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REPÚBLICA DE CABO VERDE IV Assembleia Geral da Conferência das Jurisdições Constitucionais dos Países de Língua Portuguesa: A Eficácia das Garantias Constitucionais nos Países de Língua Portuguesa Brasília – 7-8 de abril de 2016 O Papel da Justiça Constitucional na Efetivação dos Direitos no Sistema Jurídico Cabo-Verdiano – Relatório do Tribunal Constitucional Brasília, 8 de abril de 2016

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REPÚBLICA DE CABO VERDE

IV Assembleia Geral da Conferência das Jurisdições

Constitucionais dos Países de Língua Portuguesa: A

Eficácia das Garantias Constitucionais nos Países de

Língua Portuguesa

Brasília – 7-8 de abril de 2016

O Papel da Justiça Constitucional na Efetivação dos Direitos no Sistema

Jurídico Cabo-Verdiano – Relatório do Tribunal Constitucional

Brasília, 8 de abril de 2016

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Introdução

O Tribunal Constitucional da República de Cabo Verde, que,

enquanto tal, está, pela primeira vez, neste conclave de jurisdições

constitucionais de língua portuguesa, aproveita o introito deste relatório

para manifestar a sua honra em participar nesta reunião de instituições

congéneres, muitas delas ancestrais e todas reconhecidas pela excelência do

papel que, no quadro dos respetivos sistemas constitucionais, têm

desempenhado.

É com grande alegria e responsabilidade que apresentaremos o

nosso relatório, o qual incidirá sobre a experiência cabo-verdiana e as

expetativas do Tribunal Constitucional, tendo em conta a candência do

tema proposto pela instituição anfitriã, o Supremo Tribunal Federal da

República Federativa do Brasil, cuja fraterna receção desde já

agradecemos. É uma matéria da mais alta importância, associando-se à

realização da constituição e dos seus elevados valores e propósitos, que,

depende, naturalmente da sua declaração, mas também da sua

materialização efetiva na nossa sociedade, juntando-se à sua

normatividade, níveis de facticidade. Será mais descritivo do que assertivo,

mais intencional do que avaliativo. Fá-lo-emos, naturalmente, não partindo

de uma tabula rasa, mas considerando e absorvendo as funções que o

Supremo Tribunal de Justiça que, de 1999 a 2015, assumiu, em transição

duradoira, as funções de Tribunal Constitucional, e da experiência da nossa

jovem República na proteção de direitos desde que foi instalado o Estado

de Direito Democrático em 1990-1992, que consagra a dignidade da pessoa

humana e a soberania popular e os direitos humanos como valores

estruturantes do sistema jurídico.

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1. Jurisdição Constitucional e Mandatos de Proteção no Sistema

Cabo-verdiano de Direitos Fundamentais

O sistema cabo-verdiano de proteção de direitos é marcado por algumas

caraterísticas dignas de realce, nomeadamente a sua abertura e integração

no sistema internacional de proteção, o seu detalhamento (horizontal e

vertical), uma estruturação tripartida em direitos, liberdades e garantias/

direitos económicos, sociais e culturais/ e direitos de grupos vulneráveis; a

sua moderação e bidimensionalidade. É, sobretudo, o reflexo de um modelo

de Estado híbrido que tenta ajustar na mesma ordem os elementos próprios

de um Estado Liberal de Direito, de um Estado Democrático, de um Estado

Republicano e de um Estado Social.

É este o enquadramento filosófico-constitucional de um sistema de

proteção de direitos marcado duplamente, por uma carta de direitos

composta por um catálogo vasto e elástico de direitos, uma vez que

comporta direitos fundamentais não enumerados, e por mecanismos

efetivos de proteção. Muitos destes estão associados exclusivamente à

jurisdição constitucional, outros tramitam na jurisdição ordinária, como o

habeas corpus, mas podem ser levados ao conhecimento do Tribunal

Constitucional tendo sido esgotadas as vias ordinárias de recurso, e,

finalmente, outros podem estar, em termos a apresentar dentro de instantes,

ligados a uma eventual intervenção da jurisdição internacional.

Apresentarei de forma sucinta a experiência da justiça constitucional cabo-

verdiana em relação a alguns desses mecanismos de tutela.

1.1. Proteção de Direitos Fundamentais por meio da Ação de

Fiscalização da Constitucionalidade

No que diz respeito à fiscalização da constitucionalidade, uma via

privilegiada, de proteção da Constituição e dos direitos, a jurisdição

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constitucional cabo-verdiana teve a oportunidade de receber 48 pedidos de

fiscalização da constitucionalidade e de decidir o mérito de 22, declarando

por 9 vezes a inconstitucionalidade de normas.

1.1.1. Até 2016, foram feitos 8 pedidos de fiscalização preventiva,

um dos quais não foi admitido; e os restantes resultaram em decisões sobre

o mérito, com três declarações de inconstitucionalidade. São casos, que, no

fundo, exigem um pronunciamento do Tribunal em prazo relativamente

apertado, compatível com período constitucionalmente conferido ao

Presidente da República para promulgar diplomas legais. Como a

legitimidade processual ativa para suscitar questões de constitucionalidade

desse jaez estava inibida a todas as entidades mencionadas na Lei

Fundamental, com a exceção do Presidente da República, naturalmente

coube a esta entidade suscitá-las e tem-no feito de forma regular ao longo

dos anos, ainda que em número reduzido. Com a criação do Tribunal

Constitucional e consequente expansão dessas entidades antecipa-se uma

maior utilização do meio.

1.1.2. As fiscalizações sucessivas da constitucionalidade, cujo

regime não esteve sujeito a normas de transição, e que permite que as ações

sejam interpostas pelo PR, pelo PGR, pelo PM, por deputados à AN e, com

a revisão de 2010, pelo Provedor de Justiça, entraram à consideração em

número de 19. Desses, decidiu-se o mérito de 9, estando ainda pendentes

10 no Tribunal Constitucional. Compreensivelmente, é o PGR e deputados

à AN, normalmente da minoria parlamentar do momento, que têm feito

mais uso da figura. O Presidente da República impetrou recentemente uma

ação de fiscalização sucessiva da constitucionalidade de várias normas do

Código Eleitoral, que ainda tramita no referido Tribunal.

1.1.3. Por sua vez, as ações de fiscalização concreta da

constitucionalidade perfazem o número de 21 pedidos, dos quais foram 5

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rejeitados, estando neste momento dez pendentes de decisão no Tribunal

Constitucional. Dos nove decididos no mérito, quatro mereceram decisões

de inconstitucionalidade. Considerando o pressuposto do recurso de

fiscalização de esgotamento das vias internas de recurso, e como, até

recentemente, o Supremo Tribunal de Justiça – a instância final dentre os

tribunais ordinários – acumulava funções como Tribunal Constitucional, no

fundo, eram os mesmos juízes que julgavam o recurso ordinário que

decidiam o de constitucionalidade. Isso teria um efeito de desmotivação

natural, atendendo à menor aparência de possibilidade de inversão do

sentido da decisão; é possível que, com a instalação do Tribunal

Constitucional, possa passar a haver uma maior demanda de proteção nos

próximos tempos.

1.2. Proteção de Direitos Fundamentais por meio do Recurso de

Amparo e do Habeas Data

A Constituição, prevê, ademais, dois meios especiais de proteção de

direitos, o habeas data, garantia processual própria para “assegurar o

conhecimento de informações constantes de ficheiros, arquivos ou registo

informático” e “para [a pessoa] ser informada do fim a que se destinam e

para exigir a retificação e atualização dos dados”, e o recurso de amparo,

que permite o acesso direito de titulares de direito, liberdade ou garantia ao

Tribunal Constitucional para efeitos de tutela. O primeiro aguarda

utilização pela primeira vez; já recursos de amparo foram interpostos 53

vezes, sobretudo de decisões judiciais. Destes, no entanto, somente 4

passaram a fase de admissibilidade.

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1.3. Proteção Indireta de Direitos Fundamentais através de outras

formas processuais

1.3.1. Podemos referir ainda os casos ligados ao contencioso eleitoral,

em que há utilização cíclica, mas intensa, do Tribunal Constitucional,

particularmente em matéria de contencioso de apresentação de candidatura,

situação na qual, pelo facto de o Tribunal poder vir a ser chamado a

apreciar as decisões de juízes de primeira instância no caso de eleições

legislativas ou municipais, nomeadamente o preenchimento das condições

de candidatura, poderá estar a decidir questões com relevo para o direito de

participação política dos cidadãos; no caso concreto do Presidente da

República, é o próprio Tribunal que recebe as candidaturas e verifica,

dentre outros, o preenchimento das condições legalmente estabelecidas

para tanto.

Ainda em matéria eleitoral, o mesmo ocorre, naturalmente, com o

contencioso que pode ser gerado no quadro do processo de votação e de

apuramento dos votos, bem como com os recursos de decisões diversas e

aplicação de coimas pela entidade administrativa eleitoral central, a

Comissão Nacional de Eleições, durante o período de campanha eleitoral e

mesmo depois. Como é natural, a proteção de vários direitos ou princípios

constitucionais relevantes poderão estar envolvidos nesse tipo de processo.

Em termos estatísticos, o Tribunal recebeu nas diversas eleições realizadas

de 1997 a 2016, 53 pedidos, dos quais 45 foram admitidos e 8 rejeitados;

dos primeiros, 14 foram julgados procedentes e 31 improcedentes.

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2. A Eficácia da Justiça Constitucional Cabo-Verdiana na Proteção de

Direitos

2.1. Eficácia Jurídica – efeitos e cumprimento das decisões do Tribunal

Constitucional

2.1.1. Pode-se assinalar que os direitos que se enquadrem na

categoria de direitos, liberdades e garantias possuem eficácia jurídica plena,

conforme determinado pelos três princípios insertos no mesmo artigo 18 da

Constituição, nomeadamente o princípio da aplicabilidade imediata

(direta), o princípio da vinculatividade (absoluta) das entidades públicas e o

princípio da vinculatividade (relativa) das entidades privadas. Apesar de os

mesmos princípios não se aplicarem aos direitos económicos, sociais e

culturais, há entendimento de que, no atual estágio de desenvolvimento do

país, pelo menos o núcleo central dos direitos sociais deve ser satisfeito e

protegido pelos poderes públicos.

2.1.2. Num outro plano, qualquer decisão que o Tribunal profira está

coberta genericamente pelo número 8 do artigo 211, que prescreve que “As

decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e

privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades”. E as

decisões em matéria de fiscalização da constitucionalidade, conforme

determinado pela Constituição, têm força obrigatória geral, mesmo em caso

de uma fiscalização concreta da constitucionalidade, sendo suficiente uma

única decisão para levar ao expurgo da norma inconstitucional do

ordenamento jurídico.

É o que decorre do artigo 284 da Constituição da República, de

acordo com o qual “Os Acórdãos do Tribunal Constitucional, que tenham

por objeto a fiscalização da constitucionalidade ou ilegalidade, qualquer

que tenha sido o processo em que hajam sido proferidos, têm força

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obrigatória geral”, uma disposição que cobre tanto a fiscalização sucessiva

abstrata, como a concreta. Por sua vez, as decisões tomadas no âmbito da

fiscalização abstrata preventiva, que assumem a forma de pareceres, ainda

que possam ser contornadas, em alguma situações, são obrigatórias, nos

termos do artigo 279 (1) e (3), para o Presidente da República que não deve

vincular internacionalmente o Estado ou promulgar diploma contendo

norma(s) julgada(s) inconstitucional(is).

2.1.3. Acresce que em Cabo Verde as decisões tomadas pelo Tribunal

Constitucional, bem como por outros tribunais são devidamente acatadas

pelos poderes da República, não havendo notícia de recalcitrância, nem

tão-pouco de resistência. Em certos casos até suscitando-se polémica sobre

a constitucionalidade de determinados preceitos, não é raro anteciparem-se,

expurgando a norma através do processo legislativo.

2.2.4. A atuação de boa-fé do poder legislativo cabo-verdiano em

relação ao cumprimento da Constituição também determina ajustes em

relação à forma de atuar do Tribunal Constitucional, não deixando de estar

associada à garantia da eficácia jurídica das decisões do Tribunal a longo

prazo, sugere que uma postura ponderada em relação aos poderes políticos

da República, particularmente o que representa o povo, é desejável.

Naturalmente, não de forma subserviente, nem tão-pouco tímida, mas

respeitadora, reconhecendo a sua legitimidade para tomar as decisões

fundamentais sobre a vida coletiva da Nação dentro dos limites

constitucionais. Que, ademais, considere a liberdade de conformação, a

margem de apreciação do legislador, a sua prerrogativa de errar e de

experimentar, evitando estar a declarar a inconstitucionalidade de normas

consensuais no parlamento sem motivo claro para tal, em jeito de ‘super-

legislador’ porque agrada aos membros do Tribunal a solução encontrada

ou por estes entenderem que fariam melhor.

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Por outro lado, o Tribunal não pode deixar de ser firme quando

chamado a proteger os direitos. Naturalmente, a intervenção forte e o

escrutínio estrito devem ser reservados para os casos em que o legislador

afronta direitos básicos, de forma ostensiva, sem qualquer motivo

constitucionalmente aceitável, em que há tratamento discriminatório por

motivos suspeitos, quase-suspeitos ou arbitrários, restrições que atingem o

núcleo dos direitos ou que o fazem de modo desproporcional. Nem sempre

a hipertrofiação dos direitos fundamentais, enquanto posições jurídicas

essenciais, nem tão-pouco a sua absolutização, favorecem o direito ou a sua

eficácia social, até porque, e falamos somente no nosso caso, a experiência

da proteção judicial de direitos não pode ser feita às expensas ou pelo

menos de forma desarticulada da experiência de autogoverno. Como quase

todos os sistemas constitucionais, no Ilhéu exige-se alguma humildade por

parte do Tribunal e, sobretudo, equilíbrio na intervenção.

2.2. Efetividade (Social) – Produção de efeitos sociais positivos das

decisões- jurisprudência do Tribunal Constitucional

Relativamente à eficácia social, dita de efetividade, naturalmente o

papel da jurisdição constitucional cabo-verdiana ainda não se fez sentir na

sua plenitude, mas tal como todas as instituições da nossa democracia

relativamente jovem, poderá ser aprimorada com o tempo.

2.2.1. Não havendo estudos, mas meras perceções já houve casos em

que as decisões tomadas pela jurisdição constitucional cabo-verdiana

tiveram efeitos palpáveis no reconhecimento dos direitos das pessoas.

Foram, por exemplo, os casos das decisões sobre a Constitucionalidade da

Taxa de Iluminação Pública que, sem embargo da ausência de estudos,

decerto teve impacto sobre a vida da maioria da população cabo-verdiana,

o mesmo acontecendo com a decisão de inconstitucionalidade de norma da

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Lei de Micro e Pequenas Empresas que poderia ter gerado um estatuto de

desigualdade entre os trabalhadores desse tipo de unidade económica que

abrange o grosso do tecido empresarial nacional.

Nem sempre a efetividade depende do Tribunal. Por exemplo, como

ocorreu com o habeas data, uma ação constitucional potencialmente

relevante, mas que, pelo contexto, não vingou. Mas, noutros casos, uma

postura menos formalista e mais favorável aos direitos no que concerne à

avaliação de admissibilidade dos recursos de amparo, anteriormente

mencionada, pode ser positiva para que de forma razoável possa cumprir a

sua missão de proteção de direitos.

2.2.2. O recente Acórdão nº 1/2016, de 14 de março, proferido no caso

Emílio Monteiro c. Supremo Tribunal de Justiça, apesar da decisão de não

admissão, conseguiu ultrapassar um formalismo excessivo que tem

marcado a aferição da presença das condições desse recurso na justiça

constitucional cabo-verdiana. A mesma abordagem geral guiou o Tribunal

nos recursos contenciosos eleitorais, nos quais se optou, nos limites do

possível, por considerar o direito de participação dos cidadãos na vida

política e, em última instância, o princípio democrático, em detrimento da

aplicação de sanções duras de impedimento como, por exemplo, rejeição de

participação de lista concorrente (Acórdãos nº 2, 3 e 4 de 2016).

Além desse menor formalismo, tornar-se-á imperioso aproximar as

decisões dos tribunais dos cidadãos para que eles se revejam nelas,

nomeadamente como parte da tradição ‘crioula’, afeita ao compromisso, à

tolerância e à liberdade, e não como um elemento estranho dentro da sua

cultura jurídica e dos seus conceitos de justiça política, económica e social.

Neste sentido, o Tribunal tem procurado, nos seus arrazoados, ao

concretizar as suas normas, definir parâmetros de aferição ou densificar os

preceitos constitucionais, encontrar as bases para as suas decisões não só

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nos grandes princípios abstratos que fazem parte do corpo constitucional

universal, mas igualmente na tradição, nas idiossincrasias e contexto de

vida dos ilhéus, apelando à sua história, aos seus intelectuais, as suas

caraterísticas sociais, políticas e económicas. E elas não se furtam a deixar-

nos elementos importantes de análise, determinantes na operação de

qualquer juízo de constitucionalidade importante, seja este de

proporcionalidade, de igualdade ou de confiança legítima.

3. A Constituição e os Tribunais Internacionais de Direitos Humanos

3.1. A articulação com os tribunais internacionais de direitos humanos é

também importante no sistema de direitos fundamentais e é tida pela

própria Constituição como positiva, nomeadamente no sentido de fortalecer

e efetivar as garantias que prevê, vigendo um princípio da proteção integral

escalonado em cascata que envolve vários tribunais e outros órgãos da

República. Neste sentido, o artigo 210 (2) da Constituição da República

prescreve que “A Justiça é também administrada por tribunais instituídos

através de tratados, convenções ou acordos internacionais de que Cabo

Verde seja parte, em conformidade com as respectivas normas de

competência e de processo”.

3.2. Esta cláusula de abertura institucional tem o condão de nacionalizar

esses tribunais, transformando-os em órgãos que integram o sistema cabo-

verdiano de tribunais. Dependendo das suas normas de organização e

processo, o efeito é garantir a possibilidade de sindicância de decisões

tomadas por tribunais internos, nomeadamente as do próprio Tribunal

Constitucional, incluindo em matéria de direitos, e de assegurar claramente

a sua executoriedade interna não mediada.

3.3. Um dos tribunais internacionais de proteção de direitos cuja

articulação com a ordem jurídica cabo-verdiana seria natural é o Tribunal

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Africano dos Direitos Humanos e dos Povos, instalado em 2007, e que tem

a sua sede na Tanzânia.

3.3.1. O Tribunal não possui, como tem sido tradicional nesta matéria,

jurisdição automática sobre todos os Estados Membros da União Africana;

na realidade, a mera vinculação ao Tribunal também não garante locus

standi in judicium a indivíduos, pessoas coletivas (jurídicas) não estaduais

e organizações não-governamentais, e o acesso direito ao Tribunal é

permitido somente aos Estados, Comissão Africana, Organizações Inter-

Governamentais Africanas; outrossim, ele depende de concessão especial

de jurisdição, possibilidade prevista pelo artigo 34 (6) do Protocolo que

instituiu o Tribunal, o que ainda se mostra limitado, atendendo a que

somente oito países o fizeram até à data. Aliás, a maior parte dos pedidos

têm caído na fase da admissibilidade por este motivo. O que também vem

justificar o reduzido número de casos resolvidos no mérito, em número de

3 (Zongo v. Burquina Faso (2013); Tanganyka Law Society et al./Mtikila v.

Tanzania (2013); Konaté v. Burquina Faso (2013), decididos em 2014).

3.3.2. É, em abstrato, um órgão importante cuja intervenção pode significar

um reforço do sistema interno de proteção, ainda que as primeiras decisões

muitas vezes oscilem entre um híper-intervencionismo, quando se trata de

pronunciar-se sobre modos legítimos de organização da democracia pelos

Estados (Tanganyka Law Society et al./Mtikila v. Tanzania) e uma certa má

vontade de agir no sentido de coibir excessos de forças de manutenção da

ordem no tratamento reservado a pessoas tidas por indesejáveis no quadro

do processo penal (Chacha v. Tanzania).

3.3.3. Seja como for, qualquer relação que se possa considerar entre a

jurisdição constitucional cabo-verdiana e o Tribunal Africano dos Direitos

Humanos e dos Povos, ou eventualmente o seu sucedâneo, e consequente

eficácia do artigo 210 (2) dependerá de Cabo Verde vincular-se ao

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Protocolo e sobretudo fazer a declaração de concessão de jurisdição

prevista no artigo 34 (6), o que, até hoje, ainda não aconteceu.

3.4. O outro Tribunal relevante para Cabo Verde e que possui jurisdição em

matéria de direitos humanos é o Tribunal de Justiça da comunidade de

integração sub-regional à qual Cabo Verde pertence: a Comunidade

Económica dos Estados da África Ocidental. Tem a sua sede na Nigéria e,

durante os últimos anos, mais precisamente, desde 2005, tem tido intensa

atividade no domínio dos direitos humanos, ainda que tenha jurisdição

sobre qualquer questão que envolva o Direito Comunitário. Em relação a

este Tribunal há particularidades que devem ser consideradas:

3.4.1. Primeiro, a ausência de regra de esgotamento das vias internas como

pressuposto do recurso. De fato, nota-se uma ausência clara de tal

referência tanto no Protocolo Suplementar, como no Regimento Interno, à

qual se deve acrescentar a interpretação dada pelo Tribunal desde 2007

(Etim Moses Essien c. Gâmbia), de que a ausência de regra seria um sinal

dado pelo redator da sua não necessidade (Koraou c. Níger (2008)), e que,

enquanto órgão judiciário de uma organização supranacional não está

sujeito a tal regra e que, ademais, possui jurisdição concorrente em matéria

de direitos humanos com os tribunais internos dos Estados membros

(Saidykhan c.Gâmbia (2009)).

3.4.2. Segundo, consequentemente, para Cabo Verde, a questão

aparentemente não se coloca, uma vez que o país não se vinculou ao

Protocolo de 1991 e muito menos ao de 2005. Neste último caso, nem

sequer o assinou sob reserva de ratificação, portanto em tese não decorrem

quaisquer obrigações posteriores ou anteriores à entrada em vigor do

tratado nos termos da Convenção de Viena de 1969 e do Direito

Costumeiro paralelo que regula esse mecanismo e criação de normas

internacionais. Acresce que o Protocolo Suplementar de 2005,

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paradoxalmente, não entrou definitivamente em vigor, atendendo a que o

número mínimo previsto de Estados a vincularem-se para produzir esse

efeito ainda não o fizeram. Todavia, nos termos do seu artigo 11, está a ser

aplicado provisoriamente há quase dez anos.

Em tese, isso significaria que, até à data, a República não está

vinculada ao Tribunal de Justiça da CEDEAO. Neste sentido, não é

surpreendente que, dos quinze membros da organização, Cabo Verde foi

um dos poucos a não ser colocado no pólo passivo de nenhuma ação,

aspeto que reforçaria a tese da não submissão do país à jurisdição da Corte

de Abuja. Todavia, por outro lado, uma penumbra da incerteza mantém-se

em razão da contínua posição do Tribunal que, na avaliação das condições

de admissibilidade da ação, limita-se a utilizar o critério da pertença ou não

à CEDEAO e não de o Estado ter ou não ter assinado o protocolo.

Até porque o Tribunal já decidiu contra arresto de um Tribunal

Constitucional, no caso do Togo, num caso a envolver a perda/renúncia de

mandato de deputados eleitos para o parlamento nacional (Ameganvi et al.

v. Togo), ainda que, em julgados mais recentes, a Corte de Abuja tenha

feito questão de reiterar que não é nenhum tribunal de cassação para

escrutinar os atos do poder judicial interno dos Estados e de ter começado,

contrariamente ao que fazia nos primeiros anos, claramente a abster-se de

aplicar de normas de direito interno (constitucionais ou ordinárias), e

fundado a sua sindicância em normas internacionais de proteção. Portanto,

é uma questão a acompanhar nos próximos anos.

Considerações finais

A jurisdição constitucional cabo-verdiana não é nova, data de 1992.

Foi assumida durante anos pelo STJ, que, atendendo às circunstâncias de

ter sido durante todo este tempo também segundo e último grau de

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jurisdição comum, administrativa e militar assumiu esse importante papel.

Com a instalação do Tribunal Constitucional parece abrir-se uma nova fase,

não só do ponto de vista formal, mas também do ponto de vista mais

substantivo, tendo em conta que, por um lado, mais entidades podem

interpor ações de fiscalização da constitucionalidade, e, por outro, porque

sendo uma jurisdição especial, o Tribunal Constitucional poderá

concentrar-se nesses casos e apresentar boas soluções, nomeada e

principalmente em matéria de proteção de direitos.

No entanto, deve fazê-lo de forma sensata, não se esquecendo de que

é um dos parceiros, ainda que central, de um projeto mais amplo que tem a

realização da Constituição e dos direitos no seu centro. Não obstante, não é

o único, pois também o fazem, cada qual à sua medida, outros órgãos do

Estado, nomeadamente o parlamento e os outros tribunais. Portanto, isso

exige sempre grande ponderação por parte do Tribunal no sentido de

encontrar o equilíbrio necessário entre o seu dever de proteger os direitos e

as exigências de respeito por outros órgãos constitucionais, cujo papel não

pode ser esvaziado pela intervenção do Tribunal Constitucional.