ISPÂNIA ENTRE A ANTIGUIDADE TARDIA E A ALTA IDADE … · histórico sobre o período que, na...

58
A HISPÂNIA ENTRE A ANTIGUIDADE T ARDIA E A ALTA IDADE MÉDIA. INTRODUÇÃO ARQUEOLÓGICA A UM PERÍODO DE TRANSIÇÃO Luís Fontes Unidade de Arqueologia Frontal do Túmulo dito de São Martinho de Dume, sécs. XI-XII X Semana de Estudos Medievais / 04 a 06 de Junho, 2013 Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de História / Programa de Estudos Medievais

Transcript of ISPÂNIA ENTRE A ANTIGUIDADE TARDIA E A ALTA IDADE … · histórico sobre o período que, na...

A HISPÂNIA ENTRE A ANTIGUIDADE TARDIA E A ALTA IDADE MÉDIA.INTRODUÇÃO ARQUEOLÓGICA A UM PERÍODO DE TRANSIÇÃO Luís Fontes

Unidade de Arqueologia

Frontal do Túmulo dito de São Martinho de Dume, sécs. XI-XII

X Semana de Estudos Medievais / 04 a 06 de Junho, 2013Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de História / Programa de Estudos Medievais

X Semana de Estudos Medievais / 05 a 08 de Junho, 2013 Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de História / Programa de Estudos Medievais Curso (dias 5-7 Jun. 18h – 19h45) Luís Fontes Universidade do Minho (Braga – Portugal) Título

A HISPÂNIA ENTRE A ANTIGUIDADE TARDIA E A ALTA IDADE MÉDIA. INTRODUÇÃO

ARQUEOLÓGICA A UM PERÍODO DE TRANSIÇÃO.

Programa

Na Península Ibérica, os séculos V, VI e VII correspondem ao período de domínio suévico e visigótico e constituem um período fulcral para a compreensão dos múltiplos aspetos que caracterizam, tanto o fim do domínio romano como o nascimento dos reinos cristãos altomedievais. A investigação arqueológica tem vindo a contribuir, na última década, para um maior conhecimento dos fatores determinantes dos processos históricos que caraterizaram este período de transição. TEMA 1 – BREVE INTRODUÇÃO À ARQUEOLOGIA DA ALTA IDADE MÉDIA: METODOLOGIAS E PROBLEMÁTICAS Breve exposição do Método em Arqueologia Medieval. Qualquer projeto de investigação em arqueologia medieval supõe a adoção de um modelo metodológico de base. Contudo, admite-se que, em função dos objetivos da investigação, podem adotar-se distintas metodologias. Em arqueologia medieval, definem-se algumas especificidades metodológicas nas áreas da paisagem (field survey e análises de longa du ação ), da a uitetura (análise estratigráfica de alçados), das práticas funerárias (paleoantropologia física) e no recurso às fontes escritas (maior quantidade de informação). TEMA 2 – TERRITÓRIOS. O CONTEXTO SUÉVICO E VISIGÓTICO Discussão do impacto provocado na sociedade hispano-romana pela imposição dos novos poderes políticos e ao papel desempenhado pela Igreja, designadamente na manutenção da organização administrativa territorial de tradição romana, manifesta na estrutura diocesana, assente na rede urbana pré-existente. TEMA 3 – PAISAGENS. RESILIÊNCIA E INOVAÇÃO Com base em dados de natureza arqueológica e documental, abordar-se-á a problemática das continuidades e mudanças das paisagens conformadas entre os séculos V e VIII, a partir de dois tópicos principais: estrutura de povoamento e arquiteturas (caraterísticas e significados).

1

Introdução em Arqueologia Medieval Enquadramento disciplinar

A arqueologia medieval é a disciplina que pretende produzir conhecimento histórico sobre o período que, na Europa, se convencionou designar por Idade Média e que se baliza cronologicamente entre os séculos V e XV da nossa Era. À primeira data associa-se, habitualmente, o ano de 406, que marca o início das invasões germânicas ou o ano de 476, correspondente à deposição do imperador Rómulo Augusto e consequente fim do Império Romano do Ocidente. Com a segunda data correlaciona-se o ano de 1453, data da tomada de Constantinopla pelos Turcos, ou o ano de 1492, quando a Europa redescobre a América.

A periodização genericamente aceite estabelece dois grandes subperíodos: uma Alta Idade Média, compreendida entre os séculos V e X e correspondente às grandes movimentações populacionais dos eslavos, francos, godos, anglo-saxões, normandos e árabes, a par da institucionalização do Cristianismo e da interrupção do comércio de longa distância no mundo mediterrânico; e uma Baixa Idade Média, compreendida entre os séculos XI e XV, correspondente à criação dos estados feudais de matriz cristã, com consequente redefinição de fronteiras no ocidente europeu.

Na Inglaterra e na Alemanha estabeleceu-se uma divisão intermédia, entre os séculos XI-XII, fixando-se assim uma Early Medieval Ages (sécs. V-X), uma High Medieval Ages (sécs. XI-XII) e uma Late Medieval Ages (sécs. XIII-XV).

O conceito de Antiguidade Tardia, entendido como a expressão da continuidade entre o mundo antigo e a fixação dos árabes no sul da Europa, também coincidente com a formação do império Carolíngio, é igualmente aceite como indicador de período cronológico, balizado entre os séculos IV e VIII.

Deve notar-se que o termo Idade Média, estreitamente vinculado ao ordenamento cronológico da história, é profundamente eurocêntrico, não podendo alargar-se a outras sociedades de outros continentes com base no mero critério de contemporaneidade com o período europeu, pois não se reconhecem experiências históricas semelhantes.

Sensivelmente até meados do século XX, ainda subsistia na Europa a ideia de que a arqueologia estava reservada às épocas para as quais não havia qualquer fonte escrita, não sendo do domínio da história mas sim da pré-história, ou à descoberta de objetos e monumentos pertencentes às civilizações proto-históricas nas quais se considerava que a civilização ocidental tinha as suas raízes.

A partir da segunda guerra mundial, identifica-se um claro desenvolvimento da arqueologia medieval, especialmente devido ao alargamento do campo de investigação arqueológico, quer no espaço (implementaram-se estudos arqueológicos em todo o mundo, incidindo sobre países e civilizações completamente diferentes das clássicas), quer no tempo (verificando-se a existência de ‘desencontros’ cronológicos), quer ainda nas problemáticas (já não se interessa apenas pelos monumentos ou objetos especiais, mas por todos os traços materiais da existência humana, independentemente da sua condição)

O desenvolvimento moderno da arqueologia medieval como área disciplinar autónoma não pode dissociar-se das mudanças verificadas nas diferentes tradições historiográficas dos diversos países europeus. Embora essas diferentes tradições tenham determinado também diferentes rumos de desenvolvimento, deve relevar-se que foi o interesse por temas marginais, como os recursos da natureza, o quotidiano ou a população ‘anónima’, que abriram à arqueologia medieval um novo e mais amplo espaço de estudo.

2

Da convergência da tradição francesa de estudos artísticos dos monumentos medievais, com a tradição germano-escandinava de escavações arqueológicas surgem, nos finais do século XIX, os primeiros estudos de arqueologia medieval, com as escavações sistemáticas em necrópoles anglo-saxónicas e vikings em Inglaterra e nos países nórdicos. No início do século XX o interesse começa a estender-se aos povoados portuários, alarga-se entre as duas guerras mundiais às necrópoles cristãs e aos campos de sepulturas pagãos e conhece um forte impulso com a descoberta, em 1939, do espetacular complexo funerário de Sutton Hoo, em Inglaterra.

Depois da II Guerra Mundial, que provocou a destruição de inúmeros edifícios, sítios e artefactos medievais, os arqueólogos medievais beneficiaram de novas oportunidades de estudo, afirmando o estatuto científico da arqueologia medieval através de amplos e bem estruturados projetos de estudo de aldeias, vilas e cidades, participando no esforço de reconstrução de muitas das antigas cidades europeias.

Considerando a área disciplinar da Arqueologia, a Arqueologia Medieval distingue-se da Arqueologia Pré-Histórica e da Arqueologia Clássica por possuir fontes escritas de informação coeva, que se traduzem na manipulação de um maior volume de informação, o que permite traçar quadros de vida mais complexos e relativamente fiéis – tem, pois, uma maior capacidade de síntese.

Mas, se o recurso habitual às fontes escritas confere originalidade à arqueologia medieval e proporciona um conhecimento mais detalhado, a sua prática é, reconhecidamente, mais difícil, pois exige ao arqueólogo medieval a capacidade de ler criticamente os documentos escritos e uma formação histórica sólida, que lhe permita articular a diversidade de dados recolhidos. Arqueologia e História Medieval: relações e especificidades

Existe uma evidente relação entre Arqueologia e História, que decorre do necessário recurso às fontes escritas por parte dos arqueólogos que se debruçam sobre o período medieval e, consequentemente, do necessário conhecimento das problemáticas históricas associadas – como afirmava Michel de Boüard: “o escavador deve ser historiador, sob pena de não poder compreender o significado do que encontrou”.

“O objetivo da arqueologia medieval é o de produzir conhecimentos históricos; (…) A arqueologia produz conhecimentos a partir do registo arqueológico e da prospeção sem prescindir da informação derivada dos textos escritos, que tem limitações muito sérias. Também tem limitações o registo arqueológico. Mas há que trabalhar com os dois registos, sem que isso signifique que sejam complementares, pois não são. Há coisas que jamais se poderão saber a partir da documentação escrita e também há coisas que o registo arqueológico não permite sequer questionar. Mas esta diferença não implica uma diferença da qualidade da informação; (…)” – Miquel Barceló et alii. Arqueología medieval. En las afueras del ‘medievalismo’, Barcelona, 1988, p.11.

Apesar de, atualmente, se considerar ultrapassada, por estéril, a polémica da contraposição entre fontes/documentos arqueológicos e fontes/documentos escritos, a verdade é que, na prática, ainda existe uma diferença substancial no tratamento de umas e outras - um arquivo documental costuma ser publicado na íntegra, disponibilizando as informações originais para qualquer estudioso, enquanto de uma escavação arqueológica se costuma publicar apenas uma seleção dos materiais recolhidos, ignorando-se que é o conjunto integral dos dados da escavação ou da prospeção que constituem o ‘documento’.

3

Como escreveu Vicente Salvatierra Cuenca, “acontece frequentemente que, em arqueologia, nem se faz história, porque não se passa do nível descritivo, nem se é verdadeiramente documentalista, porque a publicação dos dados é excessivamente parcial e truncada”.

Temos assim, que a investigação em arqueologia medieval é mais complexa e coloca mais exigências do que poderia pensar-se, pois não é uma questão de utilização de uma ‘técnica’ aplicada ao estudo de um determinado período, mas antes se trata de o historiador recorrer para as suas investigações a uma ciência específica, a qual, sendo comum a todos os ‘historiadores-arqueólogos’ que investigam outros períodos históricos, possui especificidades apenas aplicáveis ao campo medieval.

Portanto, ao arqueólogo medieval exige-se que, para além do domínio das metodologias de recolha e análise de dados arqueológicos, que incluem a incorporação de instrumentos analíticos das áreas das ciências naturais e exatas, tenha competências ao nível da leitura crítica da documentação escrita e que possua uma formação histórica sólida, a par de conhecimentos da história regional e local onde desenvolve as suas investigações.

O que importa reter é que os resultados das investigações arqueológicas se constituem como conhecimento histórico, pelo que, nesta perspetiva, os arqueólogos do período medieval serão sempre historiadores. Áreas de interesse e objetivos

Considerando as atuais tendências de investigação em arqueologia, poderá afirmar-se que em arqueologia medieval não existem domínios que não possam ser objeto de estudo. Esta consideração genérica não deve, porém, ignorar que existem limites ao nível do conhecimento a que se pode aceder por ‘via arqueológica’, os quais resultam tanto das limitações das fontes (arqueológicas ou escritas) como da complexidade das interpretações possíveis ou ainda das perspetivas teóricas de abordagem.

Como escreveu Jean-Marie Pesez, “(…) não há domínio de pesquisa interdito à arqueologia: desde sempre, esta, através dos monumentos e das obras de arte, se interessou pelo mundo das representações, das crenças e das ideologias e mentalidades. E a pré-história, pelo menos, não hesita em abordar as estruturas sociais. Não vemos porque é que a arqueologia medieval não pode penetrar nestes domínios. (…)” - Archéologie et Histoire Médiévales, in Historiens & Archéologues, Berne, 1992, pp.10

As áreas de interesse e objetivos da investigação em arqueologia medieval vinculam-se estreitamente às tradições historiográficas de cada país em que se desenvolveu, identificando-se uma diversidade assente na diferente valorização dos acontecimentos alto medievais elaborada no decurso do século XIX e na diferente evolução dos quadros políticos.

Na Alemanha, Dinamarca, Inglaterra e França, associou-se o fim do mundo romano ao renascimento do espírito nacional, de matriz anglo-saxónica e franca, donde a implementação de estudos arqueológicos orientados para o conhecimento do período onde se faziam mergulhar as raízes históricas desses países, exatamente ao contrário do que sucedeu em Itália, para cujos historiadores e arqueólogos o mesmo período correspondia à emergência da barbárie e ao fim da ‘italianidade romana’, que só viria a ressurgir no século XI.

Na Escandinávia, embora se admita uma tradição de estudos arqueológicos medievais que remonta aos séculos XVIII e XIX (convento franciscano de Saint Katherine, Suécia, em 1779; mosteiro de Munkliv, Noruega, em 1860; igreja

4

franciscana de Kökar, arquipélago Aland, Finlândia, em 1867), reconhece-se que a plena aceitação e autonomia disciplinar da arqueologia medieval só acontece na segunda metade do século XX, na sequência do desenvolvimento da arqueologia urbana, especialmente na Noruega e na Suécia, destacando-se neste último país a actividade do Museum of Cultural History (Kulturen), de Lund, uma instituição com uma importante actividade arqueológica já desde o início do século XX. Na Dinamarca identifica-se um maior desenvolvimento da arqueologia rural, enquanto na Finlândia se privilegia o estudo dos castelos.

Em Inglaterra, a arqueologia medieval desenvolveu um percurso autónomo de investigação, adotando preferencialmente uma abordagem temática, destacando-se os estudos em torno das questões do povoamento, identificando-se duas grandes “escolas”: a do Medieval Village Research Group, que renovou a história rural inglesa com base em estudos arqueológicos sistemáticos de aldeias abandonadas, com destaque para o projeto de Warram Percy (1950-1990); e a da arqueologia urbana, relacionada com as amplas escavações das cidades medievais inglesas no pós-guerra, como em Londres, York ou Winchester, onde se ensaiaram e desenvolveram novas metodologias de escavação e de registo, relevando os desenvolvimentos na análise da sequenciação estratigráfica iniciados por Martin Biddle e depois apurados e difundidos por Edward C. Harris a partir da experiência de Winchester – o exemplo do Museu of London é, nesta matéria, caso de estudo. Embora as questões do povoamento e da construção da paisagem continuem, atualmente, a orientar os interesses da investigação arqueológica, a extraordinária acumulação de dados começa a suscitar novas questões teóricas, orientadas para a redefinição do objeto de estudo da arqueologia medieval.

Em França, o desenvolvimento da arqueologia medieval é protagonizado pelo Centre de Recherches Archéologiques Médiévales da Universidade de Caen, fundado por Michel de Bouard em 1951, que desenvolveu diversos projetos de estudo em assentamentos feudais e renovou o estudo dos castelos, valorizando especialmente, na linha da École des Annales e no quadro da análise da estratigrafia arqueológica, os contextos da cultura material – elaboram-se então os primeiros estudos tipológicos das cerâmicas medievais, com base num code pour le classement et l’étude dês poteries du Moyen Age, estudos que atualmente conhecem iniciativas institucionalizadas, como os ‘Colóquios sobre Cerâmica Medieval no Mediterrâneo Ocidental’, promovidos pela Universidade de Aix en Provence.

Em Itália, a arqueologia medieval conheceu uma renovação após a segunda guerra mundial, assumindo-se como disciplina histórica específica capaz de contribuir para o debate dos temas tradicionais dos historiadores e para definir novos temas de estudo. O mais recente e significativo contributo da arqueologia medieval italiana relaciona-se com a aplicação das metodologias arqueológicas de análise estratigráfica ao estudo dos edifícios, originando a chamada escola italiana de arqueologia da arquitetura, protagonizada por Tiziano Mannoni (Universidade de Génova), Riccardo Francovich e Roberto Parenti (Universidade de Siena), Gian Pietro Brogiolo (Universidade de Pádua) e Francesco Doglioni (Instituto Universitário de Veneza).

Em Espanha, a arqueologia medieval beneficiou da tradição dos estudos arqueológicos paleocristãos e visigóticos, os primeiros protagonizados por Pere de Palol e Martin Almagro Basch, das Universidades de Barcelona e Complutense de Madrid, e os segundos por Theodor Hauschild e Helmut Schlunk, do Instituto Arqueológico Alemão de Madrid, os quais deram particular atenção à arquitetura das basílicas. O interesse pelo mundo islâmico, manifesto desde os anos 30 do século XX graças aos trabalhos de Manuel Gomez Moreno, professor de

5

Arqueologia Islâmica em Madrid, conheceu um forte impulso a partir dos anos 80, protagonizado por estruturas museológicas municipais e/ou regionais e pelos departamentos universitários de Madrid, Granada e Jaén, bem como pela Casa de Velazquez, de Madrid, interessando-se por todos os aspetos da expressão cultural islâmica na Península, com particular destaque para as questões do povoamento e da construção das paisagens urbanas e agrárias. A Arqueologia dos reinos cristãos conhece um desenvolvimento mais tardio, destacando-se o contributo pioneiro de Manuel Riu y Riu, desde a Universidade de Barcelona, com um amplo leque de temáticas de estudo, na perspetiva da história global de tradição francesa (povoamentos, arquiteturas, viação, técnicas industriais, técnicas agrárias, etc.). Atualmente, a arqueologia medieval conhece desenvolvimentos diversos, decorrentes das variadas linhas de investigação desenvolvidas pelos distintos centros universitários de investigação: castelologia (José Avelino Gutierrez Gonzalez – Universidade de Oviedo); cerâmicas (Ramon Bohigas Roldán (Universidade de Cantábria); arqueologia da arquitetura (Agustín Azkarate – Universidade de Vitoria e Luís Caballero Zoreda – C.S.I.C. Madrid); arqueologia da paisagem (Francisco Burillo Mozota – Colégio Universitário de Teruel).

Em síntese, verifica-se que nas últimas décadas a arqueologia medieval evoluiu rapidamente da abordagem monográfica de sítios e monumentos, vinculada aos contextos funerários, religiosos e militares, para uma abordagem contextual, que privilegia o estudo das relações das populações com o meio físico, procurando compreender a construção das paisagens medievais, para o que tanto interessa a organização espacial do sítio ou a arquitetura do monumento como a estrutura agrária, as características de geografia física ou os recursos tecnológicos disponíveis. Questões metodológicas

No último terço do século XX, o refinamento dos métodos de pesquisa e das técnicas de análise em arqueologia medieval desempenharam um papel fundamental na definição dos objetivos da investigação. Metodologias e objetivos de investigação são inseparáveis.

A arqueologia medieval recorre a métodos e técnicas de investigação, a maior parte das quais comuns à restante arqueologia e pontualmente diversas. A perspetiva contextual das abordagens em arqueologia medieval determina o seu carácter multidisciplinar, exigindo uma efetiva colaboração com outras disciplinas e com as ciências técnicas e naturais - mais do que qualquer outra, a arqueologia medieval necessita de colaborar com a História, com a História da Arte e Arquitetura, com a Geografia, com a Paleoantropologia Física, com a Paleobotânica, etc..

“A intervenção cada vez maior das ciências naturais na história e na arqueologia conduzem a reconsiderar a própria conceção da arqueologia. Cada vez mais, o arqueólogo é um chefe de orquestra dirigindo e coordenando os contributos de diferentes intervenientes. Estes não são mais apenas os especialistas, mas também os participantes no desenvolvimento completo da escavação desde o seu início. (…)” – in Aline Durand, Armelle Gardeisen e Laurence Marambat, Apport des Archéosciences ou Disciplines Naturalistes à l’Histoire et à l’Archéologie Médiévales, in VV.AA.: Historiens & Archéologues, Berne, 1992, pp.303.

Deve notar-se, porém, que o maior ou menor estreitamento das relações interdisciplinares decorre mais das problemáticas definidas previamente no desenho do projeto de investigação, e menos de uma qualquer dependência ou subordinação disciplinar.

6

Qualquer projeto de investigação em arqueologia medieval supõe a adoção de um modelo metodológico de base, que comporta:

1 - O estabelecimento de objetivos acessíveis (e.g., uma história da ocupação do solo, da rede de povoamento); 2 – A definição de uma problemática (e.g.., mudanças dos habitats e reorganização do território associada ao ‘encastelamento’); 3 – O conhecimento das etapas de desenvolvimento do trabalho: (e.g., inventários de base documental, construção de tipologias e hierarquizações dos povoados, etc.); 4 – O domínio das metodologias: arqueológicas (prospeção, sondagens, escavações); históricas (inventário de povoados referidos na documentação, toponímia, historiografia).

Contudo, admite-se que, em função dos objetivos da investigação, podem

adotar-se distintas metodologias. Em arqueologia medieval, definem-se algumas especificidades metodológicas nas áreas da paisagem (field survey e análises de ‘longa duração’), da arquitetura (análise estratigráfica de alçados), das práticas funerárias (paleoantropologia física) e no recurso às fontes escritas (maior quantidade de informação).

Nos estudos de paisagem e povoamento, devem ser considerados os seguintes procedimentos metodológicos:

- Elaboração de questionários (fichas), organizados em ficheiros que integrem uma base de dados relacional, facilitadora de pesquisas analíticas - Pesquisa prévia de dados históricos, geográficos, toponímicos, etc. - Planeamento das prospeções (visitas de campo, geofísicas, aéreas) - Inventário de sítios e achados - Recolhas de superfície - Classificação tipológica de assentamentos e hierarquização (com base em critérios analíticos previamente estabelecidos) - Sondagens e/ou escavações - Estudos especializados: cerâmica, numismática, estratigrafia e cronologias relativas, cruzamento / comprovação com dados documentais etc. - Síntese interpretativa

Nos estudos de arquitetura, estabeleceu-se a seguinte metodologia de atuação:

– Pesquisa documental – Levantamento gráfico e fotográfico rigoroso – Descrição (constituição de base de dados, com registo das diferentes unidades estratigráficas construtivas) – Análise das relações estratigráficas e definição das atividades construtivas – Determinação genérica das fases construtivas – Cruzamento dos dados das estratigrafias de alçados, dos registos de eventuais escavações e da documentação escrita, para elaboração da interpretação da evolução arquitetónica do edificado (fases da história do edifício) – Síntese histórica contextualizada

Para a recolha da documentação escrita, devem considerar-se os documentos

com origem nos arquivos privados, paroquiais, municipais, comarcais, episcopais,

7

senhoriais, centrais – que proporcionam desde cartas de compra-venda de propriedades, doações, registos de nascimento, de óbito e testamentos, até censos, inventários, demandas judiciais, cadastros, visitações, mapas, plantas, crónicas, registos de propriedades e/ou direitos, etc..

Na análise da informação contida nos documentos, importa especialmente considerar os dados toponímicos, como nomes de lugares de origem geográfica (relevos, linhas de água, fenómenos geológicos), de origem antrópica (possessores latinos e germânicos = antroponímia) e de origem religiosa (culto de santos = hagiotoponímia), pois permitem elaborar cartografias históricas fundamentais para a contextualização dos dados arqueológicos das prospeções e escavações. Bibliografia Básica BOUARD e RIU Y RIU, Michel de e M. (1977) - Manual de Arqueologia Medieval: de la prospeccion a la historia, Barcelona. CABALLERO ZOREDA, Luís (2002) – Sobre límites y posibilidades de la investigación arqueológica de la arquitectura. De la estratigrafía a un modelo histórico, in Arqueología de La Arquitectura, 1, UPV/CSIC, Vitoria-Gasteiz, pp.83-100. CRABTREE, Pam J. (ed.) (2001) – Medieval Archaeology an Encyclopedia, Garland Publishing, New York and London. FONTES, Luís (2002) – Arqueologia Medieval Portuguesa, in Arqueologia & História, n.º 54, [Atas das VI Jornadas da Associação dos Arqueólogos Portugueses. “Arqueologia 2000: Balanço de um Século de Investigação Arqueológica em Portugal”, (25 a 27 Maio 2000)], Associação dos Arqueólogos Portugueses, Lisboa, pp.221-238. FRANCOVICH, Riccardo e MANACORDA, Daniele (eds.) (2001) – Diccionario de Arqueologia, Critica, Barcelona. GERRARD, Christopher (2003) – Medieval Archaeology. Understanding traditions end contemporary approaches, Routledge, London. JOHNSON, Matthew (2000) – Teoría arqueológica. Una introdución, Editorial Ariel S.A., Barcelona. LADERO QUESADA, Manuel F. (1992) - Historia y Arqueología de los tiempos medievales. Algunas consideraciones, Arqueología, Hoy, (coord. ed. Gisela Ripoll López), Universidad Nacional de Educación a Distancia, Madrid, pp.163-174. MIQUEL BARCELÓ et al, Miquel Barceló, Helena Kirchner, Josep M. Lluró, Ramon Martí, José M. Torres (1988) - Arqueología medieval. En las afueras del “medievalismo”, Editorial Crítica, Barcelona. SALVATIERRA CUENCA, Vicente (1990) – Cien Años de Arqueologia Medieval. Perspectivas desde la periferia: Jaen, Univerdidad de Granada, Granada. VVAA (1992) - Historiens & Archéologues, (Actes 3.e Session d`Histoire Médiévale de Carcassonne, 28 Agosto - 1 Setembro 1990), Peter Lang, Berna. VVAA (1993) – The Study of Medieval Archaeology, European Symposium for Teachers of Medieval Archaeology, (Lund 11-15 Junho 1990), Almqvist & Wiksell International, Estocolmo.

TEMA 1 – BREVE INTRODUÇÃO À ARQUEOLOGIA DA ALTA IDADE MÉDIA: METODOLOGIAS E PROBLEMÁTICAS

Breve exposição do Método em Arqueologia Medieval.

Qualquer projeto de investigação em arqueologia medieval

supõe a adoção de um modelo metodológico de base.

Contudo, admite-se que, em função dos objetivos da

investigação, podem adotar-se distintas metodologias. Em

arqueologia medieval, definem-se algumas especificidades

metodológicas nas áreas da paisagem (field survey e análises

de longa du ação , da a uitetu a análise est atig áfica de alçados), das práticas funerárias (paleoantropologia física) e no

recurso às fontes escritas (maior quantidade de informação).

TEMA 1 – BREVE INTRODUÇÃO À ARQUEOLOGIA DA ALTA IDADE MÉDIA: METODOLOGIAS E PROBLEMÁTICAS

1.1. DO MÉTODO

1.2. DAS METODOLOGIAS

1.3. DAS PROBLEMÁTICAS

Considerando a área disciplinar da ARQUEOLOGIA, a Arqueologia Medieval distingue-se da Arqueologia Pré-Histórica e da Arqueologia Clássica por possuir fontes escritas de informação coeva, que se traduzem na manipulação de um maior volume de informação, o que permite traçar quadros de vida mais complexos e relativamente fiéis – tem, pois, uma maior capacidade de síntese.Mas, se o recurso habitual às fontes escritas confere originalidade à arqueologia medieval e proporciona um conhecimento mais detalhado, a sua prática é, reconhecidamente, mais difícil, pois exige ao arqueólogo medieval a capacidade de ler criticamente os documentos escritos e uma formação histórica sólida, que lhe permita articular a diversidade de dados recolhidos.

A perspectiva contextual das abordagens em arqueologia medieval determina o seu carácter multidisciplinar, exigindo

uma efectiva colaboração com outras disciplinas e com as ciências técnicas e naturais - mais do que qualquer outra, a

arqueologia medieval necessita de colaborar com a História, com a História da Arte e Arquitectura, com a Geografia, com a

Paleoantropologia Física, com a Paleobotânica.

Deve notar-se, porém, que o maior ou menor estreitamento das relações interdisciplinares decorre mais das problemáticas definidas previamente no desenho do projecto de investigação, e menos de uma qualquer dependência ou subordinação disciplinar.

1.1. DO MÉTODO (MODELO DE ANÁLISE)

1.ª - Definição de objetivos. Enunciação com base num enquadramento teórico explícito e em critérios operativos concordantes com a sua exequibilidade;

2.ª – Recolha de dados. Mobilização de um vasto conjunto de informação, principalmente nas áreas da arqueologia e história, geologia e geografia, biologia e ecologia, economia e sociedade, artes e tecnologias, de acordo com os procedimentos estabelecidos pela arte (Demoule et al., 2005; García Sanjuán, 2005; David e Thomas, 2008);

3.ª - Descrição de dados. Elaboração de base de dados relacional, de acordo com protocolos descritivos pré-estabelecidos.

4.ª – Processamento analítico de dados. Identificação de padrões comuns, que dão sentido às propostas de interpretação.

5.ª – Interpretação de dados processados. Ao nível da teoria interpretativa assume-se um nível particular e intermédio de generalização. Relativamente aos modelos sociais, elege-se a complexidade como representação da sociedade e a multiplicidade como fatores do seu funcionamento, considerando que a dinâmica geral da sociedade é assimétrica ou variável ou complexa (Demoule et al., 2005:204-225).

6.ª – Validação da interpretação. As interpretações revestem o carácter de hipóteses. Estas validam-se internamente através da dialética de feedback entre as diversas etapas e pelo confronto entre os resultados finais e os objetivos iniciais. Validam-se externamente pelo estabelecimento de analogias positivas e negativas.Dão origem à definição de novos objetivos e consequente início de novo processo de investigação, numa espécie de engrenagem em movimento espiral.

Apesar da ausência de um paradigma dominante, o modelo de análise deve seguir os princípios do raciocínio científico, ainda generalizadamente aceites no domínio das ciências sociais e humanas (no qual se inscreve a área de saber da arqueologia), organizando-se em 6 etapas (Demoule et al., 2005: 190 e sgs.).

1.1. DO MÉTODO (MODELO DE ANÁLISE)

1.ª - Definição de objetivos.

2.ª – Recolha de dados.

3.ª - Descrição de dados.

4.ª – Processamento analítico de dados.

5.ª – Interpretação de dados processados.

6.ª – Validação da interpretação.

Análises

laboratoriais

Numismática

Documentos

escritosEpigrafia

Cerâmica

Estruturas

Estratigrafia

Arqueologia

1.2. DAS METODOLOGIAS (MULTIDISCIPLINARIDADE E DIVERSIDADE DE FONTES)

Particularidades das fontes

Epigrafia: inscrições monumentais (funerárias, votivas, comemorativas) e inscrições não

monumentais (jurídicas, religiosas, ensino, lúdicas)

Gliptografia: marcas de canteiros (processo construtivo)

Sigilografia: inscrições em selos e medalhas (instituições)

Numismática: moedas (sistema económico, rotas comerciais, tecnologias)

Toponímia: nomes de lugares de origem geográfica (relevos, linhas de água, fenómenos geológicos), de origem antrópica (possessores

latinos e germânicos = antroponímia), de origem religiosa (culto de santos = hagiotoponímia) –

conformação da paisagem

Documentos escritos: arquivos privados, paroquiais, municipais, comarcais, episcopais,

senhoriais, centrais – diversos tipos de documentos, desde as cartas de compra-venda de

propriedades, doações, registos de nascimento, de óbito e testamentos, até censos, inventários,

demandas judiciais, cadastros, visitações, mapas, plantas, crónicas, registos de propriedades e/ou

direitos, etc..

Co a passage dos séculos e das ci ilizações, o te itó io ão só se ai construindo, como também se converte num suporte de sinais. Entender e interpretar um território historicamente configurado, equivale a decifrar a

linguagem pela qual esse território se expressa e se torna racionalmente perceptível e, portanto, implica a descoberta do sistema de sinais específico

de cada o ga ização te ito ial.

José Ramón Menéndez de Luarca e Navia Osorio – A Construção do Território. Mapa Histórico do Noroeste da

Península Ibérica

Barcelona / Madrid, 2000, p.63

Na fixação de qualquer população num determinado território, verificam-se sempre três fases principais: 1.º - a ocupação do espaço; 2.º - o ordenamento do território (delimitação, hierarquização, integração); 3.º a consolidação do novo ordenamento (construções que materializam os limites, as sedes de poder e as vias de comunicação e atribuição de significados transcendentes a elementos sinalizadores do território).

As construções que materializam os sucessivos ordenamentos dos territórios, determinando ou não a destruição de outras construções relacionadas com anteriores ordenamentos, constituem a topografia artificial, transformando o próprio território num artefacto.

1.2. DAS METODOLOGIAS (Arqueologia da Paisagem: definição, conceitos e perspetivas)

1.2. DAS METODOLOGIAS (Arqueologia da Paisagem: definição, conceitos e perspetivas)

A Arqueologia da Paisagem é uma área disciplinar consolidada, que atualmente procura conhecer as formas de organização social que

distinguem as paisagens no passado, indagando de que modo se estabeleceriam os diferentes níveis de organização (espaço habitado, áreas

de cultivo, fronteiras territoriais, demarcação simbólica de espaços), qual a componente dessa organização devida a fatores ambientais e qual

o peso das necessidades das comunidades humanas, ao nível das relações entre materialidades e ideologias.

Procura também conhecer como se conformaram as paisagens, tanto numa perspetiva sincrónica como diacrónica, ou se, como e quando se

processaram mudanças e se estas foram formais ou sistémicas. Questiona-se igualmente como se formou a memória da paisagem e como é

que a forma da paisagem pode refletir as diversas estruturas sociais (Gojda, 2004).

PAISAGEM é a manifestação espacial das relações entre humanos e o meio ambiente. É, portanto, uma categoria cultural, o que implica o reconhecimento de que a paisagem não é apenas um objeto físico, mas sobretudo um quadro

ambiental para cuja modelação também contribuiu a ação humana, com maiores ou menores impactes, ao longo de um tempo dilatado, delimitando distintos territórios.

Da conjunção da ação humana com a natureza, no tempo histórico, produziu-se uma acumulação de incontáveis camadas, na memória e no próprio terreno, pelo que a paisagem se constitui como um complexo repositório de sinais, compreensíveis apenas enquanto expressões de cultura - paisagem é sempre uma paisagem cultural, ou não é paisagem (Hernández León, 2007:11).

A ARQUEOLOGIA DA PAISAGEM, entendida como o estudo arqueológico das paisagens culturais, tem como tarefa estudar a criação da paisagem, atual e passada, decifrando o complexo sistema de sinais através

dos quais as diferentes paisagens se tornam compreensíveis.

1.2. DAS METODOLOGIAS (Arqueologia da Paisagem: definição, conceitos e perspetivas)

Etimologicamente "contexto" significa conectar, interligar.Co texto" em arqueologia implica uma trama espácio-temporal de quatro dimensões, capaz de expressar o mundo real em que o ser humano atua, isto é, capaz de ordenar as relações entre as estruturas físicas e

as estruturas sócio históricas.

contexto

Paisagem = relação Ser Humano / Ambiente

1.2. DAS METODOLOGIAS (Arqueologia da Paisagem: definição, conceitos e perspetivas)

ESCOLHA MÚLTIPLA OU PLURIPERSPECTIVADA / ECLÉTICA

fenomenológica

Contextual / Relacional

perspetivas de abordagem

1.2. DAS METODOLOGIAS (RECOLHA DE DADOS)

Cartografia e pesquisa bibliográfica e documental

1.2. DAS METODOLOGIAS (RECOLHA DE DADOS)

Prospeção arqueológica

1.2. DAS METODOLOGIAS (RECOLHA DE DADOS)

Escavação arqueológica

1.2. DAS METODOLOGIAS (RECOLHA DE DADOS)

Bases de dados

1.2. DAS METODOLOGIAS (RECOLHA DE DADOS)

SIG aplicado à Arqueologia e análise espacial

1.2. DAS METODOLOGIAS (Arqueologia da Paisagem: definição, conceitos e métodos)

Arqueologia da Paisagem(extensiva ou espacial)

-Elaboração de questionários (fichas), organizados em ficheiros que integrem uma base de dados relacional, facilitadora de pesquisas analíticas-Pesquisa prévia de dados históricos, geográficos, toponímicos, etc.-Planeamento das prospecções (visitas de campo, geofísicas, aéreas)-Inventário de sítios e achados- Recolhas de superfície- Classificação tipológica de assentamentos e hierarquização (com base em critérios analíticos previamente estabelecidos)-Sondagens e/ou escavações-Estudos especializados: cerâmica, numismática, estratigrafia e cronologias relativas, cruzamento/comprovação com dados documentais- Síntese interpretativa

Alguns Conceitos

Habitat rural – modo de organização dos povoados rurais, num determinado

território. Pode ser disperso, concentrado (ou misto).

Morfologia agrária – desenho ou configuração das parcelas, dos caminhos e da disposição relativa dos campos, bosques e pastagens. Pode configurar formas diversas (ortogonal, radial, concêntrica, etc.)

Sistema de culturas – associação de plantas escolhidas por uma sociedade rural para

cultivo, dependendo das características dos solos e do clima, da técnica utilizada, da

tecnologia disponível, do nível de rendimento pretendido.

1.2. DAS METODOLOGIAS (Arqueologia da Arquitetura: definição, conceitos e métodos)

Definição

Na forma como hoje se apresenta, um bem patrimonial arquitectónico corresponde ao produto final de uma acumulação

estratigráfica de elementos construtivos e de relações estabelecidas com o meio.

O Património Arquitectónico configura-se, portanto, como contexto arqueológico de longa duração. Sujeita-se, por isso, aos princípios e

processos de análise arqueológica, especialmente os correlacionados com a sequenciação estratigráfica.

A chamada Arqueologia da Arquitectura, é a disciplina através da qual se elabora a história dos edifícios,

entendidos como resultado de experiências únicas de construção, experiências essas realizadas em contextos

sociais, económicos, artísticos e tecnológicos particulares.

É, reconhecidamente, um instrumento de análise, imprescindível para a obtenção do conhecimento

necessário a qualquer intervenção informada sobre o património edificado.

Deve proporcionar conhecimento sobre as formas e funcionalidades das edificações, sobre as técnicas e

materiais com que foram construídas e sobre os usos a que foram sujeitas na sua duração mais ou menos longa.

O exercício da Arqueologia da Arquitectura supõe, necessariamente, aceitar as obrigações decorrentes do comprometimento social da disciplinacom as necessidades de estudo, protecção e gestão do património arquitectónico, como consagram, aliás, as Cartas e Convenções Internacionais.

1.2. DAS METODOLOGIAS (Arqueologia da Arquitetura: definição, conceitos e métodos)

Alguns Conceitos

Património é o conjunto das obras do homem nas quais uma comunidade reconhece os seus valores específicos e particulares e com os quais se identifica. A identificação e a especificação do património é, portanto, um processo relacionado com a selecção de valores.

Monumento é uma entidade identificada pelo seu valor e que forma um suporte da memória. Nele, a memória reconhece aspectos relevantes que guardam uma relação com actos e pensamentos humanos, associados ao curso da história e, até a um determinado momento, acessíveis a nós.

Autenticidade significa a soma de características substanciais, historicamente determinadas: do original até ao estado actual, como resultado das várias transformações que ocorreram no tempo.

Conservação é o conjunto de atitudes de uma comunidade dirigidas no sentido de fazer com que o seu património e os seus monumentos perdurem. A conservação é levada a cabo com respeito pelo significado da identidade do monumento e dos valores que lhe são associados.

Restauro é uma intervenção dirigida sobre um bem patrimonial, cujo objectivo é a conservação da sua autenticidade e a sua apropriação pela comunidade.

Projecto de restauro (...) é o processo através do qual a conservação do património edificado e da paisagem é levado a cabo.

1.2. DAS METODOLOGIAS (Arqueologia da Arquitetura: definição, conceitos e métodos)

Arqueologia da Arquitectura

1 – pesquisa documental2 – levantamento gráfico e fotográfico rigoroso3 – descrição (constituição de base de dados, com registo das diferentes unidades estratigráficas construtivas)4 – análise das relações estratigráficas e definição das actividades construtivas5 – determinação genérica das fases construtivas6 – cruzamento dos dados das estratigrafias de alçados, dos registos de eventuais escavações e da documentação escrita, para elaboração da interpretação da evolução arquitectónica do edificado (fases da história do edifício)7 – síntese histórica contextualizada

discurso explicativo em

História

projeto em Arquitetura

Conservação e Restauro

Projeto em Musealização e

Divulgação

fontes documentaishistoriografia levantamentos

leitura estratigráfica / análise sequência construtiva

modelos interpretados

Esquema simplificado dos procedimentos metodológicos em Arqueologia da Arquitectura

1.2. DAS METODOLOGIAS (Arqueologia da Arquitetura: definição, conceitos e métodos)

(identificação base)Nº identificação UETipo (sedimentar, construtiva, interface – escolha única)Descrição sumáriaInterpretaçãoCronologia (ano / século)Matriz de relação estratigráfica (UEs associadas): relações físicas (sobrepõe, sobreposta, preenche, preenchida, corta, cortada, apoia, apoiada - escolha múltipla); relações temporais (anterior, posterior, contemporânea - escolha múltipla); relações funcionais (igual, equivalente – escolha múltipla)Registos gráficos (plano, perfil, corte, alçado, secção)ObservaçõesData registo de campoNº identificação da Fase e da Acção Construtiva associadas

Via XVII

Servidor

Campo Gabinete

1.2. DAS METODOLOGIAS (Arqueologia da Arquitetura: definição, conceitos e métodos)

Mosteiro de Santo André de Rendufe, Amares, BragaExemplos

1.2. DAS METODOLOGIAS (Arqueologia da Arquitetura: definição, conceitos e métodos)

Exemplos Mosteiro de Santo André de Rendufe, Amares, Braga

1.2. DAS METODOLOGIAS (Arqueologia da Arquitetura: definição, conceitos e métodos)

Via XVIII

Via XVII

Rua dos Biscaínhos, Braga

1.2. DAS METODOLOGIAS (Arqueologia da Arquitetura: definição, conceitos e métodos)

Via XVIII

Via XVII

Rua dos Biscaínhos, Braga

1.2. DAS METODOLOGIAS (Arqueologia da Arquitetura: definição, conceitos e métodos)

Via XVII

Praça Velha, Braga

1.2. DAS METODOLOGIAS (Arqueologia da Arquitetura: definição, conceitos e métodos)

Praça Velha, Braga

1.2. DAS METODOLOGIAS (Arqueologia da Arquitetura e Arqueologia Urbana)

Arqueologia e as cidades do futuroEuropean code of good practice:"ARCHAEOLOGY AND THE URBAN P‘OJECTCouncil of Europe, 2000

The urban transition has been complete throughoutEurope for several decades. Urbanization and thegrowth of urban populations have profoundlytransformed the fabric of towns founded before theIndustrial Revolution. Taking different forms andproceeding at different rates in different places, thistransformation has been accompanied, almostinvariably, by wholesale and indiscriminatedest uctio of the estiges of the to s past.At a time when urban policies are increasingly beingrethought to correct past mistakes and stem the'urban crisis', and when those involved in shapingthe urban fabric are again focusing on historiccentres, it seems more vital than ever to acknowledgethe importance of the past in creating the town of thefuture.In order to prosper in the future, towns must continueto change and develop, as they have always done inthe past. This means that a balance must be struckbetween the desire to conserve the past and the needto renew for the future.

1.2. DAS METODOLOGIAS (Arqueologia da Arquitetura e Arqueologia Urbana)

European code of good practice:"ARCHAEOLOGY AND THE URBAN P‘OJECTCouncil of Europe, 2000

Os arqueólogos devem:

1 – Informar e avaliar2 – Presumir a preservação3 – Acrescentar valor4 – Considerar prazos e custos5 – Preservar vestígios 6 – Publicitar e exibir7 – Registar e recolher achados8 – Participar nos debates9 – Informar parceiros e média10 - Publicar

1.3. DAS PROBLEMÁTICAS (PRINCIPAIS Temas de Investigação)

arquitectura cristã

produções cerâmicas

fortificações

arquitectura e espaços monásticos

práticas funerárias

urbanismo

arte e arquitectura cristãs antigas

Graças a inúmeros trabalhos de escavação e reinterpretação de dados efectuados um pouco por toda a Península Ibérica, onde

se identificaram sequências estratigráficas complexas e significativos restos de edifícios de tipologias variadas,

beneficiamos hoje de uma nova leitura dos contextos artísticos e da evolução dos modelos arquitectónicos cristãos entre os

séculos V-VI e X-XI, relevando as novidades em torno da problemática da emergência e difusão do moçarabismo.

Sublinhe-se a identificação de modelos arquitectónicos diferentes que, servindo o culto cristão, parecem ter convivido

cronologicamente em distintas zonas do actual território português e espanhol.

1.3. DAS PROBLEMÁTICAS (PRINCIPAIS Temas de Investigação)

arquitectura e espaços monásticos

Esta é uma área que beneficiou da participação efectiva de arqueólogos nos projectos de estudo que acompanharam as intervenções arquitectónicas realizadas em vários mosteiros.Em Portugal realizaram-se vários projectos monográficos de investigação, destacando-se os resultados proporcionados pelos estudos dos Mosteiro de São Martinho de Tibães, Convento de Santa Clara-a-Velha e Mosteiro de São João de Tarouca e no ribat

da Arrifana.Para além das questões mais directamente relacionadas com os modelos arquitectónicos, como sejam a evolução construtiva, a organizaçãofuncional dos espaços e a identificação de diferentes estilos artísticos, os estudos de arqueologia monástica abordam também a questão do ordenamento do espaço e da conformação da paisagem.

1.3. DAS PROBLEMÁTICAS (PRINCIPAIS Temas de Investigação)

urbanismo

I po ta faze a a ueologia das cidades e ão a ueologia as cidades – o interesse da investigação do fenómeno urbano está na possibilidade que se oferece aos arqueólogos de questionar a longa duração do urbanismo e explicar as mudanças e permanências.Os últimos anos têm conhecido um especial desenvolvimento dos estudos arqueológicos das

cidades medievais destacando-se, em Portugal, as intervenções arqueológicas em Braga (o mais antigo e exemplar projecto de Arqueologia Urbana em Portugal, internacionalmente reconhecido) e, em Espanha, o estudo de Mérida.

1.3. DAS PROBLEMÁTICAS (PRINCIPAIS Temas de Investigação)

1 - Reflexões teóricas: é uma área muito pouco desenvolvida, a necessitar de contributos que sirvam para fixar a autonomia disciplinar da arqueologia medieval e para apontar os caminhos futuros da investigação da Idade Média portuguesa.2 – Historiografia: o volume de produção existente na área da arqueologia medieval, justifica o desenvolvimento de esforços no sentido de se construir um conhecimento histórico da disciplina, que sirva simultaneamente o reforço da autonomia da disciplina e o estímulo das reflexões teóricas em torno da problematização dos modelos interpretativos.3 - Refinamentos metodológicos: por via do desenvolvimento de novas tecnologias, especialmente na área das bases de dados relacionais, dos sistemas de informação geográfica e do desenho assistido por computador, deve esperar-se a ampliação da capacidade de recolha e análise de dados e, consequentemente, a definição de novas temáticas de estudo, 4 - Arqueologia das arquitecturas: através dos projectos integrados de intervenção nos monumentos arquitectónicos, promovidos pelas entidades da tutela, começa a consolidar-se a aplicação das metodologias arqueológicas ao estudo dos edifícios com valor histórico. A extensão destes estudos aos edifícios dos centros históricos das cidades constitui o actual desafio da disciplina.5 - Arqueologia urbana: o estudo das cidades antigas é uma das áreas privilegiadas da investigação histórica e arqueológica, acompanhando a crescente urbanização das sociedades actuais e a consequente exigência de identificação das memórias colectivas, especialmente conservadas nas diferentes expressões dos tecidos urbanos.6 - Arqueologia das paisagens: é uma área relativamente nova no nosso país, para a qual se perspectivam desenvolvimentos fecundos, especialmente por via da articulação com os projectos de estudo que incidem sobre o planeamento e ordenamento do território. 7 - Arqueologia das fortificações: embora tenha conhecido significativos e muito recentes progressos, continua a faltar um inventário geral das fortificações, que acompanhe as referências documentais de registos gráficos detalhados, a partir dos quais mais fundadamente se poderão propor interpretações da evolução dos modelos arquitectónicos das fortificações.8 - Produções cerâmicas: o aumento do número de escavações, com as consequentes maiores recolhas de espólio cerâmico, exigirá a implementação de projectos específicos de estudo de cerâmicas, os quais tenderão a estabelecer quadros tipológicos de expressão regional.9 - Ensino avançado: o ensino da arqueologia medieval, como área disciplinar especializada, começa a consolidar-se ao nível de mestrados, doutoramentos e pós-graduações, recaindo nas Universidades com licenciatura em Arqueologia uma especial responsabilidade nesta matéria.

1.3. DAS PROBLEMÁTICAS (áreas de desenvolvimento da arqueologia medieval em Portugal)

1

A diversidade dos quadros cronológicos e geográficos O contexto suévico e visigótico

Os séculos V, VI e VII correspondem ao período de domínio suévico e visigótico e constituem, para a generalidade dos estudiosos desta época, pese embora as suas diversas e por vezes antagónicas perspectivas, um período fulcral para a compreensão dos múltiplos aspectos que caracterizam, tanto o fim do domínio romano como o nascimento dos reinos cristãos altomedievais.

O primeiro quartel do século V testemunha a penetração dos povos germânicos nas províncias ocidentais do império romano. O saque de Roma, capital do império, pelo visigodo Alarico, em 410, deixa bem evidente como essa penetração foi efectiva e desarticuladora da máquina político-administrativa romana. Um ano antes, em 409, Alanos, Vândalos e Suevos tinham invadido a Hispania, para em 411 distribuírem entre si as suas províncias: os Vândalos fixaram-se na Galécia oriental, os Suevos na Galécia ocidental, os Alanos nas Cartaginense e Lusitânia e os Vândalos Silingos na Bética.

Sucedem-se depois uma série de episódios bélicos, opondo os diferentes povos germânicos entre si, às populações locais e aos exércitos romanos, episódios reveladores do processo conturbado de apropriação do poder no ocidente do império romano, e do qual acabaram por emergir duas forças principais - primeiro os Suevos e mais tarde os Visigodos.

Os Visigodos haviam entrado na Península Ibérica em 415 como aliados dos romanos, numa tentativa negociada destes de conservarem o controlo da Hispania e simultaneamente afastarem aqueles das proximidades de Roma. Como resultado, acabou por se fixar um primeiro Reino Visigodo na Narbonense (Sul da Gália), com capital em Tolosa (Toulouse).

Em 418, sob o comando do rei Vália, os Visigodos eliminam os Vândalos Silingos e empurram os Alanos para a Galécia, onde entram em conflito com os Suevos, que acabam por ser cercados nos Montes Nerbasos, em 419. O rei suevo Hermerico consegue o apoio das forças romanas que, sob o comando do “vicário” Maurocelo, combatem e vencem os Alanos, que acabam por sair da Península Ibérica e se fixam na Mauritânia em 419.

No segundo quartel do século V assiste-se, sobretudo, à afirmação do poder suevo na Galécia e às suas tentativas, frustradas, de estenderem o domínio às restantes províncias romanas. Conforme relata Idácio, em 429 o rei Heremigário saqueia Mérida. No ano seguinte, sob o comando do seu sucessor, Hermerico, os suevos devastam a Galécia e defrontam as populações locais que, refugiadas em povoados fortificados, conseguem negociar a paz. Episódios semelhantes repetem-se em 431.

Na arbitragem destes conflitos coube um papel fundamental a um influente membro da sociedade galaico-romana, o bispo de Chaves (Aquae Flaviae), de seu nome Idácio, o já acima referido autor da “Crónica”, que narra os acontecimentos do mundo ocidental entre os anos de 379 e 469. Idácio viveu com particular intensidade e preocupação, aliás manifestas nos seus relatos, a situação de crise que acompanhou a fixação dos suevos na Galécia.

Precisamente em 431, Idácio chefia uma embaixada à Gália, junto do “conde” romano Écio, para conseguir uma intervenção deste junto dos suevos. Como resultado, vem um emissário à Galécia, Censório, que repete a deslocação em 437, negociando nova paz.

2

Mais resguardados das turbulências viveram os presbíteros Paulo Orósio e Avito, originários de Braga (Bracara Augusta) e contemporâneos de Idácio, mas durante muitos anos exilados no Norte de África e no Próximo Oriente. Através dos seus escritos, parte dos quais se conservaram, é hoje possível conhecer episódios significativos da história da Galécia e do mundo ocidental no século V. Paulo Orósio, que foi discípulo de Santo Agostinho, é o autor da “História Contra os Pagãos”, uma espécie de História Universal, escrita depois do ano 416.

Em meados do século V os Suevos estão definitivamente instalados na Galécia, retomando então os seus esforços para alargar o domínio ao Sul peninsular. Entre 440 e 448 o rei Réquila ocupa Mérida, conquista Sevilha e devasta a Bética e a Cartaginense. O seu sucessor, Requiário, que se havia convertido ao catolicismo, num sinal claro de emulação dos padrões sócio-religiosos romanos, prossegue em 449 as pilhagens do Sul da Hispânia, participando ainda nos motins dos Bagaudas no vale do rio Ebro.

Os hispano-romanos reagiram às expedições suevas com o apoio de forças visigodas - em 456, o rei visigodo Teodorico II derrota os suevos próximo de Astorga (Asturica Augusta), saqueia Braga e acaba por aprisionar Requiário no Porto (Portucale), onde é executado. Segue-se uma guerra civil opondo facções suevas, reunificando-se o poder com Remismundo, em 465, que consegue negociar a paz com o rei visigodo Teodorico II.

Já no último quartel do século e na sequência do fim do Império Romano do Ocidente, decorrente da deposição do imperador Rómulo Augusto em 476, os visigodos, primeiro com Eurico e depois com Alarico II, começam a fixar-se, de modo significativo, na Hispânia. A partir da primeira década do século VI, na sequência da derrota infligida pelos francos na batalha de Vouillé, em 507, os visigodos assentam definitivamente na Península Ibérica, agora sob o protectorado de Teodorico, o rei dos Ostrogodos que governava em Ravenna desde 493.

Desde finais do século V até 550, as fontes são omissas relativamente ao que se passa na Galécia. Porém, admite-se, até essa data, a manutenção de uma certa estabilidade social, política e económica, enquadrada pela convivência, mais ou menos conseguida, entre as elites suevas e as galaico-romanas.

As principais cidades da Galécia romana, Braga, Lugo (Lucus Augusti) e Astorga, bem como importantes núcleos urbanos secundários, como Tuy (Tude), Orense (Auria) ou Chaves, continuaram povoados, mantendo um activo papel económico, expresso nos contactos com as restantes províncias hispânicas e mesmo com o Norte de África e com o Mediterrâneo oriental, como evidenciam as cerâmicas de importação, a manutenção da circulação monetária (com os reis suevos a cunhar moeda imitando as emissões imperiais romanas), as viagens de galaico-romanos à Palestina e Próximo Oriente, como a celebrada peregrinação de Egéria, ou as frequentes embaixadas de representantes políticos a Ravenna e à Gália.

Como dado comum à maioria dos elementos arqueológicos desta época, identificados um pouco por toda a Galécia, sobressai precisamente a sua vinculação a um universo cristão, maximamente evidenciado pela proliferação de temas decorativos de raiz cristã, como o “crísmon” ou o “cantharus”, presentes, por exemplo, nas jóias, em taças de vidro, na louça cerâmica ou em tampas sepulcrais com mosaico.

Assimilado também pelos suevos, o cristianismo foi, seguramente, um factor mobilizador da sociedade galaico-romana do século V, como evidenciam a perduração dos movimentos priscilianistas, de orientação monástica, ou a adopção temporária do credo ariano, a par da progressiva organização das dioceses que, desde as suas sedes monumentalizadas - com catedral, batistério, igreja cemiterial e

3

residência episcopal - enquadram vastas paróquias rurais onde começam a pontificar novas igrejas cristãs, construídas de raíz ou adaptadas de edifícios pré-existentes, como poderá ter acontecido com os templos pagãos que integrariam as inúmeras villae de fundação romana.

A topografia cristã antiga das cidades do Noroeste peninsular ainda é mal conhecida, por falta de estudos específicos. Porém, os indícios já conhecidos parecem abrir boas perspectivas para a investigação desta matéria. A edificação de templos cristãos sobre necrópoles romanas na periferia das cidades, muitos deles referidos como “de construção antiquíssima” nos primeiros documentos dos séculos IX e X, são bem o testemunho de um novo ordenamento urbano, que no caso dos grandes edifícios públicos romanos poderá ter passado pela sua desactivação progressiva, como parece ter acontecido com os teatros e anfiteatros, ou a sua adaptação a novas funcionalidades, como parece ter acontecido em Braga com o mercado da zona Norte, local onde se veio a fixar a catedral bracarense.

Os meados do século VI são, também, um tempo em que parecem convergir positivamente um conjunto de factores, que se traduzem no fortalecimento do reino suevo e, paralelamente, no aparecimento de contextos sociais, políticos e económicos favoráveis à actuação de personagens de grande dinamismo e cultura, capazes de conduzir a Galécia a um mais elevado patamar de desenvolvimento. Uma dessas personagens foi, reconhecidamente, Martinho de Dume, bispo de Braga.

No decurso do século VI e num âmbito geográfico mais alargado, assiste-se à afirmação do reino dos Ostrogodos na península itálica, na Gália emerge o reino Merovíngio, a partir de Constantinopla ensaia-se a reconstituição do império romano, de que o estabelecimento de uma província bizantina no Sul peninsular é a expressão mais ocidental e no centro da Hispânia, com sede em Toledo, consolida-se o reino Visigótico.

Os soberanos suevos dominam perfeitamente a geografia política em que se inserem, como evidenciam as frequentes embaixadas que fazem deslocar à corte franca, a Ravenna e à sede imperial romana, Constantinopla. É neste contexto que, cerca de 550, se verifica uma segunda e definitiva conversão dos suevos ao catolicismo, protagonizada pelo rei Charrarico, e que se regista a chegada de Martinho, bispo-abade do mosteiro de Dume e, pelo menos a partir de 569, bispo de Braga.

Falecido cerca de 580, S. Martinho de Dume é considerado o principal agente da difusão do cristianismo na Galécia e da sua aceitação por parte das populações rurais, bem como o mentor e protagonista da reorganização da Igreja no Noroeste peninsular, designadamente do desenho da nova malha territorial-administrativa que se fixa com a “Divisio Theodomiri = Divisão de Teodomiro” - documento vulgarmente designado por “Paroquial Suevo”.

Redigido já depois do ano 572, ano do II Concílio de Braga, o “Paroquial Suevo” lista 13 dioceses, distribuídas por duas províncias eclesiásticas: Braga, com as sufragâneas Dume, Porto, Coimbra, Lamego, Idanha e Viseu; Lugo, com as sufragâneas Tuy, Orense, Iria, Astorga e Britónia. Esta última diocese demarcou-se no extremo setentrional galego e deu satisfação, provavelmente, a uma comunidade de origem bretã, testemunhando a influência da cristandade céltica, relacionada com os movimentos monásticos da Irlanda e da Bretanha.

Em 585, na sequência do apoio suevo à rebelião de Hermenegildo, na Bética, o pai deste, o rei visigodo Leovigildo, atacou os Suevos, conquistou Braga e matou o soberano suevo. Na curta guerra que se seguiu, os Visigodos conseguiram uma clara supremacia militar, dominando as principais praças-fortes suevas e alargaram o seu domínio a quase toda a Península Ibérica, domínio completado em 625 com a

4

conquista e anexação da província bizantina do sul – exceptuam-se deste domínio a região setentrional vasco-cantábrica, que manteve sempre a sua autonomia.

Com a conversão de Recaredo ao catolicismo, em 587, logo institucionalizada no III Concílio de Toledo (588), resolvem-se os conflitos ariano-católicos e fixa-se uma aliança entre a Coroa e a Igreja, que se traduz num claro aumento do poder eclesiástico, com vínculos fortes à nobreza, e que encontra expressão na localização conjunta das capitais de província e sedes metropolitanas.

Nos reinados seguintes reaparecem e generalizam-se os conflitos entre a coroa e a nobreza, com esta a revelar já tendências feudalizantes, manifestas na criação de exércitos particulares. O poder da Igreja e da aristocracia reforça-se no segundo quartel do século VII, especialmente sob a influência de Isidoro de Sevilha, bispo a quem se atribui também grande protagonismo na afirmação da cultura de inspiração clássica.

Em meados da centúria assiste-se a uma certa recuperação do poder central monárquico, manifesto numa reorganização administrativa que fortalece o poder militar do estado, ao mesmo tempo que se actualiza o quadro legislativo com a publicação do Liber Judicum, em 654, por iniciativa do rei Recesvinto.

Nas décadas seguintes acentuam-se os conflitos entre a nobreza e a Igreja com a coroa, sucedem-se as guerras civis provocadas por contendas sucessórias, as cidades meridionais acusam uma progressiva decadência comercial por influência da expansão islâmica no norte africano, os pequenos proprietários são pressionados pelo alargamento dos grandes domínios senhoriais e aumenta a revolta junto das populações escravas. Este conjunto de factores, a que acresceu as fomes e as pestes, tornaram a sociedade visigoda extremamente frágil, explicando a rapidez do seu colapso face às primeiras investidas dos exércitos islâmicos em 711, aliás chamados para intervir numa das frequentes disputas pela coroa. Bibliografia Básica FONTES, Luís (2009) - O Período Suévico e Visigótico e o Papel da Igreja na Organização do Território, in (coord. Paulo Pereira) Minho. Traços de Identidade, Conselho Cultural da Universidade do Minho, Braga, p.272-295. FONTES, Luís et alli. (2010), L. Fontes, M. Martins, M. Ribeiro e H. Carvalho - A cidade de Braga e o seu território nos séculos V-VII. Atas do Congreso “Espacios Urbanos en el Occidente Mediterráneo, ss. VI-VIII”, Toledo (Set./Out. 2009). Toledo: Toletum Visigodo, p.91-98. MARQUES, A. H. de Olveira (coord.) (1993) – Nova História de Portugal, (volume II), Portugal. Das invasões germânicas à “reconquista”, Editorial Presença, Lisboa. MATTOSO, José (dir. de) (1992) - História de Portugal, (Primeiro Volume), Antes de Portugal, (coord. de José Mattoso), Círculo de Leitores, Lisboa SAYAS ABENGOCHEA, Juan J. e GARCÍA MORENO, Luis A. (1986) - Romanismo e Germanismo. El Despertar de los Pueblos Hispânicos (siglos IV-X), Historia de España, II (dir. de Tuñón de Lara), Barcelona.

2.1SUEVOS

2.2VISIGODOS

2.3E DEPOIS …

TEMA 2 – TERRITÓRIOS. O CONTEXTO SUÉVICO E VISIGÓTICOTEMA 2 – TERRITÓRIOS. O CONTEXTO SUÉVICO E VISIGÓTICO

Discussão do impacto provocado na sociedade hispano-romana pela imposição dos novos poderes políticos e ao papel desempenhado pela Igreja, designadamente na manutenção da organização administrativa territorial de tradição romana, manifesta na estrutura diocesana, assente na rede urbana pré-existente.

TEMA 2 – TERRITÓRIOS. O CONTEXTO SUÉVICO E VISIGÓTICO

TEMA 2 – TERRITÓRIOS. O CONTEXTO SUÉVICO E VISIGÓTICO

organização eclesiástica do território no período suevo-visigótico (LF, doc.19)

TEMA 2 – TERRITÓRIOS. O CONTEXTO SUÉVICO E VISIGÓTICO

Toponímia antroponímica genitiva anterior ao século VIII (seg. Fernandes 1990)

TEMA 2 – TERRITÓRIOS. O CONTEXTO SUÉVICO E VISIGÓTICO

Com base em dados de natureza arqueológica e documental e tendo por referência o Noroeste de Portugal, abordar-se-á a problemática das continuidades e mudanças das paisagens conformadas entre os séculos V e VIII, a partir de dois tópicos principais: estrutura de povoamento e arquiteturas (caraterísticas e significados).

2.1SUEVOS

2.2VISIGODOS

2.3E DEPOIS …

TEMA 2 – TERRITÓRIOS. O CONTEXTO SUÉVICO E VISIGÓTICOTEMA 3 – PAISAGENS. RESILIÊNCIA E INOVAÇÃO

3.1. O MODELO INTERPRETATIVO TRADICIONAL. CONTINUIDADES E MUDANÇAS NA TRANSIÇÃO DA ANTIGUIDADE TARDIA À ALTA IDADE MÉDIA.

u u a o eg o ou …… o sorvedouro da história

Modelo histo iog fi o fo jado so os o eitos de dest uiç o a a , e a e to est atégi o e e o uista , vei ulados pela histo iog afia espa hola e po tuguesa até 95

cristãosBÁRBAROS

mouros

Censual de Entre Limia et Ave, séc. XI Liber Fidei Sanctae Bracarensis Ecclesiae, sécs. XII-XIII

Liber Fidei Sanctae Bracarensis Ecclesiae e

censual Inter Lima et Ave (= Ce sual do Bispo D.

Ped o ), do u e tos do cartulário bracarense únicos

no género na Europa ocidental antes do século

XIII, são fixados como principais fontes

documentais para o estudo da história altomedieval da

região Norte de Portugal

Modelo tradicional sistemática e fundadamente rejeitado pelos trabalhos de A. Sampaio (1903), P. David (1947), J.A. Ferreira (1928), A.J. Costa (1959), J. Marques (1988) e J. Mattoso (1992)

Fastos Episcopaes da Igreja Primacial de Braga (Ferreira 1928)

Études Historiques de la Galice et le Portugal (David 1947)

3.2. O NOVO MODELO INTERPRETATIVO. CONTINUIDADES E MUDANÇAS NA TRANSIÇÃO DA ANTIGUIDADE TARDIA À ALTA IDADE MÉDIA

Os últimos 20 anos de investigação arqueológica do período suevo-visigótico proporcionaram resultados verdadeiramente notáveis, com base nos quais é hoje possível ensaiar uma aproximação mais compreensível desse período

toponímia antroponímica genitiva anterior ao século VIII(seg. Fernandes 1990)

Cartografia arqueológica para os séculos VI-VIII(seg. Fontes 2009a)

3.2. O NOVO MODELO INTERPRETATIVO. CONTINUIDADES E MUDANÇAS NA TRANSIÇÃO DA ANTIGUIDADE TARDIA À ALTA IDADE MÉDIA

SÍNTESE

Arquitectura cristã:

- Intensa actividade construtiva- Actualização de modelos arquitectónicos- Adaptação lo al de pad ões de o ativos l ssi os- Mudanças significativas a partir dos séculos XI-XII, com introdução do estilo românico

Morfologia urbana:- Alteração de áreas funcionais e deslocação dos e t os políti os e religiosos- Evoluç o o g i a das cidades a partir do séc. V- Actividade construtiva continuada- Dominância de soluções construtivas locais- Mudanças significativas a partir dos séculos IX-X

Ordenamento espaço rural:

- Inércia do ordenamento, com dominância do modelo de villas- Mudanças significativas a partir dos séculos X-XI, com proliferação de paróquias

3.2. O NOVO MODELO INTERPRETATIVO. CONTINUIDADES E MUDANÇAS NA TRANSIÇÃO DA ANTIGUIDADE TARDIA À ALTA IDADE MÉDIA

SÍNTESE

Novo modelo historiográfico reconhece uma efectiva ocupação durante o domínio suévico e visigótico e aceita a manutenção de parte significativa das populações nos séculos seguintes, até ao terceiro quartel do século IX num

quadro social e político de ausência de poderes estatais actuantes, e a partir do último terço do século IX já no contexto das estruturas de poder galaico-asturiano, leonês e portucalense.

3.2. O NOVO MODELO INTERPRETATIVO. CONTINUIDADES E MUDANÇAS NA TRANSIÇÃO DA ANTIGUIDADE TARDIA À ALTA IDADE MÉDIA

As periodizações históricas são meramente operativas. Para a Idade Média (séculos V a XV), os dados da arqueologia revelam mais continuidades do que rupturas, exigindo aos investigadores uma perspectiva de abordagem de longa duração, sem a qual não é possível apreender e explicar as transformações das paisagens e das sociedades humanas que as produziram.

A transição da Antiguidade Tardia à Alta Idade Média compreende-se melhor num quadro conceptual de complexidade e de diversidade. Propõe-se, assim, um modelo interpretativo no qual os séculos V a VIII aparecem como tempos de expressões diversas, de avanços e recuos, de isolamento e de abertura, de retração e de expansão: nos territórios como nas paisagens, nas sociedades como nas arquiteturas.

CONCLUSÕES

3.2. O NOVO MODELO INTERPRETATIVO. CONTINUIDADES E MUDANÇAS NA TRANSIÇÃO DA ANTIGUIDADE TARDIA À ALTA IDADE MÉDIA

A HISPÂNIA ENTRE A ANTIGUIDADE TARDIA E A ALTA IDADE MÉDIA.INTRODUÇÃO ARQUEOLÓGICA A UM PERÍODO DE TRANSIÇÃO Luís Fontes

Unidade de Arqueologia

Frontal do Túmulo dito de São Martinho de Dume, sécs. XI-XII

X Semana de Estudos Medievais / 04 a 06 de Junho, 2013Universidade Federal do Rio de JaneiroInstituto de História / Programa de Estudos Medievais