J. L. Austin - Sentido e Percepção

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J. L. Austin Sentido e PercepoCOLEO TPICOSBachelard, G. - A POTICA DO DEVANEIO Bachelard, G. - A POTICA DO ESPAOBachelard, G. - A GUA E OS SONHOS

Bachelard, G. - O AR E OS SONHOS Ferenczi, S. - THALASSA Bergson, H. - MATRIA E MEMRIA Bachelard, G. - A TERRA E OS DEVANEIOS DO REPOUSO Bachelard, G. - A TERRA E OS DEVANEIOS DA VONTADEMerleau-Ponty, M. - SIGNOS

Eliade, M. - MEFISTFELES E O ANDRGINO Eliade, M. - IMAGENS E SMBOLOS Panofsky, E. - ARQUITETURA GTICA E ESCOLSTICA Eliade, M. - O SAGRADO E O PROFANO Dumzil, G. - DO MITO AO ROMANCE Tarde, G. - A OPINIO E AS MASSAS Sorel, G. - REFLEXES SOBRE A VIOLNCIA Ryle, G. - DILEMAS

Austin, J. L. - SENTIDO E PERCEPOPRXIMOS LANAMENTOS

Simmel, G. - FILOSOFIA DO AMOR Weil, S. - A GRAVIDADE E A GRAA

J. L. Austin Sentido e Percepo

Martins FontesSo Paulo - 1993

Publicado originalmente em ingls com o ttulo: SENSE AND SENSIBILIA Copyright Oxford University Press, 1962 Copyright Livraria Martins Fontes Editora Ltda., So Paulo, 1992, para a presente edio. edio brasileira: maro de 1993 Traduo: Armando Manuel Mora de Oliveira Reviso da traduo: Jefferson Luiz Camargo Reviso tipogrfica: Tereza Ceclia de Oliveira Ramos Rosali Petrof Produo grfica: Geraldo Alves Composio: Antnio Cruz Capa - Projeto: P.U.FDados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Austin, John Langshaw, 1911-1960. Sentido e percepo / J. L. Austin. [traduo. Armando Manuel Mora de Oliveira]. - So Paulo : Martins Fontes, 1993. - (Coleo tpicos) Bibliografia. ISBN 85-336-0151-4 1. Percepo I.j.Ttulo. II. Srie 93-0422 CDD-153.7 ndices para catlogo sistemtico: 1. Desenvolvimento perceptivo : Psicologia 153.7 2. Percepo : Psicologia 153.7 3. Processos perceptivos 153.7

Todos os direitos para o Brasil reservados LIVRARIA MARTINS FONTES EDITORA LTDA. Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 - Tel.: 239-3677 01325-000 - So Paulo - SP - Brasil Este livro no pode ser vendido fora do Brasil

memria da companheira de minha juventude dedico este livro inteiramente inspirado por seu esprito

PREFCIOAustin lecionou muitas vezes sobre os problemas de que se ocupa este livro. As primeiras conferncias realizadas na forma aqui apresentada foram as que proferiu no Trinity Term de 1947, em Oxford, sob o ttulo Problemas em Filosofia. O ttulo Sense and Sensibilia* foi usado pela primeira vez no Trinity Term do ano seguinte, e foi conservado desde ento. Neste caso, como de resto em outros, Austin reviu e reescreveu repetidamente as anotaes. Ainda existem anotaes sem data, muito fragmentrias, que talvez sejam as que usou em 1947. Outro grupo de notas foi preparado em 1948, e mais outro em 1949. Este ltimo, no qual Austin introduziu* O ttulo aludiria, segundo a tradio de Oxford, ao romance Sense and Sensibility, de Jane Austen. (N. T.)

acrscimos e correes em 1955, abrange as partes mais antigas de sua doutrina com notvel detalhe, mas as-notas para as ltimas prelees so muito menos copiosas, e claramente incompletas. Um quarto grupo de notas foi escrito em 1955, e o ltimo em 1958, destinado ao perodo de outono desse ano na Universidade da Califrnia. As prelees sobre Sense and Sensibilia foram oferecidas pela ltima vez em Oxford, no Hilary Term de 1959. Alm desses rascunhos mais ou menos contnuos havia, entre os papis de Austin, vrias folhas separadas, de datas diversas, em que ele fizera anotaes relativas aos mesmos problemas. A substncia de muitas delas foi incorporada s notas destinadas s conferncias, e, portanto, tambm ao presente volume. Algumas, contudo, pareciam apenas tentativas iniciais, e outras, ainda que por vezes muito detalhadas, foram evidentemente feitas durante a fase de preparao das prelees, mas sem o intuito de que viessem a fazer parte delas. Todo o material manuscrito encontra-se na Biblioteca Bodleiana de Oxford, disposio dos estudiosos. As notas posteriores, de 1955 e 1958, no cobrem por completo os tpicos discutidos. Consistem, na maior parte, em material adicional, e no restante remetem aos rascunhos de 1948 e 1949 com pequenos arranjos, revises e correes. Neste volume, esse material adicional encontra-se, bsicaPREFACIO i V :/ 3

mente, na seo VII, na ltima parte da seo X e na XI. Quando do curso em Berkeley, Austin tambm utilizou parte do material contido no ensaio Unfair to Facts. Mas, como o mesmo no fazia parte do tema dessas prelees, foi aqui omitido, tendo em vista que j existe em livro. preciso explicar com alguma mincia como foi preparado o presente texto. No h dvida de que Austin contava com a publicao de seu trabalho sobre a percepo, mas nunca se lanou tarefa de prepar-lo para esse fim. As notas serviam-lhe apenas para os cursos, e, do nosso ponto de vista, uma pena que fosse capaz de lecionar com perfeita fluncia e preciso sem ter de escrever todo o material de que ia tratar. A publicao das notas no estado em que se encontravam estava, portanto, fora de cogitao; nessa forma, seriam ilegveis, e, na

verdade, praticamente ininteligveis. Assim, decidiu-se que seriam redigidas de forma contnua, e deve-se ter em mente que, embora seja o mais fiel possvel s anotaes de Austin, o texto ora apresentado no contm praticamente nenhuma frase que seja transcrio direta do manuscrito. A verso aqui oferecida segue mais de perto as notas de Austin nas sees I-VI, VIII e IX, nas quais a argumentao pouco variou desde 1947. Nas sees VII, X e XI, embora no caiba qualquer dvida sria sobre qual era a argumentao de Austin, foi consideravelmente mais difcil dizer, a partir das4

notas, como e em que ordem ela deveria ser disposta. Nestas sees, o leitor deve ter o cuidado especial de no atribuir peso demais a cada detalhe do que lhe apresentado; nelas se encontra a maior probabilidade de erros de editorao. Na verdade, acreditar que eles no se tenham insinuado em outros pontos seria esperar demais. S para falar do nmero de palavras, o presente texto deve ter aumentado em cinco ou seis vezes a extenso at mesmo do conjunto mais completo de anotaes; e, ainda que no haja motivo para duvidar de que as opinies de Austin fossem substancialmente como aparecem aqui, impossvel ter certeza de que no estejam, em alguma parte, desvirtuadas em seus detalhes. O que Austin queria dizer exatamente - como teria, por exemplo, desenvolvido ou qualificado na exposio determinada expresso, ou mesmo palavra, presente nas notas por vezes conjetural, e, em alguns pontos, mais do que possvel que outro editor houvesse preferido uma interpretao diferente. Isto, sem dvida, inerente ao processo de reescrita, insatisfatrio mas, neste caso, inevitvel. Portanto, o texto que segue no pode ser lido como se reproduzisse, palavra por palavra, o que Austin realmente disse nas suas prelees, nem, evidentemente, se aproxima - e talvez em nenhum momento chegue perto daquilo que ele teria escrito se houvesse preparado um texto para publicao sobre este tema. O5

mximo que se pode alegar - ainda que eu o faa com confiana - que em todos os pontos fundamentais (e em muitos de fraseologia) a sua doutrina era a que este livro contm. Na verdade, se assim no fosse, nem se cogitaria da publicao nesta forma. Acrescente-se que no se deve a Austin a diviso do texto em sees, com o que se pretende apenas estabelecer uma distino entre os sucessivos estgios da discusso. inevitvel que sua prpria diviso em conferncias resultasse algo arbitrria, e foi alterada repetidas vezes, no sendo, portanto, aconselhvel ou desejvel adot-la. Diversas pessoas que assistiram a prelees de Austin, em Oxford e nos Estados Unidos, tiveram a gentileza de me enviar as suas anotaes. Foram muito teis - sobretudo as do sr. G. W. Pitcher, de Princeton, e de membros do Departamento de Filosofia de Berkeley, quase to completas quanto as do prprio Austin. Receio que os que escutaram as prelees (como eu mesmo, em 1947) venham a encontrar, no livro, algo que s muito imperfeitamente se aproxima do que foi dito por Austin. Espero, contudo, que estejam dispostos a concordar que mesmo um registro assim melhor que nada.

Gostaria de expressar os meus agradecimentos ao sr. J. O. Urmson, que leu o texto datilografado e props muitas sugestes teis, que muito contriburam para melhor-lo.G. J. WARNOCK Novembro de 1960 ,s, --.w\

3 ^,yi&. H>t-i0oinrtns.KHi;^1*; * ..^oAvo-t38

No nos alonguemos mais, ento - embora muito houvesse ainda por dizer - sobre as diferenas entre iluses e deluses, e sobre as razes para no torn-las obscuras. Vejamos agora, brevemente, alguns dos outros casos que Ayer arrola. As reflexes, por exemplo. No h dvida de que se podem provocar iluses com espelhos convenientemente dispostos. Mas qualquer caso em que se veja algo num espelho ser uma iluso, como Ayer d a entender? evidente que no. Pois, afinal, ver coisas num espelho um fato perfeitamente normal e comum, e em geral no se cogita de algum ser enganado nessas circunstncias. No caso de uma criana ou de um selvagem que nunca se defrontaram com um espelho, pode-se ficar assustado e, at mesmo, visivelmente perturbado. Mas ser isso suficiente para que se possa falar de iluso? E o mesmo acontece com o fenmeno da perspectiva - possvel fazer

truques com a perspectiva, mas, nos casos correntes, no h como falar em iluso. Que uma moeda redonda possa ter uma aparncia elptica (em um sentido) quando vista a partir de certos ngulos exatamente o que esperamos, e aquilo com que normalmente nos deparamos. E, na verdade, ficaramos seriamente desconcertados se alguma vez descobrssemos no ser esse o caso. E, uma vez mais, a refrao - o basto que tem aparncia curva quando dentro da gua - um caso por demais conhecido para que possamos cham-lo39

de caso de iluso. Talvez estejamos dispostos a admitir que o basto tem aparncia curva; mas ento podemos ver que est parcialmente submerso na gua, de modo que sua aparncia exatamente a que esperaramos que tivesse. importante, aqui, dar-se conta de como a familiaridade, por assim dizer, embota a iluso. O cinema um caso de iluso? Bem, perfeitamente possvel que o primeiro homem a assistir imagens animadas tenha se sentido inclinado a afirmar que se tratava de um caso de iluso. Mas, na verdade, muito improvvel que esse homem, ainda que momentaneamente, tenha sido enganado, e hoje o cinema de tal forma parte integrante das nossas vidas que nunca nos ocorre levantar essa questo. Pode-se perguntar se fazer uma fotografia significa produzir uma iluso - o que seria, manifestamente, uma pergunta pouco inteligente. Em toda esta discusso acerca de iluses e deluses, no devemos passar por cima dos muitos casos, mais ou menos inslitos e ainda no mencionados, que no so nem uma coisa nem outra. Suponhamos que um revisor de provas cometa um erro - que deixe passar casual onde deveria estar impresso causal; estamos diante de um caso de deluso ou de iluso? evidente que no se trata nem de uma coisa, nem de outra. O revisor de provas simplesmente leu errado. Ainda que no se trate de um fato particularmente comum, nem de40

apenas um caso normal de viso, ver imagens consecutivas tambm no significa ver iluses ou ter deluses. E o que dizer dos sonhos? O sonhador v iluses? Tem deluses? Nem uma coisa, nem outra; sonhos so sonhos. Vejamos, brevemente, o que Price tem a nos dizer sobre as iluses. Ao afirmar o que o termo iluso significa, ele fornece 5 a seguinte definio provisria: um dado dos sentidos ilusrio da viso ou do tato um dado dos sentidos tal que tendemos a tom-lo como parte da superfcie dum objeto material; se assim fizermos, porm, estaremos incorrendo em erro. No fica claro, sem dvida, o significado desta afirmao; mesmo assim, parece bastante claro que a definio no se ajusta a todos os casos de iluso. Consideremos uma vez mais o exemplo das duas linhas. Existe, neste caso, algo que tenhamos a tendncia a tomar erroneamente como parte da superfcie de um objeto material? No parece que seja assim. Vemos duas linhas, no achamos ou tendemos a achar que vemos algo diferente. Nem mesmo colocamos a questo de saber se algo ou no parte da superfcie de - de que, afinal? das linhas? da pgina? A dificuldade consiste, exatamente, em que uma linha parece ser

mais comprida que a outra, embora no o seja. E, sem dvida, nem no caso da Mulher sem Cabea se trata de algo fazer ou no parte da superfcie de seu corpo; o problema est em que ela aparenta no ter cabea.41

certamente digno de nota que, mesmo antes de comear a considerar o argumento da iluso, Price j incorporou definio a ideia de que, em tais casos, existe nas coisas familiares algo a mais para se ver - e isso faz parte daquilo que o argumento normalmente usado para provar, e que em geral se acha que realmente prova. Contudo, tal ideia no nos serve para nada quando se tenta explicar o que iluso significa. Essa ideia volta a aparecer, inadequadamente segundo penso, na anlise que Price faz da perspectiva (que ele, a propsito, tambm cita como uma espcie de iluso) - uma encosta ao longe, cheia de protuberncias e ligeiras ondulaes, parecer lisa e vertical... isto significa que o dado dos sentidos, a extenso colorida que vemos, na verdade lisa e vertical. Mas por que deveramos aceitar esta explicao dos fatos? Por que deveramos dizer que existe alguma coisa que vemos ser lisa e vertical, ainda que no parte da superfcie de um objeto material? Assim assimilar tais casos a casos de deluso, onde existe alguma que no parte de uma coisa material. Ora, j demonstramos que tal assimilao indesejvel. Examinemos, agora, a explicao que o prprio Ayer d de pelo menos alguns casos que cita. (Para sermos justos, devemos lembrar que Ayer faz reservas pessoais bastante substanciais acerca dos mritos e da eficcia do argumento da iluso, de 42 modo que no fcil determinar at que ponto ele pretende que levemos a srio a sua exposio; trata-se de um ponto ao qual teremos de voltar.) Primeiro, ento, o caso bastante conhecido do basto dentro da gua. Deste caso, diz Ayer: (a) que, uma vez que o basto parece curvo, mas reto, pelo menos uma das aparncias visuais do basto enganosa; e (b) que aquilo que vemos [de algum modo, diretamente] no a qualidade real de [algumas linhas adiante, no parte de] uma coisa material. E agora: para comear, o basto parece curvo? Penso que podemos concordar que sim, no temos uma maneira melhor de descrevlo. Mas, sem dvida, ele no parece exatamente um basto curvo, um basto curvo fora da gua - no mximo, pode-se dizer que tem a aparncia de um basto curvo parcialmente imerso na gua. Afinal, no temos como deixar de ver a gua em que o basto est parcialmente imerso. Sendo assim, o que que, neste caso, exatamente enganoso? O que h de errado, o que h de surpreendente, por pouco que seja, na ideia de um basto ser reto e, s vezes, ter a aparncia de curvo? Algum imagina que, pelo fato de uma coisa ser reta, ela deva, com toda certeza, parecer reta o tempo todo e em todas as circunstncias? evidente que ningum vai levar tal coisa a srio. E, ento, que confuso essa na qual se supe que nos enredemos aqui, qual vem a ser a dificuldade? Pois, sem dvida, preciso sugerir43

que existe uma dificuldade - uma dificuldade que, alm do mais, clama por uma soluo bastante radical, a introduo dos dados dos sentidos. Mas qual o problema que somos convidados a resolver deste modo? Bem, dizem-nos, neste caso vemos algo; e o que esse algo se no parte de uma coisa material?. Mas esta questo realmente louca. A parte real do basto, o pedao no debaixo da gua, supostamente parte de uma coisa material; no vemos isso? E quanto ao pedao debaixo da gua? Tambm podemos v-lo. Por falar nisso, pode-se ver a prpria gua. De fato o que vemos um basto parcialmente imerso na gua, e particularmente extraordinrio que isto deva ser posto em dvida que se coloque a questo do que estamos vendo - uma vez que se trata, simplesmente, da descrio da situao que tnhamos de incio. Estvamos de acordo, ento, que olhvamos para um basto, uma coisa material, parte da qual se achava debaixo da gua. Se, para tomarmos um caso bem diferente, uma igreja estivesse astuciosamente camuflada para parecer um celeiro, como que se poderia colocar, a srio, a questo do que vemos ao olhar para ela? evidente que vemos uma igreja que, agora, tem aparncia de um celeiro. Ns no vemos um celeiro imaterial, uma igreja imaterial, nem o que quer que seja de imaterial. E, neste caso, o que poderia seriamente nos levar a dizer que o fazemos?44

Observe-se, a propsito, que na descrio que Ayer nos d do caso do basto na gua, supostamente anterior a qualquer concluso filosfica, j se insinuou, sem ser anunciada, a importante expresso aparncias visuais - acaba-se, de fato, por sugerir que tudo o que temos, quando vemos, uma aparncia visual (o que quer que isto seja). Consideremos, a seguir, o caso de minha imagem refletida num espelho. O meu corpo, diz Ayer, parece estar a alguma distncia atrs do espelho; mas, como est diante, no pode realmente acharse atrs. O que vejo, ento? Um dado dos sentidos. O que pensar disto? Bem, novamente, embora no haja objeo a que se diga que o meu corpo parece estar a alguma distncia atrs do espelho, ao diz-lo devemos ter em mente o tipo de situao com que estamos lidando. O meu corpo no parece estar ali de modo a tentar-me (ainda que pudesse tentar uma criana ou um selvagem) a ir procur-lo no lado de trs do espelho e ficar espantado com o malogro do ato. (Dizer que A est em B nem sempre significa que, se abrirmos B, encontraremos A, do mesmo modo que o afirmar que A est sobre B nem sempre significa que se possa apanh-lo - considerem-se as frases vi meu rosto no espelho, tenho uma dor no dedo do p, ouvi-o no rdio , vi a imagem na tela, etc. Ver alguma coisa num espelho no como ver um bolo numa vitrine.) Mas segue-se da, dado que meu45

corpo realmente no est atrs do espelho, que eu no esteja vendo uma coisa material? evidente que no. Em primeiro lugar, posso ver o espelho (de algum modo, quase sempre posso). Posso ver o meu prprio corpo indiretamente, ou seja, no espelho. Posso tambm ver o reflexo do meu prprio corpo, ou, como diriam alguns, uma imagem especular. E uma

imagem especular (se escolhermos esta resposta) no um dado dos sentidos; pode ser fotografada, vista por qualquer nmero de pessoas, e assim por diante. (Evidentemente, no se cogita aqui nem de iluso, nem de deluso.) E, se insistirmos em saber o que est atrs do espelho, digamos a uma distncia de um metro e meio, a resposta ser: no se trata de um dado dos sentidos, mas de uma regio contgua da sala. O caso da miragem - pelo menos se assumirmos o ponto de vista de Ayer, segundo o qual o osis que o viajante pensa ver no existe presta-se melhor ao tratamento que lhe reservado. Pois aqui supomos que a pessoa est verdadeiramente enganada, que no est vendo uma coisa material.6 Na verdade, nem mesmo neste caso diremos que a pessoa est apreendendo dados dos sentidos, pois ainda que, como Ayer diz acima, seja conveniente dar um nome ao que ela est apreendendo, o fato que j tem nome - miragem. Mais uma vez, devemos ter a prudncia de no aceitar depressa demais a afirmao que o que se46

apreende similar em natureza ao que a pessoa experienciaria caso estivesse vendo um osis verdadeiro. Algum porventura acredita que um caso seja mesmo semelhante ao outro? E, antecipando o que vem a seguir, se admitssemos este ponto acabaramos por v-lo usado contra ns numa fase posterior - em que seramos convidados a concordar com a afirmao de que sempre vemos dados dos sentidos, at mesmo nos casos normais. IVNo momento oportuno, teremos de examinar a avaliao que Ayer faz do argumento da iluso, o que, em sua opinio, esse argumento prova, e por que o faz. Por ora, gostaria de voltar a ateno para outra caracterstica da sua exposio do argumento - caracterstica que parece, de fato, ser comum s exposies da maior parte dos filsofos. No decorrer da apresentao dos casos que servem de base ao argumento, Ayer usa com muita liberdade as expresses parecer, ter aparncia de (look), parecer, afigurar-se (appear), parecer, dar a impresso de **(seerr) - aparentemente como o faz a maioria dos outros filsofos, sem atribuir grande importncia questo de saber qual expresso usada onde; na verdade deixa implcito, devido rapidez de seu voo filosfico, que tais expresses podem ser usadas de modo intercambivel 48

que no h muito a escolher entre elas. Mas no assim; na verdade, as expresses em questo tm usos inteiramente diferentes, e o uso de uma ou outra implica uma grande diferena. Nem sempre verdade - pois h casos, como veremos, em que usar uma ou outra d praticamente no mesmo, e contextos em que as expresses tm um uso mais ou menos intercambivel. Mas, devido existncia de tais casos, seria um erro concluir que no existe nenhuma diferena especfica no uso das palavras; essa diferena existe, e h um grande nmero de contextos e construes que o demonstram.1 A nica coisa a fazer, para evitar as assimilaes fora de propsito, examinar um grande nmero de exemplos de usos dessas expresses at que, no fim, percebamos por inteiro as suas diferenas.*

Comecemos, ento, por look. Temos aqui, pelo menos, os seguintes tipos de casos e construes: 1. (a) Isto parece azul (redondo, anguloso, etc.). (e) Ele parece um gentleman (um vagabundo, um esportista, um ingls tpico). Ela parece **chie (um espantalho, uma pea de museu).* Notar-se- que os campos semnticos destes verbos perceptivos so diferentes em portugus. Por isso, uma traduo que busque fidelidade nossa linguagem corrente torna-se problemtica. O leitor pode constatar essa relatividade consultando os exemplos do original ingls, mantidos nesta edio. 49

1. (a) It looks blue (round, angular, &c.). () He looks a gentleman (a tramp, a sport, a typical Englishman). She looks chie (a fright, a regular frump). Temos aqui o verbo seguido diretamente por **dm adjetivo ou orao adjetiva. 2. (a) Isto (uma cor) tem a mesma aparncia do azul. Isto semelhante a uma planta. , **ii (b) Ele tem a aparncia de um gentleman (de um marinheiro, de um cavalo). 2. (d] It [a colour] looks like blue [the ; colour]. It looks like a recorder. (b) He looks like a gentleman (a sailor, a horse). Aqui, temos ter a mesma aparncia, ter um ar de, assemelhar-se a (look like) - cf. soundlike (parecer pelo som, pelo torn) - seguido por um substantivo. 3. (d) **Parece que j i chovendo( esteve J , y

(parece vazio, oco). ; ; .50

(b) Ele tem uma aparncia de 60 anos (de quem vai desmaiar). it is 3. (a) It looks as if . f raining (empty, hollow).

(b) He looks as i . t 60 (going to faint). v he were) Vb 5 4. (a) Parece que no conseguiremos entrar. (b) Ele parece preocupado com alguma coisa. 4. (a) It looks as though we shant be able to get in. (b) He looks as though hes worried about something. Tentemos agora com appear: l. (a) Parece azul (de cabea para baixo, alongado, ete.). (b) Ele tem a aparncia de um gentleman. 1. (a) It appears blue (upside down, elongated, &c.). (b] He appears a gentleman. 2. (a) Isto tem a mesma aparncia do azul. (b) Ele se assemelha a um gentleman. 2. (a) It appears like blue. (6) He appears like a gentleman.51

(E muito duvidoso, todavia, que esta construo com appear seja realmente defensvel; a mim, pelo menos, no soa bem.) 3 (e 4). (a) Parece que... (b) Ele parece que... 3 (and 4). (a) It appears as if (as though)... (b) He appears as i f (as though)... 5. (a) Parece que se dilata. Parece ser uma falsificao. (b] Ele parece gostar dela (ter recuperado o nimo). Parece tratar-se de um egpcio. 5. (a) It appears to expand. It appears to bc a forgery. (b) He appears to like her (to have recovered his temper). He appears to be an Egyptian. 6. (a) Assemelha-se a um ponto negro no horizonte.

(b) Parece tratar-se de um homem de bom carter (i. e.. a partir desta narrativa. Podemos tambm dizer que um ator apareceu como Xapoleo).**i) P

P,,J,v ,.-H. jj w * j < . jf-^ ^,.

reai

inta .-.-,; ... ;-. . ^,A ser)**mente geral do uso da palavra real **c ai&^ M-, a esta altura, espero j ter deixado claro - e. por ora, no pretendo voltar ao assunto. Todavia, gostaria de enfatizar que sempre fatal embarcar na explicao do uso de uma palavra sem considerar

114

seriamente mais do que uma reduzida frao dos contextos em que ela efetivamente usada. Neste caso como em outros, Ayer parece ter sido encorajado a empreender essa tarefa fatal por uma propenso inicial a acreditar que a rea pode ser ntida e exaustivamente dividida em duas.-***JNv

***^/Q. ^iK^Ajk..^ J^r^ ; /Jv>1 t f *** j-7 ., . \ ! OI ~*T-~

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lin ^ m; i ... ^ li . v ^ -5 JU;>J%13C% ;33^, ^isi i . j.>> ... .... ap . . sc .. :. - -v;;. / >;:-.^... ; vei - ...... **ss materiais devem, por outro lado, ser vistas exclusivamente como um modo de falar - os fatos aos quais se pretende que essas expresses remetam so fatos sobre fenmenos, os nicos fatos reais que existem. Seja como for, porm, a posio oficial a esse respeito que, por um lado, estamos

116 diante de uma questo lingustica - devemos dizer que os objetos que percebemos diretamente so dados dos sentidos? - e, por outro, que o argumento da iluso no nos deu nenhuma razo premente para fazermos tal afirmao. Assim, em seguida o prprio Ayer vai expor as razes pelas quais diramos isso, e a seo1 que ele intitula A Introduo dos Dados dos Sentidos deve ser agora examinada.**s

verdade, diz Ayer, que se nos restringirmos a usar as palavras de uma forma tal que dizer de um objeto que ele visto, tocado ou percebido de outro modo implica dizer que ele realmente existe, e que algo realmente possui a caracterstica que o objeto parece ter, seremos obrigados ou a negar que haja percepes enganadoras, ou a admitir que um erro falar como se os objetos que percebemos fossem sempre coisas materiais. Na verdade, porm, no usamos as palavras desta forma. Se afirmo que estou vendo um basto que parece torto, no quero dizer que alguma coisa esteja realmente torta... ou se, estando sujeito a uma iluso de

viso dupla, digo perceber dois pedaos de papel, no preciso, necessariamente, estar querendo dizer que ali existem, de fato, dois pedaos de papel. Sem dvida, porm, pode-se dizer que, se os dois pedaos de papel forem realmente percebidos, devem existir em algum sentido, ainda que no como coisas materiais. A resposta a esta objeo a de que **ela .

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-^-A/,),^x -)y-3J^3kX.v uX3^y^W .-Jf^ix *teada no maior que uma moeda de seis pence. E essas observaes, diz Ayer, no so inconsistentes. Pois, em um sentido de ver, necessrio que aquilo que visto deva realmente existir, mas no necessrio que deva possuir as propriedades que parece ter neste sentido, a pessoa v uma estre120**do um basto que parece torto, no quero com isto dizer que algo esteja realmente torto. Ora, isto inteiramente verdadeiro, mas mostra o qu? Pretende-se, evidentemente, mostrar que existe um sentido de ver no qual dizer que algo visto no implica dizer-se que existe, e que realmente possui a caracterstica que o objeto parece ter. Mas o exemplo certamente no mostra isto. Tudo o que mostra que o enunciado completo Vejo um basto que parece torto no implica que algo seja realmente torto. Que isto deriva do sentido em que ver aqui usado um passo adicional para o qual no se apresenta justificao alguma. E de fato, pensando bem, o passo no s indefensvel como completamente errado. Pois se tivssemos que escolher uma parte do enunciado como sendo aquela em virtude da qual no se implica que algo esteja realmente torto, seguramente a frase que parece torto seria o candidato mais provvel ao desempenho desse papel. Pois, quaisquer que sejam as opinies que possamos ou no ter acerca dos sentidos de ver, todos sabemos que o que parece

torto pode realmente no ser torto. O segundo exemplo ineficaz, e erra o alvo de modo bastante semelhante. Ayer afirma: Se digo que algum sente presso na perna, no excluo, necessariamente, a possibilidade de que a sua perna tenha sido amputada. Mas, de novo, por que explicar isto invocando um sentido de sentir? Em121

vez disso, por que no dizer, por exemplo, que a expresso presso na perna pode s vezes ser usada para especificar o que uma pessoa sente, mesmo que sua perna tenha realmente sido amputada? Parece-me muito duvidoso que possamos dizer que aqui esteja exemplificado um sentido especial at mesmo das palavras presso na perna; de qualquer maneira, as razes para diz-lo valeriam tambm para dizermos que temos aqui um sentido especial de sentir (pelo tato) -e mais justificadamente at. O terceiro exemplo, o da dupla viso, menos fcil de tratar. A propsito, diz Ayer: Se digo que percebo dois pedaos de papel, no preciso implicar que realmente existem dois pedaos de papel ali. Ora, creio que isto s pode ser dado como verdadeiro depois de algumas ressalvas. verdade que, sabendo que sofro de dupla viso, posso dizer Estou percebendo dois pedaos de papel, e, ao diz-lo, no querer dizer que ali realmente existem dois pedaos de papel. No obstante, achoque o enunciado implica que, de fato, so dois - no sentido que uma pessoa no ciente das circunstncias especiais do caso suporia, em vista do meu enunciado, que eu pensava haver ali dois pedaos de papel. Contudo, podemos concordar que, ao dizer Estou percebendo dois pedaos de papel posso no querer dizer pois posso saber que falso que realmente existem dois pedaos de papel diante 122de mim. At aqui, tudo bem. Mas, na frase seguinte, Ayer muda a forma das palavras; se dois pedaos de papel so realmente percebidos, diz, no precisa ser verdadeiro que existem dois pedaos de papel. E isso est simplesmente errado. Na verdade, o fato de dois pedaos de papel serem realmente percebidos justamente o que no deveramos dizer num caso de viso dupla - exatamente pela razo de que devem existir duas coisas, se duas so realmente percebidas. Mas, algum poderia dizer, j no concedemos o suficiente para justificar o ponto principal de. Ayer? Pois, seja o que for que tenhamos pensado a respeito de so realmente percebidos, concordamos que posso dizer, sem impropriedade, que estou percebendo dois pedaos de papel, mesmo estando plenamente consciente de que no existem, realmente, dois pedaos de papel diante de mim. E, sendo inegvel que essas palavras podem tambm ser usadas de modo a implicar que realmente existem dois pedaos de papel, no somos obrigados a concordar que existem dois sentidos diferentes de perceber? No, no somos. Os fatos lingusticos produzidos no so suficientes para provar tanto. Em primeiro lugar, se realmente existem dois sentidos de perceber, seria de esperar que esse verbo pudesse ocorrer em qualquer dos sentidos e em qualquer uma das suas construes. Mas de fato, mesmo que123

Percebo dois papis no precise querer dizer que existem dois pedaos de papel, parece que

Dois pedaos de papel so realmente percebidos no compatvel com o fato de ali existir apenas um. Tudo indica que seria melhor dizer, que as implicaes de perceber podem diferir em diferentes construes, e no apenas afirmar que existem dois sentidos de perceber. Mais importante que isso o fato de a viso dupla ser um caso excepcional, e por isso termos de ampliar o uso comum de modo a concililo com a teoria. Uma vez que, nessa situao excepcional, embora exista apenas um papel, e pareo estar vendo dois, posso querer dizer, faute de mieux, que percebo dois pedaos de papel, sabendo muito bem que a situao no aquela em que essas palavras seriam exatamente apropriadas. Mas o fato de que uma situao excepcional possa, assim, induzir-me a usar palavras essencialmente apropriadas a uma situao diferente e normal no basta para estabelecer que, em geral, existam dois sentidos diferentes e normais (corretos e familiares) das palavras, ou de uma s das palavras que uso. Apresentar uma anormalidade to intrigante quanto a viso dupla poderia, no mximo, estabelecer que o uso lingustico corrente s vezes tem que ser ampliado de modo a acomodar situaes extraordinrias. No , como diz Ayer, que No haver problema enquanto mantivermos os dois usos separados; no h razo para dizer que existem dois 124usos; no haver nenhum problema enquanto estivermos cientes das circunstncias especiais. Numa visita ao zoolgico, posso dizer E um leo, apontando para um dos animais. E tambm posso dizer, apontando para uma foto em meu lbum: um leo. Ser que isso mostra que a palavra leo tem dois sentidos - um que remete a um animal, e outro que remete imagem de um animal? evidente que no. Para dizer tudo em poucas palavras (no presente caso) posso usar, numa situao, palavras originariamente apropriadas a outra, e, desde que as circunstncias sejam conhecidas, no surge problema algum. Na realidade, no caso da viso dupla no verdade que meu nico recurso seja ampliar, da maneira referida, o uso corrente de percebo dois pedaos de papel. certo que posso faz-lo, mas, na verdade, existe uma expresso idiomtica especial para ser usada neste caso especial, e que Ayer podia ter usado com bons resultados - Vejo o pedao de papel em dobro. Eu tambm poderia dizer que vejo-o como se fosse dois. Examinemos, agora, o caso da pessoa que v uma estrela; a explicao de Ayer para o caso deixa-nos perplexos. Como o leitor deve estar lembrado, espera-se que a pessoa diga duas coisas: (a) Vejo uma estrela distante de tamanho maior que o da Terra, e (b) - ao ser-lhe pedido que descreva o que v Vejo uma mancha prateada no maior125

que uma moeda de seis pence. A primeira observao de Ayer que a pessoa tentada a concluir que pelo menos uma destas asseres falsa. E mesmo tentada? Por que deveria s-lo? E evidente que, no caso de uma extrema ignorncia da astronomia, a pessoa pode sofrer essa tentao - quer dizer, se achasse que as manchas prateadas no cu no podem ser estrelas maiores que a Terra, ou se, reciprocamente, pensasse que algo maior que a Terra no pudesse, mesmo a uma grande distncia, ser visto como uma mancha prateada. Mas a maior parte de ns sabe que as estrelas so muito, muito grandes, e que esto a uma distncia muito, muito grande; sabemos com que se parecem quando vistas a olho nu por um observador

terrestre, e, de algum modo, sabemos um pouco como elas so. Portanto, no vejo razo alguma para sermos tentados a pensar que ver uma enorme estrela seja incompatvel com ver uma mancha prateada. No seria muito mais fcil (e bastante correto) dizermos que a mancha prateada uma estrela? Talvez, porm, isso no seja muito importante, uma vez que, embora Ayer pense (para nossa grande surpresa) que devemos sentir essa tentao, ele tambm pensa que devemos resistir a ela; os dois enunciados, diz ele, no so realmente incompatveis. Em seguida, explica que a palavra ver, como a palavra perceber, comumente usada em vrios sentidos. H um sentido no qual verdade126 que a pessoa v uma estrela, e outro sentido no qual verdade que v uma mancha prateada. Bem, mas que sentidos so esses? Num sentido, diz Ayer, no sentido em que a pessoa pode, de fato, dizer que v a estrela, preciso que o que visto realmente exista, mas no que tenha as qualidades que parece ter. Talvez isto esteja correto, ainda que, no contexto, um tanto obscuro. Podemos aceitar que preciso que o que visto realmente exista. A dificuldade com a outra condio - no preciso que tenha as qualidades que parece ter - que no se esclarece, no exemplo, o que sejam as qualidades que parece ter. A linha geral da discusso sugere que ao tamanho que se alude. Mas ento surge a dificuldade: a pergunta De que tamanho parece ser?, feita a propsito de uma estrela, uma daquelas perguntas para as quais uma pessoa sensata no tenta achar resposta. Poderia, na verdade, dizer que parece minscula, mas seria absurdo que, com isto, quisesse dizer que a estrela tem a aparncia de um objeto que /minsculo, que a estrela parece ser minscula. No caso de um objeto to imensamente distante como uma estrela, no se pode falar do tamanho que parece ter quando se olha para ele, uma vez que est fora de propsito fazer tal estimativa de suas dimenses. A julgar pelas aparncias, **e< . f que a l erra , pois, na verdade, as aparncias no servem de base nem mesmo para um juzo to grosseiro como este. Mas, mudando127

de exemplo, talvez possamos consertar as coisas. sabido que as estrelas cintilam, e, em virtude disto, poder-se-ia dizer que parecem ser luminosas de maneira intermitente, irregular ou descontnua. Assim, se consideramos que as estrelas no so, de fato, descontinuamente luminosas, e afirmamos que vemos estrelas, pode-se concluir que, evidentemente, no exigimos que aquilo que visto deva possuir as qualidades que parece ter. Voltemo-nos agora para o outro sentido de Ayer. Em outro sentido, diz ele, aquele no qual uma pessoa pode dizer, com verdade, que aquilo que v no maior que uma moeda de seis pence, no possvel que uma coisa parea ter qualidades que na verdade no possui, mas tambm no necessrio que aquilo que visto deva realmente existir. Este seria, talvez, um outro sentido de ver, se que tal sentido existe; na verdade, porm, no existe nenhum sentido desse tipo. Se uma pessoa diz Vejo uma mancha prateada, evidente que implica a existncia da mancha, que h uma mancha; e, se no existe mancha na regio do

cu noturno para a qual est olhando, se essa parte do cu est perfeitamente vazia, ento evidente que a pessoa no v uma mancha prateada ali. intil que a pessoa diga: Bem, esta regio do cu pode estar perfeitamente vazia, mas continua sendo verdadeiro que vejo uma mancha prateada; porque estou usando ver no sentido em que aquilo 128que visto no precisa existir. Para alguns, talvez eu esteja sendo injusto aqui; ao dizer que a mancha que a pessoa v no precisa existir realmente, argumentariam, Ayer no pode estar querendo dizer que, simplesmente, pode no haver mancha nenhuma a ser vista - mas sim que no precisa realmente existir como ocupante de uma regio especfica do espao fsico, como acontece com a estrela. Mas no - Ayer sem dvida quer dizer aquilo que lhe atribu; talvez se lembrem de que, anteriormente, ele afirmou (do modo mais explcito possvel) que existe um uso correto e familiar de perceber, em cujos termos dizer de um objeto que ele percebido no implica dizer que exista em qualquer sentido que seja. O nico comentrio a fazer que esse uso no existe.* O outro trao deste pretenso sentido de ver no menos peculiar. Sugere-se que, no sentido de ver em que a pessoa v uma mancha prateada, no possvel que uma coisa parea ter qualidades que realmente no possui. De novo, aqui no est perfeitamente claro a que se referem essas qualidades; mas como se Ayer tivesse em mente a qualidade de no ser maior que uma moeda de seis pence. Mas, sem dvida, h a algo bastante absurdo. Lembrem-se de que estamos falando da mancha, e no da estrela. E pode-se colocar a srio a questo de saber se a mancha realmente no 129

que a moeda, ou se talvez apenas parece no ser maior? Qual podia ser a diferena existente entre as pretensas alternativas? Dizer No maior que uma moeda de seis pence no , afinal, nada mais que uma maneira imperfeita de dizer que aspecto tem. Se, todavia, pensarmos em algo que pudesse seriamente ser tomado como uma qualidade da mancha por exemplo, a qualidade de ter uma cor rosada - chegaremos, mais uma vez, concluso de que no existe esse sentido de ver que Ayer afirma existir. Pois, quando uma pessoa v uma mancha no cu noturno, pode ser que, devido a alguma anomalia nos olhos, a mancha lhe parea acinzentada, ainda que, na verdade, seja rosada. A nica maneira de evidenciar que uma coisa vista no parece ter uma qualidade que realmente no tem escolher uma expresso como no ser maior que uma moeda de seis pence - mas, nesse caso, a impossibilidade deve-se no ao sentido em que ver est sendo usado, mas ao absurdo de tratar no ser maior que uma moeda de seis pence como se, neste contexto, se tratasse de uma qualidade relativamente qual fizesse sentido distinguir entre os objetos que tm e aqueles que s parecem ter essa qualidade. O fato que, da mesma forma que no existe um sentido de ver segundo o qual aquilo que visto no precisa existir de forma alguma, tambm no existe sentido de ver, nem o mesmo nem qualquer outro5, no 130 qual seja impossvel que o que visto deva parecer ter qualidades que realmente no tem. No nego, evidentemente, que seja possvel inventar, arbitrariamente, usos de ver como esses, embora no compreenda por que haveramos de desejar faz-lo; mas recordemos que Ayer procura descrever sentidos de ver j assumidos como corretos, e mesmo familiares.

Chegamos ao fim dos exemplos fornecidos por Ayer, e parece que nenhum deles vem em apoio ideia de que existem diferentes sentidos de perceber, ver, e tudo o mais. Um dos exemplos - o da dupla viso - indica (o que, em todo caso, j de esperar) que, em situaes excepcionais, as palavras correntes podem ser usadas sem serem entendidas exatamente da maneira habitual; o fato de dizermos da pessoa que sofre de delirium tremens que ela v ratos cor-de-rosa mais um exemplo disso, uma vez que no pretendemos aqui (como seria o caso numa situao normal) que sejam ratos cor-de-rosa vivos e reais os que v; contudo, a insero de palavras comuns em situaes excepcionais no cria, certamente, sentidos especiais, menos ainda sentidos corretos e familiares das palavras em questo. Quanto aos outros exemplos, ou so irrelevantes quanto questo dos diferentes sentidos dessas palavras, ou, como no caso da estrela descrito por Ayer, introduz pretensos sentidos que certamente no existem.131

O que houve de errado, ento? Em parte, acho que foi isto: tendo observado, o que perfeitamente correto, que muitas respostas pergunta O que X percebe? podem ser dadas (normalmente, pelo menos), e que essas diferentes respostas podem ser todas corretas, e portanto compatveis, Ayer saltou para a concluso que perceber deve ter diferentes sentidos - pois, no sendo assim, como que as diferentes respostas pergunta poderiam ser todas corretas? Mas a explicao adequada dos fatos lingusticos no essa; simplesmente que aquilo que percebemos pode ser descrito, identificado, classificado, caracterizado e nomeado de muitas maneiras diferentes. Quando perguntado: Voc deu um pontap em qu?, posso responder que Dei um pontap num pedao de madeira pintada, ou que Dei um pontap na porta de entrada de Jones; ambas as respostas podiam estar perfeitamente corretas, mas deveramos por isso dizer que dar um pontap nelas usado com sentidos diferentes? claro que no. Aquilo em que dei um pontap - exatamente em um sentido de dar um pontap, ou seja, no sentido corrente - poderia ser descrito como um pedao de madeira pintada, ou identificado como sendo a porta de entrada de Jones; o pedao de madeira em questo era a porta de entrada de Jones. Do mesmo modo, posso dizer Vejo uma mancha prateada, ou Vejo uma estrela imensa; o que vejo - no sentido nico,

132corrente do termo - pode ser descrito como uma mancha prateada, ou identificado como uma estrela muito grande, pois a mancha em questo /uma estrela muito grande.6 Suponhamos que me perguntam: O que voc viu hoje de manh? Posso responder que Vi um homem que fazia a barba em Oxford, ou tambm posso dizer, no menos corretamente e referindo-me mesma situao, que Vi um homem nascido em Jerusalm. Segue-se, da, que eu deva estar usando ver em sentidos diferentes? evidente que no. O fato manifesto que as duas coisas so verdadeiras quanto ao homem que vi (a) que lhe estavam fazendo a barba em Oxford, e (b) que tinha nascido alguns anos antes em Jerusalm. E certo que posso aludir a qualquer um destes fatos sobre ele ao dizer - sem qualquer ambiguidade - que o vi. E, se h ambiguidade neste caso, no est na palavra vi.

Imaginemos que olho por um telescpio e me perguntam: O que voc est vendo? Posso responder que vejo (1) Uma mancha brilhante; (2) Uma estrela; (3) Sirius; (4) A imagem no dcimo quarto espelho do telescpio. Todas estas respostas esto corretas. Temos aqui diferentes sentidos de ver? Quatro sentidos diferentes? claro que no. A imagem no dcimo quarto espelho do telescpio uma mancha brilhante, essa mancha brilhante uma estrela, e a estrela Sirius; posso dizer,133

de modo perfeitamente correto e sem qualquer ambiguidade, que vejo uma delas, no importa qual. A maneira que escolho para dizer o que vejo vai depender das circunstncias particulares do caso - por exemplo, do tipo de resposta que, imagino, as pessoas queiram ouvir, da extenso de meus conhecimentos ou de at que ponto estou disposto a ir. (E no se trata apenas de insistir numa nica direo; pode tratar-se de um planeta e no de uma estrela, de Betelgeuse e no de Sirius - mas, tambm, pode ser que o telescpio tenha apenas doze espelhos.) Vi um homem de aparncia insignificante com calas pretas. Vi Hitler. Dois sentidos diferentes de vi? Claro que no. Este fato - o de que podemos normalmente descrever, identificar ou classificar o que vemos de muitas maneiras diferentes, diferindo em grau de ousadia - no torna apenas desnecessrio e desorientador sair caa de sentidos diferentes de ver; mostra, tambm, que esto errados os filsofos que sustentaram que a pergunta O que voc v? s admite uma resposta certa, como, por exemplo, parte da superfcie de seja l o que for. Pois, se posso ver parte da superfcie, por exemplo parte do cimo de uma mesa, posso tambm ver, e dizer que vejo se estiver em posio de faz-lo, uma mesa (uma mesa de jantar, uma mesa de

mogno, a mesa do gerente do meu banco, etc.). Esta proposio ++136

/

**aspecto de uma mulher sem cabea, podemos dizer que vista como uma mulher sem cabea. Agora, porm, devemos retomar o desenvolvimento do argumento filosfico. Como o leitor talvez esteja lembrado, o captulo de Ayer sobre a introduo dos dados dos sentidos consistia, em grande parte, em tentativas de estabelecer a tese de que existem diferentes sentidos - dois ou mais, talvez - de perceber e de outros verbos perceptivos. Argumentei no existir qualquer razo para supor que esses sentidos existam. Seria de esperar que isso constitusse uma dificuldade importante para o argumento de Ayer; mas, curiosamente, no acho que assim seja. Pois, ainda que o seu argumento seja apresentado como se dependesse da doutrina dos diferentes

sentidos dos verbos perceptivos, na verdade no depende dela. O modo pelo qual os dados dos sentidos so finalmente introduzidos, lembram-se, este. Afirma-se que os filsofos decidem usar perceber (ver, etc.) de modo tal que o que visto ou apreendido por um dos outros sentidos deve realmente existir, e deve realmente ter as propriedades que parece possuir. Mas, evidentemente, esta no a maneira normal de usar perceber (ver, etc.); nem, alis, qualquer dos usos das palavras que o prprio Ayer rotula de corretas e familiares; uma maneira especial de usar essas p-SENTIDO E PERCEPO137

lavras, inventada pelos filsofos. Decidindo-se por este uso, descobrem naturalmente que, como candidatas ao que percebido, as coisas materiais no do conta do recado, pois as coisas materiais nem sempre tm as propriedades que parecem ter, e pode at parecer que existem quando, na verdade, so inexistentes. Assim, ainda que alguns filsofos (se que tantos) tenham a ousadia de negar que as coisas materiais sejam alguma vez percebidas em qualquer sentido, pelo menos alguma outra coisa tem que ser designada como o que percebido neste sentido filosfico especial. E o que que realmente d conta do recado? A resposta : os dados dos sentidos. Ora, a doutrina segundo a qualja existem, na aplicao no filosfica, diferentes sentidos de perceber no teve ainda um papel relevante nessas manobras que consistiram, basicamente, da inveno de um sentido completamente novo. Qual , ento, o papel dessa doutrina? Bem, segundo Ayer (e Price), o seu papel consiste em proporcionar aos filsofos um motivo para que inventem o seu prprio sentido especial.9 De acordo com Ayer, esse sentido inventado com a finalidade de evitar essas ambiguidades. Ora, a razo, pela qual no importa que, na verdade, tais ambiguidades no existem, est em que o ato de evitar ambiguidades no constitui, de fato, a preocupao que move os filsofos. O seu verdadeiro motivo - que se138SENTIDO E PERCEPO

situa no cerne da questo - que desejam produzir um tipo de enunciado que seja incorrigvel; e a verdadeira virtude do sentido inventado de perceber est em que, uma vez que o percebido nesse sentido tem que existir e tem que ser como parece, ao dizer o que

percebo, nesse sentido, no posso estar errado. Tudo isso precisa ser examinado.

\

xA busca do incorrigvel um dos mais venerveis pesadelos da histria da filosofia. Invadindo toda a filosofia antiga, notoriamente Plato, foi poderosamente revigorada por Descartes, e por ele legada a uma extensa linhagem de sucessores. No h dvida de que

possui muitos motivos e assume mltiplas formas, mas, naturalmente, no podemos nos estender aqui sobre essa questo. Em alguns casos o motivo parece ser um anseio relativamente simples por algo absolutamente certo - anseio que pode ser de difcil satisfao se o manipularmos de tal modo que a certeza se torne absolutamente inatingvel; em outros casos, como em Plato talvez, o que se procura aparentemente algo que ser sempre verdadeiro. Mas, no caso presente, que descende diretamente de Descartes, h uma complicao adicional na forma de uma teoria geral do conhecimen-140SENTIDO E PERCEPO

to. E, sem dvida alguma, no conhecimento (e no na percepo) que esses filsofos esto realmente interessados. No caso de Ayer, isso j se mostra no ttulo do livro, bem como em certas partes do texto; Price est mais seriamente interessado que Ayer nos fatos concretos da percepo, e dedica-lhes maior ateno - mas, ainda assim, digno de nota que, depois de levantar a questo inicial, O que ver algo?, a frase que vem imediatamente a seguir Quando vejo um tomate, h muita coisa de que posso duvidar. Isto sugere que, de fato, ele tambm est interessado no tanto no ver, mas, sobretudo, naquilo de que no se pode duvidar. Em poucas palavras, a doutrina acerca do conhecimento, conhecimento emprico, a de que este possui bases. um edifcio a cujos andares superiores se chega atravs de inferncias, e as bases so os dados nos quais as inferncias se apoiam. (Assim, claro, parece ser inegvel, a, a existncia dos dados dos sentidos.) Todavia, o problema com as inferncias que podem estar erradas; a cada vez que se avana um p, pode-se estar dando um passo em falso. Assim - continua a doutrina -, a maneira de identificar os andares superiores do edifcio do conhecimento perguntar se podemos estar errados, se existe algo de que possamos duvidar; se a resposta for afirmativa, ento no estamos nos alicerces do edifcio do conhecimento. E, inversamente, ser caracterstico dos dados que, no seuSENTIDOE PERCEPO 141

lcaso, nenhuma dvida seja possvel, nenhum erro seja cometido. Portanto, para encontrar os dados, os alicerces, buscamos o incorrigvel. Ora, a exposio que Ayer faz desta velha histria (ou era, quando ele a escreveu) muito moderna, muito lingustica. Reprova constantemente Price e seus outros predecessores por tratarem como questes de fato o que, na verdade, so questes de linguagem. Contudo, como vimos, essa relativa sofisticao no impede que Ayer aceite em bloca quase todos os velhos mitos e erros incorporados aos argumentos tradicionais. E tambm, como vimos, no realmente verdade que Ayer acredite que as questes levantadas sejam lingusticas, ainda

que seja essa a sua doutrina oficial. E, finalmente, como veremos daqui a pouco, a doutrina segundo a qual as questes so questes de linguagem leva-o, ao longo da exposio, a cometer um certo nmero de erros bastante graves a respeito da linguagem. - Mas, antes de entrar no assunto, gostaria de dizer mais uma palavra sobre esta separao entre os pontos de vista reais e oficiais de Ayer. Na segunda seo deste livro j havamos detectado esta separao - um pouco disso est na espantosa convico de que no existem fatos reais acerca das coisas materiais, que podemos dizer o que quisermos sobre elas, que os nicos fatos realmente existentes so aqueles que dizem respeito aos fenme-142SENTIDO E PERCEPO

nos, s aparncias sensveis. Mas a crena de que realmente s existem dados dos sentidos surge outra vez, mais clara e com muito mais frequncia, no captulo final, significativamente intitulado A Constituio das Coisas Materiais. (De que so feitas as coisas materiais?) Por exemplo: Quanto crena na unidade e substancialidade das coisas materiais, mostrarei que pode ser corretamente representada como algo que implica apenas a atribuio, a dados dos sentidos visuais e tcteis, de certas relaes que, de fato, prevalecem na nossa experincia. E mostrarei que somente o faio contingente de que existem essas relaes entre os dados dos sentidos que torna proveitosa a descrio do desenrolar de nossa experincia em termos da existncia e do comportamento das coisas materiais. (Os itlicos so meus.) E ainda: Posso descrever a tarefa que estou prestes a empreender como sendo a de mostrar quais os princpios gerais segundo os quais, a partir dos nossos recursos de dados dos sentidos, construmos o mundo das coisas materiais. A interpretao oficial desta e de muitas outras observaes que, estritamente falando, dizem respeito s relaes lgicas que vigoram entre duas linguagens diferentes, a linguagem dos dados dos sentidos e a linguagem dos objetos materiais, no devendo ser literalmente tomadas como relativas existncia de uma coisa qualquer. Mas no apenas que, s vezes, Ayer fale como se s existissem dadosSENTIDO EPERCEPO 143

dos sentidos, e como se as coisas materiais fossem realmente construes (como as de um quebracabea de armar) de dados dos sentidos. claro que ele realmente acha que isso verdadeiro, pois sustenta, sem discutir, que a evidncia emprica s fornecida pela ocorrncia de dados dos sentidos, e mais: que, por esta razo, qualquer proposio que se refira a uma coisa material deve, de algum modo, ser passvel de expresso em termos de dados dos sentidos, para que seja empiricamente dotada de Dignificao (mais uma vez, os itlicos so meus). Quer dizer, a questo oficial - como estas duas supostas linguagens podem relacionar-se entre si - nunca encarada como sendo, verdadeiramente, uma questo aberta; a linguagem dos objetos materiais deve, de algum modo, ser redutvel linguagem dos dados dos sentidos. E por qu? Porque, na verdade, os dados dos sentidos constituem a totalidade dos nossos recursos. Devemos aprofundar um pouco mais essa doutrina das duas linguagens. Neste tpico Ayer envolve-se em uma polmica com Carnap, e ser instrutivo ver como a discusso se desdobra.1 A doutrina de Carnap sobre o assunto, com a qual Ayer no concorda em parte, pretende que

as frases indicativas (legtimas) de uma lngua, excetuando-se as analticas, podem ser divididas em dois grupos, consistindo um deles em enunciados empiricamente testveis, e o outro em enun-144SENTIDO E PERCEPO

ciados observacionais, ou protocolares. A frase pertencente ao primeiro grupo empiricamente testvel se, e somente se, como diz Ayer, algum enunciado observacional for dela derivvel de acordo com as regras estabelecidas da lngua. Carnap tem duas coisas a dizer sobre esses enunciados observacionais em si. Afirma (a) que o problema de saber quais os enunciados observacionais que devem ser considerados verdadeiros constitui, basicamente, uma questo de conveno; tudo o que temos a fazer assegurar que a totalidade do corpus de nossas frases seja internamente consistente; e () que no importa muito que espcie de frase classificamos como enunciado observacional, uma vez que cada frase concreta que pertence ao sistema de linguagem fisicalista pode servir, em circunstncias apropriadas, de enunciado observacional. Ayer discorda de Carnap nos dois pontos. Quanto ao primeiro, argumenta com veemncia (e com toda razo) que se o que dizemos se pretende verdadeiro (ou falso) com relao ao mundo em que vivemos, ento devem certamente existir algumas coisas que dizemos cuja verdade (ou falsidade) determinada pela realidade no verbal; no possvel que tudo que dizemos deva ser avaliado unicamente em termos de sua compatibilidade com outras coisas que dizemos. Quanto ao segundo ponto, a posio de Ayer no fica completamente clara. Ele afirma - o que p-SENTIDO E PERCEPO145

rece bastante razovel - que as nicas frases que podemos adequadamente chamar de enunciados observacionais so as que registram estados de coisas observveis. Mas que tipo de frases fazem isto? Ou, como diz ele prprio, ser possvel delimitar a classe de proposies suscetveis de serem diretamente verificadas? O problema que no se sabe bem qual a resposta que ele d a essa pergunta. Comea por dizer que depende da lngua em que vem expressa a proposio. Nem nos passa pela cabea duvidar de que as proposies acerca Cos dados dos sentidos possam ser diretamente verificadas. Por outro lado, quando ensinamos ingls a uma criana, damos a entender2 que as proposies acerca de coisas materiais podem ser diretamente verificadas. Bem, talvez o faamos; mas teremos o direito de fazer tal implicao? Por vezes, Ayer parece dizer que podemos faz-la, mas difcil perceber como que ele podia realmente pensar desse modo. Pois ( parte sua tendncia, j assinalada, de expressar a convico de que os nicos fatos reais so fatos acerca de dados dos sentidos) existe o fato de que os enunciados observacionais so considerados por ele, e tambm por Carnap, como os termini de processos de verificao; e Ayer repetidamente opina que as proposies acerca de coisas materiais no apenas precisam ser, em si, verificadas, como tambm no so passveis de verificao conclusiva. Assim, a menos que Ayer146

SENTIDO E PERCEPO

estivesse preparado para dizer que proposies que no podem ser conclusivamente verificadas podem ser diretamente verificadas, e, alm disso, que podem figurar como termini em processos de verificao, deve com certeza negar que proposies acerca de coisas materiais possam ser enunciados observacionais. E transparece da orientao tomada pelo argumento, bem como de sua estrutura interna, que Ayer realmente o nega. Nos termos de Carnap, a verdadeira opinio de Ayer parece ser a de que as proposies acerca de coisas materiais so empiricamente testveis, que as proposies acerca de dados dos sentidos so enunciados observacionais, e que, enquanto os membros do primeiro grupo no so conclusivamente verificveis, os membros do segundo so efetivamente incorrigveis. Devemos agora considerar os acertos e erros de tudo isso. Ayer est certo, j o dissemos antes, e Carnap errado, acerca da questo da conexo com a realidade no verbal; a ideia de que tudo o que est em jogo a consistncia das frases entre si perfeitamente absurda. Quanto segunda questo, porm, Carnap est muito mais prximo da verdade que Ayer; no existe, com efeito, nenhuma subclasse especial de frases que tenham por funo servir de evidncia para outras frases, ou de meio de verificao das mesmas - menos ainda no caso de frases cuja caracterstica principal a de seremSENTIDO E PERCEPO 147 incorrigveis. Carnap, porm, no est inteiramente certo; pois, se considerarmos exatamente por que ele est quase certo, veremos que, no que diz respeito ao ponto mais importante aqui, tanto ele quanto Ayer esto errados. Em suma, a questo esta: hoje em dia parece bastante aceito que, se tomarmos um conjunto de frases (ou de proposies3, para usar o termo preferido por Ayer) impecavelmente formuladas numa lngua qualquer, no se deve cogitar de distribulas em verdadeiras e falsas; pois (deixando de fora os chamados enunciados analticos) a questo da verdade ou falsidade no depende somente de saber o que uma frase nem mesmo do que significa, mas, falando de modo geral, das circunstncias em que se deu o seu enunciado. Enquanto tais, as frases no so verdadeiras ou falsas. Fica igualmente claro que, pelas mesmas razes, no se pode retirar de um conjunto de frases aquelas que servem de evidncia para outras, as que so testveis, ou as que so incorrigveis. Que tipo de frase proferida fornece evidncia de que algo que depende, novamente, das circunstncias dos casos particulares?; no existe uma frase que, enquanto tal, seja fornecedora de evidncias, ou que, enquanto tal, seja surpreendente, ou duvidosa, ou certa, ou incorrigvel, ou verdadeira. Assim, enquanto Carnap est coberto de razo ao dizer que no existe um tipo especial de frase que tem de ser escolhida como forne-148SENTIDO E PERCEPO

cedora de evidncias para as demais, erra por cornpleto ao supor que qualquer tipo de frase poderia ser escolhido desta maneira. No que no importe como o fazemos; que faz-lo est totalmente fora de questo. E, assim, Ayer tambm est errado ao sustentar, como evidentemente sustenta, que as frases fornecedoras de evidncias so sempre frases de dados dos sentidos, de sorte que estas so as que devem ser escolhidas. Esta ideia de que existe um certo tipo (ou uma certa forma) de frases que, como tais, so incorrigveis e fornecedoras de evidncia parece predominar o bastante para merecer uma

refutao mais detalhada. Consideremos, de incio, a incorrigibilidade. O argumento parte, aparentemente, da observao de que existem frases que podem ser identificadas como intrinsecamente mais ousadas que outras - ao proferi-las, aumentamos a possibilidade de incorrer em erro. Se, por exemplo, digo Sirius, estou errado se, mesmo tratando-se de uma estrela, essa estrela no Sirius; j se eu s tivesse dito uma estrela, o fato de no se tratar de Sirius no me causaria o menor problema. Da mesma forma, se eu somente tiver dito Parece uma estrela, poderia encarar a revelao de que no uma estrela com a mesma tranquilidade. E assim por diante. Reflexes desse tipo aparentemente do origem ideia de que existe, ou poderia existir, um tipo de frase cuja enunciao no me fizes-SENTIDO EPERCEPO

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se correr absolutamente nenhum risco, sendo mnimo o meu envolvimento, de tal modo que, em princpio, nada poderia mostrar que eu tivesse errado - minha observao seria incorrigvel. Na verdade, porm, esse objetivo ideal totalmente inatingvel. No existe, nem poderia existir, qualquer tipo de frase que estivesse, uma vez proferida, a salvo de emenda ou retratao subsequentes. O prprio Ayer, embora diga que as frases relativas aos dados dos sentidos so incorrigveis, observa um caso em que no o so; como ele admite, em princpio sempre possvel que, por menos comprometido que um falante pretenda ser, ele possa empregar a palavra e ser levado a reconhec-lo mais tarde. Mas Ayer no leva isto muito a srio, considerando tratar-se de uma ressalva inteiramente trivial; que o que est sendo concedido apenas a possibilidade de lapsos lingusticos, lapsos puramente verbais (ou, evidentemente, de mentiras). Mas no assim. Existem muitas maneiras de utilizar uma palavra no adequada. Posso dizer magenta erroneamente, e faz-lo ou por lapso, tendo querido dizer vermelho, ou porque no sei bem o que magenta significa, isto , a que tonalidade de cor essa palavra remete; ou, ainda, porque no fui capaz de (ou talvez nem tentei) reconhecer ou avaliar, com a devida ateno, a cor que tinha diante de mim. Assim, sempre existe a possibilidade no s de vir a admitir que magenta no era a pala

wi150SENTIDO E PERCEPO

vra que devia ter escolhido para a cor diante de mim, como tambm de que posso ser levado a ver, ou talvez a lembrar-me, de que a cor diante de mim no era magenta. E isto vale tanto para o caso em que digo: A mim pessoalmente, aqui e agora, parece-me estar vendo alguma coisa magenta, quanto para o caso em que digo Isto magenta. A primeira frmula pode ser mais cautelosa, mas no incorrigvel.^ Sim, mas pode-se replicar que, mesmo que frmulas assim cautelosas no sejam intrinsecamente incorrigveis, existiro muitos casos nos quais o que dizemos ao enunci-las ser de f ato incorrigvel quer dizer, casos em que no se poder recorrer a nada que configure uma razo convincente para retrat-las. Pois muito bem, no se coloca em dvida a verdade disso. Mas o mesmo acontece com as enunciaes em que se utilizam palavras de forma completamente diferente. Se fao uma afirmao, e verdade que no se pode recorrer a nada, seja o que for, que configure uma razo convincente para retratar-me da mesma, isto s pode dever-se ao fato de eu me encontrar, de ter-me colocado, na

melhor posio possvel para fazer essa afirmao - tenho e estou habilitado a ter plena confiana nela no momento em que a fao. Todavia, se as coisas so ou no assim algo que no depende do tipo de frase que uso ao fazer a afirmao, mas de quais so as circunstncias em que a fao. Se exami-SENTIDO E PERCEPO151

no cuidadosamente uma mancha colorida dentro do meu campo visual, observo-a meticulosamente, sei bem portugus, e presto uma ateno absoluta ao que estou dizendo, posso dizer: Agora parece-me estar vendo algo cor-de-rosa; e nada, absolutamente nada, poderia ser apresentado para mostrar que eu houvesse cometido um erro. Mas, igualmente, se observo por algum tempo um animal minha frente, a poucos metros de distncia e em plena luz, se o apalpo, sinto-lhe o cheiro e reparo nos rudos./

que faz, posso dizer: E um porco. Isto tambm seria incorrigvel e no haveria como mostrar que eu errara. Uma vez abandonada a ideia de que existe um tipo de frase especial que incorrigvel enquanto tal, podemos muito bem admitir (o que, de qualquer forma, obviamente verdadeiro), que muitos tipos de frases podem ser utilizados para enunciados afirmativos que so, de fato, incorrigveis no sentido em que, ao serem formulados, as circunstncias so tais que esses enunciados so completa, definitiva e irrevogavelmente verdadeiros. Considere-se a seguir a evidncia - a ideia, mais uma vez, de que existe um tipo especial de frases cuja funo formular evidncias sobre as quais se baseiam os outros tipos. H pelo menos duas coisas erradas neste particular. Primeiro, no verdade, como sugere essa doutrina, que sempre que se faz urn enunciado sobre objetos materiais o locutor deva possuir (ou152SENTIDO E PERCEPO

possa fornecer) evidncias que o corroborem. Isto pode parecer bastante plausvel, mas envolve um uso por demais equivocado da noo de evidncia.5 A situao na qual se poderia dizer, com propriedade, que possuo evidncias para afirmar que determinado animal um porco , por exemplo, aquela em que o prprio animal no est vista, mas posso ver inmeras pegadas semelhantes s de um porco nos arredores do local onde ele fica. Se encontro alguns bales de rao para porco, as evidncias aumentam, e os rudos e o cheiro podem fornecer mais indcios. Mas, se o animal aparece e se mostra plenamente visvel, no h por que reunir mais indcios; o seu aparecimento no me fornece mais uma evidncia de que se trata de um porco, agora posso simplesmente ver que um desses animais, a questo est decidida. E claro que, em circunstncias diferentes, eu poderia ter comeado j por ver isso desde o incio, sem precisar dar-me ao trabalho de reunir evidncias. Da mesma maneira, se vejo um homem atirar em outro, posso oferecer meu depoimento (evidence), como testemunha ocular, s pessoas que no se achavam to bem colocadas como eu; mas no tenho evidncias para a minha afirmao de que houve um disparo, de que realmente o vi. De novo, ento, verifica-se que devemos levar em conta no apenas as palavras usadas, mas a situao em que so usadas; a pessoa que diz um porco s vezes ter evidncias

p-SENTIDO E PERCEPO153 r diz-lo, outras vezes no; mas no se pode dizer que, enquanto tal, a. frase um porco seja do tipo para o qual as evidncias se fazem absolutamente necessrias. Mas, em segundo lugar, como j foi demonstrado pelo caso anterior, no verdade que a formulao de evidncias seja funo de um tipo especial de frase. A evidncia (se alguma existe) de um enunciado sobre objetos materiais ser formulada atravs de enunciados do mesmo tipo; mas, em geral, qualquer tipo de enunciado pode oferecer evidncias para qualquer outro tipodesde que as circunstncias sejam apropriadas. Por exemplo: no verdade em geral, que os enunciados^se baseiem em enunciados singulares e no o inverso; minha crena de que este animal comer nabos pode estar baseada na crena de que a maior parte dos porcos os come, ainda que certamente, em circunstncias diferentes, posso ter apoiado a afirmao de que a maior parte dos porcos come nabos ao dizer que, de qualquer maneira, este aqui os come. Da mesma forma, o que talvez seja mais relevante para o tpico da percepo, no verdade, em geral, que os enunciados sobre como as coisas so se baseiem em enunciados sobre como as coisas parecem, tm a aparncia de, ou do a impresso de, e no vice-versa. Posso dizer, por exemplo, Aquele pilar bojudo com base em que o mesmo parece bojudo; mas, em circunstncias diferen-154SENTIDO E PERCEPO

tes, poderia dizer Aquele pilar tem um aspecto bojudo - com base em que fui eu, precisamente, que o constru, e construi-o bojudo. Estamos agora em condies de abordar, por alto, a ideia segundo a qual os enunciados sobre objetos materiais enquanto tais no so conclusivamente verificveis. Isto to errado como achar que os enunciados sobre dados dos sentidos so incorrigveis enquanto tais (o que no apenas enganoso, como Ayer est disposto a admitir). A doutrina de Ayer a de que a noo de certeza no se aplica a proposies desse tipo .6 A razo oferecida para tal afirmao a de que, para verificar uma proposio desse tipo conclusivamente, deveramos realizar a tarefa autocontraditria de completar uma srie infinita de verificaes; por maior que seja o nmero dos testes que possamos levar a cabo, nunca poderemos completar todos os testes possveis, pois so em nmero infinito; mas nada menos que a totalidade dos testes possveis seria suficiente. Ora, por que que Ayer (e no s ele) nos apresenta uma doutrina espantosa como esta? No , claro, verdade que, em geral, os enunciados acerca de coisas materiais precisem, enquanto tais, ser verificados. Se, por exemplo, uma pessoa diz, durante uma conversa ocasional, De fato, moro em Oxford, o outro participante da conversa pode, se achar que vale a pena, verificar a assero;SENTIDO E PERCEPO 155

mas o locutor no precisa faz-lo - sabe que verdadeira (ou, se estiver mentindo, que falsa). Estritamente falando, no que no precise verificar a afirmao, mas que, j sabendo que verdadeira, nada do que pudesse fazer valeria como verificao. Tampouco verdade que o locutor se encontra nessa posio por ter verificado a assero em algum estgio anterior; pois, de fato, de quantas pessoas que conhecem muito bem onde vivem possvel dizer que j verificaram, alguma vez, que ali vivem? Quando se imaginaria que o livessem

feito? De que forma? E por qu? O que temos aqui, de fato, uma doutrina errnea que uma espcie de imagem especular da doutrina errnea acerca da evidncia que discutimos h pouco; a ideia de que enunciados acerca de coisas materiais enquanto tais precisem ser verificados to errada quanto (e errada no mesmo sentido) a ideia de que enunciados acerca de coisas materiais enquanto tais devem basear-se em evidncias. E ambas as ideias se desencaminham, no fundo, atravs do erro generalizado de negligenciar as circunstncias nas quais as coisas so ditas - de supor que, sozinhas, as palavras possam ser objeto de uma discusso genrica. Mas, mesmo que concordemos em nos restringir a situaes em que os enunciados podem ser, e devem ser, verificados, o caso ainda parece desesperador. Por que cargas dgua deveramos achar que tal verificao no pode nunca ser conclusiva?156SENTIDO E PERCEPO

Se, por exemplo, voc me diz que h um telefone na sala ao lado, e (sentindo dvida) decido verificar sua afirmao, como se poderia pensar ser-me impossvel fazer isto conclusivamente? you sala, e certamente ali est alguma coisa que parece exatamente um telefone. Mas no ser o caso de uma pintura em trompe loeil? Posso resolver isso rapidamente. Trata-se de um telefone de imitao, que no est ligado rede e no funciona? Bem, desmonto-o parcialmente para certificar-me, ou ento tento ligar para algum - ou peo que me liguem, para poder ter certeza. E, evidentemente, se fizer todas essas coisas, certifico-me de fato; que mais poderia exigir? O objeto j passou por um nmero suficiente de testes para comprovar que se trata, realmente, de um telefone. E no somente que, em termos das finalidades normais e prticas do coti-. diano, esses testes o faam valer um telefone - o objeto que satisfaz a todos esses testes um telefone, sem dvida nenhuma. Contudo, como j era de esperar-, Ayer tem um motivo para sustentar essa opinio to extraordinria. Sustenta, como elemento geral de doutrina, que, embora os enunciados acerca de coisas materiais nunca sejam estritamente equivalentes a enunciados acerca de dados dos sentidos, ainda assim dizer qualquer coisa sobre uma coisa material dizer algo, mas no a mesma coisa, sobre classes de dados dos sentidos; ou, como coloca s v-SENTIDO EPERCEPO 157

zes, um enunciado acerca de uma coisa material implica um ou outro conjunto de enunciados acerca de dados dos sentidos. Mas - e esta a sua dificuldade - no existe nenhum conjunto definido e finito de enunciados acerca de dados dos sentidos que resulte de qualquer enunciado sobre uma coisa material. Assim, por mais sistemtico que seja o meu exame dos enunciados sobre os dados dos sentidos evocados por um enunciado sobre uma coisa material, nunca se pode excluir a possibilidade de que existam outros enunciados sobre dados dos sentidos que ele tambm deixa implcitos, e que, se examinados, acabarqr por mostrar-se falsos. Mas, sem dvida, se um enunciado pode implicar um enunciado falso; ento ele prprio, por isso mesmo, pode ser considerado falso; e esta uma possibilidade que, de acordo com a doutrina, no pode em princpio ser totalmente eliminada. E dado que, segundo a doutrina, a verificao consiste precisamente em examinar desse modo os enunciados sobre dados dos sentidos, segue-se que a verificao nunca pode ser conclusiva.7

Dentre os muitos elementos contestveis da doutrina, o mais estranho talvez seja o uso que ses

deu noo de implicao. Que que a frase E um porco implica?. Talvez exista em alguma parte, registrado por alguma autoridade em zoologia, um enunciado das condies necessrias e suficientes para pertencer espcie porco. E assim, talvez,158SENTIDO E PERCEPO

se usarmos a palavra porco estritamente neste sentido, dizer que um animal um porco implicar que satisfaa aquelas condies, quaisquer que possam ser. Mas no este tipo de implicao que Ayer tem em mente; nem ela particularmente relevante para o uso no especializado da palavra porco.8 Mas que outro tipo de implicao temos aqui? Possumos uma ideia aproximada daquilo a que os porcos se assemelham, com que o seu odor e os seus rudos caractersticos se parecem, e como costumam comportar-se; e, sem dvida, se alguma coisa no tem bem o aspecto de um porco, no se comporta, no faz rudos, nem cheira como os porcos, diramos no se tratar de um porco. Mas existem - tm que existir - enunciados da forma Tem aspecto de..., Faz o rudo de..., Cheira a..., dos quais pudssemos dizer, sem vacilar, que fiss

quem implcitos no enunciado E um porco? E claro que no. Aprendemos a palavra porco, como aprendemos a grande maioria das palavras que designam coisas correntes, ostensivamente - por nos ser dito, em presena do animal, Isto um porco; e assim, ainda que certamente aprendamos a que espcie de coisa se aplica (ou no) adequadamente a palavra porco, no passamos por nenhum estgio intermdio que associe a palavra porco a uma srie de enunciados sobre o modo de as coisas parecerem, soarem, ou cheirarem. A palavra no introduzida em nosso vocabulrio ds-SENTIDO E PERCEPO159

ta forma. Embora cheguemos a ter certas expectativas quanto a saber se ou no o caso quando urn^ porco est por perto, totalmente artificial represent-las guisa de enunciados implicados por Isto um porco. E, justo por esta razo, ha melhor das hipteses totalmente artificial falar como se verificar se um animal um porco consista em exas

minar os enunciados implicados pr E um porco. Se concebermos a verificao desta maneira, sem dvida sero muitas as dificuldades; no saberemos por onde comear, como ir adiante ou onde parar. O que isso mostra, porm, no que um porco seja de difcil verificao, ou incapaz de ser conclusivamente verificado, mas que o procedimento de Ayer uma caricatura inconcebvel da verificao. Se o procedimento de verificao estivesse corretamente descrito tal como foi apresentado, no poderamos dizer exatamente o que constituiria a verificao conclusiva da afirmao de que um determinado animal era um porco. Mas isto no mostra que normalmente exista, de fato, qualquer dificuldade em verificar que um animal um porco sempre que nos deparamos com a oportunidade de faz-lo; apenas mostra que aquilo que a verificao foi completamente falseado.9

A isto podemos acrescentar uma questo bastante diferente, mas ligada anterior: embora tenhamos opinies mais ou menos definidas quanto ao que objetos de tipos diferentes faro ou no fa-160SENTIDO E PERCEPO

ro, ou como reagiro ou no reagiro, em uma ou outra situao, seria grosseiramente artificial represent-las sob a forma de implicaes definidas. H um grande nmero de coisas que, tenho certeza, um telefone no far, e, sem dvida, um nmero infinito de coisas que nunca me passar pela cabea que ele pudesse fazer; mas seria perfeitamente absurdo dizer que Isto um telefone implica toda a constelao de enunciados das coisas que ele faz e no faz, e concluir que, realmente, no terei estabelecido que algo um telefone at que, per impossibile, tenha confirmado toda a classe infinita dessas supostas implicaes. Ser que um telefone implica que No se pode com-lo? Devo tentar com-lo, e fracassar, no processo de certificar-me de que um telefone?10 As concluses a que chegamos at aqui podem, portanto, ser resumidas da seguinte maneira: 1. No existe nenhum tipo ou classe de frases (proposies) das quais se possa dizer que, enquanto> tais,

() so incorrigveis; . () fornecem evidncia para outras frases; e t (c) devem ser examinadas a fim de que outras fr^* ss possam ser verificadas.

2. No que diz respeito s frases sobre coisas malte riais, no verdade que, enquanto tais, w,SENTIDO E PERCEPO161 (a) devem ser justificadas (supported by evidence) ou baseadas em evidncia (based on evidence); (b) necessitam de verificao; e \ (c) no podem ser conclusivamente verificadas. De fato, as frases - em oposio aos enunciados feitos em circunstncias especficas - no podem, de modo algum, ser divididas, segundo estes princpios, em dois grupos (ou em qualquer outro nmero). E isto significa que a doutrina geral do conhecimento que esbocei no incio desta seo, doutrina que o verdadeiro pesadelo subjacente ao tipo de teorias que at aqui discutimos, est radicalmente mal concebida e j de princpio equivocada. Pois, mesmo na hiptese arriscada e gratuita de que o que uma pessoa sabe em tempo e lugar determinados pudesse, sistematicamente, ser decomposto e ordenado em termos de bases e superestruturas, seria um erro de princpio supor que a mesma coisa se aplicasse ao conhecimento em geral. E isto assim porque no poderia haver uma resposta genrica para as questes: o que constitui evidncia para que, o que certo, o que duvidoso, o que necessita

ou no necessita de evidncias, o que pode ou no ser verificado? Se a Teoria do Conhecimento consiste em achar razes para uma resposta dessas, no existe tal teoria. Todavia, antes de abandonar esse tpico, devemos examinar mais uma doutrina acerca das 162SENTIDO E PERCEPO

duas linguagens. Essa doutrina est errada no exatamente pelas mesmas razes que temos discutido, e tem interesse per si. No muito fcil dizer, exatamente, o que a doutrina , de modo que you apresent-la nas palavras do prprio Ayer (os itlicos so meus). Ele diz, por exemplo: Enquanto o significado de uma frase que se refere a um dado dos sentidos precisamente determinado pela regra que o correlaciona com o dado dos sentidos em questo, tal preciso no alcanvel no caso de uma frase que se refere a uma coisa material. Pois a proposio que tal frase expressa difere de uma proposio sobre um dado dos sentidos por no existirem fatos observveis que constituam condio necessria e suficiente de sua verdade.11 E, ainda: ... as referncias de uma pessoa a coisas materiais so vagas em sua aplicao aos fenmenos...12 Bem, talvez no seja muito claro o que, exatamente, se pretende dizer com estas observaes; mesmo assim, percebe-se com suficiente clareza que o que est sendo afirmado que os enunciados sobre os dados dos sentidos - todos os enunciados desse tipo so, de algum modo e em algum sentido, precisos, ao passo que, por contraste, os enunciados sobre coisas materiais so, todos eles, vagos em algum sentido ou de algum modo. Para comear, difcil ver como que isto poderia ser verdadeiro. Aqui esto trs porcos um enunciado vago? Parece que estou vendo alguma SENTIDO E PERCEPO163

coisa rsea no vago? O segundo enunciado necessariamente preciso de uma maneira que o primeiro incapaz de ser? E no surpreendente que a preciso deva emparelhar-se com incorrigibilidade, e a impreciso com impossibilidade de verificao? Afinal, dizemos que as pessoas buscam abrigo no vago - quanto mais preciso se , mais provvel, em geral, que se esteja enganado, ao passo que se tem boas possibilidades de no estar errado quando se faz um enunciado suficientemente vago. Mas o que nos falta, aqui, examinar mais de perto as palavras vago e preciso em si mesmas. / Vago , em si, um conceito vago. Suponham que digo, por exemplo, que a descrio que algum faz de uma casa vaga; existe um nmero muito grande de traos possveis no necessariamente defeitos, pois isso depende daquilo que se deseja - que a descrio pode ter no todo ou em parte, e que poderiam levar-me a declar-la vaga. Pode ser (a) uma descrio aproximada, comunicando apenas uma ideia aproximativa da coisa a ser descrita, ou () ambgua em alguns pontos, de modo que a descrio sirva, ou seja apreendida como tendo este ou aquele significado, ou (c) imprecisa, no especificando com preciso os aspectos da coisa descrita, ou (d) no muito detalhada, ou (e) formulada em termos genricos que cubram uma srie de casos bastante diversos, ou (/) no muito acurada, ou talvez, tambm (g) no muito detalhada- ou completa.oL^f-Jo,

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SENTIDO E PERCEPO

Uma descrio pode, sem dvida, exibir todos esses traos de uma s vez, mas evidente que eles tambm podem ocorrer independentemente um do outro. Uma descrio bastante

aproximada e incompleta pode ser perfeitamente exata; pode ser detalhada, mas muito imprecisa, inteiramente desprovida de ambiguidade mas, ainda assim, muito geral. De qualquer maneira, fica bastante claro que no existe uma nica maneira de ser vago, ou de no o ser, isto , de ser preciso. Em geral so os usos das palavras, e no elas mesmas, que se chama apropriadamente de vagos. Se, por exemplo, ao descrever uma casa, digo entre outras coisas que tem um telhado, o fato de no dizer o tipo de telhado que a casa tem pode ser um dos traos que levam as pessoas a dizer que minha descrio um tanto vaga; mas isso parece no constituir uma boa razo para dizer que, em si, a palavra telhado uma. palavra vaga. Existem, reconhecidamente, diversos tipos de telhado, bem como de porcos ou policiais; isso, porm, no significa que todos os usos de telhado nos deixem em dvida quanto ao que se quer dizer; s vezes desejaramos que o locutor fosse mais preciso, mas de se supor que esse desejo resulte de alguma razo especial. Esse fato de ser aplicvel a uma srie de casos no idnticos muitssimo comum; o nmero de palavras que apresenta esse trao supera em muito, imagino, o das palavrasSENTIDO E PERCEPO165 s quais atribuiramos o rtulo genrico de palavras vagas. Por outro lado, quase qualquer palavra pode nos meter em dificuldades no que diz respeito aos casos limtrofes; mas, de novo, isso no basta para dar firmeza a uma acusao de impreciso. (Alis, a razo pela qual tantas palavras exibem esses traos no se deve ao fato de ocorrerem na linguagem de objetos materiais, mas, antes, ao fato de ocorrerem na linguagem comum, onde uma excessiva sutileza de distines seria realmente cansativa; entram em contraste no com as palavras relativas aos dados dos sentidos, mas com as terminologias especiais das cincias exatas.) Existem, contudo, algumas palavras notoriamente inteis - democracia, por exemplo - cujos usos tendem a nos deixar sempre em dvida acerca do que com elas se pretende dizer; e, neste caso, parece razovel dizer-se que a palavra vaga. O termo preciso identificado, sobretudo, no campo semntico da medida; ser preciso, aqui, consiste em usar uma escala graduada suficientemente fina. 216,366 metros constitui uma resposta muito precisa pergunta sobre o comprimento do vapor de carreira (ainda que possa no ser exata). Pode-se dizer que as palavras so precisas quando, digamos assim, sua aplicao fica circunscrita a estreitos limites; azul ovo de pato , no mnimo, um termo mais preciso que azul. Mas no existe resposta geral que determine o grau de166SENTIDO E PERCEPO

sutileza da escala, ou quo estritamente determinada deve ser a aplicao de uma palavra, para que a preciso seja alcanada - em parte porque no existe um limite para a tarefa de estabelecer divises e discriminaes cada vez mais sutis, e em parte porque aquilo que preciso (o suficiente) para alguns propsitos ser demasiado grosseiro e aproximativo para outros. Uma descrio, por exemplo, no pode ser mais absoluta, definitiva e derradeiramente precisa do que absolutamente copiosa ou completa. Precisamente pode, e deve, ser diferenciado de exatamente. Se meo uma banana com uma rgua, posso descobrir que tem precisamente 14,2875 cm de comprimento. Se medir a rgua com bananas, posso verificar que mede exatamente

seis bananas, embora no possa reivindicar uma grande preciso para meu mtodo de medio. Se eu tiver que medir uma carga de areia em trs partes iguais sem ter os meios de pes-la, no posso fazlo precisamente. Mas, se tiver que dividir uma pilha de 26 tijolos em trs pilhas iguais, no posso fazlo com exatido. Pode-se dizer que o uso de exatamente implica algo de estimulante e especialmente digno de nota; o fato de serem (exatamente] duas horas em ponto tem, por assim dizer, um valor noticioso melhor que o de serem duas horas e trs minutos; existe uma espcie de contentamento em achar a. palavra exata (que pode no ser uma palavra precisa).SENTIDO E PERCEPO

167 E o que dizer de exato ? evidente que nem uma palavra, nem uma frase podem ser exatas enquanto tais. Veja-se o caso dos mapas, onde a exatido encontra seu terreno mais propcio; um mapa exato no , por assim dizer, um tipo de mapa, como o , por exemplo, um mapa em grande escala, um mapa detalhado, ou um mapa claramente desenhado - sua exatido est no ajuste13 do mapa ao terreno que mapeia. Poderamos dizer que um relatrio exato, por exemplo, deve ser verdadeiro, ao passo que um relatrio muito preciso ou detalhado pode no o ser; e h algo de certo nesta ideia, embora eu no esteja de todo vontade com ela. No verdadeiro mas exato manifestamente errado; mas exato, e portanto verdadeiro tambm no parece estar completamente certo. Ser que s pelo fato de Verdadeiro, depois de exato, ser redundante? Valeria a pena comparar a relao de verdadeiro corn, digamos, exagerado; se exagerado, e.portanto no verdadeiro no parece totalmente certo, pode-se tentar no verdadeiro no sentido de exagerado, no verdadeiro, ou, antes, exagerado, ou na medida em que exagerado, no verdadeiro. Evidentemente, da mesma forma que nenhuma palavra ou frase exata enquanto tal, nenhuma palavra ou frase configura semelhante exagero. Mas tudo isso no passa de digresso. / O que havemog ento de fazer da ideia de que as frases sobre os dados dos sentidos so precisas en-168SENTIDO E PERCEPO

quanto tais, enquanto as frases acerca de coisas materiais so intrinsecamente vagas? A segunda parte desta doutrina , em certo sentido, inteligvel. O que Ayer parece ter em mente que ser uma bola de crquete, por exemplo, no implica ser olhado em vez de tocado, olhado sob determinada iluminao, distncia ou ngulo especficos, tocado com a mo e no com o p, etc. Isto , sem dvida, perfeitamente verdadeiro, e o nico comentrio requerido que no constitui motivo para dizer que Aquilo uma bola de crquete vago. Por que deveramos dizer que vago em sua aplicao aos fenmenos? A expresso no se destina, certamente, a ser aplicada aos fenmenos. Pretende-se, com ela, identificar um tipo particular de bola - um tipo que, de fato, est definido de modo completamente preciso - e a expresso faz essa identificao de modo plenamente satisfatrio. Qual ser a atitude do locutor se lhe pedissem para ser mais preciso? A propsito, como j foi apontado antes, seria um erro assumir que uma maior preciso constitua sempre um aperfeioamento; pois, em geral, mais difcil ser mais preciso; e, quanto mais preciso for um vocabulrio, menos fcil ser adaptar-se s exigncias de situaes novas. Todavia, a primeira parte da doutrina muito menos fcil de compreender. Ao dizer que o

significado de uma frase que se refere a um dado dos sentidos precisamente determinado pela r-SENTIDO E PERCEPO169 gra que a correlaciona com o dado dos sentidos em questo, Ayer dificilmente pode querer dizer que tal frase pode remeter somente a um dado dos sentidos especfico; pois, se assim fosse, no poderia existir uma linguagem dos dados dos sentidos (mas somente, suponho eu, nomes de dados dos sentidos). Por outro lado, por que cargas dgua deveria ser verdade, em geral, que as expresses usadas para remeter aos dados d