Isaias-Pessotti, Isaias_Deficiencia Mental - Da Supersticao a Ciencia.pdf

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  • Com visvel amor pela pesquisa histrica Erudio plenamente amadurecida, lsaas Pessotti apresenta neste livro a evoluo do conceito De deficincia mental desde a antigidade at a conquista do conhecimento da etiologia dos quadros deficitrios e a educao especial dos deficientes mentais, no sculo XX. Expe o assunto haurido nas fontes bibliogrficas originais e com preciosas ilustraes oriundas das sucessivas pocas, com a matria muita bem distribuda em seis captulos: o primeiro, parte da Antigidade clssica e chega at os albores da educao especial para deficientes; o segundo versa a experincia pioneira de ltard, fecunda e rica; o terceiro estuda a hegemonia mdica da teoria da deficincia mental e destaca os grandes nomes e obras que marcaram; o quarto abrange a obra monumental De Seguin e sua expresso didtica. Resultado do enfoque pedaggico aliado ao conhecimento mdico; o quinto analisa a involuo terica registrada nas ltimas dcadas do sculo XIX; o sexto, e ltimo, dedicado as duas grandes contribuies do nosso sculo: a educao especial para deficientes mentais e o avano cientifico na explicao da deficincia ou retardo mental. A bibliografia disponvel sobre deficincia mental no pequena, mas este livro de lsaas Pessotti parece ser nico na abordagem histrica do problema, sendo, assim, de interesse para um Vasto pblico direta ou indiretamente ligado questo do retardo mental e da educao especial para deficientes mentais: educadores em geral, professores dessa rea especfica, psiclogos, estudantes e at mesmo leigos envolvidos no problema Obra publicada Com a colaborao da UNIVERSIDADE DE SO PAULO Reitor: Prof. Dr. Antonio Hlio Guerra Vieira EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SO PAULO Presidente: ProL Dr. Mrio Guimares Ferri Comisso Editorial: Presidente: ProL Dr. Mrio Guimares Ferri (Instituto

  • de Biocincias)- Membros: Prof. Dr. Antonio Brito da Cunha (Instituto de Biocincias), Prof. Dr. Carlos da Silva Lacaz (Faculdade de Medicina), Prof. Dr. Oswaldo Fadigas Fontes Torres (Escola Politcnica) e Prof. Dr. Oswaldo Paulo Forattini (Faculdade de Sade Pblica). BIBLIOTECA DE PSICOLOGIA E PSICANLISE Direo: Fernando Leite Ribeiro (da Universidade de So Paulo) Volume 4 Isaias Pessotti (da Faculdade de Medicina de Ribeiro Preto) DEFICIENCIA MENTAL: da superstio cincia A retratao dos volumes publicados nesta coleo encontra-se no fim deste livro. T. A. QUEIRQZ, EDITOR EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SO PAULO So Paulo Capa: Depto.0 de Arte da TAQ CIP-Brasil. Catalogao na Publicao Cmara Brasileira do Livro, SP

  • Pessoti, Isaas, 1933 - 2569d Deficincia mental da superstio cincia / lsaas Pessotti. - So Paulo T. A. Queiroz Ed. da Universidade de So Paulo, 1984. (Biblioteca de Psicologia e Psicanlise use; v. 4). Bibliografia. 1. Deficincia mental 1. Ttulo. 83.1890 CDD-616.8388 300 ndices para catlogo sistemtico: 1. Deficincia mental Medicina 616.8388 I81N II-85008-13-X Proibida a reproduo , mesmo parcial, e por qualquer processo, sem autorizao expressa do autor e do editor. Direitos desta edio reservados T. A. QUEIROZ, EDITOR, LIDA. Rua Joaquim Floriano, 733 -04534 So Paulo, SP 1984 Impresso no Brasil sumrio

  • Introduo 1 de Marguits a Victor de Aveyron 3 Um cristo incmodo 3 O Inquisidor de Arago e o Directorium 7 O Martelo das bruxas 11 Dois alquimistas 14 Willis e o organicismo 17 Locke e a tbula rasa 21 o leprosrio 23 Condillac e a esttua 26 Itard, Preire e os surdos-mudos 29 II O mestre e o selvagem O selvagem e o diagnstico de Pinel 35 ltard e a medicina moral 39 Victor e a vida social 43 O despertar da esttua 45 O selvagem descobre os outros seres 51 ('ar que Victor no fala9 54 As razes do insucesso 58 Criatividade e mtodo 60 III Pr-cincia e pseudocincia 67 O nefasto Tratado do bcio 67 Unitarismo e tipologias 71 Pinel 75 Os flOVO5 progressos de Victor 80 e a teoria negativa 84 Beihomme e os tipos de Esquirol 91 O redentor dos cretinos 94 Os jardins de Froebel e a fazenda de Syrnitz - 99

  • IV Competncia e mtodo 105 As credenciais de Seguin 105 Acusaes e desafio 107 Seguin e a idiotia 110 A semente do mtodo 114 Um s mtodo, fisiolgico 116 Um velho programa para a psicologia de hoje 118 A teoria psicogentica 122 V Pessimismo e retrocesso 129 Os procos do Piemonte 129 Morei e as degenerescncia 134 A Comisso Francesa 138 A volta raa primitiva 142 Os novos leprosos 145 O "Dicionrio" 148 Da Becia Comisso do Mixedema 153 Da irreverncia de Diderot ao asilo-escola 159 Um quadro pessimista e mrbido 164 VI O sculo XX 171 Uma herana onerosa 171 A "Dottoressa" 179 Um clculo funesto 185 O nosso tempo 191 Referncias bibliogrficas 197 ndice analtico 203 introduo A histria da idia de deficincia mental acompanha de perto a evoluo da conquista e formulao dos "direitos humanos" que

  • se insere, por sua vez, na trajetria da filosofia humanstica. De seu lado, a filosofia do homem reflete o entrechoque de eventos e idias de diferentes campos do saber e da vida social. No se pode explicar a evoluo daquela idia sem referir seus momentos marcantes s determinaes de origem teolgica ou econmica, poltica, jurdica ou outras. Neste trabalho no se pretende chegar a tal explicao. Apenas se oferece uma descrio, balizada pela cronologia, das principais idias e personagens que tm gerado teorias e inter- prestaes sociais da deficincia mental, seja atravs de escritos, seja em iniciativas didticas ou assistenciais. Embora em essncia seja descritivo, o texto procura apontar a relevncia das diversas obras e idias para a evoluo histrica ulterior do conceito de deficincia mental, entendendo-as como razes, por vezes seculares, de cuja seiva se nutrem os preconceitos e os conceitos de hoje, nesse campo. O primeiro captulo parte da Antigidade clssica e chega at os albores da educao especial para deficientes mentais. A experincia pioneira de Itard nesse campo, fecunda e rica, com pe o segundo captulo. O terceiro mostra a hegemonia mdica na teoria da deficincia mental, apontando os grandes nomes e obras que a caracterizaram. A obra monumental de Seguin, que alia o conhecimento mdico ao enfoque pedaggico, com seu coroamento didtico, o objeto do quarto captulo, enquanto o quinto trata da involuo terica nas ltimas dcadas do sculo XIX e o sexto versa sobre as duas contribuies maiores do sculo XX: a educao especial pai-a deficientes mentais e o avano cientfico na explicao da deficincia ou retardo mental.

  • 1. P., 1983 1 de Marguits a Victor de Aveyron Um cristo incmodo Pouco se pode afirmar, com base em documentos, sobre as atitudes ou conceituaes relativas Deficincia mental em pocas anteriores Idade Mdia; e mesmo sobre esse perodo a documentao rareia, de modo a florescerem em seu lugar especulaes sobre extremismos mais ou menos provveis. De todo modo, sabido que em Esparta crianas portadoras de deficincias fsicas ou mentais eram consideradas subumanas, o que legitimava sua eliminao ou abandono, prtica perfeitamente coerente com os ideais atlticos e clssicos, alm de classistas, que serviam de base organizao sociocultural de Esparta e da Magna Grcia. De um modo geral, at a difuso do cristianismo na Europa, a sorte dos deficientes mentais e de outras pessoas excepcionais praticamente a mesma, nas regies europias, o que no surpreendente uma vez que at a mulher normal s adquire status de pessoa, no plano civil, e alma, no plano teolgico, aps a difuso europia da tica crist. Exemplo da influncia dos ideais cristos de vida sobre a sorte dos deficientes a figura de Nicolau, bispo de Myra, depois canonizado, e que j no sculo IV da era crist se notabilizou por acolher e alimentar crianas deficientes abandonadas, mais tarde chamadas idiotas e imbecis 4 - Deficincia mental Com o cristianismo, de fato, o deficiente ganha alma e, como tal, no pode ser eliminado ou abandonado sem atentar-se contra desgnios da

  • divindade. Com a moral crist torna-se inaceitvel a prtica espartana e clssica da "exposio" dos subumanos como forma de eliminao. De passagem, convm lembrar que pessoas cuja deficincia no fosse acentuada podiam, dependendo de seus familiares, sobreviver e crescer, como ocorreu, na Grcia antiga, com um certo Marguits, cujo caso foi registrado por Suidas aproximadamente em 960. Nesse registro salienta-se que "ele no sabia contar alm de cinco e que, tendo chegado adolescncia, perguntava a sua me por que ela e ele no eram filhos de um mesmo pai ... Embora evidentemente inconclusivo para efeito de diagnstico, o registro de Suidas, referido por Diderot e D'Alembert no verbete "Imbcille" da Encyclopdie, indica que da "exposio" talvez escapassem os portadores de deficincias mentais no graves. A prtica do abandono inanio ou, eufemicamente, a "exposio" foi admitida por Plato (Rep., 461 e), por Aristteles (Polit., p. 150, 1335b) e, provavelmente, rejeitada por Hipcrates, em consonncia com sua notria oposio ao aborto, conforme argumentava Gilforti (1870). Para Aristteles, at mesmo os filhos normais, excedentes, podem ser "expostos" em nome do equilbrio demogrfico, numa posio coerente com as linhas mestras aristocrticas e elitistas da Poltica, mas fatal para as pessoas portadoras de deficincias, principalmente quando essas viessem a implicar dependncia econmica. Graas doutrina crist os deficientes comeam a escapar do abandono ou da "exposio", uma vez que, donos de uma alma, tornam-se pessoas e filhos de Deus, como os demais seres humanos. assim que passam a ser, ao longo da Idade Mdia, "les enfants du bon Dieu", numa expresso que tanto implica a tolerncia e a aceitao caritativa quanto encobre a omisso e o desencanto de quem delega

  • divindade a responsabilidade de prover e manter suas criaturas deficitrias. Como para a mulher e o escravo, o cristianismo modifica o status do deficiente que, desde os primeiros sculos da propagao do cristianismo na Europa, passa de coisa a pessoa. Mas a igualdade de status moral ou teolgico no corresponder, at a poca do iluminismo, a uma igualdade civil, de direitos. Dotado De Marguits a Victor de Aveyron - 5 de alma e beneficiado pela redeno de Cristo, o deficiente mental passa a ser acolhido caritativamente em conventos ou igrejas, onde ganha a sobrevivncia, possivelmente em troca de pequenos servios instituio ou pessoa "benemrita" que o abriga. Ser apenas no sculo XIII que surgir, ao que se sabe, uma primeira instituio para abrigar deficientes mentais; era mais precisamente uma colnia agrcola, na Blgica (Dickerson, 1981). E do sculo seguinte, de 1325, a primeira legislao sobre os cuidados a tomar com a sobrevivncia e, sobretudo, com os bens dos deficientes mentais. No e prerrogativa Regis baixado por Eduardo II da Inglaterra encontrasse, no dizer de Dickerson (1981), um "guia para proteger os direitos e as propriedades dos 'idiotas' e para os cuidados quotidianos" de que necessitam. O rei devia "zelar primeiramente, para que os idiotas fossem plenamente satisfeitos em todas as suas necessidades, pois ele se apropriava da parte de seus bens " correspondente s despesas com aqueles cuidados, segundo Foville, citado por Teixeira Brando era 1918. Com essa lei, pouco magnnima, pelo menos os idiotas donos ou

  • herdeiros de bens obtinham atendimento adequado de suas necessidades, talvez tambm ficando prerrogativa real a definio dessas necessidades, provavelmente referentes apenas sobrevivncia e sade. Curiosamente, no caso dos loucos, que a lei contemplava em seu captulo XII, aqueles cuidados eram assegurados sem qualquer retribuio ou compensao de gastos coroa. O De prerrogativa Regis acrescenta s razes caritativas a da preservao de posses, como mais um motivo para o acolhimento dos idiotas e outros deficientes mentais. O deficiente agora merece sobreviver, e mesmo obter condies confortveis de vida, seja por ter alma, seja por ter bens ou direitos de herana. E nessa lei que se distingue pela primeira vez perante a ordenao jurdica o deficiente mental do doente mental. Na Inglaterra, como no resto da Europa, o deficiente mental manter o status de ser humano, criatura de Deus para efeito de sobrevivncia e manuteno da sade, mas adquirir significados teolgicos e religiosos paradoxais. Ser, assim, "Infant du bon Dieu", mas portador de misteriosos desgnios da divindade. Atitudes contraditrias se desenvolvem diante do deficiente mental: ele um eleito de Deus ou uma espcie de expiador de culpas alheias, ou um aplacador da clera divina a receber em lugar da aldeia 6 - Deficincia mental a vingana celeste, como um pra-raios? Tem una alma mas no tem virtudes; como pode ser salvo do inferno? Se idiota, est livre do pecado? Qual a culpa pela deficincia e a quem atribu-la? Ele mesmo um cristo? A cristandade do deficiente mental foi uma questo importante na Idade Mdia, embora no formalizada. como respostas a essa questo que

  • se explicam as prticas usuais e a conceituao dominante de ento em relao deficincia mental. De fato, o carter de cristo confere pessoa valores ticos que impem aos demais uma certa conduta caritativa, tolerante e magnnima, ou mesmo cautelosa ou reparadora, em nome da doutrina crist do amor ao prximo e da teologia crist do pecado e da predestinao. Em obras medievais latinas os deficientes mentais, especialmente os que mais tarde sero chamados cretinos (em francs cretina), so genericamente chamados chrstiani, em abono da opinio de Fodr (1791), que entende cretina como corruptela de chrtien; e em consonncia com o uso corrente em regies italianas da palavra cristiano com significado de "homem sem importncia", "homem qualquer", ou "pobre coitado". s variaes da noo teolgica de cristo implicando uma doutrina do pecado e da expiao, correspondero condutas clericais diversas, face ao deficiente mental, segundo a teologia da culpa que cada corrente do cristianismo, ortodoxa ou hertica, adotar. De um lado, como enfant du bon Dieu o deficiente ganha abrigo, alimentao e talvez conforto em conventos ou asilos; de outro, enquanto cristo, passvel de alguma exigncia tica ou de alguma responsabilidade moral. Ganha a caridade e com ela escapa ao abandono, mas ganha tambm a "cristandade" que lhe pode acarretar exigncias ticas e religiosas. Para outros hierticas a condio de cristos, dos deficientes, os torna culpados at pela prpria deficincia, justo castigo do cu por pecados seus ou de seus ascendentes. cristo, e por isso merece o castigo divino e, no caso de condutas imorais, passvel do castigo humano tambm. Muitos chegam a admitir que o deficiente possudo pelo

  • demnio, o que torna aconselhvel o exorcismo com flagelaes, para expuls-lo. A ambivalncia caridade-castigo marca definitiva da atitude medieval diante da deficincia mental. De Marguits a Victor de Aveyron - 7 Agora a tica crist reprime a tendncia a livrar-se do deficiente atravs do assassnio ou da "exposio", como confortavelmente se procedia na Antigidade: o deficiente tem que ser mantido e cuidado. A rejeio se transforma na ambigidade proteo-segregao ou, em nvel teolgico, no dilema caridade-castigo. A soluo do dilema curiosa: para uma parte do clero, vale dizer, da organizao sociocultural, atenua-se o "castigo" transformando-o em confinamento, isto , segregao (com desconforto, algemas e promiscuidade), de modo tal que segregar exercer a caridade pois o asilo garante um teto e alimentao. Mas, enquanto o teto protege o cristo as paredes escondem e isolam o incmodo ou intil. Para outra parte da sciocultura medieval crist o castigo caridade, pois meio de salvar a alma do cristo das garras do demnio e livrar a sociedade das condutas indecorosas ou anti-sociais do deficiente. O inquisidor de Arago e o "Directorium" E quase um lugar-comum afirmar-se que a inquisio catlica sacrificou como hereges ou endemoniados milhes ou centenas de milhares de pessoas, entre elas loucos, adivinhas e deficientes mentais ou amentes, embora seja escassa a documentao disponvel e segura que fundamenta acusao tamanha, na opinio confivel de Kamen (1966). Mas os textos que regiam o processo inquisitorial, alguns j desde o sculo XIV, induzem a pensar que "ciganos", magos, alucinados e videntes pouco ortodoxos, de par com portadores de certas deficincias mentais

  • leves, ou "limtrofes", facilmente poderiam cair nas garras ( bem o termo) da inquisio. Entre esses textos, trs so fundamentais por seu carter doutrinrio e, ao mesmo tempo, cannico ou processual. So o Lucerna inquisitrio de Bernardus Comensis, o Malleus maleficarum de Sprenger e Kramer (1486) e o Directorium inquisitorium de Nicolau Emrico, que data de 1370, aproximadamente em sua forma manuscrita, embora sua primeira edio impressa seja de 1578 e a penltima tenha ocorrido em 1607. A nefasta obra de Emtico orientou, pois, a Represso 8 - Deficincia mental e a deputao da cultura e da igreja europia durante quase trs sculos, j que ainda em 1702 era reeditada, em francs. A leitura do Directorium aterradora pela naturalidade e facilidade com que prescreve a tortura ou a fogueira, mas tambm, e muito mais, pela conduta ardilosa, diablica, impiedosa que prescreve aos inquisidores a fim de obter confisses de heresia ou de prticas religiosas no ortodoxas. Em todo o Directorium, do Grande Inquisidor de Arago, aparecem argumentos ou instrues procedimentais claramente perigosas para deficientes mentais dotados de linguagem, ficando aparentemente intocados ou incapazes de tal comunicao, a menos que praticantes contumazes de rituais que pudessem significar, a juzo arbitrrio e passional do inquisidor, culto heterodoxo. Se o De prerrogativa Regis de 1325 favorecia o deficiente com posses, o Directorium, apenas quatro ou cinco dcadas depois, punha em grave risco o deficiente dono de bens e que de algum modo pudesse ser denunciado ou acusado por culto a divindades estranhas ou prticas demonacas, atos homossexuais ou contestao da palavra do bispo ou da Igreja. Isto porque o Directoriun, solidariamente baseado em documentos papais, recomenda minuciosa e invariavelmente

  • o confisco de bens do acusado em benefcio do inquisidor e sua famlia e da prpria inquisio como organizao, cabendo prmios em indulgncia e outros bens tambm aos delatores que o entregassem ao tribunal eclesistico. Os ganhos financeiros, a arbitrariedade de critrios de julgamento e a viso supersticiosa do deficiente juntam-se nos sculos XIV, XV e XVI compondo uma sinistra ameaa ao "doente mental" e ao deficiente mental, agravada pelos riscos de punies severas a quem, tendo presenciado conduta hertica, blasfema ou obscena, no a denunciasse ao Santo Ofcio. Particular rigor era usado nos casos em que a acusao envolvia condutas homossexuais, e, sabendo-se do notrio desregramento ertico em deficientes mentais, adultos ou no, aterrador o relato que a tal propsito nos oferece Karmen (1966): "para a homossexualidade definida como crime 'abominvel' ou Inqualificvel' a punio comum era queimar viva a pessoa, ou, na Espanha, a castrao ou a morte por apedrejamento . . - Para todos os maiores de vinte e cinco anos era a queimao... : os menores eram aoitados e enviados s gals," De Marguits a Victor de Aveyron - 9 Mas ainda que no incorresse em tais abominaes o deficiente mental no estava a salvo. J disse o sculo V era visto como portador de desgnios especiais de Deus ou como presa de entidades malignas s quais "obviamente" serviria atravs de atos bizarros como os das bruxas. Dada a credulidade da populao rural e seu fanatismo clerical, no surpreende que entre as cem mil pessoas queimadas por bruxaria, s na Alemanha do sculo XVII, estivessem includos centenas de dementes e aumentes ou deficientes mentais. O Directorium de Emrico recomenda ao inquisidor que no se iluda quando o acusado "responde a uma pergunta por uma admirao". tambm indcio de culpa "responder a algo que no se lhe pergunta ou no

  • responder quilo sobre que interrogado" e, ainda, "mudar de discurso". Adverte ainda Emrico: "Uma outra manha utilizada pelos hereges fazerem-se de tolos." Aps aconselhar vrios ardis para forar a confisso do acusado, o Directorium declara: "E desta forma ou o acusado h de confessar ou h de dar respostas diversas. Se der respostas diferentes, o bastante para o conduzir tortura . . . a fim de lhe poder tirar da boca toda a verdade." Prossegue o zelo incendirio de Emrico: "Se houver uma testemunha que diga ter visto ou ouvido fazer... algo contra a f ou se aparecerem quaisquer fortes indcios disso, um ou vrios, o bastante para se proceder tortura." Noutro ponto, o Grande Inquisidor de Arago diz que se deve proceder tortura, "mesmo que no se apresente qualquer testemunha, se m fama do acusado se juntam... um s forte indcio". A tortura e, em caso de contumcia. a fogueira devem ser prontamente ordenadas "quando m reputao se juntam maus costumes...por exemplos que so incontinentes e que tm grande inclinao por mulheres...O bispo...deve obrigar dois ou trs homens em toda a vizinhana a denunciar ... o que saibam sobre hereges ... ou gente que . . . tenha vida ou conversas diferentes do comum dos fiis." Para que no se incorra em injustia, o Directorium prudentemente adverte que os "nigromantes: podem conhecer-se pelos sinais seguintes: tm a vista torta, por causa das vises, aparies e conversas com os espritos maus... De Marguits a Victor de aveyron - 11 Esse pormenor fisionmico assustador quando se recordam as descries de cretinos e idiotas feitas por Pinel, Esquirol, Seguin e

  • outros. Os critrios e cnones do Santo Ofcio, arbitrrios e cruis, se obedecidos com discernimento e prudncia, por certo no vitimariam os deficientes mentais. provvel que entre os inquisidores alguns tivessem complacncia para com "les enfants du boa Dieu", vista de opinies j antigas sobre a irresponsabilidade tica dos amentes. Mas, ocorre que esse discernimento e essa complacncia eram incompatveis com a concepo supersticiosa da deficincia, entendida como eleio divina, danao de Deus ou possesso diablica. Por outro lado, o extermnio de transgressores do dogma ou da moral catlica era facultado a qualquer cristo e at estimulado com indulgncias e outros privilgios, como decretou o conclio de Latro: "Os catlicos que, marcados com o sinal da Cruz, se entregarem exterminao de hereges, ficam a gozar indulgncia e dos mesmos santos privilgios de todos os que vo terra santa." De passagem: esses algozes privilegiados, depois cavaleiros em terras do Oriente, sero chamados cruzados. O "Martelo das bruxas" o que mais trgico nessa era de superstio que a hierarquia clerical de meia Europa, com toda a dialtica aristotlica e depois escolstica, armada de toda a sapincia teolgica e dona dos meios de comunicao no conseguiu vencer as supersties que condenava e, o que pior, ingenuamente ou diabolicamente difundiu e avalizou as crendices populares nos poderes paranormais eu sobrenaturais de adivinhos, feiticeiros e outras criaturas bizarras e de hbitos estranhos. Foi essa a verdadeira funo do Malleus maleficarum de Sprenger e Kramer, publicado em 1486 e reeditado pelo menos 29 vezes at 1669. No Malleus os dois autores dominicanos, designados por lnocncio VIII para extirpar a feitiaria no norte e no centro da Alemanha,

  • registraram inmeros casos de bruxaria e os mtodos empregados para trat-los; acabam por afirmar, com o peso da auto- 12 - Deficincia mental ridade apostlica que lhes fora delegada, que a "feitiaria, longe de ser magia ou iluso, era de fato baseada mio trfico real com Satans e com as foras das trevas: que as feiticeiras realmente devoravam crianas, e copulavam de fato com os demnios e os sabs; prejudicavam realmente o gado e as colheitas e eram capazes de fazer cair raios." (Kramen, 1966) A adeso do clero italiano e ibrico a tal doutrina era de esperar-se. Mas importantes figuras da Reforma protestante tambm a perfilharam, como Lutero, Melanchthon e, notoriamente, Calvino, que comandou pessoalmente a caa s bruxas em Genebra, no ano de 1545, da qual resultou a execuo de 31 pessoas, o que um total at reduzido vista dos milhes ou do meio milho apontado por Kittredge (1956) como a "estimativa mais moderada" do total de pessoas queimadas, na Europa, entre os sculos XIV e XVII, por acusao de intercmbio com demnios ou foras do mal. A rigidez luterana, que encontra em Calvino seu "cruzado", no permite que se trate sem castigo quem objeto eletivo da clera justiceira e justa de Deus ou, pior ainda, presa de Satans. No difcil inferir o tratamento dado a idiotas, imbecis e loucos durante a Reforma. A rigidez tica carregada da noo de culpa e responsabilidade pessoal conduziu a uma marcada intolerncia cuja explicao ltima reside na viso pessimista do homem, entendido como uma besta demonaca quando lhe venham a faltai' a razo ou a ajuda divina. E o que Pintner (1933) chamou de "poca dos aoites e das algemas" na histria da deficincia mental. O homem o prprio mal quando lhe falea

  • a razo ou lhe falte a graa celeste a iluminar-lhe o intelecto: assim, dementes e amentes so, em essncia, seres diablicos. E expressivo, a esse respeito, o trecho citado por Kanner (1964) a propsito da posio de Martinho Lutero: "H oito anos vivia em Dessau um ser que eu, Martinho Lutero, vi e contra o qual lutei. H doze anos, possua vista e todos os outros sentidos, de forma que se podia tomar por uma criana normal. Mas ele no fazia outra coisa seno comer, tanto como quatro camponeses na ceifa. Comia e defecava, babava-se, e quando se lhe tocava, gritava. Quando as coisas no corriam como queria, chorava. Ento, eu disse ao prncipe de Anhalt: se eu fosse o prncipe, levai-a essa criana ao Moldau que corre perto de Dessau e a afogaria. Mas o prncipe de Anhalt e o prncipe de Saxe, que se achava presente, recusaram seguir o meu conselho. Ento eu disse: pois bem, os De Marguits a Vida,- de Aveyron - 13 14 - Deficincia mental cristos faro oraes divinas na igreja, a fim de que Nosso Senhor expulse o demnio. Isso se fez diariamente em Dessau, e o ser sobrenatural morreu nesse mesmo ano... E importante, aqui, notar que a segurana dogmtica de Lutero decididamente infundada. O mesmo "ser" que uma "criana", que antes fora como uma "criana normal", tambm uni ser "sobrenatural", que morre, corno efeito de oraes para que Deus "expulse [dela] o demnio". A confuso entre ser humano tomado pelo demnio e ao mesmo tempo "sobrenatural", que "morre", por efeito de preces que se destinavam a salv-lo pela "expulso do demnio", revela a curiosa natureza do deficiente mental na teologia de Lutero. Em verdade, trata-se de uma concepo primria e tendenciosa, a misturar a fria depuradora orao caritativa, um purismo mrbido a uma concepo mitolgica e fantica do

  • deficiente mental: afog-lo ou orar por ele so prticas igualmente eficazes e igualmente morais. A caracterizao do conceito luterano de deficincia mental nos serve mais que tudo, aqui, como o modelo inteiro e definitivo de viso medieval do problema. A identidade sobrenatural dos amentes (e tambm dos dementes, em alguns aspectos) a marca da superstio, a caracterizar toda a "teoria" e prtica medieval em relao ao deficiente mental de qualquer tipo ou nvel. No fogem a essa marca os promotores da contra-reforma catlica, como no lhe escapava a hierarquia eclesistica pr-reforma. Dois alquimistas Paracelso e Cardano 1500 At a reao crueldade catlica e luterana no trato dos dementes e amentes comea eivada de superstio; por obra de duas figuras tpicas da cultura do incio do sculo XVI: Paracelso (1493-1541) e Cardano (1501-1576). Philipus Aureolus Paracelsus, cujo verdadeiro nome era Theophrastus Bombastus voa Hohenheim, enquanto mdico e alquimista conseguiu fama e mesmo certa fortuna at que seus rivais lhe arruinassem a vida: foi acusado de bruxaria e atesmo, mas suas obras mostram claramente o contrrio. Paracelso rejeitava as obras De Marguits a Victor de Aveyron - 15 ditas diablicas embora acreditasse na magia, na astrologia e na alquimia como recursos para conhecer desgnios extranaturais ou, de todo modo,

  • sobre-humanos, e para utilizam' propriedades ocultas das substncias e dos astros. Um certo fanatismo astral, ou o exerccio de poderes mgicos por outro, ou ainda o contato com certas substncias alqumicas so condies suficientes para explicar condutas aberrantes ou bizarras, ditas bruxarias e, por extenso, comportamentos anormais de dementes e amentes. Por outro lado, enquanto mdico, Paracelso no podia ignorar que demncia e amncia podiam tambm resultar de traumatismos e doena Nessa viso dos atos bizarros ou inexplicveis corno produtos de foras csmicas ocultas e nessa admisso da origem patolgica de demncias ou amencias, consubstanciada na obra "Sobre as doenas que privam os homens da razo", reside a importncia de Paracelso, ele tambm vtima da intolerncia eclesistica, na reformulao da viso medieval da deficincia mental. Essa obra foi publicada em edio pstuma em 1567, embora tenha sido escrita em 1526. nela que, ao que parece, pela primeira vez uma autoridade da medicina, reconhecida por numerosas universidades, considera mdico um problema que at ento fora teolgico e moral. A viso de Paracelso ainda supersticiosa mas no teolgica. O louco e o idiota j no so perversas criaturas tomadas pelo diabo e dignas de tortura e fogueira por sua impiedade ou obscenidade: so doentes ou vtimas de foras sobre-humanas csmicas ou no, e dignos de tratamento e complacncia. No muito diversa a contribuio de Jernimo Cardano, embora dispersa em numerosos e desordenados escritos. Filsofo pouco importante para a histria da filosofia, Cardano foi mdico de altssima reputao em grandes universidades da poca e, sobretudo, matemtico de renome cujos trabalhos sobre lgebra alteraram o curso da histria da matemtica. "Rancoroso, vicioso, obsceno e lascivo,

  • sem ambies e resignado", como ele prprio se descreve no De vila prpria, enquanto pessoa genial e desregrada, Cardano "faz Rousseau parecer um anjo", embora professasse e praticasse a religio catlica. Vtima de seus prprios excessos e de acidentes familiares, mas no da intolerncia clerical, Cardano uniu ao misticismo neoplatnico a magia, a astrologia e a cabala, professando tambm sua crena em poderes especiais e em 16 - Deficincia mental foras csmicas que podem ser responsveis por comportamentos inadequados. Loucos e deficientes so vtimas de tais poderes e, por vezes, at dotados de poderes mgicos desordenados, o que os torna merecedores de ateno mdica. Em relao a Paracelso a concepo mdica de Cardano sobre a deficincia mental anloga, ademais enriquecida pela preocupao pedaggica com a instruo dos deficientes. Com Teofrasto Paracelso e Jernimo Cardano a insensatez comea a ceder terreno ao bom senso. De Marguits a Victor de Aveyron - 17 J em 1534 a natureza patolgica da deficincia e da loucura deixa de sem' opinio e passa a ser norma de jurisprudncia, pelo menos na Inglaterra, onde duzentos anos antes havia surgido o De prerrogativa Regis de Eduardo 11. O novo texto tem o mrito de desautorizar vises supersticiosas da deficincia e da loucura, agora sem argumentos igualmente supersticiosos como os de Paracelso e de Cardano. Em verdade, o De prerrogativa Regis prescrevia os cuidados a tomar

  • no retrato de dementes e amentes sem definir tais infortnios como doenas ou como evidncia de trfico com as trevas ou com o inferno, mesmo assegurando, por fora da autoridade monrquica que o editou, um tratamento mais humanitrio a idiotas e loucos. A jurisprudncia de Sr Amithony Fitz-Herbert, por seu turno, vai alm e define claramente loucura e idiotia como enfermidade ou produto de infortnios naturais. Mais uma vez, o propsito do texto no propiciar bem estar aos psicopatas ou amentes, mas disciplinar a administrao dos direitos de herana: "Esse chamar bobo ou idiota de nascimento pessoa que no pode contar at vinte moedas nem dizer-nos quem era seu pai ou sua me, quantos anos tem, etc....de forma que parece no haver possudo conhecimento de qualquer razo da qual se pudesse beneficiar ou que pudesse perder. Mas se tem um conhecimento tal que conhece e compreende suas letras e l mediante ensino ou informao de outro homem, ento no deve considerar-se bobo ou idiota natural." A definio de Fitz-Herbert, que lembra o registro de Suidas, do sculo X, vazada em termos de desempenho observado, precedendo exigncias metodolgicas da psicologia atual. Mas o critrio de definio a ausncia ou perda da razo, inferida das lacunas ou carncias do desempenho comportamental. Mas mesmo admitindo essa precria inferncia o texto inicia a argumentao objetiva, no supersticiosa, em favor da impunibilidade do deficiente. WILLIS E O ORGANICISMO com o Cerebri anatome de Thomas Willis (1621-1675), editado em Londres, cai 1664, que se inaugura a postura organista diante da deficincia mental.

  • 18 - Deficincia mental A obra de Willis, tpica da neurofisiologia seiscentista, junta s slidas descries anatmicas e morfolgicas conceitos fisiolgicos hipotticos que s sero abandonados com o advento da eletricidade como recurso de pesquisa e como princpio explicativo. As curiosas hipteses para explicar a conduo nervosa espelham a dificuldade conceitual e metodolgica da neurofisiologia do sculo XVII: Willis, como Descartes, como os iatromecnieos Borelhi e Baglivi, recorre s idias de fluido nervoso, suco nervoso, liquido dos nervos e, principalmente, idia de fluidos volteis ou "espritos animais" no sentido de substncias sutis, at explosivas, como gases. De todo modo, ao entender a idiotia e outras deficincias como produto de estruturas ou eventos neurais Willis comea a sepultar, pelo menos nos estratos mais cultos da sociedade, a viso demonolgica ou fantica daqueles distrbios, agora no graas a razes ticas ou humanitrias mas em virtude de argumentos "cientficos". Escreve Willis: "A idiotia e a estupidez dependem de uma falta de julgamento e de inteligncia, que no corresponde ao pensamento racional real: o crebro a sede da enfermidade, que consiste numa ausncia de imaginao e memria, cuja sede est no crebro. A imaginao, localizada no corpo caloso ou substncia branca; e a memria, na substncia cortical. Assim, se a imbecilidade ou a estupidez aparecem, a causa reside na regio cerebral envolvida ou nos espritos animais, ou em ambos." A vaga meno idiota abimfirmitate de Fitz-Herbert, aqui vem escoltada de razes anatmicas ou fisiolgicas, de resto no to novas seno em sua preciso morfolgica e anatmica pois, em desfavor do fanatismo clerical dos sculos XII a XVII, j Santo Agostinho (343-430)

  • adotara a doutrina da localizao das funes cerebrais nos ventrculos, para ele apenas trs, ficando no anterior as sensaes, no mdio a memria e no posterior o raciocnio. A localizao da causa da imbecilidade, da idiotia ou da estupidez em determinadas regies enceflicas e/ou no fluxo dos espritos animais entendidos como substncia voltil correspondente atividade neural, representa obviamente o incio da redeno humanista do deficiente. Tal redeno, contudo, no se far de imediato: a doutrina de Willis, como a jurisprudncia de Fitz-Herbert e a neuroanato- 20 - Deficincia mental mia de Veslio, no atinge as grandes massas fanatizadas pelas hierarquias religiosas e muito menos os donos do poder poltico- econmico, nutrido por tal fanatismo: De todo modo, alguma alterao comea a processar-se no conceito da deficincia mental com a doutrina de mdicos, anatomistas e juristas a suceder a do Directorium a do Malleus e a do Lucerna inquisitorium. A esses pioneiros da nova atitude diante do idiota ou imbecil vem juntar-se Francesco Torti (1658-1741) a apontar outra "causa" natural da deficincia: a malria ou mau ar dos pntanos e baixadas, como no Piemonte e no Simplon. No se trata, aqui, dos miasmas medievais, mas da verificao de que as febres infantis com suas seqelas neurolgicas (e comportamentais) eram mais freqentes nas regies de desfiladeiros e pantanais, cujas emanaes eventualmente ptridas poluiriam o ar. A relao postulada, contudo, era direta: o ar mau, enquanto ar, causa deficincia e disso decorre a sugesto de mudar de clima, ou de ares, como recurso de recuperao do idiota ou do imbecil. A posio de Torti, assim, tambm neutraliza a deficincia como haviam feito os demais pioneiros citados, desautorizando ou contestando,

  • com mais um argumento, a conceituao "sobrenaturalista" de que se revestira em sculos e anos anteriores. A idia de Torti tem ainda outro significado para a histria da conceituao de deficiente mental. Com Paracelso e Cardano, o deficiente, bem como o louco, perdia sua natureza sobrenatural, passando de problema teolgico e tico a assunto de interesse mdico. Com Sir Anthony, o retardo mental, diverso da loucura, igualmente natural, podendo ser ab imfirmitate ou a inativitate, implicando a natureza organsmica da eficincia, ao passo que na obra de Willis a viso organicista se consolida de modo a explic-la como leso ou disfuno do sistema nervoso central. somente com Torti que tem incio a admisso de fatores ambientais como determinantes da deficincia, embora a idia da malria como causa per se parea hoje bizarra. Deve-se notar que a conceituao naturalista germina cm crculos outros que no o da hierarquia eclesistica ortodoxa ou protestante, numa lgica demonstrao de que o dogma e o dogmatismo, reprimindo' a crtica e o bom senso, eram o sustentculo da superstio medieval diante dos idiotas, imbecis e loucos. A represso crtica e ao bani senso efetivamente impedia De Marguits a Viciar de Aveyron - 21 a demonstrao sensata e lgica de que o dogma levava superstio, e ambos levavam idia fatalista ou expiatria da amncia cuja expresso pragmtica era a excluso da experincia e dos eventos ambientais, sociais ou no, do rol de fatores causais da deficincia mental e mesmo da eficincia mental. Restava ento, para fins explanatrios, o inatismo das idias e das funes mentais superiores (como os julgamentos e o raciocnio), a mascarar a interveno arbitrria e justiceira de Deus, com ou sem a

  • paradoxal colaborao de seu desafeto, o demnio. A artificialidade da doutrina moral catlica ou anglicana, nitidamente teocrtica transformada em esotrico sistema de verdades mutuamente justificantes acabava por ser incompreensvel aos no iniciados, ao vulgo, e com isso transformava-se em pecador ou herege qualquer cristo que transgredisse a doutrina, ainda que no a conhecesse ou no a entendesse. John Locke e a tabula rasa E contra esse absolutismo teocrtico que "lutaria em toda a sua vida John Locke" (1632-1704), cuja obra revoluciona definitivamente as doutrinas ento vigentes sobre a mente humana e suas funes, alm de abalar de modo irreversvel o dogmatismo tico cristo. Tendo escrito sobre economia, medicina, poltica e religio, entre 1666 e 1669, a partir de 1670 Locke comea a preocupar-se com o fato de que "os princpios da moral no se podem estabelecer solidamente sem antes examinar nossa prpria capacidade de ver quais objetos esto ao nosso alcance ou acima da nossa compreenso". Dessa idia nasceu o Essay Concerning human Understanditmg, publicado em 1690, que frmula, agora com slida base filosfica e crtica, a viso naturalista da atividade intelectual com suas inevitveis implicaes ticas, pedaggicas e doutrinrias mio campo da deficincia mental. A meta ltima do Essay era mostrar a "natureza e as limitaes do entendimento humano como argumento para fundamentar a tolerncia religiosa e filosfica" em lugar do preconceito e da rigidez dogmtica. 22 - Deficincia mental Com Locke, o princpio do primado da sensao passa, de preceito didtico pragmtico a princpio filosfico e pedaggico geral, a

  • fundamentar uma teoria do conhecimento e simultaneamente uma doutrina pedaggica com sua decorrente teoria da didtica: "A experincia o fundamento de todo o nosso saber. As observaes que fazemos sobre os objetos sensveis externos, ou sobre as operaes internas da nossa mente, e que percebemos, e sobre as quais refletimos ns mesmos, o que supre o nosso entendimento com todos os materiais de pensamento." Assim, o uso da razo, embora capaz de produzir idias e conhecimentos, ser exercido sempre, em ltima anlise, sobre os dados da sensao. No h, pois, idias e miem operaes da mente que no resultem da experincia sensorial, e uma prova disso que " evidente que todas as crianas e idiotas no tm a mnima percepo ou pensamento delas . . . parece-me quase uma contradio dizer que h verdades estampadas [imprinted] na alma e que ela no percebe ou no entende." Se, pois, as idias e, consequentemente, a conduta so o produto da experincia individual, no se justifica a perseguio moralista ao deficiente e no se admite que a deficincia seja uma leso irreversvel mas um estdio de carncia de idias e operaes intelectuais semelhante ao do recm-nascido. Cabe experincia e portanto ao ensino suprir essas carncias, pois a "mente entendida como uma pgina em branco, sem qualquer letra, sem qualquer idia". A definio do recm-nascido e do idiota como tabula rasa tem implicaes decisivas para a vida e o ensino dos deficientes mentais: a viso naturalista do educando, liberta de preconceitos morais ou religiosos, a nfase mia ordenao da experincia sensorial como fundamento da didtica, a afirmao da individualidade do processo de aprender, a insistncia sobre a experincia sensorial como condio preliminar dos processos complexos de pensamento, a importncia dos objetos concretos na aquisio de noes.

  • Se desde o Essay at hoje a didtica especial para deficientes continua incipiente, certamente no se deve tal inrcia a qualquer dubiedade do pensamento de Locke. surpreendente, e ao mesmo tempo decepcionante, que tais idias, a trs sculos de distncia, paream modstias, atuais. A teoria do conhecimento - e portanto da aprendizagem do Essay determina to poderosamente a didtica de hoje, como De Marguits a Victor de Aveyron - 23 influenciou o pensamento educacional de Rousseau e de Condillac, que geraria o primeiro programa sistemtico de educao especial, elaborado pai' Jean Itard em 1800. Tal esforo s se explicaria pela crena na educabilidade do deficiente mental, uma atitude impossvel antes da doutrina lockeana da tabula rasa, alicerada solidamente na anlise crtica do processo de conhecimento, e no em preconceitos, ainda que fossem humanitrios. Essa anlise que conduz afirmao de que "hbitos e defeitos intelectuais [so] contrados . . . so freqentes . . . [Intelectual habits and defects . . . contracted ... are frequent ...]" leva concepo da eficincia e da deficincia mental como processos de interao adequada ou inadequada com o ambiente, quer a nvel a sensao quer a nvel da reflexo sobre as idias geradas pela percepo sensorial. As propostas pedaggicas implicadas na teoria do conhecimento, de Locke, deveriam determinar alteraes profundas na atuao da sociedade no trato com os oligofrnicos ou amentes e, de fato, geraram uma verdadeira revoluo na teoria e na prtica educacional em geral, visto que abalaram decisivamente a "teoria" da aprendizagem ento vigente e dominante. Mas essa derivao pedaggica s se fez contra uma desoladora

  • inrcia cultural, a considervel distncia de tempo e somente depois que os ideais humanistas e libertrios se difundiram amplamente nos ambientes acadmicos, extravasando, depois, para as praas e os campos. A deficincia, entendida agora como carncia de experincias sensoriais e/ou de reflexes sobre as idias geradas pela sensao, dever ainda esperar os escritos de Condillac e Rousseau para merecer a ateno pedaggica de Itard e outros. O leprosrio At l o oligofrnicos estar livre da sanha inquisitorial e da intolerncia religiosa aias continuar sem atendimento educacional, embora alimentado e abrigado. Intil para a lavoura e o artesanato e consumidor improdutivo da renda familiar, o deficiente no tem outro destino seno o asilo. onde se protege do raio e da - Deficincia mental 24 chuva, ganha alguma alimentao e deixa em santa paz a famlia e a sociedade. Em verdade, a famlia e o grupo social fecham os olhos a um problema que no pode mais ser esquecido, aps as afirmaes de homens como Paracelso, Cardano e Locke: o deficiente pode ser treinado ou educado e tem direito a isso. O apego residual do sculo XVIII a uma noo fatalista da deficincia parece uma desesperada tentativa de isentar a famlia e o poder pblico do dever de educar os amentes e criar instituies adequadas para isso. J no se pode, justificadamente, delegar divindade o cuidado de suas criaturas deficitrias, nem se pode, em nome da f e da moral, lev-las fogueira ou s gals. No h mais

  • lugar para a irresponsabilidade social e poltica diante da deficincia mental mas, ao mesmo tempo, no h vantagens, para o poder poltico e para o comodismo da famlia, em assumir a tarefa ingrata e dispendiosa de educ-lo. A opo intermediria a segregao; no se pune nem se abandona o deficiente, mas tambm no se sobrecarrega o governo e a famlia com sua incmoda presena. A Europa aprendera na Idade Mdia, por ocasio das devastadoras epidemias de lepra, a enfrentar o problema: inmeros hospitais ou leprosrios, tambm chamados hospcios, foram construdos pela nobreza, s vezes com uma suntuosidade que pareceria irnica. Obras-primas da arquitetura ou meros casares, sua funo era abrigar e alimentar o cristo enfermo e, ao mesmo tempo, afast-lo do convvio social. Passadas as epidemias, e sobretudo aps atenuar-se a fria inquisitorial e a calvinista, o leprosrio representa a soluo para o dilema social: respeitar e socorrer o cristo marginal ou aberrante e ao mesmo tempo livrar-se do intil, incmodo ou anti-social. Foi assim que grandes hospitais, como o de Bictre e a Salptrire em Paris, Bethleheni na Inglaterra e muitos outros no resto da Europa se abriram para acolher piedosa e cinicamente, em total promiscuidade, prostitutas, idiotas, loucos, "libertinos", delinqentes, mutilados e "possessos" que s na Salptrre perfaziam, em 1778, um total de 8.000 pessoas. difcil dizer se o Essay de Locke pertence ao sculo XVIII ou ao precedente, embora cronologicamente se ligue ao sculo XVII quer quanto data de publicao,1690, quer quanto sua laboriosa construo, iniciada cerca de quinze anos at1tes. De Marguits a Victor de Aveyron - 25 26 - deficincia mental

  • Mas o maior impacto dessa obra se observa no s na filosofia do sculo XVIII como em toda a cultura desse sculo, iniciado com essa revoluo quase copernicana que desloca para a experincia individual o centro da teoria do conhecimento e da teoria da moral, antes solidamente plantado no dogma e na autoridade. Tal a repercusso do Essay que, por outro lado, transforma a questo da deficincia mental, antes marcada pelo inatismo das idias e das operaes mentais, agora expressa como histria pessoal de experincia sensorial e reflexiva. A necessidade de enriquecer a percepo sensorial e de treino intelectual ou mental no encontra socorro na psicologia de ento, mais .que tudo especulativa: as questes de conduta esto assumidas pelo clrigo e pelo mdico, embora o pedagogo j tenha a seu cargo tarefas especficas de planejar e ministrar o ensino de alunos normais. Para que a sociedade admita e assuma a tarefa de educar o deficiente ser necessrio algum tempo, at que surja o grande movimento libertrio e naturalista e pregar a igualdade de direitos entre os homens e a combater a artificialidade dos fins, mtodos e contedos do ensino usual, mesmo que destinado, ento, apenas a educandos normais. Condillac e a esttua A influncia mais sistemtica do Essay sobre esse processo de mudana na

  • filosofia e na prtica educacionais ser exercida atravs de um outro ensaio, este de Condillac (1715-1780), e publicado em 1746 com o ttulo quase lockeano de Essai sur l'origine des connaissances humaines, bem como atravs do Trait des sensations, de 1749, tambm impregnado do sensualismo de Locke. Nessas duas obras, Condillac d doutrina de Locke sobre o conhecimento uma formulao praticamente psicolgica, chegando em alguns pontos a transformar uma teoria do conhecimento em teoria da aprendizagem, de evidente significado pedaggico. A este trabalho interessa mostrar que educabilidade do deficiente, irrecusvel aps o Essay de Locke, se acrescenta agora um esboo de metodologia do ensino na qual se poderia fundar De Marguits a Victor de Aveyron - 27 mtodo de educao infantil que, explorado adequadamente certos aspectos, viria a tornar-se uma didtica especial para o deficiente mental. Essa didtica, que aparecer, ainda inarticulada, no trabalho Itard, estar solidamente ancorada na anlise do processo de aprendizagem contida no Essai e no Trait de Condilac, que convm, pois, examinar. As concluses principais dessa anlise so: no deve haver mximas sobre nada; todas as idias devem nascer da sensao as operaes da mente; desse modo, as definies so inteis. i, as prprias operaes da mente no so mais que a sensao transformada. Por isso, qualquer conhecimento ou idia basicamente uma sensao, seja produzida pelos objetos externos (sensao) seja gerada pela percepo de operaes

  • mentais, isto , objetos internos (reflexo). Assim, as faculdades mentais como ateno, comparao, julgamento (juzo) ou, como as propunha Locke, a imaginao, a memria, o julgamento ou o raciocnio so elaborao da informao sensorial. A esttua de Condillac o smbolo dessa teoria. De fato, se qualquer sensao pode gerar todas as faculdades, um organismo totalmente tabula rasa, praticamente uma esttua, ao qual se conferisse separadamente cada uni dos sentidos, deveria ser capaz de ter todas aquelas faculdades a partir de um nico canal senai, o olfato, por exemplo. Assim, o entendimento abrangeria mas as operaes (reflexivas e conseqentes "idias de reflexo") o se dispusesse dos cinco sentidos. Tomando-se como exemplo o sentido do olfato, como sensao primeira existe na conscincia da esttua somente uma coisa, ou um objeto: o odor, de uma rosa, por exemplo, depois seguido aroma de jasmim ou de cravo. Se, ento, existir na conscincia da esttua apenas unia dessas sensaes, o odor de jasmim, exemplo, com excluso dos outros aromas, o que ocorre a ateno. Se, afastado o jasmim, persistir a sensao de seu aroma, s a memria como a impresso persistente de um objeto. A tua pode atentar simultaneamente para a sensao anterior ou a impresso residual, atual, e assim exercer a comparao; essa comparao percebe semelhanas ou diferenas, produz-se 28 - Deficincia mental o juzo ou julgamento (avaliao). As repeties da comparao

  • e do juzo constituem a reflexo e se a esttua, diante de uma sensao desagradvel, recorda uma sensao agradvel, essa lembrana, mais forte, ser a imaginao. Esse conjunto de faculdades, geradas pela percepo sensorial, o entendimento. As faculdades, descritas como operaes que elaboram o material sensorial, so o funcionamento natural da mente, ou seja: so o entendimento. Assim, o entendimento precede os sinais ou smbolos e, portanto, a linguagem. Desse modo, o raciocnio mais elaborado apenas uma extenso daquelas faculdades, assegurada pelos sinais. A teoria da aquisio de idias, de Condillac, alm de indicar uma estratgia geral para a educao, oferece claras sugestes sobre a natureza de eventuais retardos no entendimento e, por inferncia inevitvel, princpios para uma didtica da aquisio de idias por pessoas privadas de uni ou mais rgos sensoriais, ou incapazes de operaes simblicas ou privadas de linguagem. bvia a importncia dessas idias para os esforos ulteriores de Itard (e Seguin), que criaro a educao especial para deficientes mentais entendida como metodologia especial de ensino. Mas Condillac vai alm, ao mostrar que limitada apenas ao olfato ou a uni outro sentido qualquer, a esttua consegue abstrair e generalizar idias e, ainda, tem- a idia de nmero, de possibilidade, de durao, de sucesso e de eu, esta constituda pelo conjunto das sensaes que experimenta e pelas que recorda. Quando o ministro do Interior confia o selvagem Victor aos cuidados mdicos e pedaggicos de Itard a "teoria da esttua" encontra uma

  • oportunidade mpar e inesperada de comprovao. Desse fato resultaro acertos, erros e vieses de ltard, como se ver mais adiante, tornado por um compreensvel entusiasmo. Um entusiasmo que, de certo modo, destoa de consideraes gerais do captulo XVI do Trait. Ali, a anlise, ou seja, o mtodo de Condilac aparece, como visto por Brhier (1942), corno unia declarao de humildade. De fato, ali se afirma que os mtodos mais sofisticados so formas dos mais simples e que qualquer esprito ode passar desses queles. Assim, a inveno e a descoberta so mais que tudo uma questo de estdio nessa marcha, da mera sensao mais elaborada abstrao. O saber o produto fatal do mtodo: "Quem inventa o mtodo, assim como quem descobre so os telescpios." bem verdade que ltard armou-se de uma natural humildade ao assumir a educao de Victor de Aveyron De Marguits a Victor de Aveyron - 29 , mas possvel que o interesse em demonstrar a validade da teoria de Condillac conduzisse a algumas mais que perdoveis afoitezas. Graas obra doutrinria de Locke e de Condillac a educao especial de deficientes mentais se inaugura com caracteres definitivos: ela sensualista, admite a gnese de idias e processos mentais complexos a partir de idias e processos simples, admite que da percepo se passa a operaes incutais no necessariamente formais; que a formalizao apenas um modo de estender as operaes

  • precedentes; que h estdios necessrios e gradativos entre a percepo e as operaes com signos ou formais; que para efeito do exerccio das faculdades mentais no importa quais e quantos rgos dos sentidos sejam empregados na origem de conhecimento, ou seja, na percepo sensorial; que o domnio da linguagem no essencial para o desenvolvimento do entendimento (funcionamento das faculdades mentais); e, acima de tudo, que as capacidades ou incapacidades mentais so produto da experincia e das oportunidades de exerccio de funes intelectuais e no necessariamente dotes inatos, de natureza antomo-fisiolgico ou metafsica. Itard o primeiro a empreender a aplicao prtica desses princpios de forma rigorosa e fiel. Itard, Preire e os surdos-mudos Jean Marc Gaspard Itard (1774-1838), nascido nos Baixos-Alpes e educado em diversos colgios religiosos, destinado por seu pai a ser bancrio, designado na guerra revolucionria a trabalhar no hospital militar de Soliers sem nada saber de medicina, apaixona-se ento pelo trabalho mdico e prepara-se para a carreira clnica; aps brilhantes estudos assume, aos 25 anos, o cargo de mdico-chefe do Instituto Imperial dos surdos-mudos na rua Saint-facques. Nesse ano, graas a seu prestgio profissional como reeducador de surdos-mudos, o ministro do Interior da Frana, Champagny, que bem sabia de sua habilidade e da "importncia do

  • caso para o conhecimento humano", confia-lhe a tarefa de educar o menino selvagem de Aveyron. Esse encargo mostra bem a argcia de Champagny. De fato, Itard era o homem melhor preparado de paris para a empre 30 - Deficincia mental sa, e no foi sem motivo que, ainda muito jovem, assumiu o Instituto a convite do abade Card, ento diretor do mesmo, substituindo o abade de L'I2pe, que fora o grande pioneiro no ensino de cegos. Itard vencera brilhantemente uni concurso nacional como cirurgio, associando-se depois a Larrey e Pinel, dois grandes nomes da cincia mdica francesa. E, por seus trabalhos sobre gagueira, educao oral e audio j despontava como o fundador da otorrinolaringologia, campo em que criou diversas tcnicas e instrumentos que se tornariam de uso corrente. Assim, sua fama de terico da fisiologia da fala e da audio crescia com sua reputao como clnico. Atendia sua clientela pela manh, no centro de Paris, e dedicava todas as tardes ao asilo de surdos-mudos, como fisiologista e otorrinolaringologista. A impotncia da medicina diante de numerosos casos de surdez e mudez o impressiona vivamente, e Itard comea a colocar sua genialidade a criticar o atraso da cincia mdica e a procurar um mtodo para reeducar os surdos-mudos da rua Saint-Jacques. Quando os educadores do tempo, quase unanimemente, defendem o ensino do gesto e da mmica, Itard prope a desumanizao e adota a leitura de lbio e a expresso

  • oral como os recursos ideais para a reeducao. Nessa busca de um mtodo, e sobretudo nessa dedicao humanista e~ generosa aos pacientes do Instituto, Itard emprega quase quarenta anos de intensa atividade de pesquisa e de ensino num.' devotamento to grande que o leva a cerrar as portas de seu rendoso consultrio particular. A pertincia e engenhosidade da pedagogia de Itard mio ensino de linguagem aos surdos-mudos, bem como na reeducao do menino de Aveyron, que se sobrepe sua atividade no Instituto, encontra clara explicao em sua slida cultura mdica e filosfica. Suas idias, derivadas cristalinamente do Essay de Locke e da teoria da esttua de Condillac, o sensibilizam para as relaes estreitas entre fonao e audio, linguagem e pensamento, percepo e abstrao, cultura e inteligncia, experincia e criao. Desse modo, no surpreende que tenha sido um dos grandes pioneiros da educao de surdos-mudos alm de ser o primeiro pedagogo da oligofrenia e terico da educao especial de deficientes mentais. No campo da educao de surdos-mudos, Itard teve que redescobrir, em alguns aspectos, princpios e procedimentos que um seu precursor no legara aos psteros e muito menos teria legado ao Instituto criado pelo abade de I'e. De Marguits a Victor d Aveyron - 31 Como Itard fora conduzido, mais que tudo por sua generosidade e altrusmo, a devotar-se ao Instituto desde 1799, assim tambm o esprito altrusta levara, algumas

  • dcadas antes, um outro homem a dedicar-se ao ensino da fala aos surdos- mudos: foi Jacob Rodrigues Preire (1715-1780). Apresentado ora como mdico francs (Dickerson, 1980), ora como matemtico portugus, ora como pedagogo espanhol, Jacob Rodrigues Preire nasceu de pais portugueses, residiu em zona fronteiria da Espanha, por motivo de perseguies poltico-religiosas por ser judeu converso, e brilhou em Paris como criador de uma revolucionria metodologia para ensinar linguagem a surdos-mudos. A preocupao com o problema nascera como um gesto de amor, no caso de Preire ou Pereira, pela irmzinha nascida surda-muda vrios anos depois dele. A observao original e genialmente explorada que desencadeou sua pesquisa metodolgica teria sido a de que enquanto acalentada e abraada pela me a irmzinha emitia sons vocais, mas quando acomodada no bero cessava qualquer vocalizao. Jacob imaginou e comprovou depois, o que hoje parece bvio distncia de dois sculos, que a criana percebia pelo tato as vibraes torxicas e guturais do canto materno, alm de ver os movimentos labiais, concomitantes, da me. Seu mtodo, que comeou a elaborar aos 19 ou 20 anos de idade, consistia em ensinar a articulao de fonemas e palavras a partir da sensao ttil visual e/ou auditiva e, principalmente, com base na "memria dos movimentos dactilolgicos". Ao que parece, os 80 sinais dactilolgicos de Pereira no se referiam a smbolos grficos e sim a movimentos labiais ou orais de articulao. No eram unia espcie de alfabeto grfico, mas um cdigo prosdico no qual os sinais digitais

  • indicavam pronncias e no grafias. Numa segunda etapa Pereira ensinava a percepo e reproduo da voz humana, a partir da percepo ttil das vibraes sonoras. Finalmente, corno terceiro passo vinha o ensino da entonao e da acentuao tnica, a primeira assegurada pelo gesto e a segunda pelo compasso, o que lembra de perto a comunicao de um maestro com o solista da orquestra. Infe De Marguits a Victor de Aveyron - 33 lizmente, no restaram da metodologia de Pereira mais que menes e relatos de discpulos e admiradores. Pereira antecipa - como Itard, a seu tempo - os princpios bsicos daquilo que vim-ia a ser no sculo XX a anlise do comportamento aplicada ao utilizar os sinais digitais, ou sua dactilologia, como estmulo para confirmar pronncias corretas e como indicador ou lembrete a recordar constantemente ao mudo os movimentos labiais, orais ou faciais essenciais a cada articulao especfica. A ligao da operao articulatria sensao e da emisso articulatria concreta sua simbolizao formal (de modo a que o gesto seja no uma linguagem expressiva mas a instigao pai-a a diferenciao prosdica da articulao) parece constituir o cerne do mtodo de Pereira. Um mtodo que ele jamais publicou mas transmitiu a numerosos discpulos entre os quais o abade Deschamps, sobre o qual escreveu o Curso de educao de surdos-mudos e Corno substituir o ouvido pela viso. Seu mtodo foi atacado e contestado por outro pioneiro na rea, o abade de l'pe, que receberia de Lus XVI aquilo com que Pereira sempre sonhara: o

  • financiamento da criao de uni Instituto Nacional de surdos-mudos, o mesmo que depois seria dirigido por seu adepto Itard. A perda catastrfica do mtodo de Pereira obrigaria Itard a redescobrir praticamente todo o procedimento pedaggico de instalao da fala, coordenada com a audio ou com a percepo ttil das vibraes vocais. 12 bvia aqui a quase fatalidade do apelo teoria da esttua de Condillac e, para alm, ao Essay de Locke. A engenhosidade didtica de Itard aliada impossibilidade de comunicao fluente e precisa com seus pacientes e experincia de obstinada elaborao de programas e recursos eficazes de treino prepara-o plenamente para inaugurar, com a chegada do selvagem de Aveyron, a histria da educao especial de deficientes mentais. II o mestre e o selvagem O selvagem e o diagnstico de Pinel Os ideais do naturalismo humanista que floresciam com a segunda metade do sculo XVIII j haviam atrado a ateno dos intelectuais para as distores impostas pela cultura livre manifestao e desenvolvimento da natureza humana.

  • Mais, os filsofos comeavam a ver na prtica pedaggica a camisa-de- fora a tolher e deformar o homem que, agora, enfraquecida a inquisio e a fria purgadora da Reforma e da Contra-Reforma, passava a ser visto como naturalmente bom, institivamente puro e instintivamente generoso. O homem selvagem como prottipo da pureza afetiva e intelectual passa a ser um ideal da cultura pr-revolucionria e a educao formal oficial comea a sofrer pesados ataques de Condillac, Diderot, D'Alembert e principalmente de Rousseau, com a teoria do "bom selvagem" formulada no Discours de 1754. Nessa obra Rousseau cita cinco exemplos de selvagens naturalmente inteligentes e generosos, entre eles o menino-lobo de Hesse (descoberto em 1344), o 2.0 menino-urso da Litunia (descoberto em 1694), os dois rapazes dos Pireneus (descobertos em 1719) e o selvagem Peter de Hanover (achado em 1724). Condillac, o grande inspirador de Itard, j mencionara em 1746, no Essai, o segundo menino-urso da Litunia. 36 - Deficincia mental nesse fluxo de idias que se insere a deciso de Champagny de enviar a Itard o selvagem de Avcyron como prottipo vivo do ideal rousseauniano do selvagem inculto, naturalmente inteligente e generoso, portanto um desafio ao engenho e pertincia virtudes que o trabalho no Instituto acrisolara cm ltard, e ao mesmo tempo uma promissora oportunidade de confirmar seja a teoria do "bom selvagem" de Rousseau, seja a da "esttua" de Condillac e, por ela, e da "tabula rasa" de Locke. O selvagem de Aveyron, a quem Itard daria o nome de Vmctr por seu interesse especial pelo som o, fora capturado em 1797 na floresta de La Caune, conseguira fugir do cativeiro para errar pela mata durante 15 meses, ao cabo dos quais alguns caadores o recapturaram e confiaram guarda de uma viva, da qual fugiu passada uma semana. Em 1800 deixa-se

  • prender no jardim do tintureiro Vidal e no dia seguinte internado no asilo de Saint-AfInque; um ms depois examinado pelo naturalista Bonnaterre, que registra em minuciosas observaes sua estatura, seu mur- mrio ao comer, suas cleras sbitas, o gosto pelas chamas, o sono controlado pela aurora e ocaso, seus esforos para fugir, sua incapacidade de compreender a imagem especular de si mesmo. Aps a inevitvel repercusso jorna1stica~ CliampagllY, o ministro do Interior, ordena que ele seja enviado a Paris e confiado cincia, ao afeto e a habilidade de Itard, que o submete ao exame do mais clebre psiquiatra francs da poca, Philippe Pinel. O diagnstico de Pinel desolador: Victor no um indivduo desprovido de recursos intelectuais por efeito de sua existncia peculiar, mas um idiota essencial como os demais idiotas que conhece no asilo de Bictre. Malson (1964) lembra que a oposio de ltard ao diagnostico jupiterianO de Pinel se deve convico de que o homem no nasce como homem mas construdo como homem. Percebia, obviamente, a idiotia do selvagem, mas no a entendia como devida a uma deficincia biolgica e sim como um fato de insuficincia cultural: ele era o bom selvagem, a esttua e a tbula rasa. l, um ano aps, Itard narra em sua genial Mnzoire sur les premiers dveloppemefltS de Victor de l'Aveyron (1801), o estado de enorme dficit perceptivo e intelectual do menino, incapaz de discriminaes mesmo grosseiras entre odores, rudos, imagens, o que o torna um retardado mental profundo, mais despreparado que um animal domstico, incapaz de articular qualquer som vo 38 - Deficincia mental

  • cal humano e de fixar sua ateno cm um dado objeto ou evento; Lis o que diz textualmente a Mmotre de 1801: "Procedendo, inicialmente, pela exposio das funes sensoriais do jovem selvagem, o cidado Pinel nos apresenta seus sentidos reduzidos a um estado de inrcia tal que esse infeliz se encontrava, a tal respeito, muito abaixo de qualquer dos nossos animais domsticos; seus olhos sem fixidez, sem expresso, errando vagamente de um objeto a outro sem jamais deter-se sobre algum, to ~)ouCo i115-trudos e to pouco exercitados pelo tato que no distinguiam um objeto em relevo de um corpo em pintura; o rgo do ouvido insensvel aos mais intensos rudos, como msica mais envolvente; a voz reduzida a um estado de completa mudez e no deixando escapar mais que um som gutural e uniforme; o olfato to pouco refinado que ele recebia com a mesma indiferena o odor dos perfumes e a exalao ftida das imundcies de que estava repleto seu leito; enfim, o rgo do tato restrito s funes mecnicas de preenso dos corpos. Passando em seguida ao estado das funes intelectuais desse menino o autor do relato no-lo apresenta incapaz de ateno, seno a objetos de suas necessidades, e, consequentemente, incapaz de todas as operaes do esprito que implicam essa primeira; desprovido de memria, de julgamento, de capacidade de imitao e to limitado nas idias, mesmo que relativas s suas necessidades, que ele no conseguiu ainda nem mesmo abrir uma porta ou subir a uma cadeira para atingir alimentos pendurados acima do alcance de sua mo: finalmente desprovido de qualquer mcio de comunicao, no ligando nem expresso nem inteno aos gestos e movimentos de seu corpo; passando com rapidez e sem qualquer motivo presumvel de uma tristeza aptica s exploses de riso mais imoderadas; insensvel a todo tipo de afeces morais; seu discernimento no era mais que um clculo de glutoneria, seu prazer uma sensao agradvel dos rgos do gosto, sua inteligncia a aptido de produzir algumas idias incoerentes relativas

  • s suas necessidades; toda a sua existncia, numa palavra, uma vida puramente animal." O quadro desanimador que nos oferece o diagnstico de Pinel s no desencorajaria quem tivesse ampla experincia no en51110 de outros deficientes (surdos-mudos, por exemplo), quem tivesse engenho e arte para criar mtodos, tcnicas e materiais dc ensino, quem acreditasse nas doutrinas da tbula 1-asa, da esttua e do bom selvagem, quem conhecesse as limitaes do diagns O mestre e o :4 vagem - 39 tico e da teraputica mdica em casos como o de Victor, quem tivesse pela humanidade e pelo progresso do conhecimento hu;miano o mais generoso interesse, quem por sua cultura e preparo profissional pudesse opor ao saber da autoridade a autoridade de seu saber. No surpreende, pois, a recusa de Itard a abandonar Victor aos depsitos de Bictre, uma idia insinuada indisfaravelmente no relatrio de Pincl, que na Mtnoire de Itard prossegue assim: "Relatando em seguida diversas histrias colhidas cm Bictre, sobre crianas atacadas irrecuperavelmente de idiotismo, o cidado Pincl estabeleceu entre o estado desses infelizes e o que apresentava o menino que nos ocupa, as aproximaes mais rigorosas que davam necessariamente ior resultado uma perfeita e completa identidade entre esses jovens idiotas e o Selvagem de Am'eyron. Tal identidade conduzia necessariamente a concluir que, atacado por unia doena considerada, at o presente, incurvel ele no era capaz de qualquer espcie de sociabilidade ou instruo. Tal foi tambm a concluso a que chegou o cidado Pinel . -

  • Itard e a medicina moral Mais chegado s questes filosficas que o grande clnico de Bictrc, ltard v o caso sob luz diversa: "Eu no aceitava tal opinio desfavorvel, e apesar da verdade do quadro e da justeza das apro- ximaes, ousava conceber algumas esperanas. Eu as fundamentava mia dplice considerao sobre a causa e sobre a curabilidade desse idiotismo aparente . - . essas duas consideraes repousam sobre uma srie de fatos que devo narrar e aos quais me verei forado a acrescentar minhas Prprias reflexes." Aqui Itard aponta um problema permanente na rea da deficincia mental: o da avaliao. O diagnstico de Pinel, pelo menos na transcrio de Itard, descura totalmente de fatores arnl)icntais e de histria pessoal do menino selvagem. Pohidamente ltard lembra que o quadro traado por Pinel omite consideraes sobre a causa da desoladora deficincia de desenvolvimento de Victor. Uma anlise longitudinal desse desenvolvimento deficitrio poderia mio s alterar o prognstico devastador de Pinel como 40 - Deficincia mental tambm indicar condies a serem manipuladas para recuperar o desenvolvimento faltante. Assim, a descrio preciosa de I'immel no basta pai-a decidir. necessrio acompanh-la de uni exame da gnese do quadro descrito. A identificao dos eventos determinantes do dficit imprescindvel para decidir sobre a incurabilidade ou curabilidade do "idiotismo" do selvagem. desse modo que as reflexes sobre a causa conduzem ltard a prognosticar a curabilidade. Sua atitude exemplar e precede de quase dois sculos opinies atuais. A avaliao deve levam cm conta a histria

  • de desenvolvimento, implicando-se a noo dc gnese do comportamento complexo pelo comportamento simples, das operaes formais pelas concretas, das abstraes, em ltima anlise, pelas sensaes. Outra idia implcita na anlise de Itard a de que o "idiotismo" aparente do selvagem mia verdade um retrato do desenvolvimento. O mestre e o selvagem - 41 E para ele esse retardo aparece, em diferentes pontos da Mmoire, ora entendido como mero atraso cronolgico ora concebido como dficit do processo gentico do comportamento, implicando uma inexorvel seriao na aquisio dos desempenhos e cujo ritmo pode ser retardado ou acelerado dependendo da instalao de repertrios ou noes que so pr-requisitos evolutivos pala outras aes e noes. A Mmoire lana, pois, e vigorosamente, fundamentos da teoria da avaliao e da didtica atuais na rea da deficincia mental - A causa do retardo de Victor ~, para seu mestre, a carncia de experincias de exerccio intelectual devida ao seu isolamento e no uma doena incurvel dita idiotismo. na escassez da experincia e na inrcia intelectual dela resultante que reside a origem, a causa da deficincia; e, em conseqncia, na estimulao e ordenao da experincia que se encontra a "curabilidade" do retardo. Desse modo, refere ltard, "esse menino passou em absoluta solido quase sete anos em doze - . - portanto provvel e praticamente provado que ele foi abandonado aos quatro ou cinco anos, e que, se em tal poca ele devesse algumas idias e umas J)OUC~5 palavras a um comeo de educao, tudo isso se teria cancelado de sua memria por efeito de seu isolamento." O que Itard pensa do retardo fica claro na citao seguinte:

  • "De fato, considerando-se o curto tempo de sua estada entre os homens, o Selvagem de .4veyron muito menos um adolescente imbecil que uma criana de dez ou doze meses, e uma criana que tenha ciii desfavor seus hbitos anti-sociais, uma patolgica inateno, rgos capazes de pouca flexibilidade e uma sensibilidade acidentalmente embotada." Diz ainda Itard: "Desse ltimo ponto de vista sua situao tornava-se uru caso puramente mdico e cujo tratamento pertencia medicina moral, essa arte sublime criada na Inglaterra 1)01 Wills . . . A medicina moral era a designao genrica para as atividades da psicologia clnica e da psiquiatria, que se organizariam como profisses muito mais tarde. Alguns pontos devem sem- sahientados a propsito desse trecho: a deficincia um problema mdico, portanto passvel de tratamento; cabe ao mdico alterar 42 - Deficincia mental os hbitos (mores) pelo exerccio de uma medicina moral. O exerccio dessa medicina a correo ou instalao de noes e de repertrios comportamentais; da, designar ele de "ortopedia mental" ou "ortofrenia" tal medicina moral, verdadeiro mtodo de modificao de comportamento, na conotao atual desses termos, em nenhum momento visa produzir, neutralizar ou eliminar atividades otm estruturas neurais ou cerebrais: consiste em arranjar condies emocionais e ambientais timas para a ocorrncia de comportamentos desejveis e para a cessao de atividades no queridas. Efetivamente, era difcil para um mdico de vinte e poucos anos, em 1800, admitir que a deficincia - fosse ela idiotia ("idiotismo"), imbecilidade, amncia ou oligofrenia - pudesse ser confiada aos pedagogos de seu tempo, seja pelo completo desinteresse das doutrinas pedaggicas pelo assunto, seja porque no havia qualquer tradio didtica para a

  • educao especial, seja ainda porque, tradicionalmente desde Paracelso e Cardano, amncia e demncia eram processos de patologia cerebral e, portanto, assunto privativo do mdico. De todo modo, diversas vantagens se oferecem para o deficiente ao passar das mos do inquisidor s mos do mdico. Similarmente, o ganho do conhecimento humano nessa rea gigantesco quando a teoria da deficincia buscada nos tratados de patologia cerebral de Willis e de Pinel e no mais no .Directorium dos inquisidores ou no Malleus maleficaru,n. H, de par, uma considervel evoluo quando os determinantes da deficincia no so demnios, miasmas e sortilgios e sim disfunes ou displasia corticais, ainda quando meramente inferidas ou totalmente hipotticas. Mas o grande progresso ocorre quando tais determinantes so procurados tambm mia histria de experincias do de- ficiente, pouco importando que a tal busca e subsequente tratamento se d o nome de medicina moral (remediao de hbitos) ou ortopedia cerebral (reeducao de funes enceflicas). O organicismo de Willis, que alcanaria sua verso mais refinada cm tratados de Pinel, de Esquirol e de outros, e que marca o fim do dogma na teoria da deficincia mental, gerar, como veremos, srios problemas em sculos seguintes. A metodologia de ltard, pioneira indiscutvel na teoria e na didtica da deficincia mental, derivava muito menos do organi O mestre e o selvagem - 43 cismo de seu mestre Pincl que dc sua intimidade com o pensamento de Locke, Condihlac e Rousseau e, talvez em muito menor proporo, de I'ereim-a e do abade de L'pe.

  • Victor e a vida social O programa traado para a educao especial de Victor um modelo de bom senso e humildade, indicao salutar para os adeptos de unia conduo tecnocrtica, mais que tecnolgica, do ensino. O primeiro objetivo de ensino geraria hoje a mais santa clera dos tcnicos em definio terica de objetivos de ensino; candidamemite formulado por Itard: "Lig-lo vida social, tornando-a mais suave que a conduzida at ento e, sobretudo, mais anloga vida que acabara de deixar. Alm do transparente respeito pessoa do educando, essa formulao caracteriza a estratgia de, Itard, baseada na contnua ateno s oscilaes motivacionais e na gradao das alteraes ambientais introduzidas na vida de Victor. ltard percebe que ao menino faltam destrezas mnimas de convivncia social e que, portanto, sua insero plena na vida sociocultural deve ser precedida de adequado treino prvio de socializao em condies menos traumticas que as sofridas desde sua captura at a entrega ao desvelo de Itard e de Madame Gurin. A experincia penosa de ser aprisionado, exibido como curiosidade para leigos e especialistas, e sobretudo a percepo do prprio despreparo para as exigncias da cultura e a perda dos espaos e da relativa segurana de sua vida anterior, aparecem para ltard corno bvias explicaes para o retraimento e a apatia que substituem a vivacidade e hiperatividade de Victor, aps sua chegada a Paris. Qualquer um que o olhasse "encolhido em um canto do jardim" ou "escondido no segundo pavimento atrs de entulhos" no prognosticaria grandes progressos ao selvagem de ltard. O risco de superficialidade em avaliaes, mesmo as que hoje

  • chamaramos de "levantamento de repertrio", a confundir domnio de tarefas com execuo delas e, portanto, motivao para 44 - Deficincia mental exerc-las, claramente apontado por Itard (Mmoire): " messe estado deplorvel que o viram certos curiosos de Paris, e que, aps um exame de alguns minutos o julgaram digno de ser enviado s Petites Maisons; como se a sociedade tivesse o direito de arrancar unia criana de uma vida livre e inocente para mand-la morrer de tdio num hospcio e ali expiar a desgraa de haver decepcionado a curiosidade pblica." Aps o diagnstico de Pinel e o prognstico que fez difcil no ver aqui o grande clnico como destinatrio da crtica; de outro lado, parece meridiana a adeso de ltard doutrina do "bom selvagem" de Rousseau e sua rejeio costumeira prtica de segregar em hospcios os deficientes mentais. bem verdade que nesse tempo os hospcios haviam perdido sua funo de priso ou masmorra, mas continuavam a servir comodamente para segregar os incmodos, fossem eles dementes, amentes ou mutilados. Terminara a poca dos aoites, dos grilhes e da fome, mas afora alimentao e abrigo nada mais se oferecia aos asilados seno, s vezes, uma precarssima assistncia mdica. De todo modo, para o deficiente era o abandono definitivo, o banimento irrevogvel da sociedade e de seus recursos. Fora Valsava (1666-1723), na Itlia, o primeiro a alterar as condies restritivas dos asilos, freqentemente antigos leprosrios, abolindo algemas, grilhes e aoites e introduzindo a assistncia mdica nos hospcios. Por volta da revoluo francesa a Salptrire e Bictre foram reestruturados de modo a se tornarem instituies liospitalares, com a excluso dos delinqentes,

  • alcolatras, "possessos" e prostitutas. Victor estaria destinado a l3ictre, portanto a cuidados mdicos e total abandono social e carncia mais completa de oportunidades de ensino ou educao. A confiana na educabilidade do selvagem no se acompanha de qualquer precipitao: atento s questes de motivao e s peculiaridades da percepo de Victor, seu mestre sabe que qualquer progresso mdico-moral do educando dever ser conseguido gradualmente. Por ora, "necessrio torn-lo feliz sua maneira, pondo-o a dormir ao cair da noite, oferecendo-lhe com abundncia os alimentos de seu gosto, respeitando sua indolncia e acompanham O mestre e o selvagem - 45 do-o em seus passeios, ou melhor, em suas correias ao ar livre, e isso em qualquer momento que as fizesse." (Mmoire) A freqncia de passeios, brincadeiras na neve, giros pelo jardim e perodos de contemplao quase esttica dos caninos e do luar sugenb a Itard algo que insinua o famoso "Princpio de Pm-emiiack": "Teria sido to intil quanto inumano contrariar esses ltimos hbitos, e era mesmo parte de meus objetivos associ-los sua nova existncia para torn-la mais agradvel." Era diverso o caso dos hbitos "que tinham a desvantagem de excitar constantemente seu estmago e seus msculos e assim deixar sem ao a sensibilidade dos nervos e as faculdades do crebro". Aps essa breve reminiscncia da "esttua" de Comdihlac, ltard conclui: "e assim consegui finalmente, e por graus, tornam suas comidas mais mamas, suas refeies menos copiosas e menos frequentes, sua permanncia no leito muito mais curta e seus dias mais proveitosos para sua instruo." A semelhana com concluses dos melatmios de "modificao do comportamento" sentida, aqui. No se impe qualquer "objetivo instrucional", nessa estratgia, comi

  • base mia literatura da rea, que no existia, nem a partir de procedimentos formais de programao de ensino: usam-se as atividades preferidas como algo a ser respeitado e aproveitado para o ensino, selecionam-se gradualmente os hbitos que favorecem a administrao de prticas, a serem escolhidas de acomodo com sua adequao s deficincias de sensibilidade e de exerccio das "faculdades do crebro". Uni modelo acabado de atitude ante a tarefa da educao especial de deficientes mentais. Se ltard se deixa conduzem, nessa primeira empreitada, pela natureza do educando, como pregava Rousseau (aps Locke, Comenius, Montaigne e Rabelais), na segunda etapa do trabalho reparte sua fidelidade emite a natureza do aluno e a teoria pedaggica de que se imbura comi a leitura de Commdillac e Locke. O despertar da esttua Ntnmna segunda etapa da educao de Victor o objetivo "despertar a sensibilidade nervosa, pelos estimulantes mais enrgicos 46 - Deficincia mental e, s vezes, pelas vivas afeces da alma". Em termos moldem-nos o objetivo seria, talvez, exposto como: "compensar as deficincias sensoriais, devidas carncia de estimulao oportuna, atravs de intensa carga de estimulaes exteroceptivas e interceptavas." o que se depreende das observaes registradas por ltard, da insensibilidade do selvagem de Aveyron a temperaturas extremamente baixas ou altas, como a dos ventos chuvosos, a de gua fervente ou das brasas da

  • lareira. ltard procedeu a um verdadeiro mapeamento da sensibilidade de Victor comi - o emprego de poderosos estmulos olfativos, como o rap ou tabaco introduzido nas narinas sem provocar espirro ou lgrima. No escapa argcia do mdico-educador o quanto seletiva a hipossensibilidade geral do educando: um ouvido apto a captar imediatamente o rumor de uma noz ao ser partida no revela qualquer susceptibilidade a intensos rudos e at a estampidos de armas de fogo e petardos. Fiel doutrina das faculdades da alma, Itard interpreta essa seletividade lembrando que "urna falta de ateno por parte da alma poderia simular unia falta de sensibilidade no rgo", a despeito de Victor revelar uma debilidade sensorial geral. Dessa considerao deriva a deciso de expor o menino a variaes abruptas de estimulao: "era meu plano desenvolver (a propriedade nervosa da sensibilidade) por todos os meios possveis e preparar o esprito ateno, dispondo os sentidos a receber as mais vivas impresses." O efeito visado mental -a ateno - como resultante do exerccio sensorial diferencial. O treino se inicia com a sensibilidade ttil, atravs da exposio a temperaturas muito altas em banhos de duas ou trs horas com duchas quentes repetidas sobre a cabea. Aps algum tempo "nosso jovem selvagem mostrava-se sensvel ao do frio, usava a mo para provar a temperatura do banho e o rejeitava se no estivesse morno". A estratgia flexvel da pedagogia de Itard aparece clara nesse ponto da Mmoire, como em muitos outros; da recusa do banho muito quente e da sensibilidade ao frio Itard aproveita-se para conseguir que Victor aprecie a funo das roupas como recurso para obter unia temperatura confortvel e, imediatamente, "uma vez conhecida essa utilidade no havia mais que um passo a dar-se para for-lo a vestir-se sozinho. Ns o conseguimos aps alguns dias deixando-o toda manh exposto ao frio, ao

  • 48 - Deficincia mental lado de suas roupas, at que ele mesmo conseguiu servir-se delas." E o oportunismo do mtodo no pra a, a nova aquisio - vestir-se - agora aproveitada como degrau de comportamento preliminar ou pr-requisito para nova aprendizagem: a de manter secas suas roupas e, por extenso, sua cama. ltard prossegue: "Um recurso semelhante bastou para dar-lhe, ao mesmo tempo, hbitos de asseio; a ponto de a certeza de passar a noite numa cama fria e mida acabar por acostum-lo a levantar- se para satisfazer suas necessidades." A habilidade de explorar uma aquisio como pr-requisito de outra, e que Itard demonstra em inmeros pontos de trabalho, corresponde a estratgias muito recentes da chamada modificao de comportamento. Mas esse pioneirismo corre por conta da criatividade de Itard. Sua preocupao , sempre, despertar- a esttua partindo da sensao; aqui reside outra marca de sua pedagogia: os desempenhos adequados no so seus objetivos, so apenas sinais de exerccio de funes da mente e, a um tempo, recursos para provocar o exerccio de outras faculdades ou da mesma faculdade diante de novos objetos, internos e/ou externos. Por isso, no de causar espanto sua deciso de juntam' aos excitantes trmicos, outros, das afeces da alma. Convm notar que a conscincia dos prprios estados emocionais ou outros estados internos, uma das metas prioritrias de ltard e de seu discpulo Seguin, hoje olimpicamente transcurada por muitos tecnlogos da educao e da educao especial. Diversamente, para Ltard o progresso do aluno no reside apenas mia extenso e crescente complexidade de suas operaes sobre o meio; requer tambm, e essencialmente, a "reflexo" apregoada por Condiilac: a

  • elaborao mental da experincia, agora utilizada como objeto interior a ser conhecido com justeza a preciso. Tal a funo das "afeces da alma": servirem como estmulos ou excitantes internos. Obviamente, a "reflexo" de Condihlac mais abrangente que o conhecimento da mera sensao ou estados emocionais, mas nesse nvel que ltard resolve trabalhar, ainda para desenvolver a sensibilidade, e agora para objetos interiores. "Eu no provocava sua clera seno a grandes intervalos de tempo, para que seu acesso fosse mais violento e sempre com uma aparncia bem evidente de justia. E notei ento que, s O mestre e o selvagem - 49 vezes, no mpeto de sua clera, sua inteligncia parecia adquirir uma certa extenso que lhe fornecia, para superar o problema. alguns expedientes engenhosos." Aps narrar outros procedimentos para provocar a clera e, muitos, para evocar a alegria de Victor, Itard resume seu xito: "Tais foram, dentre uma multido de outros, os estimulantes tanto fsicos como morais com que procurei desenvolver a sensibilidade de seus rgos." Trata-se, a despeito de todos os sucessos de aquisio de repertrio comportamental, de meros exerccios para desenvolver a sensibilidade. Convm notar, Ltard no programa tarefas a serem dominadas: ajusta tarefas a funes (sensoriais ou mentais) que quer desenvolver. Essas funes so visadas de forma hierarquizada e gradual e, note-se tambm, so definidas ou escolhidas segundo sua importncia para o ajustamento social e emocional do educando. So "critrios" de programao que convm recordar nos dias de hoje no campo da educao especial. A esta altura, fica evidente a vinculao determinante de ltard

  • teoria da esttua, ou seja, metafsica de Condihlac, uni aspecto que nierccc realce pois determinar impasses no processo educativo de Victor. O princpio da equivalncia dos sentidos para efeito de funcionamento da mente ou do intelecto . por exemplo, plenamente adotado por ltard, mas a possibilidade de o e