Iraque - A guerra pelas mentes

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Neste livro, Paula Fontenelle examina em profundidade os perigos enfrentados por repórteres durante a cobertura da guerra. Oficiais de soldados envolvidos no apoio logístico de todas as fases da reportagem, das gravações na linha de frente dos combates ao transporte de equipamentos para os pontos de transmissão de satélite. Repórteres com uniformes militares à prova de bala, dentro de tanques de unidades lançadoras de mísseis teleguiados, sempre estrategicamente longe dos civis, os que mais sofreram com a guerra. Além disso, o livro apresenta depoimentos de sinceridade constrangedora. Militares britânicos, escalados em postos de comando, admitem serem subjulgados pelos parceiros americanos, que decidiam sozinhos o que divulgar e o que deveria ser escondido do público. Obs - disponível apenas em e-book.

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PAULA FONTENELLE

I R A Q U E

A G U E R R A

P E L A S M E N T E S

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SUMÁRIO

Apresentação de José Hamilton Ribeiro ...............................................15

Introdução............................................................................................19

A cobertura jornalística em guerras anteriores ...................................25

Uma guerra construída ........................................................................43

A estratégia de comunicação dos aliados .............................................59

Coincidências planejadas: a teatralização do conlito ..........................83

A guerra da mídia ................................................................................91

Tony Blair e a opinião pública ..............................................................99

George Bush e o im da lua de mel ..................................................... 103

Conclusão .......................................................................................... 115

As entrevistas .................................................................................... 139

1. O prazer do silêncio: Bob Roberts, The Daily Mirror ...................... 145

2. O limite da coragem: James Meek, The Guardian ........................... 157

3. Tensão no deserto: coronel Sean Tully, diretor da

Unidade Móvel de Transmissão, Ministério da Defesa britânico ... 167

4. Sob as rédeas do regime de Saddam: Anton Antonowicz,

The Daily Mirror ............................................................................ 179

5. O Fog of War escondia a exatidão: Ben Brown, BBC ..................... 193

6. A construção das imagens da guerra: Terry Richards,

fotógrafo do The Sun ..................................................................... 205

7. Inluência sim, controle não: David Howard, chefe do

Departamento de Comunicação do Ministério da Defesa

britânico ....................................................................................... 211

8. Amplo acesso e camaradagem: Bill Neely, ITV News .................... 229

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9. Além do controle, a depressão do Palestina: Kim Sengupta,

The Independent ........................................................................... 237

10. Vietnã: – uma guerra também pessoal: José Hamilton Ribeiro,

Rede Globo ................................................................................... 257

Notas ................................................................................................. 267

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A COBERTURA JORNALÍSTICA EM GUERRAS ANTERIORES

Os conlitos entre países vêm sendo acompanhados por jornalis-

tas desde tempos remotos, muito embora os avanços tecnológicos

tenham alterado radicalmente o modo como as guerras são veicu-

ladas. Hoje, a internet permite acesso imediato à notícia, fato que

confere relevância ainda maior à mídia, mas a importância da im-

prensa sempre foi reconhecida por governantes e políticos:

“O debate público não é mais alimentado pelos eventos, e sim

pela cobertura dos eventos.”1

Douglas Hurd, secretário (ministro) do Exterior da Grã-Bretanha

entre 1989 e 1995.2

Eu aprendo mais com a CNN que com a CIA.3

George H. Bush

Para compreender a evolução da mídia na cobertura de guerras

é preciso saber como esse trabalho foi desempenhado durante os prin-

cipais conlitos, em particular, os que exerceram um grande impacto

nas relações entre a mídia e os governos americano e britânico.

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A Guerra Civil norte-americana (1861–1865)

Durante a Guerra Civil norte-americana, 500 repórteres estiveram

presentes apenas na região norte do país. Na época, o New York

Herald enviou sessenta e três jornalistas ao front; o The New York Ti-

mes, aproximadamente vinte.4

Naquele tempo, em vez de fotógrafos, os veículos de comuni-

cação contratavam artistas para criar as ilustrações dos comba-

tes. A demanda por esses proissionais era tanta, que o Illustrated

Weekly, principal fonte de imagens da época, chegou a ter oitenta

artistas em seu quadro de funcionários. Em quatro anos, mais de 3

mil desenhos foram produzidos nos campos de batalha.

Os repórteres que cobriram a guerra eram inexperientes e ha-

via uma grande pressão do mercado por furos jornalísticos, o que

acabava provocando uma reação irresponsável da mídia. Num dia

de grande demanda por notícias de primeira mão, Wilbur Storey,

do Chicago Times, enviou o seguinte bilhete a seus correspondentes:

“Telegrafe tudo que conseguir, e quando não houver nada, mande

rumores”.5

A Primeira Guerra Mundial (1914–1918)

Foi durante a Primeira Guerra Mundial que a Grã-Bretanha de-

monstrou supremacia na arte da guerra psicológica. Na época, o

país possuía o melhor sistema de coleta e distribuição de notícias;

uma imprensa “livre” e ampla experiência em comunicação inter-

nacional devido à posse de cabos submarinos. Quando a guerra

teve início, em agosto de 1914, a Grã-Bretanha era o único país a

enfrentar polêmica sobre sua possível participação no conflito;

a pressão política interna era intensa no sentido de o país perma-

necer neutro.

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Logo no início do conlito, o governo britânico baixou decretos

para impor censura à imprensa, proibindo qualquer tipo de cober-

tura. O exército delegou o tenente-coronel Ernest Swinton como

repórter oicial com o título “testemunha ocular”. Os jornalistas

que, ainda assim, tentaram acompanhar os acontecimentos, não

tiveram qualquer tipo de apoio oicial.

Em 1915, os seis primeiros correspondentes de guerra fo-

ram aceitos pelo governo — por pressão da mídia nacional — e

apresentados no quartel-general, na França. Em sua maioria,

eram complacentes com a manipulação do governo. Philip

Gibbs, do jornal britânico Daily Telegraph, chegou a admitir:

“Eles não precisavam censurar nosso material. Fomos nossos

próprios censores”.6

As reportagens eram escritas em rodízio e enviadas a todos os

jornais britânicos, mas não antes de passar pelas várias camadas

de censura na França e na Grã-Bretanha. Durante a guerra, o ci-

nema servia como fonte de informação sobre o conlito. No inal

de 1915, os primeiros cinegraistas chegaram ao quartel-general.

Era proibido utilizar câmeras, mas alguns soldados as carregavam

para, em seguida, repassar o material à imprensa. Os primeiros

dois repórteres fotográicos chegaram em 1916.7

A primeira organização oicial de propaganda criada na Grã-

-Bretanha foi o Gabinete de Propaganda da Guerra. Inicialmente,

a agência era responsável apenas pela distribuição de material im-

presso nos países neutros, e, eventualmente, na Alemanha. Entre

agosto de 1914 e setembro de 1918, mais de 250 mil panletos,

brochuras e outras publicações foram enviadas pelo Gabinete.8

Muitos deles continham a chamada “propaganda do ódio”, ou

“propaganda de atrocidades”, cujo objetivo era criar um sentimen-

to de desconiança e rejeição ao inimigo por meio da produção de

relatos sobre o tratamento desumano recebido pelos soldados, e até

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pelos próprios cidadãos. Grande parte das informações contidas

nesse material nunca foi conirmada.

O sucesso da propaganda britânica foi visto como um dos

principais elementos responsáveis pela derrota da Alemanha. No

livro Minha luta, Adolf Hitler fez elogios aos esforços da máquina

de propaganda da Grã-Bretanha e disse, inclusive, que aprendeu

com eles. O proissionalismo de seus inimigos o impressionou tanto,

que na Segunda Guerra Mundial a propaganda de guerra se tor-

nou primordial em sua estratégia. Hitler utilizou esse recurso de

maneira tão sistemática, que passou a ser o principal ponto de re-

ferência para estudos nessa área. No período entreguerras, o líder

nazista testou inúmeras técnicas de propaganda nos laboratórios

psicológicos da Alemanha. Em Minha luta, estabeleceu regras para

o sucesso de uma propaganda:9

a. Evitar ideias abstratas;

b. Apelar para as emoções;

c. Repetir algumas ideias e conceitos de forma sistemática

usando frases estereotipadas e evitando objetividade;

d. Mostrar apenas um lado da história;

e. Criticar constantemente os inimigos de Estado, selecio-

nando um para especial difamação.

A Segunda Guerra Mundial (1939–1945)

Durante a Segunda Guerra Mundial, Hitler avançou enormemen-

te nos esforços de propaganda. Para isso, contou com a dedicação

doentia — mas competente — de Joseph Goebbels, seu ministro

da Propaganda. Goebbels é considerado o pioneiro do marketing

político mundial. Ele era um homem que sofria de complexo de in-

ferioridade. Na Primeira Guerra Mundial, foi dispensado do serviço

militar devido a um defeito no pé, consequência da poliomielite.

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Para superar esse complexo, apostou na intelectualidade, usando-a

para o engrandecimento de Hitler.

A imagem que Goebbels projetou do Führer tinha várias faces:

o homem simples e modesto; a personalidade mágica, hipnotizado-

ra; o incansável batalhador pelo bem-estar de seu povo; e o solitário

governante que sofria, mas colocava a supremacia dos alemães em

primeiro lugar. Era o “messias restaurador”. Esse posicionamento

foi explorado à exaustão, um esforço que era igualmente um rele-

xo de como o propagandista enxergava seu “produto”. Pelas pala-

vras de Goebbels, é possível veriicar que Hitler ocupava, em sua

visão distorcida, um pedestal inalcançável:

“Nós acreditamos que o destino o escolheu para mostrar o caminho

ao povo da Alemanha. Portanto, o saudamos em devoção e reverên-

cia. Desejamos que ele seja preservado para nós até que seu trabalho

seja concluído.”

Era com textos desse tipo que o ministro da Propaganda condu-

zia uma verdadeira lavagem cerebral nos alemães. É bom lembrar

que, na época, o governo tinha total controle da mídia impressa,

falada e televisiva, o que facilitava muito o trabalho de Goebbels.

Em 1.º de maio de 1945, logo após saber do suicídio de Hitler, ele

pediu que um médico da SS (Guarda Especial do Führer) injetasse

veneno em seus seis ilhos. Em seguida, ordenou que atirasse nele e

em sua esposa. Pouco antes de morrer, disse: “Seremos reconheci-

dos na história como os maiores estadistas de todos os tempos; ou

os maiores criminosos”.

Já na Inglaterra, a propaganda também se proissionalizava.

O governo britânico criou o Ministério da Informação, sob respon-

sabilidade do juiz escocês, lorde Macmillan. Sua falta de experiên-

cia transformou a operação num verdadeiro caos, e em 1940 foi

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substituído por lorde Reith, que havia sido o primeiro diretor da

BBC de 1927 a 1938. Quando Winston Churchill10 foi nomeado

primeiro-ministro, em 10 de maio de 1940, demitiu Reith, subs-

tituindo-o, em julho de 1941, por Brendan Bracken. Junto ao al-

mirante Thompson, Bracken obteve grande sucesso na nova fun-

ção. Os dois foram considerados por Churchill “heróis da guerra

da mídia”.

Foi durante a Segunda Guerra Mundial que a BBC expandiu

seu serviço de rádio. Mais de 9 milhões de licenças foram emiti-

das, atingindo 73% dos lares britânicos. As transmissões tiveram

impacto decisivo no contra-ataque da propaganda alemã e na ele-

vação da autoestima dos soldados. No inal do conlito, 50% da

população daquele país ouviam os noticiários das 9 ou das 18 ho-

ras. Quando a guerra teve início, a BBC era transmitida em sete

línguas; no inal, esse número aumentou para quarenta e cinco.

De maneira geral, tanto a BBC quanto o restante da mídia britâni-

ca era a favor do governo.

A Guerra do Vietnã (1959–1975)

A Guerra do Vietnã foi uma linha divisória na história da partici-

pação da mídia em conlitos, particularmente no que diz respeito

à assessoria de imprensa, que mudou radicalmente. O motivo foi

que o governo americano responsabilizou a mídia por sua derrota

e posterior retirada do Vietnã. Foram os jornalistas que alertaram

os americanos para a realidade da guerra, número de mortos; e

o sucesso das operações começou a ser questionado por iniciativa

dos correspondentes.

Durante os anos em que estiveram naquele país, os Estados

Unidos desenvolveram uma de suas maiores campanhas de propa-

ganda. Apesar da Guerra do Vietnã ter sido um problema dos EUA,

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os efeitos de sua derrota afetaram igualmente a relação entre o go-

verno britânico e a mídia. A razão disso é que era justamente no

modelo americano que os militares da Grã-Bretanha fundamenta-

vam suas táticas de comunicação de massa.

Nos Estados Unidos, a autoridade encarregada da propaganda

de guerra era o Joint United States Public Affairs Ofice (JUSPAO), Ga-

binete Conjunto para Assuntos Públicos. A organização tinha dois

objetivos: enfraquecer e abolir o apoio ao regime comunista no

Vietnã do Norte; e ganhar “o coração e a mente” dos vietnamitas

do Sul. Entre estudiosos, há um consenso de que a Guerra do Vietnã

modelou, em diversos países, os esforços futuros de relações públicas

e propaganda. É o que os pesquisadores chamam de “Síndrome do

Vietnã”, uma referência ao medo que um governador tem de não

convencer a população devido a uma cobertura contrária da mídia.

Como resultado, o controle da mídia passou a ser a principal preocu-

pação não só dos Estados Unidos, mas igualmente de outros países.

A Guerra das Malvinas (1982)

A Guerra das Malvinas foi certamente um dos conlitos mais contro-

lados de todos os tempos. Na época, o Ministério da Defesa britânico

autorizou a participação de um número bastante limitado de jor-

nalistas, todos britânicos. Na época, a primeira-ministra Margaret

Thatcher (13/10/1925-08/04/2013) reconheceu que não queria

jornalistas estrangeiros presentes. Os proissionais foram submeti-

dos a fortes restrições quanto ao que poderia ser veiculado: nenhu-

ma imagem de tevê foi liberada — os militares alegavam problemas

técnicos — e a censura foi largamente imposta aos jornalistas.

No ápice de sua frustração, a emissora de tevê ITN tentou vei-

cular uma tarja com a palavra “censurado” em suas reportagens,

mas o governo não permitiu. Os militares exigiam que, ao se referir

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às tropas, os veículos de comunicação as tratassem por “nós”. Na

época, a BBC se recusou a obedecer a tal ordem, atitude que cau-

sou um enorme alvoroço no governo. Os jornalistas americanos

criticavam duramente o trabalho dos colegas britânicos pelo fato de

eles se apoiarem exclusivamente nos relatos oiciais do governo.

Em 14 de junho, Margaret Thatcher, conhecida internacio-

nalmente como “A Dama de Ferro”, impôs aos repórteres um ble-

caute de notícias. Por um período de nove horas eles não poderiam

enviar material a Londres porque ela própria queria anunciar a vi-

tória aos britânicos. E assim o fez durante o programa New at Ten.

O blecaute funcionou: a popularidade de Thatcher saltou de 24%

— índice mais baixo de todos os tempos — para 60%.11 A guerra

foi curta, popular e bem-sucedida.

A Guerra do Golfo (1991)

Devido às similaridades com o conlito no Iraque, a Guerra do Golfo

merece uma análise mais aprofundada. O controle sobre os jorna-

listas foi tão intenso, que a operação de mídia icou conhecida como

Operação Mordaça no Deserto.12 Na Grã-Bretanha, Pete Williams

icou responsável por operacionalizar os esforços. Inicialmente, no-

meou treze pessoas para coordenar a imprensa, mas esse número

cresceu rapidamente para sessenta e cinco, além de 150 oiciais.

A estimativa é que cerca de 2 mil correspondentes foram en-

viados ao Golfo, dos quais 1.200 eram norte-americanos. A maio-

ria foi retirada do Iraque antes do início da guerra. O Pentágono

estabeleceu que dois grupos de dezoito repórteres fariam a cober-

tura, mas as organizações de mídia pressionaram o governo, que

acabou acrescentando onze grupos de sete jornalistas para acom-

panhar os acontecimentos. De início, apenas as duas maiores equi-

pes tinham acesso aos campos de batalha.

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É importante ressaltar que, ao contrário de conlitos anterio-

res, a Guerra do Golfo foi planejada durante meses, o que consti-

tuiu grande vantagem para os esforços de relações públicas dos

aliados. Vários releases foram escritos e editados com antecedên-

cia; e a operação de mídia cuidadosamente preparada. O fato de

os Estados Unidos terem apoio das Nações Unidas também con-

tou positivamente, visto que deu legitimidade à invasão. Quando

isso acontece, normalmente a mídia se torna cúmplice da opinião

pública.

De maneira geral, a campanha de mídia visou minimizar as

iniciativas de coberturas independentes, além de favorecer ao má-

ximo a manipulação dos fatos. Uma das mais contundentes evidên-

cias de que essa era a intenção dos norte-americanos foi fornecida

por Richard Cheney, o secretário da Defesa de George H. Bush en-

tre 1989 e 1993, hoje conhecido como Dick Cheney, que também

ocupou o cargo de vice-presidente dos Estados Unidos entre 2001 e

2009: “[...] Eu achava que era importante tentar administrar esse

relacionamento para evitar que a imprensa nos ferrasse, se é que

posso usar esse termo”.13

O jornalista independente do San Francisco Chronicle, Carl

Nolte, conirmou o sucesso da iniciativa: “Você não precisava espe-

rar pelos militares para que eles dessem o tom. A própria mídia se

encarregou disso”.

O controle era possível, porque grande parte das ofensivas foi

executada diretamente dos aviões, o que tornou o acompanha-

mento dos fatos mais difícil para a imprensa. Só quando as batalhas

atingem os campos é que os jornalistas adquirem maior capacidade

de cobertura, mas as lutas em terra duraram apenas uma semana.

Pela falta do que dizer, os jornalistas enfatizavam a aparência dos

soldados, com os uniformes para proteção contra químicos, cantis

e os equipamentos do exército.

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Durante a guerra, nenhum repórter tinha permissão de se

deslocar sem acompanhantes do governo, geralmente oiciais, que

os levavam para ver apenas o que era interessante divulgar confor-

me o ponto de vista dos aliados. A cobertura era feita em rodízio, o

que signiicava que apenas um número reduzido de repórteres tes-

temunhava os esforços de guerra. Suas reportagens eram enviadas

a outros veículos de comunicação, portanto, a versão do que se vi-

venciava nos campos de batalha era bastante uniicada e restrita.

Todas as matérias eram revisadas pelos militares, um proces-

so que às vezes levava horas, ou — quando não estava de acordo

com as expectativas dos aliados — dias. Eles não chegavam a cen-

surar o material, ou mesmo modiicá-lo, mas a revisão — que não

vinha sendo adotada desde a Guerra da Coreia — atrasava o envio

das reportagens às redações, fazendo que, em alguns casos, se tor-

nasse desatualizada. O processo, segundo o correspondente do ca-

nal americano NBC, Gary Matsumoto, “era bom para a biblioteca

do Congresso americano, mas não para o programa noturno da

tevê”.14 Um total de 1.351 reportagens foi produzido; apenas cinco

chegaram ao Pentágono para revisão. Das cinco, quatro não sofre-

ram modiicação.

A totalidade das informações repassadas aos correspondentes

vinha dos militares. Como resultado, as reportagens, em sua maio-

ria, favoreciam a versão dos aliados. O impacto desse controle foi

veriicado por um estudo do Freedom Forum (Fórum da Liberdade),

fundação independente que defende a liberdade de imprensa.15 O

levantamento mostrou que, três semanas antes do início da guer-

ra, as “notícias de controvérsias” (negativas) ganhavam em núme-

ro para as chamadas “ita amarela”16 (de apoio às tropas), numa

proporção de quarenta e cinco a oito. Seis semanas mais tarde, os

números se inverteram e as favoráveis aos militares tomaram a li-

derança, numa proporção de trinta e seis a dezenove.17

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O tratamento abusivo para com os jornalistas extrapolou o as-

pecto proissional, como airma o coronel aposentado do exército

americano, David Hackworth:

A verdade e a liberdade de expressão da imprensa foram duramente “espan-

cadas” durante a Guerra do Golfo. Jornalistas tiveram o acesso restringido,

levaram tiros de nossas próprias tropas, foram vendados, levaram pancadas

com riles, foram presos, enganados sobre a estratégia de propaganda do

alto comando militar, interrogados e tratados com arrogância total.18

Tamanha foi a indignação e as críticas públicas ao governo,

que o Departamento de Defesa americano delineou seus Princípios

para a Cobertura de Operações pela Mídia, uma declaração com

nove itens que descrevia como essa cobertura seria dali em diante.

O documento foi assinado pelo Comitê de Chefes de Birôs de mídia

de Washington e pelo Pentágono em 11 de março de 1992.

O documento permitia acesso de equipes (pools) de jornalistas

pré-selecionados, que seriam enviados aos locais de operação num

período de vinte e quatro a trinta e seis horas, inclusive aos campos

de batalha; os assessores de imprensa militares agiriam como faci-

litadores, sem interferir no trabalho dos repórteres; e os sistemas de

comunicação não seriam banidos, com exceção dos momentos em

que a segurança estivesse em risco. Mas os dois lados não concor-

daram no que dizia respeito à “revisão por questões de segurança”,

o que fez com que as organizações de mídia propusessem um déci-

mo princípio: o material noticioso — textos e fotos — não será alvo

de revisão. O Departamento de Defesa americano (DOD) não acei-

tou, alegando que isso precisaria ser feito para garantir segurança

e o cumprimento das regras estabelecidas. Não houve acordo nesse

ponto, e a mídia respondeu que desaiaria o Pentágono caso a apro-

vação fosse solicitada.

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O cuidado excessivo dos americanos era justiicado. Não

havia, no Congresso, consenso em relação à guerra; a opinião

pública estava dividida; e, devido aos avanços tecnológicos, o nú-

mero de telespectadores acompanhando o conflito era alto. O

anúncio da guerra, em 16 de janeiro de 1991, foi assistido

pela maior audiência da história daquele país, um total de 120

milhões de pessoas.19

Apenas três fatos fugiram ao controle dos aliados: o bombar-

deio de uma fábrica de leite infantil; a destruição de uma casama-

ta em Bagdá, causando a morte de civis; e o que passou a ser co-

nhecido como “a estrada para a morte”, quando mil veículos do

exército iraquiano foram destruídos. Na Grã-Bretanha, pesquisas

de opinião mostraram que 80% do público eram a favor das restri-

ções impostas à mídia.20 Um dado revelador é que apenas 2% das

imagens usadas pela mídia mostravam soldados feridos ou mortos,

resultado direto das imposições de censura aos jornalistas.

Um estudo do Fórum pela Liberdade examinou 66 mil repor-

tagens publicadas entre 1.º de agosto de 1990 e 28 de fevereiro de

1991. O resultado mostrou que a palavra mais usada durante a

guerra foi “Vietnã”, presente 7.299 vezes,21 numa demonstração

de que havia, por parte dos aliados, uma enorme preocupação com

o impacto da cobertura. O então presidente George H. Bush usou o

termo repetidamente como analogia invertida, ou seja, para mos-

trar que o país não seria vítima da mídia novamente. A “Síndrome

do Vietnã” provou-se verdadeira e presente.

A exclusividade de Peter Arnett, da CNN

As cenas televisionadas da Guerra do Golfo — na maioria, ima-

gens de bombardeios noturnos — izeram surgir uma estrela no

jornalismo internacional: o repórter Peter Arnett, veterano

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correspondente de guerra da CNN. Ele começou a carreira na

National Geographic e icou conhecido por suas reportagens sobre

a guerra do Vietnã quando, em 1966, ganhou o Pulitzer Prize,

prêmio mais importante do jornalismo mundial. Para a CNN, ele

trabalhou durante dezoito anos e foi nesse canal de tevê que seu

rosto se tornou familiar para o mundo.

Durante a Guerra do Golfo, Arnett foi o único jornalista a per-

manecer em Bagdá. No início, eram cerca de quarenta repórteres

no Hotel Rashid, mas logo icou claro que apenas a CNN teria con-

dições técnicas para transmitir as imagens do conlito. Já naque-

le momento, o repórter incomodou o governo americano. O Pen-

tágono tentava expor ao mundo a precisão de seus bombardeios,

enquanto o repórter insistia em mostrar imagens de civis mortos

pelas ruas da capital iraquiana.

No final de janeiro de 1991, trinta e quatro membros do

Congresso americano enviaram carta à CNN acusando Arnett

de exercer “jornalismo não patriótico”. Devido à sua postura

crítica, o correspondente conseguiu uma entrevista exclusiva

com Saddam Hussein uma semana após o início da Guerra do

Golfo. Seis anos mais tarde, em março de 1997, foi ele também o

primeiro jornalista ocidental a entrevistar Osama Bin Laden.

Durante a Guerra do Iraque, Arnett — que havia deixado a

CNN em 1999 — foi a Bagdá pelo canal de tevê americano NBC e

pela National Geographic, mas essa situação logo mudou. Após con-

ceder entrevista a um canal de tevê iraquiano, durante a qual disse

que o plano de guerra dos aliados não havia funcionado e precisava

ser refeito, ele foi demitido. No mesmo dia, 31 de março, o tabloide

inglês The Daily Mirror, crítico voraz à guerra, o contratou. A man-

chete de capa do Mirror do dia seguinte estampava, ironicamente:

“Demitido pela América por dizer a verdade. Contratado pelo The

Daily Mirror para continuar dizendo”.

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Afeganistão (2001–presente)

Neste conlito, que teve origem logo após os ataques de 11 de se-

tembro, os jornalistas tiveram pouco acesso à informação, tanto

às oiciais quanto às dos campos de batalha. O governo não permi-

tiu que repórteres acompanhassem as tropas, as estações navais

norte-americanas ou os navios. Só no inal de novembro de 2001,

um mês após o início do conlito, é que alguns pools foram forma-

dos, mesmo assim, em quantidade insuiciente e condições que os

impediam de trabalhar adequadamente, descumprindo o acordo

feito entre associações de mídia e os Estados Unidos.

Apenas doze proissionais participaram da equipe, que traba-

lhava com restrições; como não poder acompanhar as tropas nem

entrevistar militares de alto escalão. Havia censura do material

produzido, e em vários momentos tinham que cobrir eventos irre-

levantes, como cerimônias de promoção e missas. Por esse moti-

vo, a guerra foi coberta quase que exclusivamente por unilaterais,

repórteres independentes, o que os colocava em perigo constante

devido às características do terreno e geograia do país.

Várias críticas foram feitas à então secretária adjunta de As-

suntos Públicos do Departamento de Defesa americano, Victoria

Clarke, que após o incidente com Peter Baker havia dito a seus

editores que os militares americanos não eram responsáveis por

correspondentes de guerra. Em entrevista coletiva, após pergunta

dura, ela tentou se justiicar:

Dentro do possível, temos feito o que nos solicitam, que é enlistar repórte-

res. Existe uma forte impressão de que as pessoas querem ver um pouco das

operações militares, mas é muito difícil colocar jornalistas em um avião

que despeja soldados no Afeganistão, no meio da noite. Então, trouxemos

ilmagens de lá. Ainda não encontramos uma circunstância apropriada

para permitir o trabalho de um pool da mídia.

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À época, Owen Ullman, do USA Today disse:

O presidente tem comentado que está perdendo a guerra da opinião pú-

blica; o secretário (Donald Rumsfeld) também; sei que ele até perguntou a

vários consultores de relações públicas sobre como melhorar essa imagem.

Sugiro a você que existe uma relação direta entre perder essa guerra da

comunicação e o fato de que o governo não tem dado maior acesso à mídia

americana, o que talvez resultasse em uma cobertura mais equilibrada,

como vocês desejam. Portanto, se existe a preocupação de como o conlito

tem sido retratado nos Estados Unidos e no exterior, opino que o problema

é o “engarrafamento” da mídia.

Victoria Clarke manteve encontros sistemáticos com as cheias

de reportagem de diversos veículos, mas essas discussões tiveram

pouco efeito. Tanto que no dia 5 de dezembro de 2001, repórteres

do pool e fotógrafos foram coninados em um armazém para que

não testemunhassem o retorno de soldados feridos na guerra. Essa

foi a última gota em uma relação já desgastada. Houve reclama-

ções de todos os lados do país, tanto que o Departamento de Defesa

teve que se desculpar publicamente e reavaliar a maneira como es-

tava tratando os veículos de comunicação.

Como resultado, o Departamento esboçou um documento que

traçava, em linhas gerais e ainda de forma precária, o sistema de

enlistados, grande marca da guerra contra o Iraque, em 2003.22

Após o incidente do armazém, o governo liberou quarenta e seis

repórteres para que acompanhassem os marines nos campos de ba-

talha, e os independentes obtiveram maior acesso a militares no

Afeganistão.

A invasão continua, mas a previsão dos Estados Unidos é de

que todas as suas tropas estejam fora do país até o inal de 2014.

Page 20: Iraque - A guerra pelas mentes

PAULA FONTENELLE

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A cobertura jornalística em guerras anteriores

Guerra Características

Guerra da Crimeia (1854–1856)

• Cobertura limitada (apenas o The Times)• Os duros ataques ao exército provocaram censura

Guerra Civil Americana(1861–1865)

• Proliferação de correspondentes• Telégrafo impulsionou a divulgação da notícia• Jornalistas ficaram obcecados pela obtenção de

furos de reportagem

Segunda Guerra Anglo-Bôer(1899–1902)

• Censura rígida dos militares• Repórteres estrangeiros vistos como espiões• Avanço na tecnologia aumentou curiosidade por

imagens• Cobertura teve pouco impacto na condução da

guerra

Primeira Guerra Mundial(1914–1918)

• Um censor chefe foi nomeado para vetar telegramas e cartas

• Os correspondentes foram expulsos da França: ao retornar, foram submetidos a um rígido controle

• Câmeras assumiram papel importante nos esforços de propaganda

Segunda Guerra Mundial(1939–1945)

• Várias camadas de censura com diferente intensidade

• A BBC expandiu suas transmissões radiofônicas no exterior. Passou de sete a quarenta e quatro línguas

• Imagens suscetíveis a forte censura• Pela primeira vez, o público pôde assistir e ouvir a

guerra

Guerra do Vietnã(1959–1975)

• Maior ênfase à propaganda• Jornalistas mostram os horrores da guerra• A mídia questiona os esforços de paz dos Estados

Unidos• A campanha de relações públicas dos EUA é

duramente criticada pela falta de informação

Guerra das Malvinas(1982)

• Controle extremo. Apenas um número reduzido de jornalistas britânicos obteve permissão para cobrir o conflito

• Imagens não foram veiculadas• Jornalistas baseavam-se estritamente em fontes

militares oficiais

Guerra do Golfo(1991)

• Os militares acompanharam de perto as reportagens• Jornalistas tinham pouca liberdade: suas ações eram

vigiadas por acompanhantes militares• Toda reportagem foi monitorada• Os militares não forneciam imagens• Número limitado de jornalistas, que trabalhavam em

esquema de rodízio, compartilhando reportagens e fotos

Page 21: Iraque - A guerra pelas mentes

I R A Q U E A G U E R R A P E L A S M E N T E S

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Guerra Características

Guerra do Afeganistão(2001–presente)

• Pouca abertura dos Estados Unidos para a presença da mídia no local

• Criação de um pool com apenas doze jornalistas, mesmo assim, com acesso limitado e censura

• Após repórteres serem impedidos de ver soldados americanos feridos, em dezembro de 2001, o Departamento de Defesa delineou os princípios do sistema de enlistados, que seria usado na guerra contra o Iraque, dois anos mais tarde