Janela Para a Morte - Raymond Chandler

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Romance indispensável na literatura universal

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • ACaptulo umcasa ficava na avenida Dresden no bairro Oak Noll, em Pasadena; uma casa

    grande, slida e elegante, com paredes de tijolos vermelhos, coberta por telhas e comdetalhes em pedra branca. As janelas frontais do andar trreo eram gradeadas. As do

    andar superior eram do tipo colonial, rodeadas por muitos frisos de pedra ao estilo rococ.Da parede da fachada da casa e dos canteiros de flores grudados a ela um meio acre ou

    quase de um belo tapete de grama se estendia num leve declive at a rua, passando, nocaminho, por um enorme cedro, em torno do qual flua como uma correnteza verde ao redor deuma pedra. A calada e a prpria rua eram ambas muito largas, e na beira da rua havia acciasque valiam a pena serem vistas. Um pesado perfume de vero pairava naquela manh, e toda anatureza estava perfeitamente petrificada em meio ao ar estagnado daquilo que eles chamamde um dia fresco e agradvel.

    Tudo o que eu sabia sobre os moradores daquela casa era que se tratava de uma Sra.Elizabeth Bright Murdock e famlia, e que ela queria contratar um detetive particular correto eeficiente, que no deixasse cair cinzas de charuto no cho e que jamais carregasse mais do queuma arma. E eu sabia que ela era a viva de um velho bigodudo chamado Jasper Murdock queaparentemente tinha enriquecido ajudando a comunidade e que tinha sua foto publicada nojornal de Pasadena em todos os seus aniversrios, com as datas de seu nascimento e morteembaixo, e a legenda: O trabalho foi a sua vida.

    Deixei meu carro na rua e caminhei sobre uma dzia de pedras que, cravadas no tapete degrama, delimitavam a rea, e toquei a campainha no prtico de tijolos protegido por umtelhado pontudo. Um muro baixo de tijolos vermelhos corria na frente da casa na curtadistncia que ia da porta de entrada beira da passarela de carros. Ao final deste caminholadeado pelo muro, sobre um bloco concreto, havia uma pequena esttua pintada de um negrocom calas brancas, casaco verde e bon vermelho. Segurava um chicote, e um anel de ferro oprendia pelos ps ao bloco de concreto. Ele parecia um pouco triste, como se estivesse aliesperando h muito tempo e comeasse a perder as esperanas. Fui at ele e dei um tapinhaamigvel na sua cabea, enquanto eu esperava algum abrir a porta.

    Depois de certo tempo, uma senhora ranzinza vestida num uniforme de empregadadomstica entreabriu a porta da frente cerca de trinta centmetros e fez cara de curiosa.

    Philip Marlowe falei. Para ver a sra. Murdock. Com hora marcada.A senhora ranzinza cerrou os dentes, estreitou os olhos de um s golpe, com outro golpe

    escancarou-os e disse, numa daquelas vozes agudas de pioneiro das montanhas: Qual? hn? Qual senhora Murdock? ela quase gritou na minha cara. A senhora Elizabeth Bright Murdock respondi. Eu no sabia que havia mais do que

    uma. Pois h ela lascou. Tem um carto?

  • Ela mantinha a porta aberta uns trinta centmetros, no mximo. Enfiou a ponta do nariz euma mo magra e musculosa pelo vo. Puxei para fora minha carteira, apanhei um dos cartesque continham apenas o meu nome e o coloquei na mo. Mo e nariz desapareceram por entreo vo, e a porta bateu na minha cara.

    Pensei que talvez eu devesse ter aberto a porta fora. Voltei at o negrinho e acariciei asua cabea novamente.

    Irmo falei , somos dois.Algum tempo passou. Muito tempo. Enfiei um cigarro na boca, mas no o acendi. O

    sorveteiro passou no seu furgo azul e branco, tocando Turkey in the straw nos alto-falantes.Uma enorme borboleta preta e dourada freou, volteando no ar, pousou num arbusto dehortnsias bem prximo ao meu cotovelo, movimentou lentamente as asas para cima e parabaixo algumas vezes, ento decolou toda e ziguezagueou atravs do ar imvel com cheiro devero.

    A porta da frente foi aberta de novo. A senhora ranzinza disse: Por aqui.Entrei. A sala frente era grande, quadrada, escura, fresca e tinha a atmosfera repousante

    de uma capela funerria e um cheiro idem. Tapearias nas paredes nuas de estuque enrugado,grades de ferro imitando balces do lado de fora de janelas muito altas, pesadas cadeirasentalhadas, com assentos de veludo, encostos bordados e borlas douradas e empoeiradaspendendo ao lado. Ao fundo, um vitral do tamanho de uma quadra de tnis. Janelas francesas eacortinadas logo abaixo. Uma sala embolorada, opressiva, conservadora, organizada eamarga. No parecia que algum jamais se sentasse por ali, ou sequer quisesse faz-lo. Mesasde mrmore com pernas retorcidas, relgios dourados, pequenas peas de estaturio em duascores de mrmore. Um monte de entulho do qual demoraria semanas para tirar o p. Um montede dinheiro, e tudo jogado fora. Trinta anos antes, na prspera, quieta e provinciana Pasadenade ento, deveria ter sido uma sala e tanto.

    Samos dali, percorremos um corredor e depois de um tempo a velha ranzinza abriu aporta e fez sinal para eu entrar.

    Senhor Marlowe ela disse junto porta numa voz irritante, e foi embora rangendo osdentes.

  • Captulo doisEra uma sala pequena, que dava para o ptio traseiro. Tinha um horroroso tapete vermelho

    e marrom e era mobiliada como um escritrio. Continha tudo o que voc esperaria encontrarem um pequeno escritrio. Uma garota loira, magra, com jeito de frgil e culos de aro detartaruga estava sentada atrs de uma escrivaninha com uma mquina de escrever frente euma folha de papel sua esquerda. Tinha as mos pousadas sobre as teclas, mas no haviapapel nenhum na mquina. Enquanto eu entrava ela me olhou com aquela expresso rgida emeio tola de uma pessoa orgulhosa posando para uma foto. Ela era dona de uma voz lmpida,suave, que pediu para eu me sentar.

    Eu sou a senhorita Davis. Secretria da senhora Murdock. Ela quer que eu pea algumasreferncias ao senhor.

    Referncias? Certamente. Referncias. Isso o surpreende?Coloquei o meu chapu sobre a mesa dela e o cigarro, ainda apagado, na fita do chapu. Quer dizer que ela mandou me chamar sem saber nada sobre a minha pessoa?O lbio da moa tremelicou, e ela o mordeu. Eu no sabia se ela estava assustada, ou

    incomodada, ou apenas tendo dificuldade em ser fria e pragmtica. Mas ela realmente noparecia feliz.

    A senhora Murdock conseguiu o seu nome com o gerente do Banco de Seguros daCalifrnia. Mas ele no o conhece pessoalmente falou.

    Apronte o seu lpis eu disse.Ela empunhou o lpis, me mostrando que ele estava bem apontado e pronto para tudo.Falei: Em primeiro lugar, um dos vice-presidentes desse mesmo banco. George S. Leake. Ele

    fica no escritrio principal. Ento o senador Huston Oglethorpe. Ele deve estar emSacramento, ou pode estar no seu escritrio no Edifcio State, em Los Angeles. E ento SidneyDreyfus Jr., do Dreyfus, Turner & Swayne, escritrio de advogados do Edifcio Title-Insurance. Anotou tudo?

    Ela escrevia rpido e com destreza. Balanava a cabea sem levantar os olhos do papel. Aluz danava sobre o seu cabelo loiro.

    Oliver Fry da Corporao FryKrantz, prospeco de petrleo. Fica na rua Nove do ladoleste, no distrito industrial. E ento, se voc quiser alguns tiras, Bernard Ohls, da equipe dopromotor pblico, e o detetive-tenente Carl Randall da Diviso Central de Homicdios. Achaque talvez isso seja suficiente?

    No caoe de mim ela disse. Estou apenas fazendo aquilo que me mandam. Melhor no telefonar para os dois ltimos, a menos que voc saiba de que trabalho se

    trata falei. No estou caoando de voc. Est quente, no? Nem to quente assim para Pasadena ela disse, iou sua lista telefnica para cima da

    mesa e comeou a trabalhar.

  • Enquanto ela procurava pelos nmeros e telefonava, dei-lhe uma olhada aqui e outra ali.Ela era plida de um tipo de palidez natural, parecendo bastante saudvel. Seu cabelo cor decobre bruto no era feio, mas estava preso para trs da sua pequena cabea de um modo toapertado que quase perdia completamente a aparncia de cabelo. Suas sobrancelhas eramfinas, incomumente retas e mais escuras que o cabelo, quase castanhas. Suas narinas tinham umaspecto exangue como as de uma pessoa anmica. Seu queixo era pequeno demais, muitopontudo e pouco altivo. Ela no usava maquiagem, exceto um pouco, muito pouco, de batomvermelho-alaranjado nos lbios. Os olhos por trs dos culos eram grandes, azul-cobalto comris enormes e uma expresso vaga. Ambas as plpebras eram estreitas, de modo que os olhostinham um toque levemente oriental, como se a pele do rosto fosse naturalmente to esticadaque puxasse os cantos dos olhos. Todo o rosto tinha um tipo de charme meio neurtico epeculiar que s precisava uma maquiagem eficiente para ser deslumbrante.

    Ela usava um vestido de linho de mangas curtas e absolutamente nenhum enfeite. Seusbraos nus tinham uma suave camada de plos e algumas sardas.

    No prestei muita ateno para o que ela dizia ao telefone. Seja l o que lhe diziam, elataquigrafava, com golpes certeiros e mudos de lpis. Quando terminou, ela colocou o fone nogancho, ficou de p, alisou o vestido de linho na direo das coxas e disse:

    Espere um momento, por favor e foi-se em direo porta.No meio do caminho ela se virou e empurrou a gaveta superior da sua escrivaninha, que

    ficara entreaberta. Saiu. A porta se fechou. Silncio. Do lado de fora da janela, abelhaszuniam. Ao longe escutei o assovio de um aspirador de p. Apanhei do meu chapu o cigarroque no chegara a ser aceso, coloquei-o na boca e me levantei. Contornei a mesa e abri agaveta que ela acabara de fechar.

    No era da minha conta. Eu s estava curioso. No era nem um pouco da minha conta queela tivesse uma Colt automtica na gaveta. Fechei-a e voltei a sentar.

    A mocinha esteve ausente por uns quatro minutos. Abriu a porta, postou-se junto a ela edisse:

    A senhora Murdock vai receb-lo agora.Caminhamos por mais um corredor, ela abriu metade de uma porta de vidro duplo e me

    deu passagem. Entrei, e a porta foi fechada atrs de mim.Estava to escuro l dentro que, de incio, eu no conseguia ver nada a no ser as luzes

    dos outdoors que chegavam por entre arbustos e telas. Ento vi que o quarto era uma espciede varanda que fora ampliada. Era mobiliado com tapetes de palha e mveis de junco. Haviauma chaise longue de junco bem junto janela. Tinha o encosto curvo e almofadas suficientespara acomodar um elefante, e sobre ela estava reclinada uma mulher com um clice de vinhona mo. Senti o cheiro forte de vinho antes mesmo de conseguir enxerg-la direito. Ento meusolhos se acostumaram luz, e eu pude v-la.

    Seu rosto era largo, e o queixo, idem. Ela tinha um cabelo cor de estanho com umpermanente malfeito. Um nariz adunco e olhos grandes e midos que se assemelhavamsimpaticamente a pedras molhadas. Havia uma gargantilha de tecido no seu pescoo, mas erao tipo de pescoo que ficaria melhor em um uniforme de futebol americano. Ela usava umvestido de seda acinzentado. Seus braos, grossos, estavam nus e apresentavam manchas.

  • Usava brincos de presso nas orelhas. Uma mesinha baixa de tampo de vidro estava ao seulado, e sobre ela havia uma garrafa de porto. Ela bebericou do clice que estava segurando,me olhou por sobre ele e no disse nada.

    Fiquei ali. Ela me deixou em p, plantado, enquanto terminava o clice de porto,depositava-o sobre a mesa e o enchia novamente. Ento ela enxugou os lbios com um leno.E ento falou. Sua voz tinha um tom grave de bartono e soava como quem no est parabrincadeiras.

    Sente-se, senhor Marlowe. Por favor, no acenda esse cigarro. Tenho asma.Sentei-me numa cadeira de balano de junco e enfiei o cigarro ainda virgem junto ao leno

    no meu bolso externo. Nunca tive nenhum negcio com detetives particulares, senhor Marlowe. No sei nada

    sobre eles. As suas referncias parecem satisfatrias. Quais so os seus honorrios? Para fazer o qu, senhora Murdock? um assunto muito confidencial, naturalmente. Nada a ver com a polcia. Se tivesse algo

    a ver com a polcia, eu teria chamado a polcia. Cobro vinte e cinco dlares por dia, senhora Murdock. Mais, claro, as despesas. Acho caro. Deve ganhar bastante dinheiro.Ela bebeu um pouco mais do porto. Eu no gosto de beber porto quando est muito quente,

    mas bom quando pelo menos lhe do a oportunidade de recus-lo. No falei. No caro. Mas, possvel, claro, conseguir detetives a qualquer preo.

    Assim como advogados. Ou dentistas. No sou uma organizao. Sou apenas um e trabalhocom apenas um caso por vez. Me arrisco, s vezes muito, e no tenho trabalho o tempo todo.No, no acho que vinte e cinco dlares por dia seja caro.

    Entendo. E qual a natureza das despesas? Pequenas coisas que aparecem aqui e ali. Nunca se sabe. Eu preferiria saber ela disse, cida. Saber falei , e receber recibo de tudo, preto no branco. Poder fazer as suas

    objees, se no gostar. E quanto voc esperaria de adiantamento? Uns cem dlares quebrariam o galho falei. Espero que sim ela disse, terminou o porto e encheu o clice novamente sem sequer

    esperar o tempo necessrio para limpar os lbios. A pessoas da sua posio, senhora Murdock, no preciso necessariamente pedir um

    adiantamento. Senhor Marlowe ela disse , sou uma mulher de personalidade forte. Mas no permita

    que eu o assuste. Porque, se o senhor se assustar comigo, no me ser de grande utilidade.Eu assenti com a cabea e deixei passar aquela.Ela riu repentinamente e ento arrotou. Foi um arroto simptico, delicado, nada

    exibicionista e dado sem preocupao. Minha asma ela disse, casualmente. Bebo este vinho como remdio. por isso que

    no ofereci.Cruzei as pernas. E torci para que isso no piorasse a sua asma.

  • Dinheiro ela disse no realmente importante. Uma mulher na minha posio semprepaga mais e acaba se acostumando. Espero que voc valha o que cobra. A situao aseguinte: algo de valor considervel foi roubado de mim. Quero-o de volta, mas quero maisdo que apenas isto. No quero que ningum seja preso. Acontece que o ladro membro daminha famlia, por laos de matrimnio. Ela girou o clice de vinho com seus dedos gordose sorriu diafanamente na luz plida da penumbra. Minha nora disse. Uma garotaencantadora. Dura na queda.

    Ela olhou para mim com um brilho sbito nos olhos. Tenho um filho que um tolo disse. Mas gosto muito dele. H mais ou menos um ano

    ele fez um casamento idiota, sem meu consentimento. Foi uma besteira, porque ele incapazde ganhar a vida e no tem dinheiro algum, exceto aquele que eu dou, e no sou generosaquando se trata de dinheiro. A moa que ele escolheu, ou que escolheu ele, era uma cantora deboate. O nome dela, bastante apropriadamente, era Linda Conquest. Eles ficaram morandoaqui, nesta casa. No discutimos porque no permito que ningum discuta comigo na minhaprpria casa, mas no existem bons sentimentos entre ns. Tenho pago as despesas deles, deium carro a cada um, concedi moa uma mesada suficiente mas no extravagante para roupase coisas do gnero. Sem dvida ela achou esta vida um tanto quanto montona. Sem dvidaachou o meu filho montono. Eu mesma o acho. Seja como for, ela se mudou daqui, bastanteabruptamente, h cerca de uma semana, sem deixar nenhum endereo nem dizer adeus.

    Ela tossiu, procurou um leno e assoou o nariz. O que foi levado ela prosseguiu uma moeda. Uma moeda rara de ouro chamada

    Dobro Brasher. Era o orgulho da coleo do meu marido. Eu no dou importncia a essascoisas, mas ele dava. Tenho mantido a coleo intacta desde que ele morreu, h quatro anos.Fica no andar de cima, em um quarto trancado e prova de fogo, em um conjunto de estojos prova de fogo. Est segurada, mas ainda no declarei a perda. Prefiro no faz-lo, se eu puderevitar. Tenho quase certeza de que Linda levou a moeda. Dizem que vale mais de dez mildlares. um exemplar em perfeitas condies.

    Mas bem difcil de vender falei. Talvez. No sei. No dei falta da moeda at ontem. Eu no teria sentido a sua falta

    mesmo ento, pois nunca chego perto da coleo, mas um homem de Los Angeles chamadoMorningstar ligou, disse que era um negociante de moedas e perguntou se o Dobro Brasherdos Murdock, como ele a chamou, estava venda. Por acaso o meu filho foi quem atendeu aligao. Ele disse que achava que no estava venda, que nunca havia estado, mas que se osenhor Morningstar ligasse outra hora provavelmente poderia falar comigo. No era uma boahora, pois eu estava descansando. O homem disse que ligaria de novo. Meu filho contou sobrea conversa para a senhorita Davis, que me contou. Eu fiz com que ela ligasse para o homem.Fiquei um pouco curiosa.

    Ela bebericou mais um pouco de vinho do porto, agitou o leno e deu um resmungo. Por que ficou curiosa, senhora Murdock? perguntei, apenas para dizer alguma coisa. Se o homem fosse um negociante de alguma reputao, ele saberia que a moeda no est

    venda. Meu marido, Jasper Murdock, determinou, no seu testamento, que nenhuma parte dasua coleo pode ser vendida, emprestada ou hipotecada enquanto eu viver. Nem mesmo

  • removida desta casa, exceto no caso de a casa ser danificada de algum modo que a coleoprecise ser removida, e, mesmo assim, apenas os curadores poderiam faz-lo. Meu marido ela sorriu severamente aparentemente achava que eu deveria ter me interessado mais porsuas pecinhas de metal enquanto ele era vivo.

    Fazia um belo dia l fora, o sol brilhava, as flores desabrochavam, os pssaros cantavam.Carros passavam pela rua, num rudo distante e agradvel. No cmodo escuro, com a mulherde feies rgidas e com o cheiro de vinho, tudo parecia um tanto irreal. Balancei meu p porcima do outro joelho e esperei.

    Falei com o senhor Morningstar. Seu nome completo Elisha Morningstar e ele tem umescritrio no Edifcio Belfont, na rua Nove, no centro de Los Angeles. Eu disse a ele que acoleo Murdock no est venda, que nunca esteve e que, no que me dizia respeito, nuncaestaria, e que eu estava surpresa que ele no soubesse disso. Ele hesitou, gaguejou e entoperguntou se poderia examinar a moeda. Eu disse que era claro que no. Ele me agradeceu umtanto secamente e desligou. Parecia ser um homem velho. Ento subi ao andar de cima paraexaminar a moeda pessoalmente, algo que eu no fazia h um ano. No estava no seu lugarhabitual, num dos estojos prova de fogo.

    No falei nada. Ela voltou a encher o clice e tamborilou seus dedos gordos no brao dachaise longue:

    O que eu pensei ento voc provavelmente pode adivinhar.Eu disse: A parte sobre Morningstar, talvez. Algum havia oferecido a moeda a ele, e ele soube,

    ou suspeitou, de onde ela havia sado. A moeda deve ser muito rara. Aquilo que eles chamam de um exemplar em perfeitas condies muito raro, realmente.

    Sim, eu pensei nisso, tambm. Como ela poderia ser roubada? perguntei. Por qualquer pessoa desta casa, facilmente. As chaves esto na minha bolsa, e a minha

    bolsa fica por a. Seria algo muito simples ficar de posse das chaves o tempo suficiente paradestrancar uma porta e um escritrio e ento devolver as chaves. Difcil para algum de fora,mas qualquer um na casa poderia roub-la.

    Entendo. E como tem certeza de que a sua nora a pegou, senhora Murdock? No tenho. No no sentido de ter alguma prova. Mas estou bem certa disso. Os

    empregados so trs mulheres que esto aqui h muitos e muitos anos. Desde muito antes de eucasar com o sr. Murdock, o que s aconteceu h sete anos. O jardineiro nunca entra na casa.No tenho motorista, porque meu filho ou a minha secretria dirigem para mim. Meu filho nopegou a moeda, primeiro porque ele no o tipo de tolo que roubaria da prpria me e, emsegundo lugar, se ele a tivesse pego, teria impedido com facilidade que eu falasse com onegociante de moedas, Morningstar. A senhorita Davis... ridculo. Simplesmente no do seufeitio. Acanhada demais. No, senhor Marlowe, Linda o tipo de mulher que faria isso apenaspor despeito, se no por outra razo. E o senhor sabe como so essas pessoas de boates eclubes noturnos.

    H todo o tipo de pessoas. Assim como nas outras profisses eu disse. No h sinaisde arrombamento, suponho? Seria necessrio algum muito sutil para levar apenas uma moeda

  • valiosa, ento imagino que no haja sinais de arrombamento. Mas talvez fosse melhor eu daruma olhada no quarto.

    Sua mandbula avanou na minha direo, e os msculos do seu pescoo ficaram tensos. Acabei de lhe falar, senhor Marlowe, que a senhora Leslie Murdock, minha nora, roubou

    o Dobro Brasher.Eu a encarei e ela me devolveu o olhar fixo. Seus olhos eram duros como os tijolos da

    passarela do jardim. Dei de ombros, diluindo o seu olhar, e disse: Supondo que assim seja, senhora Murdock, o que quer que seja feito? Em primeiro lugar, quero a moeda de volta. Em segundo lugar, quero um divrcio rpido

    para o meu filho. E no pretendo comprar esse divrcio. Ouso dizer que o senhor sabe comoessas coisas so arranjadas.

    Ela terminou mais um captulo do vinho do porto e riu rudemente. Pode ser que eu tenha ouvido falar eu disse. A senhora falou que a sua nora no

    deixou nenhum endereo. Isso significa que no faz idia de para onde ela foi? Exatamente. Um desaparecimento, ento. Pode ser que o seu filho tenha alguma idia que no tenha

    compartilhado com a senhora. Precisarei falar com ele.O rosto grande e acinzentado se contraiu em linhas ainda mais rgidas. Meu filho no sabe de nada. Ele sequer sabe que o dobro foi roubado. No quero que

    ele saiba nada. Quando for a hora, eu lidarei com ele. At ento quero que ele seja deixado empaz. Ele vai fazer exatamente o que eu quiser.

    Nem sempre foi assim falei. O casamento dele ela disse, desgostosa foi um impulso momentneo. Depois do que

    ele tentou agir como um cavalheiro. Eu no teria esse tipo de escrpulo. So necessrios trs dias para levar adiante este tipo de impulso momentneo na

    Califrnia, senhora Murdock. Meu jovem, quer este servio ou no? Quero se me forem fornecidos todos os fatos e se me for permitido tratar do caso como

    me parecer melhor. No quero se a senhora vai impor muitas regras e normas para eu tropearnelas.

    Ela riu sem delicadeza alguma. Este um problema de famlia delicado, senhor Marlowe. E deve ser tratado com

    delicadeza. Se a senhora me contratar, ter direito a toda delicadeza de que sou capaz. Se a minha

    delicadeza no suficiente, talvez seja melhor no me contratar. Por exemplo, imagino que asenhora no queira que a sua nora seja presa. No tenho delicadeza suficiente para isto.

    Ela ficou da cor de uma beterraba cozida e abriu a boca para gritar. Ento pensou melhor,levantou o clice de porto e engoliu um pouco mais do seu remdio.

    Voc vai servir ela disse, secamente. Eu desejaria t-lo conhecido h dois anos,antes de eles se casarem.

    Eu no sabia exatamente o que essa ltima frase queria dizer, de modo que deixei para l.Ela se debruou para o lado, apertou o boto de um interfone e resmungou nele quando foi

  • atendida.Ento ouvi passos, e a loirinha acobreada entrou no quarto tropeando com o queixo

    abaixado, como se para se defender de um soco. Faa um cheque de duzentos e cinqenta dlares para este homem o drago rosnou

    para ela. E no abra a boca para ningum sobre isso.A mocinha corou at o pescoo. Sabe que eu nunca falo sobre o meu trabalho, sra. Murdock ela baliu. A senhora sabe

    que no. Eu jamais pensaria numa coisa dessas, eu...Ela se virou com a cabea baixa e correu para fora da sala. Enquanto ela fechava a porta,

    olhei na sua direo. Seus pequenos lbios tremelicavam, mas seus olhos estavam furiosos. Vou precisar de uma foto da sua nora e de mais algumas informaes falei quando a

    porta se fechou. Olhe na gaveta da escrivaninha seus anis faiscaram na atmosfera mortia enquanto seu

    dedo gordo e cinzento indicava numa direo.Eu me aproximei, abri a nica gaveta da escrivaninha e de l tirei a foto, que estava

    sozinha ali, virada para cima, me olhando com olhos escuros e frios. Sentei-me novamentecom a foto em mos e a observei. Cabelos escuros divididos negligentemente ao meio epresos frouxamente para trs, acima de uma testa imponente. Uma boca larga, atraente emarota, com lbios altamente beijveis. Um belo nariz, nem muito pequeno, nem muito grande.Os ossos da face pareciam fortes. Faltava alguma coisa na expresso do rosto. Antigamenteessa alguma coisa seria chamada de bero, mas, nos dias de hoje, eu no saberia como cham-la. O rosto parecia sbio demais e ctico demais para a sua idade. Recebera cantadas demaise acabara se tornando um tanto esperto demais ao contorn-las. E por trs dessa expresso desabedoria havia o aspecto simplrio da menina que acredita em Papai Noel.

    Balancei a cabea para a foto e a deslizei para dentro do meu bolso, pensando que euestava deduzindo coisas demais de uma mera foto, e numa luz muito ruim, alis.

    A porta se abriu, a moa do vestido de linho entrou com um talo de cheques tamanhofamlia e uma caneta tinteiro e fez um apoio com o prprio brao para a senhora Murdockassinar. Ela se endireitou com um sorriso cansado, a senhora Murdock fez um gesto gil naminha direo, a mocinha destacou o cheque e o entregou para mim. Ela hesitava por dentroquanto ao que fazer. Nada lhe foi dito, ento ela saiu timidamente mais uma vez e fechou aporta.

    Balancei o cheque at que a tinta secasse, dobrei-o e o mantive na mo enquantocontinuava sentado.

    O que a senhora pode me dizer sobre Linda? Praticamente nada. Antes de se casar com o meu filho, ela dividia um apartamento com

    uma garota chamada Lois Magic encantadores os nomes que essas pessoas escolhem para si, que uma artista do mesmo tipo. Trabalhavam em um lugar chamado Idle Valley Club, almdo bulevar Ventura. Meu filho Leslie o conhece bem at demais. No sei nada sobre a famliade Linda ou suas origens. Ela disse uma vez que havia nascido em Sioux Falls. Suponho quetivesse pai e me. Eu no tinha curiosidade suficiente para tentar descobrir isso.

    Duvido que no. Eu podia v-la cavando avidamente com ambas as mos, com muito

  • esforo, e conseguindo apenas dois punhados de pedregulhos. No sabe o endereo da senhorita Magic? No. Eu nunca soube. Ser que seu filho saberia? Ou a senhorita Davis? Vou perguntar ao meu filho quando ele voltar. Mas acho que no sabe. Pode perguntar

    senhorita Davis. Tenho certeza de que ela tambm no sabe. Entendo. E a senhora no conhece nenhum outro amigo de Linda? No. possvel que o seu filho ainda esteja em contato com ela, escondido da senhora.Ela comeou a ficar prpura novamente. Ergui a minha mo e forcei um sorriso

    apaziguador no meu rosto: Afinal de contas, ele foi casado com ela durante um ano falei. Ele deve saber algo

    sobre ela. Deixe o meu filho fora disso ela rosnou.Dei de ombros e fiz um som de decepo com os lbios. Muito bem. Ela levou o carro, suponho? Aquele que a senhora havia dado? Um Mercury cinza cromado, modelo de 1940, cup. A senhorita Davis pode lhe fornecer

    o nmero da placa, se o senhor quiser. No sei se ela levou. Saberia me dizer quanto dinheiro, quais roupas e jias ela levou? No muito dinheiro. Ela devia ter algumas centenas de dlares, no mximo. Um sorriso

    forte de desprezo cavou profundas linhas ao redor do seu nariz e da boca. Ao menos, claro, que ela tenha encontrado um novo amigo.

    Certo falei. Jias? Um anel de esmeraldas e diamantes de no muito valor, um relgio Longines de platina

    cravejado de rubis, um colar muito bonito de mbar que eu fui tola o suficiente para lhe dar.Tem um fecho de diamante e 26 diamantes pequenos no formato de um naipe de ouros. Elatinha outras coisas, claro. Nunca prestei muita ateno. Ela se veste bem, mas de um jeito nomuito chamativo. Graas a Deus por essas pequenas bnos.

    Ela tornou a encher o copo, bebeu e fez mais uma demonstrao do seu arroto versosocial.

    Isto tudo que pode me dizer, senhora Murdock? No suficiente? Nem de longe, mas terei de me contentar, por enquanto. Se eu descobrir que ela no

    roubou a moeda, isso significa o fim da investigao, no que me diz respeito. Correto? Falaremos sobre isso ela disse, asperamente. Ela a roubou, com certeza. E no

    pretendo deix-la escapar. Enfie isso na cabea, meu jovem. E espero que pelo menos metadedesse seu jeito duro seja de verdade, porque essas garotas de boates costumam ter amigosbem desagradveis.

    Eu ainda estava segurando pela ponta o cheque dobrado, entre os meus joelhos. Tirei aminha carteira para fora, guardei o cheque e me levantei, apanhando o meu chapu do cho.

    Gosto de gente desagradvel falei. Costumam ter uma mente simples. Farei umrelatrio quando houver algo a reportar, senhora Murdock. Acho que primeiro vou dar uma

  • tacadinha no negociante de moedas. Ele parece uma boa pista.Ela deixou que eu chegasse at a porta para grunhir s minhas costas: No simpatiza muito comigo, no ?Eu me virei para lhe dar um sorriso amarelo, com a mo na maaneta: E algum simpatiza?Ela jogou a cabea para trs, abriu bem a boca e rugiu uma gargalhada. Em meio

    gargalhada eu abri a porta, sa e fechei a porta na cara do rugido viril. Atravessei o corredornovamente e bati na porta entreaberta da secretria, ento a abri e espiei para dentro.

    Ela tinha os braos cruzados sobre a mesa e a cabea abaixada por sobre eles. Estavasoluando. Virou a cabea para o lado e olhou para mim com olhos midos de lgrimas.Fechei a porta, fui at ela e coloquei um brao ao redor dos seus ombros magros.

    Anime-se falei. Devia ter pena dela. Ela acha que durona e est se destruindo,tentando fazer jus imagem.

    A mocinha ps-se de p num pulo, afastando-se do meu brao. No me toque ela disse, num fiapo de voz. Por favor. Nunca deixo nenhum homem

    me tocar. E no digo coisas horrveis sobre a senhora Murdock.Seu rosto estava completamente rosado e molhado de lgrimas. Sem os culos, seus olhos

    at que no eram de se jogar fora.Enfiei meu paciente cigarro na boca e o acendi. Eu... eu no queria ser grosseira ela fungou. Mas ela me humilha tanto. E eu s quero

    fazer o melhor por ela.Ela fungou mais um pouco, puxou um leno masculino para fora da sua gaveta, abriu-o

    numa sacudidela e secou os olhos com ele. Eu vi, no canto que estava cado, as iniciais L. M.bordadas em roxo. Observei-as e baforei fumaa de cigarro para o canto do cmodo, paralonge dos cabelos dela.

    O senhor precisa de alguma coisa? ela perguntou. Preciso do nmero da placa do carro da senhora Leslie Murdock. 2X1111, um Mercury cinza conversvel, modelo de 1940. Ela me disse que era um cup. Esse o carro do sr. Leslie. So do mesmo modelo, ano e cor. Linda no levou o carro. Ah. E o que sabe sobre a senhorita Lois Magic? Eu s a vi uma vez. Costumava dividir um apartamento com Linda. Ela veio aqui com um

    senhor... um senhor chamado Vannier. Quem ele?Ela baixou os olhos para a mesa. Eu... ele apenas chegou com ela. No sei quem ele . Oquei. Como a senhorita Lois, fisicamente? Ela alta, uma loira bonita. Muito... muito atraente. Quer dizer, sexy? Bem... ela corou furiosamente , de um jeito digno, se entende o que quero dizer. Entendo o que quer dizer falei , mas isso nunca me levou a nada. Acredito ela disse, ousada.

  • Sabe onde a senhorita Magic mora?Ela balanou a cabea: no. Dobrou o grande leno com muito cuidado e o colocou na

    gaveta da escrivaninha, na mesma que continha a arma. Voc pode surrupiar outro quando esse estiver sujo falei.Ela se recostou na cadeira, colocou suas pequenas e bem-cuidadas mos sobre a mesa e

    me encarou com brabeza. Eu no bancaria o duro muito tempo, se eu fosse o senhor. No comigo, pelo menos. No? No. E no posso responder mais nenhuma pergunta sem instrues especficas. Meu

    cargo aqui de confiana. No sou duro falei. Msculo, apenas.Ela apanhou um lpis e anotou algo num bloco. E me deu um sorriso fraquinho, todo

    compostura, de novo. Talvez eu no goste de homens msculos falou. Se algum dia conheci uma louca, essa voc falei. Adeus.Sa do escritrio, fechei a porta com firmeza e caminhei pelos corredores vazios at a

    enorme, quieta, fnebre e escura sala de estar e ento at a porta de entrada.O sol danava sobre o tapete verde l fora. Coloquei meus culos escuros, me aproximei e

    acariciei a cabea do negrinho novamente. Irmo, bem pior do que eu imaginava falei a ele.Dava para sentir o calor das pedras da passarela atravs das solas dos meus sapatos.

    Entrei no carro, girei a chave e me afastei do meio-fio.Um pequeno carro de passeio e cor de areia tambm se afastou do meio-fio, atrs de mim.

    No dei bola. O homem que o dirigia vestia um chapu de palha marrom com uma fitacolorida e culos escuros, como eu.

    Dirigi de volta at a cidade. Uma dzia de quarteires mais tarde, em um sinal de trnsito,o carro cor de areia ainda estava atrs de mim. Dei de ombros e, s para me divertir, fiqueifazendo a volta em alguns quarteires. O carro se manteve atrs de mim. Entrei numa rualadeada por imensas rvores de pimenta, levei o carro at um retorno e parei junto ao meio-fio.

    O carro cor de areia se aproximou lentamente. A cabea loira por baixo do chapu depalha marrom com fita de estampa tropical sequer se voltou na minha direo. O carro seguiuadiante e eu voltei at o Arroyo Seco e de l para Hollywood. Procurei vrias vezes, mas novi mais sinal do cup cor de areia.

  • Captulo trsEu tinha um escritrio no sexto andar do Edifcio Cahuenga, duas pequenas salas nos

    fundos. Uma delas eu deixava aberta para abrigar um cliente paciente, se calhasse de eu ter umcliente paciente. Havia uma campainha na porta, que eu podia ligar e desligar de dentro domeu salo particular de meditaes.

    Espiei para dentro da sala de espera. Estava mais vazio do que a morte, exceto pelo cheirode poeira. Abri mais uma janela, destranquei a porta que ligava as duas peas e fui at ocmodo contguo. Trs cadeiras simples e uma cadeira de rodinhas, uma mesa reta com tampode vidro, cinco arquivos verdes trs dos quais absolutamente vazios , um calendrio e umalicena emoldurada pendurados na parede, um telefone, uma bacia sobre um balco demadeira manchado, um chapeleiro, um tapete que nada mais era do que algo disforme sobre ocho e duas janelas abertas com cortinas simples que se franziam para dentro e para fora comoos beios de um velho banguela dormindo.

    As mesmas coisas que eu tivera no ano anterior, e no ano anterior a este. No eram coisasbonitas, sequer alegres, mas era melhor do que uma barraca na praia.

    Pendurei meu chapu e meu casaco no chapeleiro, lavei meu rosto e minhas mos em guafria, acendi um cigarro e icei a lista telefnica para cima da mesa. Elisha Morningstar estavalistado no conjunto 824 do Edifcio Belfont, no nmero 422 da rua Nove Leste. Anotei isso e onmero de telefone, e estava com a mo sobre o instrumento quando me lembrei que no havialigado a campainha da sala de espera. Avancei a mo at a lateral da escrivaninha, apertei oboto que ligava a campainha, e ela estrilou no mesmo instante. Algum acabara de abrir aporta da primeira sala.

    Virei o bloco de anotaes sobre a mesa, com a face para baixo, e fui at a porta ver quemera. Era um sujeito alto, magro, com jeito pretensioso em um horrvel traje tropical azul-acinzentado, sapatos preto e branco, uma camisa cor de marfim e uma gravata e um leno nalapela da cor das flores do jacarand. Segurava uma longa piteira preta numa luva de pele deporco preta e branca e estava torcendo o nariz para as velhas revistas sobre a mesinha, para ascadeiras, para a forrao surrada e para o aspecto geral de baixos dividendos da firma.

    Quando abri a porta para a sala de espera, ele se voltou parcialmente e me encarou comum par de olhos azuis bastante sonhadores bem prximos de um nariz estreito. Sua pele estavabronzeada, seu cabelo ligeiramente ruivo estava escovado para trs da cabea de pequenaspropores, e a fina linha de bigode era bem mais ruiva do que o cabelo.

    Ele me examinou sem pressa e tambm sem muito prazer. Baforou suavemente e falou portrs da fumaa do cigarro num tom levemente escarninho.

    Voc Marlowe?Fiz que sim com a cabea. Estou um pouco decepcionado ele disse. Eu estava esperando algum com as unhas

    sujas. Entre falei. Pode ser engraadinho sentado.

  • Segurei a porta, e ele entrou, passando lentamente por mim e semeando cinza de cigarro nocho com o auxlio do dedo mdio. Sentou-se junto mesa, no lado reservado ao cliente, tiroua luva da mo direita, a dobrou com a outra que j havia sido tirada e depositou-as sobre amesa. Tirou a bagana da piteira, cutucou a brasa com um fsforo at que ela se apagasse,encaixou outro cigarro e o acendeu com um fsforo largo cor de mogno. Reclinou-se nacadeira com o sorriso de um aristocrata entediado.

    Tudo pronto? eu inquiri. Pulso e respirao normais? No gostaria de uma toalhaumedecida com gua fresca para a sua cabea, ou outra coisa?

    Ele s no curvou os lbios em demonstrao de escrnio porque eles j estavam assimdesde que chegara.

    Um detetive particular falou. Nunca conheci um. Um negcio cheio de armadilhas,pode-se ver. Espiar por fechaduras, pescar escndalos, esse tipo de coisa.

    Est aqui a negcios perguntei-lhe ou apenas visitando bairros pobres?Seu sorriso era to lnguido quanto uma mulher gorda em um baile dos bombeiros. O nome Murdock. Isso provavelmente lhe diz alguma coisa. Voc com certeza est fazendo uma boa performance falei e comecei a encher um

    cachimbo.Ele me observou enquanto eu enchia o cachimbo. Ele disse, lentamente: Se entendi, minha me o contratou para algum servio. Ela lhe deu um cheque.Terminei de encher o cachimbo, levei um fsforo at ele, acendi-o e me reclinei para

    baforar a fumaa por cima do ombro direito na direo da janela aberta. No falei nada.Ele se inclinou para a frente mais um pouco e disse, com franqueza: Sei que bancar o esperto faz parte do seu negcio, mas no estou adivinhando. Um

    passarinho me contou, um pssaro comum, s vezes maltratado mas, ainda assim,sobrevivente. Como eu. Que por acaso no estava muito longe de voc. Isso ajuda a esclareceras coisas?

    rr falei. Supondo que fizesse alguma diferena para mim. Voc foi contratado para encontrar a minha mulher, presumo.Ri com desdm na direo dele, por cima do cachimbo. Marlowe disse ele, ainda com mais franqueza , prometo que vou tentar ao mximo,

    mas acho que no vou gostar de voc. Estou magoadssimo. E, se me permite uma frase coloquial, seu personagem duro fede. um comentrio um tanto amargo, vindo de voc.Ele se reclinou novamente e me encarou com olhos plidos e inexpressivos. Se remexeu na

    cadeira, tentando achar uma posio confortvel. Muitas pessoas j tinham tentado achar umaposio confortvel naquela cadeira. Eu mesmo deveria tentar uma hora dessas. Talvezestivesse prejudicando os negcios.

    Por que a minha me teria interesse em encontrar Linda? ele perguntou, devagar. Elaa odiava. Quero dizer, ela a odiava. Linda se comportava bem decentemente com a minha me.O que acha dela?

    Da sua me?

  • Claro. No conheceu Linda, conheceu? Aquela secretria da sua me est com o emprego por um fio pudo. Ela fala demais.Ele balanou a cabea com vigor. Mame no ficar sabendo. E, de qualquer forma, mame no conseguiria ficar sem

    Merle. Ela precisa ter algum com quem implicar. Pode gritar com ela e at estape-la, masno conseguiria ficar sem Merle. O que achou dela?

    Bonitinha. De um jeito meio antiquado.Ele franziu o cenho. Estou falando de mame. Merle apenas uma mocinha simples, eu sei. Sua capacidade de observao me deixa estupefato falei.Ele pareceu surpreso. Quase esqueceu de bater a cinza do cigarro com a unha. Mas no.

    Ele tomava cuidado para que nenhuma cinza casse no cinzeiro, acontecesse o queacontecesse.

    Falvamos sobre a minha me ele disse, paciente. Um velho e grande cavalo de guerra falei. Um corao de ouro, estando este

    enterrado bem l no fundo. Mas por que ela quer encontrar Linda? No consigo entender. E gastar dinheiro nisso,

    tambm. Minha me detesta gastar dinheiro. Ela acha que o dinheiro parte da sua pele. Porque ela quer encontrar Linda?

    Adivinhe falei. Quem disse que ela quer? Ora, voc deu a entender. E Merle... Merle romntica, apenas. Ela inventou isso. Ora, ela assoa o nariz em um leno

    masculino. Provavelmente um dos seus.Ele corou. Isso bobagem. Olhe, Marlowe. Por favor, seja razovel e me d uma idia do que se

    trata isto tudo. No tenho muito dinheiro, receio, mas quem sabe uns duzentos dlares... Eu deveria lhe dar uma surra falei. E, alm disso, no devo falar com voc. Ordens. Por que, pelo amor de Deus? No me pergunte coisas que eu no sei. No posso lhe dar as respostas. E no me

    pergunte nada que eu sei, porque no vou lhe dar as respostas. Em que mundo voc vive? Sedo uma tarefa a um cara da minha profisso, por acaso ele vai sair por a respondendoperguntas sobre essa tarefa a qualquer um que fique curioso?

    Acho que h algo no ar ele disse, com desprezo para um homem da sua profissorecusar duzentos dlares.

    Aquilo tampouco me atingia. Apanhei o seu grande fsforo de mogno do cinzeiro e olheipara ele. Tinha laterais amarelas e uma impresso em branco. ROSEMONT. H. RICHARDS 3. Oresto estava queimado. Dobrei o fsforo, apertei as duas metades na mo e as joguei na lata delixo.

    Eu amo a minha mulher ele disse de repente e me mostrou seus dentes brancos eafiados. Um tanto brega, mas verdade.

    Por isso os lombardos continuam se dando bem.*Ele manteve os dentes arreganhados e assim continuou falando.

  • Ela no me ama. No vejo nenhuma razo por que ela devesse. As coisas tm estadotensas entre ns. Ela estava acostumada a um tipo de vida agitado. Conosco, bem, tem sidobem entediante. No brigamos. Linda do tipo calmo. Mas ela realmente no tem se divertidomuito, estando casada comigo.

    Voc est sendo modesto demais falei.Seus olhos lampejaram, mas ele conseguiu manter os modos suaves. Piada ruim, Marlowe. Nem mesmo nova. Olhe, voc tem cara de ser um sujeito

    decente. Sei que a minha me no est gastando duzentos e cinqenta dlares apenas para seragradvel. Talvez no se trate de Linda. Talvez seja outra coisa. Talvez... ele parou, e entodisse muito calmamente, me estudando com os olhos: talvez seja Morny.

    Talvez falei, alegremente.Ele apanhou as luvas, golpeou a mesa com elas e as deps mais uma vez. Eu sabia ele disse. Mas eu achava que ela no sabia de nada. Morny deve ter ligado

    para ela. Ele tinha prometido que no ia ligar.Isso foi fcil. Falei: Quanto voc lhe deve?No era to fcil assim. Ele ficou desconfiado novamente. Se ele ligou para ela, deve ter contado. E ela teria contado a voc ele disse, num tom

    fraco. Talvez no seja Morny falei, comeando a ter uma vontade incrvel de beber alguma

    coisa. Talvez a cozinheira esteja grvida do sorveteiro. Mas, e se for Morny, quanto? Doze mil ele disse, olhando para baixo e corando. Ameaas?Balanou a cabea, aquiescendo. Mande-o s favas falei. Que tipo de cara ele ? Duro?Ele olhou para cima de novo, com uma expresso corajosa. Acho que sim. Acho que todos eles so. Ele costumava fazer papel de bandido no

    cinema. Bonito de um jeito forte, msculo. Mas no fique imaginando coisas. Linda apenastrabalhava l, como os garons e a banda. E se voc est procurando por ela, vai ter trabalhopara encontr-la.

    Sorri para ele, educadamente. Por que eu teria trabalho em encontr-la? Ela no est enterrada no quintal, espero?Ele se ps de p com o lampejo de um raio nos olhos plidos. Ali em p, debruando-se

    um pouco sobre a mesa, ele sacou a mo direita em um gesto certeiro e puxou uma pequenapistola automtica, provavelmente calibre .25, com cabo de nogueira. Parecia a irm daquelaque eu vira na gaveta da escrivaninha de Merle. Parecia bem perigosa, com o cano apontandopara mim. No me mexi.

    Se algum quiser encostar um dedo em Linda, vai ter que encost-lo em mim antes eledisse, tenso.

    O que no deve ser to difcil. Melhor conseguir uma arma maior. A no ser que vocqueira apenas caar abelhas.

    Ele recolocou a pequena arma no bolso interno do palet. Me encarou com um olhar duro,

  • apanhou as luvas e se dirigiu porta. uma perda de tempo falar com voc ele disse. S sabe fazer piadinhas. Espere um minuto me levantei e contornei a mesa. Talvez seja uma boa idia voc

    no mencionar essa conversa para a sua me, pelo menos por causa da mocinha.Ele concordou. Pela quantidade de informao obtida, no vale a pena ser mencionada. E isso resolve o problema da sua dvida de doze mil com Morny?Ele olhou para o cho, ento para cima, e ento para o cho de novo. Disse: Qualquer um que quisesse ficar devendo doze mil ao Morny precisaria ser muito mais

    esperto do que eu.Eu estava bem prximo dele. Falei: Na verdade, acho que voc nem est preocupado com a sua mulher. Acho que sabe onde

    ela est. Ela no fugiu de voc. S fugiu da sua me.Ele levantou os olhos e vestiu uma das luvas. No falou nada. Talvez ela encontre um emprego eu disse. E ganhe dinheiro suficiente para sustentar

    voc.Ele olhou para o cho de novo, virou o corpo um pouco para a direita, e o punho enluvado

    fez uma volta apertada e tensa para cima, no ar. Tirei a minha mandbula do caminho, apanheio punho dele e o empurrei lentamente de volta em direo ao seu peito, me inclinando sobreele. Ele deu um passo atrs e comeou a respirar com dificuldade. Era um pulso bem magro.Meus dedos o contornavam e se encontravam do outro lado.

    Ficamos l, olhando nos olhos um do outro. Ele estava respirando como um bbado, com aboca aberta e os lbios tensos. Pequenas rodelas vermelhas flamejavam nas suas bochechas.Ele tentou liberar o pulso torcendo-o, mas coloquei tanta fora que ele teve de recuar mais umpasso para no perder o equilbrio. Nossos rostos agora estavam a centmetros de distncia.

    Como que o seu velho pai no lhe deixou algum dinheiro? escarneci. Ou voctorrou tudo?

    Ele falou entre os dentes, ainda tentando se desvencilhar: Se que da sua maldita conta, e se voc est falando de Jasper Murdock, ele no era

    meu pai. No gostava de mim e no me deixou centavo algum. Meu pai era um homemchamado Horace Bright que perdeu todo o seu dinheiro no crash* e pulou da janela do seuescritrio.

    Voc fcil de ordenhar falei , mas o seu leite muito pobre. Sinto muito pelo o queeu disse, sobre a sua mulher sustentar voc. Eu s queria provoc-lo.

    Larguei seus pulsos e dei um passo atrs. Ele ainda estava respirando com fora epesadamente. Seus olhos estavam cravados nos meus, furiosos, mas ele manteve a voz baixa.

    Bem, voc conseguiu. Se est satisfeito, vou embora. Eu estava lhe fazendo um favor falei. Quem carrega uma arma consigo no deve se

    ofender to facilmente. Melhor se livrar dela. Isso problema meu ele disse. Sinto muito por ter lhe dado um soco. Mas

    provavelmente no machucaria muito, se o tivesse atingido. Tudo bem.

  • Ele abriu a porta e saiu. Seus passos foram morrendo ao longo do corredor. Outro pirado.Bati nos meus dentes com os ns dos dedos acompanhando o ritmo dos seus passos enquantoeu consegui ouvi-los. Ento voltei para a mesa, olhei para o meu bloco de anotaes e pegueio telefone.

  • Captulo quatroDepois de o telefone tocar trs vezes do outro lado da linha, uma voz de menina leve e

    infantil falou, atravs de um chicle: Bom dia. Escritrio do senhor Morningstar. O velho cavalheiro se encontra? Quem est falando, por favor? Marlowe. Ele o conhece, senhor Marlowe? Pergunte se ele quer comprar moedas americanas de ouro antigas. S um minuto, por favor.Houve ento uma pausa compatvel a um ancio em uma sala mais adiante tendo sua

    ateno chamada para o fato de que algum no telefone gostaria de falar com ele. Ento otelefone fez um clique, e um homem falou. Tinha uma voz seca. Quase se podia dizerqueimada.

    Aqui o senhor Morningstar. Me disseram que telefonou senhora Murdock, em Pasadena, senhor Morningstar. Sobre

    uma certa moeda. Sobre uma certa moeda ele repetiu. De fato. E da? Pelo que entendi, o senhor gostaria de comprar a moeda em questo, da coleo

    Murdock. De fato. E quem o senhor? Philip Marlowe. Um detetive particular. Estou trabalhando para a senhora Murdock. De fato falou pela terceira vez. Ele limpou cuidadosamente a garganta. E sobre o

    que gostaria de falar comigo, senhor Marlowe? Sobre essa moeda. Mas fui informado que ela no estava venda. Mesmo assim quero lhe falar sobre ela. Ao vivo. Quer dizer que ela mudou de idia sobre vender a moeda? No. Ento, receio que no entendo o que quer, senhor Marlowe. O que temos para conversar?

    Ele soava esperto agora.Tirei o s da manga e mostrei-o graciosamente: A questo , sr. Morningstar, que quando o senhor ligou, j sabia que a moeda no estava

    venda. Interessante ele disse, lentamente. Como? O senhor do ramo, seria impossvel no saber. um fato sabido que a coleo

    Murdock no poder ser vendida enquanto a senhora Murdock estiver viva. Ah ele disse. Ah. Houve um silncio. Ento: s trs horas falou, no cido,

    mas rpido. Ficarei feliz em receb-lo no meu escritrio. Provavelmente sabe onde fica.

  • conveniente para o senhor? Estarei a falei.Desliguei o telefone, acendi de novo o meu cachimbo e fiquei ali sentado, olhando para a

    parede. Meu rosto estava tenso de tantos pensamentos, ou ento por causa de alguma outracoisa que o enrijecia. Peguei a foto de Linda Murdock do meu bolso, observei-a por umtempo, decidi que o rosto era bem comum, afinal de contas, e tranquei a foto na gaveta daescrivaninha. Apanhei o segundo fsforo de Murdock do meu cinzeiro e o examinei. Ainscrio nele dizia: TOP ROW W. D. WRIGHT 36.

    Deixei-o cair novamente no cinzeiro, me perguntando qual a importncia disso. Talvezfosse uma pista.

    Tirei o cheque do senhora Murdock da carteira, endossei-o, preenchi uma ficha dedepsito e outra para sacar dinheiro, tirei meu talo de cheques da escrivaninha, dobrei tudosob um atilho de borracha e coloquei no meu bolso.

    Lois Magic no constava na lista telefnica.Abri a seo de classificados sobre a mesa, fiz uma lista de meia dzia de agncias

    teatrais que tinham anncios em letras grandes e liguei para elas. Todas elas tinham vozessimpticas e estridentes e queriam fazer um monte de perguntas, mas ou no sabiam ou noqueriam dizer nada sobre a senhorita Lois Magic, suposta atriz.

    Joguei a lista telefnica na lata de lixo e liguei para Kenny Haste, um reprter policial dojornal Chronicle.

    O que voc sabe sobre Alex Morny? perguntei quando terminamos aquela lengalengaintrodutria.

    Dirige uma boate e casa de jogos extravagante em Idle Valley, a cerca de trsquilmetros da estrada, na direo das montanhas. Costumava trabalhar no cinema. Pssimoator. Parece ter bastante influncia. Nunca ouvi falar dele atirando em algum em praapblica ao meio-dia. Ou em qualquer outro horrio. Mas eu no colocaria minha mo no fogo.

    Perigoso? Eu diria que ele pode ser, se necessrio. Todos esses caras j foram ao cinema e sabem

    como se espera que donos de boates se comportem. Ele tem um guarda-costas que umafigura. O nome dele Eddie Prue, tem dois metros de altura e magro como o limite entre ocerto e o errado. Tem um olho vazado, lembrana de uma ferida de guerra.

    Morny perigoso com as mulheres? No seja to vitoriano, meu chapa. As mulheres no chamam isso de perigo. Conhece uma moa chamada Lois Magic, suposta artista? Uma loira alta e chamativa, me

    disseram. No. Mas algo me diz que eu adoraria conhec-la. No banque o engraadinho. Conhece algum com o nome de Vannier? Nenhuma dessas

    pessoas est na lista telefnica. No. Mas posso perguntar a Gertie Arbogast, se quiser me ligar daqui algum tempo. Ele

    conhece todos os aristocratas de boates. E assemelhados. Obrigado, Kenny. Vou fazer isso. Daqui a meia hora?Ele disse que estaria bem, e desligamos. Tranquei o escritrio e sa.

  • No final do corredor, no canto de uma parede, um sujeito jovem e loiro com um ternomarrom e chapu de palha marrom com uma fita de estampas tropicais marrom e amarelaestava lendo o jornal vespertino com as costas apoiadas na parede. Ele bocejou quandopassei, enfiou o jornal embaixo do brao e se endireitou.

    Entrou no elevador comigo. Mal conseguia manter os olhos abertos, to cansado queestava. Sa para a rua e caminhei um quarteiro at o banco para depositar meu cheque e sacarum pouco de dinheiro para despesas. De l fui at o bar Tiger-Tail Lounge, sentei numreservado meio escondido, bebi um martni e comi um sanduche. O homem de terno marromse postou no final do balco e bebeu vrias coca-colas. Parecia entediado e empilhavamoedas sua frente, cuidadosamente emparelhando as bordas. Ele estava com os culosescuros novamente. Era um disfarce e tanto.

    Fiz o meu sanduche durar o mximo possvel e ento fui at a cabine telefnica na pontado balco, l no fundo do bar. O homem do terno marrom virou a cabea rapidamente e entodisfarou o gesto erguendo o copo. Disquei para a redao do Chronicle de novo.

    Oquei Kenny Haste disse. Gertie Arbogast diz que Morny casou com a tal loirachamativa h no muito tempo. Lois Magic. Ele no conhece Vannier. Diz que Morny comprouum lugar l fora, em Bel-Air, uma casa branca na estrada Stillwood Crescent, a cerca de cincoquarteires do bulevar Sunset. Gertie diz que Morny a conseguiu de um milionrio falidochamado Arthur Blake Popham que foi preso em um escndalo de fraude. As iniciais dePopham ainda esto no porto. E provavelmente no papel higinico, diz Gertie. Era esse tipode sujeito. Parece que tudo que sabemos.

    Impossvel pedir mais do que isso. Muito obrigado, Kenny.Desliguei, sa da cabine, encontrei os culos escuros pairando acima do terno marrom e

    abaixo do chapu de palha escuro e observei-os enquanto iam rapidamente embora.Girei sobre os calcanhares e voltei por uma porta vaivm at a cozinha e atravs dessa at

    o beco dos fundos e pelo beco andei um quarteiro at os fundos do estacionamento onde euhavia deixado meu carro.

    Nenhum cup cor de areia conseguiu colar em mim enquanto eu ia embora, em direo aBel-Air.

  • Captulo cincoA estrada Stillwood Crescent se curvava preguiosamente ao norte do bulevar Sunset, bem

    alm do campo de golfe do Bel-Air Country Club. A estrada era ladeada por propriedadesprotegidas por cercas e muros. Algumas tinham muros altos, outras tinham muros baixos,outras tinham cercas de ferro forjado, umas eram um tanto antiquadas, com cercas vivas. A ruano tinha calada. Naquele bairro, ningum caminhava, nem mesmo o carteiro.

    A tarde estava quente, mas no tanto quanto em Pasadena. Havia um cheiro inebriante deflores e sol, um chiado suave de regadores de grama por trs das cercas vivas e muros, ontido som das lminas dos cortadores de grama girando delicadamente sobre tapetesverdejantes serenos e confiantes.

    Dirigi at o topo do morro lentamente, procurando portes com monogramas. Arthur BlakePopham era o nome. A. B. P. seriam as iniciais. Encontrei-as quase l em cima, escritas emdourado sobre um escudo negro; os portes se abriam para uma passarela de veculosasfaltada.

    Era uma casa branca e brilhante que parecia novinha em folha, mas os jardins ao redorpareciam mais antigos. Era bastante modesta, considerando-se a vizinhana, mas tinha mais dequatorze peas e provavelmente apenas uma piscina. O muro da casa era baixo, de tijolos econcreto, cheio de limo nas juntas e pintado de branco. No topo do muro, um gradeado baixode ferro pintado de preto. O nome A. P. Morny estava pintado na grande caixa de correioprateada na entrada de servio.

    Estacionei meu carro na rua e subi pela passarela de asfalto at uma porta lateral de umbranco ofuscante esfaqueado por reflexos de cor do vitral que a encimava. Fiz soar umagrande aldrava de bronze. Ao fundo, no lado da asa, um chauffeur* lavava um Cadillac.

    A porta se abriu, e um filipino de olhos duros vestido de branco franziu a boca para mim.Entreguei-lhe meu carto de visita.

    A senhora Morny falei.Ele bateu a porta. Algum tempo passou, como sempre quando vou atrs de algum. O

    esguicho dgua no Cadillac fazia um barulho agradvel. O chauffeur era um tanto baixinho, eestava vestido com calas de montaria, meias e uma camisa manchada de suor. Parecia umjquei hiperdesenvolvido e ao trabalhar assobiava do mesmo jeito que uma escova ao serpassada no plo de um cavalo.

    Um passarinho cantante e de garganta vermelha penetrou em um arbusto escarlate ao ladoda porta, balanou um pouco os pequenos botes em flor de forma tubular e foi-se, num zunidoto rpido que simplesmente desapareceu no ar.

    A porta se abriu, o filipino me estendeu de volta o meu carto. No o peguei. O que voc quer?Era um voz tensa e crepitante, como algum caminhando por sobre um monte de cascas de

    ovos. Ver a senhora Morny.

  • Ela no est em casa. E voc j no sabia disso quando lhe dei o meu carto?Ele simplesmente abriu os dedos e deixou o carto planar at chegar ao cho. Sorriu de um

    jeito maroto, desvendando uma grande amostragem de servio dentrio de segunda categoria. Fico sabendo quando ela me diz.Ele fechou a porta na minha cara, e de um modo nem um pouco gentil.Apanhei o carto do cho e caminhei pela lateral da casa at onde o chauffeur estava

    lanando gua sobre o Cadillac sed e tirando a sujeira com uma esponja. Ele tinha culos dearmao vermelha e um topete no cabelo cor de milho. Um cigarro pendia exausto num doscantos do lbio inferior.

    Ele me olhou de soslaio como um homem que est tendo dificuldades de se concentrar nosseus afazeres. Perguntei:

    Onde est o seu chefe?O cigarro sacudia-se na sua boca. A gua continuou jorrando sobre a lataria. Pergunte na casa. J tentei. Fecharam a porta na minha cara. Oh, coitadinho... E a senhora Morny? Mesma resposta, cara. Eu s trabalho aqui. Est vendendo alguma coisa?Segurei meu carto para ele ler. Era um carto profissional, agora. Ele deps a esponja no

    estribo do carro e a mangueira sobre o cho de cimento. Contornou a gua para enxugar asmos em uma toalha que pendia ao lado das portas da garagem. Pescou um fsforo no bolsodas calas, acendeu-o e inclinou a cabea para fazer queimar a bituca apagada que estavaenfiada na sua boca.

    Seus olhos pequenos e astutos piscavam numa e noutra direo, e ele foi para trs docarro, com um meneio de cabea. Fui at ele.

    Como vai a verba para despesa extra? perguntou, numa voz baixa e precavida. Gorda de tanta inatividade. Por cinco dlares eu poderia pensar um pouco. Eu no dificultaria tanto assim as coisas para voc. Por dez dlares posso at cantar como um coro de quatro canrios e uma guitarra. No gosto desse tipo de orquestrao luxuosa.Ele balanou a cabea para os lados. Est falando grego, cara. No quero que perca o emprego, filho. Tudo o que quero saber se a senhora Morny

    est em casa. Isso por acaso custa mais do que um dlar? No se preocupe com o meu emprego, cara. Estou na boa. Com Morny, ou com quem? Quer saber isso pela mesma grana? Dois dlares.Ele me olhou de cima, com um olhar suspeito e perguntou: No est trabalhando para ele, est?

  • Claro. Voc um mentiroso. Claro. Me d os dois paus ele lanou.Dei-lhe dois dlares. Ela est no quintal, com um amigo ele disse. Um bom amigo. Quando se tem um

    amigo que no trabalha e um marido que trabalha, se est com a faca e o queijo na mo,entende? ele me olhava com malcia.

    Voc vai estar com a faca e o queijo na mo num campo de trabalhos forados, uma horadessas.

    Eu no, cara. Sou esperto. Sei como lev-los. Perambulei entre essa gente a minha vidatoda.

    Ele esfregou as duas notas de um dlar entre as palmas da mo, assoprou-as, dobrou-as aocomprido e ao meio e as enfiou no bolso de relgio das suas calas curtas.

    Isso era s o aquecimento ele disse. Agora, por mais cinco...Um cocker spaniel bem grande e muito loiro correu ao redor do Cadillac, escorregou um

    pouco no cimento molhado, ento decolou com preciso e me atingiu no estmago e nas coxascom as quatro patas, lambeu meu rosto, pulou para o cho, correu ao redor das minhas pernas,sentou-se entre elas, deixou cair bem a lngua e comeou a arfar.

    Caminhei por cima dele, me segurei na lateral do carro e puxei meu leno para fora.Uma voz de homem chamou: Aqui, Heatcliff. Aqui, Heatcliff.O som de passos em uma superfcie dura. Este o Heatcliff o motorista disse, meio amargo. Heatcliff? Diabos, assim que eles chamam o cachorro, cara. O morro dos ventos uivantes? perguntei. A voc est falando grego de novo ele ironizou. Olhe s. Companhia.Ele apanhou a esponja e a mangueira e recomeou a lavar o carro. Eu me afastei dele. O

    cocker spaniel imediatamente se reposicionou entre as minhas pernas, quase me fazendotropear.

    Aqui, Heatcliff a voz masculina chamou de novo, desta vez mais alto, e um homemapareceu na boca de um tnel de cerca viva coberto por trepadeiras de rosas.

    Alto, moreno, com uma pele azeitonada clara, olhos pretos brilhantes, dentes brancosresplandecentes. Suas. Um bigode fino e escuro. As suas eram muito longas, longasdemais. Camisa branca com iniciais bordadas no bolso, calas brancas, sapatos brancos. Umrelgio de pulseira de ouro que tapava quase completamente um pulso fino e moreno. Umleno amarelo ao redor de um pescoo moreno e delgado.

    Ele viu o cachorro sentado entre as minhas pernas e no gostou. Estalou uns dedos longose ordenou, numa voz lmpida e forte:

    Aqui, Heatcliff. Venha de uma vez!O cachorro arfava e no se moveu, a no ser para se colocar um pouco mais prximo da

  • minha perna direita. Quem voc? o homem perguntou, me examinando de cima a baixo.Estiquei meu carto. Dedos cor de oliva o apanharam. O cachorro recuou em silncio para

    trs das minhas pernas, esgueirou-se pela frente do carro e desapareceu silenciosamente nadistncia.

    Marlowe o homem disse. Marlowe, ? O que isso? Um detetive? O que voc quer? Ver a senhora Morny.Ele me olhou de cima a baixo novamente, com os olhos pretos e brilhantes varrendo

    lentamente seguidos pelos sedosos e longos clios. No lhe disseram que ela no estava? , mas no acreditei. Voc o sr. Morny? No. Este o senhor Vannier o motorista disse atrs de mim, na voz arrastada e

    hipereducada da insolncia deliberada. O sr. Vannier um amigo da famlia. Ele vem muitoaqui.

    Vannier olhou por cima dos meus ombros. Seus olhos estavam furiosos. O motorista deu avolta no carro e cuspiu a bituca do cigarro com desprezo casual.

    Eu disse ao xereta que o patro no estava, senhor Vannier. Sei. Eu disse que a sra. Morny e o senhor estavam. Fiz mal?Vannier falou: Voc devia era se meter com a sua prpria vida.O motorista disse: Me pergunto por que no pensei nisso.Vannier disse: D o fora antes que eu quebre esse seu pescoo fracote e imundo.O motorista olhou-o em silncio, ento voltou para a parte escura da garagem e comeou a

    assobiar. Vannier dirigiu seus olhos furiosos at mim e largou: Disseram-lhe que a senhora Morny no estava, e voc no acreditou. isso? Em outras

    palavras, a informao no lhe satisfez. Se precisssemos colocar a coisa em outras palavras falei , estas bastariam. Entendo. E poderia dizer qual a questo que gostaria de discutir com a senhora Morny? Eu preferiria explicar isso prpria senhora Morny. Acontece que ela no quer receb-lo.Por trs do carro, o motorista me disse: Fique de olho na mo direita, cara. Ele pode ter uma faca.A pele azeitonada de Vannier ficou da cor de alga marinha seca. Deu a volta sobre os

    calcanhares e me ordenou, com uma voz abafada: Siga-me.Ele percorreu o caminho pavimentado de tijolos abaixo do tnel de rosas e atravs de um

    porto branco, no final. Mais alm ficava um jardim murado contendo canteiros de vistosasflores da estao, uma quadra de badminton, um enorme gramado e uma pequena piscina

  • azulejada que reluzia ao sol. Ao lado da piscina havia um espao com mveis azuis e brancosde jardim, mesas baixas com tampo em mosaico, cadeiras reclinveis com lugar paradescansar os ps e enormes almofadas, e, sobre tudo, um guarda-sol azul e branco do tamanhode uma pequena barraca.

    Uma loira langorosa tipo de boate, de pernas longas, estava preguiosamente deitada emuma das cadeiras, com os ps para cima sobre uma almofada e um copo alto e opaco prximoao cotovelo, perto de um balde de gelo prateado e uma garrafa de scotch. Ela nos olhoulanguidamente conforme nos aproximvamos do gramado. A uma distncia de dez metros elaparecia uma mulher bem elegante. A uma distncia de trs metros ela parecia algo feito paraser olhado a uma distncia de dez metros. Sua boca era larga demais, seus olhos, azuisdemais, sua maquiagem era muito exagerada, os finos arcos das suas sobrancelhas tinham umacurvatura e uma amplitude quase irreais, e o rmel dos seus clios era to espesso que elespareciam pequenos trilhos de ferro.

    Ela usava calas brancas de um tecido leve, chinelos azul e branco, unhas pintadas decarmim, uma blusa de seda branca e um colar de pedras verdes lapidadas na forma quadrada mas no eram esmeraldas. Seu cabelo era to artificial quanto um hall de entrada de boate.

    Sobre a cadeira ao seu lado havia um chapu de palha com abas da largura de um pneu euma fita de cetim branco para o queixo. Na aba do chapu descasava um par de culos escuroscom lentes do tamanho de uma rosca de padaria.

    Vannier marchou at ela e lanou: Voc precisa dar um jeito nesse seu motorista nojento de olhos vermelhos, mas rpido.

    Seno, posso quebrar o pescoo dele a qualquer minuto. No consigo chegar perto sem serinsultado.

    A loira tossiu fraquinho, desfilou um leno ao seu redor sem fazer nada com ele e disse. Sente-se e poupe o seu charme. Quem o seu amigo?Vannier procurou o meu carto, descobriu que o estava segurando na mo e o jogou no

    colo dela. Ela o apanhou languidamente, passou os olhos nele, passou os olhos em mim,suspirou e tamborilou as unhas nos seus dentes brancos.

    Grando, no mesmo? Grande demais para voc, imagino.Vannier olhou para mim com desprezo. Tudo bem, terminem logo com isso, seja l o que for. Falo com ela? perguntei. Ou falo com voc e voc traduz?A loira riu. Um risada metlica to natural quanto nado sincronizado. Uma lngua pequena

    brincava lascivamente nos seus lbios.Vannier sentou-se, acendeu um cigarro de ponta dourada, e eu fiquei l, olhando para eles.Falei: Estou procurando por uma amiga sua, senhora Morny. Soube que vocs dividiam um

    apartamento h cerca de um ano. O nome dela Linda Conquest.Vannier piscou os olhos para cima, para baixo, para cima, para baixo de novo. Virou a

    cabea e olhou alm da piscina. O cocker spaniel chamado Heatcliff estava l sentado, nosencarando com o branco de um olho.

    Vannier estalou os dedos.

  • Aqui, Heatcliff! Aqui, Heatcliff! Venha c!A loira disse: Cale a boca. O cachorro odeia voc. D um descanso para a sua vaidade, pelo amor do

    cu.Vannier disse: No fale assim comigo.A loira soltou uma risadinha e acariciou o rosto dele com os olhos.Eu falei: Estou procurando uma moa chamada Linda Conquest, senhora Morny.A loira me olhou e disse: Voc j disse isso. Eu estava s pensando. Acho que no a vejo h seis meses. Ela se

    casou. A senhora no a viu nos ltimos seis meses? Foi o que eu disse, garoto. Por que quer saber? apenas uma investigao particular que estou fazendo. Sobre? Sobre um assunto confidencial respondi. Ora, vejam! a loira exclamou. Ele est fazendo uma investigao particular sobre um

    assunto confidencial. Ouviu isso, Lou? Mas, quanto a perturbar estranhos que no queremreceb-lo tudo bem, no , Lou? Isso porque ele est fazendo um inqurito particular sobre umassunto confidencial.

    Ento a senhora no sabe onde ela est? No foi isso o que eu disse? a voz dela ergueu-se alguns pontos. No. A senhora disse que achava que no a tinha visto nos ltimos seis meses. No

    exatamente a mesma coisa. Quem lhe disse que eu dividia um apartamento com ela? a loira perguntou. Nunca revelo uma fonte de informao, senhora Morny. Querido, voc cheio de frescuras, o suficiente para ser um coregrafo. Quer que eu lhe

    diga tudo, mas no quer me dizer nada. A posio muito diferente falei. Sou uma pessoa contratada seguindo instrues. A

    madame no tem nenhum motivo para se esconder, tem? Quem a est procurando? Os pais dela. Tente de novo. Ela no tem pais. Deve conhec-la muito bem, para saber isso falei. Talvez eu tenha conhecido. O que no prova que eu saiba onde ela est. Oquei falei. A resposta : a senhora sabe, mas no vai dizer. A resposta Vannier disse, de repente que voc no bem-vindo aqui e o quanto

    antes der o fora, melhor para ns.Continuei olhando para a sra. Morny. Ela piscou para mim e disse para Vannier: No seja to hostil, querido. Voc muito charmoso, mas tem ossos finos. No talhado

    para o trabalho pesado. No verdade, garoto?

  • Falei: Eu no tinha pensado sobre isso, senhora Morny. Acha que o senhor Morny poderia e

    concordaria em me ajudar?Ela balanou a cabea: O que posso dizer? Pode tentar. Se ele no gostar de voc, ele tem uns caras por perto

    que podem chacoalh-lo. Acho que a senhora poderia me dizer, se quisesse. E como vai me convencer a faz-lo? seus olhos eram convidativos. Com todas essas pessoas em volta falei , como eu poderia? uma idia ela disse, e bebericou do seu copo, me observando por cima dele.Vannier se levantou muito lentamente. Seu rosto estava branco. Ele colocou a mo dentro

    da camisa e disse devagar, entre os dentes: D o fora, imbecil. Enquanto ainda consegue andar.Olhei para ele, surpreso. Que modos so esses? perguntei. E no adianta fazer de conta que voc carrega uma

    arma por baixo da camisa.A loira riu, mostrando uma bela fileira de dentes fortes. Vannier manteve a mo dentro da

    camisa e cerrou os lbios. Seus olhos pretos estavam afiados e vazios ao mesmo tempo, comoolhos de cobra.

    Voc me ouviu ele disse, quase suavemente. E no me subestime assim to rpido.Posso vir-lo do avesso no tempo que se leva para riscar um fsforo. E ento desvir-lo.

    Olhei para a loira. Seus olhos eram brilhantes, e sua boca parecia sensual e voluptuosa,nos fitando.

    Eu me virei e atravessei o gramado. No meio do caminho, olhei para trs, para eles.Vannier estava exatamente na mesma posio, com a mo dentro da camisa. Os olhos da loiraainda estavam bem abertos, e seus lbios, entreabertos, mas a sombra do guarda-sol haviavelado a sua expresso, que, quela distncia, poderia ser tanto de prazer quanto medo ouprazer por antever alguma coisa.

    Continuei caminhando sobre a grama, passei pelo porto branco e sobre o caminho detijolos sob as trepadeiras de rosa. Alcancei o final da passarela, me voltei, caminhei sem fazerbarulho at o porto e dei mais uma olhada neles. No sei o que poderia haver para olhar oupor que me importei, quando vi aquilo.

    O que vi foi Vannier praticamente esparramado por cima da loira, beijando-a.Balancei a cabea e voltei pelo caminho de tijolos.O motorista de olhos injetados ainda estava trabalhando no Cadillac. Tinha terminado de

    lav-lo e estava polindo os vidros e os metais com um pedao grande de flanela. Contornei ocarro e me pus ao seu lado.

    Como se saiu? ele me perguntou com o canto da boca. Mal. Sapatearam em cima de mim falei.Ele concordou com a cabea e continuou fazendo o barulho de uma escova deslizando

    sobre o plo de um cavalo. melhor tomar cuidado. O cara um bandido falei. Ou finge ser.

  • O motorista deu uma risada curta: Com aquele terno? Impossvel. Quem esse cara, Vannier? O que ele faz?O motorista se endireitou, colocou a flanela sobre o peitoril de uma das janelas e limpou

    as mos na toalha que agora estava enfiada na cintura da sua cala. Mulheres, seria o meu palpite ele disse. No um pouco perigoso? Brincar logo com essa mulher? Eu diria que sim concordou. Mas caras diferentes tm idias diferentes sobre o

    perigo. A mim, isso assustaria. Onde ele mora? Sherman Oaks. Ela costuma ir l. Demais, at. Voc nunca viu uma garota chamada Linda Conquest? Alta, morena, bonita, costumava

    cantar com uma banda? Por dois dlares, cara, voc est pedindo trabalho demais. Eu poderia chegar a cinco dlares.Ele balanou a cabea. No conheo. No por esse nome. Mulheres dos mais variados tipos vm aqui, a maioria

    bem gostosas. Eu no sou apresentado ele sorriu.Tirei para fora a minha carteira e coloquei trs verdinhas na sua mo mida. Acrescentei

    um carto de visitas. Gosto de caras baixos e mirrados falei. Parecem nunca ter medo de nada. Venha falar

    comigo uma hora dessas. Pode ser que eu faa isso, cara. Obrigado. Linda Conquest, hein? Vou manter os ouvidos

    atentos. At mais falei. Seu nome? Me chamam de Shifty*. Eu nunca soube por qu. At mais, Shifty. At mais. Arma embaixo do brao? Naquelas roupas? Impossvel. No sei falei. Ele fez um gesto. No sou contratado para trocar tiros com estranhos. Ora, aquela camisa que ele est vestindo s tem dois botes no alto. Eu percebi. Deve

    demorar uma semana para puxar um berro debaixo daquilo mas ele parecia um poucopreocupado.

    Acho que ele s estava blefando concordei. Se ouvir falar de Linda Conquest, ficareifeliz em discutir negcios com voc.

    Oquei, cara.Voltei pela passarela asfaltada para carros. Ele ficou l, coando o queixo.

  • Captulo seisDirigi ao redor do quarteiro, procurando um lugar para estacionar para que eu pudesse

    dar um pulo no escritrio antes de ir ao centro.Um Packard dirigido por um chauffeur saiu de onde estava estacionado, junto ao meio-fio,

    na frente de uma tabacaria a cerca de dez metros da entrada do meu prdio. Deslizei para avaga, tranquei o carro e sa. S ento percebi que eu tinha estacionado na frente de um cupcor de areia bem familiar. No precisava ser necessariamente o mesmo. Havia milhares domodelo. No havia ningum dentro. E ningum perto dele que estivesse usando um chapu depalha marrom com uma fita marrom e amarela.

    Contornei o carro pelo lado da rua e dei uma olhada no painel do veculo. No dizia dequem era. Por via das dvidas, anotei o nmero da placa nas costas de um envelope e seguiem direo ao meu prdio. Ele no estava no saguo de entrada, nem no corredor l de cima.

    Entrei no escritrio, olhei para o cho, onde normalmente fica a correspondncia, noencontrei nada, me convidei para um drinque oferecido pela garrafa do escritrio e fuiembora. Eu no tinha tempo a perder se quisesse chegar no centro antes das trs horas.

    O cup cor de areia ainda estava estacionado, ainda sem ningum dentro. Entrei no meucarro, liguei e sa, me juntando ao fluxo do trfego.

    Eu ainda no tinha chegado na esquina do bulevar Sunset com a Vine quando ele me achou.Continuei indo, sorrindo, e me perguntando onde ele havia se escondido. Talvez no carroestacionado atrs do dele. Eu no tinha pensado nisso.

    Fui na direo sul para pegar a rua Trs e segui at o final desta. O cup cor de areia semanteve a meia quadra de mim todo o caminho. Sa para a rua Sete e para a Grand, estacioneiprximo da esquina da rua Sete com a Olive, parei para comprar cigarros dos quais eu noprecisava, e ento caminhei na direo leste pela rua Sete sem olhar para trs. Na Springentrei no Hotel Metropole, caminhei casualmente at o enorme balco de cigarros na forma deferradura, acendi um cigarro e ento me sentei em uma das poltronas velhas de couro marromdo saguo.

    Um homem loiro de terno marrom, culos escuros e o j familiar chapu entrou no saguoe passou reto pelos vasos de palmeiras e pelas arcadas de gesso at o balco de cigarros.Comprou um mao de cigarros e o abriu ali mesmo, de p, apoiando com calma as costascontra o balco e concedendo ao saguo a honra de ser o objeto de um olhar de guia.

    Ele apanhou o troco, saiu dali e se sentou, com as costas voltadas para uma pilastra.Abaixou a aba do chapu por sobre os culos escuros e pareceu pegar no sono com um cigarroapagado entre os lbios.

    Eu me levantei, passeei um pouco pelo saguo e me deixei cair na poltrona ao seu lado.Olhei para ele de esguelha. Ele no se mexeu. Visto de perto, o seu rosto parecia jovem,corado e vistoso, e os plos loiros no queixo haviam sido barbeados com muito descuido. Portrs dos culos escuros, seus clios subiam e desciam rapidamente. Uma mo sobre o joelhoapertava e puxava o tecido, formando rugas. Havia uma verruga na sua bochecha direita, logo

  • abaixo do olho.Risquei um fsforo e levei a chama at o seu cigarro: Fogo? Oh, obrigado ele disse, muito surpreso. Ele fumou at que a ponta do cigarro brilhasse.Apaguei o fsforo, joguei-o na caixa de areia prxima ao meu cotovelo e esperei. Ele me

    olhou de relance vrias vezes antes de falar comigo. J no o vi em algum lugar antes? L na avenida Dresden, em Pasadena, essa manh.Eu via as suas bochechas ficando mais rosadas do que antes. Ele suspirou. Devo ser pssimo nisso ele falou. Cara, voc muito ruim concordei. Talvez seja o chapu. Esse chapu no ajuda falei. Mas no culpa dele, realmente. difcil ganhar algum dinheiro nessa cidade ele disse, com pesar. No se pode

    andar a p, voc vai falncia com as corridas de txi, se pega txi, e se voc usa o seuprprio carro, ele vai estar sempre em algum lugar onde no se consegue chegar rpido osuficiente. preciso ficar muito perto.

    Mas no precisa se pendurar no pescoo do sujeito falei. Voc queria algo comigo ouest apenas praticando?

    Achei que eu acabaria descobrindo se voc era esperto o suficiente que valesse a penaconversar.

    Sou muito esperto falei. Seria uma pena no falar comigo.Ele olhou com cuidado para trs da sua cadeira e para os dois lados de onde estvamos

    sentados e ento puxou para fora uma pequena carteira de pele de porco. Me deu um carto devisita novinho em folha tirado de l. Dizia: George Anson Phillips. Investigaesconfidenciais. Avenida North Wilcox, 1924, Edifcio Seneger, conjunto 212, Hollywood. Umtelefone com prefixo de Glenview. No canto superior esquerdo havia um olho aberto comsobrancelha arqueada, como numa expresso de surpresa, e pestanas muito longas.

    Voc no pode fazer isso falei, apontando para o olho. Esse o logotipo doescritrio Pinkertons. Est roubando a clientela deles.

    Ora, com os diabos ele disse. O pouco que eu consigo no os atrapalha.Dei um peteleco com a unha no carto, cerrei os dentes e enfiei o carto no bolso. Quer um dos meus, ou j completou o dossi sobre a minha pessoa? Ah, sei tudo sobre voc ele disse. Eu era auxiliar do xerife de Ventura na poca em

    que voc estava trabalhando no caso Gregson.Gregson era um trambiqueiro da cidade de Oklahoma que fora perseguido em todo

    territrio dos Estados Unidos durante dois anos por uma das suas vtimas, at que ficou tonervoso que atirou no frentista de um posto de gasolina que o confundiu com um conhecido.Parecia algo de sculos atrs.

    Falei: Comece da. Lembrei do seu nome quando o vi no registro, no painel do seu carro, esta manh. Ento,

  • quando o perdi no caminho at a cidade, vim para c. Eu ia me apresentar e falar com voc,mas seria uma violao de sigilo. Deste jeito, como se eu no pudesse evitar.

    Outro louco. Com esse, eram trs num dia, sem contar a senhora Murdock, que poderia serevelar uma louca, tambm.

    Esperei enquanto ele tirava os culos escuros, os limpava, colocava-os novamente e davamais uma boa olhada nas redondezas. Ento ele disse:

    Pensei que podamos, talvez, entrar num acordo. Fazer uma espcie de sociedade. Eu vio cara entrando no seu escritrio, ento imaginei que ele tivesse contratado voc.

    Sabe quem era ele? Estou investigando ele falou, e a sua voz parecia montona e nem um pouco

    empolgada. E no estou conseguindo absolutamente nada. O que ele fez para voc? Bem, estou trabalhando para a mulher dele. Divrcio?Ele olhou ao redor com muito cuidado e disse, numa voz baixa: o que ela diz. Mas tenho minhas desconfianas. Ambos querem alguma coisa falei. Cada um tentando conseguir algo do outro.

    Cmico, no? De minha parte, no acho to engraado assim. Um cara est na minha cola a maior parte

    do tempo. Um cara muito alto com um olho estranho. Despisto ele mas depois de algunsinstantes o vejo de novo. Um cara muito alto. Como um poste de luz.

    Um cara muito alto com olhos estranhos. Baforei pensativamente. Algo que tenha a ver com voc? o loiro me perguntou, um pouco ansioso.Balancei a cabea e joguei meu cigarro na caixa de areia. Nunca o vi, que eu saiba.Olhei para o meu relgio: Melhor nos encontrarmos e conversarmos sobre isso direito, mas agora no posso.

    Tenho um compromisso. Eu gostaria muito ele disse. Muito. Vamos, ento. Meu escritrio, meu apartamento, seu escritrio, ou onde?Ele coou o queixo malbarbeado com a unha do dedo completamente roda. Meu apartamento ele disse, finalmente. No est na lista. Me empreste um pouco

    aquele carto.Ele virou o carto sobre a palma da mo quando o entreguei e escreveu lentamente, com

    uma pequena lapiseira de metal, apertando a lngua entre os lbios. Ele estava ficando maismoo a cada minuto. Agora, no parecia ter mais que vinte anos, mas tinha que ter, pois o casoGregson tinha sido seis anos antes.

    Ele guardou a lapiseira e me entregou o carto. O endereo que ele havia escrito era ruaCourt, 128, Apartamentos Florence, 204.

    Olhei para ele com curiosidade. Rua Court, em Bunker Hill?Ele concordou com a cabea, sua pele clara corando completamente.

  • No l essas coisas falou, mais do que rpido. No tenho tido sorte ultimamente.Voc se importa?

    No, por que me importaria?Eu me levantei e estendi a mo. Ele a apertou e a deixou cair, e ento enfiei a mo dentro

    do meu bolso e esfreguei a palma no leno ali guardado. Olhando para o seu rosto mais deperto eu vi que havia suor sobre seu lbio superior e dos lados do nariz. No estava to quenteassim.

    Comecei a caminhar, ento me virei, me inclinei prximo do seu rosto e disse: Quase todo mundo pode me enganar mas, s para ter certeza, uma loira alta com olhos

    inocentes, no? Eu no os chamaria de inocentes ele falou.Recompus a minha expresso enquanto disse: E, c entre ns, essa histria do divrcio uma grande farsa. A coisa completamente

    outra, no? Sim ele disse suavemente. E uma coisa da qual gosto menos a cada minuto. Aqui.Ele tirou algo do bolso e deixou cair na minha mo. Era uma chave achatada. Assim voc no precisa ficar esperando no corredor, se eu no estiver em casa. Tenho

    duas dessas. A que horas acha que pode chegar? L pelas quatro e meia, pois j tarde. Tem certeza que quer me dar essa chave? Ora, estamos no mesmo barco ele disse, olhando para cima inocentemente, na minha

    direo. Ou to inocentemente quanto possvel por trs daquele par de culos.Na sada do saguo olhei para trs. L estava ele, sentado pacificamente, com o cigarro

    queimado at a metade agora apagado nos lbios e com a espalhafatosa fita marrom e amarelado chapu to discreta quanto um anncio de cigarro na contracapa do Saturday Evening Post.

    Estvamos no mesmo barco. Ento eu no o enganaria. Simples assim. Eu podia ficar coma chave do seu apartamento, entrar e me sentir em casa. Eu iria calar seus chinelos, beber asua bebida, levantar o seu tapete e contar as notas de mil dlares embaixo dele. Estvamos nomesmo barco.

  • Captulo seteO Edifcio Belfont constitua-se de oito andares comuns que foram prensados entre uma

    grande loja verde e prateada de roupa masculina e uma garagem de trs andares mais subsoloque fazia o barulho de uma jaula de lees na hora da refeio. O pequeno e escuro saguo erato sujo quanto um pau de galinheiro. O quadro com os nomes dos moradores tinha um bocadode espao vazio. Apenas um dos nomes me chamou a ateno; eu j o conhecia. Oposta aoquadro, uma outra placa, grande, inclinava-se contra a parede de mrmore falso. Dizia: Aluga-se espao adequado para tabacaria. Falar conjunto 316.

    Havia dois elevadores gradeados mas apenas um parecia estar funcionando, sem muitaclientela. Um velho estava sentado dentro dele, com gestos lentos e olhos midos sobre umsaco de aniagem dobrado em cima de um banco de madeira. Parecia estar sentado ali desde aGuerra Civil, e parecia ter se dado mal nela.

    Entrei no elevador e falei oito, ele brigou com as portas pantogrficas at fecharem,puxou a sua manivela, e nos arrastamos para cima, furtivamente. O velho respirava comdificuldade, como se estivesse carregando o elevador nas costas.

    Saltei no meu andar e comecei a caminhar pelo corredor, e atrs de mim o velho sedebruou para fora do elevador e assou o nariz com os dedos dentro de uma caixa de areiacheia de lixo.

    O escritrio de Elisha Morningstar ficava nos fundos, do lado oposto sada de incndio.Eram duas salas, e em ambas as portas estava escrito, em letras pretas pintadas sobre o vidrogranulado: Elisha Morningstar. Numismata. A porta mais adiante dizia: Entrada.

    Girei a maaneta e entrei em um cmodo pequeno e estreito com duas janelas, umapequena mesa surrada com uma mquina de escrever, vrios quadros nas paredes com velhasmoedas enfiadas em depresses cada uma com uma etiqueta amarela com inscries embaixo,dois arquivos de metal marrom no fundo contra a parede, janelas sem cortinas e um tapetecinza-p to pudo que seria quase impossvel reparar nos rasges, a no ser que setropeasse em um deles.

    Uma porta interna de madeira estava aberta nos fundos, do outro lado dos arquivos, atrsda pequena mesa de datilografia. Atravs da porta vinham os pequenos rudos que um homemfaz quando no est fazendo nada. Ento a voz spera de Elisha Morningstar chamou:

    Entre, por favor. Entre.Avancei e entrei. O escritrio, propriamente dito, era to pequeno quanto a outra sala, mas

    tinha muito mais coisas. Um cofre verde quase bloqueava a passagem na primeira metade doescritrio. Por trs disso, uma velha mesa de mogno contra a porta de entrada servia de apoiopara alguns livros velhos, algumas revistas antigas surradas e um monte de poeira. Na parededos fundos, uma janela estava aberta algumas polegadas, sem no entanto atrapalhar o cheiro demofo. Num chapeleiro, um chapu preto seboso dependurado. Havia trs mesas de pernaslongas com tampos de feltro negro e sujo e mais moedas por baixo dos mostradores de vidro.Havia uma mesa pesada, com o tampo forrado de couro escuro, no meio da sala. Sobre ela, os

  • costumeiros objetos de escritrio e, ainda, um par de balanas de joalheiro embaixo de umaredoma de vidro, duas lentes de aumento com acabamento de metal e uma lupa de joalheirosobre um bloco de anotaes de couro, ao lado de um leno amarelo de seda rasgado emanchado de tinta.

    Na cadeira de rodinhas junto mesa, estava sentado um sujeito idoso, num terno cinza-escuro com lapela alta e botes em excesso na frente. O cabelo dele era branco, arrepiado ecomprido o suficiente para fazer ccegas nas orelhas. Uma faixa calva cinza-plido brilhavano topo da cabea, como uma rocha no cume de uma montanha. Cabelos saam para fora dasorelhas. Longos o suficiente para apanhar uma traa no ar.

    Ele tinha olhos escuros e astutos, e embaixo de cada um deles pendia um bolso de cormarrom-arroxeado e tracejado por uma rede de rugas e veias. Suas bochechas eram brilhantes,e seu nariz pequeno e pontudo parecia ter olhado de cima para inmeras doses de lcool, nosureos tempos. Um colarinho alto, estilo anos 20, que nenhuma lavanderia que se prezeaceitaria lavar roava o seu pomo-de-ado, e uma gravata-borboleta fina empurrava umpequeno e duro n para fora da parte inferior do colarinho, como um rato se preparando parasair do buraco.

    Ele disse: Minha secretria teve de ir ao dentista. o senhor Marlowe?Confirmei. Por favor, sente-se ele acenou uma mo magra em direo cadeira do outro lado da

    mesa.Sentei. Tem alguma identificao, presumo?Mostrei-a. Enquanto ele a examinava, eu o farejava do outro lado da mesa. Ele tinha um

    cheiro seco de mofo, como o de um chins no muito limpo.Ele colocou o meu carto com a face para baixo sobre a mesa e dobrou as mos sobre ele.

    Seus olhos negros astutos no perdiam nada. Bem, senhor Marlowe, em que posso lhe ajudar? Fale-me sobre o Dobro Brasher. Ah, sim ele disse. O Dobro Brasher. Uma moeda interessante. Ele levantou as

    mos e fez uma espcie de torre empurrando as pontas dos dedos para baixo, contra a mesa,como um advogado de famlia antiquado se preparando para dissertar sobre algumpreciosismo gramatical. Sob alguns aspectos, a mais interessante e valiosa de todas asantigas moedas americanas. Como sem dvida o senhor sabe.

    Tudo o que no sei sobre moedas antigas americanas poderia encher o Rose Bowl*. mesmo? ele disse. mesmo?