Jacques Rancière_ a Democracia Deles e a Nossa — CartaCapital
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03/09/2015 Jacques Rancière: a democracia deles e a nossa — CartaCapital
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Outras PalavrasPolíticaJacques Rancière: a democracia deles e a nossapor Hugo Albuquerque — publicado 03/12/2014 19h31
Num livro atualíssimo, filósofo francês sugere: o que está em crise não é ogoverno da multidão, mas a farsa que procura inviabilizálo
[Este é o blog do site Outras Palavras em
CartaCapital. Aqui você vê o site completo]
Recémlançado no Brasil, O Ódio à
Democracia, do filósofo francês Jacques
Rancière, é um ensaio potente, pronto a ser
lido de um fôlego só. Embora tenha sido
publicado na França há quase dez anos, o
livro nos é incrivelmente atual. Mais ainda: ele
parece ter um tom quase profético quando
olhamos para o Brasil de hoje.
Afinal de contas, estamos atolados em um
pântano feito de manifestações fascistas que
alentam a ideia de um novo golpe militar, de relatos incessantes de agressões físicas e
intimidações nas redes sociais sobre quem não se alinha com essas pulsões (sobretudo
eleitoralmente), de casos crescentes de crimes de ódio contra homossexuais, índios e outras
minorias, da ideia cada vez mais consensual de que a política é ruim, temos mais é de nos
contentar com o gerencialismo e assim por diante.
Integrantes do MTST exigem, da CâmaraMunicipal de S.Paulo, dispositivo que ampliahabitação popular na cidade. Um choqueentre os que exigem direitos e as instituiçõesque buscam preservar privilégios
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E a obra acerta em cheio ao notar que a novidade da democracia, tal como ela nasceu em
Atenas, não residia na instituição do voto ou do sufrágio, mas no fato dela ter tornado comum
entre os cidadãos a participação política por meio de dois vetores essenciais: (1) a
distribuição dos eventuais cargos fixos por meio de sorteio; (2) a vinculação dos cidadãos
pelos demos, divisões geográficas de Atenas, e não por vinculações hierárquicas.
Rancière problematiza o que seria essa democracia sobre a qual tanto falamos, não raro
perdida em meio a tantas confusões. Mas ele também fala sobre seus adversários: e eles não
são apenas as manifestações de intolerância pontuais ou os projetos neoautoritários, mas de
um ponto quase sempre ignorado pelo pensamento político, que é o que há de autoritário no
nosso próprio sistema político “normal”. O fascismo cotidiano e mascarado de cada dia. Na
França, a máscara do poder na normalidade atende pelo nome de republicanismo.
O significado profundo do sorteio, que nos parece absurdamente chocante, é que se o
eventual representante poderia ser escolhido assim, aleatoriamente, a democracia seria,
pois, o governo do qualquer um. Se todas as outras formas efetivas de governo se fundavam
em uma hierarquia determinada — de idade, de saber, de renda etc –, o advento democrático
propunha que para “governar” não seria preciso ser o mais velho, o mais rico ou o (dito) mais
sábio, mas sim fazer parte do corpo cidadão, na imanência de sua multiplicidade — isto é, em
meio às suas diferenças, estranhamentos e até contradições.
A vinculação aos demos — e democracia, não custa lembrar, não signica “poder do povo”,
mas sim o poder ou governo dos demos –, por outro lado, vinculou à territorialidade (de cada
um na pólis) o índice organizacional da política, consistindo em uma suprema astúcia: a
distribuição territorial, em si, não consistia em um índice hierarquizador: ao contrário, ele era
perfeitamente horizontal naquele contexto.
Em contraponto à democracia, estaria, pois, a república. E segundo o autor, o republicanismo
é, desde Platão, o inverso da democracia, o regime pelo qual a política volta a estar
hierarquizada em um regime de competências. Isso perduraria até hoje na França. Ainda que
tenha se oposto à monarquia e ao tradicionalismo da nobreza e da religião na França, ele foi
uma forma de reintrodução do poder, só que de forma impessoal, anônima e sistemática.
É evidente que Rancière faria melhor caso se referisse a “positivismo” no lugar de
republicanismo, ou reconhecesse que esse republicanismo “diferente do de Jules Ferry” — e
sua ousadia emancipadora na pedagogia — é menos cria de Platão e mais de Auguste
Comte — e que “República” em Platão é mais fruto de uma indecorosa tradução latina da
famosa Politheia, a qual deu um caráter indevidamente conservador ao que foi tão potente e
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emancipador entre os romanos e mesmo para Maquiavel (embora Rancière comente
ligeiramente isso).
De todo modo, a escolha do republicanismo como antagonista de democracia não se perde
de um todo, pois (1) em seu uso nos círculos conservadores franceses é esse o texto da
máscara do poder e do poder mascarado; (2) o positivismo, evidentemente, está situado no
campo da filosofia tradicional e, entre ele e o platonismo, existe uma coincidência na ideia de
que os comuns não devem governar, mas sim os aptos para mandar segundo um critério
transcendental — e obviamente criado pelo próprio poder em sua autoordenação.
Enfatizar o caráter [estruturalmente] positivista do republicanismo francês, aliás, não é mero
preciosismo: na verdade, isso ajuda a entender na proximidade entre o que o livro diz e a
nossa realidade verdeamarela; a república brasileira nasce, por inspiração positivista, sem
povo, calcada na ideia de um sistema impessoal, laico e destinado a ter uma igualdade
abstrata como régua mestra.
Que problema teria tal ideia que nos “ilumina” desde 1889? No nosso caso — no mesmo
sentido do francês, só que de um jeito mais agressivo — essa igualdade de fundo sempre
serviu para mascarar e manter as desigualdades de fato, pois ao exigir a plena igualdade
jurídica [numa sociedade marcada pela concorrência e não pela colaboração] entre desiguais
de fato, isso só poderia terminar na própria manutenção da desigualdade histórica, isto é, a
diferença para pior.
No Brasil, pois, políticas sociais como as cotas causam escândalo público, pois invertem a
matriz republicanapositivista na medida em que diferenciam a forma dos ingressos para
gerar igualdade material. A igualdade quando deixa de ser ponto de partida para se tornar
ponto de chegada implode o “republicanismo” e, por conseguinte, afirma a democracia. Isso é
inadmissível por um costume conservador bem nosso.
Por tal razão, é comum em nosso meio que essas tentativas de democratização sejam
desqualificadas, pois sempre expressam as intervenções políticas do qualquer um, ou em
prol do qualquer um, no campo comum: por esse viés, não caberia a um metalúrgico querer
ser presidente da república, um gari desejar feliz ano novo em rede nacional de televisão ou
um casal homossexual se casar. É o juízo binário do é [a priori] igual\nãoigual.
Isso pesa sobretudo em matéria de política, na qual trabalhadores, índios e pobres deveriam
se deixar comandar pelos varões da república: eles não seriam competentes formalmente. É
claro, as condições históricas brasileiras, seu passado colonial e escravagista, tornam esse
republicanismo pior, mas em termos conceituais não estamos falando de uma substância
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diferente da realidade na qual está o autor.
Dessa forma, para Rancière, tanto no Brasil quanto na França — bem como nisso que
chamamos de “mundo livre” –, não temos um regime democrático. Porque a democracia
estaria sempre além do Estado. Há um regime misto entre oligarquia e democracia, o qual é,
contudo, fruto das próprias lutas que impedem o monopólio do mando pelo oligarcas — o que
não é de um todo ruim: o que é mau, na verdade, seria se conformar com isso. Ainda assim,
estamos diante do avanço do economicismo de mercado que, baseado no ilimitado poder da
riqueza, o que abala hoje até mesmo essa construção precária da oligarquia matizada.
Assim, Rancière não faz concessão alguma para uma filosofia neoniilista: no fim das contas,
com razão, não é preciso discutir qualquer vazio que possa haver na dicotomia entre
cidadania e os direitos humanos, pois um serve onde o outro não alcança; é o interesse
prático, na luta, que determina a importância de qualquer um dos dois. Valorizemos a
cidadania para os humanos excluídos dela e a humanidade dos cidadãos desumanizados!
E ainda que Rancière retome a democracia antiga quase como um ideal, ele não erra em
última análise: mesmo que a democracia antiga seja menos avançada do que ele advoga, ao
concebêla como movimento, como tendência de ir além na busca de uma coexistência para
melhor, encontramos, quem sabe, uma chave para entender melhor as sucessivas
ressignificações do termo ao longo do tempo, incorporando mulheres, humanos, meio
ambiente etc etc.
Tudo isso faz de O Ódio à Democracia um pequeno grande livro. Enfim, um manifesto de
amor incondicional à democracia, pois o autor a coloca como o que de melhor os humanos já
produziram em matéria de política. E talvez Rancière esteja mesmo certo a respeito disso.
–
Resenha de:
Rancière, Jacques. O Ódio à Democracia. São Paulo: Boitempo, 2014, 128 páginas–
Hugo Albuquerque é advogado e autor do blog "O Descurvo".
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