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ARTE-TERAPIA

ICONOLOGIA DA PERVERSÃOIMAGENS DA MELANCOLIA DO

DESEJO

Ivan Ferrer Maia

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ARTE-TERAPIA

ICONOLOGIA DA PERVERSÃOIMAGENS DA MELANCOLIA DO

DESEJO

Ivan Ferrer Maia

Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP

Agosto de 2000

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ARTE-TERAPIA

ICONOLOGIA DA PERVERSÃO

IMAGENS DA MELANCOLIA DO DESEJO

Ivan Ferrer Maia

Memorial descritivo apresentado à

disciplina Fundamentos Teóricos e

Clínicos da Arte-Terapia do

Instituto de Pós Graduação em

Artes da Universidade Estadual de

Campinas.

Prof. Dr. Mário Eduardo C. Pereira

Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP

Agosto de 2000

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“Os sonhos aparentemente

inocentes vêm a ser

justamente o inverso quando

nos damos ao trabalho de

analisá-los. São, se é que

posso assim expressar-me,

lobos na pele do cordeiro”.

(Freud, 1900)

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Sumário

1. Introdução

2. Imagem Invisível

3. Imagem Amoral

4. Imagem Histórica

5. Imagem Atual

6. Considerações Finais

7. Referências Bibliográficas

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Introdução1

No presente trabalho pretendo abordar o tema iconologia da

perversão: imagens da melancolia do desejo. Não tenho a

pretensão de aprofundar o assunto e menos ainda de saturá-lo.

O que me leva a refletir sobre este tema é a necessidade de

abordar como as imagens artísticas e oníricas se assemelham

na tentativa de alcançar ou canalizar o desejo não satisfeito.

É instrutivo relacionar as imagens artísticas com os sonhos.

Pois ambos não servem como pano de fundo para os desejos,

as neuroses, as psicoses e os delírios? Nas palavras de Saad

(2000), “a obra criada representa a ordem emergida do caos –

beleza e terror”. É na obra, na imagem e no sonho que se pode

visualizar o objeto desejado. “Um sonho pode representar um

desejo como realizado” agora quem fala é Freud (1900).

O conceito de iconologia da perversão está sendo utilizado

como um repertório de imagens que trata da perversão

originada na melancolia. Como sugere MATOS (1987), a

melancolia como medo da morte e da destruição, medo de

perder o próprio eu, gerando um recolhimento egocêntrico do

sujeito, ou medo de perder algo em que é difícil determinar o

que foi perdido, sendo preciso admitir que uma perda ocorreu,

mas sem que se chegue a saber o que foi perdido.

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A simples existência do outro já é fonte genuína da melancolia.

Porque já é motivo de se enxergar no outro o seu próprio

desejo. Mesmo que este desejo seja abandonado – o abandono

do amante ao amado, o que leva ao não domínio por parte do

sujeito. O homem torna-se melancólico porque o objeto

renunciado continua a ser desejado. MATOS (1987) escreveu,

em relação à renúncia de Ulisses ao sedutor e perigoso canto

das sereias: “a renúncia torna o homem triste, e a necessidade

de amor, a necessidade do outro como única garantia de não

agressão, converte-se em melancolia”. Esse sujeito infeliz,

pendente na auto-estima levou Freud a considerar a

melancolia:

“Os traços mentais distintivos da melancolia são

um desânimo profundamente penoso, a cessação

de interesse pelo mundo externo, a perda da

capacidade de amar, a inibição de toda e

qualquer atividade, e uma diminuição dos

sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar

expressão em auto-recriminação e auto-

envilecimento, culminando numa expectativa

delirante de punição” (Freud, 1924).

Neste caso, refiro-me a introspecção (o recolhimento do

sujeito) como causadora de reflexões e mudanças, despertando

os mecanismos de defesa do ego que podem ser expressos por

uma agressividade – a vontade de ferir para não ser ferido.

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Como a melancolia é a perda, a perversidade é o retirar

forçado, arrancar, roubar sem o consentimento do outro. Como

vingança ou rebeldia, querendo de volta o que foi perdido. Isto

pode gerar uma nova melancolia, originada no desejo –

formando uma espiral melancólica.

Desta forma, “as perversões, os assassinatos que são também,

impulsos e desejos” (FOUCAULT, 1987:21) são também

revelados através de imagens de vítimas deste tipo de

comportamento, que já vêm sendo repetidos a tempos, num

processo automimético, patológico e irracional. Os assassinatos

como os sonhos sobre a “morte de pessoas queridas” podem

ocultar ou aludir indiretamente um outro desejo.

“Assim foi o sonho da tia que viu o único filho da

irmã deitado em seu caixão mortuário. Aquilo não

significava que ela desejasse ver morto seu

pequeno sobrinho; como vimos, o sonho

simplesmente ocultava um desejo de ver

determinada pessoa de quem particularmente

gostava e que não via há muito tempo – uma

pessoa que ela encontrara antes, após um

período relativamente longo, ao lado do caixão de

outro sobrinho” (FREUD, 1900:264).

Há um quiasma no desejo em encontrar, aproximar, apreender

o sobrinho com o desejo do assassino em dominar e apreender

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a vítima. Ambos sentem a necessidade de obter algo do outro,

seja pelo afeto ou pelo ódio. As imagens oníricas e artísticas

revelam mais quando emergem os sentimentos do conteúdo

latente e não do conteúdo manifesto. Há mais verdade num

lapso, num descuido do que numa ação lógica, planejada.

O homem na busca insensante de suas realizações vem

repetindo ao longo tempo seu destino melancólico. As imagens

pré-históricas já esbouçavam os seus desejos seculares. O que

são as pinturas nas cavernas e as esculturas das Vênus

Estetopígicas senão desejos pela alimentação e procriação,

minados pelas necessidades e pelos prazeres.

EGLETON (1990:117) referindo-se a Schopenhauer, escreveu

que

“o símbolo mais adequado para o

empreendimento humano é o da toupeira de

patas em forma de pá: cavar esforçadamente

com suas enormes patas em forma de pá é o

negócio de sua vida; cerca-o a noite

permanentemente... o que ele obtém com esta

vida tão cheia de dificuldades e vazia em

prazeres? A alimentação e a procriação, ou seja,

os simples meios para continuar e começar de

novo, em novos indivíduos, o mesmo destino

melancólico”.

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Como não bastasse esse passado melancólico, Aldous Huxley

no livro Admirável Mundo Novo (1932) preconizou um novo

futuro, também melancólico: com seres humanos

condicionados, nascidos de provetas, que ocupam um lugar

predeterminado na sociedade. A perda do próprio eu é tratado

como um futuro sombrio e angustiante.

É nessa sociedade desumanizada, em Admirável Mundo Novo,

que o problema do desejo se complica. É retirada do homem

toda a sua memória e identidade, como nos andróides de Blade

Runner, o caçador de andróides (Ridley Scott, 1983), onde são

acrescentados perversamente memórias falsas e já

condicionadas. Em Blade Runner, o homem inebriado pelo

narcisismo transforma a criação (andróides) em sua imagem e

semelhança. Imagens de um filme que revela um tema tão

pesquisado na atualidade.

A psicanálise nasceu com a histeria. Mas não é este o sintoma

dos nossos tempos, nem a neurose obsessiva dos anos entre e

pós-guerras. KEHL (1987): “Eu diria que hoje a psicanálise não

luta contra a histeria – luta contra o narcisismo”. Não seria as

imagens um reflexo do ego narcísico? Imagem e ego envolvidos

por uma célula narcísica tentando se retro-alimentarem. Isto

nos leva a pensar o artista como um hermafrodita – pai e mãe

ao mesmo tempo, que fertiliza e pari sua criação. O artista

(mãe) e a obra (filho) unificados (sejam vistos as metonímias –

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comprei um Portinari), numa verdadeira fusão narcísica. Para

Kehl a castração, apresentado aqui como o rompimento

narcísico entre a mãe e o filho, funciona como um elemento

positivo, porque permite o sujeito vivenciar novas

possibilidades.

“A castração é, portanto, essa ferida ‘moral’, essa

perda de uma ilusão paradisíaca em troca da qual

se ganha a possibilidade de continuar vivendo –

já que a manutenção da ligação umbilical com a

mãe só pode levar a psicose ou à morte. A

castração é a perda de um privilégio que já se

desfrutou, perda que abre em troca um leque de

possibilidades de se viver o novo. A conservação

do narcisismo é que é a verdadeira perda porque

é a manutenção (ilusória, ainda por cima: um

mau negócio!) de um estado antigo que não

permite que o desejo se mova. Nesses termos, a

castração é um evento absolutamente

progressista na nossa vida” KEHL (1987:478).

Assim, podemos dizer que o narcisismo é um aprisionamento

melancólico do sujeito em relação a um desejo antigo. Seu

rompimento o libertará. Quando isso se dá, ocorre uma

transferência feliz, permitindo-o a prática de novos sonhos,

novas criações e canalizações com sucesso. Estamos falando de

sublimação.

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“A sublimação é, portanto, incompatível com o

narcisismo, já que sua condição é a renúncia ao

objeto total e a busca incessante de outros

objetos e de outras formas de expressão, já que

essa proibição que a repressão impõe – de acesso

aos conteúdos dos desejos – inibe a expressão, a

liberdade, o contato com a subjetividade e com o

mundo” (KELH, 1987:482).

A luta contra a repressão é uma tentativa para libertar-se da

melancolia. Muitas vezes, valem da perversão para isso. Seus

valores literários ou poéticos podem mudar de forma dramática

– numa perversão manifesta vira carniça esquartejada, como as

cabeças guilhotinadas ou os monomaníacos sem história,

pintados por Géricault. São desejos perdidos nos confins das

lembranças seguidos por sua sombra – a melancolia.

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Imagem Invisível

Observa-se nas cidades uma vista enfumaçada e sombria. São

imagens difusas, difíceis de serem apreendidas. Típico cenário

poluído, escuro e saturado de Blade Runner, o caçador de

andróides. A dificuldade em apreender as imagens também foi

conseqüência da invasão súbita da mídia, que nos condicionou

ao olhar fugidio das coisas. Esse olhar descomprometido, nos

rebaixou às imagens pálidas de cor difusa. O que vemos é algo

sombrio, turvo e opaco, onde a luz não consegue penetrar.

Quando a perspectiva tradicional foi relegada no período

moderno, a atenção ficou centralizada nos fenômenos

atmosféricos, ou seja, nos fenômenos da não linearidade: a

nuvem, o vento, a luminosidade, a fumaça e a sombra. A

atmosfera impede a passagem da luz, é uma imagem opaca,

nebulosa, sem nitidez. Esta nebulosidade da imagem

questionaria o dispositivo da perspectiva clássica.

Para RUSKIN, citado por PEIXOTO (1996:121), “a nebulosidade

seria o aspecto distintivo da paisagem moderna”. O artista

moderno estava interessado na aparência das coisas vistas

através de formações atmosféricas, o que levaria a

representação de fenômenos difusos, desmaterializados.

O olhar hoje não consegue perpassar a superfície.

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“No horizonte, um mundo cada vez mais opaco.

Quanto mais se retrata, mais as coisas nos

escapam. Uma obsessão que, ao invés de criar

transparência, só redobra essa saturação. Qual

destino de nossas imagens, esses espectros

descartáveis e sem significados?” (PEIXOTO,

1996:09)

Tornar-se importante fazer o mapeamento do que, até então,

não era visível. Para PEIXOTO (1996:15). “o invisível não é,

porém, alguma coisa que esteja para além do que é visível. Mas

é simplesmente aquilo que não conseguimos ver. Ou ainda: é

aquilo que torna possível a visão”.

Podemos dizer que o sonho torna possível a visão. Sonhar

exercita o olhar. Imagens internas de realidade única escolhidas

cuidadosamente pelo inconsciente. Mas como podemos

apreender a imagem do sonho? Não estaria nas lembranças um

modo de reter o sonho? A memória se faz importante na

revelação de nossos desejos. O ato de ter sonhado já é um

modo de trabalhar o porão do inconsciente, mesmo sem

sabermos o que sonhamos. A intensidade de um sonho não é o

essencial para determinar se uma imagem onírica será

rememorada, porém não deixa de ser importante. Nas palavras

de Freud (1900:45):

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“Quando estamos acordados, regularmente nos

esquecemos, de imediato, de inúmeras sensações

e percepções, porque eram fracas demais ou

porque a excitação mental ligada às mesmas era

leve em demasia. O mesmo se aplica a muitas

imagens oníricas: são esquecidas porque são

muito fracas, enquanto imagens mais fortes

adjacentes a elas são recordadas. O fator de

intensidade, contudo, certamente não é por si só

bastante para determinar se uma imagem onírica

será lembrada”.

Mas como pode a imagem abordar aquilo que nos escapa?

Principalmente se o que nos escapa, não for algo externo e sim

interno da consciência? PEIXOTO (1996:35) diz que Godard em

Je vous salue, Marie (1985): colocou o desejo da mulher com

alteridade absoluta, algo irrepresentável, enigmático. A virgem

grávida em confronto com o discurso médico, o contraponto

entre a exasperação dos corpos e a serenidade dos longos

planos do céu. Godard tenta filmar o que a visão não consegue

captar.

Mas o que Godard quer é retratar o sublime. “O sublime é esta

tentativa de dizer o que não pode ser dito, de representar o que

não pode ser representado” (PEIXOTO, 1996:36). De certa

forma, em algumas imagens (oníricas e vigeis), há uma força

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externa, que não pode ser apreendida e tocada. Uma força

insuportável, que mexe com o mundo.

“Esse mundo de criaturas constantemente

carentes, vivendo o seu tempo simplesmente a

devorar uns aos outros; levando sua existência

com ansiedade e privações, com fases constantes

de terríveis aflições, até caírem finalmente nos

braços da morte” (SCHOPENHAUER, apud

EAGLETON, 1993:117).

Estamos falando de imagens que retratam o melancólico desejo

desses personagens sem almas. São seres humanos tão vazias

de prazeres, que se limitam apenas à alimentação e à

procriação. Apenas o suficiente para continuar, de novo, o

mesmo trajeto melancólico. Suas essências são tão obscuras

que se fossem capazes de se enxergar, logo enjoariam desse

apego perverso à infelicidade.

É notável que os sonhos esquecidos sejam retidos na memória.

Devemos observar que “uma proporção tão grande de sonhos

se perde inteiramente, podemos muito bem dividir se nossa

lembrança do que resta deles não poderá ser falseada” (Freud,

1900:48).

A quantidade de imagens nos cegou, mas podem elas mesmas

ensinar-nos a enxergar? Condicionados a olharem imagens de

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clichês, se faz necessário o uso destas para servirem como

iscas para apreender os visionários cegos.

“Os clichês nos permitem apreender apenas o que

nos interessa das coisas. Ver cada vez menos.

Mas um outro tipo de imagem é possível: que

faça sugerir a coisa em si mesma, no seu excesso

de horror e beleza. Uma iluminação. Tornar-se

visionário” (PEIXOTO, 1996:32).

Há algo de paradoxalmente ofuscante no uso dessas imagens,

no entanto, o excesso de clichês faz surgir um outro tipo de

imagem, com o seu horror e beleza, perversidade e

ingenuidade.

“Estamos diante de algo intolerável, alguma coisa de muito

forte ou de muito bela que nos retira toda a possibilidade de

ação, que nos cega. Algo ficou forte demais na imagem”

(PEIXOTO, 1996:32). Seria preciso que, um dia pudéssemos

enxergar no visível sinais invisíveis ao nossos olhos calejados.

Seria a manifestação do vidente, que passa do olhar à visão.

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Imagem Amoral

É, talvez, conveniente fazer uma colocação sobre a ética das

imagens. Para isso, inicio com a idéia de que, a falta de lucidez

do comportamento é promovida pela exacerbação da emoção a

favor dos prazeres instintivos, causando o ofuscamento da

racionalidade. Vale lembrar que a emoção se diferencia do

sentimento por esse conter uma série de representações,

enquanto que a emoção é estado primeiro, desprovido de

significação.

Tomado pelos processos emocionais o ser age sem se dar por

conta de suas ações. Delírios obscuros mergulhados numa

bruta estupidez íntima, utilizados como fuga de seus

sofrimentos miméticos.

“A gratificação momentânea, o prazer fugidio

condicionado pela necessidade; muito e longo

sofrimento, luta constante, bellum omnium todos

caçadores e todos presas, pressão, privação,

necessidade e ansiedade, gritos e gemidos, e isso

continua in saecula saeculorum ou até quando

novamente a crosta do planeta se romper”

(SCHOPENHAUER, apud EAGLETON, 1993:117).

O prazer momentâneo ou alívio consolador já vem a séculos

sendo permeado por iconologias. Seja para a sublimação dos

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artistas e artesãos, para a desrepressão das emoções da

comunidade desprovida de moral ou para tentar preencher as

esperanças da comunidade com moralismos ideológicos.

As imagens não nos torna mais virtuosos. Pelo contrário, nelas

podem ser realizados os piores crimes – roubo, violência e

assassinato – sem nenhum sentimento de remorso. No universo

imagético, a indiferença ética reina suprema.

FREUD (1900) apresenta variados pontos de vistas em relação

a moral no sonho. “Alguns asseveram que os ditames da

moralidade não têm lugar nos sonhos, enquanto outros

sustentam não menos positivamente que o caráter moral do

homem persiste em sua vida onírica”. Mas aqueles que

acreditam na moral nos sonhos “só poderíamos esperar, a bem

deles, que eles mesmos não tivessem tais sonhos repreensíveis

que viessem perturbar sua firme crença em seu próprio caráter

moral”. Como nos sonhos, as imagens copia e dilata os desejos,

anseios, impulsos e tentações que norteiam os valores morais

de uma pessoa.

Confrontos de idéias entre iconófilos e os iconoclastas são

encontrados durante a história: o Antigo Testamento e o

problema dos ídolos, Bizâncio e suas perseguições, a Reforma e

o culto dos santos, etc. Portanto, pode-se dizer que “o mundo

fenomenal, isto é, o mundo das imagens, jamais foi

considerado a não ser separado de Deus. Não esqueçamos que

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ele deriva do pecado original e permanece, por isso, na mais

completa impiedade” (MAFFESOLI, 1995:90).

Como disse PEIXOTO (1992:305), “quando a obra de arte

perdeu o seu caráter de objeto de culto, o sagrado parecia se

escoar cada vez mais das coisas. [...] Neste universo

desprovido de alma, onde teria ido se refugiar o sagrado?”

É nesse ponto que se forma a problemática. A imagem, sendo

proveniente do mundano, diz respeito à animalidade, ao

instinto. Durante algum período ela serviu ao sagrado. Hoje,

isto foi rompido e percebe-se na imagem uma diferença de

natureza, entre a perfeição (Deus) e a imperfeição (mundo).

“Pode-se encontrar uma tal separação entre a sã

razão, sede da perfeição, germe de Deus em sua

natureza humana, e a imaginação, rapidamente

comparada à desrazão, que representa tudo

aquilo que remete no homem à animalidade, ao

infra-humano, em uma palavra ao mundo

subterrâneo e demoníaco, do qual é preciso

tomar distância ou que é preciso tentar resgatar”

(MAFFESOLI, 1995:90).

Podemos ver em certas imagens a desrazão do homem animal.

O sujeito que revela-se inteiramente despido em sua pobreza

natural – o homem instintivo se manifestando. Mas, como nas

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imagens, há algo de muito real nos sonhos: “Os sonhos não

consistem unicamente em ilusões. Se, por exemplo, se tem

medo de ladrões num sonho, os ladrões, é verdade, são

imaginários – mas o medo é real” (STRICKER apud FREUD,

1900:78).

O desejo de apropriar-se de algo ou de afastar-se desse algo,

temendo ameaças conflitantes ao Ego Ideal, que busca a

estabilidade e a moral pode ser paradoxal com as imagens que

trazem no cerne os desejos mais delirantes e amorais. Muitas

imagens não moralizam. Elas amoralizam por não mostrar

como deveriam ser as coisas, mas por mostrar como as coisas

são. A ética das imagens poderia estar nesse intervalo. Uma

ética voltada em apresentar como as coisas são, sem o

interesse de mostrar uma solução ideal. A imagem, quando

revela como as coisas são, ela está apreendendo o real. Esta

apreensão estaria carregada de significados, outro fator carente

das imagens de hoje.

Percebe-se, cada vez mais, o uso de imagens sem significados.

Imagens apelativas, direcionadas para a emoção. O que

interessa mais para essa sociedade é a imagem como emoção

do que como mensagem. É a imagem voltada mais para os

aspectos instintivos. “Neste sentido, a imagem é, de parte a

parte, orgíaca, stricto sensu passional (orge), ou ainda estética:

seja qual for seu conteúdo, ela favorece o sentir coletivo

(aisthesis)” (MAFFESOLI, 1995:93).

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Para MAFFESOLI (1995), cada coisa vale enquanto estiver em

relação com o conjunto das pessoas e das outras coisas. É por

isso que se emprega a imagem factual, a imagem efêmera e a

imagem sensual. Ela nada vale por si mesma, mas em um

movimento de reversibilidade, extrai sua força do todo social no

qual se integra, que ela constitui, que ela evoca e epifaniza,

com maior ou menor beleza.

Aproveitar o apanágio das imagens – de favorecer o sentir

coletivo, a televisão e a publicidade, mediante uma manobra

perversa, tem-se o interesse de seduzir e alterar o estado

racional, mostrando um paraíso idealizado ou um corpo glorioso

a ser alcançado. O local prometido, normalmente, é um

ambiente bucólico ou aventureiro, propício à realização dos

desejos mais delirantes.

O corpo glorioso alude à forma angelical. Os indivíduos são

adornados, cosmetizados em excesso, fazem musculação,

submetem-se a dieta, freqüentam salão de cabeleireiros e

utilizam as roupas da moda para se espiritualizarem.

“Com, freqüência, são postos em cenas

andróginos, etéreos e ambíguos, dotados de um

corpo de juventude eterna, e por isso mesmo

servem de emblemas dos desejos mais loucos e

dos sonhos que não mais se podem dizer

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escondidos, tanto são anunciados no mimetismo

da moda, nos tratamentos de saúde e outras

manifestações de ‘juvenismo’ ambiente. Deve-se

lembrar do conselho evangélico: ‘Se vós não

tornardes crianças, não entrareis no reino dos

céus” (MAFFESOLI, 1995:136).

A sociedade é, cada vez mais, transfigurada pelas imagens.

Uma transfiguração que repousa numa carga erótica. Ela faz

sair de si, ela favorece o apego ao outro, diz MAFFESOLI

(1995). É, talvez, aí que está o nó do problema: se a imagem é

uma forma que seduz e atrai, ela, portanto, não tem que fazer

injunção moral.

A imagem está, cada vez mais, imoral. Talvez a ética esteja em

testemunhar esse evento. Apresentar o inapresentável, dizer o

indizível. Fazer-se imoral para tornar visível a imoralidade, com

a sua própria presença – e não com alguma outra coisa. Para

isso, é necessário que a imagem não potencializa a sua

materialidade, mas a espiritualidade da matéria. Assim, ela se

faz presente com todo seu conteúdo e significado.

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Imagem Histórica

Os pintores e poetas eram proibidos de entrar na cidade ideal

de Platão, por não seguir as regras da razão e por perverter os

espíritos, mediante as técnicas da semelhança. A arte mimética

era condenada da mesma forma que a mentira. Passados

alguns milênios, nosso tempo ainda utiliza a imagem para

desconcertar a razão.

Durante o percurso da História da Arte muitos artistas se

firmaram documentando ou agindo de forma perversiva. Há

artistas que utilizam a perversão para a construção de suas

obras e há artistas que usam a perversão como objeto a ser

denunciado. São vastos os exemplos que vão neste sentido, e a

história da arte nos oferece muitos deles.

SONTAG (1981:55) escreveu que

“há mais de um século os fotógrafos vêm-se

debruçando sobre os oprimidos, presenciando

cenas de violência – com admirável sã

consciência. A miséria social tem influenciado os

privilegiados para a necessidade de tirar

fotografias, o modo mais delicado de depredar,

com vistas à documentação de uma realidade

oculta, ou seja, realidade que eles não vêem”.

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De fato, os fotógrafos não podem esconder o seu lado perverso.

Porém, como se sabe, o retrato é uma prática natural da

pintura. Os retratistas históricos como os fotógrafos

comentados por Sontag, firmam-se como cientistas, outros

como moralistas. Géricault fez retratos científicos que ao

mesmo tempo eram moralistas.

Entre seus temas preferidos encontram-se os Monomaníacos –

uma série de máscaras de loucos alucinados, pintados por

encomenda médica. São retratos de vítimas de seus próprios

desejos. Os maníacos pelo jogo, inveja, roubo e glória, como

exemplo, demonstram seus desejos alimentados pelos vícios

sociais. Eles apenas exacerbam atitudes e formas de

comportamento considerados normais. O artista francês

denuncia a sociedade que cria os vícios e que condena os seus

viciados.

A cumplicidade de Géricault fica evidente quando este

documenta a realidade, ocultando-a do retratado. Uma

realidade que, para ele, não é o ideal, a glória e sim a

catástrofe, o desespero e a morte. Rostos histéricos, máscaras

e vultos pintados como degenerados. Elementos simbólicos que

recitam “retratos falados”.

Percebe-se em suas obras influências diretas do estilo barroco,

principalmente de Caravaggio: a teatralidade, o dramatismo, a

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tragédia representados através do jogo de claro-escuro; temas

como cabeças guilhotinadas e personagens realistas

encontrados quotidianamente.

Em Caravaggio, a luz não reforça a concepção do ideal clássico,

que coloca o homem num patamar glorioso. Pelo contrário, a

luz é áspera e quase ofuscante no contraste com as sombras.

Caravaggio queria a verdade tal como podia vê-la. Assim,

buscava sus modelos nas feiras e nos bares, eram vendedores

de frutas, músicos ambulantes, ciganos e prostitutas.

Caravaggio, na obra Davi com a cabeça de Golias, mostra o seu

auto-retrato em forma de uma cabeça decepada. A imagem de

sua cabeça se tornou pública – do particular ao público. A

cabeça vazia, sem alma, causa um silêncio, um possível estado

melancólico – um desejo em se manifestar. A dor em estar num

intervalo prolongado e distante de seu mundo, experimenta a

vertigem da desestruturação interna, sempre em alguma

medida, marcada pela perda e pela morte.

Na obra Narciso, Caravaggio também realizou esta pintura com

um tom lírico de extrema naturalidade. É uma forte cena de um

melancólico desejo em querer abraçar, envolver a superfície

com o olhar. Narciso sofre em querer se envolver com sua

própria imagem. “Todo querer nasce da falta, da deficiência e

assim do sofrimento” (SCHOPENHAUER apud EAGLETON,

1993:121).

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Narciso passeando pelo bosque, parou à beira de uma fonte e

percebeu sua imagem. A partir daí, a vista de Narciso passa a

ser somente a água, e o que ele vê é o seu reflexo. Triste fim

de Narciso, preso no seu reflexo. O Narciso de Caravaggio está

“amarrado por inteiro, construído numa circularidade –

especularidade desejante” (DUBOIS, 1994:142).

Como em Narciso, Caravaggio também fez um corte no tempo e

no espaço, no quadro A Cabeça de Medusa. Caravaggio ao

pintar Medusa, substitui seus olhos pelos de Perseu. Caravaggio

retratou “Medusa petrificada, captada no próprio instante em

que (se) petrifica, em que ele congela e se congela de medo”

(DUBOIS, 1994:150). Medusa, um ser totalmente inacessível,

aquela que não é possível olhar sem morrer, sem ser

petrificado em estátua, virou objeto de representação.

Mas se é em Caravaggio e em Géricault que está presente o

dramatismo e a tragédia, é em De Chirico que denuncia uma

melancolia causada pela avalanche tecnológica da metrópole

inquietante. Metrópole dominada por essa melancolia, um

sentimento poderoso, mas mal-definido, de insatisfação, de

tédio e desejo.

É notável, também em De Chirico, seus trabalhos com

características absurdas, estranhas e sobrenaturais.

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“Nas obras ‘metafísicas’ de DE CHIRICO, surgem

personagens e objetos cuja coexistência num

mesmo contexto é aparentemente inexplicável:

arquiteturas monumentais e chaminés de

fábricas; esquadros réguas, armações

geométricas; manequins e estátuas de gesso;

mesas anatômicas e luvas cirúrgicas; biscoitos

piões, caixas de fósforos e fórmulas” (ARGAN,

1995: 496).

A composição da obra de De Chirico remete a um tom irônico,

satírico, ou até mesmo, patético. As Musas Inquietantes são

estátuas e manequins, vistas num espaço único e geométrico.

Os objetos e as figuras são solidificados com a perspectiva, com

as cores quentes e com uma luz intensa e rígida, formando uma

sombra longa e imóvel.

Para ARGAN (1995:496), é “inútil procurar significados

recônditos, relações profundas: o significado, o princípio de

relação é a negação de qualquer significado ou relação, a

conversão consciente da realidade em não-realidade, do ser em

não-ser”.

Do metafísico passamos para o surrealismo de Magritte.

“É dentre todos os surrealistas, o que mais

aprofundou o problema da ambigüidade alógica

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da imagem, e também em relação à palavra; ele

cria a anti-história, desvenda o absurdo do banal,

representa com meticuloso detalhismo imagens

de significado ambíguo, que facilmente decaem

no duplo sentido, no jogo de palavras figurado”

(ARGAN, 1995:364).

Magritte utiliza um jogo de palavras, que relaciona o texto com

o desenho. Este jogo pode ser visto em várias versões de Ceci

n’est pas une pipe. Dizer duas coisas diferentes com uma única

e mesma palavra ou “fazer valer ao mesmo tempo como

elementos lineares que se pode dispor no espaço e como sinais

que se deve desenrolar segundo o encadeamento único da

substância sonora” (FOUCAULT, 1989:23).

Magritte cria novas relações entre as palavras e objetos,

normalmente ignorados na vida cotidiana. Os enunciados,

normalmente, são usados para comentar ou explicar a imagem

apresentada. Ele utiliza este jogo para perverter as relações

tradicionais da linguagem e da imagem.

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Imagem Atual

Abrir os olhos da alma requer preparo. O desejo de perceber e

recuperar o significado do que é visto tornou-se essencial para

a formação de visionários. Interpretar as imagens, tanto

internas (sonhos, etc) quanto externas (artísticas, etc) é revelar

os liames dos nossos desejos. Na arte deste século, as imagens

não deixaram de ressaltar esses desejos. O que possibilita as

interrelações com a forma e o conceito dos sonhos, e

consequentemente com os delírios dos homens.

Rosângela Rennó trabalha com a fotografia para questioná-la

como índice do real, como garantia da identidade. Seu trabalho

consiste em investigar a marca do tempo, do esquecimento, da

memória registrada pela fotografia. Seus retratos permanecem

para sempre condenados às sombras, ao esquecimento. Como

se nunca tivessem sidos fotografados. A fotografia de nada

adianta como identidade do real.

Rennó, em Humorais (1993), utiliza retratos 3X4 de pessoas

desconhecidas. Os retratos em preto e branco são coloridos à

mão e retocados – a identidade se desfaz.

“Esses rostos deformados, desmedidamente

ampliados, com a boca e o nariz muito grandes

em relação aos olhos pequenos, parecem se

modificar à medida que são contornados. O

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dispositivo das caixas, com acrílico em forma de

bolha, requer uma mudança na postura do

observador. Enquanto a imagem em perspectiva

convencional requer um olho imóvel, um ponto de

vista fixo, a visão desses rostos pede um olho

ativo, deslocando-se em torno da esfera. Essas

imagens são verdadeiras anamorfoses”

(PEIXOTO, 1996:110)

A imagem original perde o sentido e ganha um novo corpo

submetido para os efeitos diversos, como esfumaçado,

solarização e tonalidade. O que ocorreu foi uma deformação no

significante. Não seria essa uma característica dos sonhos

deformados? As vezes, a imagem real é muito forte para ser

absorvida, outras vezes, fica mais forte com a deformação da

imagem. As anamorfoses e as metamorfoses passam a ter não

somente efeito estético, mas função psicológica – liberação e

identificação dos conflitos internos.

O artista Helnwein realiza trabalhos irônicos com uma forte

dose de horror, relacionados com estereótipos da mitologia

contemporânea. Novos mitos que a TV, o vídeo, o cinema e a

história em quadrinhos trataram de criar para substituir a

antiga mitologia.

Em 1972, Helnwein realizou L’Enfant du Bonheur (1972). Uma

jovem está fora de uma pequeno mercado, segurando uma

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barra de chocolate e há sangue escorrendo entre suas pernas.

Abaixo pode-se ver um pequeno pato segurando o sorvete

lillipop. O pato se retira satisfeito em passos lentos saboreando

o sorvete, enquanto a criança sente-se realizada com o

chocolate, sem ao certo saber o que ocorreu ali. Ambos estão

felizes naquele momento.

O que poderia ter acontecido? As pegadas sujas de sangue do

pato são indicativas. O objeto fálico – lillipop – contracena com

a fatalidade no ambiente. Ele se aproveitou da criança, em

troca lhe ofereceu uma barra de chocolate. A criança alucinada

e satisfeita foi colocada sob a égide do princípio do prazer. Um

momento especial para a criança, movida pelos impulsos,

continuará a vivenciar nos seus sonhos. Para o pato, o prazer

está acima de tudo. Helnwein tenta-se moralizar, dizendo que

este trabalho é uma crítica dos abusos sofridos pelas crianças

da Áustria. É um entre vários trabalhos de crianças que

Helnwein realizou.

Os enunciados irônicos e os aspectos melancólicos nas imagens

de Bruce Nauman compõem um complexo jogo de linguagem e

um elaborado jogo de humor negro. Nauman intensifica a

turbulenta confusão na arte contemporânea ao utilizar materiais

desconsertantes e provocadores. Não é à toa que Nauman é

considerado como o artista do humor negro e um estrategista

intelectualmente astuto pós-Duchampiano.

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A vídeo-instalação Clown Torture (1987) mostra palhaços

falando sempre a mesma história e repetindo os mesmos

gestos de pegar água e gritar no! no! no! Para sair daquele

estado monótono resta, para o observador, apenas uma saída –

de retirar-se da sala. Encontramos elementos muito fortes,

como o arquétipo do palhaço, mostrado desconsertantemente

num súbito estado melancólico, neurótico e histérico.

Também com uma complexa elaboração, Matthew Barney criou

personagens em situações inusitadas e utilizações de animais

domésticos, como os caprinos. Como em Cindy Sherman,

Barney também é o protagonista de sua obra. Ele está

presente, mas não pode ser visto. Barney encena com três

figuras andróginas criadas por ele – os Faeries (em latim:

fatum; fato, destino). Eles podem ser vistos envolvidos com

motociclismo, picnic, dançando sobre a água e em novas

descobertas referentes a biologia, anatomia ou ao sexo.

Ele criou uma série de vídeo intitulada Cremaster. Em

Cremaster 4 (1994), o título refere-se comicamente ao nome

de um super herói ou de um gangster. Mas, se olharmos no

dicionário, veremos que cremaster é um músculo que serve de

suspensório para os testículos. Em outras palavras, homens

têm cremaster e mulheres não. Anatomicamente elas não

necessitam. Cremaster 4 se realiza numa ilha chamada Irish,

localizada entre a Inglaterra, Escócia, Wales e Irlanda. Irish,

por estar localizado entre os quatro lugares, seria místicamente

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a quinta essência. Nesta ilha, Barney utiliza um túnel para fazer

um jogo simbólico entre a questão do sexo feminino e

masculino. Ele acredita que falando de ovário e testículo (e não

de vagina e pênis) estaria possibilitando a idealização de novos

sexos. Cremaster 4, como todos os trabalhos de Barney, é

misterioso e hermético. Uma arte não obscura, mas de difícil

compreensão. Alguns críticos dizem que sua arte não possui

caminhos para o entendimento, ou que seu trabalho não é,

realmente, para ser entendido.

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Considerações Finais

Este memorial descritivo tentou abordar o que é difícil de ser

visualizado – uma espiral composta por uma melancolia dos

desejos, oriunda de perversões que podem gerar mais

perversões.

É necessário desbloquear a visão para ver o invisível. Algo que

envolve os seres e não permite ser visto. Penso que uma das

maneiras para ver esse ignoto é através da observação e da

transfiguração da alma.

“Quando se é possuído por um amor, por uma

divindade, por um sentimento, o corpo, o rosto,

transfigura-se, adquire outra dimensão.

[...]Fantasia ou fantasma? Pouco importa, para o

observador social, basta que exista alguma coisa

para que ela adquira sua legitimidade”

(MAFFESOLI, 1995:135).

A alma transfigurada é subterfúgio para que o sonho

transforme em imagem e esta em arte ou sonho. Se as

vivências reais são matéria de sonho, tanto quanto a argila é

para o escultor matéria de trabalho, os sonhos também são

matéria para a realidade, que leva o sujeito a perceber nas

imagens e nas sensações do sonho uma contemplação ou

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realização de uma cárie – carência – portanto, um

preenchimento da satisfação do desejo.

A elaboração de uma imagem/sonho é uma tentativa de romper

com o estado melancólico e alcançar o desejo. “A elaboração do

sonho faz uso do sonhar como uma forma de repúdio,

confirmando assim a descoberta de que os sonhos são

realizações de desejos” (FREUD, 1900:360). É, talvez, na

elaboração do imaginário que surge o sublime, o estado de

êxtase da satisfação dos desejos proibidos.

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41

Sobre o Autor

Ivan Ferrer Maia

Nasceu em Campanha, Sul de Minas Gerais. Formou-se em

Artes Visuais pela Universidade Federal de Pelotas. Na

Faculdade, relacionou a produção de imagens artísticas com a

perversão. Para isto recebeu orientação do Prof. Dr. José Luiz

de Pellegrin.

Foi agraciado com o 1º Lugar no VII Congresso de Iniciação

Científica: UFPel, FURG, UCPel, na área de Lingüística, Letras e

Artes. A pesquisa de sua autoria referia-se ao tema

Desenvolvimento da Instalação como Linguagem

Artística no Rio Grande do Sul durante os anos 70 e 80,

sob a orientação da Professora Neiva Bohns.

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Realizou, na Pós-Graduação de Artes da Unicamp, o curso

Fundamentos Teóricos e Clínicos da Arte Terapia, ministrado

pelo prof. Mário Eduardo. Na Pós-Graduação de Multimeios da

Unicamp realizou os cursos: O Papel das Tecnologias da

Informação para a Aprendizagem, e O Papel das diferentes

mídias para a aprendizagem ao longo da vida, ambos

ministrados pelo prof. Dr. José Armando Valente.

Pesquisou a evolução da Consciência e colabora com o Centro

de Altos Estudos da Consciência/CEAEC em Fóz do

Iguaçu/Paraná. Local onde também realizou o curso

Conscienciologia Aplicada.

Trabalhou no Museu Leopoldo Gotuzzo em Pelotas e no Museu

Regional do Sul de Minas em Campanha. Faz parte do Conselho

do Patrimônio Cultural da cidade da Campanha. Já inventariou

peças artísticas e históricas.

Atualmente, além de outras atividades, trabalha como artista

visual e professor da Cooperativa de Ensino da Cidade da

Campanha.