Jamie Cubero e o Movimento Anarquista No Brasil - Jaime Cubero - Bpi

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BPI – Biblioteca Pública Independente www.bpi.socialismolibertario.com.br MAL-BH – Movimento Anarquista Libertário www.socialismolibertario.com.br JAIME CUBERO E O MOVIMENTO ANARQUISTA NO BRASIL Entrevista a Jamie Cubero Revista Utopia #8, José M. Carvalho Ferreira Esta entrevista realizada por J. M. Carvalho Ferreira a Jaime Cubero tinha como grande objectivo dar a conhecer a vida de um grande homem e sua articulação com o movimento anarquista no Brasil. Embora sabendo da sua fragilidade física, a sua morte em Maio de 1998 não era de todo previsível. Foi uma enorme perda para o anarquismo no Brasil e, porque não dizê-lo, para o pulsar das ideias e das práticas acratas no mundo. Com esta entrevista procura-se tão- só compreender a evolução do anarquismo no Brasil nas últimas décadas e revelar a figura do homem que nos deixou. Estamos hoje a 28 de Maio de 1997 para entrevistar um grande amigo e companheiro - Jaime Cubero - figura sobejamente conhecida no Brasil dispensando quaisquer adjectivos, para a revista UTOPIA. Vamos tentar fazer aqui algo que fique para a história. Vamos tentar dialogar no sentido de articular a figura de Jaime Cubero com as ideias e práticas do anarquismo no Brasil e mesmo no mundo. Assim, a minha primeira pergunta é: Como é que enquanto pessoa, enquanto ser humano, emergiu para a prática e as ideias do anarquismo?

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    MAL-BH Movimento Anarquista Libertrio www.socialismolibertario.com.br

    JAIME CUBERO E O MOVIMENTO ANARQUISTA NO BRASIL

    Entrevista a Jamie Cubero

    Revista Utopia #8, Jos M. Carvalho Ferreira

    Esta entrevista realizada por J. M. Carvalho Ferreira a Jaime Cubero tinha como grande objectivo dar a conhecer a vida de um grande homem e sua articulao com o movimento anarquista no Brasil. Embora sabendo da sua fragilidade fsica, a sua morte em Maio de 1998 no era de todo previsvel. Foi uma enorme perda para o anarquismo no Brasil e, porque no diz-lo, para o pulsar das ideias e das prticas acratas no mundo. Com esta entrevista procura-se to-s compreender a evoluo do anarquismo no Brasil nas ltimas dcadas e revelar a figura do homem que nos deixou.

    Estamos hoje a 28 de Maio de 1997 para entrevistar um grande amigo e companheiro - Jaime Cubero - figura sobejamente conhecida no Brasil dispensando quaisquer adjectivos, para a revista UTOPIA. Vamos tentar fazer aqui algo que fique para a histria. Vamos tentar dialogar no sentido de articular a figura de Jaime Cubero com as ideias e prticas do anarquismo no Brasil e mesmo no mundo. Assim, a minha primeira pergunta : Como que enquanto pessoa, enquanto ser humano, emergiu para a prtica e as ideias do anarquismo?

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  • Eu comecei muito jovem. Eu tinha um vizinho espanhol que era anarquista e os filhos dele conviviam connosco. Jogvamos todos juntos na rua. Isto era na altura em que ainda no tinha dez anos, hoje tenho 70. Vejam s quanto tempo j passou! Estvamos mais ou menos em 1936/1937, ou seja antes de 1940. Esse meu amigo chama-se Liberto - hoje por acaso meu cunhado, porque casou com uma irm gmea. Esse meu amigo visitava-me quando eu estava doente e conversvamos muito. Como na altura eu era catlico por causa das aulas que recebia no grupo escolar ns conversvamos muito sobre religio - ns ficamos rfos quando morreu meu pai, com 33 anos. ramos seis irmos, a menor com dois meses e o maior com 8 anos, e no intervalo nasceram os gmeos: eu e minha irm Aurora. a partir daqui que uma srie de fatos iro influir no meu pensamento.

    Dividiram os irmos de tal forma que 3 foram para a av materna (o av j tinha falecido) e 3 vieram para So Paulo para a av materna. Minha me no casou de novo, da as dificuldades que tinha para sustentar seis pessoas. Na altura a misria era muita. Quando venho para So Paulo, minha av matricula-me na escola, mas no 2 ano porque no primeiro j no havia vaga. Foi assim que eu s fiz trs anos de escolaridade: do 2 ao 4 ano. Nesta fase que eu comeo a estabelecer relaes com outros vizinhos nossos, de entre os quais o Liberto de que j falei, que marcaro profundamente a minha vida. No grupo escolar era obrigatrio o ensino religioso (religio catlica) - para me matricular minha av teve de dizer que eu era catlico seno no me aceitavam. Nessas aulas de religio (tinha eu 7 anos) esse meu amigo Liberto que tinha outra formao (anticlerical), comea a fazer a minha cabea. Comecei a Ter uma curiosidade enorme pela religio. Logo depois comeamos a fazer debates com o padre, com catlicos etc. Comeou tudo aqui. Nesse tempo, j depois de Ter sado da escola e estar a trabalhar numa fbrica (com 11 anos) onde trabalhava 10 horas por dia, no fim do dia ns nos reunamos. Ia Ter a casa desse meu amigo e do irmo dele (que era sapateiro que trabalhava em casa) onde fazamos leituras em conjunto e comentvamos tudo o que lamos. Um dos livros que viria a marcar a minha formao foi o livro chamado "Manolim" (livro muito divulgado nos meios anarquistas na 1 e 2 dcada deste sculo) Foi com este livro que eu aprendi o espanhol

  • porque estava escrito em espanhol. Discutamos bastante, fazamos frequentemente leituras comentadas por todos.

    A partir da, desenvolvemos essas actividades de leituras comentadas e resolvemos um dia, j adolescentes com 16/17 anos, criar (sem contactos nenhum com o movimento anarquista) o que pomposamente resolvemos chamar de "Centro Juvenil de Estudos Sociais". Convidvamos para a conviver todas as moas das nossas relaes. As pessoas diziam que o que queramos era "paquerar" (namorar) as raparigas. E de facto, dali saram algumas unies, inclusive a minha com a Maria (companheira da minha vida), a do Liberto com minha irm e outras. Foi a que comeou tudo.

    Depois disso, quando que entras em relao estreita com o movimento anarquista?

    Em 1945 no fim da Segunda Guerra Mundial e com a queda do Getlio Vargas, reabrem-se as portas do Centro. O nosso grupo descoberto por algum que pertencia ao Centro e que nos prope que o Centro possa participar nos nossos debates. Foi assim que tivemos a presena, numa das nossas reunies, do Edgar Leuenroth, anarquista destacado, e a partir da entrmos em contacto frequente com o Centro de Cultura Social . Fomos convidados para participar nas mltiplas actividades do Centro de Cultura Social em 1945.

    Quais as principais actividades que desenvolveram nessa altura?

    No seio do nosso grupo fazamos essencialmente estudos, distribuamos livros e fazamos com que as pessoas emitissem/escrevessem as suas opinies sobre os livros que tinham lido, o que faziam muitas vezes nas nossas reunies. Quando passmos a fazer parte do Centro de Cultura Social as actividades multiplicaram-se. Passmos a participar nas reunies do Centro, nas conferncias, enfim em todas as actividades. Foi assim que um irmo meu que tinha aptido para o teatro entra para um grupo de teatro do Centro.

    No casamento do meu cunhado Liberto com minha irm Aurora estiveram presentes muitos companheiros que pertenciam ao

  • Centro, incluindo Edgar Leuenroth e o director do Jornal "A Plebe". Na altura fiz um discurso sobre o "amor livre" e foi ento que Edgar me convidou para fazer parte da Comisso de Gesto do Centro de Cultura Social e participar em todas as actividades do Centro e do prprio movimento. Nessa ocasio tnhamos j bem a noo das iniciativas do movimento anarquista e tnhamos a conscincia de que tinha de ser um movimento especfico organizado por companheiros convictos. Para algum entrar para o movimento tinha de ser conhecido de algum, isto , tinha de ser apresentado por dois companheiros por uma questo de confiana.

    Logo aps a queda da ditadura de Getlio organizou-se a Unio Anarquista de So Paulo. Faziam-se conferncias ao sbado. Comemorvamos datas, por exemplo a da revoluo espanhola. O local do Centro de Cultura Social passou a ser ocupado tambm pelo Movimento espanhol no exlio, o qual passou a participar bastante nas actividades do Centro. Crimos mesmo dois grupos de teatro, um portugus e outro espanhol.

    Houve uma reanimao do Centro de Cultura Social, do Movimento Libertrio Anarquista aps a 2 guerra mundial e a queda da ditadura em 1945.. Sabemos que o Centro teve muita importncia para o movimento libertrio no Brasil nos anos 10 e 20. Aps a ditadura quais as articulaes, quais as incidncias das actividades do Centro no movimento operrio?

    Discutamos bastante a directriz do movimento, a participao do movimento operrio etc. Fazamos congressos para reanimar a actividade do centro e para aumentar a participao operria. Num desses congressos, que foi muito divulgado na revista "Cruzeiro", conseguiu-se uma entrevista de Roberto das Neves, portugus militante muito importante e muito conhecido no Brasil pelos seus livros e editora (de livros anarquistas) que os publicava "Germinal". Na sua luta salazarista foi vtima de fortes perseguies, chegando inclusive a ser torturado (simularam um acidente mas o que houve foi uma tentativa de assassinato) porque essas pessoas que ele hostilizava com uma linguagem muito dura no o deixavam. Articulmos tambm as nossas actividades com as do Movimento do Rio de Janeiro. Logo a seguir ditadura havia uma srie de

  • pessoas como Edgar Rodrigues de entre muitos outros que faziam parte do movimento e que passaram a ser contactadas para reunies. Fazamos vrias reunies entre vrios estados mas de carcter eminentemente anarquista. Editmos mesmo um jornal, no ps ditadura, "Relaes Anarquistas" no Rio de Janeiro, vindo depois o "Aco Directa". Depois ainda fiz parte tambm do jornal "A Plebe". Tnhamos uma actividade tremenda. No havia descanso. Trabalhvamos de segunda a segunda. Fazamos a nossa propaganda via teatro, jornais e comcios que convocvamos para recintos mais ou menos fechados porque nessa altura e ainda hoje s se pode falar em local pblico pedindo autorizao/alvar de ordem poltica e social. Na onda poltica do ps ditadura os anarquistas procuraram ocupar um espao de destaque e conseguiram-no consideravelmente.

    Do que tenho lido do Jaime Cubero que nas primeiras dcadas do nosso sculo havia uma actividade essencialmente operria, que se circunscrevia s fbricas: greves, escolas, teatro e toda uma srie de prticas operrias. Aps a queda de Getlio e o fim da Segunda Guerra Mundial h um ressurgimento do movimento anarquista embora as prticas estejam agora mais circunscritas a publicaes, mais circunscritas aqui em So Paulo e no Rio de Janeiro, no estando to ligadas ao mundo fabril. Ser assim?

    Fizemos de facto vrias tentativas no sentido de fazer participar o movimento operrio. Cada qual procurou ingressar num sindicato.. Eu, que era sapateiro, assistia a reunies do sindicato onde estava presente um membro do Ministrio do trabalho para fiscalizar. As discusses nestas reunies eram muito difceis porque os comunistas queriam impor-se, queriam fazer sempre tudo de acordo com a lei. Ns queramos lutar num espao pblico, nas ruas, lugar sempre ocupado pelos anarquistas. O movimento anarquista aqui no Brasil tem tradio de estar sempre muito ligado ao operariado. Chegou a ter propores gigantescas. O movimento anarquista foi um poderoso instrumento histrico no Brasil. Todas as leis trabalhistas condensadas na legislao no ps ditadura foram conquistas, prticas concretas dos anarquistas sempre em prole do movimento operrio. Como exemplo disso vou falar de uma tese de

  • doutoramento que foi defendida aqui h cerca de 4 meses e que era sobre a greve de 1917. A proporo dessa greve foi enorme. Aps a morte de um operrio espanhol chamado Jos Martinez, assassinado pela polcia, no seguimento do enterro dele foi a que eclodiu o movimento. Chegaram a participar nessa greve mais de 200 mil pessoas quando a cidade pouco mais tinha que 400 mil. Logo, mais de metade da populao da cidade envolveu-se na greve. Foi a maior greve geral da histria do Brasil.

    O movimento operrio, aps a queda da ditadura do Getlio, procurou implantar-se em todos os lugares. O Herbert Marcuse, considerado um guru do Maio de 68 em Paris, dizia que os elementos de contestao do sistema acabariam por ser coarctados pelo sistema e passariam a fazer parte do sistema.

    Ora j no Brasil, Florentino de Carvalho, um dos grandes militantes do Brasil que tem um livro famoso "Da escravido liberdade" discutia com Edgar Leuenroth sobre estas questes: preconizava que o sindicalismo acabaria como uma extenso do Estado; que as reivindicaes seriam tomadas como elementos de rentabilidade dos sindicatos.

    Quando se chega aos anos 50 Edgar preocupa-se muito com o movimento operrio. Organizmos ento o Movimento de Orientao Sindical (MOS) que promoveu uma srie de actividades tendo durado at ao golpe militar que instaura a nova ditadura em 1964. A posio do MOS era combater o sindicalismo fascista.

    No tiveram tambm uma nova concorrncia que foi, em certa medida, tambm ela a causa da perca de influncia do movimento anarquista nas suas mltiplas vertentes, concorrncia essa que adveio do advento histrico da revoluo russa. Ser que este acontecimento teve importncia na "derrocada" do anarco-sindicalismo?

    A minha viso do problema a seguinte. Para determinado evento histrico comum procurar uma causa. E s vezes delimitar essa causa. Muita gente imputa ao Partido Comunista essa perca de influncia. O Partido Comunista fundado em 1922 e a partir da o movimento anarquista comea a perder influncia. Na dcada 30, j

  • toda uma srie de legislao trabalhista tinha cariz fascista. Os sindicatos que surgiram eram fascistas. Ento qualquer sindicato de organizao operria que no pertencesse ao estado era combatido como clandestino. Estes no podiam organizar-se em liberdade. Mas os anarquistas resistiram bastante. Em 1934, quando houve um grande confronto no centro da cidade de So Paulo entre anarquistas e fascistas - nome dado aos integralistas aqui no Brasil - na Praa da S, os trabalhadores que pertenciam Federao Operria de So Paulo resolveram enfrentar os integralistas (fascistas) que se propunham fazer uma marcha integralista na cidade de S. Paulo semelhana da marcha que havia tido lugar em Roma no tempo do Moussoulini.

    Essa marcha integralista estava marcada para o dia 7 de Outubro de 1934. Os anarquistas organizaram-se para os enfrentar e combinaram tambm um acto para a Praa da S nesse mesmo dia. O Jornal "A Plebe" que divulgava j a ascenso do fascismo divulgou tambm esse acto anarquista. Para esse confronto, os companheiros anarquistas disseram que estariam l nem que fossem mortos. Chegado o dia os companheiros colocam-se em lugares estratgicos na Praa da S e armados (porque a poca no era para brincadeiras, era de luta).

    Quando os fascistas chegaram, todos de camisas verdes (em Itlia eram os camisas pretas), comearam a concentrar-se esperando 500 mil pessoas que no chegaram a tantas, colocando na frente da marcha mulheres e crianas por pensarem que ningum dispararia contra mulheres e crianas. Os anarquistas esperaram que mulheres e crianas passassem e depois tendo um dos companheiros - Simo Rodovich percebido que havia metralhadoras que estavam prontas a disparar sobre os operrios, ele toma conta de uma delas e comea ento um tiroteio enorme. Morreram 6 pessoas, muitas delas ficaram feridas e algumas morrendo depois devido aos ferimentos, mas o que de salientar que houve uma debandada enorme, a passeata dos fascistas abortou. Isto para demonstrar que o movimento anarquista no morreu, a manifestao de 1934 demonstra que ele estava bem vivo.

  • Havia uma revista do Partido Comunista da poca "Divulgao Marxista", que era suspeita quando dava dados. O Partido Comunista no chegava na altura a ter 1000 filiados no partido, contudo chegaram quase a dizer que tinham sido eles a enfrentar os integralistas. Irnico no ? Em contrapartida a Federao Operria de So Paulo tinha mais de 80 sindicatos que no pertenciam ao Estado.

    Pr tudo isto no podemos dizer que houve s um factor que tivesse contribudo para o refluxo do movimento anarquista tendo antes havido uma conjugao de factores. O Movimento no foi capaz de reflectir sobre o que se estava a passar a nvel mundial. Deixou-se ultrapassar pelos acontecimentos. Mas durante muito tempo teve superioridade face ao Partido Comunista, partido este que em 1922 j pertencia ao governo. Nessa conjugao de factores inclui-se no s o Partido Comunista como tambm todos os outros partidos que aderiram ao governo, ou seja, ao sindicalismo oficial (menos os anarquistas que o no fizeram). Mas... na minha opinio o principal factor foi a represso da poca. Foi um fenmeno mundial. Basta pensar nas ditaduras de Salazar em Portugal, Peron na Argentina, Franco em Espanha, Hitler na Alemanha, Mussolini em Itlia, etc Se pensarmos no perodo histrico em que as ditaduras imperaram podemos Ter aqui o principal factor causal do refluxo da importncia do movimento anarquista.

    Tendo a noo que se registou um refluxo, h uma tentativa aps a 2 guerra mundial para activar de novo o movimento. Como o fizeram? Circunscreveram-se apenas a publicaes? Que actividades desenvolveram?

    Muitas actividades como conferncias, cursos e outras. Em So Paulo chegmos a ter milhares de alunos. Procurmos ocupar espaos fsicos novos. Na Universidade de S. Paulo havia um Conselho de que fazia parte Edgar Leuenroth e muitos outros de grande projeco. Passmos a ter uma actividade considervel tendo em conta o perodo de represso que tnhamos vivido e ainda se vivia. Qualquer actividade de teatro juntava sempre centenas de pessoas. Editmos uma srie de jornais, mesmo depois do jornal "Aco Directa" e nos anos que antecederam a nova ditadura. O

  • movimento anarquista, como todos os outros, tem momentos, circunstncias em que consegue grande projeco e outros momentos menos ureos. Existe contudo um meio anarquista que gravita em torno de um grupo que vai crescendo e alargando-se por vrias zonas.

    Em 1964 instala-se uma nova ditadura, no ?

    Em 1954 eu pertencia ao teatro do Centro de Cultura Social e o Edgar tratava das conferncias, reunies do centro etc. preciso no esquecer que o movimento especfico anarquista no pblico, clandestino. O Estado jamais daria autorizao para combater o Estado, s deu licena para se ter o espao fsico do Centro. Mas desenvolvemos sempre actividades especficas pertencentes a um meio anarquista. Crimos mesmo a Unio Anarquista de So Paulo. Nos dias de reunio da Unio apareciam sempre muitas pessoas. Mas mesmo com os cuidados todos que tnhamos em relao s pessoas que queriam assistir, acabavam sempre por se infiltrar policiais que faziam depois verdadeiras actas das nossas reunies.

    Quer dizer que a actividade clandestina afinal no chega?

    Claro que no chega. Tanto no chega que, uma tese recente investigou sobre as pessoas que pertenceram ao Centro de Cultura Social, e muitas foram descobertas atravs desses registos policiais. Nesses registos aparece o nome de Mrio Santos, que era um orador mpar.

    Quais os efeitos negativos para o movimento anarquista da ditadura instalada em 1964?

    A ditadura de 1964 foi terrvel. Praticamente anulou tudo. Ns resistimos at 1968 quando foi institudo o Acto Constitucional, que foi a lei mais repressiva que a ditadura promulgou. Foi um aperto. Eliminou-se toda e qualquer actividade pblica que vinha sendo exercida. Tudo o que se podia fazer era na clandestinidade., correndo todos os riscos inerentes s circunstncias. Quando soubemos da Revoluo, isto , do golpe militar de 1964 conseguimos resistir at 1968, ou seja, at dita lei. Tnhamos ainda um jornal e todas as actividades do Centro. Uma forma de poder

  • continuar em actividade e resistindo foi criando o Centro de Cultura Social a que ns chamvamos o "Laboratrio de Ensaio", onde com marceneiros, carpinteiros e outros operrios construmos um pequeno teatro de arena, que levava cerca de 60 pessoas bem instaladas. Levvamos cena peas inseridas nas circunstncias polticas. Um exemplo foi uma pea chamada "Os Generais", cujo tema era como transformar um general num ser humano. Por aqui pode ver-se a nossa actuao.

    O nosso teatro foi registado como uma escola de teatro. A polcia aparecia muito mas dizamos que estvamos numa aula e assim l amos correndo os nossos riscos, mas sempre desenvolvendo as nossas actividades culturais --exposies de arte, recitais de poesia, etc. - sob uma represso tremenda mas sempre, sempre resistindo. Com a instituio desse Acto poltico, a represso intensificou-se e encerrmos provisoriamente - que durou 16 anos, s reabrimos em 1985 - algumas das actividades do laboratrio mas fomos desenvolvendo aces na mesma como seminrios sobre racismo, sindicalismo e outros temas. Fazamos tambm comemoraes de datas, relativas revoluo espanhola por exemplo e outras.

    Entre 1954 e 1964 esteve no Rio de Janeiro. Em 1964 estava em So Paulo mas antes esteve no Rio de Janeiro. Fale-me um pouco da greve em que participou dentro do Jornal o Globo.

    Trabalhei no Jornal o Globo durante 10 anos. Eu antes trabalhava como sapateiro, sendo conhecido pela minha capacidade intelectual. Eu no fiz curso nenhum, como disse antes, s tenho 3 anos de curso primrio. O resto se deve ao meu autodidatismo, sendo o Centro de Cultura Social a minha grande escola. Eu consegui registar-me como jornalista profissional no Rio de Janeiro para trabalhar no jornal o Globo. Eu fui demitido na sequncia do apoio a uma greve de solidariedade que o sindicato dos jornalistas profissionais resolveu apoiar a greve dos jornalistas grficos. Como a nossa negociao salarial estava quase na hora, decidimos apoiar os grficos e depois eles apoiar-nos-iam a ns. Foi assim que entrmos na greve directa e que tivemos uma participao muito importante porque montmos piquetes para no deixar os jornais sair. Estvamos praticamente 24 horas acordados para desenvolver toda

  • uma srie de actividades. Depois de a greve terminar, s no Rio foram demitidos cerca de 80 jornalistas. O representante do nosso sindicato marcou um encontro com o Roberto Marinho com o objectivo de sermos readmitidos. Alguns colegas, instrudos por advogados, negaram a sua participao na greve, dizendo que tinham ficado em casa e.. Eu fiquei um pouco revoltado e ento eu disse: eu no sei o que cada companheiro fez mas eu participei plenamente em tudo, eu participei na greve, eu fiz as actas do sindicato porque o nosso salrio incompatvel com a nossa profisso, etc. Disse ainda que no me eximia de participar nesta luta porque era uma luta importante. Roberto Marinho no estava habituado a lidar com tanta franqueza.

    Eu voltei ao jornal, no espontaneamente. Eles mandaram-me chamar , por parte do sindicato, e soube ento que Roberto Marinho tinha ficado surpreendido comigo e com o meu discurso, propondo-se ento a aceitar-me no jornal. Eu disse que sim mas com uma condio: que todos os outros demitidos fossem tambm admitidos, que todos voltassem ao trabalho. Eles no aceitaram e esta foi a primeira vez.

    Mas mandaram-me chamar uma segunda vez. Nesta segunda vez Roberto Marinho disse-nos e imps: vocs esto aqui mas concordo que voltem com uma condio: assinando uma carta, individual ou colectiva, declarando que esto de acordo com a orientao do Globo, se arrependem de ter feito greve, que nunca mais faro e prometo no utilizar esta carta no Ministrio do Trabalho.

    Nesta segunda vez, neste encontro entre sindicato e jornal, mandei dizer que eu s voltava a trabalhar no jornal se Roberto Marinho escrevesse uma carta em que declarasse que estava arrependido de me ter demitido, que nunca mais iria incorrer no mesmo risco, e que eu prometia nunca usar esta carta etc No aceitou e foi o fim. No voltei mais.

    A greve durou quantos dias?

    Durou 4 dias.

  • Foi ento para So Paulo e as actividades, para alm daquelas do Centro Cultural, quais eram? Qual a diferena entre os dois tipos de resistncia?

    Quando foi promulgado o Acto da ditadura ns procurmos o Pedro Catarro e dissemos que tnhamos uma edio do jornal que no conseguamos editar porque se o fizssemos ramos presos. Ele a princpio no acreditou, mas depois l o convencemos e o jornal foi editado e distribudo. Como ficmos reduzidos a um grupo muito pequeno, resolvemos cancelar as actividades do centro, mas muitos eram de opinio que era impossvel fechar o Centro. Havia um Centro no Rio de Janeiro que foi fechado e contaram-nos o que l se tinha passado. A polcia invadiu o Centro, pensando que tinha apanhado peixe grado, faziam ento inquritos policiais. Prenderam uma srie de companheiros nossos, alguns muito jovens. O nvel policial era muito baixo. Mas os que faziam os inquritos eram de nvel mais elevado militarmente. O Roberto das Neves uma vez que era conduzido para o "Galeo", vira-se para um polcia e diz-lhe que apesar da sua cara siamesa tinha um ar de pessoa. O polcia diz-lhe que apesar do elogio no se "safava daquela".

    Conte-me um pouco o que pensa sobre o Roberto das Neves.

    O caso do Roberto das Neves paradigmtico. O Roberto das Neves, em Portugal escreveu um livro sobre as profecias onde dizia que o Hitler, o Franco, o Salazar morreriam. Escreveu o livro com o nome de Ernesto, espcie de profeta alemo. Ele era uma figura incrvel. Hostilizava os racistas portugueses, que estavam, via consulados portugueses, numa srie de instituies que ele hostilizava. Utilizava poesias satricas, utilizando uma linguagem muito forte. Teve consequncias numa srie deles, deram-lhe mesmo uma surra. Ele publicou muitos livros aqui no Brasil, na editora Germinal. Ele mandava os livros para as pessoas mesmo que no lhos pedissem. Uma vez devolvi uma coleco que ele me enviou. Quando esteve preso no "Galeo" exigiu comida vegetariana, dizia que no era devorador de cadveres e acabavam por lhe fazer a vontade.

  • Aps 1964, a ditadura desenvolve-se, ganha fora. Mas a partir de certa altura comea a decair em 1984/85. Como que a partir da o Centro Cultural volta a ganhar fora?

    O ex-Secretrio-Geral do Centro esteve a trabalhar no Chile como tradutor. Quando veio foi preso e levado para o Galeo tambm. Um polcia sargento vira-se para ele e diz-lhe que pode comear a falar porque j tinham prendido mais de 80 anarquistas. Ele pergunta como que isso era possvel se ele nunca tinha conseguido juntar mais de 10 em dez anos.

    Encontrmo-nos depois na Praa da Repblica quando ele estava em fase de processo. Ele disse-me que se ia embora e foi.

    Aps 1984 comemos a desenvolver novamente uma srie de actividades, em vrios lugares. Organizmos seminrios sobre racismo, sindicalismo, etc. Fazamos comcios. Mas no tnhamos uma sede. Estvamos numa fase de distenso. Tentmos encontrar um espao para reabrir o Centro. Reunimos com vrias pessoas e neste perodo coincidiu o facto de a TV Cultura na altura estar a fazer uma srie de programas sobre teatro. Nesse contexto queriam fazer um programa sobre o teatro operrio que era o teatro libertrio. Procuraram-me para dar uma entrevista e perguntaram-me onde era o Centro. Disse onde tinha sido e qual no foi o meu espanto que quando l chegmos o Centro estava para alugar e ns alugmos logo a sede, aproveitando o papel ainda existente e tudo o que l havia. Fomos ao cartrio para reiniciar a actividade. Com a inaugurao do Centro, recebemos muitas cartas de todo o lado. Aparecemos nas revistas de grande sada. Comeamos depois a articular o movimento com actividades mltiplas, tendo os media dado uma grande cobertura reabertura do Centro.

    A COB(Confederao Operria Brasileira) surgiu. Durante a clandestinidade continuvamos a reunir. Mesmo durante o perodo de ditadura chegvamos a encontrarmo-nos cerca de 90 pessoas. Tudo na clandestinidade, mas conseguamos resistir. S no editvamos nada. Comemos a interessar-nos pelo sindicalismo e inclusive crimos, no Centro, uma Comisso Sindical, criando mesmo comisses especficas: comisso sindical; comisso do teatro,

  • agora temos a comisso de cinema. A comisso sindical comeou ento a encetar contactos com os sindicatos. A CNT(Confederao Nacional do Trabalho) tinha sede em Espanha. Quando viram que nos interessvamos pelo sindicalismo vieram c e preparmos um encontro nacional. Quiseram reconstruir a COB. Quanto a mim, j no ser mais o que foi. O sindicato hoje tem que se preocupar mais com a apropriao do conhecimento do que com as reivindicaes salariais. Uma representao da Baa prope tambm a reconstruo da COB. Como criar uma Federao sem sindicatos? Primeiro h que criar sindicatos de ofcios vrios, por ramos de actividade s depois vir a Federao.

    Veio uma proposta de novo da Baa no sentido de se criar um ncleo. Criaram-se Ncleos pr-COB com representaes em muitos estados do Brasil. Foi mesmo lanado um jornal "A Voz do Trabalhador" que conquistou a confiana de todos. Leonardo Moreli, hoje aliado poltico da extrema direita no Brasil foi na altura enviado como representante (delegado brasileiro) ao congresso AIT(Associao Internacional dos Trabalhadores). Ali enrolou toda a gente (os espanhis). Mas ele, Leonardo, s estava interessado no dinheiro. Foi uma pessoa que prejudicou demais o movimento anarquista. Eu fui nomeado secretrio dos Grupos pr-COB. Tnhamos a inteno de levar para a frente uma Federao. Por outro lado, na reabertura do Centro (1985) estiveram presentes muitos canais de TV, que deram uma cobertura incrvel, fazendo uma srie de entrevistas.

    O que fizemos de importante foi um curso de anarquismo onde se apresentaram mais de 50o pessoas (apesar dos custos de inscrio). A partir da passmos a fazer cursos de anarquismo universitrios.

    Outro curso que lanmos foi "As ideias libertrias na Revoluo Francesa" que foi muito divulgado no meio universitrio. Temos uma relao importante com a Universidade.

    Em 1974, a famlia de Edgar vende o Arquivo, o Acervo Colectivo para o Unicamp, porque pensavam que tinham ali uma fortuna. Mas, o Edgar antes de morrer deixou anotado uma espcie de testamento dedicado aos seus companheiros no sentido de ser

  • criado um Arquivo da Questo Social. Mas estavam muito interessados neste Arquivo (comunistas com medo de serem comprometidos). Mas a a famlia continuava a querer vender. Quando abriram o testamento, a famlia soube que no podia vender para algum dos EUA que lhe oferecia muito dinheiro por ele. Resolveram criar um memorial Edgar Leuenroth em plena ditadura, o que nos impossibilitava de fazer algo.

    O Arquivo do Edgar na Universidade de Campinas no ir s servir para os intelectuais?

    Comeou de facto a surgir um interesse universitrio pelo Arquivo. Descobriram um filo para fazer ps-graduaes em Histria e outras Cincias Sociais. Muitas editoras passaram a criar coleces sobre o Anarquismo. A Contexto criou uma coleco enorme. A uma dada altura, o Jorge perguntou-me se podia fazer um levantamento exaustivo sobre o Anarquismo. Foram feitas pesquisas de investigao sobre o Anarquismo e mesmo teses de doutoramento. O Arquivo do Edgar foi importantssimo nesse aspecto. Eu prprio fui convidado para o visitar.

    H uma grande difuso do anarquismo em termos acadmicos, atravs de doutoramentos, palestras

    Desculpe interromper, mas a difuso do anarquismo foi mesmo muito grande. Fomos convidados para fazer cursos nas Universidades, palestras, etc Foram abertos espaos grandes neste campo na Universidade de So Paulo. O trabalho na universidade para ns foi muito importante. Havia quem no o considerasse como tal. Temos tido muita adeso a este campo. Os auditrios tm estado sempre lotados.

    A actividade universitria est a desenvolver-se. Mas noutros espaos, como os anarco-punks, o que tem acontecido?

    Os punks aqui tm criado muita confuso, de forma algo violentos. Chegaram a promover aces muito violentas e a confrontar-se, hostilizando mesmo os militares em parada. S que, quando o fizeram, em dada altura chegou a polcia e prendeu mais de 300. Sobre este assunto eu dei uma entrevista para a folha de So Paulo.

  • Hoje, o no-nazismo, cabeas rapadas geram muita confuso, muita violncia entre eles e os anarco-punks. Houve mesmo mortes. Parece-me haver falta de informao. Mas, com mais informao, alguns deles esto desenvolvendo aces mais positivas, em cooperativas operrias. Com o desemprego imenso que crassa o Brasil, todos os que sabem de uma profisso positivo. Contribuem para melhorar a imagem deles. parecido com o Movimento dos Sem Terra. Estes esto construindo casas, semeando, conseguem autosustentar-se. Temos aces a vrios nveis com os anarco-punks que so cada vez mais positivas.

    E aqui terminamos a ltima entrevista dada pelo nosso companheiro Jaime Cubero, ainda no ano passado, revista UTOPIA. Um obrigado pstumo, mas no morto de todos ns que temos o privilgio nico de ouvir a sua voz uma vez mais. At sempre companheiro.