamentos bem presentes. Foram muitos anos a trabalhar nos homicídios.

Deixou por completo o trabalho operacional? Já não tenho físico…Estou a dar aulas há seis anos. Mas confesso que tenho algumas saudades, apesar de ser uma vida muito desgastaste, não só física, mas psicologicamente, para quem leva as coisas a sério, como é o meu caso. Porque não conseguimos passar ao lado das situações de mi-séria, com que nos deparamos. A frase de Jorge Reis, que uso na abertura do livro, reflecte bem essa circunstância.

Isso reflecte-se também nos seus "polícias" no seu inspector Barata. Sim, são humanistas. Tento com-bater o estereotipo do polícia durão das séries televisivas e de algum ci-nema negro. O normal são os meus polícias, esses duros são demasiado ficcionais. Jl mAriA leonor nUneS

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02. DESTAQUE

Duas centenas e meia de obras em sete núcleos temáticos que percorrem 60 anos de pintura: Nikias Skapina-kis, presente e passado de referência da arte portuguesa do século XX. Inaugura-se a 28, no Museu Coleção Berardo, no Centro Cultural de Belém. Antecipamos a introdução que Nikias Skapinakis escreveu para o catálogo e avançamos as linhas de força da mostra, comissariada por Raquel Henriques da Silva.

26. ARTES 26. ARTES

Promete surpreender pela sua amplitude temporal, já que abarca seis décadas de percurso, e assinala os 80 anos de Nikias Skapinakis, nascido em 1931, que con-tinua a pintar, com o rigor e método de sempre. Mas também pela intensa diversidade e coerência de uma obra única.É, de resto, em si mais um “trabalho plás-tico” do pintor, que gosta de refletir sobre a sua pintura, equacionando ciclios, séries temáticas, aproximações ou pausas, numa circum-navegação sistemática, mas não cronológica. E nessa medida, talvez se possa ver Nikias Skapinakis, presente e passado 2012-1950, que se inaugura a 28, no Museu Berardo, como uma ‘meta--criação’. De alguma maneira, como diz ao JL a comis-sária, Raquel Henriques da Silva, Nikias Skapinakis é o “principal historiador” do seu próprio trabalho. E a ex-posição reflete essa particularidade, sendo construida de acordo como seu entendimento. Assim, apesar das necessárias conversas preparatórias e dos ajustes, a curadora remete para o pintor a autoria da mostra, pla-neada por Jean François Chougnet e continuada por Pedro Lapa, atual diretor do museu. Seguramente, é a mais vasta mostra antológica que o artista já realizou. “Notável”, segundo a comissária: “Gosta de rever, com regularidade, aquilo que ele pró-prio fez”, explica. “Por isso, a exposição tem muito a ver com a lógica do seu trabalho. Mas foi a primeira vez que aceitou o repto de uma antológica com esta di-mensão”. São 260 pinturas e desenhos, de 84 colecio-nadores privados e 25 instituições, que permitem re-descobrir o universo do pintor ao correr do tempo. As obras estão organizadas em sete nícleos, que de resto correspondem a séries ou fases, sempre em aberto: O Ponto Metafisico. 2012-1954; A Pintura Mirabolante.

2010-1994; Monocromatismo e Recuperação da cor. 2000-1989; Parafiguração e Paisagens do Vale dos Reis. 1987-1966; Pessoas, Ninfas, Bichos, Manequins e Frutos. 2002-1960; Expressionismo Presencista. 1965-1950; e um nucleo de desenho. 2009-1958, que abrange, ainda, a litografia e a ilustração. Raquel Henriques da Silva salienta a peculiaridade da “baralhação da crono-logia”, que não é, de resto, alheia ao modo de trabalho de Skapinakis. “A ideia de não começar pelo inicio da carreira, nos anos 50, foi uma das suas primeiras in-tenções. E é, para mim, um dos aspectos mais impor-tantes da exposição”. O discurso expositivo fez-se, desse modo, do presente para o passado, num flashback, com alguns “curto-circuitos pelo meio”. “Não é um percurso a andar para trás. É uma brincadeira com o tempo, que num homem de 80 anos não deixa de ser interessante. E mostra uma certa consciência de que algumas coisas sempre o preocuparam tanto no inicio, no meio, como na atual fase da sua carreira”, esclarece. Em seu entender, Presente e passado, é uma expo-sição que “prova o percurso de grande entrega” de Ni-kias Skapinakis: “Olhando esta mostra, é evidente sobretudo a coerência do seu percurso. Há uma con-centração absoluta nas questões da pintura. E ele nunca quis ser outra coisa se não pintor». A «experimentação» é, por outro lado, um dos eixos do trabalho de Nikias, como faz notar ainda Raquel Hen-riques da Silva: «Nasce fundamentalmente dos temas. Embora as questóes técnicas sejam muito importantes na sua obra, julgo que o essencial é que ele encontra sempre as técnicas certas para os temas que quer tratar. Daí a importância dos ciclos e dos titulos, tal como O li-rismo expressionista ou A pintura mirabolante».

revisitAr o presente no pAssADo

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02. DESTAQUE26. ARTES

A responsabilidade do plano desta ex-posição sabe-me inteiramente. Não pretendi, aliás, apresentar uma retros-petiva – já que entendo que é o tempo que se encarrega do historial dos acontecimentos. Pretendi, antes, deli-near uma escolha de obras, em função de conjuntos que pudessem resumir e tornar compreensivel o meu trabalho de pintor. Pela primeira vez, sem interrupções, uma exposiçao abrange a minha inter-venção, que parte, propositadamente, do presente para o passado. Fui, de resto, objeto de outras antologias signi-ficativas: no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian em 1985 (Pintura, 1950-1985), no Museu do Chiado em 1996 (Para o estudo da melancolia. Retrospetiva de retratos, 1955-1974), e no Museu de Arte Con-temporânea de Serralves em 2000 (Prospectiva, 1966-2000). Os parâmetros museológicos e as minhas próprias intenções limitaram,

porém, o âmbito temporal dessas apresentações. A exposição no Museu Coleção Berardo constitui, portanto, o mais vasto depoimento que rea-lizei sobre o meu trabalho. Com o passar dos anos, foram-me atri-buidas algumas classificações ge-néricas –expressionista, neorrea-lista, pop, pós-modernist, clássico, metafísico… Com exceção da as-serção neorrealista, que era despropo-sitada, todas as outras designações res-peitam, efetivamente, a aspetos mais ou menos prolongados do meu tra-balho. Todavis, e embora reconheça a sua eficácia didática, penso que ne-nhuma delas abarca o sentido geral da minha pintura, na medida em que ficam de fora dessas classificações as-petos que julgo significativos e que so-bram do que é arrumado do ponto de vista crítico. Os meus começos não tiveram nada em comum com o movimento neor-realista; bem pelo contrário, como esta

exposição demostra. Nos anos de 1950, a minha ligação foi essencialmente à primeira Escola de Paris, e nela avulta a figura tutelar de Chagall. Seguiram--se-lhe, naturalmente, muitas outras, contemporâneas e muitas vezes per-tencentes ao passado, como no caso da perene recordação do Greco de Toledo. Essas múltiplas influências educaram o meu olhar e guiaram a minha mão, permitindo-me a afir-mação de uma expressão pictórica que entendo própria. A pintura italiana do Quatrocento teve muita importância para o meu trabalho, todavia os grandes pin-tores italianos do século XX, como De Chirico e Morandi, que sempre admirei, nunca constituiram uma fonte de inspiração (é para Zurbaran que olho e também para Chardin). O sentido metafísico, que, junta-mente com o pendor expressionista e lírico, atravessa prolongadamente o meu trabalho, tem, do meu ponto

de vista, uma tripla origem:- Os frescos “clássicos” e “modernos” da Vila dos Mistérios, em Pompeia, e Carpaccio, a quem dedico em 1961 uma homenagem, porque justamente, venho a encontrar nele o sentido de ausência das figuras que habitavam o meupaisagismo de então;- A poesia, designadamente de Ce-sário e dos “presencistas”;- A pressão claustrofóbica e ente-diante do ambiente português das décadas de 1950 e 60. O meu silêncio permaneceu sempre ligado ao real quotidiano. Mas, natural-mente, o tempo aperta e simplifica o entendimento das coisas. De qualquer modo, porém, acredito que a minha “linha metafisica” se liga essencialmente a uma conceção indi-vidualizada da pintura como um pro-cesso de conhecimento, literalmente, para além das aparências físicas, que os sentidos transmitem. Esse processo define a história da pintura desde o

seu remoto passado até ao presente. Porque é especifico, não pode ser re-partido por outros campos estéticos sem que essa qualidade essencial de indagação tenda a alterar-se ou a perder-se em favor de outras (em-bora igualmente válidas) expressões. Trata-se de procurar a essência das coisas; mas, talvez, as coisas não te-nham realmente essência nenhuma e a sua busca seja inútil. É uma dúvida de natureza meta-física que procuro resolver continu-ando a pintar.

1Coimbra: Atlântida, 1951 (1ª edição)

“Todos os homens por natureza desejam saber. Sinal disso é o amor aos sentidos. Estes, com efeito, são amados por si mesmos, à margem da sua utilidade e mais que todos o da vista. Com efeito, não só para agir mas também quando não vamos actu-ar, preferimos a vista – digamo-lo – a todos os demais. A causa é que este é, dos sen-tidos, aquele que mais nos faz conhecer e mostra múltiplas diferenças”

NikiAS SkApiNAkiSAriStÓteleS, metAFíSicA, liVro i, cAPitUlo i 1

A poesia, a literatura, tal como a filosofia são, nessa medida fulcrais no desenvolvimento do trabalhode Ni-kias Skapinakis que, como recorda a comissária, quando começou a pintar, nos aos 50 toma desde logo partido pela arte figurativa, quando dominava o abstrato. »Esse entendimento de que a arte não deve pôr de parte as ar-ticulações com a realidade, com as coisas e as matérias é uma questão fundamental», sublinha ainda. Por isso, mesmo quando usa a abstração é de um ponto de vista de composição, sempre como uma discursividade anexa. Ele mantém-se fiel à ideia que a pintura não é autónoma do sistema cultural e que nele se articula com a filosofia ou a literura». Outro traço vincado do seu percurso, que agora é pos-sivel seguir em Presente e passado, cujo catálogo bilingue terá dois ensaios de Raquel Henriques da Silva e Bernardo Pinto de Almeida, além de textos de Fernado Azevedo ou Vasco Graça Moura, pretende-se com a fidelidade ao próprio país. A comissária lembra que o pintor, atitudes políticas, sem ser um ativista, que no tempo da ditadura

o levaram mesmo à prisão. «É um homem de uma ge-ração, em que as posições políticas eram muito mar-cantes e tinham consequências. Mas Nikias nunca quis emigrar, ao contrário de outros artistas da sua geração. È um homem muito culto e viajado, mas nunca sentiu ne-cessidade de deixar este país, que de resto trata com uma ironia sarcástica no seu Portugal. Tendo essa distância e sendo um analista social extraordinário, mantém essa es-pécie de aliança, sem fatalismo ou dramatismo. »Aliás, ele é um apaixonado por Lisboa, pela sua luz». Isso é visìvel desde logo no seu atlier, há muito com morada no Pátio Mardel, como sublinha ainda a curadora, adiantando que nesse mesmo fidelíssimo atelier continua a pintar várias séries ao mesmo tempo, nomeadamente, «Os Quartos», numa «revisitação» da literatura, da pintura, das persona-lidades que o marcaram, tal como noutras telas, faz per-manentemente «revisitações» das suas séries passadas. E é o passado e o presente do pintor que podemos revistar até Junho, no Museu Berardo. Jl mAriA leonor nUneS

A DúviDA metAFísicA

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02. DESTAQUE27. ARTES 27. ARTES

um cOmpOSiTOR DO muNDO

mArcos portuGAL,250 Anos

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02. DESTAQUE27. ARTES

É um dos raros nomes portugueses que figuram em livros de história de música pub-licados no estrangeiro. A sua estada em em Itália, onde compôs mais de 20 óperas, abriu-lhe as portas para a fama internacional. Marcos Portugal, o mais célebre com-positor luso de sempre, nasceu há 250anos. A efeméride é evocada com um conjunto de iniciativas ao longo do ano em vários países e, no próprio dia do seu nascimento (24 de Março) e na véspera, com um colóquio internacional e a produção de uma das suas óperas, O Basculho de Chaminé, ambos no Teatro Nacional de São Carlos. Os muitos trabalhos que, nos últimos anos, investigadores e intérpretes têm reali-zado sobre a obra do compositor entroncam num programa desenvolvido no seio do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (CESEM) da Universidade Nova de Lisboa, o Projeto Mracos Portugal – um empreendimento hercúleo,coordenado com militante empenho pelo musicólogo inglês David Cranmer, há muito radicado entre nós.JL: Como definiria a obra de Marcos Portugal (MP), na generalidade?David Cranmer: A primeira coisa a dizer é que a obra de MP é mais diversificada do que geralmente de imagina. Se as suas óperas italianas são as que lhe granjearam fama in-ternacinonal no seu tempo, em Por-tugal, onde nasceu, e no Brazil, onde veio a falecer, a sua música religiosa foi extremamente importante. Não nos devemos esquecer de que MP recebeu a sua formação no Real Se-minário Patriarcal e que, exceto nos anos passados em Itália, compôs música religiosa ao longo da sua vida. Além disso, teve uma pro-dução importante em mais duas áreas: a música ocasional profana – por exemplo, obras compostas so-bretudo para celebrar aniversários reais e outros momentos de im-portância política – e a música pe-dagógica, composta no Brasil para as aulas de música das Suas Altezas Reais, filhos de D. João VI e D. Car-lota Joaquina.

Qual a sua importância no contexto da música portuguesa e europeia? Na minha opinião, a importância de qualquer compositor é absoluta e não relativa. Ou vale a pena ouvir a sua música ou náo vale. Não é porque é «melhor» ou «menos bom» do que outro compositor. MP é um entre vários compositores do seu tempo que compunham bem, foram valo-rizados enquanto vivos e depois es-quecidos, simplesmente porque era assim que as coisas funcionavam. Eles substituíram outros compsi-tores e por sua vez também foram

substituídos. A importância da sua música agora baseia- se exatamente no que levou o público do seu tempo a apreciá-la: melodias atra-entes, efeitos tímbricos apurados (através de um uso por vezes «di-ferente» dos recursos orquestrais), um instinto dramático agudo, evi-dente especialmente nos números concertados e finais das óperas, uma riqueza de som nos ensembles, quer na música dramática, quer nas obras religiosas. São estas caraterís-ticas que costumam ser louvadas pelos comentadores do seu tempo, em vá-rios países europeus, e são caracterís-ticas que mantêm a sua validade.

Que acções o Projecto Marcos Por-tugal tem permitido desenvolver? Ele já passou por várias fases mas tem em comum três áreas de foco: 1ª, edições críticas de algumas das suas obras princupais, 2ª, a elabo-ração de um catálogo temático das suas obras, e 3ª, estudos sobre o compositor, a sua obra e a sua disse-minação, Neste momento o projeto tem o nome precisamente «marcos Portugal: a obra e a sua dissemi-nação». Entre as edições críticas realizadas até agora destacam-se 3 óperas: La Zaira, editada por Bár-bara Villalobos e executada em versão de concerto pela Fundação Gulbenkian, La pazza giornata o sia il matrimonio di Figaro, edi-tada por um conjunto de investiga-dores sob a minha orientação e en-cenada em Inglaterra pela Bampton Classical Opera em 2010, e O bas-culho de chaminé, editado por Ga-briel Cipriano e Rui Magno Pinto,

também sob a minha orientação, a apresentar este mês no Salão Nobre do São Carlos. Na música sacra, a edição da MissaGrande, realizada por António Jorge Marques, per-mitiu já várias execuções e a gra-vação em CD pelo Coro de Câ-mara de Lisboa. Este mês vai ser

cantada independentemente em Portugal, Espanha e Inglaterra. No que diz respeito ao catálogo temá-tico, a parte da música religiosa já foi terminada, de forma excecional, na tese de doutoramento de An-tónio Jorge Marques. Sairá em livro ainda este mês, pela Biblioteca Na-cional de Portugal (BPN), em co-laboração com o CESEM pénis. Quanto ás investigações sobre a obra do compositor, saiu em 2010 o livro Mozart, Marcos Portugal e o seu tempo, textos surgidos do co-lóquio homónimo realizado em 2006. A 23 e 24 deste mês, em cele-bração dos 250 anos, vai decorrer um

colóquio internacional no Foyer do São Carlos, com comunicações de 14 oradores dedicadas inteiramente à obra de MP.

E que objetivos há por concretizar? Este ano ainda há alguns. Em primeiro lugar, uma maior divul-gação da obra de MP. Várias edi-ções importantes estão previstas, nomeadamente as 2 óperas L’oro non compra amore e La morte di Semiramide, pelo menos um vo-lume extenso de música composta ou arranjada pelo compositor para as aulas de música de Suas Al-tezas Reais. Produções de 3 óperas estão confirmadas para mais tarde este ano: Figaro outra vez em In-glaterra (Buxton Opera Festival), O basculho de chaminé em Curitiba, Brasil, e L’oro non compra amore no Rio de Janeiro, em versão de con-certo. Aguardamos ainda decisões r ltivas a outras propostas para o se-gundo semestre. Até ao final do ano sairá um livro, constítuido por uma biografia de cerca de 100 páginas e mais 20 ensaios sobre vários as-petos da sua obra. Estamos a cola-borar com a BNP na montagem de uma exposição prevista para os úl-timos meses do ano. Já in ciámos trabalho no catálogo temático de música profana, que levará prova-velmente ainda cerca de 4 ou 5 anos para terminar. O meu objetivo pes-soal é que depois de 2012, a música de MP chega a encontrar um lugar mais permanente no reportório, graças à existência de boas edi-ções modernas e o apoio científico dos catálogos temáticos e livros de

estudos sobre o compositor e a sua produção. Acredito que vai acon-tecer porque já recebi contactos com vista a encenar óperas em 2013 e o grande esforço que o projeto está a fazer este ano terá, com cer-teze, um ímpacto. Neste momento o projeto tem o nome precisamente «marcos Portugal: a obra e a sua dis-seminação». Entre as edições crí-ticas realizadas até agora destacam--se 3 óperas: La Zaira, editada por Bárbara Villalobos e executada em versão de concerto pela Fundação Gulbenkian, La pazza giornata o sia il matrimonio di Figaro, edi-tada por um conjunto de investiga-dores sob a minha orientação e en-cenada em Inglaterra pela Bampton Classical Opera em 2010, e O bas-culho de chaminé, editado por Ga-briel Cipriano e Rui Magno Pinto, também sob a minha orientação, a apresentar este mês no Salão Nobre do São Carlos. Na música sacra, a edição da MissaGrande, realizada por António Jorge Marques, per-mitiu já várias execuções e a gra-vação em CD pelo Coro de Câmara de Lisboa. Este mês vai ser cantada independentemente em Portugal, Es-panha e Inglaterra.Não nos devemos esquecer de que MP recebeu a sua formação no Real Seminário Pa-triarcal e que, exceto nos anos pas-sados em Itália, compôs música re-ligiosa ao longo da sua vida. Além disso, teve uma produção impor-tante em mais duas áreas: a música ocasional profana – por exemplo, obras compostas sobretudo para celebrar aniversários reais e outros momentos de importância política.

“Marcos Por-tugal usava melodias atra-entes, efeitos tímbricos apu-rados e uminstinto dra-mático agudo

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02. DESTAQUE28. ESPÉCTACULOS / ARTES 29. ESPECTÁCULOS / ARTES

O cORvO SOmOS NóSGonçalo Tocha viajou ate à ultima ponta da europa no oceano atlantico, até á ilha mais remota do nosso mundo, até aos 400 portugueses mais distantes deste portugal e descobriu-nos a todos nós. É a terra, não é a lua, documentario sobre a ilha no corvo, recebeu uma mensao honrosa em locarno e o premio internacional do DocLisboa. Estreia-se na sala, no proximo dia 29. “Cada filme que faço é uma revoluçao na minha vida”, diz gonçalo tocha. A cada filme se entrega como a um projeto de vida, sempre num tom intimo e pessoal. A viagem é o viajante. Em Balou, obra de estreia que venceu o Indie Lisboa, partiu em busca dos Açores da sua mãe e deixou.se levar por um barco entre as ilhas. Em É na Terra, não é na Lua, vai ao último lugar no arqui-pelago que lhe corre no sangue. E deixou-se deslumbrar pela ilha e por aquela sociedade. São três horas de filme retiradas de quase 200 filmadas, que mostram de tudo um pouco, desde a vida noturna no barda da vila ao insólito periodo da campanha eleitoral. Gonçalo Tocha, 33 anos, com apenas dois filmes, tornou-se um dos documentaristas de maior relevo nacional. Divide a sua atividade artistica entre o cinema e a musica. Formou os Lupanar (a banda de Ana Bacalhau antes dos Deolinda) e os projetos Tocha Pestana e Gonçalo Gonçalves, que brevemente conhecerão novas edições discográficas. Jl mAnUel HAlPern

JL: No teu filme anterior, Balaou, passava-se em grande parte dentro de um barco ao largo dos Açores. O que achaste mais isolado, o barco ou a Ilha do Corvo?Gonçalo Tocha: Obviamente o barco é muito mais isolado. Mas fiquei com a ideia, até pela sua forma redonda, de que o Corvo é um barco parado no mar. As pessoas é que se mexem, a ilha fica sempre parada.

Logo no inicio do filme propões--te a um exercicio exaustivo, a filmar cada rosto, a captar a to-talidade do Corvo sem que nada te escape. Mas, obviamente, há coisas que não estão no filme... Ou estarão lá todos os rostos? Acho que nós fizemos mesmo tudo o que queriámos. A exaustão está lá, não podia era entrar tudo no filme, porque só tem três horas. Mas existe o arquivo, que foi quase de 200 horas. O único pressuposto que eu tinha era aquela oportuni-dade de fazer um filme sobre tudo. Só ali podiamos ter essa pretensão. Há uma única vila, não há terras vi-zinhas, o mundo em síntese. Aliás, não era um eremita que seja a viver fora da Vila do Corvo.Houve um austriaco que o conse-guiu durante alguns anos e depois foi-se embora. Teoricamente, nem sequer é permitido, porque é obri-gado a viver sem saneamento ba-sico, sem água nem luz, uma expe-riência radical.O Corvo é um caso exemplar para um estudo socioló-gico, um meio pequeno, mas não comparavel com uma aldeia iso-lada em Trás-os-Montes. Nos anos 60 e 70 escreveram-se alguns li-vros sobre isso, mas versavam es-sencialmente sobre o antigo co-munitarismo do Corvo, sem que fosse feita uma análise exaustiva aos modos de vida. As múltiplas visões do que acontece lá dentro é que nunca se esgotaram no filme. Há sempre mais. É uma ilha em

completa mutação.. Está tudo a acontecer. À partida imaginamos que nada se passa lá, mas é preci-samente o contrário: tudo se passa, mas a uma escala pequena. Um pe-queno nada é um grande aconte-cimento. E o Corvo sempre esteve aberto a muitas rotas. Antes do barco a motor todas as rotas pas-savam por lá. Por isso foi cons-tante o aparecimento de navega-dores, piratas, de outras culturas. Os corvinos estavam de olhos vi-rados para a América. Não era de todo uma sociedade fechada. Era fechada na sobrevivência, na au-tossuficiência, mas não no aconte-cimento do que se passava á volta.

Notaste isso hoje em dia? Hoje é uma sociedade diferente, que está a sofrer uma mudança ra-dical. Podemos imaginar que toda a evolução que Portugal sofreu em 80 anos, o Corvo está a sofrer em 20. Tudo ao mesmo tempo. Isso vai criar roturas e contrastes, que o filme também tem. Joga com esses contrastes entre o moderno e o an-tigo, o rural e o urbano, o modo de vida das avós e das novas gerações. Está ali em choque: tudo ao molhe e fé em Deus.

Sentiste dificuldade em entrar na-quela sociedade? São muito des-confiados? É uma sociedade que se autopro-tege. Eu sabia, à partida, que essa desconfiança iria existir. Então de-cidi assumir tudo claramente desde início. E é por isso que chego ao Corvo logo com a câmara de filmar. Tinha de assumir, “eu sou o gajo da câmara”. E isso permitiu-me estar sempre a filmar. Avisei logo: “Isto está sempre ligado.”

A população é muito envelhecida? Nem or isso, foram criados em-pregos na área dos serviçoes e po-pulação mais nova ficou...

Deu-te uma sensação de claustró-fobia? Não, porque esta tudo a acon-tecer, uma surpresa atrás de outra, tudo era novidade, um deslumbra-mento. Nunca senti que não havia mais nada para fazer.

E os corvinos sentem a ânsia de sair dali? É caso a caso. Quando fiz o filme procurei o contrário. A minha per-gunta era: por que é que esta ilha pode ser o centro do mundo? Porque para quem é dali o Corvo é sempre a sua terra, por mais longe que esteja. O que queria saber é o que faz disto o umbigo. Eu fui adotado pela população e sempre que saí do Corvo senti-me per-dido, o mundo parecia-me de-masiado grande. E isso é qualquer coisa que os corvinos têm de espe-cial: o seu mundo é dem siado pe-queno e abstrato.

Um centro do mundo que também está fora do mundo. É quase a lua? As condiçoes geográficas são inacreditaveis. É um grande mer-gulho, um pedaço de terra no meio do oceano, exposto a todos os ventos e correntes. Esse impacto é inesquecivel no proprio corpo, ouve-se sempre o mar brutalmente, numa paisagem a pique, toda a ilha é vertical. Mas em termos de socie-dade a vida humana repete-se. Os hábitos repetem-se. Apesar da dis-tância, aquilo é o Corvo, Açores, Por-tugal, Europa. Está ali marcado, e é uma sociedade ocidental e europeia. Há partes especialmente caricatas, como o período da campanha elei-toral, em que a ilha para. Filmei as eleiçoes todas e o ato eleitoral pro-priamente dito, os vencedores... mas não tinha tempo para mostrar, seria outro filme. Aquilo mexe com toda a gente. É uma das coisas do Corvo que é unica, em mais nenhum lado há uma campanha daquele tipo,

porque muitos poucos votos dão muito poder.

Os corvinos são os açorianos mais esquecidos ou, pelo contrário, dado o seu afastamento, acabam por ser protegidos? Já não são assim tão esquecidos. Antes sim. Por issos é que era uma

sociedade muito digna e valente. Não podiam contar com ninguem. E os barcos apareciam só de seis em seis meses. Nem sequer havia dinheiro. A única coisa que vinha de fora era o açucar. Isso cria uma sociedade muito brava. Portugal é a periferia da Europa, os Açores são a periferia de Portugal, e todas as ilhas têm a sua periferia. Todas menos o Corvo. O Corvo é a peri-feria das Flores.

E foi esse “fim do mundo” que te atraiu? Quis fazer o filme no limite. Em que não soubesse quando acabava, fosse uma aventura na rodagem, autónoma e solitária. Eu fui para o Corvo em 2007, depois de mostrar o Balou em São Miguel. Fui à bo-leia de barcos à vela e passei pelas ilhas todas até lá chegar. Ninguém me conhecia quando cheguei ao Corvo. E fiz tudo a partir do nada, não quis fazer repérage. A ideia

era recriar a energia dos explora-dores que vão a um sítio que não conhecem e deixam-se embranhar e maravilhar por tudo o que acon-tece. Se o filme tem alguma virtuda é mostrar a energia da rodagem, abrir o livro de bordo.

Tal como tinhas feito com Balau... Sim, há recorrências na ma-neira de contar. Quando comecei a montar o filme, experimentei fazer de outra forma, mas para o filme ser honesto com ele próprio teve de sequir este roteiro. Mas é como nos livros de viagem: são maravilhosos porque acompanhamos o processo todo da viagem do narrador e não só as consequências.

E agora?Já estas a preparar outra coisa? Ainda não, estou dedicado à dis-tribuição e queria intercalar com os meus projectos musicais. Este filme acompanha quatro anos da minha vida. Joguei tudo quanto tinha. Pensei: “Isto ou me mata ou me dá uma segunda vida”. Acabei por tê--la, mas estive prestes a queimar tudo. Fazer o filme foi uma revolução na minha vida. Agora não sei o que se segue, mas sei que vai ser nos Açores.

Mas onde se poderá ir alén da Ilha do Corvo? Não sei, talvez ao fundo do mar.

Sempre que saí do Corvo senti-me per-dido, omundo pare-cia-me dema-siado grande”

GonçALo tochA

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02. DESTAQUE29. ESPECTÁCULOS / ARTES

Luís miGueL cintrA

O pALcO é quEm mAiS ORDENA

ATOR, pROfiSSãO DE fé

Pôr “em cena” o debate sobre o papel da cultura, do pa-trimónio e da criação artística enquanto bens públicos. Eis o programa de festas de cinco companhias do Porto – Visões Úteis, Teatro do Bolhão, Boas Raparigas, te-atro do Ferro e FITEI (Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica) – para assinalar o Dia Mundial do Teatro, que se comemora na próxima terça-feira, 27 de março. Assim, na véspera, a 26, cada estrtura irá reunir-se com círculo do Porto a fim de manifestar as suas preocupações no que toca ao teatro. “O objectivo é que no Dia Mundial do Teatro os deputados à Assem-bleia da República iniciem a sessão legislativa conhe-cendo a realidade do setor”, explica ao JL, Carlos Costa, diretor da Visões Úteis. “Não se pode fazer discursos sobre a importância da cultura e, sistematicamente, no momento de decidir, não afetar recursos. Se é conside-rada um bem público, tem não só no contexto nacional, mas também na relação com a União Europeia. Este ano, mais do que iniciativas, é importante conversar se-riamente sobre tudo isto.” E, um pouco por todos o país, não faltarão opor-tunidades para refletir sobre o estado da arte e pro-curar novos caminhos. Também na cidade, Invicta, o Teatro Nacional São João (TNSJ) promove o fórum de discussão “Os Teatros do Porto em 2012” (a 27, às 16, no Teatro Carlos Alberto), dirigido a toda a comuni-dade teatral do distrito. “Deparamo-nos, essencialmente, com dois grandea problemas. Por um lado, os cortes orça-mentais, e, por outro, a ausência de uma consciencia real dos meios logísticos, humanos e técnicos de que o cidadão dispõe”, revela, ao JL, o ator e encenador Nuno M. Cardoso, que participará da mesa-redonda. Daí que o intuito da iniciativa seja criar uma forma de entendimento e co-operção entre vários agentes locais, de modo a “poten-ciar” os recursos existentes. Destas e de outras questões

se fala, ainda, no Teatro de Portalegre (à 27, às 18, na Igreja do Convento de Santa Clara) ou na sede do grupo teatral Lendias d´Encantar, em Beja (a 25, às 14 e 30, no eespaço Os Infantes) Mas também haverá, de norte a sul do país, espeta-culos de entrada livre, ensaios abertos ao público, es-treias, leituras e visitas guiadas. Em Lisboa, a Cornu-cópia convida o público a assistir, no Dia Mundial do Teatro, ao ensaio da peça Fingido e Verdadeiro ou o martírio de S. Gens, ator, que se estreia a 29 (ver caixa). Com entrada gratuita, podem ver-se ainda em Lisboa,

A Morte de Danton e João Torto, no Nacional D Maria II, O Rapaz da Última Fila, no Teatro Politécnica, O Fantasma de Chico Morto, n´A Barraca: Dança de Roda, no Teatro Municipal de Almada; em Coimbra, Shakespeare pela Barbas, n´O Teatrão; em Évora, Falar Verdade a Mentir; no Cendrev – teatro Garcia de Re-sende; ou no Porto, Alma, no TNSJ, e Esta é a Minha Cidade e Eu Quero Viver Nela, no Mosteiro São Bento da Vitória. Já no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa, a festa no teatro estende-se por quatro dias. A 26, os atores Matim Pedroso, Flávia Gusmão e Nelson Guerreiro organizam uma maratona de leitura de Os Pilares da Sociedade, de Henrik Ibsen (das 21h à meia-noie). A

27, a enfeméride é celebrada com a pela infantil Jôjô, O Reincidente, de Joseph Danan, uma produção do te-atro rainha com encenação de Fernanda Mora Ramos e Paulo Calatré (às 10 e 30 e a 28, e às 15 e 30) seguindo--se mais tarde uma sessão de leitura da obra prima de Cervantes, Dom Quixote (das 21 à meia-note). A ter-minar à 29, o livro Criatividade e Instituições: novos desafios às vidas dos artistas e profissionais da cultura, de Borges e Pedro Costa, da mote ao debate que re-nirá, entre outros, Cláudia Galhós, Pedro Penim (às 18 e 30). Também na baixa lisboeta, o Teatro Maizum trás o Teatro-Estúdio Mário Viegas numa leitura dramati-zada de Histórias Mínimas, de Javier Tomeo, dirigida por Silvina Pereira e com interpretaçôes desta última. Júlio Mratín Isabel Ferreira e Augusto Portela (às 18 e 30). E, noutro canto da capital, junto ao castelo São Jorge, o Teatro junta-se ao Circo no Chapitó, com per-formances e um espetáculo protagonizado pelos alunos de Interpretação e Animação Circenses, Figurinos e Adereços, sob a coordenação da atriz Rita Ribeiro (a partir das 19). E como sendo hábito, no Dia Mundial da art do palco o Teatro da garagem viaja até Bragança, desta vez para a iniciativa “O Teatro antes do Teatro”, uma visita guiada pelo Teatro Municipal através de jogos e impro-visações dirigidas por Maria João Vicente (às 20 e 30), e para estrear O Mundo em que Vivemos, de Carlos J. Pessoa (a 30 e 31, às 21 e 30). A Sul sobe também pela primeira vez ao palco Paris, Praia do Hawai (a 24 e 25, às 21 e 30, no teatro Municipal de Faro), um esetáculo de Teatro das Figuras que perscurta um Algarve des-conhecido, “que se esconde atrás dos turistas, dos es-trangeiros, dos sonhos escaldantes, das noites longas, da cultura do corpo e do sol assassino”. Jl cArolinA FreitAS

Não é por sugestão da enferméride que a Cornucópia estreia na semana do Dia Mundial do Teatro, a 29, uma peça sobre o próprio teatro.Quem tem acompanhado da Companhia drigida por Luís Miguel Cintra e Cristina Reis que este é tema recorrente: “Mais que de teatro falamos da arte da vida, da coisa e da imagem, do pintor e seu modelo”, escreveu o ator e en-cenador a proprósito do espetáculo Fim de Citação.Agora, sobe ao palco do teatro do Bairro Alto, em Lisboa, até 29 de abril, Fingido e Verdadeiro ou martírio de S. Gens, ator, a partir de El Fingido Verdadeiro (, de Lope de Vega, com encenação de Luís Miguel Cintra, tradução de Luís Lima Barreto e interpretações destes últimos, Cleia Almeida, Dinis Gomes, Duarte Guimarães, Sofia Marques, entre outros.

Jornal de Letras: Percebemos, logo pelo título, que esta peça levanta a questão da verdade ou mentira do Teatro. Foi isso que o interessou? L.M.C: Também. Este texto re-corre àquele sistema sempre muito divertido do teatro dentro do te-atro, problematizando a questão da verdade do ator. A ação passa--se no século III e conta a história do mártir S.Gens, um ator que ao representar a pedido do imperador Diocleciano, a figura de um cristão, se converte, e em consequencia disso é condenado à morte.Esta se-melhança entre o ator e o crente é muito interessante, porque um ator tem que crer, realmente, na-quilo que está a fazer. Mas não se trata de fazer filosofia. Esta peça, que assenta numa esconstrução do texto de Lope de Vega, é sobretudo uma “brincadeira”, um jogo irónico sobre a verdade e mentira, a vida e a ficção, sobre o trabalho do ator.

Como se processa essa descons-trução? Colámos trechos de fontes lite-

ráreas a que o autor recorreu, com o anuário da vida dos santos, Flos Sanctorum, e a História Imperial e Cesárea do escritor renascentista

Pedro Mexia e também citações de Santo Agostinho, Tertuliano, Louis Jouvet e Jean Genet. Além disso, ex-pomos a situação que a Cornucópia esta a viver – o dinheiro do Estado só chega mesmo para manter a companhia, não dá para cenografia, guarda-roupa, mais atores, etc. Por isso, os espectadores que têm acom-panhado o nosso trabalho vão reco-nhecer os adereços e vão sentir que estão na sala de espetáculos anteriores. Aliás, a peça começa com uma con-ferência dirigida o público e eu gos-tava que acabasse sendo um elogio ao próprio ator.

Esta peça de Lopes de Vega é uma espécie de demostração prática do seu texto teórico Arte Nova de Fazer Comédias. Quais eram as suas ideias-chave? Perante as críticas da Academia, que o acusava de desrespeitar os “clás-sicos”, Lope de Vega escreve esse texto,

onde recapitula as características dos modelos antigos para dizer que os quer seguir. Reclama a liberdade da métrica, a inclusão de personagens de várias naturezas, etc. E apesar de Lo Fingido Verdadero ser uma peça ti-picamente barroca e construida em verso, não é rígida em termos for-mais e cria personagens que parecem arrancadas da vida. No fundo,é isso que está em causa no seu texto teorico: uma comédia mais próxima da vida.

“Não faltarão oportuni-dades para refletir sobre o estado da arte e pro-curar novos caminhos

“É interessan-te a semelhan-ça entre o ator e o crente: um ator tem que crer, realmen-te naquilo que está a fazer

DiA munDiAL Do teAtro

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02. DESTAQUE36. ESPÉCTACULOS / ARTES 37. IDEIAS / CRÓNICA, LIVROS

JürGen hAbermAsA cONSTiTuiçãO DA EuROpAEnsaio sobre a Constituição da Europa é a última obra de Jürgen Habermas, 82 anos, um dos mais impor-tantes pensadores contemporâneos, com uma vasta e fundamental obra sobre vários temas, incluindo a te-oria política, a sociologia, a ética do discurso e a crí-tica da razão. Mas talvez nuca como neste novo e muito recente Ensaio, que vai agora sair em Portugal com a chancela das Edições 70 (grupo Almedina), o filósofo alemão tratou questões tão na ordem do dia mesmo no imediato decisivas, no “seu longo e brechtiano impulso de melhorar a Europa e o mundo” - como escreve num excelente prefácio o que é, por sua vez, não só um emi-nente constituicionalista com dos expoentes da ciência política e do pensamento em Portugal. E é esse prefácio que aqui antecipamos.

JOSé JOAquim gOmES cANOTiLhO

1. Um ano depois de os médicos o terem proibido de ler e de escrever, Jürgen Habermas retoma o caminho do desas-sossego. Como efeito, foi a doença que o impediu de vir a Portugal para participar no Centenário da Implantação da República. Mas a inquietação pela Europa - «Europa, Europa», «Ai, Europa» - obriga-o sempre a estar presente arran-jando forças por continuar o seu longo e brechtiano impulso de melhorara a Europa e o mundo. Olha para os frag-mentos e as transições que vão enchendo o «vale da morte» da política, sem que seja descortináveis a «espada má-gica» ou o «contra-feitiço» indispensáveis à magia da razão. A imagem de uma «Europa sem Europa» espicaça as sua inquietações. outro remédio não tem senão o de utilizar os seu «meios para tentar eliminar os bloqueios conceptuais que continuam a existir em relação a uma transnacionalização da democracia, colocando a unificação europeia no contexto de longo prazo de uma jurisdição democrática e de uma civilização de poder estatal»

2. O desassossego é próprio de um «utópico» de longo curso. na entrevista que concedeu a Thomas Assheuer revela a sua «maior inquietação» o desassossego a cavar fundo na sua implantação cidadã traduz-se neste grito de alma: «A minha maior preocupação é a injustiça social, que brada aos céus, e que consiste no facto de os custos sociali-zados do falhanço do sistema atingirem com maior dureza os grupos sociais mais vulneráveis». A injustiça social, paga-se, não com dólares, libras, ou euros, mas com a «moeda forte da existência quotidiana». Longe de ser uma precipitação transitória de sistema, a injustiça ameaça resvalar para um «destino punitivo» global. Toda esta tra-gédia humana - este «escândalo político», este «darwinismo social», este «programa de submissão desenfreada do mundo da vida aos imperativos do mercado» - é acompanho de um «enfado com a política» ao qual não é alheia a ascensão ao poder de uma «geração desarmada em termos normativos», incapaz de assumir objectivos, causas e esperanças.

3. O que fazer neste quadro de «melancolia hopperiana» das longas filas de casas abandonadas? Como ultrapassar a política da «normalidade social», tornada «ridícula» pela sua hipocrisia moralista? Como levar a sério a «possi-bilidade real de um fracasso europeu»? Jürgen Habermas sugere o caminho: pensar a pessoa, pensar a sua digni-dade, pensar a dignidade destes, pensara dignidade da pessoa humana, pensar na dignidade dos povos. No estudo inicial - «O conceito de dignidade humana e a utopia realista dos direitos humanos» - coloca-nos perante esta in-triga: «Porque razão é a referência aos ‘direitos humanos’ no direito muito anterior à referência à ‘dignidade hu-mana’»? A carreira tardia no conceito de dignidade humana no âmbito do direito constitucional e do direito inter-nacional parece sugerir a ideia que de direitos humanos só surge pesadamente carregada de dignidade humana no contexto histórico do Holocausto. O «fardo moral do conceito de dignidade», obrigatoriamente presente em qual-quer exercício da «razão anamnéstica» leva o autor a tentar compreender a assimetria temporal entre «história dos direitos humanos» e o aparecimento do «conceito de dignidade humana» e a defender uma tese particularmente sugestiva. Consiste esta tese na «defesa da existência, desde o início, de um estreito nexo conceptual» entre os dois conceitos, embora inicialmente apenas implícito. Se os dois conceitos andaram desligados durante muito tempo, isso não significa a inexistência de uma ligação profunda entre direitos humanos e dignidade humana. É esta dig-nidade «fonte moral» da qual se alimentavam os conteúdos de todos os direitos fundamentais e é radicação dos direitos nesta ponte moral que «explica a força explosiva do ponto de vista político de uma utopia concreta». A «substância normativa» radicada na «igual dignidade humana de cada um» revela toda a potencialidade praxeo-lógica quer quando os tribunais têm que decidir sobre o «cálculo do direito a prestações sociais», como o subsídio de desemprego ou subsídio de reintegração social, quer quando se descobre, em sede de legislação democrática ou de tratados internacionais, o «nexo lógico» entre várias categorias de direitos. Em termos mais pregnantes: a dig-nidade humana é a mesma «em todos o lado e para todos», justificando a indivisibilidade dos direitos fundamen-tais. A «força utópica», a «utopia concreta» surge ligada à mensagem ético-moral da dignidade: «os direitos funda-mentais só podem cumprir politicamente a promessa moral de respeitar a dignidade humana de todas as pessoas se agirem em articulação uns com os os outros de forma igual, em todas as categorias». mas não se trata apenas de uma «promessa moral». Como «Janus», os direitos têm duas faces - uma moral e outra jurídica -, carecendo de ins-titucionalização e de positivação sob forma de direitos subjectivos.

4. O Ensaio sobre a Constituição da Europa que forneceu a inspiração do título do livro como sub-epígrafe do trabalho «A crise da União Europeia à luz de uma constituição do direito internacional» permitem a Jürgen Ha-bermas tentar «uma narrativa nova e conveniente», a partir da perspectiva de um constitucionalização do direito internacional, que, associando-se a Kant, aponta para uma futura situação jurídica cosmopolita, muito para além do status quo. «Não é a primeira vez que o Autor aborda a perspectiva kantiana de um direito civil mundial e a constitucionalização do direito internacional. Com efeito, em trabalhos anteriores, as problemáticas da «paz per-pétua», a «chance» da constitucionalização do direito internacional e a viabilidade política num sociedade mun-dial pluralista haviam merecido importantes abordagens reflexivas. Porquê esta fome «sem entretém» pela Europa e o seu destino? A resposta clara e incisiva é esta: (1) porque o debate actual sobre a Europa se restringiu e continua a restringir «às saída imediatas para a crise bancária, monetária e da dívida, perdendo de vista a dimensão polí-tica»; (2) os conceitos políticos incorrectos ocultam a força civilizadora da juridicização democrática – e, portanto, também o compromisso associado desde o início ao projecto constitucional europeu. Políticos e economistas co-locados perante a única saída possível – «mais Europa» –, insistem nos conhecidos erros da construção da União europeia. «Mais Europa» implica um aprofundamento das competências e não o caminho saturado de um existen-cialismo político errante que vai desde os compromissos assumidos em cimeiras, ineficazes e não democráticas, até à aceleração da «perda de solidariedade a nível europeu». Mais do que isso: olham para os ditames dos «grandes bancos e agências de notação» e não para o desfalque legitimatório perante as suas próprias populações. E, em vez de se levar a sério um projecto europeu, opta-se por caminhos ínvios. Ensaia-se, sem o dizer, um esquema de «fe-deralismo executivo». Oculta-se a «importância história do projecto europeu» por se impopular e complexo, nave-gando-se aos sabores dos populismos internos. Como sintetiza Habermas, instalou-se um estranho fenómeno de acatalepsia onde se mistura cepticismo, dúvidas não metódicas, incapacidade de compreender. As elites político--económicas sentem-se confortáveis com «incrementalismos», mas teimam em não assumir a força civilizadora do direito democrático. Tão-pouco parecem compreender o «regresso da questão democrática», sendo óbvio que os Estados pagam a governação baseada na intergovernabilidade com o decréscimo dos níveis de legitimação de-mocrática. Por isso - e admitindo a inevitabilidade de transferência de direitos de soberania do estado para outras instâncias de soberania - torna-se indispensável um «requisito forte» para a justificação da incontornável trans-nacionalização da soberania do povo. Jürgen Habermas desenveolve com mestria argumentativa este «requisito forte» - «o espaço de manobra da autonomia cívica só não fica reduzido se os cidadãos em causa participarem na legislação supranacional, em coo-questões - de direito constitucional, de direito internacional e de direito europeu - quanto a este processo de juridicização. Vê-se que Jürgen Habermas desenvovle com mestria argumentativa este «requisito foret» - «o espaço de manobra da autonomia cívica só não fica reduzido se os cidadãos em causa par-ticiparem na legislação supranacional, em cooperação com os cidadãos dos outros Estados envolvidos, e isto de

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02. DESTAQUE37. IDEIAS / CRÓNICA, LIVROS

acordo com um procedimento democrático. Na argumentação habermasiana não dá lugar para esquemas suce-dâneos (esquema de Ersatz) da legitimazação democrática. Trata-se de uma justificação deliberativa de reforço da responsabilidade decisória, da imposição de transparência ou de publicidade crítica, da garantia dos princípios do Estado de direito. Nada substitui a participação democrática e o procedimento democrático.

6. Uma democracia transnacional não assenta apenas em esquemas de legitimação democrática. Quaisquer acordos institucionais degradar-se-ão em cascas vazias da política se não se acentuarem as dimensões profundas democrático-igualitárias veiculadoras de solidariedade entre «cidadãos dispostos a responsabilizar-se uns por ou-tros» e a assumir a «disponibilidade para também fazer sacrifícios, com base numa reciprocidade de longo prazo». As «elites políticas hesitantes» - eis outro dos tópicos assinalados por Habermas~- além de nem sempre pouparem sarcasmos típicos de inferioridades cívico-culturais («os Gregos que vendam as ilhas», «os Portugueses que se juntem ao Brasil»), parecem ficar enredadas nos segredos das várias comitologias europeias. «O fato de a União Eruopeia ter sido, até agora, essecnialmente sustentada e monopolizada por elites políticas, gerou uma assimetria perigosa entre a participação democrática dos povos naquilo que os seus governos «conquistam» para eles no palo de Bruxelas - que consideram muito longínquo - a indiferença, se não mesmo desinteress, dos cidadãos da União no que diz respeito às decisões do seu Parlamento, em Estrasburgo. Todos sabemos: com «indiferença», «desinte-resse» e «distância» não se constroem democracias - muito menos transnacionais. O resultado é, sim, um buraco negro, vulgarmente designado por «déficite démocrático» da União Europeia. Este «déficite democrático» corre o risco de se converter «num arranjo para o exercício de um domínio pós-democrático e burocrático». A crise do euro pôs a claro o «clube dos ilusionistas» e revelou os pontos fracos do Tratado de Lisboa. Este Tratado não dota a UE de meioas para enfrentar os desafios que se lhe colocam enquanto União Económica e Monetária. O que é pre-ciso não é ultrapassar as barreiras institucionais, mas exigir «uma alteração dradical no comprtamento das elites políticas. Devem estar menos voltadas para «relações públicas» e «incrementalismo dirigido por peritos» e mais preocupadas com a coesão económica e social da Europa. Não há como não acompanhar J. Habermas no seu credo europeu: «é necessária uma coesão política reforçada pela coesão social, para que a diversidade nacional e a ri-queza cultural incomparavel do biótopo - velha Europa - possam ser protegidas no seio de uma globalização que avança rapidamente».

7. Na última parte do Ensaio sobre a Constituição da Europa, Jürgen Habermas regressa ao tema da constituciona-lização do direito internacional e aos problemas de legitimação de uma sociedade mundial devidamente confor-mada. No fundo, tratar-se-ia da continuação da «juridicização democrática», agora no plano global, ou, por outras palavras, que são as do Autor, da «constituição de uma comunidade de cidadãos do mundo». A nível concetual e construtivista, procura-se dar operacionalidade à democracia cosmopolita. Como é sabido, a consrução haberma-siana é criticada por muitos e acusada de ser uma «fantasmagoria» normativa própria de um espírito utópico. Em rigor, a narrativa habermasiana não parte do nada nem inventa lugares povoados com fantasmas. Desde a Carta das Nações Unidas e do seu núcleo orgazacionali até às decisões do Conselho de Segurança seria (será) possível prosseguir com a civilização do exercício do poder político. Mas, como o próprio Autor reconhece, a «ligação dos cidadãos do mundo» e a partilha de «cultura política» implicaria a eleição para um Parlamento mundial autocon-formado como locus da inclusividade mas desprovido de mecanismos de imputação de responsabilidade parla-mentar na cadeia de juridicização democrática da política mundial.

8. O livro termina com um Anexo, onde se inclui uma entrevista cedida ao jornal Die Zei («Depois da Bancar-rota»), com artigo publicado neste mesmo jornal («No euro decide-se o destino da União Europeia») e um terceiro trabalho publicado no jornal Suddeustsche Zeitung («Um pacto para ou contra a Europa»). Qualquer tentativa de sintetizar estes trabalhos correria o risco de tornar escuro aquilo que é claro. Leia-se a voz do profeta «contra o tédio face a uma exigência política insuficiente».

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02. DESTAQUE38. IDEIAS / CRÓNICA, LIVROS

EcOLOgiA

viriAto soromenho mArQuesciêNciA, TRAbALhO E cRiSE DO AmbiENTEA ciência moderna e contemporânea aparece depois de uma declaração aberta de renúncia: ter desistido, no seu main- stream, do ideal teorético, isto é de um inquérito dos objetos mundanos que se satisfizesse na con-templação cognitiva, desprovida de uma utilidade prática. Na verdade, a reabilitação do trabalho, que se encontra já presente, como contraste, no neoplatonismo de Thomas More ( veja-se a sua Utopia de 1516, onde se apresenta a ideia católica e, mais tarde, comunista da reabilitação pelo tra-balho manual ), é um profundo indicador da mudança de atitude, entre-tanto ocorrida. Se o trabalho é moralmente válido, e não moralmente in-digno, ao contrário do que ocorria nas sociedades esclavagistas da Grécia Antiga, então há uma dimen- são redentora naquilo que se poderá rea-lizar pelo trabalho, compreendendo nele, também, a novidade aportada por um trabalho enriquecido e transmutado pelas inovações tecnológicas. O Cristian- ismo, nas suas diferentes correntes, faz o pleno na exaltação do valor formativo e humanizante do trabalho manual ( não foi só o pro-testantismo como rezam algu- mas lendas, aceites mesmo no universo ca-tólico, e a maior prova disso reside no facto de Thomas More ter sido ca-noni- zado...). O trabalho já não é a degradação que o ateniense livre nele descobria, ou o anátema lançado por Deus contra a ambição humana, de acordo com livro do Génesis da tradição judaica, que depois foi apropriada pelas grandes tradições monoteístas. Esta tendência normaliza-se e gene-raliza- se com a Revolução Industrial. O melhor exemplo disso é a com-pulsão ao trabalho técnico, patente nas reflexões de Benja- min Constant, em 1819. Fazer ciência torna-se, assim, não tanto na atividade que conhece os objetos, mas na atividade que os visa produzir. Viragem da Gno- sio-logia para a Neo-Ontologia. A essa luz, a crise global do ambiente, se a ela sucumbirmos, será acima de tudo e anets de mais, um sintoma de fracasso radical desse projeto de recriação do mundo pelo trabalho, aliado à força transformadora da tecnociência.

Tentar prever o futuro, mesmo que seja um futuro não distante, ou seja : A próxima década, não é pequena ou-sadia. Mas é isso, num livro com tal título - a que se acres-centa : Onde temos estado... e para onde nos dirigimos - que intenta ou ensaia George Friedman, o norte- ame-ricano fundador e líder da Stratfor, uma empresa consi-derada a no1 em informação geopolitica global. E é este o dominio fun- damental das suas previsões, que vão de futuras guerras, de vários géneros, ao destino da Europa e da zona euro, da China, das relações internacionais, em particular no Médio Oriente e dos EUA com Israel e o Irão. O livro “ fala da relação entre império ( leia-se : os EUA ), républica e o exercicio do poder nos próximos dez anos “, e do modo como “ os EUA se devem comportar no mundo para exer- cerem o seu poder e preservarem a re-pública ao mesmo tempo “, assume o autor.

A pRóXimA DécADA

pORTugALiDADE

_GeorGe FriedmAn_A PrÓXimA dÉcAdA_ d.QUiXote, 300PP, 15,90 eUroS

_JoSÉ bAPtiStA_o tÉdio enQUAnto conFiGUrAçÃo contemPorÂneA_ cHiAdo editorA, 150 PP, 12 eUroS

_VÁrioS_PÁtriA UtÓPicA_ biZÂncio, 320PP, 13,50 eUroS

_AndrÉ bArAtA, AntÓnio S. PereirA e JoSÉ ricArdo c._PortUGAlidAde_ cAminHo, 280 PP, 15.90 eUroS

Ainda bem que se reúnem em vol- ume as intervenções no colóquio “ Representações da Portugalidade “, orga-nizado pela Universidade da Beira Interior, para assi-nalar o centenário da Républica. O livro tem o titulo do colóquio e saõ seus organizadores André Barata, An-tónio Santos Pereira e José Ricardo Carvalheiro. A si-nopse de apresentação resume bem do que se trata : “ Dos muitos modos de ver as várias facetas da Portugali- dade, é possível gerar um encontro entre distintas linguagens, objectos e perspectivas sobre a identidade portuguesa. Para lá de uma pretensa ou pre- sumível essência, que não tem de resumir o essencial da Portu- galidade, muito menos dispor de contornos precisos é ambição deste livro apreciar a pluralidade e eventual singularidade dos ele-mentos de Portugalidade, num diálogo multidisciplinar, cultural e aberto, entre o material e o simbólico, a repre-sentação e a produção, o passado e o futuro. Porque a identidade não tem a ver apenas com o que somos e de onde vimos, mas também com o que queremos fazer com aquilo de que dispomos.” Além dos três organizadores os textos são de Silvina Rodrigues Lopes, Carla Sofia Gomes Xavier, Daniel Ribas, Luís Cunha, José Neves, José Manuel Sobral, Daniel Melo, Luís Henriques, Mariana Pinto dos Santos, Alecandre António da Costa Luís, João de Melo e Mário de Carvalho. Os dois últimos conhecidos escri-tores, sendo o do autor de A Sala Magenta o mais literário de todos volume.

O TESTEmuNhO DO “gRupO DE gENEbRA”

SObRE O TéDiO

Pátria Utópica é um muito interessante livro memorialís-tico e testemunhal, sobre o ante e o post 25 de Abril, sobre cinco expriências de exílio politico e o que a ele obrigou, como foi a vida durante esse exilio, o retorno ao país e ( nele ) os primeiros tempos tempos da vida em demo-cracia. Por isso o livro se divide em quatro partes, corres-pondentes, grosso modo, a essas quatro fases ou tempos de experiência : Em Portugal, abafava-se; À beira do lago Léman; Regressos; Portugal reencontrado. Quando aos cinco testemunhantes, são: António Barreto, Ana Bena-vente, Eurico Figueiredo, José Medeiros Ferreira e Va-lentim Alexandre. Os quatro primeiros bem conhecidos, com larga ati-vidade politica, durante muitos anos, sobretudo na área do PS, todos tendo passado pelo Parlamento como de-putados, Medeiros e Barreto ( que já não é do partido e preside a uma fundação) também ministros, Ana Bena-vente secretária de Estado, e todos, incluindo Valentim Alexandre, docentes e/ou investigadores universitários e autores de várias obras no seu ramo de especialidade, e não só. E o que há, além disto, de comum entre eles? O facto de terem estado ligados às lutas associati- vas, de que agora se assinala o cinquentenário, alguns ( Eurico e Medeiros ) com intervenção destacada, terem-se exi-lado por razões semel- hantes ( em particular para não serem presos, e/ ou para não ir para guerra colonial; ou, no caso de Ana Benavente, aos 18 anos já casada, porque esse era o caso do marido ), haverem perten-cido ( ou quase pertencido ...) ao Partido Comunista. E, sobretudo, para efeito deste livro, o seu exilio ter sido na mesma cidade suiça, serem amigos e haverem par-tilhado muita coisa em comum - e por isso o livro tem como subtitulo O Grupo de Genebra revisitado.Mas, para lá dessa partilha, as experiências são diversifi-cadas e os ângulos de abordagem e as escritas também, pelo que o volume resulta de leitura atrativa - além de, e isso é o fundamental, constituir, repete-se, um apreci-ável testemu- nho sobre o Portugal de antes de depois de 25 de Abril, a vida no exilio eo percurso politico, profis-sional e em alguns casos pessoal dos cinco autores. Seria curioso e porventura revelador, aliás, avaliar alguns dos seus aspectos - o que, porém, aqui nao cabe.

39. IDEIAS / CRÓNICA, LIVROS

O tédio enquanto configuração contemporânea é um en-saio que resulta da tese de mestrado do autor, José Bap-tista, em Ciências da Comunicação da Universidade Nova Lisboa. São 17 capítulos em que analisa a "atualidade do tédio enquanto fenómeno cultural e forma determinante de se estar no mundo procurando, por um lado, delinear de que forma e através de que mediações surge a possibilidade da sua precipitação no âmago do sentir e da expriência do sujeito e, por outro, demonstrar o papel contral que ocupa na compreensão da expriência contemporânea".

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02. DESTAQUE39. IDEIAS / CRÓNICA, LIVROS

A pAixão DAs iDeiAsguiLhERmE D'OLivEiRA mARTiNSA fORçA DA LíNguAO génio da língua é a essência espiri-tual emanada dos seus vocábulos in-traduzíveis que se pode sintetizar numa expressão mais ou menos de-finida >> -Teixeira de Pascoaes disse--o, pensando na saudade, por certo, no desejo sensual e alegre e na lembrança espiritual e dolorida, mas ao lermo--lo, temos de ir mais além. Quando re-fere o que faz parte do que é próprio, da maior importância, no património imaterial da cultura. Ao depararmos com a magia das palavras na obra de um grande poeta, verificamos que os sentimentos, sendo intraduzíveis, vão ao encontro de palavras únicas para se exprimirem e se fazerem entender. Por isso Sophia dizia: << Gosto de ouvir o português do Brasil / Onde as pala-vras recuperam suas substância total / Concretas como frutos nítidas como pássaros / Gosto de ouvir a palavra com suas sílabas todas / Sem perder um quinto de vogal / Quando Helena Lanari dizia “ Coqueiro” / O coqueiro ficava muito mais vegetal>>. Aqui está a magia do que se não traduz, mas sente-se. O português é a terceira língua europeia mais falada no mundo graças a difusão operada pelos por-tugueses das caravelas à unidade linguística do Brasil. É uma língua de várias culturas, que, como língua viva, com- porta muitas diferenças, mundo afora, na pronúncia, na sin-taxe e no vocabulário. Apesar da dispersão significativa, tem conse-guido manter uma coesão apreci-ável, que permite a ligação de um identidade complexa, baseada no diálogo e compreensão. E saliente--se que o fenómeno dos crioulos não constitui uma excepção, mas um modo de enriquecimento, uma vez que prolongam as línguas nacionais dos países de língua oficial portu-guesa. Quando se fala de lusofonia, importa, antes de mais, referir que, se a língua portuguesa é de origem europeia, a verdade é que ganhou uma riqueza universal. A lusofonia há muito que deixou de ser eu- ro-cêntrica, para se tornar multipolar, enquanto partilha a fecunda de vá-rias culturas e de diversas influên-cias. A língua portuguesa é, assim partilhada por diferentes culturas, que se encontram e se completam na sua profunda diversidade. Leia--se, por exemplo, Mia Couto e o seu << queixa-andar>> e veja-se como, apesar das muitas diferenças, há pontos forte de união. Encontre--se Pepetela, Germano de Almeida, Craveirinha, José Eduardo Agua-lusa, António Candido ou Rubem Fonseca. Aí está tudo! A coesão essencial da língua portu-guesa não pode, pois, fazer esquecer a

diversidade interna e externa. Olhando a faixa oeste da Península Ibérica, onde nasceu o galaico-portu-guês, encontramos três grupos de dia-letos ou falares diferenciados, mas muito próximos - galego, português se-tentrional e português centro-meri-dional, segundo a formulação de Lin-dley Cintra. Estamos a falar da distinção entre o falar das classes cultas do eixo Coimbra-Lisboa, que defme a norma dominante da língua. E aqui importa referir que a Universidade (desde o século XIII) marcou decisivamente essa norma. Afinal, D. Dinis, ao criar o Reino, ligou as decisões da língua, do Estudo Geral e da fronteira. A di-ferenciação dos três grupos referidos faz-se pelo sistema das sibilantes. Nos dialetos galegos não há sibilantes so-noras (z) e não há a fricativa palatal

sonora (o nosso j), mas a surda (x). Nos dialetos portugueses setentrio-nais há as sibilantes ápíco-alveolares idênticas às do castelhano e ao pa-drão (surdas - em seis; sonoras - em rosa). Nos falares meridionais apenas apare- cem as sibilantes predorso--dentaís, que caracterizam a língua padrão - surdas (como em cinco ou caça) e sonoras (como em rosa e fazer). Além das características téc-nicas, há as especificidades regionais: os bês e os vês - Garrett dizia «nós os do Porto podemos trocar os bês pelos vês, mas nunca a liberdade pela ti-rania». Galegos e setentrionais usam dizer binho e abó, enquanto os meri-dionais pronunciam a consoante vê como lábio-dental. Já o ch é dito no padrão como fricativa (chave) e como africada palatal nos dialetos galegos e nortenhos (tchave). Quanto aos di-tongos, à pronúncia meridional (ôro, ferrêro) contrapõe-se a diferencia- ção galega e setentrional (ouro, fer-reiro), com uma particularidade no falar de Lisboa (que diz ferreiro]. Lembrem-se os ditongos reforçados na região do Porto e Entre-Douro--e-Mínho(pworto): a alteração dos timbres das vogais na Beira Baixa,

Alto Alentejo e Barlavento algarvio (müla, põca) e a queda da última vogal átona (tüd, por tudo). Por outro lado, há diferenças vocabulares assi-naláveis: ervilhas no norte e centro, griséus no Algarve; aloquete, a norte de Coimbra, cadeado, a sul; mais pa-lavras de origem árabe a sul; pala-vras arcaicas a norte - como mugir em vez de ordenhar, espiga por ma-çaroca, anho por cordeiro. São fatores históricos que pesam, mas do que ra-zões linguísticas. Nas ilhas atlânticas, há um prolongamento dos dialetos centro-meridionais. A colonização do século XV partiu dessas regiões, Há exceções em S. Miguel e na Ma-deira. No primeiro caso acentuam--se as tendências na alteração dos timbres das vogais e na queda da úl-tima vogal átona, e ao contrário da língua padrão o ditongo ej torna-se e. Na Madeira, o u e o i tónicos tornam--se ditongados, e a consoante 1 prece-dida de um i palataliza-se (:veyla, por vila). E se nos atemos apenas ao con-tinente europeu, poderíamos distin-guir no Brasil duas zonas linguísticas, a Norte e a Sul, separadas por uma fronteira que se estende da foz do rio Mucuri entre os Estados do Espírito Santo e da Bahia até à cidade de Mato Grosso. Em África, na Ásia e na Oce-ânia, além do português como língua oficial (com muitas específlcidades vocabulares), as variedades crioulas resultam do contacto do sistema da língua portuguesa com os sistemas indígenas. Porventura, podem de-rivar todos os crioulos dos papiares, as línguas francas do português do século XVI, que serviram de modo de comunicação entre as populações locais e os navegadores, mercadores e missionários, nas costas de África, Arábia, Pérsia, Índia, Malásia, Indo-nésia, China e Japão. Os crioulos são línguas derivadas do português. Bal-tazar Lopes da Silva, para o crioulo de Cabo Verde, foi por certo o mais fe-cundo escritor e estudioso do tema. E a diversidade é fantástica, os crioulos: de Cabo Verde: de Barlavento (Santo Antão, São Vicente, São Nicolau, Sal e Boavista), de Sotavento (Santiago, Maio, Fogo e Brava); do Golfo da Guiné (S. Tomé, Príncipe e Ano Bom, na Guiné Equatorial); os continen-tais (Guiné-Bissau e Casamansa); da Ásia (papiar cristan de Malaca, patuá di Macau, Sri - Lanka, Chaul, Korlai, Tellicherry, Cananor e Cochím}; de Java (Tugu). Perante esta panóplia de extraordinária riqueza, a que temos de somar os vocábulos portugueses incorporados em diversas línguas na-cionais (desde o bahasa indonésio ao japonês), percebemos que há poten-cialidades por aproveitar, numa eco-nomia para as pessoas.

“A coesão es-sencial da lín-gua portugue-sa não pode, pois, fazer es-quecer a diver-sidade interna e externa

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02. DESTAQUE44. DIÁRIO

João Luís bArreto GuimArãesmETER cONvERSAPóvoa de Varzim, sábado, 25 de fevereiro de 2010 Surpreendo o poeta Jaime Rocha ao estender-lhe uma folha amarele-cida arrancada a um bloco de notas, onde alguns meses atrás eu havia pedido a Hélia Correia para repetir por escrito algo que a ouvira dizer na sessão de homenagem a Maria Helena da Rocha Pereira na Feira do Livro do Porto, e que desde então me tem acompanhado como um re-frão: “A erudição é uma aprendi-zagem; a sabedoria é um triunfo”. Jaime fita o papel, entarnecido, estudando a caligrafia a castanho bordada pela sua namorada, com o exato olhar com que ambos fi-taram há alguns meses atrás , em Inglaterra, o único manuscrito co-nhecido de Dante Gabriel Rosseti recuperado da tumba de Lizzie. Para além de excelente poeta, Jaime Rocha é uma excelente pessoa, O seu rosto transmite uma tal tran-quilidade e sabedoria, uma genti-leza e generosidade que me faz la-mentar repetidas vezes apenas o reencontrar uma vez por ano nas

Correntes d'Escritas, onde sempre partilha histórias singulares como a daqeula vez em que um repórter fo-tográfico procurou Hélia, em Janas, para onde o casal foge ao fim de se-mana, com o intuito de a fotografar para uma edição do Expresso, e in-comodada pelo intenso calor capaz de gerar fotofobia, viu Jaime correr para a sombra e para gáudio do fo-tógrafo, com a mangueirada de rega estreitada na extrmidade, inventar a chiva com que aspergiu a gabar-dina que a helenista exibe nas pá-ginas do semanário, num certo dia soalheiro tornado gris. Impaciento--me enquanto Jaime não me de-volve o manuscrito que obtive de sua namorada. Tampouco me ofe-reço para lho oferecer. Desses pode ele pedir lá em casa quantos quiser. Onésimo Teotónio de Almeida dá--nos conta, ao almoço, da luta in-glória que Annie trava para que Edu-ardo Lourenço deixe de colecionar pirâmides e pirâmides de recortes de jornal, alegando ter de voltar a eles para os arquivar, o que acaba por nunca acontecer. Conta Onésimo que Annie

resolve a coisa da seguinte maneira: deixa que Eduardo saia para Portugal e, de quando em vez, das pirâmides de recortes semeadas pela casa, elimina as três ou quatro camadas de baixo de modo a que Eduardo, no seu regresso a Vince, encontre sempre no topo das pirâmides aqueles que a sua memória recente lhe convoca, não dando ime-diatamente pela falta dos mais an-tigos. “Se calhar foi assim que desa-pareceram os diários”, ironiza José Carlos de Vasconcelos. A memória de Onésimo é feita deste mosaico de fragmentos, prodi-giosamente justapostos, onde cole-ciona humor e inteleção, Para Oné-simo, tudo pode ser crónica, como para William Carlos Williams tudo podia acabar em verso. Onésimo in-terpela agora Luís Ricardo Duarte pelo facto de os participantes mais novos das Correntes “não ligarem nada aos tipos com mais de 40 anos, como eu” , ao preferirem juntar-se numa mesa á parte, quer ao almoço aquer ao jantar. O que não é, de todo, verdade, Esse é somente o pré-texto de que Onésimo necessita para nos

arrancar mais um sorriso, com o in-terminável gesticular de dedos que tem vindo a aperfeiçoar desde 1946: “Uma chatice, eu ter feito agora 41”.É ele roubador de sorrisos a quem as autoridades da Póvoa sempre en-tregam a chave da última mesa para que Onésimo feche as Correntes com uma eficácia anglo-saxónica: “Gosto sempre de preparar a minha palestra para as Correntes com muita antecedência. Aquilo que vou dizer logo á tarde, por exemplo, é já a palestra do ano que vem”. Precisamos de estar mais atentos ao que escrevem os políticos em início de carreira, Os indícios estão lá todos. Gonçalo M. Tavares seur-preende a plateia ao recuperar ex-tratos dos escritos de Adolf Hitler, onde o putativo ditador lamentava os fastos da sociedade alemã com a saúde dos seus próprios deficientes. A provacação do Gonçalo é de-masiado clara para não ser enten-dida, e em tempos de austeridade com regras vindas da Europa, só não a entende quem não quiser en-tender: “Degrau a degrau, o mundo

contabilístico vai-nos tirando di-reitos.”Companheiros de ofício, desde há algum tempo conhecidos, sento.me a lanchar com ele enquanto me auto-grafa três livros da série O bairro que acabo de comprar. E percebo que o in-comoda que eu os tenha comprado, que tenha gasto dinheiro com ele, não ter conseguido exemplares para me oferecer, tanto quanto o incomoda que me tenha levantado para lhe oferecer o sumo com que devolvo humidade, a uma boca onde sobra humildade. Tanto jovem turco irrompe pi-sando memória e tradição, que chega a ser desconcertamente que a gran-deza do Gonçalo não esteja apenas na obra que entretanto construiu, sequer num olhar profundo onde abunda inteleção, quanto na consci-ência que tem de que faça o que vier a fazer, chegue onde tiver de chegar, jamais deixará de se ver como um “anão aos ombros de gigantes”.

Leça da PalmeiraDomingo, 26 de Feveiro Distração, num poeta, é deixar acabar a reserva de cargas de tinta per-manente da caneta favorita. Impru-dência é sair de casa sem um cader-ninho no bolso. Não porque tenha o hábito de me obrigar a escrever um poema por dia, antes por ser impe-rioso ter um sítio onde escrever, se o acaso aparece com um verso que vale a pena: “Se adormeces a meu peito/ o meu braço adormece primeiro”

Vila Nova de GaiaSegunda-feira, 27 de Fevereiro Desde janeiro passado, sempre que atravesso de carro o tabuleiro da ponte da Arrábida, lembro-me do poeta Rui Costa. Nós não éramos amigos mas apenas conhecidos, não nos teremos cruzado mais do que uma mão cheia de vezes, a mais demorada das quais no encontro com poetas Galegos que o António Costa organizou. Mas re-cordo um rapaz alto, muito ativo, bem-parecido, para quem a poesia não era um passatempo marginal, antes uma razão para viver, um modo de estar nos dias. A circunstância da sua morte, o ter aparecido no rio, le-varam-me a escrever um poema que não fui capaz de terminar. Algo que sucedeu hoje numa súbita epifania, ao cruzar de novo a ponte lembrando um paradoxo de Zenão. Que bom seria, Rui, se o Paradoxo do Estádio fosse mesmo verdadeiro: “É impos-sível atravessar o estádio; porque antes de se atingir a meta, deve primeiro al-cançar-se o ponto intermédio da dis-tância a percorrer; antesde atingir esse ponto, deve atingir-se o ponto que está

a meio caminho desse ponto; e assim ad infinitum”. Sem nunca tocar águas, Rui, sem nunca chegar ao chão. Um dos meomentos altos das Cor-rentes, no que á confraternização gas-tronómica diz respeito, foi o jantar no Zé das Letras com a minha edi-tora Lúcia Pinho Mleo, as Margaridas Ferra e Vale de Gato, e vários outros amigos. Já no final do jantar, o Bruno e a Marta Serra encheram-se de razões, encetando um cotejo de predicados políticos da esquerda e da direita, no que a Valores diz respeito, num gesti-cular amável mas não menos decidido que se porlongou pelo doce, pela fruta, pelo café, pelo cigarro fumado á en-trada, pela calçada, pelo parque, pelas ruas da Póvoa de Varzim. Ao terminar o e-mail que hoje lhe dirigi, resolvi provocar o Bruno Vieira Amaral, perguntando-lhe se ele e a Marta, de regresso a Lisboa, ainda es-tavam a gesticular o assunto. A res-posta pronta do Bruno não me fez es-perar: “[Aquilo ainda se] prolongou por mais um pouco, mas a Marta acabou por me convencer de que eu tinha a razão”.

Leça da PalmeiraQuinta-feira, 1 de Março Desde que o meu pai faleceu, o Jorge Sousa Braga liga-me todas as semanas. É um facto que já o fazia antes de aquele dia me ter aconte-cido, mas actualmente faz questão de me ligar todas as semanas. O poeta com quem partilho o Po-esia & Lda é, com o meu irmão, um dos meus melhores amigos, um daqueles raros brindes com que a vida nos brinda, o podemos

privar com pessoas de ética irre-preensível, como era o Egito Gon-çalves que tanta saudade deixou. Aúnica vez que nos zangamos foi por causa de uma doente comum. Antes tivesse sido a poesia, já que a zanga provavelmente teria durado menos tempo. Embora, por outro lado, tivesse sido a poesia, e dificil-mente teríamos estado tanto tempo de costas voltadas; não só usamos frequentar a mesma família de po-etas, como há mais de duas décadas que ele cuidou de me ensinar não ser poeta um campeonato, embora persista quem assim pense, antes uma corrida no deserto, e isto já sou eu quem o diz: ninguém sabe onde é a partida, sequer onde fica a che-gada, mas muito pior do que isso, o trajecto não está marcado. Foi uma altura em que as palavras se esgo-taram entre nós. Até que me enchi do silêncio e pedi ao Manuel António Pina, o favor de mediar o mal-enten-dido. Ninguém melhor que um poeta podia encher de palavras, o silêncio de poetas mudos. Breve nota a não esquecer. Con-vidar o Rui Manuel Amaral para um café no Marquês, e propor-lhe estas palavras: “O nariz de Paul Gaughin seria o sítio ideal para Vincent van Gogh ter dado uma dentada. Mas não aconteceu nada”. Ah, sinto que poderia escrever este diário para sempre.