ISMAEL TAVERNARO FILHO · A palavra é uma das maiores armas que o ser humano possui, ela tanto...

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ISMAEL TAVERNARO FILHO Cerqueira César/SP 1ª Edição - 2018

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ISMAEL TAVERNARO FILHO

Cerqueira César/SP 1ª Edição - 2018

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APOIADORES E INCENTIVADORES CULTURAIS:

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Copyright©2018 by ISMAEL TAVERNARO FILHO

Capa & Diagramação: Enoque Ferreira Cardozo (Trupe serviços editoriais Freelancer -

http://trupeservicoseditoriais.blogspot.com.br/)

Impresso pelo Clube de Autores – 2018.

Copyright "©" 2018. Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução parcial ou total, por qualquer meio.

Lei Nº 9.610 de 19/02/1998 (Lei dos direitos autorais).

2018. Escrito e produzido no Brasil.

FILHO, Ismael Tavernaro. PENSAMENTOS FORA DA CAIXA/UMA FILOSOFIA DE BOTECO – 1ª ed – Cerqueira César/SP. Ed. CLUBE DE AUTORES, 2018. 165 p.: il.

ISBN: 978-85-85214-24-1

1. Ensaio. 2. Filosofia de vida. 3. Sabedoria.

LIVRO BRASILEIRO. I Título

FORMATO: A5 148x210

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AOS AMANTES DA SABEDORIA.

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Agradeço humildemente a todos os grandes mestres que se

arriscaram a pensar fora da caixa. Muitos foram decapitados, presos, crucificados, perseguidos, encarcerados e mortos por não serem compreendidos.

Este livro é uma singela homenagem a eles! em especial ao querido RAJNEESH CHANDRA MOHAN JAIN ou simplesmente OSHO, que me fez abrir os olhos para outra perspectiva da realidade.

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SUMÁRIO PREFÁCIO .......................................................................... 09 INTRODUÇÃO ................................................................... 13 PRIMEIRA NOITE ............................................................ 19 MESA SETE, ONDE TUDO COMEÇOU .................................. 20 O SEM DENTES, MANU-MANU E O PODER ....................... 25 AMOR CIRCENSE E MIOLOS ..................................................... 41 SEGUNDA NOITE ............................................................. 60 SÓCRATES - O PRIMO QUE SECOU A PIMENTEIRA ....... 61 TÁ NO INFERNO, ABRACE O CAPETA ................................. 78 O DESENVOLVIMENTO ESPIRITUAL E A CERVEJA EM PROMOÇÃO ................................................................................... 103 TERCEIRA NOITE..................................................................... 115 PARADIGMAS, PRIMATOLÂNDIA E UM PADRE EX- COMUNGADO .............................................................................. 116 ESTAMOS LOUCOS DA CABEÇA? ......................................... 138 QUARTA NOITE .............................................................. 147 CONFISSÕES .................................................................................. 148 A CHANTAGEM DO GABIROTO ........................................... 157

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PREFÁCIO

Eu sempre desconfiei das pessoas muito “certinhas”, aquelas do tipo sem vício nenhum, hiper equilibradas (pelo menos na superfície) ou que nunca explodem de raiva. Essa gente me faz acionar o botãozinho de FIQUE ALERTA PARCEIRO, QUE AÍ TEM! E, na maioria das vezes... é batata! Os dias se sucedem e de repente o(a) fulano(a) libera o que estava guardando a tempos. Revela a personalidade oculta que escondia: suas garrinhas.

Todo mundo possuí um vício, ou quem sabe é justamente o contrário - todo mundo é possuído por algum. Existem diversas formas de significações do termo vício. Pode ser uma fuga, um jeito de suprir o vazio emocional ou qualquer outra coisa que a organização mundial da saúde e a psicologia determinem. A questão não é essa! Para facilitar, vamos dizer que é um hábito repetitivo que degenera em algum nível (consciente ou inconsciente) o homem e a mulher. Trocando em miúdos: São válvulas de escape, das demasiadamente bizarras até as comuns, ordinárias. Formas que encontramos de amenizar a pressão dos acontecimentos da vida. Quase uma regra da espécie humana.

Se dúvida do que estou afirmando, basta uma rápida autoanálise.

Bebida alcoólica, jogos de cartas, comida, café, cigarro, falar mal da vida alheia, esportes radicais, musculação, remédios, redes sociais, sexo e tantas outras que poderíamos expor. Tudo pode se transformar em algo prejudicial!

Ah! Já ia me esquecendo: Até agora falei dos hábitos entendidos como negativos. Contudo, podemos direcionar os vários fatores que nos levaram a tal diagnóstico para coisas positivas, atividades construtivas, como por exemplo: Pintar quadros, inventar uma melodia ou escrever poesias. Eu mesmo

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sou um dependente do papel e da caneta. Anoto tudo que me vem à cabeça, não fico um dia longe do meu diário.

E por que estou dizendo essas coisas? Basicamente, para chegarmos em duas situações:

1. Quero te levar a um divã na Rua Augusta! Sim, exatamente isso. Eu e você participaremos de “sessões terapêuticas” que poderão desviar completamente os rumos da sua vida. E o pior de tudo, é que é dentro de um boteco (quer recinto mais adequado para costumes lesivos?). Por enquanto fique tranquilo: logo, logo entenderá melhor.

2. Conhecerá de perto o vício mais sutil e delicado que existe: A “Pandemia do Pensar”. Não reconhecemos essa loucura interna. Pensamos vinte e quatro horas por dia, até dormindo. Durante o sonho estamos lá: maquinando, tagarelando. É um processo autônomo que nem percebemos. Nos identificamos com os ruídos mentais. Enquanto abocanhamos um lanche, no banheiro escovando os dentes ou caminhando na rua, os pensamentos levam nossa atenção onde bem querem.

Se analisar imparcialmente, descobrirá que você não é tão diferente dos malucos que vagueiam pelas ruas. Toda cidade tem seus loucos! O que muda, é que eles exteriorizam a maluquice, e nós os “sensatos”, tomamos barbitúricos para dormir. Precisamos dos loucos para sentir-nos equilibrados, sãos.

Que ironia, não acha? Nas minhas considerações, gosto de contar pequenas

histórias e sugerir testes para que você mesmo tire suas próprias conclusões. O livro “PENSAMENTOS FORA DA CAIXA” está cheio disso. Acredito que experiências vivenciadas em primeira pessoa são essenciais para compreendermos melhor. Então vamos lá!

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– Sente-se em uma posição confortável, feche os olhos e observe os pensamentos fluírem. É como se estivesse na varanda de um prédio, no décimo andar. Vendo de cima os carros transitarem, o movimento dos alunos indo para a escola, passarinhos voando em zigue-zague, o som das coisas ao redor e você na plateia assistindo a um legítimo show da mente. Isso é o que chamamos de meditação aqui no ocidente.

Com bastante cuidado vai reparar que os pensamentos são “organismos” que se deslocam independentemente. Surgem de algum lugar misterioso e vão embora sabe-se lá para onde. Do alto você prova essa agitação, e é incontrolável

Abordaremos aqui esse vício. Pensamentos não convencionais, abstrações que precisam de uma certa limpeza no sentido de juízos formados, ideias pré-estabelecidas, valores, conceitos, tradições e outras limitações que nos podam as asas.

Há um conto no Zen Budismo que deixa bem claro sobre o que estou me referindo, e ele diz assim:

No Japão da era Meiji viveu um mestre chamado Nan-i. Ele influenciou diversos jovens da época pela sua grande sabedoria. Em certa ocasião, um professor universitário muito interessado na filosofia Zen e na fama daquele ancião resolveu conhecê-lo de perto.

O professor tinha muitas ideias e questionamentos já acentuados, não parava de falar um só minuto. Ele não deixava espaço para aprender. Todas as suas convicções o incapacitavam de ouvir. O mestre, percebendo a situação, ofereceu ao barulhento uma xícara de chá. Lentamente Nan-in preparou o fogo, separou as ervas e aguardou paciente a ebulição acontecer. Do outro lado, os blá-blá-blás não tinham arremate...

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Quando a bebida estava pronta, o sábio encheu completamente a xícara do hóspede até derramar em toda a roupa:

– Você não percebe? Não cabe mais nada aqui dentro, nem uma gota sequer. Falou o professou.

Então o velho disse:

– Do mesmo modo que está a xicara, está o senhor! Cheio de opiniões e julgamentos prévios. Assim, como posso lhe ensinar a arte Zen? Como poderá absorver o espírito milenar se está tudo ocupado aí dentro?

Entendeu a mensagem do velho? Se não esvaziarmos nossa xícara - ou se preferir, nossa

tulipa, continuaremos fantoches nas mãos de ídolos e de fantasias. Não sejamos professores ou professoras durante a leitura...

Vamos ser alunos(as), crianças sem luz, sem ideologias, sem formalidades.

Serão quatro capítulos eletrizantes, cada um deles corresponde a uma noite de consulta. Dialogaremos com um bando de pacientes neuróticos, depressivos, coléricos, que juntos irão mostrar o outro lado da moeda. O que realmente acontece nos bastidores. Vamos experienciar momentos de pura agonia, mas também de alforria. Sentaremos frente a frente com o desalento de pessoas que buscam no mundão alguma saída. Outras vezes, não terá outro jeito se não rir da desgraça alheia.

Peço a você que deixe suas conclusões para trás. Somente esvazie a bolsa. Carregamos muito peso à toa, sem necessidade. Talvez encontre a resposta para o seu próprio drama, ou ainda enxergue coisas que mudem sua forma de ver a vida.

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INTRODUÇÃO

Há poucas semanas atrás concluí a leitura de uma obra chamada “A ARTE DE TER RAZÃO” de Arthur Schoupenhauer (filósofo alemão do século XIX). Basicamente, é um livro que apresenta trinta e oito estratégias sobre a arte de vencer o oponente num debate. O autor não se preocupa com os meios que irá recorrer e nem com a premissa de valor (VERDADE) - ele utiliza da razão para literalmente derrotar o antagonista.

A palavra é uma das maiores armas que o ser humano possui, ela tanto pode criar poesias belíssimas, como também pode destruir milhares de vidas em um holocausto (como foi a Segunda Guerra Mundial). O intuito de pensar fora da caixa não é sair vitorioso de forma alguma, mas sim conversarmos honestamente sobre assuntos que muitas vezes só abordamos depois de beber quatro ou cinco copos de vodka.

Existem diferenças muito significativas entre as palavras discussão, debate e diálogo. Geralmente, usamos esses termos como sinônimos sem perceber as nuanças que cada um tem.

Na discussão, ousamos quebrar o assunto em partes menores para analisar minuciosamente cada uma delas, até mesmo a palavra percussão tem o prefixo “cuss”, que significa quebrar ou afastar. Nesse sentido, é o tipo de conversa em que os indivíduos não se interessam exclusivamente em finalizar o problema ou chegar a uma única conclusão, eles querem fracionar o embaraço. Isso é bem comum na filosofia.

Muitas vezes, discutimos por horas e não chegamos a lugar nenhum - outras vezes começamos pensando de um jeito e terminamos pensando totalmente diferente, ou seja, não importa literalmente o fim - é o trajeto, a caminhada, a busca pela verdade que tem a magnitude. Em suma, é o oposto das religiões dogmáticas que estruturam seus fundamentos no medo.

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O Debate, por sua vez é a conversa que tem um único objetivo: Derrotar o oponente. Não importa se o que digo é equivocado, ofensivo ou hipócrita: Dane-se! O que vale é provar que você está errado e eu estou certo. Para mim é uma grande bobagem. Assisto constantemente falas de cunho doutrinário, partidário e sabe de uma coisa? Acho uma grande merda e perda de tempo os debates.

Esse livro está mais para um diálogo, uma conversa daquelas que você tem no final da noite de sexta-feira em um bar de esquina, após trabalhar pra caramba a semana inteira, ralando feito um alucinado(a) quase sem descansar por que realmente precisava de uma grana extra no salário.

Consegue imaginar uma noite assim? Já passou por algo semelhante?

Mas calma aí, que ainda não terminei... Imagine tudo isso, porém acrescente no mesmo balcão um

indiano místico, completamente embriagado atendendo outros fulanos tão bêbados quanto ele em um divã improvisado.

Então... a ideia é essa. Transportarei você para uma cadeira ao meu lado (e se quiser, ainda pago uma rodada de cerveja). Uma espécie de catarse psíquica entre amigos. É meio raro acontecer um diálogo assim. Acredito que você nunca ouviu histórias iguais às que vou contar. No meio de um cenário peculiar sairão reflexões que jamais cogitei. Pensamentos literalmente fora da caixa. Talvez se admire o quão semelhantes as pessoas sejam no mais íntimo.

Vai conhecer os motivos pelos quais um ricaço abandona tudo e foge com um circo deplorável, conhecerá também Boquinha (o político que não ria), a inveja do primo Sócrates e muitos outros relatos absurdos. Nosso vício de pensar chegará aos extremos durante as quatro noitadas de terapia em grupo.

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Enfim... Antes de darmos início a essa jornada surreal, quero primeiramente alinhar umas coisas com você, tudo bem?

Para que a leitura seja mais fluída e espontânea, é indispensável que não se aferre ao vocábulo “super acadêmico”, pois lembre-se: estamos entre amigos e num botequim, beleza?

Em segundo lugar: Não leve todas as palavras mencionadas no seu sentido literal, ao pé da letra. A linguagem divide as coisas e as palavras simbolizam conceitos, onde eu não vou gastar meus poucos neurônios demonstrando o que cada termo quer dizer - levaria muitas horas e energia. Dois exemplos, só para que você entenda:

“A garrafa está em cima da mesa”. Nessa pequena frase teríamos que analisar juntos o que

cada símbolo implica. O conceito de “garrafa”, do verbo “está”, o conceito de “mesa”, e assim por diante. O significado das palavras são convenções estabelecidas por nós. Você não irá encontrar um dicionário escrito por um Ser Supremo (como diria meu pai). Não existe! São nossas convenções. Talvez eu use alguma palavra que tenha significados totalmente diferentes do que você acredita ter, ou ainda, que me remetam a determinadas experiências que para você não tenham sentido nenhum.

Exemplo dois:

– Nossa! Como você está bonito(a) hoje.

Aposto que você já falou isso para alguém tentando elogiar e acabou se ferrando, ouvindo a seguinte frase:

– Quer dizer que nos outros dias eu não estava bonito(a)?

Agora entende como a linguagem é extremamente complexa e reduz muito o que queremos dizer? Faz parte da natureza dela esse tipo de enrosco.

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Só queríamos fazer um elogio, poxa vida. Não queríamos insinuar que nos outros dias a pessoa estava feia. Nossa linguagem é falha, subentende coisas que não queremos articular.

Claro que existem palavras mais adequadas para esclarecer certas coisas que outras. Então, para evitar qualquer tipo de abacaxi semântico, peço que compreenda o conceito da palavra no contexto em que está inserida.

Tranquilo até aqui? Legal... Em alguns fragmentos, vai se deparar com esse símbolo

aqui: Ele também é uma linguagem como vimos anteriormente:

representa a vigésima primeira letra do alfabeto Grego, o “PHI”, ou no sistema numérico deles, vale quinhentos. Mas entre nós significará o momento de filosofar. Àquela hora em que você para completamente a leitura e raciocina sobre o que foi dito – ou, se preferir... pensa um cadinho fora do senso comum. Isso é filosofia! Ela surgiu dessa forma: PENSAR COM A PRÓPRIA CABEÇA. Talvez enxergue como um pleonasmo. Mas garanto a você, até agora não pensamos com a própria cabeça. Fomos simplesmente papagaios, gravadores, repetidores de conceitos vindos de todo lugar.

E por último e não menos importante, são as citações e referências. No decorrer dos capítulos irá encontrar frases originais ou juízos de pensadores onde, além de eu mencionar o nome do sujeito, país de origem e século, ainda (quando lembrar) avisarei de que obra foi retirado. Assim, caso ambicione conhecer um pouco mais a fundo o autor ou a obra, estará tudo facinho, facinho. A única coisa que deixarei sob sua responsabilidade, é buscar o significado de algumas expressões e nomes que talvez você não conheça. E por que farei isso?

Acho que o estudo só ocorre quando a pessoa tem espirito de pesquisador, de cientista. Isso quer dizer, tem interesse em

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desvendar o “mistério”. Aí aprendemos de verdade, por conta própria. Por nós mesmos.

Immanuel Kant (filósofo alemão, 1724 -1804) responde a uma questão posta pela academia de ciência em Berlin sobre: “O QUE É ESCLARECIMENTO?”. No texto ele fala da menoridade, que é o agente pelo qual incentivo você a buscar o conhecimento. Ainda somos infantis, acostumados a receber tudo de mãos beijadas, somos preguiçosos e acomodados. Talvez por isso não demos conta da liberdade. Devemos nos servir da própria razão, levantar nosso próprio conhecimento para não ruir nas armadilhas da subjugação e/ou condicionamento.

“Sapere aude” – Ouse saber! Toda palavra no livro tem um motivo de estar lá.

Descubra qual é esse fundamento, o que quero dizer, pois o resto virá como acréscimo.

Bom, estamos alinhados? Assim sendo, partiu primeira noite.

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PRIMEIRA NOITE

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MESA SETE, ONDE TUDO COMEÇOU

Nunca sei exatamente como iniciar um livro. Portanto,

usarei como referência os encanecidos contos de fada. O jeito antigo e meigo de se fazer.

Era uma vez... na acalorada rua de nome Augusta havia um boteco.

Pode ser que o leitor tenha conhecido muitos estabelecimentos “recreativos” com essa denominação. No entanto, garanto a você que jamais pisou em um lugar assim.

Bares e templos surgem a cada esquina. Pode reparar, é espantoso!

Parceria como essa está para nascer. Dispensa qualquer tipo de lapidação. Na biologia, o termo usado para as associações entre duas espécies que resulta em vantagens mútuas é simbiose.

Sim, uma bela e lucrativa simbiose. Um só está de pé devido ao outro. O que seriam dos templos sem os “pecadores”, os viciados, sem os desviados e corrompidos? Nada!

E o que seriam dos pobres botequins sem as algemas religiosas para reprimi-los? Nada!

Por favor, não me leve a mal, mas é engraçado. Geralmente os dois comércios estão bem próximo, um do ladinho do outro. As vezes até na mesma calçada, ou mesmo cara a cara.

Um é a casa de Deus e o outro a morada do tinhoso.

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São duas empresas que revezam a clientela. Preste atenção nas histórias da maioria dos frequentadores. O dito cujo faz um monte de cagadas, bebe que nem um gambá, arranja confusão, rouba, trafica, mata, estupra e depois se converte em algum templo.

Não quero entrar na valia de que todos merecem uma chance, ou dos motivos socioeconômicos que levaram o fulano a ser criminoso. Não, não siga por aí! Deixe essas premissas para os sociólogos, assistentes sociais, antropólogos e etecetera.

Até por que, acredito na honestidade de alguns em se tornarem melhores, ou na própria redenção gerada pela fé.

Então vamos focar nas válvulas de escape! Só mencionei para contextualizar o argumento.

Os indivíduos querem algo para preencher o oco no peito, carecem de um sentido existencial, precisam ser amados e compreendidos. Nós todos temos medo da morte. Medo de não existir mais quando o último suspiro encher os pulmões de ar. Temos apetites de todas as qualidades que você possa imagina e conflitos de todos gêneros.

Esses aí somos nós! Agora, raciocine comigo. Que ser humano aguenta tanta

pressão? Hora fugimos para um lado (templos), hora para outro

(botecos). E desse jeito estamos tocando o barco a milênios. Convivi minha infância inteira com essa situação. Meu pai,

homem labutador, bruto, mas de coração enorme sempre foi de dar umas bebericadas na cachaça. Trabalhava de sol a sol para quando chegasse na sexta-feira, expurgar merecidamente a tensão num copo americano.

Me lembrei de um texto escrito por Veronica A. Shoffstall (poeta americana século XX) chamado “O MENESTREL” que

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foi uma tradução corrompida e distorcida do poema “Afleter a While”. Tem uma parte que diz:

“Aprende que há mais dos seus pais em você do que suponha” A poesia inteira é linda, todavia, esse fragmento... Retornemos ao assunto. Eu estava falando do meu velho,

certo? Agora mamãe: Mulher extremamente zelosa com a família, digna e companheira. Ela por sua vez, é uma legitima religiosa (no sentido de frequentadora de missas). Encontrou na igreja (e tudo o que ela representa) um apoio, uma muleta, um jeito de se fortificar ante a realidade.

Vamos deixar para falar de Deus logo, logo - não se precipite. Por enquanto, ficaremos com o boteco e os templos.

Enfim, mamãe e papai são um exemplo claro desse vinculo. Tanto é que ainda permanecem juntos. Bem ou mal, um é completamente dependente do outro.

O boteco da Rua Augusta! Sabe por qual razão afirmei que você nunca viu um local

como esse? Porque nele tinha um sofá onde neuróticos se consultavam. Simples! Ou já se deparou com um bar – clínica – da – psique? Acho que não.

Tinha um espaço pequeno, deveria ser mais ou menos uns cento e vinte metros quadrados de área construída, talvez um pouco maior. O balcão de madeira rústica dava um ar de taverna ao ambiente. A luz provinha de lampiões espalhados pelo recinto, alguns quadros estranhos tampavam os furos nas paredes. Arrisco

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um palpite sobre o dono. Descendente de Italiano! Com sotaque romântico e portador de um nariz avantajado, fazia jus à bandeira que usava no avental.

Conheço bem o semblante dessa raça “maledeta”. A família do lado de papai é toda Italiana. Meus avós vieram de uma colônia chamada Trento. Eles sentem um grande orgulho de serem filhos de imigrantes europeus.

De verdade – Nunca liguei para isso. Uma bobagem! Tanto faz o lugar de onde viemos, o sobrenome que carregamos ou nossa arvore genealógica.

Nada disso fez de mim o que sou, pode acreditar. Desculpe amigo leitor, não me aguentei. Isso já estava

engasgado faz tempo. Voltemos ao dono do lugar... Atrás dele inúmeras prateleiras exibindo o estoque

selecionado de biritas. Um grande barril de carvalho enfeitava o centro do salão junto à decrépita vitrola sonata.

No lado esquerdo, uma estátua de urso indicava o caminho do banheiro. O chão era parte de taco enseirado e parte mosaico. Cadeiras de tijolo revestidas com um estofado marrom. Encostado no bistrô da entrada, o único garçom fumava seu charuto barato.

E claro, não poderia faltar a cereja do bolo... Localizado no fundo do estabelecimento e reservado para

os mais chegados, estava o arcaico divã da Rua Augusta! O nosso reduto das próximas quatro noites de terapia, caro leitor.

Enrico (o marajá Italiano) garante que a raridade foi do próprio Sigmund Freud (médico neurologista criador da psicanálise, nascido em Freiberg, que na época pertencia ao império Austríaco, 1856-1939). Disse que seu estimado avô que era também psicanalista o adquiriu num leilão fora do país. Não posso refutar o garbo que tinha a mobília. Nada lá chamava mais atenção do que ela. Nem o Saxofone pendurado na janela, nem o

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turbante aveludado indiano ou as cobras corais naufragadas em garrafas de whisky. Nada era tão expressivo.

Ok, já estamos devidamente apresentados e familiarizados ao lugar, não é? Então vamos nos acomodar na mesa sete, aquela próxima ao balcão.

– Por gentileza, uma cerveja e dois copos!

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O SEM DENTES, MANU-MANU E O PODER

Sabe aquele tipo de momento onde pegamos o elevador

com alguém estranho, ou mesmo um vizinho do andar de baixo que você tem pouco contato? Pois é, situações como essa me fazem extremamente desajeitado. Geralmente eu pego o celular e fico vendo qualquer bobagem na internet. Outro macete bom é simular empolgação com a rádio tocando no fone de ouvido. Às vezes me acho um antissocial, mas fazer o que? Se puxar assunto é complicado e o silêncio me incomoda.

Hoje estamos aqui para dialogar, amigo leitor - não quero um clima de velório. Então, fale um pouco sobre seus gostos: onde trabalha, quais são seus objetivos, se tem sonhos, ou melhor..., fale quem é você?

Perguntinha elementar, porém difícil de responder, não acha?

Geralmente nos apresentamos feito um currículo ambulante. Dizemos algumas qualidades, uns defeitinhos aqui e ali, nossa profissão e outras superficialidades medíocres.

Mas será que isso tudo é realmente você? No final do século XIX e começo do século XX, existiu

um cidadão no sul da Índia chamado Sri Râmana Mahârshi. O cara arrastou multidões com seus ensinamentos, era um mestre do

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Advaita Vedanta (uma das três escolas de Vedanta do pensamento monista hindu).

Alguns homens que se dizem sucessores de Râmana, falam que as pessoas que buscavam sua luz, eram na maioria das vezes interrogadas com o seguinte questionamento:

“Quem é você?”

Agora me fala leitor, quem é você? Essa interrogação é feita desde os pensadores da Grécia antiga conhecidos como naturalistas ou também pré-

socráticos - contudo, eu não gosto muito de usar o termo, pois alguns dos intelectuais vieram depois do próprio referencial de divisão: Sócrates (filósofo de Atenas, 470 a.C. - 399 a.C.). Como é o caso de Demócrito (filósofo de Abdera, 460 a.C. - 370 a.C.), que além de ser um erro no calendário dos eventos é também um equívoco do ponto de vista filosófico, pois a maioria de suas obras tratou basicamente da ética e não da physis (substância fundamental).

Uma observação rápida acerca da cronologia: Na linda do tempo, o nascimento de Jesus separou os acontecimentos entre a.C. (antes de Cristo) e d.C. (depois de cristo) - ele é o marco zero da História. Por isso que Demócrito deveria ser cronologicamente um pós-socrático (que veio depois de Sócrates) e não o contrário.

Talvez os filósofos da época não fizeram exatamente a pergunta: Quem é você? Mas no cerne, advém da mesma raiz.

O que os uniu foi a ânsia de buscar o “arché” das coisas (o princípio). Queriam compreender a natureza do mundo, a origem do universo, do que tudo é formado, a sua composição, de que bulhufas somos feitos? Em resumo: quem verdadeiramente somos no íntimo da matéria?

Houve muita gente tentando responder...

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Quer ver uns exemplos? Já deve ter escutado o nome Tales nascido na colônia de

Mileto que é hoje a atual Turquia (624 a.C. - 558 a.C.). Então, o cara é considerado uns dos primeiros a raciocinar logicamente sobre o universo. Ele deixou de lado a cosmogonia (narrativa mitológica) para filosofar.

PARADINHA RÁPIDA: Só para que você entenda o contexto. Naquele momento da história grega, várias perguntas que entendemos hoje como existenciais ou ainda, o motivo pelo qual acontece certos fenômenos da natureza, já eram feitas.

De onde viemos? Para onde vamos? Por que da chuva forte? Como surgiu o universo? Por que sofremos?

No entanto, o pessoal de lá respondia tudo com histórias mitológicas.

Um exemplo é de como foi criado o homem para eles: Epimeteu foi o titã que deu o sopro de vida para todos os seres do planeta. Quando ele fez o homem, não sabia qual atributo daria a essas criaturas, pois deu características especificas para cada ser. Então, teve a grande ideia de procurar seu irmão – o titã Prometeu (aquele que vê o futuro). Talvez seja daí que derivou a palavra promessa, desse sujeito com nome esquisito..., mas vou deixar para você pesquisar, leitor.

Bom, Prometeu não deixou seu maninho na mão, foi lá e roubou de Hélio (Deus Sol) o fogo divino, que nada mais é que a representação da sabedoria humana, da nossa inteligência.

Vou parar por aqui. Caso você deseje saber como terminou o rolo entre deuses humanos e titãs, eu sugiro dois poetas do século VII e VIII a.C. que marcaram nome na antiguidade:

Hesíodo com a obra “Teogonia” e Homero com as obras “Odisseia” e “Ilíada”.

Sobre Tales – Ele garantia de pé junto que todas as coisas eram provenientes do elemento água, observou que tudo na

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ausência dela morria. Logo, seria a água a fonte da vida. Tales chegou a afirmar que a terra flutuava sobre um tipo de disco de água a partir do qual tudo surgia.

Nesse sentido, poderíamos deduzir que você é literalmente um aglomerado molecular de H²O.

Ainda no grupinho monista de Mileto, contamos com as participações de ninguém menos que Anaximandro (filósofo de Mileto e discípulo de Tales, 610 a.C. – 546 a.C.) e Anaxímenes (filósofo de Mileto, 588 a.C. – 524 a.C.). Esse último dizia que tudo que há no mundo é resultado da rarefação ou da condensação do ar. Não exatamente o que entendemos por ar, mas uma espécie de vapor, de nevoa densa. Também nas redondezas se falava do grande Parmênides de Eleia (filósofo Grego, 530 a.C. – 460 a.C.) e do Heráclito de Éfeso (filósofo Grego, (535 a.C. – 475 a.C.) - o segundo, particularmente é o filósofo da época que por quem mais tenho admiração. Era chamado de “O OBSCURO”, dizia ele que o fogo é o cerne ontológico do espirito humano, princípio eterno que causa a mudança e concebe Deus como harmonia. Se ainda estivesse vivo, responderia à sua pergunta mais ou menos assim:

– Você é e não é ao mesmo tempo, leitor. É o devir, o

processo abrasivo da impermanência, é uma pessoa quando entra no rio e outra totalmente diferente quando sai.

De momento encerramos. Mais adiante retornarei para

outros pensadores fora da caixa. Ou não? Até porque, como diria Heráclito: Será outro que estará escrevendo e não o mesmo “EU” de agora.

Sujeito um pouco confuso, não acha? Antes de relatar um causo que sucedeu comigo, gostaria só

de fazer uma ressalva: Muitos dos pensadores citados não têm uma

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data especifica de nascimento e morte. São números aproximados – Que, devido à carência de material deixado por eles ou então, pelas obras terem sido queimadas, perdidas, abandonadas, fica difícil de saber exatamente essas datas.

Mas vamos lá... Um dia desses, participei de um processo seletivo em

grupo: estávamos em treze candidatos disputando uma única vaga de liderança. Nos organizamos em círculo e logo no começo da dinâmica, solicitaram que eu ficasse em pé e que me dirigisse ao centro da roda:

– Por gentileza senhor Ismael, pegue este livro e só abra na

página demarcada quando eu falar. Disse a mulher do RH. Segurei o caderninho e ela continuou: – Agora quero que abra onde foi mostrado. Dentro

contém a imagem de uma pessoa. Gostaríamos que você nos falasse um pouco sobre ela.

Deduzi ser um personagem histórico, algum político ou

um artista conhecido. Mas quando olhei, havia um espelho dentro das páginas. Uma pegadinha! O intuito foi para dizer sobre mim mesmo. Quem era o sujeito refletido no espelho? Igual à pergunta que fiz a você no começo.

E adivinhe, amigo leitor? Travei no lugar! Fiquei sem reação, não sabia o que dizer.

Na maioria das vezes consideramos o externo, julgamos as coisas do lado de fora, o estrangeiro, nunca nós mesmos. Se autoavaliar resulta em uma sensação de alguém nos encurralando, é como se ocultássemos um monte de parafernálias que não queremos revelar a ninguém.

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Os antigos dizem que as pessoas não conseguem se olhar nos olhos mais que um minuto. Piscamos, abaixamos a cabeça, mudamos a direção da vista, tentamos escapar para não sermos pegos de calça curta.

Você pode fazer um teste se quiser. Repare nas suas atitudes e na maneira das pessoas com quem conversa. É bem desconcertante! Interpretamos instintivamente como algo ofensivo, perigoso, ameaçador. Talvez seja exatamente assim - quando nos afrontam estamos à mercê de acharem nossa verdadeira identidade, pois os olhos são o reflexo da alma.

Só dois fatos me provam o contrário: O olhar de uma criança ou o de dois amantes. Eles têm uma natureza em comum - Ambos amam! O miúdo está apaixonado pela vida e os amantes estão apaixonados um pelo outro, tornam-se crianças novamente (só reparar nas brincadeiras que fazem entre eles). A beleza passa a ser vista em qualquer canto, em qualquer lugar. Eles estão amando! Perceba a semelhança em alguém apaixonado, se comporta feito menino(a). Se torna inconsequente, pois tudo é possível no mundo das crianças e dos amantes. Tudo!

No salão do boteco entra um homem baixinho e

cambaleando: – Me traíram, me traíram! Bando de ladrões, ingratos... – Ajudei cada um deles, e olhe só. Não sobrou nenhum

dente na minha boca! Traidores!

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O garçom, assistindo a mixórdia, foi ligeiro acalmar o neurótico:

– Respire Boquinha, respire... O que houve? Por que está

com a gengiva toda ensanguentada? Deu a entender que o sujeito era conhecido do lugar. Ele

estava nervoso, zangado e totalmente bêbado. Não sabíamos da sua história. Parecia um advogado ou

talvez um evangélico nos dias de culto. Ele vestia terno de linho chumbo, uma camisa branca manchada de vinho (deduzi pela garrafa de Concha y Toro que empunhava), sapatos bem lustrados, gravata azul e um relógio espalhafatoso.

Enquanto o garçom abrandava a pobre criatura, um outro fulano tão estranho quanto, sai do balcão principal e vem até nossa mesa:

– Camaradas, acredito que seja a primeira vez que os dois

entraram aqui no Divã? Perguntou para nós dois, leitor. Como o lugar era pouco iluminado, não dava para enxergar

bem o rosto da pessoa. Ele se abaixou e fez um sinal de cumprimento para nós.

Eu, sem entender nada, respondi a ele: – Sim! Nunca viemos aqui. É a primeira e última vez, com

certeza. – Relaxem amigos, não tirem conclusões precipitadas. Meu

nome é Manu-Manu e vou explicar tudo. Respondeu o fulano. Então, quando ele se levantou, reconheci na hora de quem

se era aquela voz ébria. Era o homem de turbante. Já havia me

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esquecido! Estávamos longe nas ideias e prestando a atenção no rebuliço do desdentado que nem me lembrei.

A melhor forma de descrevê-lo é assim: Homem magro de pele marrom envolto num lençol laranja, aparentava ter uns 30 anos. Barba rala e um turbante na cabeça. Pronto, exatamente desta forma!

Agora imagine o indiano (supondo pelas características físicas e roupa) e também a cena do Boquinha. Arrisque um palpite dos motivos que fizeram o baixote perder a dentição inteira e por que cargas d’agua ele amaldiçoava os tais delatores.

Você conhece alguém com um apelido desses? Sempre temos um amigo com um “nome carinhoso”. Pode ser boca, bocão, boqueira, existem muitas derivações e histórias para uma pessoa receber um cognome assim, mas causo igual ao dele é raro.

O indiano pegou nas mãos de boquinha, o levou até o divã e disse:

– Camaradas... Antes de avançarmos, pedirei mais três

cervejas para nós. Vamos precisar, acreditem. Pronto leitor! Já não éramos só nós dois na mesa, agora

tínhamos como companhia um indiano terapeuta e um banguela precisando ser ouvido. O quarteto da Rua Augusta!

Manu-Manu acomodou o “paciente” e sentou-se ao lado: – Boquinha, suponho que roubaram sua bela dentição,

correto? O baixinho imerso em lagrimas murmurou: – Sim! Aqueles traidores, delatores... arrancaram tudo de

mim.

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A situação era confusa, não dava para entender os motivos de alguém roubar caninos, pré-molares, molares e outros dentes que não recordo as terminologias.

O indiano, vendo nosso semblante de perturbado disse: – Querido Boca, permita-me esclarecer aos novos amigos

toda a quizomba. Antes de começar a narrativa, em um só trago enxugou o

copo de cerveja, limpou a espuma do bigode ralo e prosseguiu: – No pequeno município de Cerqueira César (interior de

São Paulo) cresceu Pedro Bartolomeu da Silva. O famoso Boquinha! Desde novinho ele queria ser rei. Assistia todos os filmes em que houvessem impérios, cavaleiros e servos - o tipo de coisa da idade média (aliás, falaremos desse período na história da filosofia daqui a pouquinho).

– Pedro sonhava com um castelo onde todos escutassem sua liderança. Os anos passaram e infelizmente ele não se tornou majestade, não teve súditos e nem uma coroa de ouro. Todavia, chegou “bem próximo” da sua ficção... Aos vinte e um anos de idade sugeriram (como brincadeira de mal gosto) que ele se candidatasse para vereador da cidadela. Muita gente o conhecia devido à sua quimera imperialista. E por uma ironia do destino, ele foi eleito! Se fez um político Cerqueirense.

Quando terminou a frase, Manu-Manu mirou bem nas

pupilas do “paciente” e virou outra golada, articulando: – Camaradas! Chutem qual foi a primeira coisa que nosso

amigo executou? Ele vendeu toda a mobília do apartamento e com o dinheiro extraiu os dentes para inserir próteses de ouro.

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MEU DEUS! Você entendeu bem a história, leitor? O indiano balançou a cabeça para cima e para baixo

mostrando a veracidade dos fatos: – A partir daí ele nunca mais riu por medo de ser assaltado.

Por isso do apelido. Quando sente vontade de gargalhar, faz um beicinho encafifado para não mostrar o tesouro.

Naquela hora não deu para segurar a gargalhada. De um

lado o vereador chorava de amargura e do outro eu chorava de tanto rir:

– Desembucha criatura, quem fez isso com você?

Perguntou o terapeuta ao vereador neurótico... – Foram os traidores, os do bairro Esperança. Ano

passado comecei um trabalho na comunidade para receber votos, mas acabei gostando do povo e mesmo depois de ter perdido a última eleição, ainda continuei fazendo serviços humanitários no meio da pocilga. E olhe o que fizerem. E continuou resmungando:

– Traidores, desleais... Claro que Manu-Manu não era lá um verdadeiro

psicanalista, não seguia nenhuma metodologia ou padrões específicos, mas entendia bastante as mazelas da alma.

Ele disse o seguinte: – Todos de algum jeito buscam o poder. O fato de

sabermos ou não do acontecimento é outra história e não muda a natureza das coisas. Pode ter certeza, aqui no boteco não se salva ninguém. O mundo inteiro aspira controlar o outro, o de fora.

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Parece que em segundos o efeito do álcool tinha desaparecido do meu sangue. Aquela conjectura do indiano ecoou nas profundezas do meu espirito. Talvez esteja realmente certo. Esperei ele tomar folego para dizer:

– Continue, o que mais tem para revelar-nos? Então o argumento derradeiro veio à tona: – Já que insiste... Peço que escute bem as minhas palavras!

Quando uso o termo PODER, estou me referindo à necessidade que o ser humano tem de comandar alguém, se impor à outra pessoa, fazer com que ela viva ou se expresse no mundo conforme os critérios que achamos ser bons para nós. Como se quiséssemos parir um universo à nossa própria imagem, ao nosso modo. A política é o exemplo mais claro de busca pelo poder ou à permanência dele. São sinônimos!

O que você acha, leitor? Será que cabalmente almejamos dominar as pessoas? Eu gosto muito de filosofia por que ela nos faz refletir

sobre assuntos que geralmente passam despercebidos no cotidiano. Existe um livro que fala basicamente sobre o argumento exposto acima. Chama: “O PRINCIPE”, de Nicolau Maquiavel (pensador florentino, 1469-1527). A razão que levou o autor a escrever a obra, foi essencialmente a conclusão do indiano.

Maquiavel não era um filósofo, pelo menos na interpretação do senso comum. Ele foi um consultor político. Trabalhava no estado, atuava para o estado. Era um burocrata, um tipo de agregado público de alta patente que em uma determinada ocasião acharam que estava conspirando contra os “donos da

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festa”, os poderosos da época. Chegaram a afastá-lo de suas ocupações para que vivesse em um reduto campestre:

– Ou some daqui ou morre! Então, o pequeno Nicolau a

bom grado se foi. Durante a sua estadia nos campos verdejantes elaborou esse manual, essa obra. Ele nunca teve a intenção de fazer um tratado filosófico. Ele queria de algum modo voltar ao poder, desejava novamente ter em mãos o instrumento controlador.

Política é poder! Observe com atenção o que Manu-Manu diz:

– Quando alguém deseja se tornar político, significa duas coisas: primeiro é que o fulano(a) ambiciona poder descaradamente e sem escrúpulos. Em segundo lugar, tem um enorme complexo de inferioridade, pois PODER pressupõe superioridade. Implica isso! E por qual motivo alguém quer ser superior? Porque se sente completamente desvalorizado, rebaixado, um zero à esquerda, um fajuto, rasteiro.

Entende os motivos pelos quais uma pessoa batalha a vida inteira? Enxerga a mesquinhes e futilidade?

Ela precisa ter poder (e tudo que isso acarreta) sobre o outro para sentir que tem valor. Necessita provar a si mesmo que tem alguma relevância.

É o que somos, eu e você!

– Igual a uma criança que é controlada pela mãe, subjugada por ela. A figura materna (por mais vital que seja) exerce o conceito da palavra PODER sobre o filho. Esse, por sua vez desconta no gato, na árvore, no boneco de plástico ou em qualquer amontoado atômico que deduza ser mais fraco na cadeia alimentar. Perceba, as coisas funcionam dessa maneira. O esposo

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aponta o dedo para a cônjuge, ela aponta para a mãe e a cadeia segue.

– Claro! Há famílias e famílias, relacionamentos e relacionamentos. Mas em suma, o que se altera são as posições e os personagens e não a vontade de poder. O político é um guri mimado e complexado, que necessita dominar para ter valor.

– A figura dessa corja ainda é básica, parece contraditória, mas não é. Somos animais desejosos, certo? Falou o “psicoterapeuta” olhando para a janela.

– Enquanto houver o sentimento de que nos falta algo, existirá o político.

Sim, sim! Eu compreendi o raciocínio dele. Exemplificarei detalhadamente para você amigo leitor.

Na Grécia clássica surgiu a tal da pólis, que era a cidade-estado e junto com ela a preocupação de como administrar da melhor forma esse aglomerado de gente. Pronto! Aí nasce a palavra política. Um instrumento que ajuda na convivência em sociedade. Todo ser humano deseja. Nós sempre estamos em busca de algo, essa caça é a investida de uma crendice pela satisfação.

Deixarei mais claro ainda: Pense em uma suculenta pizza de marguerita com azeitonas pretas e manjericão fresco (a que eu mais gosto). Inicialmente terá que compreender que é apenas um exemplo, poderíamos falar do desejo por um cargo de gerente, belas pernas, uma viajem e etecetera. Então para fins didáticos ficaremos com a comida, beleza?

Após toda essa abstração da imagem da pizza: O queijo derretido, o cheiro que nos dá água na boca, as bordas bem moreninhas e você com fome... Acrescente agora a informação de que ela é a última da noite e para complicar ainda mais a situação, tem outras duas pessoas com o estomago vazio desejando o mesmo produto.

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Nossa! Que embaraço. Como iremos resolver o impasse, caro leitor? Já que os bens aqui são escassos e não tem para todo mundo.

Nessa hora que o instrumento “política” é útil. Será crucial elaborar algum tipo de regra, acordo, convenções ou algo do gênero que resolva o problema das três pessoas famintas. Pode ser uma lei determinando a preferência pela ordem de chegada ou talvez, usar de critério o valor de quem paga mais. O fato é: Somos sete bilhões de animais pseudocivilizados que encontraram na política o regulador do caos social. Isso precisa ficar bem nítido! Toda norma é criada a partir de interesses pessoais. Alguém dita as regras que supostamente sejam as melhores para nós. Somos “obrigados” a aceitá-las.

É a mesma situação da turminha que administrava a pólis. Meia dúzia de famílias gerindo toda a base da pirâmide, todo o país. Nossa suposta democracia teve origem lá, nos caras da Grécia, enquanto o poder... esse não tem nacionalidade. É da natureza humana.

Eu estou me fazendo entender? Parece óbvio, mas não é. Atrás de qualquer pessoa que deseja assumir um cargo

público, encontrará a cobiça pelo poder. Escutaremos grandes discursos. Belas histórias de filantropia surgirão. Retóricos de um altruísmo mentiroso. O que buscam mesmo é o PODER! E se cavoucar ainda mais fundo, achará um miserável com complexo de inferioridade.

É um tipo de escada. No primeiro degrau: homens e mulheres são criaturas desejantes. O segundo lugar ficou para a busca do poder e a crença na satisfação quando alcançada. E no terceiro e último degrau está a FALTA, que é o motivo de existir o primeiro degrau da escada, assim fechamos um círculo vicioso.

Você deve saber amigo (a) leitor (a) que toda roda tem um mancal que não se mexe, que sustenta o movimento circular. Esse

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eixo é a falta de amor próprio e a consequência é o desejo de ser reconhecido, de ter valor, de ser superior.

Geralmente, nós só estamos satisfeitos com algo quando não podemos consegui-lo. Você pode não aceitar essa realidade, pois não é simples encarar os fatos. Desejamos a pizza, correto? E se por uma eventualidade qualquer, temos a consciência de que ela não está ao nosso alcance, afirmamos imediatamente que não queremos mais, que não precisamos dela, que já estamos satisfeitos.

Mentira! Qualquer pseudo-contentamento é pura falta de vitalidade em conseguir. Somos amantes por excelência.

Boquinha sonhava com um reinado, ele queria ser imperador. Almejava fama e fortuna. Somos todos iguais a ele. Só não arrancamos ainda os dentes, fora isso..., fazemos de tudo para chamar a atenção.

Veja! Alguém que sustente o poder na grana, quando essa se

acaba... o poder vai junto. Quem firma o poder na beleza, quando ela criar rugas e manchas... o poder acaba.

Uma pessoa que sustenta o poder na força física, quando o corpo envelhece o poder também míngua. São ilusões efêmeras, rasteiras. Eu concordo com a reflexão de Manu-Manu, todavia, existe outra forma de manifestação de poder. Uma que não está implícita no sentido pejorativo, que para mim é o maquiavélico. Existe outra qualidade de poder. Aquele onde o sujeito tem o controle de si, sobre suas ações, inclinações e vícios. Talvez seja esse o ideal de homem ou o verdadeiro poder... aquele sobre si mesmo.

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Quando concluí a explanação, o indiano gritou: – Um brinde, meus camaradas... Saúde aos mais novos

integrantes do Divã na Rua Augusta.

Enrico e o garçom ergueram seus copos e nos acompanharam na beberagem.

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AMOR CIRCENSE E MIOLOS Você frequenta alguma religião? É simpatizante de alguma

doutrina, filosofia ou crença? Quando estava a caminho do boteco, recordei-me de um

homem em cima do altar usando roupas estranhas e falando um monte de sentenças tão estranhas e confusas quanto a sua veste. Eu deveria ter mais ou menos uns cinco ou seis anos de idade, nesse período da vida ainda não estamos envenenados pelos conceitos e convenções sociais. Já ouvi muitas pessoas dizerem que a infância é a melhor fase das nossas vidas, que éramos felizes e não sabíamos. Pode ser que tenham razão ao afirmarem isso. Talvez.

Por outro lado, acho que depois que envelhecemos surge à realidade de que a vida (vista pela mente) é um sofrimento. Prova disso, é a nossa busca pelo seu oposto – o prazer. A humanidade se movimenta assim: Fugindo da dor e se agarrando no prazer.

Observe você mesmo leitor (a). Sua busca desenfreada pelo prazer é sempre equivalente à sua intensidade da dor, em todos os sentidos – aflições, angustias, carência, mal-estar físico, duvidas e etc. É nítido. Quanto mais está sofrendo, mais caça o prazer.

Imagine que se cortou e precisa aliviar urgentemente a dor... Então, é exatamente assim. Você busca meios de remediar o sofrimento. Paliativos que ajudem a suportar a infelicidade.

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Como disse Sri Nisagardatta: “É doloroso quando acaba o prazer e na mesma medida é prazeroso

quando a dor se vai.” Quando as rugas aparecerem, damos conta do tamanho da

mentira que são as nossas relações interpessoais, das balelas de que o status, o poder, a riqueza e outras coisas estupidas são a via de acesso rápido para a felicidade. Ou ainda pior, entendemos que a fé em qualquer meio de salvação não é garantia de nada - nem para a falta de sentido da própria existência, nem para as angustias e nem pelas questões sem respostas.

Só então cai a ficha de que a vida que levamos é medíocre e por isso o sentimento de que os bons tempos de fedelho eram o paraíso na terra. Não estou dizendo que realmente não tenha passado bons momentos, acredito que foram ótimos, pois as crianças fazem de qualquer lugar um parque de diversões. No entanto, essa perspectiva surge devido ao contato com o outro extremo do polo..., o qual estamos vivendo hoje. A infância é bela, sem sombra de dúvidas. Mas a relação que fazemos de nostalgia é apenas consequência de um contraste.

Pode ser que muita gente tenha o insight de que deu o sangue por coisas ilusórias, tão-somente no leito de um hospital.

Pode ser que insight aconteça quando alguém bastante querido morra, o nascimento de um filho ou talvez escreva toda a sua biografia e não enxergue bulhufas. Há diversas circunstâncias que nos fazem inverter os valores que construímos.

Mas retornando ao homem no altar - hoje eu sei que era um sacerdote, que vestia uma roupa eclesiástica e que somente pessoas do clérigo utilizavam roupas assim. A única coisa que permaneceu estranhamente complicado de engolir, foram as sentenças daquele padre. Ele dizia que “tínhamos que amar nossa

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família, o cachorro, os amigos, o vizinho e tudo mais que existisse”. O problema dessa história, é que o menino (eu) que o escutava silenciosamente levou as palavras do homem a sério - todavia, em nosso dia a dia a conversa é outra... Não amamos todo mundo. Não conseguimos amar a todos e por isso sentimos culpa. Somos hipócritas e mentirosos.

Nos ensinam a amar a Deus e o Universo, só esquecem de um detalhe significativo: nunca nos ensinaram sobre o amor próprio. Nunca aprendemos a nos amar, e isso é a causa de infinitos embaraços na vida de um ser humano.

Quantas reportagens você já assistiu na televisão, que mostram o beltrano cometendo loucuras a ponto de matar a esposa ou namorada por ciúme? Homens e mulheres que não suportaram o evento da separação e acabam por fazer cagada?

No jornal das oito, o controle chega a sangrar de tanta carnificina. São evidências claras de que as pessoas não têm amor próprio. Elas projetam toneladas de responsabilidades e expectativas umas nas outras. Aí vira nisso!

Fomos ensinados desse jeito. Todas as religiões que conheço dizem sobre a necessidade de amar o próximo e se esquecem do fundamental: NINGUÉM PODE DAR ALGO QUE NÃO TENHA.

Gente que supostamente ama sem antes amar a si mesmo, só pode dar merda. É o que está acontecendo. Sobrecarregamos a outra pessoa. Um amor baseado na falta, na carência, no interesse. É tudo menos o tal Amor. Somos doentes por um afeto. A própria palavra em Latim “affectus” tem esse significado: Adoecer. Estamos afetados, infectados na falta.

E, para legitimar a contenda... Se liga na história que ouviremos no bar.

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Já passava da meia noite, a conversação estava acalorada nas outras mesas (deduzo pela altura da voz e a empolgação dos clientes quando gesticulavam os braços e bocas). De repente, todos os lugares ficaram ocupados. Havia pessoas pagando a conta, entrando no banheiro, outras acendendo o cigarro do lado de fora, mas o que chamou minha atenção foi um homem rodeado por 3 mulheres. Elas pareciam relativamente novas - Acredito que tinham lá seus 25 anos de idade. Ficavam se exibindo para o sujeito. Jogavam o cabelo de um lado para o outro, se olhavam naqueles pequenos espelhos de maquilagem, davam risada por qualquer besteira que ele falava. Umas moçoilas assanhadinhas.

O galã estava com ar de indiferença, tomando um copo de whisky atrás do outro. Sua postura e etiqueta ao manusear o gelo, a água e as fatias de salame Ramon, aparentava ser alguém bastante refinado.

Vou confessar-lhe uma coisa, leitor... Eu gostaria do paparico regateiro daquelas mulheres.

Quem não gosta de ser o centro das atenções? Quem não gosta de ser elogiado e desejado?

Só não entendi a melancolia dele. Estranho... Boquinha, depois de passar na sessão com “Dr. Manu-

Manu” e já acalmado, solta uma relíquia: – Me apaixono fácil por essas pernas! Todos nós rimos e brindamos... “Que seja, meu querido

Boca! Um trago às lindas pernas, peitos e bundas”.

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– Essa situação me lembrou Friedrich Wilhelm Nietzsche (filósofo alemão do século XIX), pensei em voz alta na mesa sete.

Mas antes de falar qualquer coisa a respeito do que eu tinha

lembrado, o indiano olha para mim e diz: – É companheiro, a natureza é extraordinária. Até aí já me assombrei leitor, pois Nietzsche deixa bem

claro o motivo das nossas paixões (logo te conto sobre isso). Então Manu-Manu continua: – Delibere em pensamento a fêmea que menos o apetece,

que menos te agrada a nível sexual e depois, responda... Você transaria com ela estando bêbado ou não?

Bom, aqui não tenho muitas opções que agradam, no

entanto, afirmo seguramente que aquela à nossa esquerda, próxima à porta do banheiro, nem de longe eu me interessaria.

Não entrarei em detalhes sobre a fisionomia dela, só darei três palavras-chave... imagine o “1-cão 2-chupando 3-manga”, agora multiplique por cinco.

Então, é ela... Depois que confirmei minha decisão para Manu, ele

avançou. – Se existisse a possibilidade de eu injetar uma dose de

hormônios libidinais em você, garanto que estaria caído de amores por ela.

Naquele instante fiquei sem reação. Você compreendeu o que ele afirmou, leitor?

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ISMAEL TAVERNARO FILHO

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Seu argumento fez cair por terra todas as historinhas românticas - paixão à primeira vista, metade da laranja, alma gêmea e por aí vai.

Ele disse basicamente o que pensei em voz alta sobre Nietzsche minutos atrás. “Que nosso sentimento de amor/paixão é exclusivamente uma soma de reações químicas do organismo”. Pois se ele aplicasse uma injeção com determinados hormônios, eu amaria aquela mulher. Onde à priori não me interessava em nada. Não me apetecia. Que achei uma baranga.

Ele diz em outras palavras, que a biologia se incumbiu de nos brindar os afetos para manter a espécie. Para vadiarmos, transarmos, fornicarmos, ou seja... gerarmos filhos.

Caraca!!! E outra... Como ele descobriu que eu pensava nisso?

– Indiano misterioso e assustador, é você hein! Falei abismado.

Ele gargalhou e chamou o garçom: – Traga uma rodada para os nossos amigos e pergunte ao

sujeito na mesa com as raparigas, se ele quer se juntar ao divã. Alguns minutos se passaram e o homem nos cercou: – Olá amigos, posso me sentar com vocês? Alguém aqui

me pagou uma dose e eu carecia urgentemente de um bom pretexto para fugir daquelas interesseiras loucas.

Estava curioso para saber o motivo de sua aparente aflição.

Contudo, não deu tempo nem de eu abrir a boca, quando Boquinha sem aprazas questionou:

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PENSAMENTOS FORA DA CAIXA

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– Por que você está cabisbaixo no meio de tantas pernas? Ops! No meio de tantas mulheres bonitas?

O homem ficou sem jeito, porém respondeu – A dona do meu coração, a pessoa pelo qual abandonei

minha vida, não está aqui. Deixei tudo e todos por ela, e no fim..., veja onde eu estou gastando meus últimos trocados. Aquelas três usurpadoras acham que eu ainda sou rico, que tenho iates, carros conversíveis e uma poupança gorda. Tolas! Hoje não passo de um Zé Ninguém. Sem dinheiro, sem família... sem nada.

Estávamos ouvindo-o atentamente. Ele prosseguiu: – Nasci em uma família abastada, meus pais eram

acionistas majoritários da Lions Corporation – o maior laboratório de cosméticos da América do Sul. É aquela empresa da propaganda! Onde tem os animaizinhos tomando banho com o nosso shampoo e condicionador.

Eu me tornei o presidente da Lions quando papai faleceu.

Os negócios estavam indo de vento em popa. Eu posses e notoriedade. Tinha também uma família linda: Margareth - esposa sempre dedicada com os compromissos do lar e duas pequeninas saudáveis e inteligentes.

– Enfim, aparentemente tudo indo muito bem. – Somos animais complicados, mesmo tendo tudo ainda

parecia faltar algo. – Mas o que exatamente? – O que um homem poderia querer mais?

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– Tinha tudo! Porém, a vida é realmente uma caixinha de surpresas.

– Certo dia, levei minhas duas filhas para um circo armado próximo de nosso bairro. Estava escrito no convite, dentre outras coisas:

“APRESENTAÇÃO COM FACAS DA BELÍSSIMA

HELENA BLUE”. – Fiquei curioso para ver o espetáculo. A pequena Rafinha

(filha caçula) estava querendo muito ir ao circo e a mais velha – a Bruna, gostava de ouvir piadas e comer algodão doce.

– Tinha prometido a elas. Era uma oportunidade ótima de ficarmos todos juntos.

– Então peguei o carro na data marcada e fui. – De longe, essa decisão foi a pior que tomei na vida. – O lugar era afastado da cidade, não tinha muita gente por

lá. Duas tendas velhas compunham a estrutura. Algumas barracas de comida, um jovem fazendo pirofagia na entrada da bilheteria.

– Não lembro o valor exato, mas sei que custou o preço de minha desgraça. As crianças estavam encantadas com os poodles treinados. Realmente eram muito espertos.

– Foram apresentados um show de motos no globo da morte, umas brincadeiras (até que boas) com dois palhaços e na última atração. ..., ela: “A BELA HELENA”.

Nesse momento, percebi que ele engoliu a seco o nome da

atiradora de facas. Parou por alguns instantes como se as lembranças viessem queimando das profundezas da sua alma. Estava com os olhos marejados. Pediu ao garçom mais um trago de whisky e continuou:

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PENSAMENTOS FORA DA CAIXA

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– Eu sempre gostei do nome dela. Me remetia a uma figura excêntrica que foi alvo de estudos na minha juventude: Elena Petrovna Blavátskaya (Escritora e co-fundadora da sociedade Teosófica – Império Russo do século XIX) ou somente Madame Blavatsky. Não cabe agora falar de teosofia, contudo, penso que é hora de eu buscar ajuda.

– Bom, sobre minha Helena... Foi amor à primeira vista. Ela tinha o rosto mais belo que eu já vi. Olha que saí com diversas modelos na solteirice!

– Os cabelos negros com mechas azuis (por isso do nome artístico: BLUE) e ondulados se moviam graciosamente. A pele branquinha como neve destacava a singeleza do olhar. Eu não sei como explicar o sentimento, a beleza, os gestos. Me apaixonei!

Boquinha estava empolgado com a história, incentivou de

todos os jeitos ele a continuar: – Conte, amigo. Nos fale tudo! Não paramos aqui hoje à

toa. A vida juntou cada um de nós para desabafar no divã. Estamos todos aqui por um motivo parecido... “TODOS FUDIDOS”

Boca ergueu o braço e concluiu: – Desce uma rodada por minha conta, Enrico. O homem deu um sorriso aliviado e prosseguiu: – Fico grato pela atenção, amigos. Estou realmente

necessitando desabafar.

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– Quando o espetáculo terminou, eu só desejava encontrar aquela mulher. Levei Rafa e Bruna para casa, inventei qualquer desculpa a Margareth e voltei ao circo.

– Dizem que o amor nos cega, não é? Eu havia perdido completamente a visão. Meu coração pulsava como nunca pulsou antes. Senti o fulgor da adolescência em cada célula do corpo.

Você sabe do que ele está falando, leitor? Desse

sentimento? É muito bom, não é? Parece que injetaram uma dose de autoestima com

taquicardia e uma pitada de dor de barriga. Como se ficássemos doentes, infectados, (lembra do termo)? Joelhos bambeiam, coração acelera, sudorese misturada com pânico. Uma verdadeira loucura da natureza.

O homem respirou fundo novamente e continuou: – Não irei alongar minha desdita. O fato é que abandonei

tudo em nome do amor. Empresa, família, status, conforto, larguei sem olhar para trás e fugi com o circo.

– Acredita que me deram como desaparecido? Que grande besteira eu fiz, meu Deus!

Ao perceber que ele estava descontrolado, Manu-Manu

entrou em cena: – Vamos parar um pouco, amigo. Se aconchegue aqui no

divã. Caso não esteja pronto para continuar, tudo bem! Agora, se realmente deseja limpar todo esse peso da alma, sinta-se à vontade.

Ele enxugou o rosto e disse:

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– Meu nome é Alexandre Araujo Baltazar e hoje estou sendo caçado pela polícia estadual. Cometi um homicídio... Assassinei minha bela Helena.

Todos olharam para ele com espanto e compaixão, pois

naquela hora sua dor veio à tona. Ele desaguou a chorar, parecia uma criança tremendo de medo e culpa.

Não sou a pessoa mais sentimental do mundo, leitor - no entanto, deu pena. Suas lágrimas eram sinceras, de agonia. Um homem que fica diante das forças da natureza se torna uma criança.

Ninguém sabia o motivo pelo qual a assassinou. O ar de mistério pairou na mesa sete. Esperávamos uma resposta dele, contudo, a vida é imprevisível. Ele arrasta a cadeira vagarosamente para o lado, tira da cintura um revólver e, sem dizer absolutamente nada:

Click... POW! Um tiro na própria cabeça. PORRA, leitor, você esperava isso? Eu também não. Gostaria de ter outra versão do que houve, mas essa é a

verdade. Não temos controle sobre nada e ninguém. A vida é uma soma de acontecimentos únicos e ímpares. Por mais que hajam probabilidades na sucessão dos fatos, existe também a contingência dos mesmos. Coisas que saem fora das nossas mãos. Igual à contingência urinária. Simplesmente, não temos controle.

O peito gritando... A angustia não é sentida na cabeça ou na mente. Dentro da

caixa torácica temos uma bomba relógio - ela pode explodir de amor ou de ódio, de bem-estar ou remorso. Nosso coração não é matemático e racional. Ele sempre está batendo no aqui e agora junto com a vida. A vida nunca ocorre no passado ou no futuro. É sempre agora. E ele por sua vez é desconhecido, inesperado. O

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agora é incerto, como a incerteza de cada pulso do miocárdio. Assim foi o caso de Alexandre.

O que dizer, leitor? Bombeiros, policias, interrogatórios, desespero, sangue,

miolos. E Manu-Manu calmamente dizendo: – A falta de amor próprio e a repressão sexual são os

agentes de todas as neuroses sociais, de todas as loucuras. Nos relacionamos com as outras pessoas iguais a mendigos esperando esmolas. Por isso a merda toda! As religiões, junto com os políticos esmagaram nossa inocência.

– Então, não se sinta envergonhado Boquinha, você é tão-somente uma vítima do processo histórico da civilização.

Adendo, Leitor: Nessa hora, estávamos todos sentados em

um banco na praça em frente à delegacia. Já tínhamos conversado com os responsáveis do setor. Alexandre estava em algum hospital da cidade, o bar havia fechado e nós lá... Perplexos! Menos o indiano, que continuou filosofando:

– Na biografia da raça humana, conseguimos visualizar o

berne da ferida (como dizia papai), exatamente onde o enrosco teve início. Vejam bem!

– Éramos uma espécie de nômades, ou seja, nunca ficávamos no mesmo lugar. Um povo extrativista. Comíamos as frutas das árvores, matávamos alguns animais e depois íamos embora. Basicamente, funcionava assim! Acredito que foi a atividade mais velha que realizamos. Imagino que um dia, algum ancestral espertinho observou os passarinhos se alimentarem. Viu que as sementes que eles ingeriam junto com os frutos saiam no coco. E que, depois de um tempo em contato com a terra, nascia uma plantinha.

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– Nossa, que genial! Pensou o hominho da antiguidade. – Então, ele nem um pouco tonto quis fazer do mesmo

jeito – comeu a manga, defecou e logo escondeu na terra o “grãozinho”.

Manu-Manu queria nos alegrar depois do suicídio, só pode!

Caroço de manga? Quem come uma semente desse tamanho? E então prosseguiu: – O hominho viu que deu certo o esquema. Informou

todos do seu grupo e começaram a plantar coisas. Assim, junto com as sementes brotou a agricultura. Agora ninguém mais precisava sair do lugar para viver. Poderiam ficar em qualquer espaço que oferecesse um pouco de terra boa e água.

– As coisas melhoraram naquela época, mas a gente adora um rolo, não é? Com a fixação das pessoas num mesmo lugar, houve alguns fenômenos que até então eram inexistentes:

Sedentarismo: Agora as frutas, raízes, hortaliças estavam todas na porta da casa. A galera tinha tempo para outras coisas – tipo se divertirem. Quem sabe nossa população aumentou depois que o homenzinho viu o passarinho defecando sementes? Mas não para por aí. Naquela época, tinha um número muito menor de homens do que mulheres - alvez por que os homens iam para a guerra ou sei lá. O fato é que vivíamos em grupos poligâmicos. Era um verdadeiro harém, putaria geral. Como de costume, Boquinha solta a pérola: – Oh tempinho farto esse da antiguidade, hein... Um

brinde a essa tal de Poligamia e ao nosso falecido amigo.

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Minhas energias já estavam acabando, e o dia quase clareando.

O indiano, com olhar sonolento continuou:

Propriedade privada: A situação é a seguinte: Não precisamos mais bater perna atrás de comida, ok? Está tudo facinho. Aí o povo não se aguenta, começaram a arranjar uns rolos do tipo: “Eu que plantei esse pé de goiaba” “Esse pedaço de terra foi eu que adubei, é meu” Mesmo eu estando cansado, percebi onde Manu queria

chegar. Então falei: “SURGIU A PROPRIEDADE PRIVADA,

CARAMBA!”. Ele sorriu e retrucou: – Exatamente. Contudo, o pior está por vir.

Casamento e filhos legítimos: Tendo acontecido o evento da posse, surgiram outras necessidades. Primeiramente, o cidadão pensou: “Tenho que deixar esse pedaço de chão para alguém

quando eu morrer, certo? Mas quem?”. “Claro! Um herdeiro, um filho. Porém, qual dessas crianças

pode ser cria minha? Aqui é literalmente uma zona” – Então o hominho, por necessidades usou a cabeça.

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Desculpe interromper a explanação do indiano novamente, leitor. Tive um daqueles insights que falei no começo do livro.

Presta atenção... De repente, foi devido a esses tipos de processos que

desenvolvemos a inteligência, a religião (como forma institucional) e o Estado?

Lógico que não estou me referindo exatamente a esse contexto, outras situações de autopreservação foram cabais para o aumento das redes nervosas/ processos cognitivos. O esforço por resolver problemas é fundamental para ocorrer essa evolução.

Aproveitei o gancho na fala de Manu como simbolismo. Todavia, na essência pode ter acontecido isso mesmo. Vai saber?

Lembro de uma reportagem que assisti onde mapearam o cérebro de um ribeirinho analfabeto. Fizeram alguns exames como a tomografia computadorizada, ressonância e outros que não tenho conhecimento. Os cientistas analisaram a quantidade de redes neurais que envolviam a massa cinzenta (desde já informo humildemente a ignorância que tenho no âmbito das ciências biológicas e suas terminologias).

Mas, concluindo... Pegaram o sujeito e direcionaram para um colégio. Em

pouco tempo ele já sabia ler e escrever. Então, repetiram todos os exames que tinham feito inicialmente.

E adivinhe, leitor? Aquela rede no cérebro aumentou pra caramba! Evoluiu nesse sentido.

Charles Darwin (naturalista britânico do século XIX) tem um livro chamado “A Origem das Espécies” que fala de uma tal de seleção natural. O livro diz (resumidamente) que o ambiente e as necessidades de sobrevivência nos desenvolveram para chegar onde estamos hoje.

O indiano sorriu mostrando aceitação e finalizou seu raciocínio:

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– Nosso ancestral precisava dar um jeito no problema da herança.

“Para quem deixar minhas posses quando eu morrer?” – Ele decidiu legitimar um primogênito, um sucessor, o

sangue de seu sangue. – Logo, inventou a família, o casamento, a monogamia e

toda a insanidade acoplada. Só esqueceu de uma coisa: Como ter certeza de que o filho na barriga da esposa era realmente dele? Simples, a mulher tem que ir para o altar virgem. Pura, do contrário é uma pecadora que transgrediu as leis de Deus, violou suas ordens.

– Sacanagem que fizeram conosco. Disse Boquinha. Por uns metros quadrados de terra nos foderam. Os políticos e os sacerdotes juntaram foças por interesses em comum: a merda do poder.

Responda uma coisa, leitor. Qual casamento é

honestamente sustentado pelo amor com o passar dos anos? Depois de um tempo, as únicas coisas que os mantem superficialmente de pé e “juntos” são os filhos, os bens materiais, a reponsabilidade, o medo de começar novamente, a falta de coragem, o medo do desconhecido, a comodidade, a grana, a história que passaram juntos. Enfim, quando dois miseráveis se juntam, o resultado é miséria. É matemático, como um mais um é dois. Um axioma!

Todo casamento tende ao fracasso no sentido de que o amor acaba, pois o jeito que o matrimônio brotou foi antinatural. Foi um estratagema socioeconômico e não algo espontâneo, como o próprio afeto. O amor surge em nossos corações de algum lugar e depois se vai. Naturalmente! Sem perguntar se queremos ou

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podemos. Simplesmente desaparece da mesma maneira que surgiu. Somos nós que complicamos as coisas. Ao ver que está indo embora, tentamos sustentá-lo forçadamente.

Mas isso não é culpa sua ou minha, leitor... Tanto os agentes do poder público, como os agentes do

poder divino precisam de cidadãos miseráveis, angustiados, sexualmente reprimidos, esgotados. Na desgraça alheia que se mantém um templo ou um partido político alçado.

E não estou falando com intenções pejorativas, quero que você analise friamente comigo.

Se não há doenças, não tem motivos de existir remédios. A única coisa que deveria unir as pessoas é o amor. Nada

além! Mas fizemos com o amor o que Ivan Plavov (fisiologista russo, 1849-1936) experimentava com os cães ou o que Burrhus Frederic Skinner (psicólogo norte-americano do século XX) fazia com os ratos: condicionamos nosso amor. Por isso a poligamia foi sempre mais interessante, atrativa. E quando menciono o “poli”, não estou me referindo somente ao sexo, é também o “poli” no contato psicológicos. Confesso a você que no fundo somos todos “farinha do mesmo saco”, tudo igualzinho. Porém, superficialmente existem muitas diferenças. Há dias em que gostamos de variar.

Novamente peço que olhe com espirito cientifico e não interprete como arrogância ou insensibilidade.

Qual comida você mais gosta? Suponhamos que seja lasanha, ok? Realmente, é uma delícia. Agora, coma lasanha todos os dias, durante meses. Acabou o encanto! Pode ser que pense:

“É por que ele não me conhece, adoro lasanha. Devoraria fácil por um ano seguido”.

Vá com calma aí... Na teoria de Thomas Morus (filósofo inglês, 1478-1535), a “UTOPIA” é perfeita.

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Você lembra que mencionei sobre Heráclito no início do livro? Ele tem uma frase assim:

“Nada é permanente, exceto a mudança”. Tudo é um fluxo, tudo passa e o amor não fica de fora. Ele

também passará. Então, por não aceitarmos a coisa como é: Um grande devir existencial, levamos o outro(a) para assinar um contrato no cartório civil, com direito a testemunhas. Tudo isso para “garantir” que sempre amaremos um ao outro, para o resto de nossas vidas.

Fala a verdade, se a cada infinitésimo de segundo já não sou o mesmo que o infinitésimo de segundo anterior, como vou garantir que sentirei a mesma coisa até o caixão?

Não tem lógica. Na verdade, tem né? Somos crianças mimadas tentando controlar o incontrolável. Mas o coração não liga para papéis e rubricas. O coração

tem uma linguagem direta com a existência. Só entende ela. Não adianta você chegar com mil razões e argumentos flamejantes.

É uma puta sacanagem burocrática e sacramental o que nos pregaram. Veja! Em um segundo está contido o infinito, apenas fracione os segundos e comprove o que digo. Teste! Somos literalmente “processos infindáveis de mudanças”

Os políticos e os sacerdotes bolaram a santa-máfia, o santo-crime. E se acha estranhas as nomenclaturas, é porque eu ainda não disse Guerra “Santa”. Coloque a palavra santa em algo e pronto... Justifica todos os meios.

Eros, Philos, Ágape. Me sinto uma formiga diante do mistério que é o amor, mas também, um leão quando vejo a inocência nos olhinhos de meu filho Bento.

Chega por hoje, leitor.

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Manu-Manu quase dormia em pé. Já eram seis horas da manhã, todos estavam podres de cansados e ainda bêbados. Vamos dormir um pouco e amanhã continuamos.

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SEGUNDA NOITE

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SÓCRATES - O PRIMO QUE SECOU A PIMENTEIRA

Políticos e instituições religiosas carecem de gente

miserável para se manterem vivas. O emprego e o status de muita gente lá depende da angustia alheia, do desamparo alheio, da falta de amor, da fome, da mazela, da míngua. Tanto os de gravata como os de colarinho almejam poder. Quanto mais gente desgraçada, mais serviço eles têm.

Repito a você, leitor: de forma alguma tenho a presunção de ser ofensivo. Caso brotou sentimentos de repulsa em relação ao que estou dizendo, é por que no mínimo cutucou a sua ferida. Do contrário, por que se injuriaria?

Vamos analisar os fatos tentando ser o mais imparcial possível, beleza?

Continuando... Pode ser que nenhuma dessas “categorias ocupacionais”

tenha noção do que mencionei. Talvez sejam inconscientes, ou nunca tenham pensado a respeito. É perigoso questionar profundamente certos assuntos. Muito arriscado... De repente, encontre alguém lá que não te agrade. Vai saber?

Tenho como critério, que a desilusão por mais azeda que seja É MELHOR DO QUE VIVER SONHANDO uma fantasia purpurinada, um grande maya.

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Nunca gostei da hipocrisia dos crentes, no entanto, me vi encurralado no jogo das crendices. Todos somos crentes em alguma medida, todos! Eu necessito acreditar que no percurso do trabalho para casa irá correr tudo bem, pois do contrário, eu nem sairia.

Necessito acreditar que, toda vez que meu pulmão se esvazia de ar, ele encherá novamente.

Já pensou nisso leitor? Somos inevitavelmente crentes!

Acreditamos que ao fechar nossos olhos depois de um dia labutando, acordaremos vivos na manhã seguinte. Compreende agora? Todos conscientemente ou não, são

crédulos. Então, como julgar aqueles que batem na minha porta aos

domingos entregando panfletos canônicos... o Reino de Deus te aguarda.

O fato de buscarmos o poder ou não é irrelevante, pois somos de qualquer forma tementes, crédulos.

Não dá para julgar! Por esse motivo afirmei que não escrevo de maneira pejorativa. Pode ser que sugira, mas não é! Toda crença é enraizada no medo. Só não confunda uma coisa com a outra, amigo. Não misture crença com fé.

A fé vem do coração e ele por sua vez não tem medo, nem partido político e muito menos instituição religiosa.

O temeroso age pela mente, se movimenta por ela. Precisa acreditar que a vida não encerra no túmulo (e eu não estou supondo o contrário). Precisa acreditar que todo seu esforço terreno valerá a pena nos gozos vindouros.

Não! Isso não é fé. A fé não precisa de argumentos para se sustentar. Mesmo

se o mundo inteiro dizer que NÃO... Aquele que tem fé não se abala.

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Ele diz que SIM. O coração não vê vantagens em nada, não barganha seus

sentimentos com ninguém, o coração é honesto. Nas palavras de Sri Nisargadatta Maharaj (foi um guru Indiano. Um hindu representante do advaita Vedanta, 1897-1981):

“A mente cria o abismo, o coração atravessá-o” A mente é todo o espírito de uma época falando por você.

Respeito as religiões como forma de busca interior. Etimologicamente a palavra religião vem do latim religare, que quer dizer “religar”.

Agora fala-me, leitor... Que audácia é essa de achar que estamos apartados da vida, da existência, de Deus?

A própria palavra denota isso. Para religar é óbvio que devemos estar desligados, desvinculados, afastados.

Mas compreendo o erro. A linguagem não significa nada. Jamais estivemos separados da vida. Como? Somos a própria manifestação dela.

Nas academias, me falaram o seguinte. “Quanto mais você estuda, menos você acredita em Deus”. Mentira! Quanto mais enriquece ou talvez empobrece seus

conhecimentos, mais você percebe a vastidão que é a existência. Mais você enxerga o quão pequeno é e quão misteriosa é a vida e sua manifestação.

Não carecemos de argumentos ontológicos iguais ao de santo Anselmo e nem irmos muito longe. Quantos trilhões de células especializadas compõe essa carcaça que transportamos?

Nesse exato momento, está acontecendo uma infinidade de coisas no seu estômago, rins, boca, cérebro. Você faz crescer seus fios capilares sem ter ideia de como está fazendo, sem ter consciência do processo. Talvez seja o responsável pelo

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movimento de translação planetária sem saber que é, igual ao cabelo.

O próprio fato de enxergarmos o mundo é uma dadiva. Vemos imagens surgirem a partir de raios de luz. Ondas eletromagnéticas com velocidade aproximadas de 3000 km/s. Os físicos dizem que a luz emanada do Sol demora cerca de oito minutos para atravessar o espaço e chegar à terra. Louco, né?

O globo ocular tem uma cavidade chamada pupila, que é o lugar onde penetram os tais raios. Eles atravessam o cristalino e vão até a retina. Lá existem várias células fotossensíveis que absorvem a luz e provocam os pulsos elétricos. Depois, através do nervo ótico essas informações são encaminhadas para o cérebro, que por sua vez as decodificam em imagens.

E o mais incrível! Quando chegam os códigos para o cérebro, é tudo ao contrário, de ponta cabeça, invertido. É ele quem arruma o furdunço aí dentro.

Porra... Como alguém diz que toda essa harmonia é somente obra do acaso.

É loucura! Orgulho da nossa parte! Ao acaso, é o mesmo que falar: “NÃO SABEMOS A

CAUSA, PRONTO!” Não suporto os materialistas, mas tenho pena de quem

aguarda na terra o gozo pós-túmulo, o gozo paradisíaco. Claro que ao me referir sobre Deus não estou insinuando

um superpai barbudo debruçado em uma nuvem, ordenando serafins, querubins e lutando contra satã.

Aí também não dá! A infância humana acabou na revolução científica.

Às vezes, as pessoas me dizem que sou muito contraditório. Que hora me sirvo do positivismo de Augusto Conte (filósofo francês do século XIX) e hora uso jargões Agostinianos (Agostinho de Hipona, ou somente Santo

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Agostinho. Foi um importante bispo, filósofo e teólogo cristão do norte da Africa, 353 – 430).

Primeiramente, nem o nome Augusto me agrada. Imagine ele em dose dupla? Nada contra homens registrados com esse nome, a culpa não foi deles. Em segundo lugar, a vida é contraditória por excelência. É torta por natureza, ou você já observou algum pé de goiaba simétrico, perfeito, sem ondulações e protuberâncias?

Não existe um remanso reto, estático... ou você já viu algum?

Escutei certo dia um estudioso falando mais ou menos assim:

“Nada é efetivamente linear, nivelado”. Se riscar um traço no chão utilizando a régua, talvez pense

que está endireitado, certo? Mas é somente ilusão de ótica. Se existisse a possibilidade de continuar tracejando o risco por todo o planeta, ele voltaria ao mesmo lugar de origem. No ponto de partida. O rabisco só é reto a nossos olhos, pois a terra é ovalada e nada pode ser objetivamente aprumado.

As flores se movem com a dança do vento, não há linearidade. Eu posso dizer uma coisa agora e depois inverter a história toda. Não sou o mesmo de segundos atrás.

Heráclito realmente foi foda! Tinha pensado sobre o devir a muito tempo... Isso sem falar dos orientais: indianos, tibetanos, japoneses. Tem uns caras nessas partes do mundo que são zica (no decorrer da leitura achará vários nomes).

Voltando... A maioria das religiões (pois não conheço todas) tem seu

corpo dogmático, litúrgico, estruturados em refutações. Ou seja: Uns homens experienciaram a verdade em toda

sua plenitude e outros (que é o nosso caso) tentaram expressá-la verbalmente de uma maneira completamente equivocada.

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Jesus Cristo, Sidarta Gautama, Mahavira, Mansur, Lao Tsé, Zaratustra Bodhidharma, Krishna... Todos eles vivenciaram em primeira pessoa a unicidade. Não careceram de argumentos. Simplesmente a verdade se revelou. Enxergaram o que sempre esteve diante de nós. Inclusive na Índia, tem uma técnica onde os sannyasins (aqueles que renunciaram à vida mundana) meditam olhando a ponta do nariz. Tipo alguém estrábico, sabe?

Nós somos muito infantis ainda, levamos as coisas ao pé da letra. Escrituras de cunho religioso são basicamente expressas com analogias, com signos. Talvez foi o jeito mais útil que encontraram de nos passarem os ensinamentos, de outra maneira não compreenderíamos.

Fazemos isso mesmo. Levamos tudo no sentido denotativo. Já ouvi tanta merda sobre as interpretações do evangelho que prefiro nem falar...

Recapitulando: Os fodões mencionados acima conheceram Deus (vou usar esse termo para facilitar) e uns outros audaciosos (falei sem ironia) tentaram narrar o inenarrável. Conclusão: Pagãos tentando compreender a bagunça, refutavam. Claro, quem vai entende o que não pode ser entendido em palavras? Tudo isso fez com que uns caras inteligentes deixassem mais sofisticada as respostas, começaram a usar da razão como meio para saciar as dúvidas. Assim, num movimento dialético surgiram “boas” explicações. Um período que mostra isso, foi o medieval. As escolas patrísticas e principalmente a filosofia escolástica eram a bola da vez. São Thomas de Aquino (Filósofo e Monge dominicano, nascido na Itália da idade média, proponente da teologia natural - século XIII) representou isso com excelência.

Agora, quando não tinha jeito de enfiar na cabeça da turma que indagava, eles santificavam a guerra. Simples! Mandavam matar ou criavam os dogmas.

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Já estudou sobre as Cruzadas? É sacanagem explicita. O próprio nome é uma canalhice.

Guerra Santa... É muito paradoxal para meu cérebro. Depois que coroaram solenemente os heróis da Guerra

Santa, aí virou festa. Jihad (guerra santa muçulmana) para tudo quanto é lado.

Dogmas querem dizer: “FODA-SE! NÃO SEI, MAS PRECISO TER RAZÃO”.

Você entende isso, leitor? A dogmatização não surgiu por humildade em aceitar o

incognoscível, surgiu devido à falta de respostas e interesses particulares!

Em outras palavras - O pagão curioso chegava no sacerdote e dizia:

– Mas por que Ele é pai, filho e espirito santo ao mesmo

tempo? – Mas por que algumas crianças nascem nas favelas com

hidrocefalia e outras nos condomínios fechados e saudáveis? Ficou claro agora, leitor? Devido à necessidade e tentativa de responder certos

questionamentos, as religiões foram tomando corpo no sentido de estruturação filosófica.

Veja, os grandes espíritos que caminharam aqui na terra não estavam preocupados em registrar seus ensinamentos (salvo raras exceções). Eles sabiam que palavras são migalhas para a vastidão do que é Deus/Não-Manifesto-Deus/Causa-primeira. Somos nós, os cegos robotizados, que ferramos tudo.

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Jesus nunca escreveu nada, o Buda histórico nunca escreveu nada. Quem criou as instituições religiosas foram nós e não eles.

Os eruditos dizem que o cristianismo só foi o resíduo de um platonismo mal-intencionado.

Vou tentar deixar mais transparentes as coisas para você. Utilizar-me-ei da filosofia de Nietzsche, porém, de um jeito

mais “relax”. Vou explicar como funciona a mecânica humana a partir

de uma baladinha adolescente. Imagine que fomos convidados para um happy hour na casa

da Bruninha (todo mundo tem alguma amiga com esse nome). Os pais dela foram viajar e ela aproveitou a oportunidade.

Quem nunca fez uma baladinha escondida quando os “ratos saem da toca”? Se nunca passou por essa aventura, infelizmente não teve juventude. Me desculpe a honestidade! É como uma criança que nunca tomou chuva... Infância significa isso – Brincar no barro, subir em árvore, soltar pipa... Tanto quanto juventude é sinônimo de amor romântico, poesia, rebeldia. Assim são os jovens. Sonhadores querendo mudar o mundo. E caso não tenha vivido plenamente esses períodos, será um adulto frustrado tentando viver o passado a qualquer custo.

Lembra de alguém assim? Uma pessoa coroa, quase sessentona dando trabalho iguais adolescentes?

Nos upanishads (escrituras hindus), a tradição vedanta mostra bem as etapas que o ser humano percorre em sua jornada, como também, identifica os problemas quando alguém não vivência plenamente cada uma delas.

Fato: Nunca deixarmos de ser crianças querendo atenção e jovens buscando o amor verdadeiro. Porém, a natureza segue infalível com as leis. Sementes germinam, nascem as plantas, as mesmas se desenvolvem, flores desabrocham, brotam os frutos,

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então eles amadurem e voltam novamente para a terra. O ciclo é perfeito!

De repente, é assim a reencarnação plantídia (adoro inventar símbolos). Nenhuma flor de maracujá deseja ser germe na casca. Tudo tem seu tempo. Cada etapa deve ser vivida plenamente.

E não precisa questionar a infância sobre o melhor jeito de viver a vida. Essas perguntas não têm lógica para uma criança. Ela sabem como viver, os jovens sabem como viver. São os adultos ressentidos que permanecem na mesma tecla.

Pois o dito cujo ser que supostamente “venceu” na vida, ainda tem a sensação de que lhe falta algo.

Então, eu te pergunto... Qual a melhor maneira de se viver? Na filosofia, tem um grupinho de pensadores que

abordaram muito isso, eles eram chamados de Estoicos. Lawrence C. Becker (filósofo americano, contemporâneo)

escreveu um dia que sua preocupação central, organizadora, é sobre o que alguém deve fazer ou ser para viver bem, para florescer.

Os estoicos era quase uma religião da época. A grosso modo, diziam que o universo é racional e ordenado, semelhante a um corpo humano, onde cada célula tem uma função determinada e especializada e que agem e se inter-relacionam em prol de um todo harmonioso. Ou seja: Existem as partes (micro) que vivem e que fazem sobreviver o todo (macro), contribuindo entre si para o bom funcionamento geral.

Para os estoicos a melhor maneira de viver a vida é estando em consonância com a natureza, pois ela é o reflexo de perfeição do cosmos.

Exemplo: O coração bombeia, os olhos enxergam, os rins filtram e assim por diante. As partes são uteis para o todo quando

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cumprem suas funções. Agora, basta-nos saber qual são nossas funções ou nossos talentos para vivermos da melhor maneira.

Deixarei essa pergunta para você refletir, leitor. Sugiro alguns nomes que representaram o estoicismo, de tal modo, que você mesmo poderá buscar o acalento nas

obras desses intelectuais.

Zenão de Cítio (filósofo grego, 340 a.C. – 264 a.C.);

Sêneca (Filósofo/Estadista Romano, 4 a.C. – 65);

Epiteto (filósofo/escravo grego, 50-138 d.C.);

Marco Aurélio (filósofo Romano, 121-180 d.C.).

Voltando à nossa baladinha. Bom, eu e você fomos juntos, leitor. Um clima de

ansiedade misturado com prazer. Recorda algo assim? Ao chegarmos na casa, a bebedeira rolava solta. Grupinhos

de adolescentes espalhados no jardim. Fumaça de um lado, garrafas de outro. Meninas de biquíni se jogando na piscina. Som alto, alegria e curtição.

Em toda festa dessa magnitude existem os pegadores, não é? Do tipo boa pinta, bom de xaveco, bom de grana e por aí vai... Por outro lado, tem os mirrados, feios, sem papo, aqueles que geralmente olham a putaria por falta de potência.

Tal cenário nos ajudará a entender como nasceu a moral, a ética, mostrará como Sócrates foi astuto ao ponto de “inventar” o mundo das ideias, a vida após a morte, o “paraíso”.

Essa vai ser uma festinha filosófica, uma esbórnia erudita. Suponhamos que de um lado estou eu... Magrelo,

horrendo, pobre, sem xaveco e não pegando ninguém, nem mesmo gripe.

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Do outro lado você, leitor... O oposto de mim - Bonitão, apetitoso, distribuindo saúde e vodka para a galera. Ah! E claro, pegando geral.

Conseguiu enxergar a situação? Eu, vendo que não iria ter a menor chance de

entretenimento adulto, de cúpula, formicação ou como dizia um querido professor de sociologia do ensino médio: “Molhar o biscoitinho”, precisei articular um esquema auspicioso. Foi um plano de ação desesperado, pois ninguém me dava atenção, nem mesmo o cachorro da Bruninha.

A malandragem veio à tona leitor (a). Veja só como nasceu a moral e o pensamento socrático. (Tudo numa perspectiva Nietzschiana, ok?).

Você lá, no bem bom e eu no seco. Caramba! Eu não poderia terminar encalhado às três da

madruga com uma garrafa de conhaque barato nas mãos. Seria um fim deprimente... Então, quando a necessidade fala mais alto surgem os

pensamentos fora da caixa. Como eu não fui beneficiado da mesma forma que você

pela natureza, usei dos seus próprios atributos para te difamar. Eu precisava me impor ao mundo, passar meus genes para

frente. Tinha que igualar a “disputa”. Por isso, comecei a fazer sua caveira (gíria do bairro onde

morava) e queimar seu filme, falar mal de você para todos e todas. Além disso, expunha o argumento: De que não era certo

um homem ficar com mais de uma mulher, que estava errado e era um pecado.

Disse que o você não valia nada, que era um canalha enganador, que iria usar todas e depois jogar fora. Enfim, coloquei seu nome e suas atitudes no chão.

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Objetivamente, essa atitude não foi por que eu não gostava de você. Não foi para te ferrar. Precisei agir assim! Situação drásticas resultam em ações drásticas.

Nietsche menciona sobre as forças que nos animam: Existem as Ativas e as Reativas.

Você nesse contexto, seria a força ativa. Os nazistas adoravam Nietzsche por isso. Consideravam-se uma raça movida pela Força Ativa: Aquela que deseja e vai para cima. Age sem pensar nos obstáculos, age porque confia no taco, por que tem culhão para enfrentar. Já eu..., me enquadraria nas forças reativas.

Como sou um bosta e não dou conta de minhas pulsões, tenho a necessidade de criar estratégias para impedir que os outros que têm fibra, realizem seus desejos.

Veja! A moral surgiu dos reativos como eu, é obra deles. Ninguém que está no topo pensa em algo assim. O reativo é o cara que passa a rasteira numa corrida ao invés de correr. Sabe que não tem velocidade suficiente, então engenha planos mirabolantes para vencer.

Em outras palavras – Já que não posso me divertir na putaria, crio qualquer lei santa dizendo que é pecado um homem ter relações com mais de uma mulher. Claro! Na ânsia de barrar os que triunfam, concebemos as leis, as normas. Porém, se os mesmos que vomitam regras em nós tivessem energia suficiente para brigar pelo que desejam, jamais pensariam em cláusulas.

As pessoas reativas não são autossuficientes, elas são parasitas. São totalmente dependentes do lado contrário para conseguirem o que querem.

Enxerga agora, a moral no processo histórico? É complicado olhar no espelho. De repente, o fulano que

veste um colar com o símbolo da paz é o mesmo que não aguenta porrada e é contra a violência.

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De repente, o sujeito totalmente certinho é o mesmo frouxo que não consegue comer (desculpe o termo chulo) ninguém e é contra a poligamia.

De repente, o cara que não consegue manifestar todas as suas pulsões é o mesmo que as engole num copo de cachaça ou numa carreira de cocaína.

Entende, leitor? Do fracasso surgiu a moral e os “santinhos”. Para abrandar a discussão, vou colocar de outro jeito: Não

é que aquelas pessoas sejam reativas, mas o desfecho as levou a isso. Naquele instante, foram regidas por uma força reativa.

Talvez você mesmo saiba do que estou falando. Pode ser que já tenha experienciado momentos como esse.

Sócrates, na visão de Nietsche é a legitima raposa matreira, sabe por quê?

Sócrates era chato pra caramba, feio, baixinho, gordo, pobre e sujo. Não pegava ninguém, não tinha moral com ninguém, o típico inconveniente. Seu único fã de carteirinha era seu discípulo Platão (filósofo e matemático de Atenas – século IV a.C.).

E sabe de uma coisa? Ele também tinha desejos... Todo mundo tem pulsações, queira você ou não. Os ativos

e os reativos querem as mesmas coisas. Sócrates, por fazer parte da segunda laia, teve que usar a cabeça para se dar bem:

“Já que eu não posso ser o fodão aqui, beleza! Inventarei outro mundo onde serei O CARA, onde todos jogarão sob minhas regras.”

Pronto! A semente do paraíso católico foi lançada na terra. Daí para frente é só ler a bíblia: Do GÊNESIS, ÊXODO, LEVÍTICO, NÚMEROS, DEUTERONÔMIOS, JOSUÉ, JUÍZES, RUTE, 1SAMUEL, 2SAMUEL, 1REIS, 2REIS,

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1CRÔNICAS, 2CRÔNICAS, ESDRAS, NEEMIAS, ESTER, JÓ, SALMOS, PROVÉRBIOS, ECLESIASTES, CANTARES DE SALOMÃO, ISAÍAS, JEREMIAS, LAMENTAÇÕES DE JEREMIAS, EZEQUIEL, DANIEL, OSÉIAS, JOEL, AMÓS, OBADIAS, JONAS, MIQUÉIAS, NAUM, HABACUQUE, SOFONIAS, AGEU, ZACARIAS, MALAQUIAS, MATEUS, MARCOS, LUCAS, JOÃO, ATOS DOS APÓSTOLOS, ROMANOS, 1CORINHIOS, 2CORINTIOS, GÁLATAS, EFÉSIOS, FILIPENSES, COLOSSENSES, 1TESSALONICENSES, 2TESSALONICENSES, 1TIMÓTEO, 2TIMÓTEO, TITO, FILÊMOM, HEBREUS, TIAGO, 1PEDRO, 2PEDRO, 1JOÃO. 2JOÃO, 3JOÃO, JUDAS E APOCALIPSE.

Realmente Nietsche tem argumentos que, no mínimo, devemos nosso respeito. Ou talvez não! Um pensador que morreu cantando para as paredes, louco de sífilis no terceiro estágio, merece crédito? Quem vai analisar é você, amigo leitor.

Eu só relatei uma festinha inócua.

De volta ao Boteco. Mesmo depois do suicídio, Enrico teve a coragem de abrir

as portas. Que homem sem coração, leitor (a)! Mas... Já que está

funcionando, por que não tomarmos uma birita? E assim fizemos. Chegamos aproximadamente às oito da noite. Manu-Manu

nos aguardava sem sabermos. Ele petiscava tranquilamente algumas sementes de abóbora no pequeno bistrô:

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– Como estão, amigos? Dormiram um sono dos anjos? Olha, parece mentira o que vou dizer, mas dormi feito uma

pedra. Nem lembrei de Alexandre quando cheguei no apartamento, respondi a ele.

– Venham amigos, a nossa mesa da alegria (sete) está

reservada. Não sei bem como é o senso de humor da galera da Índia,

mas Manu-Manu surpreendeu. Estava engraçadinho, como se nada tivesse acontecido.

No balcão central, Enrico atendia um senhor de paletó preto. Verifiquei uma tensão no bate papo. Os dois franziam as sobrancelhas, como se não houvesse jeito de concordância.

O vovô bem trajado segurava na mão esquerda uma maleta. Retirou cautelosamente um livro. Com arzinho de vitória e preponderância, ele respira fundo e diz:

– Esse é meu verdadeiro tesouro, minha riqueza. Deixei de

lado os negócios para servir a Deus. Hoje sou muito feliz e próspero espiritualmente.

É maluquice as coisas que se desenrolam em um bar da

Augusta. Nunca imaginei que, em uma situação aparentemente normal, surgiriam tantas reflexões metafísicas. (Aguenta um pouquinho que já vai entender)

Uns minutos passaram, e do banheiro sai ninguém menos que Boquinha.

Pronto! Agora sim o quarteto está formado de novo:

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– Olá meus caros amigos, disse ele se referindo a nós dois, leitor.

– Vamos esquecer o que houve na noite passada e comemorar esse dia tão libertador. Temos muito que conversar.

E quando ele ia abrir a matraca... Desviou os olhos para o

senhor de paletó preto. – Não acredito que esse sujeito idoso e patife está aqui

ainda. Precisamos salvar nosso amigo do invejoso glorificado. Quem tem parentes como ele não necessita de inimigos. Concluiu Boquinha - O Sem Dentes.

Você sabe quem é o velhote no balcão, leitor? Manu sai do bistrô e nos convida para sentar na mesa, e

logo começou a explicar tudo: – Amigos, o vovozinho ali é um primo do Enrico. Vocês

repararam que tem um pé de pimenta no canto do barril de carvalho?

– Então, sempre que o Sr. Sócrates (nome do senhor de paletó) vem à cidade, ele dá uma passadinha aqui no bar. Mas ele é extremamente inconveniente e invejoso, por isso o vaso de dedo de moça (nome popular para uma qualidade de pimenta). Elas quem padecem no final, coitadas. Ficam secas e esturricadas.

De repente, o vovô se tornou pastor de algum templo de

esquina e toda vez dá um sermão no Enrico dizendo que o negócio que ele leva é contra os preceitos cristãos. Ou que deviria fechar o quanto antes, por que a bebida não é abençoada.

Aí Enrico brinca:

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– Jesus era cabeludo, bebia vinho e andava de sandálias... Era quase um hippie! Por isso, deixe de besteiras, Sócrates.

O mais irônico de tudo, é que o vovô glorificado só deu

início à jornada espiritual depois que os negócios faliram. Boquinha disse que ele não tinha clientes, era um vigarista

pinguço, que buscou nos templos um jeito de ser reconhecido, de ter alguma clientela de volta.

Essa história não lembra as forças ativas e reativas? Até o nome dele é o mesmo que o do filosofo ateniense – Sócrates.

Enrico é o típico ativo que faz e acontece e seu primo é um reativo de merda que tenta barrar os negócios, vomitando sermões.

Viu alguma analogia com as explicações de Nietsche? Resumindo a novela: Enrico sempre fica de saco cheio

com os blá-blá-blás do velho e manda ele “al diavolo, Vattene, Stronzo!”

Italianos... Vai entender.

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TÁ NO INFERNO, ABRACE O CAPETA

Antes de continuarmos, tenho uma pergunta muito importante, leitor. Quero que diga honestamente: Está se sentindo ofendido, injuriado?

Talvez esteja meio alarmado, apreensivo quanto às nossas reflexões.

Se falei alguma coisa que te deixou pensativo, confuso... Isso é maravilhoso! Porque, de algum jeito, suas convicções foram abaladas. Veja bem, toda conclusão sobre qualquer coisa, significa a MORTE. Isso quer dizer que você deu um ponto final no assunto, que você “já sabe” sobre aquilo e fim de papo.

A ideia do livro não é essa. Não é esgotar nada, de forma nenhuma. Porém, se uma única frase mencionada aqui, teve a disposição de mexer com os seus valores, com o que você acredita, seus conceitos e afirmações pré-estabelecidas, é porque nada (ou parte) do que você pensa está realmente fundamentado. Nada foi vivenciado em primeira pessoa. Só foram conclusões idealizadas, decorrentes de processos racionalizados, dedutivos ou ouvidas de terceiros. Do contrário, nunca ficaria confuso.

Um exemplo: Se eu disser que você tem 80 dedos no pé esquerdo, não irei te confundir. Suas convicções sobre a quantidade de falanges não serão estremecidas, pois isso é uma verdade cabal, consumada. Sem sombras ou margens para dúvidas.

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A verdade é sempre inabalável, irrefutável. Não surgem dúvidas quando ela se apresenta. Igual à fé. Você pode dizer argumentos extremamente lógicos e sistematizados - no entanto, nada irá mudar. Adivinhe o porquê, leitor.

Porque a mudança é inerente à vida e não depende do nosso desejo ou argumentos de transformação para ela acontecer. Simplesmente ela acontece!

É igual dizer que nós mudamos por tal pessoa ou por “N” causas, é uma infantilidade gigantesca, uma prepotência. Nós mudamos a cada instante, a cada segundo, você não precisa querer. Mas pior que dizer tal arrogância, é afirmar (com soberba) que mudamos os outros.

Pare de sonhar! Ninguém efetivamente tem o poder de mudar as pessoas. Os outros mudarão por si só..., como você também. A vida é um fluxo, o é rio vacilante. A brisa sopra do Leste e depois muda a direção. É a natureza!

Quem garantirá que no crepúsculo eu ainda permanecerei convicto sobre isso? Quem sabe? Ainda estou vivo! Minha história ainda não se findou.

A verdade é tão inabalável quanto a fé nesse sentido. As duais são eternas, pois renascem em cada ser humano particularmente.

E sabe o mais louco sobre a verdade? Ela só se manifesta diante do falso! Veja o exemplo que dos 80 dedos, é irreal, hipotético, fictício. A verdade não deixa brechas para dúvidas, ela se manifesta através do falso.

Os sofistas dizem o seguinte: “Tudo é relativo. A verdade não existe” Mas observe... A própria afirmação de que a verdade não

existe, já é proposição da verdade em si, consumada.

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Para mim, não existe coisa mais importante do que a busca pela verdade. E se entendemos Deus como sinônimo de verdade..., não existe nada mais importante que Deus. Nada! Nem poder, nem grana, sexo, família ou filhos.

Uma vida sem respostas não vale à pena ser vivida. Por mais que homem ou a mulher não chegue a lugar algum, a própria busca é o caminho da beatitude, da ataraxia (completa ausência de perturbações), da eudaimonia (que no senso comum é a felicidade ou bem-estar), como diziam os gregos da antiguidade.

Vou confessar um segredo para você. Tenho grande afinidade pela Teosofia e é pertinente eu mencionar uma frase do seu arcabouço.

“Não há religião superior à verdade” E te digo mais: não há nada que vale mais à pena que a busca pela verdade. Ao contrário do que Nietzsche achava, Sócrates era

considerado o homem mais sábio de Athenas e sabe por quê? Por que ele admitia sua ignorância. “SÓ SEI QUE NADA

SEI” Fora a verdade estruturada pela fé ou vivenciada em

primeira pessoa, o resto é conversa. Humildemente, darei outro sentido para a máxima

Socrática. “Sabemos sem saber porra nenhuma”. Falamos um monte de bobagens sem a profundidade do que está sendo dito.

É tipo alguém falando sobre a fome com a geladeira cheia de guloseimas, sem nunca ter vivenciado a falta de alimento na cumbuca, ou ainda pior, sem a expectativa de se alimentar. É como dizer que entende o que é o amor sem ter vivido ele. Só por ter lido “O BANQUETE” de Platão acha que tem propriedade, profundidade. Mas são palavras rasas, falsas. Sábios que não sabem!

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A conclusão é inexpressiva quando é verdadeira - do contrário, só rumores. Por isso existe uma grande diferença entre os filósofos, os fanáticos e os sábios.

Os filósofos sempre estão abertos a novas perspectivas (pelo menos era para estarem). É como a Ciência.

Até o momento chegamos aqui, mas isso está longe de encerrar o assunto.

A filosofia é o pai e a mãe de toda “logia”. Mas existe a classe juvenil de fanáticos, dos dogmáticos. Dessa, quero distância! Estão conclusos, terminados, prontos, acabados, sem espaço para o novo. Estão mortos! Por “n” motivos fecharam as portas para o movimento. E a vida é um movimento, ela é mais próxima da dialética do que um silogismo.

O que não se mexe está sem vida, sem respiração. Os que dizem serem convictos, só são o que são por medo. Se fecharam em algum dogma, em alguma verdade por medo. Medo de se lançar no desconhecido, em campo aberto. São crianças necessitando de mãos paternas para atravessar a rua. Alguém que lhes dite as regras do jogo da vida, de como levá-la.

E, por último, mas raríssimos: São os autênticos sábios. Eles vivenciaram a realidade, sabem que ela é inexpressível. A verdade é irrefutável, é um axioma Euclidiano, é algo auto evidente, inquestionável, incontestável.

Os sábios estão abertos para a vida tanto quanto os filósofos. Contudo, para os primeiros, não existem mais perguntas a serem feitas. É uma conclusão qualitativamente diferente que a dos dogmáticos, dos fanáticos. Os sábios não têm mais perguntas por que tudo já está respondido no aqui e agora. Essa é a diferença crucial entre eles.

Novamente afirmo, leitor: as pessoas que experienciaram a realidade, a verdade, Deus, ou como queira chamar... Não criaram as instituições religiosas. Não criaram as nomenclaturas, os rituais

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e a quizomba toda. Isso é obra dos miseráveis (nós), das crianças. Jesus não fundou o cristianismo, não criou a liturgia e nem o dogmatismo católico. Ele mesmo era a exposição viva de Deus, da sua mensagem. Buda nunca quis criar o budismo, foram os miseráveis que inventaram tudo. Verdhamana não fundou o jainismo e nem se intitulou o último dos vinte e quatro tirthankaras. Lao tsé não queria um monte de gente a seus pés falando sobre o Tao, ele era a própria manifestação do Tao, foi obrigado a relatar seus ensinamentos para ir embora.

Falamos sobre um monte de coisas que não são nossa realidade. Somos sábios que não sabem. Acreditamos honestamente em nossas próprias mentiras. Por esse motivo a necessidade da teologia. Ela se estrutura na carência, precisa de toneladas e mais toneladas de pergaminhos para argumentar/elucidar a vivência de um Krishna, de um Zaratustra. Eles mesmos não precisam disso. A própria experiência já responde qualquer coisa. A teologia existe para tentar explicar racionalmente coisas que não se explicam em palavras, em nenhuma língua.

Os sábios entenderam isso. Compreenderam que para aceitarmos a vida, é imprescindível que antes aceitemos a morte.

Eles mataram a morte! Enquanto o mundo corria dela, os sábios abraçaram a

morte. Ela é a causa de todos os nossos medos e angustias. Parece sarcasmo, mas vivemos diretamente ou indiretamente pela morte. Temos medo de não existir depois do último suspiro. Então fazemos poesias, quadros, pinturas, música, gravamos o nosso nome em alguma lápide de ouro. Tudo isso para continuarmos vivendo, continuarmos existindo - mesmo que seja dentro de um livro. Queremos ser lembrados por alguém a qualquer custo. A morte sempre está enredada em nossas vidas, em nossas ações.

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Ela é a sina que todos carregam. Efetivamente, é a única certeza que temos e que nos movimenta pelas sobras. É a realidade mais verossímil que há. Todo o resto provém da raiz MORTE.

Quer ver um exemplo: O sexo. Transar está conectado diretamente com a morte.

Buscamos lá no fundo perpetuar a espécie, eternizá-la. Na verdade, buscamos NOS eternizar, nem que seja pelo DNA, nas lembranças dos netos e assim por diante. Podemos afirmar o contrário: que nos relacionamos somente pelo prazer e o fato dos anticoncepcionais estarem no mercado é uma prova disso. Talvez superficialmente você tenha razão, contudo, se cavar um pouco mais, encontrará o sexo como um meio para continuarmos existindo depois que os olhos se fecharem.

Em cada gozada ouvimos a natureza lutando contra a entropia.

O tantra é umas das filosofias mais antigas da terra. A palavra significa literalmente TÉCNICA. Ela diz que buscamos enlouquecidamente o sexo, porque no momento do orgasmo a nossa mente para. Você não existe mais. Não pensamos em nada. Os dois se tornaram um, ou nenhum se preferir. Naquele momento você é tão somente a movimentação da natureza se auto preservando.

Para os yogues tântricos é um segundo de iluminação, um flash, um instante da realidade divina. Por isso gostamos tanto de sexo, não por ele em si, mas pelo átimo de não-mente. Um cadinho de unicidade cósmica. Os esportes radicais, meditação - até mesmo bebidas alcoólicas, são situações em que a mente para ou diminui a atividade, consequentemente a percepção de observador vem à tona. Você fica distante do cenário. É como um teatro da vida real. Você enxerga o ator como objeto, que é você mesmo.

Consegue compreender?

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Porque o perigo é tão instigante? Porque saltar de paraquedas ou de bungee jumping nos deixa vivo?

Porque, quando estamos em perigo nossa mente dá no pé. Ela foge de medo de morrer.

Eventos como esses nos deixam em contato direto com a realidade, tal como ela é. Pois de outra forma, vivemos ela na subjetividade, enxergamos ela com os olhos de julgamento, de pré-conceitos, de ideias pré-concebidas e etecetera.

A verdade só é vivida sem a presença da mente. Existiu um sujeito que gosto bastante chamado Jacques-

Marie Émile Lacan, ele foi um psicanalista francês do século XX. Lacan expõe, que o mais próximo que podemos chegar da realidade, do real, é quando nos deparamos com alguma circunstância que não damos conta de imaginar e nem simbolizar por palavras ou gestos. Tipo os momentos que costumamos dizer:

“Foi tão impactante que não tenho palavras para expressar”

E o mais contraditório de tudo, é que ao surgir casos desse jeito, dizemos que foi tão chocante que nem parece ter sido real.

Nas palavras de Bhagwan Rajneesh: “Para nós entrarmos na vida, temos que matar a mente” Claro que no sentido figurado, por favor... sem imaginar

besteiras. Não vai pegar um revólver calibre trinta e oito e colocar uma bala na cabeça. Isso é idiotice e não sabedoria. Você precisa morrer para viver! Quando a mente para... O ego desaparece, ele “morre” (nesse sentido).

Teve um pensador (que não recordo o nome) que diz mais ou menos assim:

“Quando não estou, Deus está e quando estou, ele não está”

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Todo mundo se identifica como sendo a mente. Mas perceba - você é a consciência e não a mente. Você é quem observa a mente, e se não acredita no que estou dizendo, faça um teste bem simples. Sente-se e tente meditar por cento e vinte segundos, dois minutinhos. Veja como ela funciona independentemente de você. Faça o teste. Quantas vezes já tentou deixar de pensar em algo, mas não consegue? Quantas vezes você queria dormir, mas os pensamentos te arrastavam para onde eles queriam?

A mente é autônoma e não tem nada que possa ser feito, há não ser observá-la. Quanto mais arrisca controlar, mais controlado por ela você fica.

Quer um exemplo? “O próprio fato de achar que parou de pensar, é uma

evidência de que ainda está pensando”. Ela é danada, malandra. Não perca tempo querendo dominá-la, irá se frustrar.

“PENSAMENTOS FORA DA CAIXA” é um livro que nasceu para desconstruir convicções e valores. Não estou aqui para passar as mãos na cabeça de ninguém. Quero pôr um espelho na sua frente e deixar cair por terra as ilusões que disseram para você até agora. Uma delas é que você não é o que pensa. Você é quem observa o pensamento. Pura consciência. O observador. O que está por trás da mente.

Óh, vamos retornar ao boteco para dar uma relaxada nessa história?

Quando estamos muito tempo na escuridão de uma caverna, é bom abrir os olhos aos pouquinhos, se não a luz nos cega. É o que está acontecendo com você, leitor. Ficou preso por décadas em convenções políticas, religiosas e familiares.

Chega! Precisamos entrar no casulo de nós mesmos para dar lugar ao novo, às asas. Chega de nos rastejar. Temos um potencial para as alturas. É como uma semente de mostarda. Ela é

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minúscula, ínfima. Mas está no seu germe uma das maiores árvores que conheço. Linda, majestosa, exuberante.

Sugiro a leitura de uma obra. “A República” de Platão. Nela está a alegoria da caverna. É bem interessante.

O salão parecia tranquilo. Ainda era cedo para o

movimento. Um casal homoafetivo no balcão central, quatro pessoas se acomodando do lado de fora devido ao calor, alguns trocados de gorjeta fizeram sorrir o único garçom do bar. Eu realmente me espanto com a Rua Augusta. Quando você acha que já viu de tudo, ela sempre te surpreende.

O que vou falar parece óbvio, mas nada do que acontece aqui é tão óbvio assim.

Depois da pregação angelical de Sócrates (primo inconveniente), fomos beber cerveja:

– Enrico! Manda aquela gelada e uma porção de queijo.

Disse Manu-Manu. Nosso lugar já estava reservado naquela data. Contudo,

havia um copo perdido em cima da mesa sete. Ele estava cheio de um líquido escuro, turvo, parecia um chá com mais consistência.

Talvez você suponha que não há nada fora do ordinário - um copo, numa mesa dentro de um boteco.

Parece óbvio, certo? Nada de estranho. Mas, como lhe disse... Este lugar pode te surpreender.

Ao lado do tal copo havia um bilhete escrito. “Beba... Mudanças nunca adiantaram efetivamente. Precisamos

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nascer novamente, um novo homem, uma nova mulher. Mate o antigo para que surja o novo”.

Caramba! pensei eu. Que mensagem enigmática. Quem estaria brincando com a gente? Você teria coragem de tomar, leitor? E se for algo tóxico, um veneno? Todos ficaram ressabiados. Então, Manu-Manu disse:

– O boteco parece estar convidando alguém para uma viagem sem retorno.

Da maneira que ele falou, deu a entender que o recinto tinha vida própria, ou que iríamos desaparecer, alguma coisa do gênero.

Bom, nada disso aconteceu. Era estranho... Mesmo conhecendo esse indiano a somente

uma noite, eu tinha plena confiança no que falava.

– O que você sugere, Manu? Perguntei – Você tem medo da morte? Respondeu ele com outra

pergunta.

Fala a verdade, amigo leitor: quem não tem medo do desconhecido?

Talvez os "machões" digam o contrário, mas é irrelevante. Fomos condicionados a enxergar o derradeiro como algo não natural.

Ouvi certa vez uma frase da SUA SANTIDADE DALAI LAMA, quando perguntaram o que mais surpreendia ele na humanidade. Então, veio a bomba:

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“O Homem. Pois perde a saúde para juntar dinheiro, depois perde o dinheiro para recuperar a saúde. Vive pensando ansiosamente no futuro, de tal forma que acaba por não viver nem o presente, nem o futuro. Vive como se nunca fosse morrer e morre como se nunca tivesse vivido”.

É simplesmente do caralho o que ele disse! Reflita, leitor. Devíamos não ter medo, porém o fato é outro. As coisas são como são, e não como deveriam ser. Outros países veem a “malvada” da foice, como

salvadora. Aquela que nos tira da lama terrena para respirar ar puro.

No México é assim. O povo festeja o “Dia de Los Muertos”, celebram a morte.

Comemoram a visita de seus antepassados à Terra com festa, flores, bebida e comida. Sabem que a vida não acaba no túmulo, por isso o medo é uma bobagem. E se de repente os materialistas estiverem certos: “Que não há o outro lado, que depois dos olhos se fecharem acabou tudo?”. Ainda assim, o medo da morte é uma grande ilusão.

Epicuro (filósofo grego do período helenístico, 341 a.C. – 271 a.C.) no seu jardim (nome da escola que fundou) dizia o seguinte.

“A morte não é nada para nós, pois, quando existimos, não existe a morte, e quando existe a morte, não existimos mais”.

Após o questionamento do indiano sobre o medo da

morte, respondi com segurança:

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– Quero tomar esse chá, amigos. – Sim, sim, confirmou ele. Aguardávamos você. Está sabendo de algo, leitor? Quem me aguardava? Nós

quem? Papo estranho. Bom, como dizem por aí: "Tá no inferno, abrace o capeta".

Virei num gole só aquela substância marrom. Todos do bar se levantaram e gritaram saúde... Porra! O

que tá havendo aqui? Parece um complô. É como se já estivessem aguardando minha decisão.

Bebo ou não bebo? O efeito do liquido agiu rápido no organismo.

Eu já tinha estudado bastante sobre alguns psicoativos. Comecei minha jornada científica após ler “A erva do

Diabo”. Naquela hora, eu parecia Carlos Castaneda (escritor e

antropólogo latino-americano, 1925-1998) sem o mestre Don Juan.

Você já ouviu dizer algo sobre enteógenos? Tenho verdadeira paixão no assunto. Vou explicar o que são... A palavra significa literalmente: Manifestar o Deus, o

divino interior. Não entrarei no mérito da subjetividade da palavra, certo?

Existem muitas substâncias da natureza que tem o poder de mexer com nosso sistema nervoso central. Elas podem ser encontradas nos três reinos: mineral, vegetal e animal.

Os enteógenos são presentes deixados na história humana. Ninguém sabe exatamente de onde vieram esses conhecimentos.

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Há escrituras com mais de cinco mil anos que já mencionaram tais fatos. O “Rig Veda” é um exemplo, também chamado de “Livro dos Hinos”, é uma antiga coleção de hinos védicos. Dizem ser o primeiro e mais importante dos Vedas. Ele descreve uma bebida assim:

“Nós bebemos soma, nos tornamos imortais, chegamos à luz,

encontramos deuses”. Aldous Leonard Huxley (escritor inglês, 1894-1963) relatou

na obra "ADMIRÁVEL MUNDO NOVO" sobre a droga “soma”: uma substância que tem a capacidade psicoativa de nos deixar felizes, com sensação de bem-estar. Utilizavam afim de nunca ficarem tristes, deprimidos.

Não quero perder energia com questionamentos do tipo: O que é a felicidade? Estou falando no próprio sentido do senso comum.

Conta-se que Buda nunca respondia a certas perguntas - dizia ele que era somente perda de tempo e não chegaríamos em lugar nenhum.

Darei uma de Sakyamuni hoje! Não responderei nada de perguntas desse gênero aqui.

Existem muitos enteógenos e muitas religiões/filosofias que fazem o uso deles.

Só para você ter uma ideia da variedade de plantas com poderes místicos: Salvia Divinorum, Cacto Peiote, Amanita Muscaria, “gosminha” do sapo Kambo e tantas outras que desconheço.

Tem uma bebida em especial que é o meu objeto de curiosidade, de sina e assombro.

Ela é famosa e tem vários nomes. Depende do local onde a celebram, do contexto ou da cultura.

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Chama-se ayahuasca, vinho das Almas, caapi, vegetal, yagé, bejuco bravo, daime, pindé, chá dos deuses e por aí vai. Falam que essa bebida tem mais de quarenta e duas nomenclaturas indígenas. Uma combinação de duas plantas que também varia muito as terminologias. Funde-se num caldeirão o segredo da floresta amazônica: o cipó Banisteriopsis caapi (mariri ou jagube) com as folhas do arbusto Psychotria viridis (chacrona ou rainha). É considerado pelos nativos como o espirito da mata. A chacrona tem como princípio ativo a substancia DMT, que significa dimetiltriptamina. É ela que faz a magia acontecer. Os cientistas afirmam que o nosso próprio organismo libera em grande quantidade o DMT, uma vez na hora do nascimento e outra no momento da morte. A substância é produzida pela glândula pineal ou epífise neural. Ela é do tamanho de uma ervilha, fica no meio do cérebro, na altura dos olhos.

Não é doido isso? Falando em maluquices, recordei-me de Hunter S.

Thompson (escritor e jornalista norte-americano dos anos 60) que no livro “Medo e Delírio em Las Vegas”, conta sua viajem psicodélica com “extrato de pineal”, Hunter toma adrenocromo (glândulas de adrenalina de um corpo vivo).

É muita insanidade para mim, leitor - prefiro não acreditar nessa loucura. Mas deixa para lá...

Uma planta com propriedades místicas que tem a mesma substância produzida por uma glândula dentro da nossa cabeça. Só que não termina aí não...

Nos animais, a pineal tem fotorreceptores iguais aos presentes em nossa retina, os bichos se orientam com ela no processo migratório. Sintonizam o campo magnético e vão. A glândula tem a mesma origem biológica dos olhos, como se fosse um terceiro globo ocular. Inclusive na índia afirmam que é a janela de Brahma, que, quando bem treinada capta realidades

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transcendentes. No período da modernidade René Descartes (filósofo, físico e matemático francês da modernidade no século XVII) defendia que a pineal seria a morada da alma. Os espíritas afirmam que a glândula é a responsável pela existência no plano mental, ou ainda, age como receptora de frequência, de ondas. Veja, só leitor...

A pineal possui cristais de apatita semelhantes aos minerais colocados em rádios receptores de frequências. Essa areia cerebral, como é conhecido, vibra conforme as ondas eletromagnéticas que capta. Talvez, controlando a regulação do ciclo menstrual (apenas como título de exemplo) ou a orientação dos animais, como falei anteriormente.

Outra curiosidade, é que as pessoas com maior sensibilidade mediúnica (se é que posso dizer assim) têm uma quantidade maior dos cristais no cérebro. Isso poderia explicar também a facilidade delas na comunicabilidade com os espíritos.

Adendo rápido: Não é a hora “AINDA” de discutirmos sobre reencarnação, psicografia, Chico Xavier (foi um médium e filantropo. Escreveu inúmeros livros e talvez tenha sido um dos maiores expoentes do espiritismo no Brasil, 1910 - 2002) e etc... Vamos com calma, por que num bar a coisa é lenta e a pressa é inimiga da perfeição.

Eu poderia escrever um capítulo inteiro sobre a misteriosa glândula. Contudo, ela não é o foco aqui. Sugiro a leitura da tese de mestrado do médico psiquiatra brasileiro Dr. Sergio Felipe de Oliveira, que versa sobre o estudo da intraestrutura da glândula pineal humana com microscopia eletrônica. Ele examinou por muitos anos o órgão, suas considerações são muito relevantes.

Desculpe, eu sempre me esqueço de onde paramos. Ah, O chá! Se tomarmos somente o chá com o princípio ativo da

chacrona (DMT), nosso organismo entenderá que ela é tóxica, algo

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ruim para nós. Então o corpo vai liberar uma enzima chamada monamino-oxidase-A, que é a responsável pela degradação da serotonina, inibindo o DMT. Sendo assim, não terás brisa, amigo. Aí que entra o cipó mariri. Ele tem as β-carbolinas harmina, que são alcaloides inibidores da monamino-oxidase-A (IMAO).

Então, quando juntam as duas plantas acontece o milagre... A chacrona pode agir sem “dor de cabeça”, por que o mariri resolveu o problema da tal enzima (corta brisa).

Entende isso? Quem descobriu isso, leitor? E como? No meio de tantas plantas, acharam a combinação perfeita.

Eu nem imagino a quantidade de espécies vegetais que tem uma floresta amazônica, deve ser muitas. Entre todas elas, a sabedoria milenar escondida nas folhas de uma árvore e num cipó retorcido.

A Ayahuasca é um chá antiguíssimo. É um enigma... Do tipo as Linhas de Nazca ou a Grande Pirâmide de Gizé.

Existe uma teoria que diz que os homens conheceram o divino, entraram em contato com ele por meio de erros e acertos na busca pelo alimento. Uma hipótese de que a primeira religião adveio nesse contexto.

Ou seja: Algum dos nossos ancestrais estava faminto e ao comer um matinho aqui, uma frutinha ali, experimentou um cogumelo da espécie Psilocybe Cubensis ou talvez uma semente da Ipomoea Tricolor.

Quem vai saber? Aí o homenzinho das cavernas ficou brisando (alucinando)

nos passarinhos, nas rochas, nas cachoeiras, até que por ventura... deuses se manifestaram, entidades bem feitoras, espíritos da floresta, animais sagrados. Não sei mais o que ele poderia ter enxergado, mas a questão é o seguinte: pode ter nascido assim a experiência mística, transcendental, sobrenatural.

Minha viagem estava apenas começando...

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No divã, a sensação que tinha é que ele me engolia. Por um infinitésimo de segundo vi que ninguém está separado objetivamente.

Se pegarmos um retalho de tecido e puxarmos um único fio da parte de baixo, todo retalho sentirá as consequências. Nossa vida é como uma tecitura, uma teia. Não somos organismos avulsos, desprendidos um do outro. Estamos cegos em achar o contrário. Qualquer coisa que você faça, suscitará uma consequência a nível cósmico. Uma sequência infinita de fatos no mundo inteiro.

Estamos unidos como duas margens de um rio. Parecem dois elementos soltos, mas no fundo estão unidos, juntos.

Da mesma maneira é a humanidade, leitor - somos uma coisa só. Tanto entre os outros seres vivos, quanto nós mesmos e o universo.

Liev Tolstói (escritor russo, 1828-1910) tem uma belíssima parábola chamada “ASSARHADON, REI DA ASSÍRIA” que diz justamente sobre a unidade existencial. Prometi a mim mesmo que não falaria nada a respeito de Tolstói. Sou um arbitrário suspeito, já que gosto muito dele. No entanto, as obras desse escritor é de uma riqueza “sui generis” que vale a pena mencionar.

Sabe o que foi mais louco nessa história? É saber que é a vida que nos leva, e não a gente que leva a vida. Não estamos separados dela. É como se fôssemos células de um grande corpo, mas não com a mesma semântica dos estoicos (os filósofos que vimos anteriormente).

Existem trilhões de células especializadas em um organismo, beleza? Cada uma delas fazendo o que é correspondente à sua natureza. Talvez, essas células achem que estão no controle de suas ações, iguais a nós. Quando na verdade, são regidas pelos movimentos desse grande corpo, ou seja: da Vida.

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Somos pequenas células egocêntricas e iludidas com autonomia.

A vida é muito paradoxal. Ao mesmo tempo que minhas ações supostamente deliberadas acarretam profundas consequências no todo, nós somos o resultado de um movimento autômato que é a existência.

É como se a mente existisse apenas para contar historinhas lógicas justificando minhas ações. Mas as próprias ações são consequências da vida.

O filósofo, escritor e crítico francês do século XX Jean Paul Sartre, tem razão no que diz em sua obra - “Existencialismo é um humanismo”. Só esqueceu de um detalhe: ele é uma gota d'água tentando definir o movimento do oceano. Somos ainda limitados pela ignorância. Ouvi certo dia um discípulo sufi perguntando ao seu mestre:

– Existe realmente o livre-arbítrio? O sábio respondeu: – Você pode escolher qual perna irá levantar. Contudo, não pode

erguer ambas as pernas... Louco, né? Foi isso que entendi naquela pira. Vou dar outro exemplo: É impossível separar o côncavo do convexo, a diástole da

sístole, o abrir do fechar. Parecem dois movimentos, mas é somente um. Quando

você contrai um lado, está automaticamente relaxando o outro. Nossos corpos não são linhas delimitadoras entre vida e ser. Eles

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são sinônimos, ou já encontrou na rua algum ser sem vida? Não existe!

Se você fechar a mão e apertar, consequentemente estará afrouxando o outro lado. Ou seja: Contraímos a mão e relaxamos a vida.

Estou me fazendo entender? Pense o seguinte: O contorno do seu corpo está riscado no

papel em branco. Eles representam estarem separados, certo? O desenho é uma coisa e a folha é outra. Mas é um equívoco da nossa parte acreditar em tal bobagem, pois é um evento só. A existência nos dá o contraste de sermos individuais, tanto quanto damos o contraste na existência de estarmos separados dela. Por isso a ilusão – Eu aqui e a vida ali. Apenas uma miragem segmentária.

Nossa mente tem uma visão Gestalt (para entender melhor o que significa a expressão, busque desenhos com o nome: GESTALT).

Não conseguimos enxergar tudo ao mesmo tempo. Ou irá ver a velha no quadro ou a bela moça. Ou os cálices ou os rostos.

Escreva Gestalt na Internet que compreenderá. A natureza da mente não é panorâmica. Ela precisa dividir para entender. É dual, binária, dicotômica.

Talvez por isso, julgamos o holístico e amamos ciência newtoniana (diz respeito ao cientista inglês Isaac Newton, 1643-1727).

Só que a evolução ocorre sempre por necessidade, lembra? Hoje os eruditos estão percebendo a inter-relação nas áreas do conhecimento.

Alan Watts (filósofo, escritor e orador norte-americano, que disseminou a tradição oriental no ocidente na década de 60) já havia citado em várias entrevistas.

Exemplos:

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Geografia e Política = Geopolítica Neurologia e Psicologia = Neuropsicologia Fatores que relacionam aspectos sociais e econômicos:

Sociologia e Economia = Socioeconômicos Compreendeu? Quando matamos alguém, estamos nos matando também.

Nunca existiu eu e você. O que existe é nós, uma unidade... a Vida! Somos apenas manifestações da existência. O universo é uni, uno, um.

A palavra Advaita quer dizer isso: Não-dualidade Quanto maior o ego, maior a quimera de distância entre as pessoas, entre nós e o mundo.

O egocentrismo é a mazela do ego, que por sua vez é a mazela da sociedade.

Cada palavra que estou dizendo é somente vaga lembrança do que experimentei quando estava sob o efeito da bebida. É impossível reproduzir fielmente o que senti. Os signos apequenam a realidade. Tente descrever em palavras o cheiro de uma rosa. Por mais que seja um botânico especialista e detalhista, o que experimentou é quase diametralmente oposto do que irá verbalizar.

Naquela hora, meu coração só faltava sair do peito de tanto amor que transbordou.

O medo que sentimos em relação à finitude, tinha desaparecido. Eu já não era o mesmo. O bar se tornara meu casulo. Eu não estava mudando... estava transmutando. De lagarta rastejante, me vi com asas coloridas. Tipo Franz Kafka (escritor tcheco de língua alemã, 1883-1924) no livro “A Metamorfose”. Só que no bom sentido da experiência vivida por Gregor Samsa (no caso, eu).

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Percebi que ninguém é o que acha ser. Usamos diversas máscaras no dia a dia. Vivemos em um majestoso teatro da vida e nós somos literalmente atores contracenando.

Estamos dormindo para a nossa verdadeira natureza. Imagine que somos peixes no oceano alienados do fato de

vivermos dentro dele. Estamos no mesmo mar, unidos por ele. O ser humano é muito mais que rótulos, posses e

diplomas. Somos a própria manifestação do divino. Uma analogia que demonstra o que estou falando, é um pingo d'água retirado do oceano. Uma única gota isolada, ainda é o mar. Tem as mesmas propriedades que toda a vastidão azul. O pingo d'água está no oceano tanto quanto o oceano está no pingo d'água. Ao meu ver, é exatamente a mesma relação nossa com Deus.

Somos as gotículas e o mar é Deus. Sigmund Freud menciona que todos os “por quês” vindos

das crianças, querem dizer uma única pergunta: “DE ONDE VIEMOS?” E sabe qual é a resposta que obtive? Não viemos de lugar algum. Sempre estivemos. Sempre

fomos. Só não temos consciência dessa verdade. Por hora chega de devaneios, caro leitor. O bar já havia trancado as portas e só restavam nós quatro, o Enrico e o garçom.

Não conseguia lembrar da hora que tomei a bebida. Fiquei completamente alienado do mundo exterior, a minha atenção voltou se para dentro. Cliquei no Stop. Parei! Dei um tempo na claridade da rua e me isolei internamente. Encontrei-me comigo mesmo naquela noite.

A pausa às vezes é santo remédio. Imagine as notas musicais sem os devidos tempos. Não haveria partitura, não

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existiria melodia. Seria um ruído continuo e sem graça. A pausa é uma meditação. A pausa na vida nos vivifica. Um tempo sozinho resolve muitas coisas, põe nossa cabeça no lugar. De vez em quando é bom nos afastar do mundo.

Tem uma parábola que diz o seguinte: Estavam na floresta o mestre e o aprendiz. Os dois cortavam lenha

para se aquecerem do frio: – Mestre, mestre! Gritou o discípulo. – Vamos fazer uma aposta? O ancião, prevendo a chance de ensinamento, respondeu: – Fale o que quer. – Desafio o senhor a uma competição... Quem cortar menos arvores

em trinta minutos, carregará toda a madeira sozinho para a choupana. De acordo?

Imediatamente, o velho sábio aceitou o desafio. O discípulo pegou seu machado e saiu cortando enlouquecidamente o

que via pela frente. Estava indo bem, tinha derrubado muitos troncos... O que não compreendia, é que toda vez que olhava para o mestre, ele estava parado a fazer algo.

Passado o tempo determinado, os dois foram contar a produção. – Tem algo errado aqui! Mencionou o aprendiz. – Estou suado, exausto e mesmo assim você cortou bem mais que eu.

Te vi parado inúmeras vezes. Como? O mestre sabido explicou:

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– Enquanto você se desgastava usando um machado sem corte, eu parava hora ou outra para afiá-lo.

Entende a necessidade do ócio, leitor? Solitude está intrinsicamente relacionada com pausa,

intervalo. Todos precisam de um tempo sozinhos. Na verdade,

nascemos sós e morreremos sós. Estamos sempre desacompanhados em nosso mundo interno, e o evento da identificação com o “EU” reforça ainda mais isso. Ninguém enxerga ou pode enxergar o mundo com nossos olhos. Logo, nenhuma pessoa vê o mundo como vemos. É nesse sentido que estamos completamente sós em uma bolha.

A jornada interna de qualquer ser humano é individual. Podemos viver em sociedade, em polis, em comunas ou família. Porém, se a nossa companhia não for suficiente, ninguém mais será. É fundamental entendermos isso.

Quando me refiro ao termo “só”, quero dizer - estarmos em solitude e não solidão.

A última implica carência, falta, tristeza. Já Solitude, não! Ela é o contrário. É a opilência, a demasia, o excesso de nós próprios. Não existe outra maneira de nos relacionarmos verdadeiramente com alguém. De outro jeito será tudo baseado na cobrança, ciúme, insegurança, na busca por algo que supostamente o outro tenha para nos oferecer.

Observe de perto os casais e tire suas conclusões. Somos inocentes ao ponto de acreditar que os de fora irão preencher o vazio de nós mesmos.

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Solitude é a bem aventurança de estar consigo. Relax... No ápice da loucura, muitas pessoas aqui do bar olhavam o divã, mas não tem a ver com a quantidade de gente ao redor. Tem a ver com você.

Eu nunca prestei a devida atenção se a minha própria companhia me bastava.

Talvez por isso não conseguimos nos relacionar com ninguém.

São reflexões profundas que machucam o ego. Pois, se olharmos bem, às vezes a nossa dificuldade na convivência é tão-somente resultado da criação de uma autoimagem de vítimas ou de senhores(as) portadores da razão.

Sair fora da caixa nos deixa exaustos, concorda? É bem mais fácil apontar o dedo no rosto de cicrano em um jogo de acusações, do que olhar no espelho.

Falando em cansaço e relacionamentos, depois que os efeitos passaram eu só queria ir para casa, me envolver com os lençóis e dormir.

Tinha muitos questionamentos sobre o chá, o boteco ou os clientes que pareciam saber de tudo... porém, resolveria isso amanhã.

Então, após uma longa terapia na Rua Augusta, decidi ir embora.

Meu estômago parecia um leão rugindo de tanta ânsia. Voltava lentamente do transe.

O garçom, que nunca falou comigo disse:

– Fique em paz amigo. Entendemos sua dor. Vá e descanse.

Boquinha despediu-se e levou uma garrafa de vinho tinto

para o hotel em que dormiria. Enrico marcou o número do seu celular em um guardanapo de papel:

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– Caso necessite de algo, me ligue. Realmente, eu estava um bagaço.

Eu e você andávamos rumo à saída do bar, leitor. Manu-

Manu se aproximou para nos dar tchau, finalizando a noite com uma admirável elucidação...

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O DESENVOLVIMENTO ESPIRITUAL E A CERVEJA EM PROMOÇÃO

Platão, em algum de seus livros, narra a metáfora do olho. Ele diz que a palavra autoconsciência é uma impossibilidade, um erro semântico. Ninguém consegue objetivamente se ver. Não dá! É inverossímil o espirito (que é quem tudo conhece) contemplar a si mesmo. Todos os nossos sentidos estão voltados para fora.

Escutamos sons que vêm de fora, sentimos o gosto das coisas exteriores, tateamos, cheiramos tudo do lado de fora. Quando queremos arrumar o cabelo, passar batom ou tirar uma espinha do rosto, o que fazemos? Ficamos diante do espelho, correto? Frente a frente.

Precisamos de algo que nos reflita. Da mesma maneira é a autorreflexão, autoanalise. Para nos

vermos é imprescindível um espelho, um reflexo. Entende agora porque a palavra autoconsciência é um

equívoco da linguagem? O “auto” é uma quimera, não tem como. Nossos órgãos sensoriais não se abrem para dentro.

Talvez por isso nossa facilidade em julgar os outros, falar mal da vida alheia, criticar os da rua. É da própria natureza humana.

Se julgarmos quem nos julga, cairemos na mesma armadilha social.

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O que o indiano disse na porta do boteco antes de sairmos, foi um tapa na cara, um soco no estômago. Me fez pensar fora da caixa, fora do ordinário, do comum.

Ele perguntou o seguinte: – O que é o ato de embrulhar? Responda Ismael, o que é?

Primeiramente, eu falei comigo mesmo: “Esse indiano está louco. O que tem a ver chá e o

autoconhecimento com embrulhar?” Mas, beleza... eu já tinha presenciado cada doideira, que

mais uma não ia fazer diferença. Que engano, leitor... Cuspi para cima e advinha a onde

caiu? O que Manu falou teve significância em demasia. – Bom, respondi a ele. Imaginei alguém embrulhado um

lanche. Acredito que é o mesmo que revestir. Estou certo, leitor? Você concorda? Envolver a galega num abraço apertado. O indiano nos olhou fixamente e respondeu: – Bravo amigos... São bons alunos. Exatamente isso,

exemplos pertinentes o do sanduíche e o da amada. – Ótimo, vimos que embrulhar é sinônimo de envolver

algo, correto? Perguntou com uma fisionomia astuta. – Sim, sim! Respondi novamente. Aí ele prosseguiu na justificativa: – Então, desembrulhar é a mesma coisa que desenvolver,

concordam?

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Porraaaaa! Nunca pensei nisso. Falei assombrado e já respondendo positivamente à indagação.

Analise comigo, leitor...

– Quer dizer que para nos desenvolvermos é preciso nos desembrulhar? Tirar o que está envolto? – Correto! Afirmou ele. Desenvolvimento espiritual

significa tirar toda a sujeira acumulada por gerações. Literalmente nos desmascarar. Por mais que doa, por mais que nossas "auréolas" caiam na terra, é imprescindível se olhar no espelho com sinceridade. Temos que ser corajosos e honestos, pois vamos encarar todos os nossos demônios. Somente assim batemos as asas para fora do ninho. Só desse jeito crescemos. Do contrário, permaneceremos infantis - crianças mimadas acusando o universo por nos deixar tristes.

Avançando nos ensinamentos de Manu, faremos um

teste... A partir de agora, esse livro será um espelho que refletirá

certos novelos da alma. Tente avaliar cada ideia o mais friamente possível, sem julgamentos enternecedores ou concepções ortodoxas.

Todo pai e toda mãe deseja que os filhos sejam imperadores, reis/rainhas, famosos, milionários, poderosos e etc... O que não conseguimos enxergar, é que eles esperam inquietos tal bobagem, para no final dizerem: “Saiu de mim esse grande homem ou essa grande mulher”. Em outras palavras: Ele (a) é o que é, por que tem um progenitor fodão, uma mãe fodona.

Compreende, leitor? Em última instância, os pais nem estão olhando efetivamente para os filhos. Eles veem na prole seu reflexo. Todos nós enxergamos o mundo (incluído os filhos) através das ideias que temos de nós mesmos.

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Por isso que estufam o peito e dizem voluptuosos: “Estou orgulhoso(a) de você”.

Ah... sacanagem. Orgulhosos dos filhos o caramba! Estão se vendo num

espelho ambulante e o que de fato querem dizer (conscientemente ou não) é o seguinte:

“Estou orgulhoso de mim mesmo por ter gerado um presidente da república, uma rainha Elizabeth, um coronel da Aeronáutica”.

Você entendeu o funcionamento, leitor? Não estou julgando a maneira como enxergamos as coisas,

não vá por ai. Talvez não haja outra forma de sermos.

Quero analisar os fatos com você. Por mais que doa, que toque na ferida, é melhor enxergarmos as coisas como são, do que viver numa fantasia da Disney.

Estou falando honestamente com você, porque tenho propriedade no assunto.

Já estamos na terceira noite de terapia e mentir a essa altura do campeonato seria tolice.

Veja bem... Sou pai de um menino e sempre projetamos nos filhos o

que gostaríamos de ser ou então nossos sonhos frustrados. É ruim, embaraçoso! Cada ser humano é único e mesmo

que a existência tenha emprestado nossos corpos para gerar outras vidas, essas últimas são livres.

As crianças necessitam serem amadas. Apenas amadas. O guru Rajneesh no “livro das crianças” (se não me falha a

memória) diz mais ou menos assim: “Os bisavôs viveram para os avôs, que viveram para os pais - esses

viveram para os filhos e nós prosseguimos a corrente".

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Percebe a loucura? Ninguém está de fato vivendo as própria vida. Estamos

sempre nos sacrificando por alguém. Não entenda como um posicionamento egoísta anticristo.

Em nenhum momento disse para abandonarmos os filhos ou nos ausentar das responsabilidades. Por favor, não interprete de maneira equivocada o que exponho.

Estou sugerindo pensarmos paulatinamente fora da caixa. Uma reflexão.

Qualquer pseudo-amor estruturado na obrigação, trará consequências devastadoras para ambos os lados.

Claro que uma biografia altruísta é plena em todas as dimensões, porém ainda não é o nosso caso. Primeiramente, temos que aceitar nossa realidade como tal, e depois falamos de Jesus.

Óh, vou contar uma historinha rápida para facilitar o entendimento:

No caminho do mosteiro a jovem levava um menino nos ombros. O

sacerdote, que observava tudo, indagou: – Não é muito peso para você carregar garota?

Ela respondeu: – A criança não é um peso... é meu irmão. Qualquer investida supostamente amorosa baseada em

obrigações, causarão enormes desastres psíquicos. A menina é o exemplo de uma ação cristã.

Para ela não foi um dever ou alguma lei sacrossanta. Apenas carregou o irmão por Amor... Nada mais! Se nos movemos pela obrigação, hora ou outra surgirão cobranças do tipo:

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– Dei minha vida por você e é assim que retribui? – Me ferrei de tanto trabalhar, dei do bom e do melhor e você ainda age assim?

Enxerga a diferença do amor da jovem com o nosso?

A gente espera algo em troca, amamos por barganha. Seja em favor de um lugarzinho no paraíso ou por um abraço de gratidão. Como disse anteriormente, não estou fomentando que abandonemos nossos compromissos... Jamais, de maneira nenhuma. Mas, também não estou dizendo que honrar obrigações seja sinônimo de amor.

Pode ser qualquer outra coisa, qualquer outro nome que deseje, menos esse.

Amar implica liberdade. E reponsabilidade subentende-se morte ao espontâneo, ao inocente.

Quando um pai ou uma mãe abdicam completamente suas vidas a um filho, aparentemente é lindo. Estou falando sem nenhuma ironia. É realmente belo.

Todavia... Ao cavar fundo, encontrará mães e pais insatisfeitos. E essa frustração se converterá em peso na vida do rebento, se transformará em algum nível numa dívida.

Os pais deixaram de viver como gostariam, abrindo mão de sonhos e paixões para cuidar de um pequenino ser.

Talvez você reflita o seguinte: Beleza Ismael. Até aí eu concordo, mas existem aqueles(as) onde o próprio sonho era ter filhos.

Respondo: Superficialmente, quem sabe? Porém, ninguém quer a mesma coisa o tempo todo. Mudamos incessantemente, a todo instante e quando isso advir virão as exigências, cobranças e obrigações.

O que estou fazendo aqui é mexendo nas chagas, nas feridas profundas, exatamente como Manu-Manu fez comigo.

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Não juro uma solução milagrosa, até porque sei que ela virá naturalmente (quando não buscamos resoluções externas). “O desembaraço de qualquer problema está nele mesmo e não fora”.

Quero arrancar a dor pela raiz, só que para isso você tem que ser sincero(a).

A etimologia da palavra sincera nasceu dos romanos (pelo menos até onde eu sei). Eles fabricavam vasos tão perfeitos, com uma cera tão pura, que se enxergava o que tinha dentro do recipiente. Para os vasos assim, finos, de ótima qualidade, diziam que até pareciam estar sem cera. Ou seja: Um fulano sincero é aquele verdadeiro, franco, transparente, que não esconde nada... “Sem Cera”.

Não é feio ou egoísta pensar primeiramente em nós: É HUMANO!

O ego é uma invenção social, ele não existe de fato. É extremamente genuíno, orgânico, nos colocarmos à frente e depois pensamos em terceiros.

Na floresta, o leão come primeiro. O que sobrar fica para o restante do grupo.

Talvez estejamos dividindo um pedacinho antes de abocanharmos o lanche no colégio e etc.. Mas, oferecer a pobreza para os miseráveis sem nenhum vestígio de egoísmo...Não, não! Deixarei essa conversa para São Francisco de Assis e companhia.

Quero que faça um teste sobre o que estou apresentando. Seguinte:

Um dia que estiver com muita fome - muita mesmo, compre uma deliciosa torta de palmito (minha predileta) ou então guloseimas que te apetecem. Mas, antes de dar a primeira dentada, ofereça a alguém.

Porra! Acontecia muito isso na escola. Lá estava eu, esfomeado, com aquele apetite do cão e somente com dinheiro

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para um único pastelzinho da dona Maria. Fazia a "cagada" de oferecer aos amigos antes de comer.

Todo mundo abocanhava um pedaço. Quase nem sobrava para mim.

Era educado, seguia os preceitos do suprassumo religioso. Fiz o que gostaria que fizessem comigo, agia filantropicamente.

Agora, sem mentiras leitor... A cada mordida que davam, uma lágrima de ódio e tristeza “descia” na minha face.

Estava com fome. Meu estomago não queria nem saber se era um ato benevolente, ele queria estar cheio. Nada além.

Um dos conflitos mais insolúveis do homem é esse: O lado biológico/animalesco versus o moral/social, O id versus o superego.

O que acho horrendo e hipócrita, são as pessoas esconderem qualidades tão comuns, tão ordinárias e naturais, por uma autoimagem Nazarena.

Torno a repetir... “O passo número UM na caminhada espiritual, é aceitar

você como é. Nos aceitarmos como somos e depois a existência se encarregará do resto”.

Temos que fazer as máscaras idealizadas sucumbirem. Esquecer papinhos do tipo:

“Deveríamos ser de tal modo, fazer de tal jeito...”. As coisas são como são, e nesse sentido você não é o

responsável, o que deviria ser. Preciso que esteja bem alerta para não interpretar minhas

palavras como algo do tipo: “Já que é para nos aceitarmos... Bora matar quando temos

raiva, roubar quando não temos grana ou estuprar quando temos vontade”.

Para! Aí você fode o ensinamento.

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Lembrei de uma frase de Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski (escritor romancista russo do século XIX) no livro “Os irmãos Karamazov”.

“Se Deus não existe, tudo é permitido?” Bom, não carecem comentários. Eu não tenho tanta certeza até que ponto um boteco é

verdadeiramente nocivo. Só sei que as palavras de Manu ecoam nos meus ouvidos:

Desembrulhar... Desenvolver...

Talvez seja um mix de sono com uma pandemia de valores. Analise calmamente, leitor. De repente, nada é em si mesmo. E tudo varia conforme a

subjetividade do observador. Talvez Protágoras (célebre sofista da Grécia antiga, 481 a.C. – 411 a.C.) esteja certo na sua relatividade quando disse:

“O homem é a medida de todas as coisas”. Fatos e circunstâncias estão diretamente ligados a

interpretação que fazemos do mundo. Exemplo: Quando vou ao supermercado com mamãe e indico (feliz da vida) que o fardo da cerveja está em promoção, conjecturo inocentemente que ela compartilhará o momento solene. Todavia, a esperança é um presente de grego. Não é à toa, que foi a última e a única mazela restante na caixa de pandora. Então, mamãe vem com um balde de água gelada:

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– Foi por causa dela (a cerveja) que o seu avô teve inúmeras complicações de saúde.

–É devido à cachaça que meu casamento vive em pé de guerra. Ainda acha que vejo festa nesse corredor do mercado?

– Nossa que grosseria! Pensei comigo. Beleza né... cada um, cada um. O diálogo termina aqui.

Você sacou a maneira como os sofistas enxergam? Se, ao invés de mamãe no corredor das brejas, fosse um de

nós da mesa sete... Estaríamos a pular de animação, jubilosos, emocionados com a loira suada e barata.

A forma que cada pessoa vê o mundo é somente reflexo das infinitas variáveis da existência - cultura, época, geografia, família, os interesses e assim por diante.

Mamãe tem asco a bebidas alcoólicas devido aos relacionamentos conturbados: pai e esposo.

Logo, ao mostrarmos uma cerveja geladíssima em um dia quente de verão, será a mesma coisa que acionar a tecla "LEMBRANÇAS DESAGRADÁVEIS”.

A relação de interesse que existe entre mamãe e álcool é zero, completamente nula.

Falando em maneiras de ver a vida e desejos, lembrei do exemplo que Sartre usou na cafeteria - Ele explicou como “eliminamos” aquilo que não tem importância para nós.

Faça esse exame filosófico você também, assim poderá verificar em primeira mão. Teste rápido: Marque um encontro com alguém especial. Aliás, pode ser em uma cafeteria como Sartre fez. Atrase um tempinho propositalmente e depois, para se desculpar esclareça o seguinte: Tal pessoa (você explicando para ele (a)... Enxergamos o mundo a partir dos nossos interesses e não como ele realmente é. Quando

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chegou no estabelecimento havia muita gente, certo? Contudo, seus olhos tinham exclusivamente um propósito... Me achar! Vagueou rápido pelo salão buscando algum rosto semelhante, mas não encontrou nada. Você não enxergou objetivamente ninguém, pois o único interesse foi me localizar. Todos que estavam lá eram coadjuvantes do cenário onde nós iriamos contracenar. Após alguns minutos você sentou-se na mesa. A cada pessoa que adentrava no recinto, imaginou a possibilidade de nosso encontro.

Bom, aqui estou! Me desculpe pelo atraso, mas necessitei verificar um teste filosófico.

Compreendeu, leitor? Vemos o mundo, as pessoas e circunstâncias, em um

panorama enraizado aos nossos interesses, ou talvez desinteresses. É como o exemplo da cerveja que mencionei anteriormente.

Somos assim! É como a frase de Tolstói: “Há quem passe pelo bosque e só veja lenha para fogueira”. Eu percebi nitidamente o sentido da elocução quando fiz

um jardim na garagem de casa. Peguei gosto por cultivar flores. Quando andava pelas ruas da cidade, observava atentamente as residências na ânsia de encontrar uma bela plantação de rosas ou violetas de cores exóticas.

Enxergamos o mundo a partir de nossos interesses! Talvez se o carpinteiro olhasse a mesma casa, só avistaria

um telhado com recortes bem definidos.

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Ficou claro agora? E nós leitor... Homens e mulheres, quais são nossos

interesses? E você, como enxerga o mundo? Quais são os seus interesses? Deixarei essa resposta a seu encargo. Por hora, encerramos a noitada pela Rua Augusta.

...Saímos do boteco e já estava amanhecendo. Na esquina,

o garçom fumava seu cigarro tranquilamente. Agradecemos a explanação reflexiva de Manu e fomos embora.

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TERCEIRA NOITE

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PARADIGMAS, PRIMATOLÂNDIA E UM PADRE EXCOMUNGADO

Há experiências na vida que são demasiadamente marcantes, concorda?

Falam que o grau de nitidez, de energia de uma memória, é sempre equivalente à intensidade vivida no momento. Exemplo: O primeiro beijo, a morte de alguém estimado, um aniversário surpresa e etc. Quanto mais viva a lembrança, maior é o indício de que foi uma ocasião marcante.

Tem sentido, não acha? Digo isso pela noite que bebi o possível enteógeno.

Acredito que levarei cada detalhe na memória. Foi bem profunda a viajem e, se não bastasse,

sonhei com tantas coisas loucas quando dormi. Me recordo de um hospital antigo, umas pessoas esquisitas, um quarto branco. Sei lá... Sonhos muitas vezes são confusos.

Você arrisca dizer o que é um sonho? Existem diversos pensadores falando sobre o tema. É bem

interessante, leitor! Não recomendo um livro específico, por que não sei. Contudo, explicarei de maneira simples o funcionamento dessa linguagem.

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Todos nós sonhamos, pois, somos criaturas desejantes por natureza. Quem deseja também reprime. É factual. Não podemos ter ou fazer tudo que queremos na hora em que gostaríamos. Os meios são escassos, lembre-se bem disso.

Sonhos podem ser vestígios da memória ordinária ou também situações não realizadas, desejos que reprimimos por infinitas razões (cultura, família, moral). Eles são vidas que não vivemos. Em outras palavras: queremos fazer um punhado de coisas que muitas das vezes não fazemos, não podemos, que não vale à pena o “custo benefício” e etc... Sonhar é a maneira que encontramos para viver algo que queremos. Projetamos isso em alguma dimensão para depois experienciar.

Está aí a grande sina da psicanálise. Freudianos adoram os sonhos. Aliás, dizem que a única maneira de conhecer verdadeiramente um homem ou uma mulher é pelos seus sonhos. Neles encontramos as legítimas vontades, intenções e objetivos.

Faça um teste se quiser. Durma com fome e sonhará com um belo banquete

imperial. Durma com vontade de fazer xixi e sonhará com um rio, uma cacheira ou simplesmente que está no banheiro.

Outro exemplo: Na bela manhã ensolarada da Rua Augusta, você está caminhando pacificamente ao trabalho. De repente, é surpreendido por um kit 4x4 de pernas e peitos que afloram os mais loucos desejos libidinais. As coisas são difíceis para os casais tradicionais e monogâmicos.

Sabe do que estou falando leitor (a)? Se não..., aguarde seu príncipe encantado ou sua princesa dos contos de fadas e verás.

Bom, ele volta para a residência e no fechar dos olhos, as pernas e os peitos de alguma maneira voltarão para “inquietá-lo”.

Entende o funcionamento agora?

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Toda repressão é fruto do processo civilizatório. Ou seja, quanto mais civilizado é o homem/mulher, mais reprimido será. Consequentemente, mais sonhos terão.

Dizem que os animais e as tribos primitivas não sonham. Talvez seja realmente verdade! Bichos selvagens não reprimem os instintos, homens selvagens também não.

Lembrei de um pedacinho da música do Raul Seixas: “Sonho que se sonha só É só um sonho que se sonha só Mas sonho que se sonha junto é realidade” Putz! O que vou dizer fará o maluco beleza rolar no

túmulo. Nem sempre os sonhos que se sonham junto são realidade.

E sabe por quê? Por que sonhos são sonhos! Independentemente do

número de pessoas que compartilham o fenômeno, eles não deixam de ser o que são.

Quantidade nunca foi sentença decisória para o elemento qualitativo. Na cosmografia do período arcaico, a galera “sonhava” coletivamente que a Terra era plana. A ideia de um planeta esférico surgiu bem depois.

Bom, voltando aos conceitos de sonhos... Existem outras maneiras de categorizá-los, porém, não tenho bagagem vivenciada e nem tanta estima.

Mas, se quiser uma amostra... Vai que se interesse? Depois, é só pesquisar.

Alguns estudiosos dizem que podemos fazer uma viagem astral, nos desdobramos conscientemente durante o sono ou pelo menos, o que entendemos como sono.

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Todos se projetam à noite. É um processo natural do corpo, diariamente ele faz isso. O ser humano é formado por várias carcaças (pelo menos é o que dizem), irei me atentar em duas - a física e a espiritual. Essa última tem muitas nomenclaturas (perispírito, corpo astral, psicossoma, envoltório fluídico, corpo etéreo e etc...). Quando dormimos, o nosso espírito se projeta em outro plano - o astral.

Creio que você já teve algum ensaio parecido. Exemplo:

Sonhar que está flutuando e ver a cidade de cima;

Se ver dormindo (como em terceira pessoa);

Voltar do sonho rapidamente e não conseguir se mexer na cama;

Encontrar parentes distantes ou falecidos e bater o maior papo. É matéria para um livro inteiro, não vou me alongar. Tem uma instituição no Brasil chamada IIPC (Instituto

internacional de Projeciologia e Conscienciologia) que faz diversas pesquisas referentes ao assunto. Caso tenha interesse, segue humildemente um pitaco.

E agora, já que estamos falando sobre esse tipo de assunto, eu seria um hipócrita descompromissado com a verdade se não levasse em consideração minha experiência:

“A vida NÃO termina após da morte”. Contudo, esse argumento é estruturado unicamente na

biografia do sujeito chamado Ismael. Não posso falar por outros. São fatos ocorridos na minha vida, que se mostraram cabais (igual

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ao exemplo dos 80 dedos no pé esquerdo que citei). Não houve dúvidas!

A verdade e a fé são fenômenos que não causam interrogações, eles têm raízes em comum – O veredicto do coração! E isso é o suficiente.

William Shakespeare (poeta e dramaturgo inglês, em torno de 1564-1616) era um dito-cujo arretado. Ele compreendeu a magnitude que é a vida e a alma humana.

Ele disse assim, através de Hamlet (personagem principal da peça):

“Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha a nossa

vã filosofia”. Tenho bastante simpatia por essa frase. Já os Aristotélicos

(termo relativo ao discipulo de Platão: o filósofo grego Aristóteles, 384 a.C.. – 322 a.C..) dirão o contrário, pois o silogismo baseia-se no raciocínio, na lógica e não em batimentos provindos da caixa torácica.

A filosofia Kardecista se empenhou de corpo e alma para desvendar os mistérios da existência. Tenho um grande respeito pela honestidade e veemência de Hippolyte Léon Denizard Rivail (educador francês do século XIX e codificador da doutrina espírita) em propor argumentos fidedignos para codificar o mundo além-túmulo. Não enxergo as obras espíritas como religiosas e muito menos científicas, por esse motivo coloquei o termo “filosofia Kardecista”. Mas isso não diminui seu peso e nem suas medidas, pelo contrário... O cerne da filosofia é o compromisso com a verdade e não com dogmas ou paradigmas.

Por falar em paradigmas, você sabe como nascem, leitor? A religião e a política que os criaram. Eles se manifestam

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superficialmente com intenções de natureza variada, mas todos os desejos culminam em uma só ponto confluente: o Poder!

Então, seguimos feito gados de corte "inquestionáveis" às leis e tradições.

Contarei uma anedota que ajudará a entender. Na cidade dos macacos havia um cacho de banana

suculento. Era período de miséria geral. Dois chimpanzés astutos guardavam as frutas para ninguém comer. Eles queriam usá-las para fazer um “macaco-teste-social”. O povo da ”Primatolândia” estava insatisfeito e faminto.

Os dois chimpanzés bolaram um plano. A estratégia era o seguinte: Construíram uma cabana, onde

seriam distribuídas as frutas. Na porta do local, uma mensagem: “SILÊNCIO, SEM PERGUNTAS!".

Combinaram com oito micos (em troca de algumas bananas estragadas), para ajoelharem toda vez que o tambor soasse.

Os primatas chegavam em busca de alimento e ao entrarem se deparavam com os atores se prostrando quando escutavam o barulho. Lentamente, cada um dos oito micos saiu, ficando apenas os macacos que estavam sendo testados no experimento.

Esses últimos, continuaram se joelhando toda vez que o tambor ecoava, iguais aos micos que foram embora. A única diferença, é que eles nem sabiam o motivo de fazer aquilo. Tempos depois, outros macacos apareceram e viram a mesma cena que o primeiro grupo: o som do tambor e macacos se curvando até receberem as bananas. Como era de se esperar, os últimos macacos repetiram o ritual.

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Enxerga alguma semelhança, leitor? Fazemos isso sem questionar. Seguimos os paradigmas como se fossem estruturas imperativas e categóricas.

Existem as classe dos chimpanzés, dos micos e o “povão” (nós).

Somos primatas sendo testados diariamente. O que preciso esclarecer de forma transparente, é o

seguinte: chega um ponto na vida do ser humano que o cogito (como diria Descartes) sobre dimensões extrafísicas é irrelevante. Veja bem o que digo!

“Se não fizermos do planeta Terra, da nossa realidade imediata um paraíso, nenhum outro lugar do Cosmos será”.

Compreende? Se você for um moribundo de alma, um miserável no

aspecto emocional e psicológico, poderá viver no meio de querubins tocando harpa - ainda assim, estará nas flamas luciferianas.

É imprescindível fazer de nossas atuais vidas um Céu Cristão, um Monte Olimpo Grego, uma Valhala Nórdica, uma Aruanda Umbandista, um Palácio de Jade Chinês. Pois, você estando onde estiver, fará daquele lugar um paraíso. Mesmo “habitando” o Vale do Flegetonte (sétimo círculo do inferno de Dante na obra “A Divina Comédia”) estará na bonança, jubiloso, gargalhando sem motivos.

Devido a isso, afirmo a irrelevância da vida após a morte, do efêmero ciclo da roda da vida.

O fenômeno reencarnacionista, a comunicabilidade com os entes queridos e a existência de vida em outros planetas, não transforma objetivamente ninguém.

Tem um pintor turco de nome Esref Armagan que é cego de nascença. Você compreende a proporção disso? Ele faz quadros de beleza magnífica, sem ter ideia do que significa luz ou

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cor. Um super-humano contemporâneo a nós. Percebe? Ainda assim, matamos crianças de outras nacionalidades por petróleo... O fato de a vida continuar depois da morte não transforma as pessoas.

O espiritismo como busca pela verdade é admirável. Já os ditos espíritas são tão hipócritas e mendigos quantos os bêbados da Rua Augusta.

As religiões entendidas como instituições ou repartição pública, nada mais são que "o ópio do povo", como diria Karl Marx (filósofo, sociólogo, jornalista e economista alemão do século XIX) na “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”.

Reencarnação, ressurreição, samsara, metempsicose e outras balelas mais, são indiferentes enquanto não fizermos do aqui e agora um Jannah dos mulçumano. Existe uma frase de Dogen Zenji (mestre zen-budista japonês, século XIII), que fala mais ou menos o seguinte:

“A lenha se transforma em brasa e depois vira cinza. Mas, a cinza

não se torna lenha novamente”. Veja a profundidade e maestria desse sábio. Lenha, brasa e a cinza têm sua posição na existência. Têm

um começo, um meio e um fim. A lenha não se transforma em brasa, tanto quanto uma

pessoa que morre não volta à vida. Em outras palavras: “Dane-se o papo de reencarnação e de

vida após a morte”. Independente se for verdade ou não, as duas fases existem em si mesmas, tem seu próprio tempo.

Ninguém fala que o inverno se transformará em primavera (como diz o mestre). Então, por que desperdiçarmos o tempo?

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ISMAEL TAVERNARO FILHO

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Não vamos esperar pela felicidade, não vamos esperar pelo paraíso, não vamos esperar pela bem-aventurança, não vamos esperar pela salvação e nem por Deus.

A vida está acontecendo e você nem se ligou. Tem uma historinha que se enquadra bem no que digo:

Uma enchente alagou toda a cidade... O crente correu para o telhado

da casa a fim de salvar-se. O nível da água subia feroz. Ele pedia socorro para Deus, queria ser resgatado. Passou um barco e ofereceu-lhe ajuda:

– Obrigado amigo, mas Deus irá me salvar! Passou um helicóptero e jogou uma corda: – Agradeço piloto, Deus virá me ajudar! Simples... a chuva não parou e o sujeito morreu afogado. Somos esse cara no telhado. A vida é um presente diário.

Deus está mostrando o barco, a corda e não enxergamos. Somos cegos esperando um paraíso inexistente, mas enquanto ele não vem, caçamos a felicidade em algum boteco de esquina.

Após a "tempestade" do chá, uma atmosfera de calmaria

nos envolveu serenamente. Boquinha estava feliz pelo quarteto retomar suas

ocupações. Bancou uma leva para todos do melhor amigo do homem: “o cão engarrafado”, como diria Vinícius de Moraes (poeta e compositor brasileiro do século XX):

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PENSAMENTOS FORA DA CAIXA

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– Enrico! Traz uma dose da bebida do artista famoso. Manu parecia um tanto quieto. Fora do comum. Ele estava sentado aos pés do divã, como se aguardasse um coração aflito gritando por ajuda.

Resolvi não perguntar nada. Talvez fosse um cansaço

acumulado, ou sei lá. Eu estava com um sentimento do tipo: “Pode cair o mundo, que hoje tô de boa”. Já ficou assim, leitor? tipo mestre Dogen... Zen?

Preciso que se imagine dentro do bar. Ao meu lado. Nós quatro. Projete aqui na mesa sete seu atual estado de espírito. Independentemente de qual for ele: alegria, tristeza, azedume, ansiedade... Não interessa! Escolha o que deseja tomar, que hoje é por minha conta. Rum, gin, martini, contini, campari, jurubeba, água de coco, tônica, suco de laranja, café. O que quiser. Fique à vontade.

Ah! Antes que me esqueça, gostaria de entregar um presente a você, uma charada filosófica que terá que resolver. Não tem nenhum motivo especial. Senti vontade de compartilhar e pronto.

Uma singela homenagem ao poeta e filósofo grego Epimênides (meados do ano 600 a.C..) que ferveu o cérebro em devaneios e abstrações paradoxais.

Vamos lá, muita atenção. “TUDO O QUE ESCREVI É UMA MENTIRA!” Ora, está afirmação pode ser verdadeira ou falsa, certo?

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Se considerarmos que ela é falsa, eu acabei de dizer uma verdade, e se considerarmos que é verdadeira, é falsa, pois tudo o que eu disse é mentira.

Tente resolver esse impasse.

No boteco, uma jovem de cabelos vermelhos apresenta seu

talento como ilusionista de rua. Tirou do casaco marrom uma caixa de baralho e uma caneta enigmática. Pediu para que indicássemos uma carta de nossa preferência e fizéssemos cada um de nós uma rubrica, sem deixá-la ver.

Com habilidade própria de mágico, ela vira a carta para baixo em cima da mesa, deixando oculta a nossa escolha.

A beleza da garota fez com que eu desviasse minha atenção. O busto avantajado e meio exposto, nos desconcentrou. Talvez fosse uma jogada intencional.

Ela falou algumas coisas sobre o poder da mente e depois citou palavras de efeito:

– Verdade! Mentira! Vida! Morte! Sonho! Realidade! Então, silenciosamente ela mirou em nossos olhos e disse: – Abram suas carteiras por gentileza. Por que faríamos isso? Pensei comigo. Seria um golpe para

nos roubar dinheiro?

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PENSAMENTOS FORA DA CAIXA

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Segundos se passaram e resolvi entrar na brincadeira. Estava duro que nem pau de galinheiro, era mais fácil ela me ajudar do que me furtar.

Quando abrimos... Adivinhe, leitor: a carta que escolhemos estava em cada uma de nossas carteiras e ainda RUBRICADAS!

Oh louco! Como assim? Mas espera, não acabou ainda. Ela pega em nossas mãos e fala: – Desvirem a carta que está em cima da mesa. Seguramos juntos (eu e você) na ponta da carta e viramos. Meu, isso não é real! Sabe o que tinha na carta? O mesmo paradoxo que disse anteriormente (o do filósofo

Epimênides). Como? Lembro que indicamos uma carta e colocamos em cima da

mesa virada para baixo, assim ninguém poderia ver nossa escolha. A carta dizia: “TUDO O QUE FIZ É UMA MENTIRA.” Não, não! É muito para minha cabeça. Essa bela rapariga tinha algum pacto com o chifrudo, não é

possível. Como sabia o que conversamos? De que maneira apareceu

escrito? Ela nem estava no bar. Fiquei completamente extasiado. Que mágica! Que garota!

Que truque ou sabe-se lá o que houve! Simplesmente ela pegou as tralhas e foi embora. Não quis

dinheiro pelo show, não quis aplausos ou elogios.

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Virou-se e partiu! Amo esse bar por isso. É uma caixa de surpresas. Nunca

sabemos o que vai acontecer. Parece até uma fantasia. Carl Gustav Jung (psiquiatra suíço e fundador da psicologia

analítica, 1875-1961) teve um dos maiores insights que houve na história do Ocidente, ele inventou o termo “sincronicidade”. Caso você se interesse pela matéria, sugiro o livro “Sincronicidade: Um Princípio de Conexões Acausais”, onde Jung sistematiza sua teoria de maneira genial.

Tentarei explicar de um jeito bem simples (como aprendi e compreendi). A vida é uma sucessão de acontecimentos que, ao serem observados, se faz evidente a “causalidade”.

E o que quer dizer a palavra causalidade? Exemplo (dos mais grosseiros): Hoje nós dois beberemos

essa garrafa inteira de conhaque. Juntos, eu e você, certo? Depois de tomarmos tudo, felizes da vida, adivinhe a

consequência? Sim, chapadões pelas ruas. Veja bem! Causalidade é a relação entre dois eventos, um a

“causa” e o outro o “efeito”. Sendo que o segundo é consequência do primeiro.

Ou seja: Matamos uma garrafa – Causa, e ficamos bêbados pra caramba – Efeito óbvio.

Só que a coisa não para por aí. Depois do porre, cheguei em casa e deitei na cama. Chute o que houve?

O universo girava a 360 km/h. Vomitei até o fígado. Agora, o que era efeito (bebedeira) se tornou a causa de

uma nova consequência (lavar a roupa de cama). Assim é a dinâmica existencial! O que uma hora é o efeito, em outra se torna a causa de outro efeito. Uma cadeia sem fim. Um movimento sucessivo dos eventos.

E onde fica a sincronicidade nessa história?

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Bacana que fez a pergunta (pelo menos acho que a dúvida brotou na sua cabeça).

Sincronicidade são aquelas “coincidências significativas” e “improváveis” que surgem em nossas vidas.

Imagine um evento que seria quase impossível de ocorrer em termos de probabilidades entre causas e efeitos.

Vou utilizar o próprio relato de Jung num atendimento. “O caso do Escaravelho”.

Resumindo, estava ele na sessão com uma jovem paciente. A moça era resistente demais ao tratamento da análise. Bem naquele dia ela conta ao médico um sonho, onde ganhava de presente um escaravelho de ouro.

Por “coincidência” Jung escuta um barulho do lado de fora da vidraça. Rapidamente ele abre a janela e pega no ar um besouro de cor verde-dourada.

Entrega o bichinho para sua cliente (espantada) e diz: “Está aqui o seu escaravelho.” Depois daquele evento improvável, a jovem mudou

completamente a forma de receber o tratamento.

Ficou mais fácil entender com o relato de Jung? Exatamente isso que adveio conosco, leitor. A jovem

ilusionista, misteriosamente apareceu com uma carta de baralho contendo a mesma frase do paradoxo que falei anteriormente a você.

É pura sincronicidade! Episódios dessa natureza são um indicativo de que estamos

ligados ao universo, aos sinais que o Cosmos nos envia.

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Pode ser que você já tenha presenciado coisas do tipo e não se lembre.

Exemplo: Está pensando em alguma música e de repente a pessoa ao lado canta.

Sabe umas coisas loucas assim? É a tal sincronicidade. Claro que a teoria é demasiadamente mais profunda que essa explicação chula que dei. No entanto, se você compreendeu está tudo certo.

Albert Einstein (físico alemão, 1879-1955) diz o seguinte: “Se você não consegue explicar algo de modo simples é

porque não entendeu nada.” Falando em Einstein, a ideia de sincronicidade se

desenvolveu primeiramente nas conversas que Jung teve com ele. Foi quando começou a criar a teoria da relatividade. Enquanto um levou adiante no campo da física o outro levou no campo da psicologia.

Ah! Uma curiosidade: O besouro para os egípcios simboliza renascimento.

Voltemos ao bar... Mesmo depois de um espetáculo alucinante com cartas e

teorias Junguianas, Manu continuava reservado. Reparei que ele fixou os olhos na entrada do bar. A luz da rua oscilava e na penumbra havia um homem encostado no poste. Algo estava sucedendo... Manu andou até o balcão central e virou num gole só o copo de whisky. Ele parecia conhecer o sujeito de fora.

Boquinha sorriu matreiro e disse:

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– Calma amigos, não estranhem o homem parado lá na frente. Nosso divã é companheiro antigo dele.

O indiano foi até o hall de entrada e chamou: – Padre João! Venha comigo, temos muito que papear. Da escuridão, saiu um homem alto de cabelos longos e

barba por fazer. Trazia no pescoço um crucifixo de cabeça para baixo.

Imaginei que fosse uma brincadeira de Manu quando o chamou de padre.

Que membro eclesiástico blasfemaria assim? João entrou acanhado no bar. Caminhou para o divã e

disse baixinho: – Me paga um shot, velho amigo (se referindo a Manu). A

angústia me consome o peito. O garçom trouxe um petisco requentado e uma garrafa de

conhaque. Enrico se aproximou do miserável e falou: – Chega, João! Hoje sairá daqui livre. Vamos te ajudar.

Não precisa mais beber. Cuidaremos da sua saúde mental a partir de agora.

Boquinha acenou afirmativamente: – Estamos do seu lado, padre. Sabe disso!

Todos voltaram para a mesa, restando somente nosso psicólogo de turbante e ele no divã.

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Você não acha estranho, leitor? Um membro da igreja viciado em álcool.

Percebi que já se conheciam. Dialogaram por mais de uma hora, quando Manu nos chamou:

– Juntem-se companheiros! Estamos no mesmo barco.

Nosso amigo aqui vai partilhar de sua história. O padre ajeitou-se, tomou fôlego e iniciou: – Era uma manhã quente, igual a todas as outras do sertão

Nordestino. Lá parece que o verão nunca acaba. Eu me estabeleci num lugar chamado Bairro do Macuco.

Fui o único padre da redondeza por mais de cinco anos. Naquele domingo, a missa foi especial. Um fazendeiro

tinha doado uma quantia para reformar o templo. Diziam que o avô do afortunado havia morrido em combate nas margens do rio que abastecia a cidade. O funeral do velho ocorreu lá mesmo, em nossa pequena igreja. Diante disso, em homenagem a ele, o sujeito resolveu auxiliar nas obras vindouras.

As obrigações canônicas começavam cedinho, antes até do galo bater as asas.

Levantei às quatro da manhã, fiz o desjejum em baixo do pé de limão galego que cresceu espontaneamente próximo ao refeitório.

Já de bucho cheio, com a bíblia e rosário em mãos, fui até a igrejinha.

A porta principal era de madeira rústica, maciça. Na cumeeira, a cruz enferrujada dividia espaço com dois urubus.

O salão comportava pouco mais de trinta pessoas. Quando cheguei, haviam fiéis ajudando na limpeza e organização. Nossos

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recursos sempre foram precários, todavia éramos zelosos com o pouco que tínhamos.

Nunca vi a igreja tão lotada como nesse dia. Gente em toda parte.

O fazendeiro chegou atrasado. Por respeito a ele nós os aguardamos.

Vieram cinco pessoas junto com o homem. Não me atentei a ninguém além de sua filha mais nova. Julieta de Alcântara Piedade.

Talvez os desavisados achem que não sentimos desejos pela carne. Que o celibato e as orações sejam o “salvo conduto” para nós. Inocentes! Lutamos diariamente contra essa força da natureza.

Julieta era exuberante, de uma beleza hipnótica. Nossos olhares se cruzaram imediatamente, como dois ímãs. Tentei desviar minha atenção para o salmo de Davi 119:11-12:

“Escondi a tua palavra no meu coração, para eu não pecar contra ti”.

“Bendito és tu, óh Senhor! Ensina-me os teus estatutos.” Mas nada podia deter aquele magnetismo.

O pior de tudo isso, é que foi recíproco. Um amor teoricamente impossível de se consumir.

Como? Um padre e uma filha de fazendeiro rico? Ouvi falar que a mão dela já estava predestinada para o

filho do deputado Francisco Guerra. Tudo jogava contra esse sentimento.

Mas sabe como funciona nosso coração, né Manu? Disse ele com os olhos marejados.

O indiano estranhamente arrancou um fio do seu turbante e colocou na cabeça do padre João:

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– Hoje você sairá renovado daqui meu amigo. Continue, sem preocupar-se com as lágrimas.

Então ele prosseguiu: – Me esforcei para não demostrar o que estava

sentindo. Não via a hora de ir embora. Queria sair de perto dela. Pois a cada segundo durante a missa, era uma eterna luta contra meus sentimentos.

– Poxa! Sou um padre e fiz meu voto de castidade. Seria um grande pecado contra Deus e minha fé. – Quando terminou a celebração, me despedi de todos enfatizando um mal-estar repentino. Agradeci o fazendeiro e sua esposa. Na hora que fui dar meus cumprimentar as filhas do casal, experimentei o inferno e o paraíso juntos.

Toquei nas mãos macias e brancas como neve da bela

jovem. Ela retribuiu beijando meu anel de tucum. Fui para casa extremamente desorientado. O mundo caia sobre meus pés. Não sabia o que fazer. Escolhi esse caminho e amo Jesus.

Será que o Nazareno também se apaixonou por alguma mulher? E Madalena?

Realmente estava confuso. Aquela noite blasfemei contra todos os santos e dogmas cristãos.

A insônia é uma ótima oportunidade para os devaneios reflexivos e recordações de família. Meu pai foi um alcoólatra que morreu de cirrose. Lembrei dele por horas durante a madrugada.

Eu gostava de tomar sua cachaça quando esquecia na cama.

Vivia caído nas plantações de soja e no coreto da praça São Lázaro. Era um homem bom, mas quando bebia ficava mulherengo e agressivo (Que Deus o tenha ao seu lado).

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A dor sufocava meu peito! Entedia o que Luiz Vaz de Camões (um dos maiores poetas da língua Portuguesa, 1524-1580) queria dizer no trecho do seu poema: “Amor é fogo que arde sem se ver”.

O céu estrelado dava uma atmosfera romântica e isso só piorava as coisas.

O bambuzal estralou alto e fez com que os pássaros que dormiam na árvore ao lado voassem.

De repente, o cheiro de meu falecido pai alastrou-se no quarto. Era impossível não sentir. Um odor catinguento de mofo, urina e pinga.

Foi como se estivesse ali, ao meu lado, bebendo com as pernas cruzadas, como de hábito. Senti minha garganta queimar igualzinho as vezes que tomei escondido a cachaça dele.

Sem pensar muito, abri o armário e peguei o “Sangue de Cristo” que usaria nas missas futuras. Virei goela abaixo.

Depois desse dia, nunca mais parei! Tanto que o julguei... Que ironia! Aqui estou: fétido,

maltrapilho e de coração rachado. Tentei prosseguir com os votos e as obrigações de clérigo,

mas num curto período, destruí anos de confiança. Os fiéis tinham que me levar arrastado para a igreja. Eu passei a dormir em qualquer canto: nas esquinas, nos bancos de praça, em frente ao banheiro púbico e até no confessionário.

Não tinha volta. As pessoas já não me aguentavam. Eles recorreram à

Diocese. Solicitaram uma intervenção. O resultado, adivinhe só? Fui excomungado! Não seguia

mais a comunhão da igreja. Estava irado com Deus e o mundo. Senti na pele o que Martinho Lutero (foi um monge

agostiniano alemão, nascido em 1483-1546 e considerado iniciador

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da reforma Protestante) dizia sobre o amor e sobre Catarina Von Bora (freira católica alemã, que posteriormente se tornou esposa de Martinho Lutero). A reforma protestante foi uma ação legítima. E digo a vocês amigos: As "95 teses" Luteranas ainda eram poucas para minha aversão. Caberia um punhado a mais de argumentos, se dependesse de mim.

Continuei no bairro do Macuco por algumas semanas, então resolvi ir embora.

Sem destino e nem horizonte, juntei minhas tralhas e fui... Subi no primeiro ônibus que apareceu, rumo a qualquer lugar longe dali.

Me acomodei na poltrona número quatro. Estava desiludido e exausto. Acabei dormindo. Só abri os olhos quando alguém se sentou no banco ao lado. Era Manu-Manu! A partir daí nunca mais o deixei. Ele é o tipo de pessoa que enxerga as profundezas do coração humano.

Toda semana venho aqui na Rua Augusta, deitar-me nos braços maternos do divã.

Nunca tive notícias de Julieta. Faz tanto tempo e ainda lembro de nossos olhares se cruzando no meio da igreja.

Padre João literalmente afrouxou o colarinho e finalizou: – Agora diga-me Manu, o que eu faço dessa vida

miserável? O indiano era imprevisível, um homem excêntrico, ousado.

Puxou o crucifixo do padre até arrebentar e respondeu: – A única coisa que já era para você ter feito. Vá! Encontre

sua amada e resolva isso de uma vez por todas.

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Aquelas palavras energizaram o corpo do excomungado. Firmaram-se pernas e coluna. Ele estava ereto, vivo, determinado em seu objetivo. Saltou velozmente do divã, beijou as mãos de Manu e partiu sem olhar para trás.

– Um brinde, companheiros! Gritou Boquinha para todos

do salão. – Mais uma alma retirada do lodo da amargura. E assim continuamos noite adentro na mesa sete.

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ESTAMOS LOUCOS DA CABEÇA?

Duas situações típicas de boteco, que na ausência de uma

delas, seria injusto carregar esse título. O primeiro lugar vai para os bate-bocas entre

frequentadores alcoolizados (com direito a porrada e tudo). Já o segundo lugar - e não menos importante, fica para os amantes de corações partidos. Aqueles que choram toda vez que a jukebox toca uma música romântica.

Esses dois fatos são indispensáveis para legitimar o nome de um estabelecimento - chamado BAR.

E onde estamos, leitor? Sim! Num Boteco da Rua Augusta tomando cerveja...

Um homem de estrutura longilínea passava nas mesas

oferecendo doces caseiros. O único garçom suou (literalmente) para dar conta de servir todos os clientes.

Do banheiro exalava um odor forte de Minâncora com cloro. As vendas iam bem, Enrico estava alegre contando as cédulas de cinquenta reais. Ao nosso lado, um grupinho de pessoas festejando as metas corporativas.

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Tudo sossegado, até chegar um desses bad boys metido a fortão.

Ele sentou sozinho no bistrô. Abriu uma long neck de marca estranha e deu um trago. É incrível como todo marombeiro tem um tribal tatuado no braço e/ou um pitbull na coleira. Parece uma regra, um arquétipo dos heróis olímpicos. As sobrancelhas franzidas demonstravam raiva e injúria. Pediu ao garçom uma dose de vodka. Olhou no celular e balançou a cabeça.

Sabe quando você não concorda com algo? Tipo... “Não acredito que estou vendo isso”. Pois é! Ele demonstrava a mesma sensação. Logo que tomou a primeira dose, não parou mais. – Outra dessa, garçom! – Outra. – Outra, outra, outra. E assim foi. A cada mensagem que recebia no celular dava

um trago. Nas minhas contas totalizaram treze doses de vodka e

quatro cervejas de nome estranho. O machão estava mais macho que nunca... Eu vi nos seus

olhos a encrenca. Da mesa próximo ao divã, levantou um outro rapaz a

caminho do banheiro. O fulano estava ziguezagueando pelo salão. Alcoolizado,

esbarrou sem querer no bad boy olímpico. Era o que eu previa. Língua santa a nossa, leitor... Dito e feito! A confusão

estava armada. O sujeito que ia para o wc diz:

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– Você está louco da cabeça, rapaz? – O que disse seu magrelo? Respondeu o marombeiro. – Isso mesmo que ouviu. Só pode estar louco, parado aí no

meio do salão. Adendo, leitor: O badboy não estava no caminho, mas

quando a coisa é para dar merda... Dá! Os bêbados começaram a rolar no chão. Soco de um lado,

pontapé do outro. Enrico e o garçom tentando desesperadamente separar a luta. De repente, uma mulher da mesa ao lado se compadeceu com o rapaz que ia ao banheiro, pois a diferença física entre os dois era nítida. O maromba tinha o dobro de peso e tamanho. Ela agarrou as costas dele gritando para largar. O bad boy deu um solavanco na tentativa de escapar. A mulher havia sido golpeada bruscamente e arremessada longe. Outros clientes foram ajudá-la.

Para complicar ainda mais a bagunça, três amigos do maromba entraram no bar. O caos estava formado. Cadeiras voando, garrafas de whisky dose anos sendo quebradas, até o saxofone não ficou de fora. Os entes da mulher golpeada partiram para cima da gangue fitness.

Resumindo para você, leitor.: ninguém morreu! O bad boy teve um dente quebrado, a mulher saiu com um

vergão na perna esquerda e dores na lombar. O rapaz que ia ao banheiro acabou fazendo xixi nas calças. Quem realmente saiu no prejuízo foi Enrico, que deslocou a munheca e perdeu muitas bebidas e cadeiras na hora do arranca rabo. A gangue dos marombas acabaram detidos, pois levavam anabolizantes para comercializar nas academias da cidade.

Manu-Manu ficou observando tudo ao lado do divã. Não estava preocupado e nem com medo de ser atingido. Havia paz em

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seu olhar. Enquanto o mundo terminava em porrada, ele bebericava serenamente um licor de amarula.

Após o alvoroço ter acabado, o indiano nos chamou junto a ele e disse:

– Vocês entenderam o motivo da algazarra? Particularmente eu acho que bêbados brigam. Mas isso é

deveras simplificado ante a explicação de Manu. Então o indiano falou: – Em qualquer situação existe um aprendizado oculto (que

muitas vezes nem está tão escondido assim). Bastam ter olhos para ver. A própria dinâmica existencial é um livro contendo as máximas de Deus.

Eu concordo com ele, tudo na vida tem um potencial de

aprendizagem. Ou lamentamos/culpamos/murmuramos os acontecimentos ou então aprendemos com eles. E você, o que acha?

Manu era um homem sábio. Nunca mencionou de onde veio, se tinha esposa, qual a profissão que exercia ou o motivo de sua bebedeira. O único rastro possível da sua história, talvez fosse a veste e as características físicas. Nada além!

Boquinha puxou a garrafa de cerveja junto a nós, e disse: – Eu sei o motivo da zona! O fortão bebia essa cerveja

aqui (apontando para a garrafa long neck de nacionalidade Americana) e o outro tomava cuba libre.

Ele esperava aplausos para sua conotação, porém, ninguém

achou graça:

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– Vocês não entendem nada de piadas, seus mal-amados. Foi a comparação mais arguciosa que já fiz e não perceberam bulhufas.

Agora sim nós rimos. Ele ficou nervoso de verdade: – Tudo bem Manu, continue seu raciocínio - disse o

piadista Boquinha. – Tem dois pontos extremamente significativos no rolo de

hoje. Veja bem! Não conseguimos enxergar a distância entre o que é o Ser e a mente. Pensamentos brotam de algum lugar e nós os alimentamos dando toda a atenção do mundo. Assim que permanecem vivos! Estamos identificados com eles. Por isso nos sentimos inflados quando recebemos um elogio ou ofendidos quando alguém nos xinga. Foi exatamente o que houve aqui. Temos que entender o seguinte, analisem comigo - falou o indiano.

– Se eu perguntasse a alguém: "Está doente dos rins?" esse alguém ficaria bravo devido a esse questionamento? Claro que não! Pode ser que até ache gentileza da minha parte a preocupação.

– Agora, se eu perguntar à mesma pessoa: "Está louco da cabeça?" ela, no mínimo vai querer saber o porquê da dúvida, não é? O ego sentirá que foi machucado, que levou uma apunhalada pelas costas, igualzinho ao episódio do bad boy.

– O rapaz esbarrou nele e falou isso: "Está doido?". Estamos identificados com a mente e quando dizem algo referente a ela, interpretamos como ofensa. Acredito que não foi o caso do moço que ia ao banheiro, pois estava sedento por um barraco. Mas, normalmente é desse jeito.

– Outro ponto é a ilusão do valor semântico da palavra ou frase. Minha terra natal (a Índia) é o coração da espiritualidade no mundo. Lá floresceram os Vedas e também o Vedanta. Tem uma

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expressão muito popular na cidadela onde cresci, que é a "CAIXA DE GANESHA". Vocês já ouviram falar? Usarei como título de exemplo a própria briga para elucidar, ok?

Adendo rápido: Eu sabia que ele veio do Oriente! As

características físicas e os trajes eram inquestionáveis, só não compreendia o porquê da minha ligação com esse indiano.

Manu prosseguiu repetindo a mesma frase que originou todo o escarcéu:

– VOCÊ ESTÁ LOUCO DA CABEÇA, disse ele

enfatizando a raiva. Prestem atenção no que vou falar, amigos. Imaginem uma caixa aberta entre nós. Agora, faremos dela o “porta trecos” da belíssima Ganesha. Jogaremos dentro qualquer coisa que não nos pertença.

– Estamos alinhados? Questionou ele. Bom, se eu te xingasse de louco você ficaria irritado, concorda? Isso machuca seu ego, como já expliquei anteriormente. Mas por que a palavra “LOUCO” nos fere? São as letras que a compõe? É o som que elas emitem quando pronunciadas? L-O-U-C-O. Se não for nenhuma dessas hipóteses, jogue-as para dentro da caixa.

– É o termo que denota pejorativamente? Talvez sim. Contudo, você se acha louco?

"Pelo menos, vamos fingir". Então, arremessaremos

dentro da caixa o sentido da palavra também, já que concordamos unanimemente que não somos birutas.

– Vocês entenderam? Perguntou Manu, olhando sério. – Não temos argumentos sólidos para nossos

aborrecimentos. Não são as letras, nem o som provindo delas e

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muito menos o que querem dizer. Jogamos tudo para Ganesha. Não sobrou nada!

– Isso sim é loucura. Ficarmos com sangue nos olhos por chamarem a gente de louco. Na verdade, pode ser qualquer outra ofensa, que daria no mesmo. O problema não é o termo usado, é a fata de não saber quem somos. Pensem um pouquinho, amigos. Usem a caixa de Ganesha e testem.

Caramba, leitor! De fato, a gente é ignorante nesse

sentido. É como eu ficar bravo por me chamarem de João, sendo

que meu nome é Ismael. Não tem lógica! Não tem cabimento! A única explicação

sensata, é o fato de não sabermos quem somos, então nos identificamos com qualquer coisa que falem. Do contrário, seria a mesma coisa dum gurizinho nos chamar de tontões. Nem daríamos bola. Não iríamos ficar insultados.

Até porque, no meu entendimento, a vida em si é uma tremenda loucura. A natureza humana é uma loucura. O que seria de nós se não fossem os gênios tidos como loucos? Nada... Os homens ainda estariam morando em cavernas, não se desenvolveriam em nenhum ramo de conhecimento: matemática, física, biologia, arte, filosofia, engenharia, psicologia... em nada. Tem um livro do grande teólogo e humanista neerlandês - Erasmo de Rotterdam (1466-1536) chamado "Elogio à Loucura" é um clássico. Vale a pena ler. Trata exatamente disso. O autor, a partir de uma genealogia, busca comprovar a loucura nas várias esferas da existência humana.

Bom, sobra a loucura que dá raiva, a qual estávamos falando... Ela é um mecanismo de defesa para a autopreservação. Baruch Spinoza (filósofo holandês do século XVII) demonstra

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majestosamente o que estou me referindo ao conceituar a expressão “conatus”.

E o que é esse tal negócio? Basicamente, quem vive deseja, certo? Desejar é o

sinônimo de viver, já que, enquanto vivemos desejamos, e na mesma medida, enquanto desejamos vivemos. Alguém que está morto não deseja, portanto, estar vivo implica desejo.

Conatus em latim significa “esforço”. Para Spinoza, esse esforço é o impulso de autopreservação, o suor da vida para continuar existindo. É o desejo mais profundo de continuar vivo. Na mesma linha de pensamento, é a história da raiva. Ela é a ferramenta do conatus na guerra pela sobrevivência.

Primeiro é necessário esclarecer que a raiva surge livremente em nós. A única coisa que podemos fazer é decidir o que fazemos com ela.

Tipo o jargão do existencialismo francês: "Não importa o que fizeram de nós, mas o que fazemos com o que

fizeram de nós". A ideia é a mesma... Raiva é apenas a consequência mecânica de um indivíduo

que sentiu-se ameaçado fisicamente, ou moralmente. Em outras palavras: o fulano do banheiro enxergou perigo

em relação a integridade material (corpo) ou ao ego/caráter/masculinidade/brio/orgulho e etc...

Observe seu próprio comportamento leitor, e veja você mesmo. Somos reagentes em “situações de risco".

Quando nós conhecemos o Boquinha ele estava irado, cheio de raiva dos traidores, lembra? E sabe por que? Porque sentiu-se ferido. Machucaram o ego do político, ameaçaram sua

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preservação. A raiva é involuntária. É a natureza agindo para sobreviver.

Já que falei em ação, talvez seja hora de eu agir, indo para casa. Estava tudo bem, de verdade. Eu estava bem bêbado e bem tranquilo.

Disse hoje a você: “Mesmo se o mundo caísse, ainda ficaria em paz”.

Estou em paz! Realmente, as palavras têm força. O mundo não desabou

literalmente. Todavia, o boteco quase foi para o brejo. Finalizamos a última cerveja que sobrou na mesa,

despedimo-nos de todos que restaram após a briga e saímos.

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QUARTA NOITE

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CONFISSÕES

Caro (a) leitor (a), gostaria muito que a vida fosse um romance - daqueles onde tudo acaba em vinho, pizza e sexo. Mas até os amantes shakespearianos padecem envenenados. Nem tudo são flores! No mundo objetivo, às vezes precisamos ser pragmáticos.

Juro que dei o meu melhor, inventado historinhas para contextualizar o que realmente queria dizer.

Infelizmente, não tenho tempo e nem condições financeiras para publicar um livro com mais capítulos. Posso não ser um grande admirador de Aristóteles. Todavia, reconheço (em certa medida) que para alguns pensarem outros necessitam lavar a louça, trocar a fralda, consertar a maçaneta e assim por diante.

Também não venderei minha idiossincrasia afim de agradar Gregos e Troianos. Sou o que sou! Não tenho obrigação em me servir de bobo da corte para os eruditos ou de fantoche aos críticos literários.

Agora são três da madrugada. Com a mão esquerda balanço o carrinho de meu filho, e com a direita escrevo esse livro.

Talvez os abastados não tenham esse tipo de problema, ou talvez, nem sejam realmente problemas. Mas, que o cansaço físico e mental da base proletária não é uma ilusão... ah, isso eu garanto!

O dinheiro resolve muitos problemas do cotidiano. Pode ser que os menos favorecidos (iguais a mim) digam:

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“O sujeito tem tudo na vida e não é feliz”. “Olha o beltrano! Anda de carro importado, mas é um pão duro”. “Tem toda grana do mundo e padece de câncer”. “Também somos ricos. O que importa é a saúde”. “A gente é pobre, mas se diverte". Enxergou a ferida, leitor? Os pobres são ressentidos com a realidade tal como é.

Claro que não estou entrando no quesito da meritocracia, má distribuição de renda, corrupção, "Deus quis assim" e outras “cocitas mas”. Deixarei essa briga para políticos e religiosos.

Preciso que se atente em outra questão. Sou totalmente a favor da abundância, do consumismo, do

luxo, da riqueza. Agora você deve estar se perguntando: “Como alguém que se diz buscador espiritual é a favor do

materialismo (no sentido de possuir bens matérias e conforto)?” Sim, exatamente isso! Em primeiro lugar, ninguém consegue pensar sobre nada

espiritual com diarreia, tanto quanto com o estomago vazio, sede, um braço sangrando ou um filho chorando (salvo os ascéticos, que para mim são uma turma de lunáticos).

O hedonismo de Aristipo de Cirene (filósofo grego e um dos primeiros discípulo de Sócrates, 435 a.C.-356 a.C..) pode ajudar muito a suportarmos a pressão da vida ordinária, se bem compreendido, claro! Pois qualquer coisa que denote extremismo, será um tiro no próprio pé.

As necessidades básicas de um ser humano devem estar minimamente saciadas. Daí então, ele terá cabeça ou, se preferir, coração para assuntos transcendentais.

Para uma goiabeira dar frutos, é necessário que ela esteja abundante, rica, nutrida, regada. Caso contrário, nem as flores

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emanarão perfume. Ela será uma árvore pálida, seca, sem cor. A goiaba é o evento mais refinado da goiabeira, é o seu potencial máximo, é a parte mais doce e singela. Da mesma forma somos nós, seres humanos. A busca espiritual é a parte mais doce da vida, é o último estágio para o renascimento.

As frutas guardam consigo o cerne da existência. É preciso que a goiaba seque, morra e caia na terra para germinar uma nova vida.

A espiritualidade também é assim! Ela é igual a um fruto. No processo de busca, nós morremos para nascer um novo Homem.

Precisamos estar ricos, bem nutridos, saudáveis, confortáveis!

Se minhas palavras não fazem hoje sentido para você, talvez ainda não esteja doce o suficiente.

Cada indivíduo tem seu tempo de maturação, igualzinho às plantas. Umas demoram mais e outras menos, só que no final todas voltam à origem.

Sou a favor da bonança como meio de transmutar os sentidos! Mas não como um fim em si mesmo. Para uma pessoa entender que existem coisas que vão além da grana, do dinheiro, que não têm valor econômico, ela precisa ter comprado muitas bobagens nesse planeta.

Você já escutou alguma ladainha do tipo: “Estude garoto(a)... Só então vencerá na vida". Está aí um dos piores equívocos que nos contaram! Vamos por partes (Como diria Jack). Não estamos aqui

para derrotar ninguém, muito menos a vida. Fomos agraciados pela existência, pelo sopro divino, sem ter nenhum merecimento para tal.

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Não quero entrar em idealizações, mas para que você enxergue nitidamente, eu entrarei: deveríamos celebrar cada momento como se fosse o último, pois realmente pode ser o instante derradeiro.

Em suma: Não estou falando para abrir mão dos diplomas. Se quer uma beca ou ser um erudito politicamente correto, que seja! Mas nada garantirá sua felicidade, sua bem-aventurança. Existe uma pergunta que aceira a milênios a humanidade:

"QUAL O SENTIDO DA VIDA?"

E aí, você saberia me dizer? Eu “chutaria” qualquer reposta, menos que o sentido da vida é vencê-la. Talvez seja vivê-la ou estar vivo. Mas

vencê-la é uma burrice colossal. E para murchar ainda mais o "eguinho" da gente, leitor:

outro erro é entendermos a morte como o fim de tudo. A vida sempre ganha no final das contas! Sempre sai vitoriosa. Então, para que a loucura de a vencer? De ter sucesso? Essa loucura é o oposto da mencionada por Erasmo de Rotterdam. A loucura em vencer a vida é algo insano.

O homem corre sua biografia inteira para chegar ao leito de uma clínica médica (cinco estrelas) e dizer: “Não valeu a pena toda essa guerra por dinheiro, fama e poder”.

Compre tudo o que conseguir. Seja o maior consumista da história. E quando digo consumir, é no sentido vulgar e geral da palavra: Sexo, bens materiais, conhecimento, fast food, álcool e outros.

Depois de se lambuzar, talvez caia a ficha: nada pode preencher o vazio existencial, a não ser Deus. Nada que entendemos como algo “do lado de fora” tem esse poder.

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Krishnamurti (filósofo e escritor indiano, 1895-1986) falou certo dia:

“O autoconhecimento é o começo da sabedoria, em cuja

tranquilidade e silêncio encontra o imensurável”. E digo mais leitor (a)! Faço das palavras desse sujeito as

minhas: “Alimentar os pobres é uma boa obra, nobre e útil; porém

alimentar-lhes as almas é ainda mais nobre e mais útil”. Veja! Se estou fazendo citações, não é para um uso

legitimador do que penso. Não preciso disso! Não espero nada de você em troca e não tenho compromisso algum em relação ao que acha de mim, pelo contrario..., quero encher-lhe o bucho da sua alma de alimento. Nada além!

Repugno as falácias genéricas. Nomes conhecidos estão longe de darem peso aos meus devaneios. Se escrevo sobre "x" pessoas, primeiramente é por que eles me ajudaram em determinados momentos e depois pelas formalidades burocráticas. Não é um debate aqui. Não quero vencê-lo igual "fazem com a vida".

É bom que entenda. Estamos alinhados nesse quesito? Sabe por que faço questão de esclarecer isso?

Porque sempre tem aqueles “intelectuaisinhos” metidos a pânditas que gostam de distorcer a conversa e colocar palavras na boca dos outros. Essa laia já subverteu muitas coisas na História. Nos capítulos anteriores falei sobre a autopreservação, lembra? Pois é, estou objetivamente me precavendo deles. São animais famintos, espreitando um vacilo.

E por falar em preservar algo...

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Não concordo com Nietzsche e nem com Spinoza. Ambos têm meia razão! Estão meio certos e meio errados. E como dizem por aí: "Uma meia verdade é sempre mais nociva que uma mentira completa".

Não estamos somente nos autopreservando, perpetuando a espécie ou nos movendo para uma expansão cosmológica. Tudo acontece simultaneamente. É a dança da vida. Exemplo: O lobo guará se refugia da tempestade, gera filhotes e domina a caça. É o não-manifesto se manifestando em vários níveis. Se entendermos a palavra Universo como única dimensão existente - para mim soa em tonalidade egoísta, quem objetivamente garantirá que não estamos num multiverso? O “UNI” Talvez seja apenas no sentido ilusório da realidade, igual ao disco de Newton. O cientista descobriu que a luz de cor branca é proveniente da soma das sete cores do arco-íris, e não devido à insalubridade de um prisma, como diziam na época. Da mesma forma são as várias dimensões (sete cores do espectro visível), juntas elas dão origem ao “UNI“verso (que seria o branco). Ou pode ser que Newton esteja errado, e seja justamente o contrário – o que existe é a luz branca e o resto são quimeras da mesma.

Quem vai saber? Nas palavras de David Hume (filósofo e historiador

escocês do século XVIII): “O cientista não pode justificar a sua crença de que a gravidade continuará a manter os corpos celestes nas órbitas que agora temos observado”.

A vida é definitivamente espantosa. Um paradoxo complexo mergulhado em águas de harmonia e caos. Platão diz que “todas as crianças nascem filósofas” no sentido de enxergar o mundo com assombro, encanto e curiosidade. Me vejo extremamente pequenino diante das contradições

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fenomênicas, mas também enxergo um sentido irrefutável quando a brisa do leste movimenta as folhas do ipê branco.

Enquanto o niilismo da minha mente se confronta com a fé do meu coração, o tempo vai passando, se esgotando. Uma das sensações mais profundas que os homens e mulheres experimentam, é a consciência da finitude.

"10, 20, 35, 67 anos escorridos pelas mãos". Somos pensadores compulsivos, viciados. Os pensamentos

nos arrancam do “aqui e agora”. Eles "transitam" num futuro de possibilidades ou num passado inexistente.

Veja bem que loucura, que contraditório... Ao mesmo tempo que o "aqui e agora" são as únicas

realidades cabais, elas também são falsas. Pois, se o mundo é um devir, o "aqui e agora" não existe

objetivamente. Cada vez que dizemos “agora”, ele já passou, tornando-se

memória. Uma fugacidade descomunal, insubstancial. E para piorar... Se tudo é um movimento constante, onde a

única coisa permanente é a própria impermanência, nós também não existimos. Pois, também somos parte da vida, logo, mutáveis. Tudo aqui é um sonho, um grande véu de Maya. Shânkara (monge errante indiano, 788-820 d.C.) percebeu isso.

Na antiga China, o mestre Chuang Tzu (filósofo taoista chinês do século IV a.C.) estava absorto, sozinho com seus pensamentos, bebericando chá de Astragalus. Um amigo foi vê-lo:

– Até que enfim acordou, seu velho dorminhoco.

Chuang riu e disse: – Gostaria de compartilhar com você um sonho, mas antes

beba um pouco comigo.

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Os dois acenderam a fogueira e relaxaram. Então o mestre prosseguiu:

– Sonhei que voava tranquilamente pelos campos floridos.

Minhas asas eram grandes e coloridas. Eu havia me transformado em uma linda borboleta e ela não conhecia nada sobre Chuang Tzu. Apenas experienciava feliz a existência, o aroma doce das margaridas, a brisa, o calor do sol e a liberdade. Quando despertei, vi um corpo humano robusto e sólido.

Agora estou confuso... "Sou eu uma borboleta sonhando ser Chuang Tzu, ou sou

Chuang Tzu sonhando ser uma borboleta?" Compreende a profundidade, leitor? Como saber? O filósofo idealista irlândes George Barkeley (1685-1753)

nos deixou sem saída quando afirmou (em outras palavras): Que “a vida é um sonho e o mundo não existe enquanto substância fora de nós”.

Nunca iremos saber a nível científico se estamos nesse exato momento sonhando. Ou que as coisas existem apenas quando a vemos.

Nas palavras dele, “ser é ser percebido”. O imaterialismo foi extremamente criticado, mas Berkeley

concluiu que era impossível provar o contrário. É irônico, pois mesmo sendo relativamente óbvio que as

coisas existem materialmente (se dúvida, bata a cabeça na parede e comprovará a legitimidade) até agora ninguém provou que ele estava errado... é objetivamente irrefutável.

Caso ache esse pensador "ingênuo", outros “monstros” da filosofia o louvavam. Bertrand Arthur William Russell (matemático

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e filósofo britânico do século XX), Karl Popper (filósofo austríaco do século XX) e o próprio David Hume. Todos que pensaram e pensam fora da caixa são dignos de respeito.

Mas deixa para lá... Quem se interessa por filosofia? Vamos retornar às historinhas!

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A CHANTAGEM DO GABIROTO

A quarta noite foi a mais reveladora. Chegamos no boteco quando o sol ainda se punha. Enrico e o garçom estavam vestidos de camisa e calça branca. Os sapatos eram claros e perfeitamente lustrados. No bolso esquerdo de ambos, um símbolo em comum e o nome do estabelecimento: Hospital Psiquiátrico “O Divã”. Estranho!

Sabia que lá havia se tornado ponto de muitos neuróticos, mas nunca tinha visto esse nome na fachada.

Eles pareciam sérios, ou talvez um pouco concentrados em algum dos afazeres:

– Como passaram de ontem para hoje, amigos? Perguntou

Enrico. Não tenho o que reclamar, leitor. Ando dormindo deveras

bem. E você, tem problemas para cair no sono? O garçom levou uma pilha de documentos para a cozinha.

O bar estava silencioso. No balcão central, ao invés do barril de carvalho tinha uma caixa de materiais de escritório.

A mesa sete onde partilhamos risos e lágrimas havia desaparecido. Logo à direita, uma pequena estante com livros de medicina e psicologia.

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Você lembra do urso que indicava o caminho do toalhete? Não estava lá. Somente uma plaquinha direcionando as pessoas. Na janela, a cortina de linho cinza escondia o sol. Quadros de gente que nunca vi na vida e o velho saxofone (que agora era novo e brilhante).

Estava tudo muito confuso, o pior é que o Italiano e seu funcionário agiam com naturalidade, como se nada estivesse acontecendo.

O local era outro, não é possível! Eu ainda me encontrava sob efeito do chá. Só pode!

Onde foram parar as garrafas de Bulleit Bourdons, Veuve Clicquot Brut ou Vodka Francesa Grey Goose, e os jornais recortados com fotos da Janis Joplin (cantora e compositora norte-americana, 1943-1970) e Fela Kuti (cantor, compositor e multi-instrumentista nigeriano, 1938-1997), onde estariam? Até o sangue que espirrou da cabeça de Alexandre tinha evaporado.

Está confuso, leitor? Uma senhora com maquiagem chamativa entra no bar (ou

o que sobrou dele) e acomoda-se no hall da escada. Para tudo!!! Não existia escada aqui. O lugar foi tomando dimensões

maiores. Começaram a surgir novamente os clientes, mas agora todos vestiam branco e olhavam com desdém.

Uma segunda pessoa entra no boteco. Era boquinha! Ele caminhou na minha direção, mas nem se ligou da loucura ao redor. Sei que ele é avoado - porém, em uma situação dessas, mesmo um cliente de CID: F20.0 perceberia.

A mulher na cadeira gritava com os sujeitos de jaleco branco. Os palavrões brotavam da alma. Tentavam acalmá-la de qualquer jeito:

– Eu não estou louca! Filhos da mãe.

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– Vão se danar. Enfiem o chazinho no traseiro. – Não, Não! Chá? Eu tomei um chá, leitor. O que é tudo isso? Boquinha estava com aspecto de zumbinolesco (palavra

que acabei de inventar). Sedado! Um verdadeiro morto vivo. As coisas esquentaram para a mulher louca. Três homens

fortes seguraram os braços e pernas: – Eu já falei... não sou doente, filhos da mãe! Quanto mais ela esperneava, mais homens de branco

chegavam. Foi então que apareceu Manu-Manu ao meu lado. Senti um alívio na hora. Gostava dele. Quem sabe não

explicaria a bagunça: – Como vai, meu amigo? Respire fundo, que tudo ficará

bem. Naquele momento, um sopro de paz e nostalgia me

invadiu o coração. Lembrei do meu filho Bento, quanta saudade... Passava a madrugada escrevendo meus ensaios e balançando o carrinho para ele dormir.

Que saudade... O indiano desenrolou o turbante que usava e pôs no meu

ombro. Realmente não sabia o que estava havendo. Parecia um

sonho! Manu não tinha a parte superior da cabeça. No lugar de cabelo, uma luz dourada iluminava todo o seu corpo. Uma áurea angelical. Do pano do turbante, saiam focos luminescentes que me deixavam tranquilo.

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Caramba, leitor. A realidade virou uma pintura de Salvador Dali (pintor catalão do século XX).

Será que eu tinha morrido e não sabia? Ou estava ainda na viajem do tal chá?

O desespero fez com que eu saltasse na frente de Manu afim de obter explicações.

– Meu amigo! Disse ele. Aqui é um hospício, um

manicômio. Não se preocupe, ninguém é tão sóbrio assim a ponto de julgar você como louco.

– A própria vida é uma maluquice. E, da mesma forma que mencionaram Dr. Bob (médico cirurgião de Akron) e seu amigo Bill. W (corretor da bolsa de valores de Nova York) quando fundaram os A.A (alcoólicos Anônimos, 1935), eu te digo:

"Só um maluco entende o outro".

Percebi que estava sonhando! Acordei com o barulho de

um gato mexendo nos sacos de lixo. O carpete azul claro tinha nódoas de vômito. Imaginei que

era eu o autor daquela cena (deduzi pela garrafa de conhaque jogada no meio da sala). Não lembro exatamente como fui parar lá. O fato é que alguém necessitava arrumar a bagunça.

A cabeça doía e rodava. Caminhei até o quarto, escorando nos móveis para minha própria segurança.

Na estante, havia uma carta. Aparentemente, era um relato. Tratava-se de uma biografia.

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“Existiu na Índia um homem muito devoto à deusa Shiva.

Certa vez, apareceu um diabo na sua frente e disse: – Chegou o momento da sua morte. Venha! Ele ainda era novo - deveria ter mais ou menos uns trinta

anos. Estava no auge da vida. O diabo continuou: – É hora de morrer, estou aqui para te buscar. Mas existe

uma única possibilidade de se salvar e continuar na Terra. Darei a você três opções, deseja ouvi-las? Perguntou o gabiroto, com semblante matreiro.

O homem era jovem, tinha muito o que viver. Mesmo

tremendo as pernas, respondeu: – Fale as alternativas, bicho seboso! Com a risadinha típica dos espertinhos, ele prosseguiu com

a alvitrada: – Uma delas é assassinar seu amigo mais próximo, aquele

por quem você sente grande afeto. E não adianta tentar me enganar! Eu conheço cada um dos seres humanos.

Ele pensou, pensou e pensou:

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– Não! Eu não aceito a primeira opção. Diga-me as outras duas...

E o demônio respondeu: – Ou deve bater na sua esposa, ou então tomar uma

garrafa de vinho. – Isso mesmo que entendeu. Dê uma surra nela, ou se

embriague. – Se cometer qualquer um desses atos, eu te pouparei da

morte, caso contrário... Diga adeus! A escolha é sua. Ande logo. Parecia óbvio a decisão... Ele não aguentaria o remorso de

esbofetear sua esposa e nem cometeria um homicídio contra o amigo.

Os indianos devotos não podem fazer qualquer uma das três coisas. Porém, o que sobrou foi beber vinho.

A “menos pior”! – Dê-me essa garrafa, que beberei - disse o condenado ao

chifrudo. Então ele bebeu até a última gota da garrafa. Ficou

completamente embriagado. Louco, quis bater na esposa. Tinha raiva escondida no coração. Acreditava que ela o fez um “prisioneiro” devido ao matrimônio. O seu melhor amigo chegou para protegê-la. Ele ficou enciumado e acabou matando-o com a própria garrafa.

Quando retornou a si, veio o desespero, o arrependido. De um lado, seu amigo com o pescoço sangrando e do outro a esposa em lágrimas.

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O devoto de Shiva não aguentou a tragédia! Correu para um edifício abandonado e se enforcou com o turbante aveludado que usava.

Esse assassino era eu, Ismael... Manu-Manu! Naquela noite, me embriaguei. Espanquei minha esposa e

matei um ente querido. Nunca existiu demônio algum. O tinhoso era eu mesmo, minha própria mente insana. O

nosso pior inimigo não é ninguém, além de nós mesmos. Somos “demônios” se quisermos ser!

Eles estão dentro de todas as cabeças, de todos os seres não vigilantes e das ações inconscientes.

Deixo essa carta como lembrete aos semelhantes e tripulantes da embarcação Vida.

Um ser humano só pode avançar em dois caminhos: ou para a destruição ou para a criação. Temos o potencial de “demônios”, mas também de “anjos”.

Por isso, caro Ismael... Reinvente-se, crie-se. Há um fato de extrema significância que ainda não contei. Um dia, lhe matei com uma garrafada no pescoço. O

grande amigo naquela noite era você e hoje estou aqui me redimindo. Não quero que passe o que passei.

Foi necessário jogar o seu jogo para que me notasse, beber da sua bebida para que me ouvisse e falar do seu jeito para que me entendesse.

Então viva, Ismael Tavernaro Filho! Pois não existe outro lugar e nem outro tempo, se não o AQUI E AGORA.

Namastê.

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Quando acabei a última frase de Manu-Manu, tive a sensação de estar sendo puxado velozmente para dentro do meu corpo.

Era um sonho dentro de outro sonho. Despertei assustado e transpirando.

No quarto do pequenino Bento, a janela aberta fazia a cortina cinza dançar descompassada. A Mel (nossa cachorra de estimação) debruçada no canto da porta, sem entender minha angustia.

O relógio apontava três e quinze da madrugada, eu estava balançado o carrinho para meu filho dormir.

Olhei para a esquerda em direção à estante, mas não vi nenhuma carta. Havia somente uma jarra de água e alguns biscoitos.

Page 165: ISMAEL TAVERNARO FILHO · A palavra é uma das maiores armas que o ser humano possui, ela tanto pode criar poesias belíssimas, como também pode destruir milhares de vidas em um

PENSAMENTOS FORA DA CAIXA

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