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istó- Algumasreflexóessobrehistóriasde vida,biografiase autobiografias* S& Lígia Maria Leite Pereira ** Nos ÚLTIMOS ANOS, TEM-SEASSISTIDO a renovado interesse pelas trajetórias indi- viduais em suas várias modalidades, no campo das ciencias humanas e da litera- tUra, no cenário nacional e internacional. O retorno do sujeito, após longo do- mínio de urna concep<;ao de História que, movida por incontroláveis for<;as estrutUrais, se fazia a despeito dos homens, constitUÍu a motiva<;aodeste texto. O genero biográfico surgiu no século :A'VIlI,propiciado pela expansao e afirma<;aodos direitos individuais, que o ideário da Revolu<;aoFrancesa tao bem exprcssou. As Conjissoes de Rousscau, escritas entre 1764 e 1770, sao um bom excmplo. O escrito autobiográfico, nos lembra Contardo Calligaris, pressup6e uma cultura em que o indivíduo se coloque acima da comunidade a que pertence, e con ceba sua vida como urna aventura a ser inventada, e nao como um destino pré-dctcrminado a ser cumprido. AJérn disso, se é ccrto que semprc se escreve- rarn histórias de vida, a idéia de que a vida ¿ urna histÓria surgiu corn a era mo- derna (Calligaris, 1998). A retornada desta tradi<;aoda litcratura, da história e da política nao se deu ern um único movimento. O genero biográfico se fez acompanhar da revalo- riza<;aoda História Oral, como Come/método/técnica de pesquisa, bem como dos arquivos pessoais - autobiografias e toda sone de documentos pessoais, como diários, memórias, correspondencias etc -, como preciosa [ome histórica. Biografias, histórias de vida, autobiografias. Tres generos distintos que em comum tcm o fato de serem bascados na seqüencia de vida individual, a se- qüencia biográfica. Lugar privilegiado de encontro entre diferentes disciplinas, * Este texto foi apresentado na Mcsa- redonda "História Oral e as tramas da subjetividade" realiza- da no III Encontro Regional Sudeste de História Oral, Mariana, 12 a 14 de maio de 1999. ** Programa de História Oral do Centro de Estudos Mineiros da FAFICH/URvIG (coordenadora). .... N r-:. ri. o" 8 N '" ...; ~ O -( ;2 -o ~ ~ J: « O z O O u..J o¿ « U') u..J 2 1

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Algumasreflexóessobrehistóriasdevida, biografiase autobiografias*

S&

Lígia Maria Leite Pereira* *

Nos ÚLTIMOSANOS,TEM-SEASSISTIDOa renovado interesse pelas trajetórias indi-viduais em suas várias modalidades, no campo das ciencias humanas e da litera-tUra, no cenário nacional e internacional. O retorno do sujeito, após longo do-mínio de urna concep<;ao de História que, movida por incontroláveis for<;asestrutUrais, se fazia a despeito dos homens, constitUÍu a motiva<;aodeste texto.

O genero biográfico surgiu no século :A'VIlI,propiciado pela expansao eafirma<;aodos direitos individuais, que o ideário da Revolu<;aoFrancesa tao bemexprcssou. As Conjissoesde Rousscau, escritas entre 1764 e 1770, sao um bomexcmplo.

O escrito autobiográfico, nos lembra Contardo Calligaris, pressup6e umacultura em que o indivíduo se coloque acima da comunidade a que pertence, econ ceba sua vida como urna aventura a ser inventada, e nao como um destinopré-dctcrminado a ser cumprido. AJérn disso, se é ccrto que semprc se escreve-rarn histórias de vida, a idéia de que a vida ¿ urna histÓria surgiu corn a era mo-derna (Calligaris, 1998).

A retornada desta tradi<;aoda litcratura, da história e da política nao se deuern um único movimento. O genero biográfico se fez acompanhar da revalo-riza<;aoda História Oral, como Come/método/técnica de pesquisa, bem comodos arquivos pessoais - autobiografias e toda sone de documentos pessoais,como diários, memórias, correspondencias etc -, como preciosa [ome histórica.

Biografias, histórias de vida, autobiografias. Tres generos distintos queem comum tcm o fato de serem bascados na seqüencia de vida individual, a se-qüencia biográfica. Lugar privilegiado de encontro entre diferentes disciplinas,

* Este texto foi apresentado na Mcsa- redonda "História Oral e as tramas da subjetividade" realiza-da no III Encontro Regional Sudeste de História Oral, Mariana, 12 a 14 de maio de 1999.

** Programa de História Oral do Centro de Estudos Mineiros da FAFICH/URvIG (coordenadora).

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constitUem importante fonte de conhecimento histórico, Apresentam, todavia, dis-tin<;:6esquanto a forma com que a trajetória de vida é elaborada e apresentada.

Para efeitos dos comentários que se seguem, algumas defini<;oesse impoem.Urna autobiografia consiste na narrativa da própria existencia e, como salienta Ma-ria Isaura Pereira de Queiroz (1988), nela foi o próprio narrador quem se dispas anarrar sua vida, deu a ela o encaminhamento que melhor lhe pareceu e deteve ocontrole sobre os meios de registro.

A história de vida, por sua vez, é o relato de um narrador sobre sua existenciaatravés do tempo, com a intermedia<;ao de um pesquisador. É um trabalho coletivode um narrador-sujeito e de um intérprete.

Já a biografia se define como a história de um indivíduo redigida por outro.Existe, aqui, a dupla intermedia<;ao que a aproxima da história de vida, consubstan-ciada na presen<;ado pesquisador e no relato escrito que se segue. Yves Chevalier(1979) acrescenta que, enquanto na autobiografia o trabalho de edi<;:aoé feito pelopróprio narrador, que seleciona e constrói seu texto, na história de vida, para pre-parar a publica<;aodo texto biográfico, o investigador tem de realizar tres opera<;:oessucessivas: o recorte do texto, a montagem e a tradu<;ao (passagem da linguagemoral para a escrita).

As diferen<;ase semclhan<;as entre os generos sao mais ou menos óbvias eparecem nao represemar maiores problemas. Todavia, julgamos que possa ser deutilidade detcrmo-nos sobre algumas das cspecificidades que cada um encerra, como imuito de:explorar suas vantagens e dificuldade:s.

Embora tudo leve:a crer que as histórias de:vida constituam o gene:ro maispromissor, do pomo de vista do conhe:cimento histórico e:social, ¿ importante: fri-sar que nao se trata de:apontar um gene:rocomo mc:lhordo que outro, mesmo por-que nem sempre poclemos escolher. Quando se trata de reconstituir a trajetória deal61'uémjá falccido, ternos de nos contentar com a docurncnt.1<;:aoescrita e os depoen-tes que se cncontram disponíve:is, sem falar que:nem sempre ternos a sorte de:nosdepararmos com ricos arquivos pessoais. Há que se observar, inicialmente, que, seesta nova tendencia nos coloca diante de urna grande variedade e riqueza de produ-<;:ao,vem marcada por grandes divergencias de métodos e concep<;6es.

No caso das históriasde vida, por exemplo,algunsautores distinguem entre o re-Imocentrado na pessoa, no eu, e a entrevista centrada no contexto, no evento. Quei-roz (1988) utiliza a denomina<;:aode biografia para o primeiro caso, e história devida para o segundo. Poirier, Clapier-Valladon e Raybaut (1993) distinguem entre apsicobiografia - o indivíduo narra sua visao pessoal dos acontecimentos - e a etno-biografia, onde a pessoa é considerada como o espelho de seu tempo, de seu ambiente.

Este constitui apenas um dos muitos dilemas com que se defronta o pesqui-sadar que decide trabalhar com histórias de vida. Para se ter urna idéia, seguem-se

algunsdeles: até que pomo deve-se conceber o relato de vida considerando toda atrajetória existencial ou especificara tema ou urna seqüencia da existencia? Deve-se dar totalliberdade de expressao ao narrador e preservar a espontaneidade do dis-

curso, ou o pesquisador deve conduzir a narrativa? Deve-se reproduzir integralmen-te os discursos recolhidos, nao descartando nada do documento bruto, ou deve-se

reconstruir para tornar o discurso legível e inteligível?Com rela<;ao a última das questoes, a posi<;:aode Queiroz (1988, p. 24-5) é clara:

'justamente porque se trata de um indivíduo considerado em sua integrali-dad e, a biografia nao pode ser decomposta em elementos ou utilizada em frag-mentos, sob pena de se perder completamente o sentido de que se procurava.(.oo)Esta exigencia nao tem razao de ser quando se trata de um estudo socioló-gico ou antropológico. Neste caso, o aproveitamento da biografia ou da auto-biografia se faz no sentido de buscar como estao ali operando as relac;:6esdoindivíduo com seu grupo, com sua sociedade. (oo.)O recorte do material naosomente se torna viável, agora, como até mesmo imperioso, pois sao facetas domesmo que sedo utilizadas."

Outra posi<;ao é defendida por Rosenthal (1996, p. 194), para quem nossa ati-tude como pesquisadores costuma ser destrutiva desde o come<;:o da coleta de da-dos, quando sabemos ao certo o que o biografado deve narrar e o que é importante paranossa pesquisa, e quando fazemos as perguntas adcquadas a nos so s propósitos:

"Por meio dessas perhl'Untas,estabdecemos a estrutura ou lpta/t de sua apre-sentac;:ao,afastando assim a possibilidade de obter a história de vida segundosua própria gesta/t,Além disso, ao fazermos uma análise, desarticulamos, cm suamaior parte, a coesao de sua apresentac;:ao,cortando o texto inreiro cm peda-c;:ose segmentos e registrando-os sob códigos e categorias pré-formuladas".

Sustentando que a ordem de urna história de vida tem a qualidade de gesta/!,afirma a autora (Roscnthal, 1996, p. 199): "é rigorosamcntc proibido separar de seu

contexto parte de histórias de vida ou - o que é pior - fazer cercas perguntas du-rante a entrevista, impedindo assim a produ<;:aode urna gesta!'biográfica por pamdo narrador". Nao sendo o conjunto somemc a soma das partes, sua ordena<;:ao(

significac;ao funcional sao decisivas. Assim deve-se considerar cada parte segundcsua significa<;aofuncional para a história de vida completa.

Neste ponto, podemos argumentar: se a história de vida - o relato da trajetó-ria de vida obtido na rela<;:aode entrevista - impede a produ<;ao de urna gesta!'pró

pria por parte do narrador, o que é urna desvamagem cm rela<;:aoa autobiografiavista de outro angulo, a interven<;aodo pesquisador constitui, justamente, urna '':lntagem: por ser calcada no diálogo, a história de vida permite explorar melhor certos elementos que, em geral, sao lacunares nos textos autobiográficos e biografias

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spectos da intimidade, processos de tomada de decisoes, vida cotidiana, etc.. Alémisto, permite maior controle sobre as informas:oes e, pOrtanto, urna maior confia-,ilidade do relato, Conduzindo a conversas:ao, o investigador estimula o entrevista-

o a lembrar-se, ao passo que, quando recebe urna autobiografia ou qualquer outroocumento pessoal, deve aceitar as experiencias e eventos descritos como autenti-os, a menos que contradigam fmntalmente fontes históricas já aceitas. Vm entre-istador que está compilando urna história de vida pode voltar diversas vezes aoema, colocando questoes de controle, ou ajudar o sujeito a se lembrar de fatos e:ventos.

Mas o cerro é que, em se tratando de rustóriasde vida, é preciso estar conscien-e de que, como adverte Lejeune (1980, p. 224):

(como a maior parte das autobiografias) evitam esse perigo, dissimulando melhorsuas insuficiencias" (Lejeune, 1980,p, 78), Neste caso, nos parece que a melhor for-ma de enfrentar o problema é tornar explícitas estas lacunas, ao invés de simples-mente preenche-Ias com inferencias, dedus:oes e boa dose de imaginas:ao.

Lejeune menciona, ainda, outra contradÍ<;aoprópria das biografias e que sesitua entre a pretensao a objetividade e a funs:ao e conduta reais do biógrafo. Nelas,a defasagem é maior do que nos textos autobiográficos - sempre suspeitos de te-rem sido orientados por preocupac;:oesapologéricasou narcisisras. O leitor, erronea-mente, desconfia menos do biógrafo, pois seu discurso de historiador que fez pes-quisas, que cita documentos e diz coisas "tal qual elas se passaram", assinalaLejeune, tende a mascarar sua ine\;tável parcialidade e os fundamentos ideológicosde seu projeto. Por que se escre,-e urna biografia? Provavelmente nunca alguém es-creveu sobre a vida de outro homem com o puro objetivo de "conhecimento". Háque se levar em conta a escolha do modelo e opartipris do trabalho - se é de admi-rac;aoou com intenc;ao de denegrir. A apologia ou a destruic;ao do modelo escolhi-do é urna atividade ideológica que ultrapassa em muito o caso particular estudado:o modelo é situado em rclac;aoas normas de vida e ao sistema de valores da socie-dade e vai se tornar um exemplo particular de realizac;:aodo ideal social. Lejeune(1980) acredita que, mais ainda do que a autobiografia (em que um trabalho demodificac;aodcste ideal pode evcnrualmente ser efetuado), a biografia tem urna fun-c;:aopedagógica de reproduc;:aosocial.

Segundo Lejeune (1980, p. 252),

"De um discurso oral a um livro publicado a discincia é grande. Todo cipode escolha deve ser feito, e o trabalho efetuado sobre o documento inicial é

muito importante. Contrariamente ao que o público (ou os alunos) podem ima-ginar,nao basta gravare recopiar (oo.)."

Passando as biografias, também nao sao poucos os dilemas e obstáculos quese colocam para o pesquisador. Primeiro, é preciso ter em mente que nao existeapenas um tipo de biografia. As possibilidades variam desde a situac;aoem que asbiografias servem unicamente para ilustrar formas típicas de comportamento -prosopografia, na tipologia proposta por Levi (1996), até os casos cm que a narra-tiva de urna trajetória de vida se faz scm referencia ao contexto histórico, como jáfoi tao usual.

A partir daí, surgem outras dificuldades. Lc:viafirma que o trabalho de clabo-rac;:iiode biografias Costuma encontrar obstáculos de ordem documental muitas ve-

zes intransponívcis. Isto quer dizcr que embora toda biografia tcnha prctensao atotalidade da vida de um homem, é, nccessariamente, lacunar. Dificilmentc se en-

Icontram informac;:oes,por excmplo, atos e pensamentos da vida cotidiana, de dúvi-das e incertezas, do caráter fragmcntário e dinfunico da identidade do individuo e

dos momentos contraditórios de sua constituic;ao.As fontes disponíveis costUmamnos informar muito mais sobre os resultados do que sobre os processos de tomadade decisoes, o que nos leva, muitas vezes, a explicac;oes simplistas e lineares, e aimagem, falsa, naturalmente, de personalidades coerentes e estáveis, e de decisoessem incertezas.

Para Levi, esta constitui uma das contradic;:oesdo genero biográfico de queos historiadores tem se mostrado mais conscientes. Lejeune também chama a aten-

c;:aopara este aspecto, assinalando que os textos elaborados pelos biógrafos saomuito bem amarrados no nivel de seu discurso, mas, em geral, imensamente lacu-nares no que se refere a informac;:oes.'~s biografias "romanceadas" ou científicas

"Os rdatos aurobiográficos, evidentemente, nao sao escritOs somentc: para'transmitir a memória' (o que se faz pela palavra e pelo exemplo em todas asclasses). Eles sao o lugar ond:: se dabora, se reprocluz e se transforma urna idc:n-tidacle coletiva, as formas de:vida próprias as classes dominantes. Essa identi-dade sc impoe a todos aquc:le:sque perrencem ou que se assimilam a c:ssasclas-se:; e rejc:itam as outras numa espécic de insignificancia."

Um aspecto sobre o qual a documentac;ao costuma ser lacunar refere-se are-lac;:aoentre trajetória individual c:história social. É Levi quem nos lembra: a relac;aoentre uma trajetória de vida e urna história social é mais complexa do que supoemos modelos lineares e de determinac;:aomecanicista. Longe de simplesmente refletiro social, o individuo coloca-se como polo ativo face a esse mesmo social, dele seapropriando, filtrando-o, retraduzindo-o e projetando-o em urna outra dimensao,que é a de sua própria subjetividade. Cada individuo representa a reapropria~ao sin-gular do universo social e histórico que o circunda. E é por isto mesmo que se podeconhecer o social partindo da especificidade irredutível de urna prática individual.Esta perspectivadiverge daquela em que o contexto social aparece como algo imóvel,

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oerente, e que tem a única fun<;:aode servir de pano de fundo para explicar a bio-'afia, sem considera<;:aopela a<;:aotransformadora do individuo sobre ele.

Assim é que o mais recente enfoque para a elabora<;:aode biografias, ao mes-o tempo em que busca ressaltar a irreduribilidade do individuo, busca recuperar o

.niverso social no qual suapersonalidade foi formada - seu campo exterior, já que,,ao sendo um sujeito isolado, o individuo faz parte de diversos grupos, de urna so-iedade e de urna cultura precisas.

A biografia individual, em todas as suas modalidades, abre amplas possibili-.ades para compreender melhor as diferentes media<;:oesentre as evolu<;:oesestru-.uais e as trajetórias individuais, recolocando, em novas bases, anrigo dilema dasiencias humanas e sociais.

Igualmente neste caso, as histórias de vida podem oferecer maiores possibili-ades, pois o pesquisador pode explorar as rela<;:oesda história individual com o con-

exto social, permitindo, como nenhuma outra técnica, apreender a influencia medi-dora dos pais, dos grupos de vizinhan<;:a,da escola e de outros grupos primários.

De maneira geral, pode-se afirmar que as histórias de vida apresentam me-hores condi<;:oesde enfrentar o aspecto lacunar próprio das biografias, justamenteda possibilidade de abordar aspectos da vida privada, valendo-se do fato de ques vestígios de que o pesquisador se:utiliza nao sao fixos (Guarinello, 1988, p. 61-1).Sendo a fonte um sujeito vivo, pode ser mais bem explorada e questionada. E é>toque nos sugere Rioux (1983, p. 30): "Nesse vai e vem, a invc:stiga<;:aose desen-olve, frutifica, testa suas hipótescs de trabalho, joga com a flexibilidade da 'fonte'iva, tenta explorar sob todos os angulos um arquivo que mistura, nos lembraoseph Goy, 'o verdadciro, o vivido, o aprendido e o imaginário'" .

A ausencia de fontes, nos lembra Lcvi (1996, p. 169), nao constitui a únicacm a principal dificuldade.

"Em muitos casos, as distorr;oes mais gritantes se devem ao fato de que nós,como historiadores, imaginamos que os atores históricos obedecem a um mo-delo de racionalidade anacronico e limitado. Seguindo urna tradi~ao biográficacstabdccida e a própria retórica de nossa disciplina, contcntamo-nos com mo-delos que associam urna cronología ordenada, urna personalidad e cocrcnte ecstávd, a<;ocssem inércia e dccisocs scm incertezas."

Podemos argumentar que o risco de enfocar as trajetórias de vida segundo oodelo racional, para o qual Pierre Bourclieu (1986) também adverte, nao se res-

:inge as biografias, colocando-se para todos os generos, porém de modo diferen-:. Se nas biografias o modelo racional é atribuído pelo pesquisador, nas autobio-rafias e nas histórias de vida, a questao se coloca pela tendéncia do próprio sujeitoe ordenar e dar racionalidade a seus atos e deasoes passadas - dar a suas a<;:oes

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~ma racionalid~de t1'p~s:eriori.No primeiro c.a~o,orientad~ pela presen<;:ado(s)lnterlocutor(es) Imagmano(s), para o qual se dmge todo escrIto auto biográfico, nosegundo, com a participa<;:aodo pesquisador. Aqui, mais urna vez, é possível pensarque a presen<;:ado investigador pode contribuir para minorar este risco, por meiodo diálogo e dos questionamentos que ele for capaz de inserir na rela<;:aode entre-VIsta.

Quanto aos textos autobiográticos, o fascínio que tem exercido nos pesqui-sadores reside, cm boa parte, na cren<;:ana autenricidade de um discurso vindo di-retamente do interessado, que reflete, a um só tempo, sua visao de mundo e suamaneira de se exprimir, sua gesta/t,enfim, como sugere Rosenthal. Esta afirmativa éválida, sem dúvida, mas desde que se observem duas condi<;:oes:primeiro, a valida-<;:aoe contexroaliza<;:aodo documento; segundo, o estabelecimento do interlocutorimaginário ao qual se dirige o escrito autobiográfico. Voltaremos a estes pontos.

Lejeune dedicou-se ao estudo da autobiografia, em suas rela<;:oescom a bio-grafia, preocupando-se, inicialmente, em defini-la: "Denominamos autobiografia orelato retrospectivo em prosa que alguém faz de sua própria existencia, desde queda coloque o acento principal sobre sua vida individual, cm particular sobre a his-tória de sua personalidade" (Lcjeune, 1975, p.14).

Certas condi<;:oespodem ser preenchidas pela maior parte sem o ser totalmen-te, advenc o autor. O texto dcve ser, sobrctudo, um relato, mas sabe-se o lugar queo discurso ocupa na narrativa autobiográfica. A perspectiva deve ser principalmen-te retrospectiva, mas isto nao exclui sec;oes de auto-retrato e outras consuus:oestemporais complexas. O tema elcveser principalmentc a vida individual, a g~nese dapcrsonalidade,mas a cronica e a história socialou política podcm ocupar algum lugar.

No cntanto, para '"luehaja autobiografia, e mais geralmentc literatura íntima,é preciso que haja idcntidade do autor, do narrador c do personagem. Esta identi-dade sc caracteriza pelo emprego da primeira pcssoa, mas há casos, raros, de relatona tcrceira pcssoa - significando um imenso orgulho, ou urna forma de humildade (tex-tos religiosos)- e mcsmo, nao há nada que impc<;:aOcmprcgo da segunda pessoa.

Um dos meios mais seguros para se reconhecer urna autobiografia, na pers-

pectiva de Lejeune, consiste em verificar se o relato da infancia ocupa um lugar sig-nificativo, ou, de modo mais'gcral, se o relato coloca enfase na genese da personali-dade. O desenvolvimcnto do genero autobiográfico no final do século XVIIIcorresponde a dcscoberta do valor do individuo, que se explica por sua história e,em particular, por sua genese na infancia e na adolescencia: "Escrever sua autobio-grafia é tentar captar sua pessoa em sua totalidade, em um movimento recapitulativode síntese do eu" (Lejeune, 1971, p. 19). As autobiografias, portanto, tentam captarurna vida em sua totalidadc e em sua genese. Está presente, ainda, a declarac;aodeintens;oes: o pacto autobiográfico é necessário, embora nao suficiente.

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Os documentos pessoais apresentam algumas distinc;oes entre si, a exemplodas autobiografias e memórias. Trata-se de urna quesclo de intenc;ao: o autor quisescrever a história de sua pessoa ou a de sua época? Nas memórias, o autor se colo-ca como testemunho de seu tempo. Se nao há como abandonar o ponto de vistaindividual, o objeto do discurso é algo que ultrapassa em muito o indivíduo, paraser a história dos grupos sociais e históricos aos quais ele pertence ou pertenceu(Lejeune, 1971,p. 15-6).

Se a forma específica da autobiografia é a ausencia da intermediac;ao de umpesquisador, seu estudo, porém, nao pode desconsiderar a interferencia do outro: éimportante determinar quem é o interlocutor imaginário ao qua! o relato se dirige,e que tipo de relac;aoo narrador estabelece com ele (de seduc;aoou de desafio).Já narostória de vida, esta quescio aparece de forma mais clara, já que produzida na intera-c;aoentreduas pessoas: revela a multiplicidade-de instancias implicadas no trabalho deescrita autobiográfica, colocando em evidencia seu caráter indireto e calculado.As en-trevistas realizadas com a utilizac;aodo gravador, todavia, tendem, com freqüencia,a provocar forte impressao de autenticidad e e espontaneidade do relato, levando,muitas vezes, a dissimulac;aodas mediac;oes que dao sentido ao documento.

Peneff (1990, p. 38) chama a atenc;ao para urna dificuldade comum aos tresgeneras enfocados, e para a qual é preciso estar atento: a maioria das histórias devida consiste em vcrdadeiras apologias. "Há escassez de atos errados ou imorais, depráticas injustas ou violentas, de comportamento fraudulento de quase todo tipo departe do escritor. A major parte das histórias de vida tentam falar com uma únicavoz, sem contradic;oes c sem oponcntes. Partes quase intciras da vida sao deixadasde fora, especialmente os episódios dolorosos ou questionávcis que poderiam tra-zer danos a imagem do narrador".

Maurice Catani acrescenta que o modelo de histÓria de vida continua a ser,fundamentalmente, o de urna síniese autobiográfica de urna vida cxemplar, cujomclhor exemplonos é dado pelas Con.ftssoesde SantoAgostinho:"Trata-se,de fato,de urna forma particular da hagiografia, coerente com as expressoes materiais e ahistória de uma cultura. Na Europa e nas Américas urna longa história literária legi-tima culturalmente as produc;oes que correspondem a essas características. Os au-tores sao 'notáveis'" (Catani, 1977, p. 2).

Lejeune aponta que há, pelos menos, cinco elementos fundamentais comunsa biografia e a autobiografia dos grandes homens: a lenda familiar; o relato de vo-cac,:ao;o exemplo, a apologia; a pequena história. O autor acredita, entretanto, queas histórias de vida oferecem condic,:oesde enfrentar essas qucstoes, de forma a naoobtermos urna hagiografia, e sim um retrato com nuances, estabelecido com a co-laborac,:aodo modelo, e por isso mesmo mais próximo do indivíduo real: com con-tradic,:oes,limites, defeitos e qualidades: "Eis o que a entrevista autobiográfica pode

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ter de insubstiroível: nos fazcr ver ao mesmo tempo um homem tal qual ele se ve asi mesmo,e tal qual alguém o ve". Em certos casos, a entrevista tem por func;ao"sobrerudo, explorar o imaginário do entrevistado, ou colocar em evidencia os an-gulos mortos de seu campo de visao, e o que ele expoe dele mesmo sem ver"(Lejeune, 198O,p. 198).

Alguns autores tem chamado a atenc,:aopara o fato de que as autobiografias eoutros tipos de documentos pessoais foram, e de certa forma ainda o sao, um pri-vilégio reservado as c1assesdominantes. Principalmente até o século XIX, autobio-grafias e biografias ficaram restritas a essas classes, constituindo espac;ode elabora-c;aoe reproduc;ao de suas formas próprias de vida.

Os indivíduos das camadas populares, em contraposic;ao, praticamente naotinham chance de ter suas vidas contadas por escrito, fosse por des mesmos, fosse

por outra pessoa, e muito menos de ve-las publicadas. Assim, "O discurso sobresua vida fica contido na memória de seu grupo (a vila, o campo), e raramente ultra-

passa esse círculo. Fechado cm um mcsmo meio, sua vida nao tem o tipo de indivi-dualidad e própria para suscitar interesse, e que é freqüentemente ligada a mobilida-de e ao sucesso social. Enquanto forma individual, ela nao é portadora, aos olhos

dos que sao suscetÍveis de fabricar e de consumir o impresso, de qualquer valor. (..,)O vivido das classes dominadas, de fato, nao está entre suas maos. Como sugerePierre Bourdicu, 'as classes dominadas nao fabm, das sao faladas'. Seu vivido é es-tudadode cima, de um ponto de vista economico e político, cm pesquisas que, na-qucla ¿poca, nao passam pelo rdato de vida. Ele é imaginadono discurso jornalísticoe romanesco das c1asscsdominantes, que de alimenta ao mesmo tempo de sonhos(sobrctudo os camponeses) c:de pesadclos (sobrctUdo os opcrários). A partir domomento cm que os mcios camponeses e operários tcm acesso a prática da escrita(e em particular do relato de vida) des o farao a partir de imagcns ddes mesmos jáconstituídas, que eJes encontrado no seu caminho. (...) Nao há, portanto, autobio-grafia "popular" no século XIX, por(luc para da nao existia nem público, nem cir-cuito de difusao. (Lejeune, 1980, p. 252-4)

A História Oral, como se sabe, tem desempenhado importante papel, ao dar

a palavra e tornar pública a voz daqucles que nao tcm acesso a escrita: os trabalha-dores rurais e urbanos, as camadas populares, em geral, as minorias. "Nós lhe 'da-

mos a palavra' - quer dizer que nós a tomamos para fazer dda um escrito", no di-zer de Lejeune (1980, p. 229). Para este autor, inaugurou-se um novo generoliterário e um novo método de investigac;aocm ciencias humanas, para o qual "re-lato de vida" seria o termo mais adequado. Além de permitir distingui-Io da auto-

biografia e da biografia, tem a vantagem de dcixar na indccisao o problema doautor: único ou múltiplo?, constitUindo esta, precisamente, urna das peculiaridadesdo genero.

Page 6: istó- Algumas reflexóes sobre histórias de N S& ri. o vida, …arpa.ucv.cl/articulos/algumasreflexoessobrehistriasdevida.pdf · A história de vida, por sua vez, é o relato de

Para finalizar, nunca é demais lembrar: em História e em Ciencias Sociais, otrabalho deve comec¡:arpela crítica e contextualizac¡:io,do documento, seja de qualfor: o depoimento oral, documentos pessoais ou outros documentos escritos. Osarquivos pessoais, por áemplo, sio dementos muito úteis para a construc¡:aodeuma biografia, mas sio apenas documentos como outros quaisquer, devendo, por-tanto, ser contextualizados e validados. Urna vez conhecidas as condic¡:oesde pro-duc¡:aode urna autobiografia e, principalmente, o quadro social de sua constituic¡:ao,passa-se, entio, a analisá-Ia como expressao da intenc¡:iode dar determinada ima-gem de si a certo público ou a determinada pessoa em particular. Só a partir daí se

, pode compreender a lógicadada pdo narrador ao desenrolarde fatos individuais,bem como o prindpio de sua se1ec¡:ao:as zonas de sombras e de luz, a saliencia decertos pontos da existéncia julgados fortes, e o esquecimento de certos outros con-siderados pouco lisonjeiros ou secundários.' Peneff (1979, p. 59) nos oferece umexemplo deste trabalho de crítica documental quando adverte: "Nao se trata de re-jeitar como sem interesse autobiografias de contramestres ou de comerciantes ex-operários, mas é preciso considerá-Ias como casos bastante excepcionais de saídada classe, com um itinerário muitas vezes singular, implicando um certo tipo de ati-tude vis-a-viso meio de origem, a escola, o meio social de chegada. É portanto, com-pletamente errado erigi-Ios em representantes da classe operária".

Em se tratando de histórias de vida, sao muitas as tarefas do pesquisador:alertar para os elementos de invenc¡:ao,de aproximar;:aoou de fantasia que rondatoda narrativa e, antes de pedir que acreditemos nos fatos rdat.'\dos palavra por pa-lavra, dcve nos providenciar a chavc que transforma o documento cru cm urna fon-re histórica, cxplicitando por que razocs a plausibilidadc é atribuida a urna parte dahistória de vida e nao a outra. E mais: é muito importante elucidar os mitos presen-tes nas histórias de vida, antes que sua autenticidadc possa ser apreciada: "essesmitos que nós todos podemos encontrar prontos para adaptar a nossa situac¡:aopes-soal e interpretar nossos próprios passados" (Idem, p. 45).

Tentamos, aqui, apontar algurnas das encruzilhadas, ardis e emboscadas a queestamos sujcitos ao trilharmos o rico carninho das trajctórias de ,rida. Sabemos quenem sempre é possivel escapar de todos os perigos, mas acreditamos que estarmosconscientes de sua existencia já é urn passo nesta direc¡:ao.

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(Rccebido para publicac¡:aoem julho de 1999)