J R R Tolkien - Mestre Gil de Ham.pdf

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J. R. R. TOLKIEN MESTRE GIL DE HAM Sobre a digitalização desta obra: Esta obra foi digitalizada para proporcionar de maneira totalmente gratuita o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para leitura. Dessa forma, a venda deste e-book ou mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade é a marca da distribuição, portanto: Distribua este livro livremente! Se você tirar algum proveito desta obra, considere seriamente a possibilidade de adquirir o original. Incentive o autor e a publicação de novas obras! By Yuna Visite nossa biblioteca! Centenas de obras grátis a um clique! http://www.portaldetonando.com.br

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  • J. R. R. TOLKIENMESTRE GIL DE HAM

    Sobre a digitalizao desta obra:Esta obra foi digitalizada para proporcionar de maneira totalmente gratuita o benefcio de sua leitura queles que nopodem compr-la ou queles que necessitam de meios eletrnicos para leitura. Dessa forma, a venda deste e-book oumesmo a sua troca por qualquer contraprestao totalmente condenvel em qualquer circunstncia.A generosidade a marca da distribuio, portanto:Distribua este livro livremente!

    Se voc tirar algum proveito desta obra, considere seriamente a possibilidade de adquirir o original.Incentive o autor e a publicao de novas obras!By Yuna

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  • Orelha e contra capa:

    Esta divertida histria, escrita pelo autor de O Hobbit, ambientada no vale do Tmisa, na Inglaterra, numpassado maravilhoso e distante, quando ainda existiam gigantes e drages. Seu heri, Mestre Gil, na realidade umfazendeiro totalmente desprovido de herosmo, mas que, graas boa sorte e ajuda do cachorro Garm, da gua cinzentae da espada mgica Caudimordax (ou Morde-cauda), amansa o drago Chrysophylax e ganha enorme fortuna.

    A edio especial de jubileu, na qual esta se baseia, inclui o texto publicado pela primeira vez em 1949, com asilustraes originais de Pauline Baynes, as quais Tolkien considerava um acompanhamento perfeito para a histria.Tambm inclui, publicadas pela primeira vez, a mais antiga verso escrita da histria e as anotaes de Tolkien para umapossvel continuao.

    J.R.R. Tolkien nasceu em 3 de janeiro de 1892, em Bloemfontein, Suas extraordinrias obras de fico OHobbit, O Senhor dos Anis e O Silmarillion foram traduzidas para mais de 30 idiomas e venderam milhes deexemplares no mundo inteiro.

    Chistina Scull foi bibliotecria do Sir John Soane's Museum, em Londres, e editora da revista The TolkienCollector. Mora em Williamstown e organizou a edio de Roverandom, de Tolkien, para publicao em 1988.

    Wayne G. Hammond bibliotecrio assistente na Chapin Library of Rare Books, Williams College, e autor dospadres bibliogrficos das obras de Tolkien.

    Como O Hobbit e Roverandom, Mestre Gil de Ham foi criado por J.R.R.Tolkien, inicialmente, para entreter seusfilhos, mas a histria cresceu e se tornou mais sofisticada. Sua verso final indicada para leitores de todas as idadesque apreciem uma boa histria, relatada com imaginao e bom-humor.

    AEgid Ahenobarb Jul Agrcole de HammoDomn de Domto

    Aule Draconare ComtsRegn Mnm Regs et Basle

    mra facnora et mrablsexortus

    ou, na lngua do povo,A ascenso e as aventuras maravilhosas de

    Mestre Gil, fazendeiro, Senhor de Tame,Conde de Worminghalle Rei do Pequeno Reino

    de J. R. R. TOLKIENILUSTRADO POR PAULINE BAYNES

    ORGANIZADO PORCHRISTINA SCULL

    WAYNE G. HAMMONDTRADUO WALDA BARCELLOS

    Martins FontesSo Paulo 2003

  • Esta obra foi publicada originalmente em ingls com o ttuloFARMER GILES OF HAM por Harper Collins, Londres. Esta edio publicada atravs de acordo com Harper Collins Publishers Ltd.:FARMER GILES OF HAM by J.R.R. Tolkien.Copyright 1949, George Allen & Unwin (Publishers) Ltd.Copyright 2003, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,So Paulo, para a presente edio.1* ediosetembro de 2003TraduoWALDA BARCELLOSReviso da traduoMaria Estela Heider Cavalheiro Acompanhamento editorial Luzia Aparecida dos SantosRevises grficas Clia Regina CamargoMaria Luiza FavretDinarte Zorzanelli da SilvaProduo grficaGeraldo AlvesPaginao/FotolitosStudio 3 Desenvolvimento EditorialDados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)Tolkien, J.R.R., 1892-1973.Mestre Gil de Ham / J.R.R. Tolkien ; Ilustrado por Pauline BaynesOrganizado por Christina Scull, Wayne G. Hammond 1. Fico - Literatura infanto-juvenil

    Para C.H. Wilkinson

  • ndiceIntroduoPrefcioMestre Gil de HamA primeira verso (manuscrita) da histriaA continuaoNotas

  • Introduo

    FARMER GILES OF HAM, como Roverandom, foi criado por J. R. R. Tolkien paradistrair seus filhos e era, no incio, uma histria contada oralmente. Passada para o papel,cresceu em extenso e complexidade por cerca de vinte anos, e seu texto principaltransformou-se de manuscrito em quatro originais datilografados e provas de paqu, atser finalmente publicado em 1949. A maior parte desses documentos est preservada noDepartamento de Colees Especiais e Arquivos da Universidade, nas Bibliotecas daMarquette University, em Milwaukee, Wisconsin.

    O filho mais velho de Tolkien, John, recorda que a histria foi contada pelaprimeira vez quando a famlia foi apanhada por uma tempestade depois de um pique-nique e se abrigou debaixo de uma ponte. No foi possvel determinar com preciso adata nem o local desse acontecimento. No entanto, quase certo que uma histriainspirada na regio em torno de Oxford teria sido contada depois que a famlia Tolkien semudou de Leeds para aquela cidade, no incio de 1926. Alm disso, o estilo e o tom daverso escrita mais antiga so mais semelhantes a Roverandom, na sua primeira versoescrita, provavelmente do final de 1927, do que aos textos mais antigos de The Hobbit,em comparao uma obra madura, de 1930, aproximadamente.

    A primeira verso de Farmer Giles, escrita mo em 26 pginas, era muito maiscurta e simples que o livro publicado em 1949. narrada por "Papai", que interrompe ahistria para perguntas no incio e no final. Alm disso, o narrador situa a histria numcontexto pessoal para sua platia: "se ele [o gigante] tivesse pisado no nosso jardim", "seele tivesse tropeado na nossa casa". Embora haja alguns jogos de palavras, est ausente amaioria das brincadeiras filolgicas e das aluses eruditas que tornam to notvel o textode 1949. Entre elas esto, por exemplo, todas as referncias latinas, os textos das duascartas enviadas a Gil pelo Rei e a maior parte da nomenclatura. Os nicos nomes queaparecem no original manuscrito so Giles [Gil], Ham, Tailbiter [Morde-cauda] eWorminghall [Pao do Lagarto]. O drago, o cachorro de Gil e o Rei no tm nome. Aspersonagens Gil, Rei e drago j esto perfeitamente desenvolvidas, embora no sejamto profundas quanto em verses posteriores. O cachorro e o ferreiro ainda so muitorudimentares, e praticamente no se faz meno ao moleiro. Tambm no h menoalguma ao fato de Gil ser casado. Dedica-se pouca ateno viagem de volta com otesouro do drago: Gil no se preocupa em como manter o drago preso noite, e no hnenhum "rapaz promissor". A narrao no apresenta nenhum contexto histrico, emboraparea transcorrer na Idade Mdia. A localizao tambm vaga - "o gigante moravamuito longe daqui, muito longe de qualquer lugar habitado por gente" - at o final,quando "Papai" explica que Gil adotou o sobrenome Worming e construiu um belo pao[hall] em Ham, e a partir da o lugarejo passou a se chamar Worminghall, lugar que aindapode ser encontrado no mapa (a alguns quilmetros de Oxford). A histria termina com adeclarao de "Papai" de que seu verdadeiro heri era a gua cinzenta.

    Uma segunda verso, o primeiro original datilografado, diferencia-se domanuscrito em apenas alguns aspectos pequenos, porm significativos. A histria passa aser contada pelo "bobo da famlia" (no era um nome pelo qual Tolkien fosse conhecido,ao que os filhos se recordem); e no final ele pergunta aos ouvintes quem eles consideramo verdadeiro heri da histria, "e houve boa quantidade de respostas diferentes". Osacontecimentos de Farmer Giles so agora definitivamente localizados no passado -"aquele gigante viveu h muito tempo", "naquela poca e naquele lugar, aquela era anica arma de fogo que existia. As pessoas preferiam arcos e flechas, e usavam a plvoraprincipalmente para fogos de artifcio" - e as distncias e o tempo foram comprimidos.

  • Por exemplo, a "espada mgica" de Gil salta da bainha se houver um drago a duasmilhas, e no a cem milhas, como antes. Assim como o manuscrito, o primeiro originaldatilografado no pode ser datado com preciso, mas ele j existia no incio ou emmeados da dcada de 1930. Simonne d'Ardenne, uma acadmica belga cuja tese foiorientada por Tolkien, traduziu para o francs a primeira verso datilografada,provavelmente quando morou com a famlia Tolkien em Oxford em 1932-33, mas antesde novembro de 1937, quando Tolkien mencionou a traduo numa carta.

    No final de 1936, George Allen & Unwin aceitaram The Hobbit para publicao, ecom base nele pediram a Tolkien que apresentasse outras histrias infantis que tivesseescrito. Em resposta, ele mandou um livro ilustrado, Mr. Bliss, sua histria do cachorroRoverandom e Farmer Giles of Ham. Stanley Unwin, diretor da empresa, pediu a opiniodo filho de 11 anos. A avaliao de Rayner Unwin sobre Farmer Giles of Ham, datada de7 de janeiro de 1937, foi entusistica:

    Um dia um gigante perdeu-se nas montanhas e, perambulando, acabou dando nacidadezinha de Ham. Mestre Gil viu o gigante e deu-lhe um tiro com seu bacamarte. Ogigante julgou estar sendo picado por mosquitos e concluiu que ia na direo errada,dando, ento, meia-volta. O rei soube do ocorrido e deu a Mestre Gil uma espada. Algumtempo depois, um drago chegou s redondezas, e Mestre Gil foi forado a lutar com ele.O drago sentiu um medo mortal da espada e concordou em dar ao fazendeiro muitodinheiro. Esse dinheiro nunca apareceu, e alguns cavaleiros e o tal Gil foram matar odrago. Este matou os cavaleiros, mas, quando viu a espada de Mestre Gil, entregou-lhe odinheiro e foi para a casa do fazendeiro como um animal de estimao. Quando o rei foiapanhar o dinheiro, contudo, voltou rapidinho para casa.

    uma obra divertida e bem escrita, que daria um bom livro, e poderia serpublicado com "Roverandom" em um volume.

    Precisa de algumas ilustraes, talvez do prprio autor? Esse livro deve agradar atodos os ingleses, meninos ou meninas.

    No entanto, o sucesso de The Hobbit, publicado em setembro de 1937, convenceuAllen & Unwin de que o prximo livro de Tolkien deveria ser uma continuao sobrehobbits. Ou, se isso no fosse possvel, Farmer Giles of Ham com outros contossemelhantes, pois para Stanley Unwin s essa histria no seria suficiente para constituirum livro. Em dezembro de 1937, Tolkien decidiu escrever a continuao e comeou TheLord of the Rings, mas j no final de julho de 1938 ficou claro que no conseguiriaterminar o "novo Hobbit" em tempo para o Natal, como seu editor esperava. No dia 24 dejulho, props uma alternativa: "a nica soluo que tenho", disse ele a Allen & Unwin, "Farmer Giles" e o Pequeno Reino (com sua capital em Thame). Reescrevi a histriaalongando-a em cerca de 50%, em janeiro passado, e a li para a Lovelace Society em vezde um ensaio "sobre" contos de fadas. Fiquei muito surpreso com o resultado. A leituralevou o dobro do tempo de um "ensaio" propriamente dito, e a platia deu a impresso deno se entediar - na realidade, muitas vezes foi dominada pelo riso. Mas temo que issosignifique que o texto adquiriu um tom bem mais adulto e satrico. Seja como for, noescrevi as outras duas ou trs histrias do Reino que deveriam lhe fazer companhia![Letters of J. R. R. Tolkien, p. 39]

    A Lovelace Society era um clube de ensastas em Worcester College, Oxford.Tolkien, a convite, falara a seus associados, na noite do dia 14 de fevereiro de 1938. Parapreparar seu "ensaio", ele inseriu algumas modificaes no primeiro originaldatilografado de Farmer Giles of Ham e, principalmente, revisou e ampliou a histria noprocesso de criar um novo original datilografado, atualmente perdido (porm mencionadoem correspondncia at o incio de 1949). Tolkien chamou-o de "The Legend of

  • Worming Hall" (A lenda de Worming Hall), de acordo com o secretrio da LovelaceSociety. O livro de atas da sociedade, conservado em Worcester College, contm umabreve descrio da apresentao de Tolkien e confirma seu relato de que a platia sedivertiu. Quando ele terminou, considerou-se que a histria no estava aberta a crticasnem a debate - talvez um elogio ao autor, embora quela altura j fosse bem tarde.

    Tolkien mandou a histria revista ser datilografada por profissionais do AcademicCopying Office, em Oxford. Esse original datilografado no era muito mais longo que averso anterior, mas muito mais sofisticado. De incio, foi intitulado The Lord of Tame,Dominus de Domito: A Legend of Worminghall [O Senhor de Tame, Dominus de Domito:uma lenda de Worminghall, mas esse ttulo foi eliminado, e Tolkien voltou a FarmerGiles of Ham, como nos rascunhos anteriores. Na verso revisada, ele inseriu a maioriados nomes prprios, brincadeiras e aluses que do vida ao livro, por exemplo, os"Quatro Clrigos Cultos de Oxenford" e sua definio de bacamarte. As personagensagora esto mais bem desenvolvidas e incluem o cachorro (que se chama Garm), o dragoChrysophylax Dives, o moleiro e o ferreiro (Fabricius Cunctator ou "Sam Risonho"); eAgatha, a mulher de Gil, aparece pela primeira vez. A histria transcorre muito tempoatrs, "quando esta ilha ainda era afortunadamente dividida em muitos reinos". Ham agora a precursora da moderna cidadezinha de Thame, e Worminghall, a forma vernculade Aula Draconaria, nome da casa construda por Gil no local onde ele e Chrysophylax seconheceram. Felizmente, "Papai" e o "Bobo da Famlia" desapareceram, mas o autor devez em quando se intromete, falando direto com o leitor ("Se vocs acham que esse nomeera inadequado, s posso dizer que no era").

    Em 31 de agosto de 1938, Tolkien apresentou o novo original datilografado aAllen & Unwin para exame, com o comentrio de que "muita gente considerou-o bastantedivertido" (Letters, p. 40). Alguns meses depois, no tinha recebido resposta alguma e, noano seguinte, pediu mais informaes, especificamente no dia 10 de fevereiro: "FarmerGiles, na verso ampliada, foi aprovado?... A histria tem algum valor?... S me perguntose esse tipo de brincadeira de famlia, encenada entre ns, aqui no interior, mais do queuma tolice" (Letters, p. 43). Ele continuou a promover o livro junto a Allen & Unwin ato final de 1939, como um substituto provisrio para The Lord of the Rings, que avanavalentamente. Depois disso, durante os anos da guerra, a questo foi pouco debatida, e nohouve deciso, at Tolkien voltar ao assunto em julho de 1946.

    Farmer Giles foi ento lido para a editora por David Unwin (o escritor "DavidSevern"), que considerou a histria "deliciosa" e "um verdadeiro prazer". O nico pontode preocupao continuava a ser seu tamanho, curto mesmo depois da ampliao para aLovelace Society e da escolha de textos de Tolkien que pudessem acompanh-lo paracompor um volume de tamanho suficiente para ser vendido por seis xelins. Tolkien aindano tinha nada pronto que seu editor considerasse adequado, e suas obrigaesacadmicas no lhe permitiam tempo ocioso para fornecer outras histrias do mesmognero, mesmo que ele tivesse vontade de escrev-las. "A fora vital desapareceu doPequeno Reino", comentou ele em 1945, fazendo referncia regio em torno de Oxford,"e os bosques e plancies so aerdromos e alvos para treinamento de bombardeio"(Letters, p. 113).

    Afinal, Allen & Unwin decidiram publicar Farmer Giles of Ham isoladamente,sem nenhuma continuao ou outras histrias, e acrescentar ilustraes para tornar otamanho do livro mais apropriado. Tolkien revisou o ltimo original datilografado e fez"uma boa quantidade de alteraes, para melhor (espero) tanto no estilo quanto nanarrativa" (5 de julho de 1947, Letters, p. 119). Algumas das alteraes foram toextensas que ele substituiu sete pginas do original, redatilografando-as no verso.

  • Eliminou algumas das intromisses restantes por parte do narrador e, entre outros pontosde interesse, acrescentou a descrio do gigante afastando olmos como se fossem capimalto e esquecendo sua "melhor panela de cobre" no fogo; os comentrios do proco sobreas letras gravadas em Morde-cauda e em sua bainha, bem como a sugesto de que Gillevasse um pedao de corda quando fosse caar o drago. O Reino Mdio agora recebiaesse nome, com sua corte localizada a cerca de vinte lguas de distncia de Ham; e adesafortunada vaca de Gil passa a chamar-se Galathea.

    Por essa poca, Tolkien tambm acrescentou um "prefcio", que desenvolveu apartir de diversos rascunhos. Os mais antigos foram escritos no verso de comunicados daOxford University, datados de outubro de 1946, e, junto com antigos originaisdatilografados, esto conservados na Bodleian Library, Oxford. Verses mais recentesesto nos Arquivos da Marquette University. De fato, trata-se de um prefcio cmico, damesma forma que Farmer Giles of Ham uma aventura medieval herico-cmica. Narealidade, um gracejo soma-se a outro. Tolkien finge ser editor e tradutor de um textoantigo - atitude que adotaria mais tarde na primeira edio de The Lord of the Rings(1954) e em The Adventures of Tom Bombadil (1962) - e o apresenta como se fosse maisou menos verdadeiro, "talvez mais uma lenda que um relato" da histria do PequenoReino.

    Muitos dos que escreveram a respeito de Farmer Giles of Ham interpretaram seuprefcio como uma extenso satrica da palestra de Tolkien British Academy, BeowulfThe Monsters and the Critics (1936; reeditada em Tolkien, The Monsters and the Criticsand Other Essays, 1983). Nesse trabalho pioneiro, ele criticou os crticos queconsideravam Beowulf apenas um documento histrico, e no um poema digno de atenopor seu valor literrio. "A iluso de perspectiva e veracidade histrica, que fez Beowulfparecer um achado to interessante", escreveu ele, "resulta, em grande parte, do trabalhode elaborao artstica. O autor usou um sentido histrico instintivo... mas o usou comobjetivo potico, no histrico." Farmer Giles naturalmente produto de elaboraoartstica, mas seu editor, como se apresenta no prefcio, semelhana de certos crticos deBeowulf est interessado apenas no vislumbre que o texto proporciona da histria da Gr-Bretanha e da origem de certos topnimos, no no relato propriamente dito. Ele admiteque alguns leitores possam "considerar o carter e as aventuras de seu heri interessantespor si", insinuando, com seu tom desdenhoso, que ele prprio no dessa opinio. Almdisso, aceita como fato histrico a histria s vezes fictcia da Gr-Bretanha, tal como foinarrada por Godofredo de Monmouth e repetida em obras de fico posteriores como, porexemplo, em Sir Gawain and the Green Knight.

    Essa interpretao do prefcio pode ou no refletir a inteno de Tolkien. Sejacomo for, importante lembrar que o prefcio satrico e que foi uma idia posterior,escrito somente quando a histria j existia havia muitos anos. Em outras palavras,Farmer Giles of Ham em si no foi escrita a partir do mesmo ponto de vista. Embora oprefcio situe no tempo os acontecimentos de Farmer Giles de um modo mais preciso doque a prpria histria, entre o final do sculo III (poca do Rei Coel) e o incio do sculoVI (o surgimento dos Sete Reinos Anglo-Saxes), isso no faz diferena para o leitor. Ainteno era que Farmer Giles of Ham no pertencesse a nenhuma poca histricaespecfica alm "daquela poca, agora distante, quando esta ilha ainda eraafortunadamente dividida em muitos reinos". Sua ambientao "medieval" meramenteum pano de fundo adequado para um conto de drages e cavaleiros, ao qual Tolkiencontrape anacronismos para efeito humorstico, sendo talvez o de modernidade maisgritante o "pacto de no-agresso" entre Gil e o drago. Como Tolkien confessou amigaNaomi Mitchison:

  • Receio que Farmer Giles tenha sido escrito com muita despreocupao,originalmente a respeito de uma "poca inexistente", na qual poderia haver bacamartes[sculo XVII] ou qualquer outra coisa. Sua reformulao ligeiramente rebuscada, talcomo foi lida diante da Lovelace Society e publicada, ressalta o papel do bacamarte - sebem que, no fundo, no seja pior que todas as abordagens medievais dadas aos assuntosarturianos. Mas ele estava enraizado demais na histria para ser alterado, e algumaspessoas acham os anacronismos divertidos. Eu mesmo no consegui renunciar citao[que descreve o bacamarte]... tirada do Oxford Dictionary... No entanto, na Ilha da Gr-Bretanha, segundo fontes arqueolgicas, no pode ter havido nada minimamentesemelhante a uma arma de fogo. Tampouco [nos tempos de Mestre Gil] havia armadurasdo sculo XIV. [18 de dezembro de 1949, Letters, p. 133].

    Tolkien enviou a Allen & Unwin, em julho de 1947, um rascunho do prefcio,junto com seu original datilografado recm-revisado. Como o prprio Tolkien no fizeranenhuma ilustrao para Farmer Giles of Ham, ele sugeriu que fossem feitas por MileinCosman, uma jovem artista a quem sua filha Priscilla achava que deveria ser dada umaoportunidade. Cosman, porm, demorou para apresentar as amostras de ilustraessolicitadas, e as que acabou entregando, em janeiro e julho de 1948, no agradaram nem aTolkien nem a Allen & Unwin. Cosman foi dispensada (e dali partiu para uma carreira desucesso), e a encomenda foi entregue a Pauline Baynes, cujos desenhos cmico-medievaisno seu portflio atraram a ateno de Tolkien. Baynes logo entrou no esprito do livro e,com tpica energia e talento, produziu mais desenhos a bico-de-pena do que lhe forasolicitado, alm de duas pranchas em cor. No incio de maro de 1949, ela j tinhacompletado a maior parte do trabalho. Tolkien escreveu a Allen & Unwin que estavasatisfeito com o trabalho de Baynes "muito alm das expectativas despertadas pelasamostras iniciais. Trata-se de mais do que meras ilustraes; so um tema paralelo.Mostrei-as a amigos meus, cuja observao corts foi que elas reduziam meu texto a umcomentrio a respeito dos desenhos" {Letters, p. 133). Em 1976, Baynes pintou uma novaarte para a capa da segunda edio de Farmer Giles; detalhes dela foram usados na capadeste livro. E, em 1980, desenhou novas ilustraes de pgina inteira para uma reedioda coletnea Poems and Stories de Tolkien. Para esta edio de jubileu, Pauline Baynescontribuiu com um mapa do Pequeno Reino, assinalando desse modo os cinqenta anosde ligao com Farmer Giles of Ham.

    No final de 1948, Tolkien preparou, para uso da grfica, um novo originaldatilografado, com algumas emendas, em sua maioria erros tipogrficos, e, com isso,incluiu correes retroativas ao original anterior. Fez mais algumas alteraes de ltimahora nas provas de paqu, sendo a mais importante a remoo da referncia s botas dogigante, uma vez que Pauline Baynes havia entregue dois belos desenhos de um gigantedescalo.

    Farmer Giles of Ham foi finalmente publicado em 20 de outubro de 1949 naInglaterra e no ano seguinte nos Estados Unidos (Boston: Houghton Mifflin). Allen &Unwin comercializaram a obra como um livro infantil, como tinham feito com TheHobbit, doze anos antes, embora Tolkien j os tivesse avisado, em julho de 1938, de queFarmer Giles tinha se tornado uma histria para adultos. Ele tambm comentara, em julhode 1947, mais uma vez em referncia verso ampliada criada para a Lovelace Society, oseguinte: "Vocs percebero que, no importa quem compre o livro, essa histria no foiescrita para crianas; embora, como o caso de outros livros, isso necessariamente no asimpea de se divertirem com ela" (Letters, p. 119) - claro que tinha sido escritaoriginalmente para crianas, e no seu cerne continuava essencialmente inalterada emrelao s verses iniciais. Mesmo na verso publicada, ela lembra "The Reluctant

  • Dragon" [O drago relutante] de Kenneth Grahame, bem como as diversas histrias dedrages de autoria de E. Nesbit. No entanto, Tolkien pretendia que seu texto posterior,mais sofisticado, fosse lido ou ouvido por um pblico mais velho, que melhor apreciassesuas sutilezas. Na realidade, ele j estava sendo lido dessa forma, circulando, por Tolkien,datilografado, entre amigos, como seu aluno de Oxford, o futuro contador de histriasRoger Lancelyn Green.

    Farmer Giles of Ham no se tornou um clssico da literatura infantil como TheHobbit. No entanto, agrada a leitores de todas as idades h meio sculo. uma histriaanimada, contada com inteligncia e espirituosidade. Tambm interessante por ser umadas poucas obras de fico de Tolkien totalmente independente "do tema da Terra Mdia"- foi "com esforo" que ele a manteve dissociada da mitologia que criou (Letters, p. 136).Existem, entretanto, alguns pontos de semelhana entre essa histria e os textos maisfamosos de Tolkien; a mais bvia que Gil, como Bilbo, o hobbit, um heri relutante eimprovvel, arrancado de uma vida de conforto para participar de aventuras incrveis.

    Nesta nova edio de Farmer Giles of Ham o texto e as ilustraes voltaram diagramao que Pauline Baynes projetou meticulosamente em conjunto com a Allen &Unwin, e que Tolkien aprovou. No final do volume, acrescentamos uma seo de notas(de modo algum exaustiva) contendo as fontes histricas e literrias de Tolkien paraFarmer Giles, palavras e expresses incomuns, bem como outros pontos que nos parecemde interesse especial. Essas notas esto organizadas pelo nmero das pginas, semidentificao no corpo do texto, de modo que os leitores que preferirem podero ler ahistria e o material complementar sem a interrupo de textos explicativos.

    Publicadas pela primeira vez, incluem-se a mais antiga verso escrita (manuscrita)de Farmer Giles e a continuao deixada de lado por Tolkien. Ao transcrever a primeira,alteramos, por questes de coerncia, apenas alguns sinais de pontuao e algumasocorrncias de maisculas. J a continuao, quatro pginas de passagens e notas emrascunho preservadas na Bodleian Library, escritas em caligrafia difcil de ser entendida,com muitas interrupes e retomadas, exigiu um trabalho de edio mais srio parafacilitar a leitura.

    Como dissemos, a primeira verso de Farmer Giles of Ham era mais curta e menossofisticada que o livro publicado. No entanto, ela muito interessante, assim comoRoverandom, como exemplo de uma histria na forma como Tolkien a contava aos filhos,ou to prxima de sua forma original quanto se pode chegar. Ela tambm proporcionauma comparao til com o texto final, pela qual possvel avaliar o desenvolvimento deuma histria, da criao publicao.

    Do mesmo modo, a continuao inacabada de Farmer Giles lana luz sobre oprocesso de contar histrias, e naturalmente apresenta um interesse inerente por seuselementos de enredo e personagem. O manuscrito lamentavelmente sucinto. Mesmonuma forma to rudimentar, promete uma histria to animada quanto Farmer Giles e torica quanto ela em humor e aluses. De incio, Tolkien pensou em situar a nova histrianuma poca em que Gil tivesse morrido e seu filho George lhe tivesse sucedido no tronodo Pequeno Reino. Depois de algumas frases, ele mudou de idia, talvez por noconseguir pensar numa histria interessante a respeito do Rei George. Tentouimediatamente uma nova abordagem, com Gil ainda vivo e a histria voltada para oprncipe George enquanto ele se transformava de rapazola do campo em monarcavaloroso. um incio muito tosco, escrito rapidamente e com grande quantidade decorrees, embora forme uma narrativa coerente. Infelizmente, o texto se interrompe, nomeio de uma frase, depois de duas pginas manuscritas, apenas seguido pelo esboo doresto da histria, que ocupa duas pginas.

  • Em 24 de julho de 1938, em carta a Allen & Unwin, Tolkien faz referncia a "duasou trs outras histrias", ainda no escritas, que a editora na poca desejava paraacompanhar Farmer Giles of Ham (Letters, p. 39) - Em 31 de agosto de 1938, ele voltou aescrever que tinha "uma continuao j planejada" (Letters, p. 40). possvel que todo otrabalho realizado na continuao, para a qual existem notas, tenha ocorrido entre essasduas cartas. Em correspondncia posterior, Tolkien continuou a fazer referncias a maishistrias do gnero, bem como continuao planejada porm incompleta, "As aventurasdo prncipe George (o filho do fazendeiro) e do rapaz gorducho Suovetaurilius (vulgoSuet [Sebo]), e a Batalha de Otmoor" (10 de fevereiro de 1939, Letters, p. 43). QuandoAllen & Unwin decidiram publicar Farmer Giles isoladamente, a continuao planejadafoi posta de lado, embora no tenha sido esquecida. Tolkien faz uma aluso irnica a elano prefcio como se fosse um documento autntico, um fragmento dos tempos de outrora.Na realidade, ela continuou a ser nada mais do que um fragmento, visto que Tolkiendescobriu ser impossvel recuperar o esprito que havia inspirado sua histria originalsobre o Pequeno Reino.

    Gostaramos de agradecer o auxlio e as sugestes na publicao deste livro, aJohn, Priscilla, Joanna e, em especial, Christopher Tolkien; Charles B. Elston, arquivistada Marquette University, e sua equipe; Colin Harris, do Departamento de ManuscritosOcidentais, Bodleian Library; Joanna Parker, bibliotecria da Worcester College, Oxford; equipe da Williams College Library, Williamstown, Massachusetts; David Brawn eChris Smith, da HarperCollins; Pauline Baynes; Charles Fuqua; Carl Hostetter; RaynerUnwin; e Johan Vanhecke. Somos tambm gratos aos autores cujos textos sobre FarmerGiles of Ham nos foram teis, especialmente Jane Chance, David Doughan, Brin Dunsire,Paul H. Kocher, Dylan Pugh, John D. Rateliff, o falecido Taum Santoski e Tom Shippey.

    CHRISTINA SCULL WAYNE G. HAMMOND

    Prefcio

    RESTAM poucos fragmentos da histria do Pequeno Reino, mas por acaso um relatode sua origem foi preservado; talvez mais uma lenda que um relato, pois evidentemente setrata de uma compilao tardia, cheia de fatos assombrosos, derivada no de crnicasconfiveis, mas das baladas populares s quais seu autor faz freqentes referncias. Paraele, os acontecimentos que registra j estavam num passado remoto; no obstante, eleprprio parece ter vivido no territrio do Pequeno Reino. Todo conhecimento geogrficoque revela (o que no seu ponto forte) daquela regio, ao passo que de outras regies,ao norte ou a oeste, no conhece nada.

    Um motivo para apresentar uma traduo desse interessante relato, passando-o doseu latim insular para o idioma moderno do Reino Unido, pode ser a viso de poca queele nos proporciona, num perodo obscuro da histria da Gr-Bretanha*, sem mencionar aluz que lana sobre a origem de alguns topnimos difceis. H quem considere o carter eas aventuras de seu heri interessantes por si mesmos.

    Os limites do Pequeno Reino, seja no tempo ou no espao, no so fceis dedeterminar a partir destes parcos indcios. Desde que Brutus chegou Gr-Bretanha,

  • muitos reis e reinos surgiram e desapareceram. A partilha entre Locrin, Camber eAlbanac* foi apenas a primeira de muitas divises provisrias. Fosse pelo amor mesquinha independncia ou pela ganncia dos reis por ampliar seus territrios, guerra epaz, jbilo e pesar alternavam-se durante o ano, como nos contam os historiadores doreinado de Artur: uma poca de fronteiras incertas, na qual homens podiam ascender aopoder ou tombar de repente; e os bardos tinham material em profuso, bem como platiasatentas. Em algum ponto desse longo perodo, talvez depois dos tempos do Rei Coel, masantes de Artur ou dos Sete Reinos Anglo-Saxes*, onde devemos situar osacontecimentos aqui relatados; e sua ambientao o vale do Tmisa*, com uma incursoa noroeste at as muralhas do Pas de Gales.

    A capital do Pequeno Reino localizava-se, tal como a nossa, no extremo sudeste*,mas seus limites so vagos. Parece que ela nunca se estendeu muito a oeste, Tmisaacima, nem passou de Otmoor*, na direo norte; e seus limites orientais eramindefinidos. Num fragmento de lenda sobre Georgius, filho de Gil, e seu pajemSuovetaurilius (Suet), h indicaes* de que a certa altura um posto avanado prximo aoReino Mdio teria sido mantido em Farthingho*. Mas essa situao no diz respeito a estahistria, que agora se apresenta sem alteraes ou maiores comentrios, embora o extensottulo original tenha sido convenientemente reduzido para Farmer Giles of Ham (MestreGil de Ham).

    Mestre Gil de Ham

    AEGIDIUS de Hammo morava na regio mais central da Ilha da Gr-Bretanha.Seu nome completo era AEgidius Ahenobarbus Julius Agrcola de Hammo, pois aspessoas recebiam vrios nomes naquela poca*, agora distante, quando esta ilha ainda eraafortunadamente dividida em muitos reinos*. Havia mais tempo e menos gente, de modoque em sua maioria os homens eram distintos. No entanto, esse tempo j passou, e no quese segue tratarei o homem pelo seu nome abreviado e na forma vulgar*: ele era MestreGil de Ham e tinha a barba ruiva. Ham era apenas uma aldeia*, mas as aldeias ainda eramorgulhosas e independentes naquela poca.

    Mestre Gil tinha um cachorro, cujo nome era Garm*. Os ces tinham de secontentar com nomes curtos no vernculo*. O latim dos livros era reservado para seus

  • donos*. Garm no conseguia falar nem latim macarrnico*, mas sabia usar a lngua dopovo (como a maioria dos ces daquela poca) para amedrontar, para se vangloriar oupara bajular. As ameaas eram para mendigos e intrusos, a fanfarronice, para os outroscachorros, e a bajulao, para seu dono. Garm tinha orgulho e medo de Gil, que sabiaamedrontar e se vangloriar melhor do que o co.

    No eram tempos de correria ou alvoroo. O alvoroo tem muito pouco a ver comos negcios. Os homens trabalhavam em paz e conseguiam harmonizar trabalho econversa. Havia muito assunto, pois acontecimentos memorveis ocorriam comfreqncia. No entanto, no momento em que esta histria comea, havia um bom tempoque nada de memorvel acontecia em Ham. Isso era perfeito para Mestre Gil, umcamarada lento, bastante acomodado no seu estilo de vida e totalmente absorto nosprprios assuntos. Todo o seu tempo era ocupado (dizia ele) tentando afastar a misria: ouseja, procurando manter-se to gordo e bonacho como seu pai havia sido. O cachorrotambm se ocupava em ajud-lo. Nenhum dos dois dava muita ateno ao Vasto Mundofora de suas terras, da aldeia, da feira mais prxima*.

    S que o Vasto Mundo existia. A floresta no era muito distante, e ao longe, aoeste e ao norte, ficavam os Montes Ermos e as fronteiras das terras misteriosas da regioserrana*. E, entre outras coisas, ainda havia gigantes solta: um pessoal grosseiro epouco civilizado, s vezes encrenqueiro*. Havia um gigante, em especial, que era maior emais obtuso que seus colegas. No encontro meno alguma a seu nome nos relatoshistricos, mas isso no vem ao caso*. Ele era muito grande, tinha um cajado do tamanhode uma rvore e seus passos eram pesados. Afastava olmos do caminho como se fossemfolhas de capim. E era destruidor de estradas e devastador de jardins, pois seus psenormes faziam buracos fundos como poos. Se tropeasse numa casa, acabava com ela.E todos esses estragos ele fazia aonde quer que fosse, pois sua cabea ficava muito acimado telhado das casas e ele deixava que os ps cuidassem de si sozinhos. Ele tambm eramope e bastante surdo. Felizmente morava muito longe, nos Ermos, e raramente visitavaterras habitadas por homens, pelo menos no de propsito. Possua uma enorme casacaindo aos pedaos, bem no alto das montanhas, mas tinha pouqussimos amigos, emrazo da surdez e da falta de inteligncia, alm da escassez de gigantes. Costumava sairpara caminhar nos Montes Ermos e nas regies desertas aos ps das montanhas, sempresozinho.

    Um belo dia de vero, esse gigante saiu para passear e perambulou sem destino,causando muitos estragos nos bosques. De repente, quando o sol j se punha e seaproximava a hora do jantar, percebeu que estava perdido numa parte do pas quedesconhecia totalmente. Enganou-se ao tentar adivinhar a direo correta, e andou semparar, at escurecer. Sentou-se e esperou a lua nascer. Ento andou sem parar sob o luar,dando grandes passadas, resolutas, pois estava ansioso para chegar em casa. Tinhadeixado sua melhor panela de cobre no fogo e temia que o fundo se queimasse. Narealidade, estava se aproximando da fazenda de AEgidius Ahenobarbus Julius Agrcola eda aldeia chamada (na lngua do povo) Ham.

  • Era uma bela noite. As vacas estavam nos campos, e o cachorro de Mestre Giltinha sado por conta prpria para dar um passeio. Ele adorava o luar e coelhos. claroque no fazia idia de que um gigante tambm tinha sado para dar um passeio. Isso lheteria dado uma boa razo para sair sem licena, mas uma razo ainda melhor parapermanecer quieto na cozinha. Por volta das duas horas, o gigante chegou s terras deMestre Gil, quebrou cercas-vivas, pisoteou lavouras e arrasou a plantao de capim parafeno*. Causou, em cinco minutos, mais prejuzo do que a real caa raposa poderia tercausado em cinco dias.

    Garm ouviu pancadas surdas vindas da margem do rio e correu para o lado oeste dapequena colina, na qual ficava a sede da fazenda, para ver o que estava acontecendo. Derepente, viu o gigante atravessar o rio com uma s passada e pisar em Galathea*, a vacapreferida do fazendeiro, esmagando o pobre animal da mesma forma que o fazendeiropoderia ter esmagado um besouro.

    Isso foi mais que suficiente para Garm. Ele deu um ganido de horror e disparoupara casa. Totalmente esquecido de que tinha sado sem permisso, ps-se a latir e a uivardebaixo da janela do quarto do dono.

    Por um bom tempo, no houve resposta. No era fcil acordar Mestre Gil.- Socorro! Socorro! Socorro! - gritou Garm. A janela abriu-se de repente, e uma

    garrafa certeira saiu voando.- Ai! - disse o cachorro, pulando para o lado com a tcnica adquirida na prtica. -

    Socorro! Socorro! Socorro!

  • A apareceu a cabea do fazendeiro.- Maldito cachorro! O que voc est aprontando desta vez? - perguntou.- Nada - respondeu o cachorro.- Voc vai ver o que nada! Vou lhe arrancar o couro amanh de manh - disse o

    fazendeiro, batendo a janela com violncia.- Socorro! Socorro! Socorro! - gritou o cachorro.L veio a cabea de Gil de novo.- Vou mat-lo se continuar fazendo barulho - disse ele. - O que est acontecendo

    com voc, seu bobalho?- Comigo nada - disse o cachorro -, mas com o senhor.- Do que voc est falando? - perguntou Gil, surpreso apesar da raiva. Garm nunca

    lhe dera uma resposta insolente.- Tem um gigante em suas terras, um gigante enorme; e ele est vindo para c -

    disse o cachorro. - Socorro! Socorro! Ele est pisando nos seus carneiros. Esmagou acoitada da Galathea, que ficou achatada como um capacho. Socorro! Socorro! Ele estdestruindo todas as sebes e arrasando todas as lavouras. O senhor precisa agir comrapidez e bravura, ou logo no lhe restar nada. Socorro! - E Garm comeou a uivar.

    - Cale a boca! - ordenou o fazendeiro, fechando a janela. - Deus me livre! - disseconsigo mesmo. E, embora a noite estivesse quente, teve um calafrio e estremeceu.

    - Volte para a cama e no seja bobo! - disse a mulher. - E amanh de manh tratede afogar esse cachorro. No convm acreditar no que um cachorro diz: eles contamqualquer histria quando so apanhados na vadiagem ou roubando.

    - Pode ser que sim, Agatha - disse ele -, e pode ser que no. Mas alguma coisa estacontecendo nas minhas terras, ou Garm virou um coelhinho. O cachorro estavaapavorado. E por que ele chegaria uivando, no meio da noite, quando poderia entrarsorrateiro pela porta dos fundos, de manh cedo, junto com o leite*?

    - No fique a parado, discutindo! - disse ela. - Se est acreditando no cachorro,siga o conselho dele: aja com rapidez e bravura.

    - Falar fcil - respondeu Gil; pois, no fundo, acreditava em boa parte da histriade Garm. De madrugada, gigantes pareciam menos improvveis.

    Alm disso, patrimnio patrimnio, e Mestre Gil tinha um jeito brusco de lidarcom invasores que poucos ousavam desafiar. Vestiu os cales*, desceu at a cozinha eapanhou o bacamarte da parede. H quem possa perguntar o que era um bacamarte. Naverdade, exatamente essa pergunta foi feita aos Quatro Clrigos Cultos de Oxenford.Depois de pensar, eles responderam:

    - Um bacamarte uma arma curta de cano largo que atira muitas bolas oumetralha, capaz de efeito destrutivo a uma distncia limitada e sem mira exata. (Hoje,ultrapassada nos pases civilizados por outras armas de fogo.)

    O bacamarte de Mestre Gil tinha, porm, uma boca larga que se abria como umacometa e no atirava metralha nem bolas de fogo, mas qualquer coisa que ele tivesse

  • mo para enfiar na arma. O bacamarte no tinha efeito destrutivo porque Mestre Gilraramente o carregava e nunca atirava com ele. Geralmente bastava exibi-lo para obter oefeito desejado. E aquela regio ainda no estava civilizada, pois o bacamarte no estavaultrapassado: ele era na realidade a nica espcie de arma de fogo existente, e mesmoassim rara. As pessoas preferiam arcos e flechas e usavam plvora principalmente emfogos de artifcio*.

    Pois bem, Mestre Gil apanhou o bacamarte, carregou-o com bastante plvora, parao caso de serem necessrias medidas extremas, e na larga boca enfiou pregos velhos,pedaos de arame, cacos de loua, ossos, pedras e outros detritos. Calou as botas de canoalto*, vestiu o sobretudo e saiu, atravessando a horta.

    A lua estava baixa, e ele no via nada mais do que as longas sombras negras dearbustos e rvores; mas ouvia uns baques assustadores que subiam pela encosta do monte.No achava que estivesse agindo com rapidez ou bravura, no importava o que Agathadissesse; estava mais preocupado com a propriedade do que com a prpria pele. E assim,sentindo-se um pouco mais tenso do que deveria, dirigiu-se para o alto do monte.

    De repente, acima do topo, surgiu a cara do gigante, plida ao luar, que cintilavanos seus olhos grandes e redondos. Seus ps ainda estavam muito distantes, l embaixo,fazendo buracos nos campos. A lua ofuscou o gigante, e ele no viu o fazendeiro, masMestre Gil o viu e ficou morto de medo. Sem pensar, puxou o gatilho, e o bacamartedisparou com um estrondo atordoante. Por sorte, ele estava mais ou menos apontado paraa carantonha do gigante. Saram voando detritos, com pedras e ossos, cacos de loua epedaos de arame, alm de meia dzia de pregos. E como a distncia era realmente curta,por acaso e no por escolha do fazendeiro, muitos desses objetos atingiram o gigante: umcaco de bule entrou no seu olho e um grande prego ficou preso no seu nariz.

    - Raios! - disse o gigante, com seu jeito vulgar*. - Fui picado!

  • O barulho no lhe causara nenhuma impresso (ele era bastante surdo), mas noestava gostando do prego. Fazia muito tempo que dera com um inseto feroz o suficientepara perfurar sua pele grossa, mas tinha ouvido falar que muito ao longe, a leste, nosPntanos*, havia liblulas que picavam como tenazes em brasa*. Ele achava que tinhadeparado com algo semelhante.

    - Evidentemente, uma regio desagradvel e insalubre - disse ele. - No vou ficarpor aqui.

    Apanhou ento um par de carneiros na encosta do morro para comer quandochegasse em casa e retornou, passando de novo por cima do rio e seguindo na direonor-noroeste* a passo acelerado. Reencontrou o caminho de casa, pois agora ia na direocerta, mas sua panela de cobre perdeu o fundo.Quanto a Mestre Gil, quando o bacamarte disparou, deu-lhe um coice que o jogou decostas no cho. E ali ele ficou, olhando para o cu e se perguntando se os ps do giganteno o atingiriam quando passassem por ele. Mas nada aconteceu, e as pisadas fortesdesapareceram ao longe. Levantou-se, ento, esfregou o ombro e apanhou o bacamarte.De repente, ouviu o som de pessoas dando vivas.

    A maioria das pessoas de Ham ficara olhando pela janela; algumas se vestiram esaram de casa (depois que o gigante foi embora). Outras correram morro acima, aosgritos.

    Os aldees tinham ouvido os apavorantes golpes produzidos pelos ps do gigante,e a maioria tinha se enfiado debaixo das cobertas; alguns, debaixo da cama. Mas Garmsentia orgulho e medo do seu dono. Considerava-o terrvel e esplndido quando estavazangado, e naturalmente achava que essa seria a opinio de qualquer gigante.

    Portanto, assim que viu Gil sair com o bacamarte (geralmente um sinal de cleratremenda), seguiu em disparada na direo da aldeia, aos gritos e latidos.

    - Saiam de casa! Saiam de casa! Levantem-se! Levantem-se! Venham ver comomeu dono admirvel! Ele age com rapidez e bravura. Vai atirar num gigante que invadiusuas terras. Saiam de casa!

    Da maioria das casas, podia-se ver o alto do monte. Quando as pessoas e ocachorro viram a cara do gigante surgir l em cima, tremeram, prendendo a respirao; etodos eles, exceto o cachorro, acharam que o problema seria grande demais para Gilenfrentar. Foi ento que o bacamarte disparou, e o gigante de repente deu meia-volta e foiembora. Estupefatos e alegres, eles bateram palmas e deram vivas; e Garm latiu at dizerchega.

    - Viva! - gritavam. - Que isso lhe sirva de lio!* Mestre AEgidius deu-lhe umbom corretivo. Agora o gigante vai voltar para casa e morrer. Bem feito! - E ento todos

  • deram vivas juntos. Mas, ao mesmo tempo que aplaudiam, consideravam, em interesseprprio, que afinal de contas era possvel atirar com o tal bacamarte. Essa questo tinhasido debatida nas estalagens da aldeia, mas agora o assunto estava encerrado. Mestre Gilteve poucos problemas com invasores a partir de ento.

    Quando parecia no haver mais perigo, alguns dos mais corajosos subiram at otopo do monte para apertar as mos de Mestre Gil. Alguns - o proco, o ferreiro e omoleiro, alm de uma ou duas outras pessoas importantes* - deram-lhe tapinhas nascostas. Isso no lhe agradou (estava com o ombro dolorido), mas se sentiu na obrigaode convid-los para ir sua casa. Sentaram-se em torno da mesa da cozinha, bebendo sua sade e o elogiando ruidosamente. Ele no fez nenhum esforo para esconder osbocejos, mas, enquanto havia bebida, eles nada perceberam. Aps todos terem tomadouma ou duas doses (e o fazendeiro duas ou trs), Mestre Gil comeou a se sentir bastantecorajoso; aps todos terem tomado duas ou trs doses (e ele cinco ou seis), Gil se sentiato bravo quanto seu cachorro o considerava. Despediram-se como bons amigos, e ele deuvigorosos tapinhas nas costas dos outros. As mos de Mestre Gil eram grandes, grossas evermelhas; de modo que ele conseguiu sua vingana.

    No dia seguinte, descobriu que a notcia tinha crescido ao ser relatada, e que ele setornara uma importante figura local. No meio da semana seguinte, a notcia j tinha seespalhado por todas as aldeias, num raio de vinte milhas. Ele se tornara o Heri doCampo, o que achou muito agradvel. Na feira, pagaram-lhe bebida suficiente para fazerflutuar um barco, ou seja, ele bebeu at no poder mais e voltou para casa cantandoantigas canes hericas.

  • Por fim, a histria chegou at os ouvidos do Rei. Naqueles tempos felizes, a capitaldo reino -, o Reino Mdio da ilha - ficava a cerca de vinte lguas de distncia de Ham*; egeralmente, na corte, no se dava muita ateno ao que os camponeses faziam nasprovncias. Mas a expulso to rpida de um gigante pernicioso pareceu digna de nota ede uma pequena cortesia. Portanto, no devido tempo, ou seja, cerca de trs meses depois,e na festa de So Miguel*, o Rei enviou uma magnfica carta. Estava escrita em vermelhosobre pergaminho branco* e expressava a aprovao real de "nosso leal e bem-amadosdito AEgidius Ahenobarbus Julius Agrcola de Hammo".

    A carta estava assinada com um borro vermelho*, mas o escriba da corteacrescentara: Ego Augustus Bonfacus Ambrosus Aurelanus Antoninus Pus etMagnfcus, dux, rex, tyrannus, et basleus Medterranearum Partum, subscrbo*;alm disso, havia um grande selo vermelho.

    Portanto, o documento era evidentemente genuno, e deu enorme prazer a Gil, almde ser muito admirado, sobretudo quando se descobriu que bastava pedir para ver odocumento para conseguir um lugar e um copo junto lareira do fazendeiro.

    Melhor que o documento escrito era o presente que o acompanhava. O Rei enviouum cinto e uma longa espada. Para dizer a verdade, o prprio Rei nunca usara a espada.Ela pertencia famlia e estava guardada no arsenal havia muito tempo. O armeiro nosoube dizer como foi parar ali ou qual seria sua utilidade. Espadas pesadas e simplescomo aquela estavam fora de moda na corte da poca, e o Rei achou que era o presenteperfeito para um homem do campo. Mas Mestre Gil ficou encantado, e sua reputaolocal cresceu enormemente.

    Gil estava gostando muito do rumo dos acontecimentos. Seu cachorro tambm.Garm jamais recebeu a surra prometida. Gil se considerava um homem justo. No fundo,dava a Garm boa parte do crdito, embora nunca chegasse ao ponto de mencionar o

  • assunto. Continuou a lanar-lhe palavras speras e objetos duros sempre que tinhavontade, mas fingia que no via muitas escapadas sem importncia. Garm acostumou-se apassear mais longe. O fazendeiro desfilava com o passo largo, e a sorte lhe sorria. Otrabalho do outono e do incio do inverno corria bem. Tudo parecia perfeito -at achegada do drago*.

    Nessa poca, os drages j estavam se tornando raros na ilha. Havia muitos anosque no se via nenhum no Reino Mdio de Augustus Bonifacius. Existiam, naturalmente,as fronteiras das terras misteriosas e as montanhas desabitadas, ao norte e a oeste, mas agrande distncia. Naquelas regies, em tempos remotos, residia uma grande quantidade dedrages de uma espcie ou de outra, e eles faziam ataques de surpresa por toda parte. Noentanto, nesse perodo, o Reino Mdio era famoso pela ousadia dos cavaleiros do Rei; etantos drages perdidos tinham sido mortos ou voltado com ferimentos graves que osoutros desistiram de ir naquela direo.

    Ainda era costume servir Cauda de Drago no Banquete de Natal do Rei*; e todo oano um cavaleiro era escolhido para a tarefa da caa. Ele deveria partir no dia de SoNicolau* e voltar com uma cauda de drago o mais tardar na vspera do banquete. Porm,havia muitos anos o Real Cozinheiro preparava uma iguaria maravilhosa, uma FalsaCauda de Drago de bolo e pasta de amndoas, com escamas simuladas feitas de acarde confeiteiro*. O cavaleiro escolhido levava esse prato at o salo na Vspera de Natal,enquanto os violinos tocavam e os clarins soavam*. A Falsa Cauda de Drago era comidaaps o jantar no Dia de Natal, e todo o mundo dizia (para agradar ao cozinheiro) que eramuito mais gostosa que a Cauda Verdadeira.

    Era essa a situao quando surgiu novamente um drago de verdade. Grande parteda culpa era do gigante. Depois de sua aventura, ele comeou a passear pelas montanhas,visitando seus parentes dispersos mais do que de costume, e muito mais do que lhesagradava, pois estava sempre tentando conseguir uma grande panela de cobre emprestada.No entanto, quer conseguisse o emprstimo, quer no, se sentava e falava, naquele seuestilo arrastado e enfadonho, sobre a excelente regio que ficava l para as bandas doleste e sobre as maravilhas do Vasto Mundo. O gigante cismara que era um viajanteousado e notvel.

    - Uma terra agradvel - dizia ele -, bastante plana, macia aos ps, com alimento vontade: vacas*, vocs sabem, e carneiros por toda parte, fceis de localizar, se vocolhar com cuidado.

    - E as pessoas, como so? - perguntavam.- No vi ningum - disse ele. - No vi nem ouvi um cavaleiro que fosse, meus

    caros. Nada mais srio que algumas picadas de mosquito perto do rio.- Por que voc no volta e fica por l? - indagavam.

  • - Bem, dizem que no existe lugar melhor que a casa da gente. Mas pode ser queeu volte um dia, se me der vontade. Seja como for, j estive l uma vez, o que mais doque a maioria das pessoas poderia dizer. E quanto panela de cobre?

    - E essas terras riqussimas - apressavam-se os outros a perguntar - essas terrasaprazveis, cheias de gado indefeso, para que lado ficam? E a que distncia?

    - Ah - respondia ele -, muito longe, a leste e a sudeste. uma longa viagem. -Ento iniciava um relato to exagerado da distncia que havia percorrido, dos bosques,montes e plancies que atravessara, que nenhum dos outros gigantes de pernas menoscompridas jamais empreendeu a viagem. Mesmo assim, a histria se espalhou.

    E ento ao vero agradvel seguiu-se um inverno rigoroso. Fazia um frio cortantenas montanhas, e havia escassez de alimento. Os comentrios aumentaram. Conversava-se muito sobre as vacas e os carneiros das boas pastagens das plancies. Os dragesaguavam os ouvidos; estavam famintos, e esses boatos lhes interessavam.

    - Quer dizer que os cavaleiros so mticos*! - diziam os drages mais jovens emenos experientes. - Essa sempre foi nossa opinio.

    - Pelo menos, podem estar se tornando raros - pensavam os lagartos* mais velhos emais prudentes -, to poucos que no inspiram mais temor.

    Houve um drago que se deixou influenciar profundamente. Chamava-seChrysophylax Dives*, pois era de antiga linhagem imperial*, alm de muito rico. Eraesperto, curioso, voraz, provido de boa couraa, mas no excessivamente corajoso. Fossecomo fosse, no tinha medo algum de moscas ou insetos de qualquer tipo ou tamanho, eestava morto de fome.

    Assim, num dia de inverno, cerca de uma semana antes do Natal, Chrysophylaxabriu as asas e levantou vo. Pousou em silncio, no meio da noite, bem no corao doreino de Augustus Bonifacius rex et basileus. Em pouco tempo fez um monte de estragos,destruiu e queimou, alm de devorar carneiros, gado e cavalos.

    Isso ocorreu muito distante de Ham, mas Garm levou o maior susto de sua vida.Tinha sado numa longa expedio e, aproveitando-se da complacncia do dono, searriscara a passar uma noite ou duas longe de casa. Seguia um odor atrativo s margens dafloresta quando fez uma curva fechada e, de repente, deu com um cheiro novo e

  • assustador. Na realidade, bateu direto na cauda de Chrysophylax Dives, que acabava depousar. Nunca um cachorro deu meia-volta e voltou para casa, em disparada, mais rpidoque Garm*. O drago, ao ouvir seu gritinho, virou-se e bufou, mas Garm j estava fora dealcance. Ele correu o resto da noite e chegou em casa perto da hora do caf da manh.

    - Socorro! Socorro! Socorro! - gritou ele, do lado de fora da porta dos fundos.Gil ouviu e no gostou nem um pouco. O som o fazia lembrar que o inesperado

    pode acontecer quando tudo parece estar indo s mil maravilhas.- Mulher, deixe esse maldito cachorro entrar e d-lhe umas pauladas!

    Garm entrou alvoroado na cozinha, com os olhos esbugalhados e a lngua de fora.- Socorro! - gritou ele.- Ento, o que voc aprontou desta vez? - perguntou Gil, jogando uma lingia

    para o cachorro.- Nada - respondeu Garm, ofegante, agitado demais para dar ateno lingia.- Bem, pare com isso ou eu lhe arranco o couro - disse o fazendeiro.- No fiz nada de errado. No tive m inteno - disse o cachorro. - Mas dei com

    um drago por acaso, e isso me apavorou.O fazendeiro engasgou com a cerveja.- Drago? - disse ele. - Que os diabos o carreguem, seu enxerido* imprestvel! Por

    que voc precisava sair para encontrar um drago bem nesta poca do ano? E eu comtanto o que fazer! Onde foi isso?

    - Ah! Ao norte, do outro lado dos montes, para l das Pedras-em-P*, mais oumenos - disse o cachorro.

    - L para aqueles lados! - disse Gil, com um alvio enorme. - O povo muitoestranho por l*, foi o que ouvi dizer. E qualquer coisa poderia acontecer nas terras deles.Eles que tratem do assunto! No venha voc me importunar* com esse tipo de histria.Fora daqui!

    Garm saiu e espalhou a notcia por toda a aldeia. No se esqueceu de mencionarque seu dono no estava nem um pouco assustado.

    - Na maior calma, era como ele estava, e continuou a tomar o caf da manh.As pessoas tagarelavam alegres sobre o assunto porta de casa.- Como parecido com os velhos tempos! - diziam. - E bem na chegada do Natal,

    ainda por cima. Veio a calhar. Como o Rei vai ficar feliz! Neste Natal poder comerCauda Verdadeira.

    No dia seguinte, porm, chegaram outras notcias. Parecia que o drago era detamanho e ferocidade excepcionais. Estava causando danos terrveis.

    - E os cavaleiros do Rei? - as pessoas comearam a indagar.

  • Outros j tinham feito a mesma pergunta. Com efeito, agora chegavam ao Reimensageiros provenientes das aldeias mais atingidas por Chrysophylax, e se dirigiam a eleem voz to alta e tantas vezes quanto ousavam.

    - Senhor, e os seus cavaleiros?No entanto, os cavaleiros nada faziam; as notcias que tinham do drago eram

    totalmente extra-oficiais.Por isso, o Rei levou a questo ao conhecimento deles, em comunicado formal,

    pedindo que tomassem as providncias necessrias assim que lhes conviesse. O Rei ficouextremamente irritado ao descobrir que o momento que convinha aos cavaleiros noestava de modo algum prximo e que de fato era postergado todos os dias.

    Contudo, as desculpas dos cavaleiros eram indubitavelmente bem fundamentadas.Em primeiro lugar, o Real Cozinheiro j tinha feito a Cauda de Drago para aquele Natal,pois gostava de aprontar tudo com antecedncia. No ficava bem ofend-lo, trazendo umacauda de verdade na ltima hora. Tratava-se de um servial valiosssimo.

    - Esqueam a Cauda! Basta decapitar o cozinheiro e acabar com ele! - exclamavamos mensageiros das aldeias que quase tinham sido atingidas.

    Mas o Natal chegara, e infelizmente um grande torneio fora organizado para o diade So Joo*: cavaleiros de muitos reinos tinham sido convidados e estavam a caminhopara competir por um prmio valioso. Era obviamente irracional comprometer as chancesdos cavaleiros da Terra Mdia enviando seus melhores homens para caar o drago antesque o torneio terminasse.

    Depois, vinha o feriado do Ano-Novo.Mas toda noite o drago se movimentava, e se aproximava mais de Ham. Na noite

    de Ano-Novo, as pessoas podiam ver um claro ao longe. O drago tinha se instaladonuma floresta, a cerca de dez milhas dali, que ardia em chamas saltitantes. Era um dragofogoso, quando queria.

    A partir daquele dia, as pessoas comearam a olhar para Mestre Gil e a sussurrarnas suas costas. Muito constrangido, ele fingia no perceber. No dia seguinte, o drago seaproximou mais algumas milhas. Ento o prprio Mestre Gil comeou a reclamar doescndalo dos cavaleiros do Rei.

    - Queria saber o que eles fazem para ganhar seu sustento - disse ele.- Ns tambm! - disseram todos em Ham.- Alguns homens ainda obtm o ttulo de cavaleiro por puro mrito - acrescentou o

    moleiro. - Afinal de contas, nosso bom AEgidius j um cavaleiro, de certa forma. O Reino lhe enviou uma carta vermelha* e uma espada?

    - Ser cavaleiro mais do que ter uma espada - disse Gil. - Pelo que sei, precisoser armado cavaleiro* e tudo o mais. Seja como for, tenho meus prprios negcios comque me ocupar.

  • - Ah! Mas o Rei sem dvida o armaria cavaleiro, se lhe pedissem - disse o moleiro.- Vamos pedir antes que seja tarde demais!

    - No! - disse Gil. - Essa histria de armar cavaleiro no para gente como eu. Souum homem da terra e tenho orgulho disso: um homem simples e honesto, e dizem que oshonestos no se do bem na corte. Acho que combinaria mais com seu estilo, MestreMoleiro*.

    O proco sorriu. No com a rplica do fazendeiro, pois Gil e o moleiro estavamsempre trocando respostas mordazes, j que eram inimigos do peito*, como se dizia emHam. De repente ocorrera ao proco uma idia que lhe agradava, mas ele no disse maisnada naquele momento. O moleiro no ficou to satisfeito e fechou a cara.

    - Simples, sem dvida, e honesto talvez - disse ele. - Mas ser que preciso ir corte e ser cavaleiro para matar um drago? Tudo o que preciso coragem, como ontemmesmo ouvi Mestre AEgidius declarar. Certamente ele tem tanta coragem quantoqualquer cavaleiro.

    Alguns presentes gritaram:- claro que no! Outros disseram:- Tem, sim! Trs vivas para o Heri de Ham!Mestre Gil foi para casa, muito constrangido. Descobria que uma reputao local

    precisava ser mantida, e que isso pode ser embaraoso. Deu um chute no cachorro eescondeu a espada no armrio da cozinha. At aquele instante, ela ficara pendurada acimada lareira.

    No dia seguinte, o drago passou para a aldeia vizinha de Quercetum (Oakley, nalngua do povo)*. Ali devorou no s carneiros e vacas, mas tambm uma ou duaspessoas de tenra idade, alm do proco. Bastante imprudente, o sacerdote procuraradissuadir o drago dos seus hbitos nocivos. Houve ento uma terrvel comoo. Toda apopulao de Ham subiu o monte, liderada pelo seu prprio proco, e juntos fizeram umavisita a Mestre Gil.

    - Contamos com voc! - disseram. E ficaram por ali, at o rosto do fazendeiro ficarmais vermelho que sua barba.

    - Quando vai pr o p na estrada? - perguntaram.- Bem, hoje no posso, essa a pura verdade. Estou muito ocupado, com meu

    vaqueiro* doente e tudo o mais. Vou cuidar do assunto.Todos foram embora, mas retornaram noite, pois houve rumores de que o drago

    tinha chegado ainda mais perto.- Contamos com voc, Mestre AEgidius - disseram.- Bem - respondeu ele -, as coisas andam complicadas para o meu lado. Minha

    gua est mancando, e as ovelhas comearam a parir. Vou cuidar disso assim que puder.E l foram eles embora mais uma vez, no sem alguns resmungos e sussurros. O

    moleiro abafava risinhos. O proco ficou, pois foi impossvel livrar-se dele, que seconvidou para o jantar e fez alguns comentrios incisivos. At perguntou o que haviaacontecido com a espada, insistindo em v-la.

    Estava guardada no armrio, numa prateleira que mal tinha comprimento suficientepara ela. Assim que Mestre Gil a tirou dali, ela saltou da bainha como um raio, e ofazendeiro deixou-a cair, como se estivesse queimando de to quente. O proco em umpulo ps-se de p, derrubando a cerveja. Apanhou a espada com cuidado e tentou enfi-lana bainha, mas ela se recusava a entrar um palmo que fosse e saltou para fora assim que oproco largou o punho.

    - Minha nossa! Que estranho! - disse o proco, dando uma boa olhada tanto nabainha como na lmina. Ele era um homem letrado*, ao contrrio do fazendeiro, que mal

  • conseguia soletrar letras unciais* grandes e no tinha certeza de como se lia sequer oprprio nome. Por isso Gil nunca tinha dado ateno s letras estranhas que mal se podiaperceber na bainha e na espada. Quanto ao armeiro do Rei, estava to acostumado arunas, nomes e outros sinais de poder e importncia gravados em espadas e bainhas queno se incomodara com eles. Fosse como fosse, julgava-os obsoletos.

    O proco, porm, olhou detidamente e franziu o cenho. Esperava encontrar algumainscrio na espada ou na bainha, e, na realidade, fora essa a idia que lhe ocorrera no diaanterior. Mas agora estava surpreso com o que via, pois havia letras e sinais cujosignificado ele no conseguia decifrar.

    - H uma inscrio na bainha e alguns, hum, sinais epigrficos na espada* - disseele,

    - mesmo? - perguntou Gil. - E o que isso quer dizer?- Os caracteres so arcaicos, e a linguagem, inculta - disse o proco, para ganhar

    tempo. - Ser preciso um exame mais minucioso. - Ele implorou que a espada lhe fosseemprestada por aquela noite, e o fazendeiro permitiu de bom grado que a levasse.

    Quando o proco chegou em casa, tirou muitos livros eruditos das estantes e ficouestudando durante a noite. Na manh do dia seguinte, o drago tinha se aproximado aindamais. Toda a populao de Ham ps trancas nas portas e tapou as janelas. E os que tinhamadega desceram para seu interior e ficaram ali sentados, tremendo luz de velas.

    Mas o proco saiu sorrateiro e foi de porta em porta. Contou a todos os que sedispuseram a ouvir por uma fenda ou um buraco de fechadura o que descobrira.

    - Nosso caro AEgidius - disse ele -, por cortesia do Rei, agora o proprietrio deCaudimordax, a famosa espada que no romanceiro popular vulgarmente conhecidacomo Morde-cauda*.

  • Todos os que ouviam esse nome geralmente abriam a porta, pois conheciam a famade Morde-cauda, espada que pertencera a Bellomarius, o maior de todos os matadores dedrages* do reino. Alguns relatos faziam dele o tetrav do Rei pelo lado materno. Erammuitas as canes e os relatos dos seus feitos e, se estavam esquecidos na corte, aindaeram lembrados nas aldeias.

    - Essa espada - disse o proco - recusa-se a permanecer na bainha se houver umdrago num raio de cinco milhas; e, sem dvida, nas mos de um bravo, nenhum dragopode resistir a ela*.

    O povo se reanimou, e alguns at abriram a janela e puseram a cabea para fora. Oproco convenceu alguns a vir com ele, mas somente o moleiro estava realmente disposto.Na sua opinio, ver Gil numa situao verdadeiramente embaraosa valia o risco.

    Subiram a colina, no sem lanar olhares temerosos para o norte, do outro lado dorio. Nenhum sinal do drago. Era provvel que estivesse dormindo. Vinha se alimentandomuito bem durante todo o perodo do Natal.

    O proco (e o moleiro) bateram insistentemente na porta do fazendeiro. Como nohouve resposta, bateram com mais fora. Afinal Gil apareceu, com o rosto muitovermelho. Tambm ele tinha ido dormir tarde, depois de tomar muita cerveja forte, e tinharecomeado a beber assim que se levantou.

    Todos o cercaram, chamando-o de Bom AEgidius, Bravo Ahenobarbus, GrandeJulius, Fiel Agrcola, Orgulho de Ham, Heri do Campo. E falavam de Caudimordax,Morde-cauda, A Espada que se Recusava a Ficar na Bainha, Morte ou Vitria, Glria dosPequenos Proprietrios Rurais, Espinha Dorsal do Pas e Bem do Nosso Prximo*, at acabea do fazendeiro virar uma confuso insolvel.

    - Pois bem! Um de cada vez! - disse ele, quando teve oportunidade. - O queaconteceu? O que significa tudo isso? Esta a minha manh mais ocupada, vocs sabem.

    Eles deixaram que o proco explicasse a situao. E o moleiro teve o prazer de vero fazendeiro num aperto to difcil quanto poderia desejar. S que o curso dosacontecimentos no foi exatamente o que o moleiro esperava. Para comeo de conversa,Gil tinha bebido muita cerveja forte. E, alm disso, teve uma estranha sensao deorgulho e estmulo ao saber que sua espada era realmente Morde-cauda. Quando eramenino, gostava muito de histrias sobre Bellomarius e, antes de adquirir juzo, s vezesdesejara ter uma espada herica e maravilhosa s para si. Assim, repentinamente foidominado pela vontade de apanhar Morde-cauda e sair caa do drago. Mas estavaacostumado a sempre regatear e fez mais um esforo para adiar o acontecimento.

    - O qu! - disse ele. - Eu sair caa de drages? Com meu colete e perneiras*velhas? Pelo que sei, lutar com drages exige algum tipo de armadura. No h nenhumaarmadura nesta casa, essa a pura verdade.

    Todos admitiram que a situao era um pouco estranha, mas mandaram chamar oferreiro. Ele abanou a cabea. Era um homem lento, sombrio, conhecido como SamRisonho, apesar de seu nome correto ser Fabricius Cunctator*. Jamais assoviava notrabalho, a menos que alguma catstrofe (como uma geada em maio) tivesse ocorridoexatamente como previsto por ele. Como diariamente predizia desastres de toda natureza,poucos aconteciam sem que ele tivesse previsto, e assim podia receber crdito por eles.Esse era seu principal prazer; logo, era natural que relutasse em fazer qualquer coisa queimpedisse uma desgraa. Ele voltou a abanar a cabea.

    - No posso fazer armadura sem material - disse ele. - E no minha especialidade. melhor vocs encomendarem ao carpinteiro um escudo de madeira. No que v ser degrande ajuda. Ele um drago quente.

    Todos ficaram consternados, mas o moleiro no ia desistir com tanta facilidade de

  • mandar Gil ao encontro do drago, se ele quisesse ir; ou de acabar com sua reputaolocal, se ele se recusasse.

    - Que tal uma cota de malha*? - sugeriu. - Serviria e no precisaria ser nenhumprimor. Seria para a prtica, no para exibio na corte. Onde est seu velho gibo* decouro, amigo AEgidius? Temos uma enorme pilha de elos e anis na oficina do ferreiro.Suponho que nem mesmo Mestre Fabricius saiba o que pode estar jogado por l.

    - Voc no sabe o que est dizendo - disse o ferreiro, com mais animao. - Sepensa na verdadeira cota de malha, no vai consegui-la. Ela exige a habilidade dosanes*, pois cada anelzinho se encaixa em outros quatro e assim por diante. Mesmo queeu soubesse a tcnica, o trabalho levaria semanas. E antes disso todos estaremos na covaou pelo menos dentro do drago.

    Todos torceram as mos em desespero, e o ferreiro comeou a sorrir. Mas agoraestavam to alarmados que no se dispunham a desistir do plano do moleiro e se voltarampara ele em busca de conselho.

    - Pois bem - disse ele -, ouvi dizer que, antigamente, quem no podia comprar asbrilhantes cotas de malha* fabricadas no sul costumava prender anis de ao numa camisade couro e se contentava com isso. Vamos ver o que pode ser feito nesse sentido!

    Assim, Gil teve de apanhar seu velho gibo, e o ferreiro foi levado s pressas devolta oficina. L eles vasculharam todos os cantos e reviraram a pilha de metal velho,como no acontecia havia muitos anos. No fundo, encontraram, totalmente coberto pelaferrugem, um monte de pequenos anis, cados de alguma cota esquecida, como aquelaque o moleiro mencionara. Sam, mais relutante e sombrio medida que a tarefa pareciamais promissora, foi posto a trabalhar no mesmo instante, recolhendo, separando elimpando os anis. E, quando eles se revelaram obviamente insuficientes para algumcom peito e costas to largos quanto Mestre AEgidius (como ele teve o prazer desalientar), fizeram Sam desmanchar velhas correntes e martelar os elos para formar anis*to bons quanto sua capacidade lhe permitisse criar.

    Apanharam e prenderam os anis de ao menores sobre o peito do gibo ecosturaram os maiores e mais desajeitados nas costas; e depois, quando mais anissurgiram, tamanha era a presso sobre o pobre Sam, pegaram um par de cales dofazendeiro e tambm prenderam anis neles. No alto de uma prateleira, num canto escuroda oficina, o moleiro encontrou a antiga armao de ferro de um elmo. Ps ento osapateiro a trabalhar, para cobri-la com couro da melhor forma possvel.

    Trabalharam todo o resto daquele dia e o seguinte, que era vspera do dia de Reis eda Epifania*, mas os festejos foram deixados de lado. Mestre Gil celebrou a ocasio commais cerveja do que de costume, mas o drago felizmente dormiu. Por enquanto, ele

  • estava totalmente esquecido da fome ou de espadas.Bem cedo, no dia de Reis, subiram o monte levando o estranho resultado do seu

    artesanato. Gil os esperava. Agora no lhe restavam mais desculpas; assim, vestiu oscales e o gibo de cota de malha. O moleiro abafava o riso. Gil ento calou as botas decano alto e um velho par de esporas e ps na cabea o elmo coberto de couro. No ltimoinstante, porm, enfiou um velho chapu de feltro por cima do elmo, e sobre a cota demalha jogou sua grande capa cinzenta*.

    - Para que isso, Mestre? - perguntaram-lhe.- Bem - disse Gil -, se a idia de vocs caar o drago tilintando como os

    Sininhos de Canturia*, essa no a minha. No faz sentido alertar o drago sobre nossaaproximao antes da hora. E um elmo um elmo, um desafio ao combate. melhor queo lagarto veja somente meu velho chapu por cima da sebe; assim talvez eu consiga meaproximar mais antes de comear a encrenca.Eles tinham costurado os anis no couro de modo que se sobrepusessem, cada um soltosobre o que ficava abaixo, e sem dvida eles tilintavam. A capa at que abafava obarulho, mas Gil estava muito esquisito com aquele traje. Ningum lhe disse isso.Prenderam com dificuldade o cinto na sua cintura e penduraram nele a bainha; mas Gilprecisou carregar a espada na mo, pois ela no ficava mais embainhada, a no ser pormeio de uma fora extrema.

    O fazendeiro chamou por Garm. Considerava que era um homem justo.- Cachorro - disse ele -, voc vem comigo. O cachorro uivou.- Socorro! Socorro! - gritava.- Vamos parar com isso! - disse Gil. - Ou lhe dou coisa muito pior do que um

    drago lhe daria. Voc conhece o cheiro desse lagarto, e talvez seja til pelo menos umavez.

    Mestre Gil chamou ento sua gua cinzenta. Ela lhe lanou um olhar estranho etorceu o nariz para as esporas. Mas deixou que ele montasse, e l se foram eles, nenhumse sentindo feliz. Atravessaram o povoado a trote, e toda a populao bateu palmas e deuvivas, em sua maioria das janelas das casas. O fazendeiro e a gua tentaram demonstrar acoragem possvel, mas Garm no teve nenhuma vergonha e os acompanhou com arfurtivo, o rabo entre as pernas.

    Atravessaram o rio pela ponte no final da aldeia. Quando finalmente estavam forado alcance da viso, desaceleraram at andar a passo. No entanto, logo passaram dasterras que pertenciam a Mestre Gil e a outros moradores de Ham e chegaram regio jvisitada pelo drago. Havia rvores quebradas, sebes queimadas e capim enegrecido*,

  • alm de um silncio desagradvel e perturbador.

    O sol brilhava forte. Mestre Gil desejava tirar uma ou duas peas do traje, e seperguntava se no havia tomado um caneco alm da conta.

    - Belo encerramento de Natal essa histria toda - pensou. - E vai ser muita sorteminha se no for o meu fim tambm.

    Enxugou o rosto com um grande leno verde, no vermelho, pois trapos vermelhosdeixam os drages furiosos*, ou era o que tinha ouvido falar.

    Mas no encontrou o drago. Seguiu por muitos caminhos, largos e estreitos,passou pelos campos desertos de outros fazendeiros, e mesmo assim no encontrou odrago. claro que Garm no ajudava em nada. Mantinha-se atrs da gua e se recusavaa usar o faro.

    Chegaram afinal a uma estrada sinuosa, que tinha sofrido poucos estragos e pareciatranqila e em paz. Depois de caminhar meia milha, Gil comeou a se perguntar se j nocumprira seu dever e tudo o que sua reputao exigia. J tinha concludo que procurarabastante tempo e a uma distncia suficiente. Porm, mal pensou em dar meia-volta, nojantar e na histria que contaria aos amigos - de que o drago o avistara e simplesmentefugira voando -, fez uma curva fechada, e l estava o drago, meio deitado sobre umasebe quebrada, com a cabea horrvel no meio da estrada.

    - Socorro! - gritou Garm e fugiu como um raio.A gua cinzenta arriou no cho. Mestre Gil escorregou para trs, caindo numa vala.

    Quando ps a cabea para fora, l estava o drago, bem acordado, olhando para ele.- Bom dia! - disse o drago. - Voc parece surpreso.- Bom dia! - disse Gil. - E estou mesmo.- Perdoe-me - disse o drago, que tinha levantado uma orelha cheia de suspeita ao

    captar o som do tilintar dos anis. - Perdoe-me perguntar, mas por acaso voc no estavame procurando?

    - De modo algum! - disse o fazendeiro. - Quem imaginaria encontr-lo por aqui?S estava passeando a cavalo.

    Saiu todo alvoroado da vala e foi recuando na direo da gua cinzenta. Ela agoraestava em p, mordiscando um pouco de capim margem do caminho, aparentando totaldespreocupao.

    - Quer dizer que nos encontramos por pura sorte - disse o drago. - Muito prazer.Suponho que esses sejam seus trajes de festa. Talvez, uma nova moda? - O chapu defeltro de Mestre Gil tinha cado, e sua capa cinzenta se abrira, mas ele no perdeu acompostura.

    - Isso mesmo, so novinhos em folha. Mas preciso ir atrs do meu cachorro. Deveestar perseguindo coelhos, imagino.

  • - Acho que no - disse Chrysophylax, lambendo os beios (sinal de que estava sedivertindo). - Calculo que ele vai chegar em casa muito antes de voc. Mas queira seguircaminho, Senhor... deixe-me ver... acho que no sei seu nome.

    - Nem eu o seu - disse Gil -, mas vamos deixar como est.- Como queira - disse Chrysophylax, lambendo os beios mais uma vez, mas

    fingindo fechar os olhos. Tinha o corao perverso (como todos os drages), mas no eramuito corajoso (como no raro). Preferia uma refeio pela qual no tivesse de lutar,mas seu apetite voltara depois de um longo e agradvel sono. Achara o proco de Oakleymuito fibroso e fazia anos que no provava um homem grande e gordo. Agora estavadecidido a experimentar essa carne fcil e aguardava apenas um momento em quepudesse apanhar o velho pateta desprevenido.

    Mas o velho pateta no era to tonto quanto parecia e no tirava o olho do drago,nem mesmo enquanto estava tentando montar. A gua, entretanto, no estava de acordo.Ela escoiceou e refugou quando Gil tentou subir. O drago impacientou-se e se aprontoupara dar o bote.

    - Com licena! - disse ele. - Voc no deixou cair alguma coisa?Um velho truque, mas deu certo, pois Gil tinha de fato deixado cair alguma coisa.

    Quando caiu para trs, soltou Caudimordax (vulgo Morde-cauda), e l estava ela jogadaao lado do caminho. Gil abaixou-se para apanh-la, e o drago deu o bote. Mas no to

  • rpido quanto Morde-cauda. No instante em que se encontrou nas mos do fazendeiro, elasaltou frente como um raio, direto nos olhos do drago.

    - Epa! - disse o drago, estancando de chofre. - O que isso a na sua mo?- s Morde-cauda, que me foi dada pelo Rei -disse Gil.- Enganei-me! - disse o drago. - Peo-lhe perdo. - Ele se prostrou no cho, e

    Mestre Gil comeou a se sentir mais vontade. - Mas acho que voc no agiu limpocomigo.

    - Como no? - perguntou Gil. - E, seja como for, por que eu deveria agir limpo?- Voc ocultou seu ilustre nome e fingiu que nosso encontro foi por acaso. No

    entanto, bvio que um cavaleiro de alta linhagem. Antigamente, senhor, era costumeos cavaleiros lanarem um desafio em casos semelhantes, depois da devida troca dettulos e credenciais.

    - Talvez fosse o costume e talvez ainda seja - disse Gil, comeando a se sentirsatisfeito consigo mesmo. compreensvel que um homem que tenha um drago grande emajestoso prostrado sua frente se sinta um pouco enaltecido. - Mas voc est seenganando mais uma vez, velho lagarto. No sou cavaleiro. Sou Mestre AEgidius deHam, o fazendeiro, o que sou. E no tolero que invadam minha propriedade. J atirei emgigantes com meu bacamarte, por estragos muito menores do que os que voc causou. Etambm no lancei nenhum desafio.

    O drago ficou perturbado. "Maldito gigante mentiroso!", pensou. " lamentvelcomo fui ludibriado. E agora, o que que se faz com um fazendeiro corajoso e umaespada to brilhante e agressiva?" No conseguia se lembrar de nenhum caso semelhante.

    - Eu me chamo Chrysophylax - disse. - Chrysophylax, o Rico. Em que posso servira Vossa Senhoria? - acrescentou em tom insinuante, com um olho na espada e esperandoevitar o combate.

    - Voc pode sumir daqui, sua praga de carapaa* - disse Gil, tambm na esperanade evitar o combate. - S quero me livrar de voc. Volte para seu covil imundo! - Ele deuum passo na direo de Chrysophylax, agitando os braos como se estivesse espantandocorvos.

    Aquilo bastou para Morde-cauda. Ela descreveu um crculo no ar, lampejante, ecaiu com fora, atingindo o drago na articulao da asa direita, com um golpe estridenteque o deixou extremamente chocado. claro que Gil no sabia quase nada sobre osmtodos para matar um drago, ou a espada teria pousado em parte mais tenra, masMorde-cauda fez o melhor que pde em mos inexperientes. E foi o suficiente paraChrysophylax: ele no pde usar a asa durante dias. Bem que tentou se levantar e se virar

  • para voar, mas descobriu que no conseguia. De um salto, o fazendeiro montou na gua.O drago comeou a correr. A gua tambm. O drago atravessou um campo a galope,arfando e bufando. A gua tambm. O fazendeiro berrava e gritava como se estivesseassistindo a uma corrida de cavalos; e o tempo todo agitava Morde-cauda. Quanto mais odrago corria, mais atordoado ficava. E o tempo todo a gua cinzenta dava tudo de si* ese mantinha bem nos calcanhares do drago.

    Correram ruidosamente pelos caminhos, passaram por buracos em cercas,atravessaram muitos campos e muitos crregos. O drago fumegava, rugia e tinha perdidotoda a noo de direo. Afinal chegaram ponte de Ham, passaram estrondosamente porela e desceram, fazendo muito barulho, a rua da aldeia. Ali Garm teve o descaramento desair sorrateiro de um beco e se juntar perseguio.

    Toda a populao estava janela ou em cima do telhado. Alguns riam, outrosdavam vivas; alguns batiam em latas, panelas e chaleiras, outros sopravam clarins, flautase apitos. O proco mandou tocar os sinos da igreja. Havia um sculo no se ouvia falar detamanho rebulio e comoo em Ham.

    Bem do lado de fora da igreja, o drago desistiu. Deitou-se no meio da rua,arquejando. Garm veio e farejou-lhe a cauda, mas para Chrysophylax j no havia maisdo que ter vergonha.

    - Boa gente e bravo guerreiro - disse ofegante, quando Mestre Gil se aproximou eenquanto os aldees se reuniam (a uma distncia razovel) com forcados, paus eatiadores nas mos. - Boa gente! No me matem! Sou muito rico. Pagarei por todos osestragos que causei. Pagarei os enterros de todas as pessoas que matei, especialmente o doproco de Oakley; ele ter um cenotfio* majestoso, embora fosse muito magro. Farei acada um de vocs uma doao realmente valiosa, se ao menos me deixarem ir em casabusc-la.

    - De quanto? - disse o fazendeiro.- Bem - disse o drago, fazendo clculos rpidos. Percebia que a multido era

    bastante numerosa. - Treze xelins e oito pence* para cada um?

  • - Um absurdo! - disse Gil.- Uma ninharia! - disseram as pessoas.- Um disparate! - disse o cachorro.- Dois guinus de ouro para cada um e a metade disso para cada criana?* - props

    o drago.- E os cachorros? - perguntou Garm.- Prossiga! - disse o fazendeiro. - Estamos escutando.- Dez libras e uma bolsa de prata para cada pessoa e coleiras de ouro para os

    cachorros? - perguntou Chrysophylax ansioso.- Matem-no! - gritaram as pessoas, mais impacientes.

    - Um saco de ouro para todos e diamantes para as damas? - disse Chrysophylax,apressado.

    - Agora voc est chegando l*, mas ainda no o suficiente - disse Mestre Gil.- Mais uma vez deixou os cachorros de fora - disse Garm.- Qual o tamanho dos sacos? - perguntaram os homens.- Quantos diamantes? - indagaram as mulheres.- Ai, ai, pobre de mim! - disse o drago. - Vo me arruinar.- Voc merece - disse Gil. - Pode escolher entre arruinar-se e ser morto a mesmo

    onde est. - Ele brandiu Morde-cauda, e o drago se encolheu.- Decida-se! - gritavam as pessoas, ganhando coragem e se aproximando mais.Chrysophylax piscou, mas bem no fundo estava rindo: um tremor mudo que

    ningum percebeu. A barganha tinha comeado a diverti-lo. Era evidente que esperavamlevar alguma vantagem. No conheciam quase nada dos costumes do mundo vasto eperverso - na realidade, no havia naquela poca, em todo o reino, ningum que tivesseexperincia em lidar com drages e seus ardis. Chrysophylax estava recuperando o flegoe tambm a esperteza. Lambeu os beios.

    - Faam seu prprio preo - disse ele.Ento todos comearam a falar ao mesmo tempo. Chrysophylax escutava

    interessado. Somente uma voz o perturbava: a do ferreiro.- Nada de bom resultar disso tudo, ouam bem - disse ele. - Os lagartos no

    voltam*, digam vocs o que quiserem. Seja como for, isso vai acabar mal.- Voc pode ficar de fora do acordo, se essa sua opinio - disseram os outros, e

    continuaram a negociar, praticamente sem prestar mais ateno ao drago.Chrysophylax levantou a cabea, mas, se pensou em investir contra eles ou em

    escapulir durante a discusso, ficou desapontado. Mestre Gil estava parado ali perto,mascando um pedao de palha e refletindo, mas com Morde-cauda na mo e o olho no

  • drago.- Fique onde est! - disse ele. - Ou vai ter o que merece, com ouro ou sem ouro.O drago permaneceu deitado. Por fim, o proco foi nomeado porta-voz e se

    aproximou de Gil.- Lagarto infame! - disse ele. - Voc dever trazer a este local toda a sua fortuna

    adquirida por meios escusos; e, depois de indenizar todos os que prejudicou, ns arepartiremos com lisura entre ns. E ento, se fizer um voto solene de nunca maisperturbar nossa terra, o deixaremos voltar para casa, tanto com a cabea como com acauda. Agora, deve fazer juramentos to srios de que ir voltar (com o resgate) que atmesmo a conscincia de um lagarto h de considerar impossvel desrespeitar.

    Chrysophylax aceitou, depois de uma plausvel simulao de hesitao. Chegoumesmo a derramar lgrimas quentes, lamentando sua runa, at se formarem poasfumegantes na estrada, mas ningum se comoveu com elas. Fez muitos juramentos,solenes e espantosos, de que voltaria com toda a sua fortuna no dia de Santo Hilrio e SoFlix*. Isso lhe dava oito dias, tempo curto demais para a viagem, como at mesmo osque desconheciam geografia poderiam imaginar. Mesmo assim, deixaram que partisse e oacompanharam at a ponte.

    - At nosso prximo encontro! - disse ele, enquanto passava por cima do rio. -Tenho certeza de que todos aguardaremos ansiosos por essa ocasio.

    - Sem dvida - responderam. claro que estavam sendo muito tolos, pois, emboraos juramentos que o drago fizera devessem ter sobrecarregado sua conscincia comtristeza e com um enorme temor de alguma desgraa, infelizmente ele no tinha nenhumtipo de conscincia. E se essa lamentvel falha em algum de linhagem imperial estavafora do alcance da compreenso dos simples, pelo menos o proco, com sua erudio,poderia ter imaginado isso. Talvez ele tenha imaginado. Era gramtico e sem dvidapodia enxergar mais longe que os demais*.

    O ferreiro abanou a cabea enquanto voltava sua oficina.- Nomes inquietantes - disse ele. - Hilrio e Flix! No estou gostando nada disso*.Naturalmente, o Rei logo soube da notcia, que atravessou o reino como um raio e

    no perdeu nada ao ser contada. O Rei ficou profundamente comovido, por vriosmotivos, sendo que o financeiro no era o menos importante deles; e tomou a deciso decavalgar imediatamente at Ham, onde pareciam ocorrer fatos estranhos como esse.

    Chegou quatro dias depois da partida do drago, atravessando a ponte no seucavalo branco, acompanhado de muitos cavaleiros e clarins, alm de uma grande fileira decarregadores de bagagem. Toda a populao tinha vestido a melhor roupa e se postado aolongo da rua para dar-lhe as boas-vindas. O cortejo parou no ptio aberto diante do portoda igreja. Mestre Gil ajoelhou-se diante do Rei, quando lhe foi apresenta do; mas o Reidisse-lhe que se levantasse e chegou a dar-lhe um tapinha nas costas. Os cavaleirosfingiram no notar essa familiaridade.

  • O Rei ordenou que a aldeia inteira se reunisse no grande pasto de Mestre Gil, margem do rio, e, quando todos ali estavam (at mesmo Garm, que achava que o assuntoera de seu interesse), Augustus Bonifacius rex et basleus teve a grata satisfao de sedirigir a eles.

    Explicou com muito cuidado que a fortuna do facnora Chrysophylax pertenciainteira a ele, como senhor daquelas terras. Mencionou muito por alto seu direito de serconsiderado suserano* da regio montanhosa (o que era questionvel).

    - No temos, porm, nenhuma dvida de que, qualquer que seja o caso, todo otesouro desse lagarto tenha sido roubado de nossos antepassados - disse ele. - No entanto,somos, como todos sabem, tanto justos como generosos; e nosso fiel lgio* AEgidius serdevidamente recompensado; e nenhum dos nossos leais sditos neste local sair sem umalembrana simblica da nossa estima, desde o proco at a criancinha mais nova. Estamosmuito satisfeitos com Ham. Pelo menos aqui, um povo resoluto e incorrupto aindamantm a antiga coragem da nossa raa.

    Os cavaleiros conversavam entre si sobre a nova moda para chapus*.O povo fez reverncias e mesuras, demonstrando sua humilde gratido. Mas,

    naquele momento, todos desejavam ter aceito a oferta do drago de dez libras para cadaum e mantido o assunto s entre eles. Fosse como fosse, sabiam que o reconhecimento doRei no chegaria a tanto. Garm percebeu que no foi feita meno a cachorros. Mestre Gilfoi o nico que ficou realmente satisfeito. Tinha certeza de alguma recompensa, e dequalquer modo estava extremamente feliz por ter sado ileso de uma incumbnciaperigosa, com sua reputao local mais alta que nunca.

    O Rei no foi embora. Fincou seus pavilhes* nas terras de Mestre Gil e esperoupelo dia 14 de janeiro, divertindo-se at onde era possvel numa msera aldeia, longe dacapital. Nos trs dias seguintes, o squito real devorou quase tudo o que havia no lugar:po, manteiga, ovos, galinhas, toucinho e cordeiro, e bebeu at a ltima gota de cervejaforte. Comearam ento a reclamar das parcas provises*. Mas o Rei pagou muito bempor tudo (em talhas* a serem honradas pelo Tesouro*, que em breve seria profusamentereabastecido, ao que ele esperava); e o povo de Ham ficou bem contente, sem terconhecimento do verdadeiro estado do Tesouro.

    Chegou o dia 14 de janeiro, festa de Hilrio e Flix; todos es