Iracema, do épico ao pop: influências do Romantismo na...

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    Iracema, do pico ao pop: influncias do Romantismo na msica popular brasileira

    Maria Rita de Sousa Silva UNIPAM

    Orientao: Prof. Dr. Lus Andr Nepomuceno

    Resumo: O romance Iracema, de Jos de Alencar, tem-se destacado como um dos mais re-presentativos livros da Literatura Brasileira, especialmente do Romantismo, e seu impacto e suas influncias ainda hoje so perceptveis. Nele, o autor nos mostra a realidade histrica do poder da civilizao branca no ataque frontal s culturas indgenas. Iracema, a virgem dos lbios de mel, seduzida pelo homem branco e acaba se deixando levar por esse relacionamento inter-cultural que a leva a dimenses trgicas. Partindo do impacto desse livro, o presente trabalho analisa letras de msicas da MPB, de trs compositores que fizeram releituras do romance de Alencar, e que portanto o atualizaram no mbito da sociedade moderna: Chico Buarque, com a cano Iracema voou; Adoniran Barbosa, com a cano Iracema; e Eduardo Dussek, com a cano A ndia e o traficante. Partindo de anlises comparativas, nossa inteno buscar os elementos romnticos e alencarianos que sobreviveram no tempo e que ainda hoje so pontos de crtica social para o Brasil moderno.

    Palavras-chave: Msica Popular Brasileira. Romantismo. Pardia. Parfrase.

    1. Consideraes iniciais

    O romantismo no Brasil teve incio no sc. XIX, e logo consagrou o indianismo como

    modelo de construo de uma literatura totalmente nacionalista. Para o contexto histrico

    da poca, surgia a necessidade de dar ao pas uma identidade cultural, e o indianismo re-

    presentava a bravura e a determinao de uma nao recm-politizada, a qual contribuiria

    mais tarde para a surgimento de uma literatura romntica brasileira.

    Constatamos que a literatura e a cultura popular realizam, igualmente, uma apro-

    priao da realidade sociocultural do pas, presentificando diferentes leituras que se com-

    plementam e se iluminam na construo da identidade da memria nacional (RODRIGUES,

    2003).

    Poderemos observar ao longo deste estudo o dilogo possvel entre as canes da

    MPB na sua relao com o texto matriz, criando-se uma exaltao da cultura indgena como

    forma de refuncionar o canto pico do nacionalismo brasileiro. Esse refuncionamento

    trabalhado nas letras musicais atravs da pardia enquanto oposio ao texto original, e a

    parfrase enquanto semelhana.

    Crtilo: Revista de Estudos Lingsticos e Literrios. Patos de Minas: UNIPAM, (1): 95-107, ano 1, 2008

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    Diante deste aspecto temos a relao dialgica entre a escola romntica e a msica

    popular brasileira. Esta ir romper com os padres clssicos para criar uma forma de par-

    dia e parfrase do romantismo. Este novo estilo subverte e busca mostrar de maneira irre-

    verente os mesmos sentimentos focados pelo romantismo.

    A maioria das letras de msica popular brasileira apresenta confisso amorosa, numa linguagem carregada de passionalismo, apelo emoo. Essas letras aproximam-se, portanto, do estilo do Romantismo, j que essa escola literria busca um cdigo em que o sentimento passa a ser expresso sem as amarras da razo, num tom confessional, afas-tando-se da rigidez formal e do racionalismo clssicos. O Romantismo liga-se histrica e ideologicamente tomadas do poder poltico e cultural pela burguesia liberal e derro-cada do absolutismo poltico e esttico. (RODRIGUES, 2003, p.77).

    2. A Msica Popular Brasileira e sua consagrao

    Os compositores da msica popular brasileira da dcada de 60 tiveram grande in-

    fluncia e responsabilidade na reformulao da MPB. Vrias so as leituras das letras de

    msicas da MPB enquanto engajadas, juntamente com seus compositores, uma vez que o

    artista se preocupava em ser o canal de divulgao da realidade social, poltica e cultural da

    nao. Este engajamento se consolidou em decorrncia do agravamento do autoritarismo

    poltico, pelo qual o pas passava nesta poca, proibindo qualquer tipo de expresso ou cul-

    to liberdade de expresso.

    Observava-se a necessidade de mudana na MPB, ou melhor, a sua consagrao

    como tal. O povo estava rfo de uma cultura mais expressiva de suas origens, at ento

    substituda pelas influncias de msicas europias e por uma aglutinao de estilos inspira-

    dos pela bossa nova. De acordo com Gramsci: Todo movimento intelectual se torna ou

    volta a se tornar nacional se se verificou uma ida ao povo, se ocorreu uma fase de reforma

    e no apenas de renascimento (cultural) (apud NAPOLITANO, 1968, p. 73).

    Desta confluncia de idias, surgiria, pelos artistas considerados engajados, um

    projeto para consagrar a msica popular brasileira. A estratgia por eles utilizada era aler-

    tar o povo para a necessidade de emancipao da nao, atravs de uma conscientizao

    nacionalmente politizada. Por outro lado teremos a indstria cultural, preocupada em di-

    namizar uma nova cultura de consumo.

    Segundo Napolitano Marcos: Em 1959, cerca de 35% dos discos vendidos no pas eram de msica brasileira. Dez anos depois, as cifras se inverteram: 65% dos discos eram de msica abrasileira, boa parte dela herdeira do pblico jovem e universitrio criado pela bossa nova e pelos movimentos que se seguiram(apud NAPOLITANO, JB, 24/9/1969:B-1).

    Desta forma a msica se tornou um grande veculo mobilizador de massa, contando

    com a ajuda televisiva recm-surgida, e com os grandes festivais tambm promovidos na

    dcada de 60, lanando desde ento grandes nomes da MPB, como Ary Barroso e Dorival

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    Caymmi, e posteriormente, Adoniran Barbosa, Chico Buarque de Hollanda, e o mais irreve-

    rente deles em seu estilo, Eduardo Dussek.

    Os compositores da MPB e o Romantismo iro conceber uma relao de dialogismo

    perante seus temas, auxiliados pela liberdade de expresso e pelo engajamento no qual es-

    tavam empenhados. Eles iro romper com formas e mtricas, em busca de uma msica que

    fosse do povo e para o povo, e que tivesse as razes nacionalistas assim como o retrato de

    uma nao com suas idias e ideais sociais e ideolgicos.

    A anlise proposta agora de conhecer um pouco sobre a vida profissional e pessoal

    de cada compositor em estudo, e em seguida fazer uma anlise das referidas composies

    com o ttulo de Iracema, e suas influncias sofridas pelo romantismo do sc. XIX.

    2.1 Chico Buarque de Hollanda

    A partir de leituras bibliogrficas, passei a conhecer um pouco mais sobre a vida

    pessoal e profissional de Chico Buarque de Hollanda, o que fez surgir minha admirao por

    ele, a cada nova expectativa que surgia no decorrer desta pesquisa. Ambas so as almas

    gmeas a que me propus estudar: compreender a profundidade de uma escola romntica e

    conhecer mais sobre a MPB. Se por um lado a escola romntica influenciou a msica popu-

    lar brasileira, os compositores da MPB souberam, cada qual dentro de suas perspectivas e

    objetivos, trabalhar a diversidade de discurso que julgavam procedentes em cada estilo mu-

    sical.

    E Chico transformou-se numa figura nica, mpar e nacionalmente identificada pe-

    los brasileiros, por meio de sua facilidade de expressar nas letras musicais os sentimentos

    nacionais de uma gerao. Ele consegue na intimidade de suas canes musicais, muitas

    das vezes vivenciadas, resgatar todo o esprito de uma nao, o qual foi tema constante em

    suas letras, resultado das confluncias scio-ideolgicas do pas.

    Ele se tornou cone dos anos 70, na luta contra a ditadura, e agora, temos a figura de

    Chico representando toda a brasilidade existente no pas, a comear pelo futebol que sem-

    pre foi sua paixo.

    Apesar da afirmao de Chico, em negar que suas letras no so politizadas e que

    no refletem de imediato uma situao, essas letras musicais refletem todas as caractersti-

    cas poltico-sociais do pas. Acredito que a viso de Chico unnime para tal afirmao,

    pois est em suas origens, inata em seu ser a condio de cidado consciente, e como es-

    critor compositor no poderia deixar de ser autntico em suas consideraes. E conseqen-

    temente suas letras musicais se misturam com sua maneira de ver a vida atravs do outro,

    tambm aliadas ao seu lado engajado em observar os fatos em questo.

    Chico Buarque consegue aquilo que s os grandes poetas conseguem: seu poder de

    lidar com a palavra faz dela um instrumento de desvendar a realidade, de romper o siln-

    cio (BALLE, 1944, p. 102).

    Crtilo: Revista de Estudos Lingsticos e Literrios. Patos de Minas: UNIPAM, (1): 95-107, ano 1, 2008

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    Em suas composies, Chico sempre se utilizava de vrios discursos, e um dos mais

    utilizados por ele era a necessidade do cantar feminino, e ele o fazia muito bem, revelando

    sentimentos muitas vezes contraditrios aos que eram transmitidos em suas letras. Tudo

    isso como forma de revelar uma realidade desconhecida ou mascarada pela sociedade. Este

    estilo de escrever teve incio com a sua carreira, numa poca em que havia a necessidade de

    se driblar a censura, tornando suas letras polmicas e famosas. Segundo Carvalho (1984, p.

    19): Um artista tanto mais rico quanto forem as leituras cabveis em sua obra.

    Chico se identifica com o estilo feminino em suas msicas, por afinidade talvez, pois

    vivia cercado por mulheres de sua famlia (esposa, filhas, empregada, e at uma cadela). Por

    causa desta rotina feminina em sua vida, provavelmente tenha surgido uma intimidade

    maior nas diversas personagens femininas que criou at hoje.

    Em sua obra em questo Iracema Voou, persiste a caracterstica marcante de suas

    letras musicais, o duplo sentido, fornecendo uma leitura social e engajada. Chico gostava de

    cantar a voz da maioria, as vozes que ele muitas vezes interpretava no discurso feminino.

    Suas letras constituam muitas vezes uma miniestria e uma narrativa que revelava uma

    realidade ainda em vigor.

    Iracema voou uma crtica, ou melhor, uma pardia ao retrato social da nao

    brasileira, que diante de tantas instabilidades financeiras, aliada falta de perspectiva de

    uma vida melhor, considera muitas vezes como nica soluo a imigrao.

    Em uma anlise mais detalhada da letra, o prprio ttulo vem com o verbo no pas-

    sado (Iracema voou), que nos remete de imediato idia de algo concludo e realizado. E

    a sonoridade da palavra em si nos transporta a um lugar distante e indefinido.

    Iracema Voou Para a Amrica Leva a roupa de l E anda lpida V um filme de quando em vez No domina o idioma ingls Lava cho numa casa de ch

    Nesta estrofe, Chico ir iniciar a narrativa de sua histria, falando do sentimento

    feminino e seu comportamento, atravs de uma ironia sutil e velada. Este processo se con-

    cretiza com a utilizao dos verbos no presente do indicativo e em uma ordem linear dos

    fatos desde o momento em que ela deixa o seu pas, (pra, leva, anda, v, domina, lava). A

    idia central mostrar a condio de submisso da mulher, concluda na ltima estrofe

    (Lava cho numa casa de ch), e o despreparo intelectual, restringindo assim as poucas

    oportunidades que lhe podero surgir, quando diz: no domina o idioma ingls.

    Tem sado ao luar Com um mmico

    Ambiciona estudar Canto lrico

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    Prosseguindo seu discurso, Chico nesta estrofe ir continuar a idia de sua histria

    fazendo uma stira condio de vida dos imigrantes (Tem sado ao luar, com um mmi-

    co), em contraponto ao sonho, idealizao, fuga de uma dura realidade (ambiciona

    estudar, canto lrico).

    Chico como narrador procura atravs de sua letra musical, despertar nas pessoas

    questes sociais a que esto submetidas, (no d mole pra polcia, se puder vai ficando por

    l).

    Tem saudade do Cear Mas no muita...

    A funo emotiva est presente no verso que diz tem saudade do Cear, ratifican-

    do todo o contraponto de desencantos e o retorno a suas origens.

    Para Chico o importante colocar uma determinada situao ao pblico, e confiar

    na capacidade de interpretao de cada pessoa, ou seja, na pluralidade de significados das

    palavras. Como o caso do desfecho desta letra que Chico deixou,

    Uns dias, afoita Me liga a cobrar Iracema da Amrica.

    Neste discurso feminino, Chico retrata a coragem da mulher, sua determinao e a

    conquista da realizao de um sonho ainda que utpico. O nico momento em que Chico d

    voz a sua personagem feminina na ltima estrofe, ( Iracema da Amrica). Aqui fica

    ntida a condio do papel da mulher na sociedade, a sua fala restrita. As mulheres mal con-

    seguem se impor e ser respeitadas, seja qual for a Amrica a qual pertencem.

    Com esta letra musical, Chico Buarque consegue transformar em pardia uma re-

    presentao de um clssico da literatura brasileira.

    2.2 Adoniran Barbosa

    Quando iniciei esta pesquisa, considerava o compositor Adoniran Barbosa um nome

    conhecido apenas. Qual no foi a minha surpresa em conhecer Adoniran Barbosa respeita-

    do e admirado por todos nacionalmente.

    Joo Rubinato (Adoniran) filho de imigrantes italianos, de uma famlia numerosa

    de sete irmos. Morava na cidade de Valinhos, SP, e passou a usar o pseudnimo por volta

    de 1935. Teve uma infncia pobre e sofrida, com aproximadamente treze anos ajudava o pai

    a carregar vago na Estrada de Ferro S. P., hoje Santos a Jundia. Cursou at o 3. ano e

    deixou a escola para se dedicar ao trabalho. Foram vrias as suas experincias e no muito

    boas. Aps a Revoluo de 1924, morava em Santo Andr e l tentou vrios empregos como

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    tecelo, pintor, encanador, serralheiro etc. E assim seguia a vida difcil de Adoniran, uma

    hora estava empregado, e em seguida desempregado.

    Sempre teve seu prprio linguajar, conquistado nas ruas de So Paulo com outros

    moleques. Inclusive seu sucesso veio primeiramente como comediante na Rdio Record,

    por causa de sua fala tpica. Posteriormente surgiu o compositor que foi um representante

    cultural dos excludos sociais de So Paulo na dcada de 50, procurando romper com todas

    as formas clssicas, buscando na tradio popular e no cotidiano de sua gente sua fonte de

    inspirao.

    Adoniran Barbosa era bomio e um inconformado com o progresso que surgia na

    dcada de 50 na cidade paulistana: Por essa dura, cinzenta e poluda cidade onde os home

    to sempre chegando com as ferramenta pra demolir a tradio e construir o progrssio

    (CULTURAL 1978, p. 7).

    Vieram as fbricas e com elas a cidade se acotovelava, as ruas mais pareciam um

    formigueiro com o vai-e-vem das pessoas e dos novos modelos de automveis. Como dar

    evaso a tantas necessidades, novos prdios tinham que surgir no lugar dos antigos casa-

    res. Foi da a idia de criar sambas relatando o cotidiano dessa gente to sofrida, que fazia

    dos casares abandonados o prprio lar. O destino mais uma vez se fazia presente na dor

    desta gente.

    A letra musical Iracema surgiu nesse momento de ruptura e dor para Adoniran, ao

    ver seus amigos excludos serem mais uma vez marginalizados pelo sistema sociopoltico do

    pas. Ele j antevia e se preocupava com aqueles que no tinham um teto para morar, assim

    como o crescimento contnuo e sem estrutura de uma grande metrpole como So Paulo.

    Suas letras musicais retratam os problemas sociais brasileiros da dcada de 50, e a

    expresso saudosa e o lamento choroso constante pela mulher amada so freqentes nas

    composies de Adoniran Barbosa, o que torna seu texto uma parfrase do estilo romnti-

    co, portanto, uma relao dialgica com Iracema de Jos de Alencar.

    Iracema

    Adoniran Barbosa

    Iracema Eu nunca mais eu te vi Iracema Meu grande amor foi embora Chorei, eu chorei De dor porque Iracema Meu grande amor foi voc Nesta primeira estrofe, Adoniran ir utilizar uma linguagem simples com elementos

    estilsticos do romantismo como: dor, sofrimento, perda de um grande amor, saudosismo,

    numa confisso passional do eu-lrico. Este efeito proporcionado na utilizao da imposi-

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    o do eu no decorrer dos versos, e Adoniran faz desse lamento do choro uma constante

    em suas letras musicais, quase sempre acompanhadas de uma grande perda amorosa.

    Eu sempre dizia Cuidado ao travessar essas ruas Adoniran volta-se para sua gente, em um momento de reflexo consigo mesmo. Ele

    faz um monlogo com Iracema, mas na verdade ele se refere a todos os marginalizados da

    poca, seus conhecidos que sofreram com o progresso de So Paulo. Quando ele diz cuida-

    do, simboliza as diversas situaes que presenciou de seus amigos de rua ao serem despe-

    jados dos casares abandonados.

    Voc travessou contramo: Adoniran era um compositor do povo e para o povo, e

    neste verso ele quer enfatizar o erro, o diferente, aquele que segue em via contrria dos de-

    mais, como seus amigos marginalizados. Mais uma vez ele quer revelar o lado oposto da

    questo, ou seja, somos submetidos a determinadas regras durante toda nossa existncia,

    principalmente numa cidade como So Paulo. A partir do momento que voc faz parte dela,

    voc obrigado a seguir regras de bom comportamento, as quais ditam se voc um bom

    cidado ou no. Quando essas regras so transgredidas (voc travessou contramo), voc

    passa a ser um excludo, um marginalizado, que merece uma punio por tal fato. Neste

    caso, veio a morte como forma de purificao dos erros.

    E hoje ela vive l no cu E ela vive Bem juntinho de Nosso Senhor De lembranas Guardo somente suas meias E seus sapatos Iracema eu perdi seu retrato. E a est o desenrolar de nossa miniestria, seguida de sentimentos de conformismo

    atravs da imagem do sublime ( Bem juntinho de Nosso Senhor), se tornando a nica

    salvao ou soluo para aqueles que andam na contramo.

    (Iracema, fartavam 20 dias Pra o nosso casamento Que nis ia se casa Voc atravess a So Joo Vem um carro te pega E te pincha no cho Voc foi pra assistncia Iracema O chofer no teve curpa Iracema Pacincia, Iracema, pacincia!)

    Crtilo: Revista de Estudos Lingsticos e Literrios. Patos de Minas: UNIPAM, (1): 95-107, ano 1, 2008

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    Nesta ltima estrofe da letra musical, Adoniran faz questo em revelar sua verda-

    deira identidade na linguagem, procurando atravs de sua fala tpica, registrar uma lingua-

    gem dos excludos sociais daquela poca. Seu linguajar fazia parte de suas razes, e Adoni-

    ran sempre primou pela originalidade ao compor suas letras musicais, da o ttulo que rece-

    beu de representante dos excludos.

    surpreendente o desfecho desta letra musical: o compositor a colocou entre aspas,

    num momento em que ele se volta s suas lembranas, antes do acontecimento, e narra

    como tudo ocorreu. Por este recorte de desabafo, podemos concluir a colocao do cresci-

    mento da cidade de So Paulo e o grande fluxo de carros da poca (Vem um carro te pega/

    E te pincha no cho), e que no nem um pouco diferente dos acontecimentos de nossa

    So Paulo atualmente. A falta de respeito com os pedestres, e o descaso com aqueles que

    so acidentados e levados para a assistncia.

    Ao final desta letra, o compositor nos deixa inconformados com o conformismo

    destas pessoas ditas excludas e marginalizadas (pacincia, Iracema, pacincia), a pas-

    sividade de um povo que no tem como lutar contra todo um sistema capitalista. Resta

    simplesmente o conformismo, ou seja, estas pessoas so marginalizadas e por isso merecem

    o que possuem, ou por que no possuem, isto pouco importa para o sistema capitalista que

    se preocupa somente com ter e no o ser.

    Acredito que Adoniran, ao escrever esta letra musical, analisou todos os aspectos

    abordados, por isso trabalhou to bem o lxico de sua letra, para que deixasse que a nossa

    imaginao conclusse o seu trabalho, que foi uma obra digna de ser analisada e reconheci-

    da por todos.

    2.3 Eduardo Dussek

    Eduardo Dussek se consagrou como compositor pela sua irreverncia. A comear

    pelo seu nome ao qual recentemente foi acrescentado um s. Nasceu no Rio de Janeiro em

    01/01/1958, compositor, ator e diretor, atuou de forma significativa na msica popular bra-

    sileira. Entretanto, mesmo com toda essa popularidade, no foi possvel localizar dados

    bibliogrficos sobre sua vida pessoal e profissional. Por esse motivo sua pesquisa foi pauta-

    da em dados da internet.

    Iniciou sua carreira artstica como pianista de peas de teatro aos quinze anos de

    idade, quando estudava na Escola Nacional de Msica.

    Suas composies, assim como sua personalidade, so irreverentes e demonstram o

    lado social do pas com uma linguagem simples e popular. O texto marcante nas letras de

    Eduardo Dussek a stira e o bom humor.

    Em 1980 participou do festival da MPB Shell da Rede Globo, patrocinado por Gil-

    berto Gil, seu amigo e companheiro nas composies. Neste festival, Dussek se destacou

    com a msica, Nostradamus, que apesar de no ter ganhado, tornou-se conhecida nacio-

    nalmente.

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    Em 1981 gravou o LP Olhar Brasileiro, do qual faz parte a msica A ndia e o tra-

    ficante. E em seguida (1982), gravou o LP Cantando no banheiro, Barrados no baile, e

    em 1986 gravou Domstica, uma stira social.

    Eduardo Dussek coloca em refuncionamento o indianismo de Jos de Alencar. Sua

    composio A ndia e o Traficante uma pardia de Iracema, a virgem dos lbios de

    mel.

    O olhar de Eduardo Dussek para a ndia brasileira ser o mesmo para o mundo atu-

    al, em que prevalecem a corrupo e a marginalidade, no somente rompendo com a escola

    romntica, mas dando-lhe outro sentido.

    A ndia e o traficante

    Eduardo Dussek e Lus Carlos Ges

    Noite malandra, um luar de espelho No meio da terra a ndia colhe o brilho, Som de suor, cheirada musical, Palmeira que se verga em meio ao vendaval

    No primeiro momento da letra musical, podemos observar que Dussek reutiliza e-

    lementos presentes em Iracema, a partir do lxico romntico (luar, palmeira, a natureza, o

    ndio), porm de forma irreverente. Eduardo utilizar metforas para mostrar que a ndia

    est fazendo uso de droga alucingena em meio da floresta ( Noite malandra, cheirada

    musical).

    Sentia macia floresta Bolvia, montanha, seresta

    Aqui o compositor retrata a ndia j em meio a seus delrios.

    ndia guajira J colheu sua noite Volta para tribo Meio injuriada Uma fogueira numa encruzilhada Felina um olho de paixo danada

    Quando ela (ndia) retorna sua tribo, encontra-se com um olhar felino, perigoso.

    O perigo que ronda as aldeias indgenas.

    Era leo, famoso traficante Um out- door, bandido elegante Que a levou para um apart- hotel Que tem em Cuiab.

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    O nome leo dado ao traficante simboliza e nos traz a imagem de uma pessoa a-

    gressiva e perigosa. Quando o compositor cita um out-door, porque ele, o bandido, tem

    boa aparncia, um bandido elegante. interessante a forma como o compositor se utili-

    za de certos vocbulos para justificar o momento da atualidade em que so narrados os

    fatos (out-door, apart-hotel), e tambm alertar para o avano do progresso, da civilizao

    que j esto to prximos das aldeias indgenas.

    ndia na estrada Largou a tribo Comprou um vestido Aprendeu a atirar

    Este o momento em que a ndia deixa sua gente para seguir seu amor bandido.

    Aqui o compositor nos revela a fragilidade dos indgenas que so expostos repentinamente

    civilizao, e no possuem nenhum tipo de assistncia, ou preparo diante de tal situao.

    ndia virada Alucinada pelo cara-plida Do pantanal

    Estes versos descrevem a transformao causada na ndia por amor a um traficante.

    A palavra alucinada foi utilizada no contexto pejorativo, caracterizando bem sua trans-

    formao.

    ndia guajira e o traficante Loucos de amor Trocavam seu mel

    No momento de amor entre a ndia e o traficante, Dussek ir parodiar alterando o

    verdadeiro significado da palavra mel.

    Era um amor tipo 45 E tiroteios rasgando o vestido Em quartos de motel.

    Era um amor tipo 45, ou seja, um amor igual ao nmero de uma bala de revlver,

    to perigoso quanto.

    Explode o amor Adios para o pudor Guajira e o traficante Passam a escancarar

    Rolam papis

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    Nos bares, nos bordis Os dois de Bonnie and Clyde

    O traficante e a ndia so comparados a um casal de bandidos dos Estados Unidos

    na dcada de 70, os quais ficaram famosos pela forma audaciosa de praticar os crimes.

    Mayra pivete Amaznica Esqueceu Tup, a sem vergonha Dentro de um Cessna Bebendo champagne Leo e seu bando A fazem sua chefona

    No contexto geral da letra, a ndia no possua identidade, ou seja, no possua no-

    me porque no representava nada para a sociedade, agora ela tem nome, Mayra. Foi pre-

    ciso que se tornasse um pivete perigoso para que a sociedade a notasse.

    O compositor quer mostrar a falta de ateno com os nossos ndios da Amaznia.

    ndia fichada retrata falada A loto esperada Pelos federais

    Mas ela gosta de fotografia E vira capa de jornais do dia Enquanto espera Uma tonelada de pura alegria

    Aqui sua cabea colocada a prmio, mais uma vez a ironia do compositor em dar

    realce pessoa da ndia que era indiferente a todos.

    ndia sujeira Foi dedurada por um sertanista Que era amigo seu

    ndia trada Mim t passada Ela lamentava num mal portugus

    No desenrolar da histria, a ndia trada por seu bando, quando ela diz: Mim t

    passada, o que coloca em questo os valores ticos. Existe a verdadeira amizade, ou tudo

    no passa de um jogo de interesses? O compositor tambm deixa para a reflexo o estilo de

    vida indgena, supondo que na tribo a amizade valorizada. Isto pode ser analisado pela

    fala da ndia quando pega.

    A ndia deu um ganho Num Landau negro, chapa oficial

    Crtilo: Revista de Estudos Lingsticos e Literrios. Pato de Minas: UNIPAM, (1): 95-107, ano 1, 2008

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    Que era da Funai Passou batido pela fronteira Uma rajada de metralhadora... Morta no Paraguai!!!!

    No final da letra, acontece a morte da ndia simbolizando as diversas mortes que

    acontecem nas fronteiras, parodiando a morte de Iracema.

    E finalmente num contexto geral, a imagem do ndio degradado que convive nas

    fronteiras com a civilizao, sofrendo todos os tipos de abusos e preconceitos principalmen-

    te nas mos dos traficantes.

    3. Consideraes finais Muitas foram as trajetrias seguidas pelos compositores da MPB com suas letras

    musicais, com propostas romnticas e engajadas. Ainda hoje, um dos textos mais cantados

    a problemtica que envolve o sentimento do amor e as diferenas sociais, que so frequen-

    temente explorados nas letras de msicas populares. Os compositores as tornam em par-

    frases ou pardias, dependendo do assunto a ser abordado.

    Tambm relevante observarmos que os trs compositores em questo, Adoniran,

    Chico e Eduardo, seguiram a mesma linha para a composio de suas letras de msicas, que

    foi a construo de uma miniestria contendo incio, meio e fim, como forma de relatar com

    maior clareza a mensagem de suas msicas.

    Os compositores em geral, adotam como regra a reescrita de um texto que pode

    ser literrio ou no, considerando ser para eles uma forma de prestigiar (homenagear) tal

    obra. E o intuito desta pesquisa foi de colocar em evidncia como a obra de Jos de Alencar,

    Iracema, passou por processos de intertextualidade com a atualidade, cantada pelos nossos

    compositores consagrados da MPB.

    4. Referncias

    BALLE, Adlia Bezerra de Menezes. Chico Buarque de Hollanda. Seleo de textos, notas, estudos biogrficos, histrico e crtico e exerccios. So Paulo: Abril Educao, 1980. p. 107. CANDIDO, Antnio. Formao da literatura Brasileira: momentos decisivos. 8 ed. Rio de Janeiro. Editora: Itatiaia Limitada. 1997, vol. II. CONSOLARO; H. Por Trs das Letras. Seu portal de lngua portuguesa na internet. 2004. http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=redacao/teoria/docs/parodiaparafrase Acessado em 05 de maio de 2007. CARVALHO. Gilberto de. Chico Buarque: Anlise potico Musical. Coleo Alternativa. V. 07. Rio de Janeiro: Editora Codecri. Ed. 3, 1984. 186 p.

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    http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=redacao/teoria/docs/parodiaparafrasehttp://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=redacao/teoria/docs/parodiaparafrase

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    Crtilo: Revista de Estudos Lingsticos e Literrios. Pato de Minas: UNIPAM, (1): 95-107, ano 1, 2008