Jc Penna Poética Da Vítima

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87 Prosa Professor de Teoria Literária e de Literatura Comparada na UFRJ. É autor de um livro de poemas, Parador (Mobile, 2011), e de Escritos da sobrevivência (no prelo, 7Letras, 2013). Poética da vítima 1 João Camillo Penna P ensar o paradigma da representação da violência, hoje em dia, requer a elaboração de duas matrizes: a visibilidade e a vítima. É a junção das duas: a visibilização da experiência vítimária, que constitui o paradigma da violência tal qual o conhecemos. Defina- mos nossos termos. O visível resume o paradigma da representação, no sentido filosófico, político e artístico do termo, como paradigma do visível, desde a redução platônica, ao definir o campo específico da filosofia, da significação e do conceito, como o campo da ideia, isto é, do “visível” (eidon quer dizer “ver”). A partir desta redução “ideológica”, podemos entender o significado da representação po- lítica, no sentido da democracia representativa, como espaço da vi- sibilidade cidadã, e no sentido teatral, nas línguas neolatinas, como modelo da enunciacão artística. O regime estético, isto é, da aísthesis, 1 Este artigo foi escrito ao mesmo tempo que um outro, “A violência da poesia”, sobre a poesia de Armando Freitas Filho. (Alea: Estudos neolatinos, vol. 13, n. o 2, jul-dec. 2011). Explica-se desta forma que parte do argumento de um artigo seja retomado no outro.

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"Pensar o paradigma da representação da violência, hoje em dia, requer a elaboração de duas matrizes: a visibilidade e a vítima. É a junção das duas: a visibilização da experiência vítimária, que constitui o paradigma da violência tal qual o conhecemos."

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    P ro s a

    Professor de Teoria Literria e de Literatura Comparada na UFRJ. autor de um livro de poemas, Parador (Mobile, 2011), e de Escritos da sobrevivncia (no prelo, 7Letras, 2013).

    Potica da vtima1

    Joo Camillo Penna

    Pensar o paradigma da representao da violncia, hoje em dia, requer a elaborao de duas matrizes: a visibilidade e a vtima. a juno das duas: a visibilizao da experincia vtimria, que constitui o paradigma da violncia tal qual o conhecemos. Defina-mos nossos termos. O visvel resume o paradigma da representao, no sentido filosfico, poltico e artstico do termo, como paradigma do visvel, desde a reduo platnica, ao definir o campo especfico da filosofia, da significao e do conceito, como o campo da ideia, isto , do visvel (eidon quer dizer ver). A partir desta reduo ideolgica, podemos entender o significado da representao po-ltica, no sentido da democracia representativa, como espao da vi-sibilidade cidad, e no sentido teatral, nas lnguas neolatinas, como modelo da enunciaco artstica. O regime esttico, isto , da asthesis,

    1 Este artigo foi escrito ao mesmo tempo que um outro, A violncia da poesia, sobre a poesia de Armando Freitas Filho. (Alea: Estudos neolatinos, vol. 13, n.o 2, jul-dec. 2011). Explica-se desta forma que parte do argumento de um artigo seja retomado no outro.

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    ligado ao sensvel e sensao, o modo em que a experindia artstica foi pensada, na modernidade, a partir deste paradigma da representao vis-vel. A asthesis contempornea se d preferencialmente no registro do espet-culo, enquanto regime da visibilidade generalizada, segundo o diagnstico de Guy Debord, em A sociedade do espetculo (1967).

    Ora, uma das grandes linhagens da reflexo artstica na modernidade pautada, justamente, pelo seu inverso, por uma invisibilidade, ou ausncia de visibilidade, um irrepresentvel, no que se poderia chamar rigorosamente uma in-esttica. Tomemos, para incio de conversa, uma obra exemplar que aborda o tema da violncia brasileira atual, por este vis: a instalao 111, de Nuno Ramos (1993), dedicada aos 111 presos assassinados pela Polcia Militar no Massacre do Carandiru. Assim a descreve o crtico Lorenzo Mamm:

    Nuno montou dois ambientes. No maior, espalhou 111 pedras cober-tas de piche, cada uma carregando fragmentos de jornal enrijecidos pelo breu, as cinzas de uma pgina da Bblia queimada, uma barrinha de linotipia com o nome de uma das vtimas; encontram-se ainda, no mesmo ambien-te, volumes amorfos cobertos de piche ou de folhas de ouro, caixinhas penduradas nas paredes que deixavam entrever pginas queimadas, escritas murais ilegveis, em parafina, uma cruz grande e capenga, formada de ou-tras barrinhas de linotipia. A essa encenao funerria correspondiam, no ambiente menor, fotografias areas tomadas na hora da chacina e grandes ampulhetas de vidro, em que uma pgina soprava, a intervalos regulares, nuvens de gs branco.2

    No comentrio que se segue, Mamm ressalta que, a despeito das alegorias facilmente decodificveis do tipo: inferno e paraso, fogo e ar, cripta e absdia a instalao se notabiliza por elementos enigmticos, as notcias de jornal e os escritos murais quase completamente ilegveis, os elementos materiais dispostos

    2 MAMM, Lorenzo. Nuno Ramos na Bienal de Veneza. Nuno Ramos. So Paulo: Editora tica, 1997, pp. 203-204.

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    sobre o espao configurando uma espcie de charada ou rbus que pede uma decifrao que, no entanto, nunca vem.3 E Mamm sintetiza: Os signos se mul-tiplicavam na impossibilidade de dizer algo, frente extrema estupidez daquelas mortes.4 O procedimento da obra poderia ser resumido da seguinte maneira: um uso literal de materiais por exemplo, jornais no para ser lidos em meio a outros tantos materiais heterogneos, montando uma alegoria em grande parte ilegvel que significa em negativo, pela no-significao, o absurdo, a falta de sentido do massacre. A instalao formula uma charada indecifrvel, que no explica o horror do massacre, mas inscreve materialmente, como impossibili-dade de dizer algo, a estupidez das mortes.

    Salvo engano, uma das fontes do tratamento desta impossibilidade de dizer algo diante da morte violenta e estpida (mas h algum assassinato que no seja estpido?) encontra-se em Theodor Adorno, especificamente do ensaio Engagement de 1962. Ali Adorno nuana o antema de Crtica cultural e sociedade (1949), segundo o qual escrever um poema aps Auschwitz um ato de barbrie,5 ao comentar a pera de Arnold Schnberg, O sobre-vivente de Varsvia, compositor de sua particular afeio, apontando nela algo de constrangedor. A pera consiste precisamente em uma homenagem memria dos mortos no genocdio judaico da Segunda Guerra Mundial.6 O constrangimento residiria no fato de que a transformao do horror da ex-perincia das vtimas em imagem fere a vergonha ou o pudor delas, ou diante delas. A palavra em alemo Scham.7 Segundo Adorno, a figurao autno-ma, a imagem, a estilizao artstica todas expresses que nomeiam a operao da forma autnoma da arte ferem a vergonha ou o pudor das vtimas do Gueto de Varsvia, apresentadas no coro da pera de Schnberg, ao atribuir um sentido quilo que no tem sentido nenhum: o horror do seu sofrimento. Adorno diria, em resumo, que Schnberg, no coro de sua pera,

    3 Idem, p. 202.4 Idem, p. 204.5 Cito a frase na traduo de Jeanne-Marie Gagnebin. GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Aps Auschwitz. Seligmann-Silva, Mrcio (org.). Histria, memria, literatura. Campinas: Ed. Da Unicamp, 2003, p. 100.6 Idem, p. 107.7 Idem, ibidem.

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    estetiza o sofrimento destas mesmas vtimas, a despeito da lgica que conduz o seu projeto, de homenage-las de maneira sensvel.

    A frmula de Adorno estabelece uma relao entre trs elementos: a figurao artstica, a repetio da ferida do sofrimento vitimrio e o sentido. A arte confere significao ao que por definio no o tem, e faz isso infringindo algo que o texto deixa implcito: a regra do pudor, da vergonha, de uma espcie de extrema modstia diante do sofrimento vitimrio. O texto sugere um programa para a arte: a obra deve ser capaz de rememorar o sofrimento das vtimas, o que pressupe de alguma forma a sua repetio, sem figur-lo, sem represent-lo. Seria possvel pensar uma obra nesse espao exguo separando de um lado a asthesis, a sensao, o sentimento, e de outro a rememorao? Seria possvel uma rememorao sem figurao, para usar uma expresso de Jeanne-Marie Gagnebin, uma esttica, por assim dizer, inesttica, uma esttica no-figurativa, radicalmente inexpressiva?

    A instalao 111 de Nuno Ramos, como assinala o comentrio de Lorenzo Mamm, se insere no campo aberto por este programa adorniano. Oriundo dele, sem dvida, a literalizao material dos textos ilegveis, como inter-rupo da significao, e ndice da falta de significao da chacina ocorrida na Casa de Deteno de So Paulo.

    Estabelecido o modelo inesttico da representao (esttica) da violncia, passemos agora noo de vtima, como sujeito visvel do sofrimento. H dois grandes paradigmas da violncia na modernidade: o paradigma da vio-lncia justificada (e portanto til) e o da violncia intil. A tese da violncia justificada foi formulada pelo terror revolucionrio francs, e a da violncia intil, ou excessiva, segundo a expresso de Primo Levi, no genocdio judai-co dos campos de concentrao e extermnio da Segunda Guerra Mundial, portanto, nas imediaes do programa inesttico adorniano. Lembremo-nos da definio de terror dada por Robespierre:

    O terror no outra coisa seno a justia pronta, severa, inflexvel; esta , portanto, uma emanao da virtude; menos um princpio particular do

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    que uma consequncia do princpio geral da democracia, aplicada s mais prementes necessidades da ptria.8

    O modelo jurdico que pauta a violncia justificada o de uma legtima de-fesa amplificada. Matar o inimigo em suas verses interna ou externa, portan-to, antes que ele mate a todos ns, e acabe com a revoluo. A violncia justa e virtuosa estar presente nos diversos programas revolucionrios de esquerda dos sculos XIX e XX e nas vanguardas histricas, a eles contemporneos. Por exemplo, no Brasil, de forma aguda, no tropicalismo, no cinema de Glau-ber Rocha, ou no teatro de Z Celso Martinez Correa. Vejamos, a ttulo de exemplo, a definio de Glauber da esttica da violncia.

    No Manifesto de 1965, Esttica da Fome, violncia e fome so signos in-tercambiveis. A fome o produto vergonhoso maior da cultura colonizada da Amrica Latina, e sua manifestao cultural a violncia. O Cinema Novo trans-forma a violncia da fome em esttica, em imagens violentas, com o fim de fazer compreender ao colonizador, pelo horror, a fora da cultura que ele explora.9 A violncia assim conscientizadora, ela produz significao, as imagens do horror seriam responsveis por uma reviravolta no padro da relao, no fundo mendican-te, estabelecida pela diplomacia e pelo comrcio internacional entre o colonizado, visto como desfrutvel, e o colonizador, entendido como fonte da dominao.

    A violncia intil de que fala Primo Levi aquela que tem um fim em si mesma, voltada unicamente para a criao da dor. Ela deve ser entendida em contraposio ao que seria uma suposta utilidade da violncia, mesmo que tristemente til:

    Pondo de lado os casos de loucura homicida, quem mata sabe por que o faz: por dinheiro, para suprimir um inimigo verdadeiro ou suposto, para vingar uma ofensa.10

    8 ROBESPIERRE, Maximilien de. Sobres os princpios de moral poltica que devem guiar a Conven-o Nacional na administrao interna da Repblica. Relatrio apresentado em nome do Comit de Salvao Pblica. 5 de fevereiro de 1794. Discursos e relatrios na conveno. Trad. Maria Helena Franco Martins. Rio de Janeiro: EdUERJ/Contraponto, 1999, p. 149.9 ROCHA, Glauber. Estetyka da Fome 65. Revoluo do cinema novo. So Paulo: Cosac Naify, 2004, 66.10 LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Trad. Luiz Srgio Henriques. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 63.

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    H uma desproporo, um excesso injustificvel de violncia no genoc-dio judaico com relao a qualquer finalidade ou utilidade, suposta ou real. Descartado de certa forma o benefcio financeiro, a supresso do inimigo e a vingana, o genocdio fundamentalmente intil, suas causas ligadas a um perigo judaico estritamente imaginrio na mentalidade alem da poca, que os especialistas tentam analisar. Essa tese ser desdobrada nas discusses contemporneas sobre a violncia, na frmula da violncia gratuita, ou na expresso requinte de crueldade, que assinala uma crueldade em excesso e desproporcional com relao a qualquer teleologia ou regime de fins, presen-tes na noo de crime hediondo, segundo o senso comum, mas no conti-das na noo criminolgica.

    A proposio autotlica sobre a inutilidade da violncia parte de uma identi-ficao com a vtima, ou as vtimas, enquanto a da esttica da violncia, de uma identificao com o assassino. Uma imensa linhagem de literatura terrorista se ligar a esta segunda proposio, que v no Marqus de Sade o seu patrono maior, o escritor por excelncia, e no simulacro do homicdio o prottipo da negatividade e da liberdade, segundo a figura hegeliana do terror:

    A nica obra e ato da liberdade universal portanto a morte. [...] [] assim a morte fria, mais rasteira: sem mais significao do que cortar uma cabea de couve ou beber um gole dgua.11

    Todas as vanguardas, do Dadasmo ao Situacionismo, e em parte ao Tropi-calismo, vo-se encontrar em torno do simulacro do assassinato como grande

    11 HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do esprito. Trad. Paulo Meneses com a colaborao de Jos Nogueira Machado. Petrpolis: Vozes, 1998, 3.a edio, p. 97.

    Ver a propsito o ensaio de Maurice Blanchot, A literatura e o direito morte, que resume as posies dessa esttica. O terror revolucionrio, na Fenomenologia do esprito, corresponde figura da liberdade absoluta, pura manifestao do negativo, expressa na indiferena diante da morte durante o terror jacobino. Blanchot lembra a frase de Hegel no Sistema de 1803-1804, analisada por Kojve. O primeiro ato, com o qual Ado se tornou senhor dos animais, foi lhes impor um nome, isto , aniquil-los na existncia (como existentes). A partir dela Kojve demonstra que a compreenso equivale a um homicdio. (BLANCHOT, Maurice. A literatura e o direito morte. A parte do fogo. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 311.)

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    gesto esttico, e na destruio como forma artstica. Basta nos lembrarmos da famosa frase de Breton do Segundo Manifesto Surrealista: O ato surrealista mais simples consiste em, com um revlver na mo, descer rua e atirar ao acaso na multido, o quanto pudermos.12

    Por outro lado, a impossibilidade de dizer a estupidez da morte coletiva, conforme a frmula de Mamm, em sua leitura de 111, sua fundamental falta de sentido ou significao, remete justamente tese da violncia intil. Nela a significao arruinada, como excesso til da expresso. Trata-se, por-tanto, de inutilizar a violncia como violncia da significao. Da as obras inexpressivas, e a proposio do motivo da sncope, ou da cesura, que apare-cer em uma longa linhagem crtica que compreende: Friedrich Hlderlin, Walter Benjamin, Theodor Adorno, Paul Celan, Maurice Blanchot e Philippe Lacoue-Labarthe, para citar apenas os nomes mais notveis.

    De forma emblemtica, Celan, em O meridiano, conferncia de recebi-mento do Prmio Georg Bchner, dedicada obra do dramaturgo alemo, detm-se sobre uma cena da pea A morte de Danton, de Bchner, mais precisa-mente sobre a fala de Lucile Desmoulins, esposa do revolucionrio Camille Desmoulins, aps a execuo do marido: Viva o Rei! Pronunciamento que no contexto do terror revolucionrio significava automaticamente a conde-nao morte. Essa palavra mortfera, a antipalavra, todo o contrrio de uma homenagem monarquia, , para Celan, nada mais nada menos do que... a poesia. Isto , um ato de liberdade, um passo, por meio do qual se no-meia a majestade do absurdo, que testemunha a presena do humano. No a palavra artstica, potica, no sentido fcil que atribumos ao termo. Seu Viva o Rei no mais uma palavra, um medonho silenciar, desvia-lhe (e a ns) a respirao e a palavra.13

    12 BRETON, Andr. Second manifeste du surralisme. Manifestes du surralisme. Paris: Ides/Gallimaird, 1977, p. 78. Mrcio Seligmann-Silva, no artigo, Do assassinato como uma das Belas-Artes de Th. De Quin-cey ou quando a tica se torna uma questo de gosto (manuscrito), centrado no famoso ensaio de De Quincey de 1827, discute os pressupostos dessa questo no campo da esttica.13 CELAN, Paul. O meridiano. Cristal. Trad. Claudia Cavalcanti. So Paulo: Editora Iluminuras, 1999, pp. 170, 176.

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    Diante dessa palavra vazia, portanto, uma pura respirao, um medonho silenciar, cabe apenas desviar os olhos, ouvir o silncio da liberdade que ela contm, e que no significa nada, ou melhor significa precisamente o nada.

    Hlderlin funda essa linhagem nos comentrios s duas tradues de Sfo-cles que escreve, dipo-rei e Antgona, ao usar o termo de mtrica, cesura, para descrever a funo (ou falta de) da fala do adivinho Tirsias nas duas trag-dias. Nos dois casos, a fala permaneceria incua, literalmente inaudita, ou in-compreendida, atestando o distanciamento recproco entre deuses e humanos, a separao sagrada, marcada pelo vazio provocado pela fala proftica. Esta seria a palavra pura, a interrupo antirrtmica, que deixaria transparecer no mais a alternncia das representaes, mas a prpria representao.14 Ora, como sabemos, a separao sagrada, a cesura, a designao em cdi-go, clandestina, que um alemo obrigado a dar na poca, sob pena de ser preso, ao terror revolucionrio, ou seja, cesura revolucionria francesa.15

    flagrante que as duas proposies opostas, sobre a violncia justificada e a violncia intil, se encontrem em torno do terror revolucionrio e do genocdio judaico juno que a obra de Paul Cela em seu todo encarna precisamente na figura da morte, ponto de juno entre o assassino e a vtima, do absoluto da liberdade de matar, de retirar absolutamente essa liberdade a quem morto, ambas violncias a da vtima, no menos do que a do assassino compreendidas como aniquilao da significao. Assignificao esta assumida ativa e livremente pela vtima, em um ponto indecidvel entre a passividade e a atividade, conforme a leitura de Celan, no momento mesmo em que a sua liberdade lhe retirada.

    Uma maneira de entender a juno entre os dois absolutos, do carrasco e da vtima, que no ato de matar, separados por um tnue mas ntido limite, ambos transformam o outro em inumano. Este, o verdadeiro nome do abso-luto. Pelo mesmo ato, a cada um retirada a humanidade. E o corolrio disso:

    14 HLDERLIN, Friedrich. Hlderlin & Beaufret. Observaes sobre dipo. Observaes sobre Antgona. Trad. Pedro Sussekind e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008, p. 68-69.15 KACEM, Mahdi Belhaj. Inesthtique & mimsis. Badiou, Lacoue Labarthe et la question de lart. Paris : Lignes, 2010, p. 96.

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    ao converterem-se reciprocamente no inumano, eles definem a Humanidade como aquilo que se distingue do que constitudo no e pelo ato de violn-cia. Importante reter a irredutvel diferena entre as duas posies fundidas no mesmo ato, novidade quem sabe introduzida questo pela assuno do ponto de vista da vtima com o genocdio judaico. J que no exerccio da li-berdade absoluta do terror a matria sensvel desaparece sob o sujeito, a vida submetida ideia, enquanto que a vtima insere a diferena absoluta que faz com que ela permanea sujeito mesmo e apesar da submisso liberdade do carrasco. Talvez a tese de Hannah Arendt sobre a sacralidade da vida humana, desdobrada na noo de vida sacra, ou de homo sacer, desenvolvida por Giorgio Agamben, possa ser meditada a partir desta cena: a vida sagrada aquela que separada de si mesma pela injuno da morte violenta.16

    Esta tambm a cena primitiva da fundao do novo sujeito universal da poltica: a vtima, conforme pode ser demonstrado pelo destino dado prpria noo de direitos do homem, ou direitos humanos, de 1789, como direito da vtima, que a mesma Revoluo Francesa produziu de modo inaugural. na Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado que surge pela primeira vez a vtima, a partir da brecha que se insinua entre direito do cidado e do homem, que torna possvel uma Humanidade sem direito, isto , a vtima.

    No evidente a converso da vtima, termo que deriva do latin victima, ani-mal oferecido em sacrifcio aos deuses, portanto, intrinsecamente associado ao contexto do sacrifcio religioso, em sujeito de direito, isto , em valor de troca, e equivalente universal do dano subjetivo, sofrimento visvel e mensurvel, que a justia, como princpio de restituio, formata. A relao entre o fas, o direito religioso, e o jus, o direito profano, atestada com clareza pelos historiadores do Direito.17 Os helenistas e romanistas demonstram o quanto historicamente se confunde a vtima da pena capital com o escolhido para o sacrifcio religio-

    16 Refiro-me ao captulo A vida como bem supremo de A condio humana. ARENDT, Hannah. A condio humana. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense universitria, 2009. E a AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.17 Por exemplo, JHERING, Rudolf Von. Lesprit du droit Roman dans les diverses phases de son dveloppement I. Paris: Librairie A. Marescq, 1886, p. 268.

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    so. Louis Gernet, por exemplo, explica como no prprio rito do pharmaks, do bode expiatrio, atestado na antiga Atenas, na sia Menor, em Marselha ou em Rodes, escolhia-se frequentemente um criminoso como figurante do rito, a quem se conferiam honras especiais.18 Fundamentalmente, o sacrifcio desde o incio um modelo de negociao com os deuses. O rito propiciatrio contido nesta negociao prepara o motivo restitutivo do direito, quando a vtima deixa de ser destinada aos deuses, convertendo-se em medida privilegiada do dano. Uma segunda derivao precisa ser entendida: entre o homo sacer e a vtima, no-es que parecem idnticas. Com efeito, a categoria do Direito Romano primiti-vo, retida pelo jurista romano do sculo I, Sexto Pompeu Festo, e desentranhada por Agamben, para compor o novo paradigma da poltica contempornea, a partir precisamente do genocdio judaico da Segunda Guerra Mundial, coincide com a assuno da vtima no cenrio contemporneo. Mas h uma diferena crucial entre as duas noes. O homem sacro proscrito tanto da lei dos deuses quanto da dos homens, enquanto a vtima constituda como sujeito de direito.19 Este deslizamento, no entanto, j percebido na prpria origem romana da figura do homo sacer: a proscrio do direito no impede que a lei legisle aprs coup sobre o assassinato do proscrito, produzindo leis, a partir de algo que no tem figurao jurdica.20

    Podemos discernir esse deslizamento na prpria aplicao do termo grego holocausto, tambm ligado ao vocabulrio sacrificial, ao genocdio judaico.

    18 GERNET, Louis. Droit et institutions em Grce antique. Paris : Champs/Flammarion, 1982, p. 208.19 O que define o homo sacer, o fato de ser uma vida matvel, ou seja, de literalmente estar fora da jurisdio do Direito, e poder, assim, ser morto sem julgamento, tem antecedentes nos assassinatos como punies sumrias por roubo qualificado, com flagrante delito, na Grcia Antiga (cf. GERNET, loc.cit). O assassino, neste caso, era a vtima de um dano anteriormente sofrido. Jhering explica que o homo sacer literalmente no pode ser punido, j que, ao faz-lo, o gldio da lei se sujaria. O assassino do homo sacer deveria, no entanto, comprovar por seu turno que no executara um homem qualquer, e sim um homem sacro. Caso contrrio, ele se transformaria ele prprio em homo sacer. A histria romana contm em sua fundao lendria a figura do homo sacer, no fratricdio de Remo por Rmulo. Remo por derriso ultrapassou os muros sagrados da cidade institudos por seu irmo. Torna-se proscrito e assassinado por Rmulo, salvaguardando, desta forma, a ordem divina, e no poupando nem mesmo seu irmo. (JHERING, loc. cit., p. 288).20 Le sacer esse, une fois existant, pouvait tre utilis par la lgislation, mais il na pas t introduit par elle, pas plus que linfamie qui se trouve dans le mme cas. (JHERING, loc. cit., p. 282.)

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    Sabemos que a palavra hebraica Shoah, que significa redemoinho de destruio, foi a inicialmente utilizada para designar o genocdio judaico da Segunda Guer-ra. Enquanto holocausto, uma traduo posterior de Shoah, contm implicitamente um grave equvoco ao pressupor justamente que o genocdio possa ser conce-bido como sacrifcio a um deus, o que implicaria que h um sentido, mesmo que teolgico, no extermnio. Vemos como o constrangimento mencionado por Adorno na configurao esttica do sofrimento das vtimas, no fato de que esse sofrimento possa ter um sentido, se comunica com a reticncia quanto com-preenso do genocdio judaico como sacrifcio, o que implicaria conferir-lhe tambm um sentido, desta vez teolgico. Em ambos os casos, na significao conferida a uma violncia fundamentalmente destituda de significao que resi-de o problema. Ora, a aplicao do termo holocausto ao genocdio judaico ocorre precisamente no momento em que ele convertido em princpio restitutivo, em que o sofrimento no-mensurvel dos mortos convertido em princpio de compensao para com os vivos.21 aqui que o homo sacer, como quantum no-figurvel e no-significvel de dor, se transforma em vtima.

    Do ponto de vista artstico, a identificao com a vtima (ou as vtimas) da violncia intil, e a identificao com o assassino, da violncia justificada, se identificam, por sua vez, uma vez radicalizado o motivo do sacrifcio. Foi Georges Bataille quem pensou este tema com maior rigor, ao promover o sa-crifco (e o sagrado), matriz da prpria arte. Explica ele que no sacrifcio, o sacrificante se identifica com o animal abatido pela morte. Assim, ele morre ao se ver morrer, e mesmo, de certa maneira, por sua prpria vontade, unificado

    21 Shoah apareceu pela primeira vez, em 1940 no contexto da Segunda Guerra Mundial, em uma brochura publicada em Jerusalm pelo Comit Unido de Ajuda aos Judeus da Polnia, intitulada A shoah dos judeus poloneses, e foi consolidada em 1942 pelo historiador Bem-Zion Dinur. O primeiro uso da palavra holocausto para designar a perseguio e o genocdio nazista dos judeus ocorre no Prefcio de Legal Claims Against Ger-many. Compensation for Losses Resulting from Anti-Racial Measures [Queixas legais contra a Alemanha. Compensao pelas perdas resultantes de medidas antirraciais], de Siegfried Goldschmidt. O prefcio de autoria de Morris Raphael Cohen, datado de 1944, diz o seguinte: Milhes de vtimas sobreviventes do holocausto nazista, judeus e no-judeus, vo erguer-se diante de ns nos anos por vir. O que pode ser feito para restaurar neles, seres humanos companheiros, a base do autorrespeito e do autossustento? (GOLDSCHMIDT, Siegfried. Legal Claims Against Germany. Compensation for Losses Resulting from Anti-Racial Measures. Nova York: The Dryden Press, 1945, vi). Recopio aqui a nota de meu artigo Auschwitz como tragdia. Terceira margem. Revista do Programa de Ps-Graduao em Cincia da Literatura. Ano XI, N.o 17, Julho/dezembro 2007.

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    [de coeur avec] arma do sacrifcio.22 este dispositivo, de identificao com o personagem que morre, que define a tragdia, ou um certo modelo trgico da arte. A identificao com a representao da morte, por parte da plateia, que se projeta antes de mais nada, no ato sacrificial que lhe serve de modelo, na prpria identificao do sacrificante com o animal sacrificado, que torna isso tudo uma comdia, nos termos de Bataille, isto , uma representao, um espetculo. Mas espetculo e representao essenciais, j que apenas por este subterfgio que se tem, mesmo que indiretamente, a experincia impossvel da morte. Na identificao entre sacrificante e sacrificado, entre algoz, homicida e vtima, como simulacro, temos a assuno da experincia da morte a modelo da arte. A plateia se identifica ao mesmo tempo com a vtima e com o algoz, ela o personagem que morre, e que se cr morrer quando na verdade est viva.23 Mas esta identificao que possibilita a impossvel experincia de morrer s possvel pela interposio da representao, a comdia, isto , a mnima diferen-a que separa a vtima da morte, e o pblico da vtima.

    Talvez seja este o momento de retomar o mal-entendido contemporneo em torno da noo de irrepresentvel, que Jacques Rancire resumiu h al-guns anos. Rancire demonstra de maneira inapelvel o equvoco contido no programa inesttico de uma esttica sublime, do genocdio judaico, pensada precisamente a partir da interdio mosaica da imagem, o Bildverbot, concluin-do que no h ali de fato irrepresentvel nenhum. A demonstrao de Ranci-re provocadora: essencialmente a linguagem utilizada por Robert Antelme em seu testemunho sobre a vida em Buchenwald, em A espcie humana (1947), a mesma, sem grandes diferenas, que Flaubert utiliza em Madame Bovary (1857). Ou seja, quando exposto ao projeto de narrar o estilhaamento da ex-perincia de desumanizao em um campo de concentrao, Antelme recorre

    22 BATAILLE, Georges. Hegel, la mort et le sacrifice. Oeuvres compltes, tomo XII. Paris: Gallimard, 1988, pp. 336-337.23 Idem, p. 337.

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    tradio esttica do romance do sculo XIX. Em outras palavras, recorre linguagem comum da literatura na qual h um sculo a absoluta liberdade da arte se identifica absoluta passividade da matria sensvel.24

    O ponto instigante. Nos exemplos citados por Rancire, dos dois livros, os temas no poderiam ser mais opostos: a descrio noturna do banheiro coletivo de Buchenwald, e o do momento quase idlico do encontro entre Charles e Emma Bovary. No entanto, nos dois casos, percebe-se o mesmo uso do imperfeito flaubertiano, a disjuno entre perodos arejados por uma dis-tncia parattica, apenas sistematizada por Antelme, convertendo em sintaxe parattica o que em Flaubert era um estilo parattico. Algumas frases da cena de A espcie humana:Fui mijar. Era noite ainda. Outros ao meu lado mijavam tam-bm: ningum se falava.25 E algumas de Madame Bovary: Ela trabalhava o rosto voltado para baixo; ela no falava. Nem Charles. O ar passando por baixo da porta empurrava um pouco de poeira sobre as lajotas.26

    Em ambos os casos, a mesma lgica das pequenas percepes acrescidas umas s outras, e que fazem sentido da mesma maneira, pelo seu mutismo, pelo seu apelo a uma experincia auditiva e visual mnima.27 Em ambos os casos, a mesma rarefao se insere entre o regime da mostrao e o da sig-nificao. Em ambos os casos, uma espcie de plano panormico da cena, como que contendo uma percepo distanciada de si mesma, na modulao do silncio mitigado: a falta de latido dos ces em Buchenwald e o cacarejo das galinhas na fazenda. E como Rancire descreve o procedimento? Nos dois trechos h identidade entre o humano e o inumano: entre o sentimento que une dois seres e o redemoinho de poeira passeando pela lajota; entre os homens mijando e o vapor que flutua sobre o mictrio; entre os dois amantes e a fazenda no momento de descanso; entre os humanos presos e a imensa mquina adormecida do campo de concentrao.

    24 RANCIRE, Jacques. Sil y a de lirreprsentable. Le destin des images. Paris: La fabrique ditions, 2003, p. 142.25 Idem, p. 140.26 Idem, p. 141.27 Idem, ibidem.

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    A concluso de Rancire inapelvel: No h linguagem prpria do testemunho.28 E se h algo como um irrepresentvel, seria precisamente a impossibilidade de uma experincia, de qualquer experincia, se dizer em uma linguagem prpria.

    Mas o que Rancire no quer ver que a radical diferena temtica e expe-riencial entre as duas cenas modifica o prprio sentido formal da parataxe. Em que consiste a parataxe flaubertiana? Na infiltrao assignificante do espaamen-to entre frases, na respirao entre perodos, na iterao musical do imperfeito introduzindo rimas desperiodizadas, inscrevendo o tempo esttico, a mesmice e o ilhamento do sujeito burgus. No h de fato identidade entre o surgimento dos sentimentos entre amantes e o redemoinho de poeira, mas diferena entre as duas: espao, vazio. Esta, a gigantesca inveno estilstica de Flaubert. O que faz Antelme ao apropriar-se da mesma parataxe? Ele a radicaliza inserindo o espaamento entre perodos, a estaticidade das rimas do imperfeito no contexto de uma grande mquina vitimria: Buchenwald. A rigor no h identidade entre humano e inumano, nem identificao entre a liberdade absoluta da arte e a absoluta passividade da matria sensvel, conforme quer Rancire, em nenhum dos dois exemplos: h diferena inserida pela imensa distncia entre sujeitos, no arejamento parattico entre perodos, que a prpria marca do sujeito. Na experincia da vtima, no h passividade nem atividade, mas algo como o que Maurice Blanchot chamou de neutro, na insero da liberdade absoluta que resiste identificao inventada pelo terror revolucionrio entre sujeito livre e matria aniquilada, entre ideia e vida submetida.29

    A objeo de Rancire importante: no h especificidade formal na re-presentao do genocdio judaico, e muito menos disposio especificamente tnica no judasmo a um tipo de representao esttica (ou inesttica) da ex-perincia. Mas isso no deve obscurecer a novidade, inclusive formal, contida nos testemunhos dos campos de concentrao e extermnio.

    28 Idem, p. 142.29 -nos muito difcil e tanto mais importante falar da passividade, pois ela no pertence ao mundo e no conhecemos nada que seja completamente passivo (conhecendo-o, ns o transformaramos inevi-tavelmente). A passividade oposta atividade, eis o campo sempre restrito de nossas reflexes. BLAN-CHOT, Maurice. Lcriture du dsastre. Paris : Gallimard, 1980, p. 30.

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    Da mesma forma, em sua anlise de Shoah (1985) de Claude Lanzmann, ele tem razo em demonstrar que no h propriamente irrepresentvel, nem interdito representao do extermnio judaico no documentrio. Lanzmann nega to somente que o extermnio seja representado ficcionalmente, em estrita fidelidade ao programa platnico antimimtico.30 O procedimento de Shoah, admiravelmente analisado por Rancire, consiste em confrontar a palavra do testemunho proferida aqui e agora sobre o que aconteceu aqui, neste mesmo local, mas que violentamente est ausente agora.31 O signo indicial do vazio no centro do aqui, representado agora pela cmera, inscreve a disjuno entre espao e tempo, por meios da tcnica cinematogrfica, que o documentrio, sem dvida, no inventa, mas que posta a um uso novo por ele.

    Nos trs exemplos, no fraseado de Flaubert e Antelme, na cmera fixa de Lanzmann, temos inscries distintas do que Hlderlin nomeou pela primei-ra vez cesura, e que Adorno, em um ensaio clssico sobre o mesmo Hlderlin, designou de parataxe.32 Nos trs casos, uma mesma redistribuio da partilha entre visvel e audvel: a rima dos imperfeitos, a fala da testemunha, de um lado; o vazio da distncia espacial entre os sujeitos, do outro. Que a cesu-ra ou a parataxe no remetam propriamente a um irrepresentvel, conforme demonstra Rancire, me parece inegvel. Mas que algo do irrepresentvel se insira nessa respirao sinttica entre as frases, e no vazio dos espaos de Shoah, tampouco me parece difcil de refutar. Minha afirmao de que a pa-rataxe seja usada de maneira diferente em Flaubert e em Antelme precisaria ser devidamente comprovada. Que minha hiptese fique aqui como sugesto:

    30 No ter escapado aos espectadores de Shoah que a presena em cada plano do documentrio do entrevistador, o prprio Lanzmann, ao lado do entrevistado-testemunha, assim como de tradutores, quando necessrio, de cada lngua, das diversas faladas pelos entrevistados, na recusa de que as diversas vozes-lnguas se sobreponham, cada um falando em seu prprio nome, assim como na minuciosa explicitao de cada procedimento do filme, sob a forma de legendas ou textos explicativos, constitui um equivalente bastante prximo da traduo em discurso indireto, em hapl diegesis, a narrativa pura, da enunciao dramtica, a mimesis, o discurso direto, falso e condenvel, conforme a requisio de Scrates, no Livro III da Repblica.31 Idem, p. 143.32 ADORNO, Theodor. Parataxis. Notas de literatura. Trad. Celesta Ada Galeo e Idalina Azevedo da Silva. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991.

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    a experincia da vtima, inserindo a diferena mnima da liberdade entre ela mesma e a objetivao do sujeito do terror, do campo de concentrao e ex-termnio, modifica a parataxe de Flaubert. E o que inscreve esse espaamento assignificante? O irrepresentvel sofrimento do homo sacer, no instante em que ele se converte em vtima, isto , em figurao da infigurvel dor. Essa tradu-o em linguagem por definio imprpria da intraduzvel experincia da dor no algo que a esttica do testemunho inventa, mas a maneira com que a realiza , de fato, nova, e precisa ser analisada como tal.

    Em outras palavras, podemos dizer, concordando com Rancire, que na verdade o equvoco do programa inesttico do irrepresentvel consiste em misturar indevidamente o registro teolgico com o jurdico do homo sacer. Mas isso no impede que a lacuna do homo sacer, para usar uma expresso de Agamben, ao ser representada no testemunho, instaure uma margem qualquer de silncio, algo da dimenso afetiva infigurvel da dor dos que no esto mais aqui. Essencialmente, o testemunho realiza a transformao do homo sacer em vtima: a dessubjetivao do rescap se converte em subjetivao testemunhal, ao enunciar a experincia coletiva da morte, inserindo-se em uma comunidade de mortos, que a enunciao traduz de forma sempre assumidamente espria, nos nicos termos audveis pelos vivos. Primo Levi: [...] no somos ns, os sobreviventes, as autnticas testemunhas. [...] so eles, os mulumanos, os que submergiram so eles as testemunhas integrais [...]. Falar em nome do ausente, desidentificando-se dele, na primeira pessoa do testemunho que se recusa identificao ficcional com o morto, este o sentido da obrigao moral para com os emudecidos.33

    De uma certa maneira ningum fala em seu prprio nome, sempre se fala em nome de uma comunidade de ausentes, mesmo que a enunciao seja em primeira pessoa. Luiz Ruffato, por exemplo, explica que narra seus romances tomando como personagens os amigos de seu meio social de origem, o segmen-to operrio de Cataguases, So Paulo, que deixou para trs. Fala sobre eles, por

    33 LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Trad. Luiz Srgio Henriques. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, pp. 47, 48.

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    eles, e gostaria utopicamente de falar para eles, ou seja, que eles pudessem l-lo.34 Coisa que ele sabe impossvel, o que d ao programa como um todo essa cara de conversa de surdos, a impresso de nunca se ter chegado ao seu destinatrio.

    Interessante notar que as discusses contemporneas sobre a violncia re-tomam os termos das primeiras poticas do Ocidente, Plato e Aristteles. No caso da proposio de Ruffato, o que se recoloca, em filigrana, a dis-cusso platnica sobre a mmesis, ou seja, o teatro, grande alvo de Plato, na fundao de sua plis. Para ele, a mmesis se caracteriza pelo falso testemunho do poeta, que se oculta sob o seu personagem, e no fala em prprio nome, gerando uma confuso identitria no pblico. A fala teatral (mimesis) deve ser ento devidamente retraduzida na narrativa em terceira pessoa (hapl diegesis), de forma que cada um fale em seu prprio nome.

    A proposiao de Ruffato nos permite ultrapassar o impasse entre a narra-o ficcional (mimtica) em nome do outro, e a autntica, no-ficcional (no-mimtica), em seu prprio nome. Esta moral do testemunho, que retoma de certa forma o interdito platnico mmesis, mas rigorosamente invertendo-a, pode ser estendida a todas as narrativas da violncia vitimria, e introduz estruturalmente a fico enunciativa, mesmo aonde ela aparentemente no existiria, e prevaleceria a mais estrita autenticidade enunciativa. Afinal, nenhu-ma enunciao autntica. A testemunha, o sobrevivente, ou o narrador da experincia vitimria, essencialmente inautntica, fala no lugar do morto, a vtima ausente, a nica autntica testemunha.

    Por outro lado, temos a gigantesca e inusitada amplificao do terror hoje em dia, no registro espetacular aristotlico. Sim, o mesmo terror, que, conju-gado piedade, o registro sentimental da vtima, um dos distrbios emo-cionais, um dos pathmata, que segundo Aristteles, na Potica, a tragdia deve purificar. O cinema hollywoodiano dar expanso impressionante a toda uma srie de figuras do terror: uma espcie de sublime pop, nos filmes de terror sobrenatural, os filmes de vampiro, de zumbis, de mortos-vivos, de demnios

    34 Depoimento dado no Simpsio Internacional. A Literatura brasileira contempornea, organizado por Maria Graciete Besse, Jos Leonardo Tonus e Regina Dalcastagn, em Paris, 10 de janeiro de 2012.

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    ou santos; ou natural, nos filmes de catstrofe: ciclones, erupes vulcnicas, acidentes martimos; de catstrofes artificiais: incndios, acidentes de avio. esse modelo que tem talvez sua origem na representao positiva do mal, fundada pelo Marqus de Sade, que est no centro do programa potico de Baudelaire, Lautramont e Bataille e da pintura de Francis Bacon, e que ter o sucesso que conhecemos nos videogames, nos snuff films, nos gangsta rappers, em Mano Brown e em MV Bill.35 Mal este que no precisa ser interpretado necessariamente pela matriz do fascismo, como o faz, em estilo frankfurtia-no, Pier Paolo Pasolini em seu Sal ou os 120 dias de Sodoma (1975). O terror criminalizado se transformar na grande figura do mal contemporneo, no imenso gnero do filme policial, sobretudo aps o 11 de Setembro, com a exploso das torres gmeas de Nova York. Neste contexto, assistimos hoje a uma sistemtica criminalizao da vertente terrorista da arte. So marcas dessa criminalizao a acusao de apologia do crime pelo Ministrio P-blico de So Paulo, contra Ferrz, por seu artigo publicado no jornal A Folha de S. Paulo, em 8 de outubro de 2007.36 Ou mais perto de ns, de maneiras dis-tintas, e qualidade artstica tambm desiguais, a polmica em torno dos 10 desenhos do pintor Gil Vicente, da srie Inimigos, representando figuras pblicas, como Luis Incio da Silva, Fernando Henrique Cardoso, e Mah-moud Ahmadinejad, sendo assassinadas pelo pintor. E a interdio do uso de urubus vivos na instalao Bandeira branca, de Nuno Ramos, por cruel-dade com as aves e ferir causa animal, ambas ocorridas na Bienal de So Paulo em 2010.

    Estas interdies sinalizam um processo generalizado de criminalizao do prprio simulacro artstico e da imaginao, insistentemente remetidos a

    35 Sigo aqui a hiptese de Mehdi Belhaj Kacem, loc.cit., p. 110.36 Ferrz respondeu no artigo Pensamentos em correria a um artigo anterior publicado no mesmo jornal de autoria do apresentador da TV Globo, Luciano Huck que relatava um assalto sofrido por ele. Acusado pelo Ministrio Pblico de So Paulo de apologia do crime pelo texto, Ferrz teve que comparecer 77.a Delegacia de Polcia e prestar um depoimento. Ferrz foi absolvido contra a acusa-o. Ver a respeito: http://ferrez.blogspot.com/2008_06_01_archive.html; http://ferrez.blogspot.com/2007/10/sobre-o-texto-na-folha-de-so-paulo.html. Acessado em 10/11/2010.

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    um crime da arte. Prova disto foi a demisso de Oswaldo Martins Teixeira, em setembro de 2008, do cargo de professor de Literatura da Escola Parque do Rio de Janeiro, considerada experimental e de vanguarda, que abriga filhos da elite artstica carioca, por causa da descoberta de poemas erticos, no blog do professor e poeta, com vrios livros publicados. Os pais dos alunos da Escola consideraram indesejvel o fato de o professor ser o autor de poemas erticos, que respingavam perigosamente na sua reputao enquanto docente, embora a atitude do professor tivesse sido sempre e em todos os sentidos irreproch-vel. A demisso fora causada exclusivamente pelo fato de ele escrever poesias erticas. Implcita nela a ameaa que passou a representar, na cultura de se-gurana atual, a imaginao potica, instantaneamente convertida em indcio de perverso, projetada, como virtualidade sempre possvel de ser realizada, sobre os filhos, que precisam a todo custo ser securizados.37

    Prevalece desta forma a interpretao conservadora da interdio platnica mmese: a regulagem da fico e da arte, remetida a um malefcio poltico realizado e denunciado, a correo dos enunciados pelo seu contedo vio-lento, e a anulao efetiva do espao especfico da arte, confundida com uma passagem direta ao ato. No velho estilo da interdio farmacolgica platnica, a condenao expiatria politiza a arte ao exclu-la da plis, ao remover-lhe o filtro mimtico do simulacro, interpretando-a como ato efetivo.

    37 Os belos poemas erticos de Oswaldo Martins, integrando o conjunto intitulado "i modi", pode ser lido em: http://www.germinaliteratura.com.br/2008/erot_mar08_osvaldomartins.htm. Acessado em 21/01/2013.