IPEA Justica Criminal e Seguraca Publica

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TEXTO PARA DISCUSSÃO N o 1330 SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL NO BRASIL: QUADRO INSTITUCIONAL E UM DIAGNÓSTICO DE SUA ATUAÇÃO Helder Ferreira Natália de Oliveira Fontoura Brasília, março de 2008

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  • TEXTO PARA DISCUSSO No 1330

    SISTEMA DE JUSTIA CRIMINAL NO BRASIL: QUADRO INSTITUCIONAL E UM DIAGNSTICO DE SUA ATUAO

    Helder Ferreira Natlia de Oliveira Fontoura

    Braslia, maro de 2008

  • TEXTO PARA DISCUSSO No 1330

    SISTEMA DE JUSTIA CRIMINAL NO BRASIL: QUADRO INSTITUCIONAL E UM DIAGNSTICO DE SUA ATUAO*

    Helder Ferreira** Natlia de Oliveira Fontoura**

    Braslia, maro de 2008

    * Os autores agradecem a Andr Gambier Campos e Luseni Aquino, da Diretoria de Estudos Sociais do Ipea; a Marcelo Durante, da Secretaria Nacional de Segurana Pblica; e a Arthur Trindade Maranho Costa, da Universidade de Braslia, por crticas e sugestes. ** Tcnicos da Diretoria de Estudos Sociais do Ipea ([email protected] e [email protected]).

  • Governo Federal

    Ministro de Estado Extraordinrio de Assuntos Estratgicos Roberto Mangabeira Unger

    Ncleo de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica

    Fundao pblica vinculada ao Ncleo de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica, o Ipea fornece suporte tcnico e institucional s aes governamentais possibilitando a formulao de inmeras polticas pblicas e programas de desenvolvimento brasileiro e disponibiliza, para a sociedade, pesquisas e estudos realizados por seus tcnicos.

    Presidente Marcio Pochmann

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    Assessor-Chefe de Comunicao Estanislau Maria de Freitas Jnior

    URL: http://www.ipea.gov.br

    Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoria

    ISSN 1415-4765 JEL K14; K42; K49

    TEXTO PARA DISCUSSO

    Publicao cujo objetivo divulgar resultados de

    estudos direta ou indiretamente desenvolvidos pelo

    Ipea, os quais, por sua relevncia, levam informaes

    para profissionais especializados e estabelecem um

    espao para sugestes.

    As opinies emitidas nesta publicao so de

    exclusiva e de inteira responsabilidade do(s)

    autor(es), no exprimindo, necessariamente, o

    ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econmica

    Aplicada ou do Ncleo de Assuntos Estratgicos da

    Presidncia da Repblica.

    permitida a reproduo deste texto e dos dados nele

    contidos, desde que citada a fonte. Reprodues para

    fins comerciais so proibidas.

  • SUMRIO

    SINOPSE

    ABSTRACT

    1 INTRODUO 7

    2 DESENHO INSTITUCIONAL DO SISTEMA DE JUSTIA CRIMINAL 8

    3 UM DIAGNSTICO DO SISTEMA DE JUSTIA CRIMINAL NO BRASIL 26

    4 CONSIDERAES FINAIS 45

    REFERNCIAS 47

    ANEXOS 51

  • SINOPSE

    O presente trabalho tem por objetivo investigar o sistema de justia criminal no Brasil, integrado pelos subsistemas policial, de justia criminal e de execuo penal, sob duas perspectivas: o respeito ao Estado de Direito e a eficcia na misso de prevenir a criminalidade.

    A primeira parte do texto (seo 1) se dedica a apresentar o desenho institucional do sistema de justia criminal, com os diferentes rgos e instituies que o compem, tanto nos Poderes Executivo e Judicirio, e o modo como se articulam nos trs nveis de governo.

    A segunda parte (seo 2) busca examinar, a partir das informaes disponveis at o primeiro semestre de 2007, os diferentes subsistemas de justia criminal no que concerne ao respeito ao Estado de Direito e ao alcance do objetivo de prevenir a criminalidade.

    Conclui-se que se tem no pas um sistema de justia criminal que constantemente viola os direitos individuais, ao tempo em que detentor de uma capacidade de punir crimes muito aqum do nmero de crimes cometidos, falhando em sua atribuio de contribuir para a preveno da criminalidade, apesar de alguns avanos alcanados nos ltimos anos.

    ABSTRACT

    The aim of this paper is to analyze the criminal justice system in Brazil which is composed by the police, criminal justice, and penal execution subsystems under two perspectives: the respect to the Rule of law and the effectiveness of its task of preventing crime.

    The first part of the text attempts to present the institutional design of the system of criminal justice, together with its different agencies and institutions in Executive and Judiciary, as well as the way it connects itself in the three levels of government.

    The second part examines, based on the currently available information, the different subsystems of criminal justice in relation to the Rule of law and the attainment of the objective to prevent crime.

    We conclude that we have a criminal justice system that constantly violates the individual rights ant that has a very low capacity to punish crimes, failing his duties to prevent crime although some progress were achieved in the last years.

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    1 INTRODUO

    A segurana pblica, nos ltimos anos, tornou-se uma das reas de polticas pblicas de maior preocupao dos brasileiros. Isto pode ser notado em pesquisas de opinio pblica realizadas recentemente. A pesquisa CNT-Sensus de julho de 2007 (CNT-Sensus, 2007)1 trabalhou com trs indicadores: i) a avaliao dos entrevistados sobre o controle da violncia e da criminalidade pelas autoridades; ii) a forma de violncia pela qual o entrevistado se sente mais ameaado; e iii) a classificao da cidade como mais ou menos violenta, segundo o entrevistado. Os resultados mostram que, para 76,1% dos entrevistados, a violncia e a criminalidade esto fora do controle das autoridades. Para o segundo indicador, entre as opes apresentadas, o assalto em casa ou na rua foi escolhido por 38,4% dos entrevistados (tabelas 1, 2, e 3 no anexo) como a violncia que mais ameaa. Os demais entrevistados escolheram: i) trfico de drogas (31,7%); ii) estupro (9%); iii) seqestro (7%); iv) violncia na famlia (6,1%); e v) brigas em locais pblicos (5,9%). Por ltimo, a cidade onde mora o entrevistado foi considerada muito violenta por 14,7%, violenta por 16,9%, mais ou menos violenta por 29,7%, pouco violenta por 27,8%, e nada violenta por 10,1% dos entrevistados, (tabelas 1, 2 e 3 anexo 1). Os resultados dessa pesquisa revelam tambm, entre outros aspectos, que os entrevistados tendem a ser crticos quanto atuao das autoridades mesmo aqueles que consideram relativamente pouco violentas as cidades em que moram.

    A percepo dos brasileiros sobre a situao de violncia e criminalidade influenciada pela ampla cobertura que os meios de comunicao de massa do aos casos de violncia. Em qualquer lugar do pas, tem-se informao sobre crimes ocorridos em So Paulo, Rio de Janeiro, outras cidades de grande e mdio porte, e tambm, embora mais raramente, em pequenos municpios. Isso no quer dizer, no entanto, que no existam motivos reais para uma grande preocupao com o tema. Em relao s mortes por agresso (homicdios ou latrocnios), por exemplo, num conjunto de 80 pases (quadro 1, anexo 1), o Brasil o primeiro em nmero absoluto de mortes (45.311 vtimas em 2000), o quarto em taxa de mortos por agresso por 100 mil habitantes (26,4), e o quarto na proporo entre as mortes por agresso sobre o total de mortes (4,8%).2 Embora o risco de morte por agresso do brasileiro em um ano seja, segundo estes dados, de apenas 0,026%, a comparao com outros pases evidencia um grave problema de segurana pblica no Brasil. Outros crimes tambm preocupam. A Secretaria Nacional de Segurana Pblica (MINISTRIO DA JUSTIA, 2006b) conseguiu reunir outros dados de vtimas de crime no pas, relativos a 2005. Os nmeros so os seguintes: i) leso corporal dolosa 308.952 vtimas; ii) tentativa de homicdio 21.461; iii) extorso mediante seqestro 617; iv) roubo a transeunte 202.577; v) estupro 7.550; e vi) atentado violento ao

    1. Foram realizadas 2 mil entrevistas, estratificadas por cinco regies e 24 estados, com o sorteio aleatrio de 136 municpios pelo mtodo da Probabilidade Proporcional ao Tamanho (PPT). 2. Os dados so da Organizao Mundial da Sade World Health Organization Statistical System (Whosis). Da base de dados, foram excludos territrios, pases sem informao posterior a 1995 ou sem dados sobre populao. Base de dados disponvel em: . Acesso em 24 jul. 2007. H vrios problemas nessa comparao, entre eles o fato de que a qualidade dos dados varia de pas para pas, e de que referem-se a anos diferentes variam de 1996 a 2003.

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    pudor 7.172 vtimas.3 Por fim, a ao da sociedade civil e a mdia tm tambm chamado ateno para uma srie de fenmenos: corrupo, violncia contra grupos vulnerveis (mulheres, crianas, idosos, GLBT,4 defensores de direitos humanos, trabalhadores rurais), contrabando, trfico de armas etc.

    Essa forte preocupao social, por sua vez, tem despertado na sociedade e no Estado (setores de sade, educao, urbanizao, trabalho etc.) novas aes que contribuem para a melhora da situao ao atuar na preveno da violncia e do crime. No entanto, embora alguns estudos5 venham questionando a idia de priso de criminosos como forma de intimidar o crime e assegurar a ressocializao, a responsabilidade mais especfica sobre o problema, atribuda pela mdia e pelos atores polticos de maneira geral, continua sendo do sistema de justia criminal.6

    O objetivo deste estudo avaliar a atuao desse sistema de justia criminal. Duas sero as perspectivas de avaliao: o respeito ao Estado Democrtico de Direito7 e os resultados dos rgos em relao s infraes penais. No entanto, antes disso, na seo 1, ser apresentado o desenho institucional do sistema de justia criminal, com vistas a tornar mais claro para o leitor menos familiarizado com o tema o modo como se organizam as principais instituies do sistema.

    2 DESENHO INSTITUCIONAL DO SISTEMA DE JUSTIA CRIMINAL

    O sistema de justia criminal abrange rgos dos Poderes Executivo e Judicirio em todos os nveis da Federao. O sistema se organiza em trs frentes principais de atuao: segurana pblica, justia criminal e execuo penal. Ou seja, abrange a atuao do poder pblico desde a preveno das infraes penais at a aplicao de penas aos infratores. As trs linhas de atuao relacionam-se estreitamente, de modo que a eficincia das atividades da Justia comum, por exemplo, depende da atuao da polcia, que por sua vez tambm chamada a agir quando se trata do encarceramento para vigiar externamente as penitencirias e se encarregar do transporte de presos, tambm guisa de exemplo.

    A poltica de segurana pblica, de execuo penal e a administrao da Justia so majoritariamente desenvolvidas pelos poderes estaduais. Os poderes pblicos federal e municipal desempenham papel de menor importncia nesta rea.

    O objetivo desta seo apresentar o desenho institucional de cada um dos subsistemas da Justia criminal. Alm dos rgos envolvidos em cada nvel da Federao, busca-se aqui tambm mostrar a relao entre eles e as principais normas legais que regem a atuao governamental na rea, de modo a subsidiar a posterior anlise sobre o funcionamento do sistema, assim como permitir ao leitor uma maior familiaridade com o tema.

    3. Ver tabela 4 no anexo 1. Esses nmeros apresentam limitaes. Os maiores problemas so a subnotificao e dados no enviados por estados. 4. GBLT: gays, lsbicas, bissexuais e transgneros. 5. Cf. Blumenstein, Cohen e Nagin (1978). 6. O sistema de justia criminal envolve as reas de ao policial, justia criminal e execuo penal. 7. O princpio bsico para o funcionamento do Estado de Direito o da legalidade. O Estado deve fazer o que a lei determina, enquanto um cidado s pode ser obrigado ou impedido de fazer alguma coisa em virtude da lei (CF, art. 5o, inciso II).

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    Inicialmente, ser abordado o complexo de segurana pblica; em seguida, o de justia criminal e, finalmente, o de execuo penal. Em cada um dos casos sero examinados os respectivos rgos nos mbitos do governo federal e dos governos estaduais e municipais.

    2.1 Estrutura do sistema de segurana pblica

    O sistema de segurana pblica no Brasil organiza-se com base em rgos do Poder Executivo Federal, estadual e municipal. A Constituio Federal (CF) de 1988 traz as diretrizes gerais para o sistema, prevendo o papel dos rgos policiais e dos entes federativos em sua organizao. No art. 144, a CF define a segurana pblica como dever do Estado e responsabilidade de todos. Define, ainda, que os rgos responsveis por sua manuteno so a Polcia Federal as Polcias Rodoviria e Ferroviria8 Federais; as Polcias Civis; as Polcias Militares; e os Corpos de Bombeiros Militares.

    A seguir ser traada a estrutura do sistema, de acordo com os papis e a organizao de cada nvel da Federao: Unio, poder estadual e poder municipal.

    2.1.1 rgos federais de segurana pblica

    No mbito do governo federal, a segurana pblica assunto da rea de competncia do Ministrio da Justia, no qual se encontram vinculados os seguintes rgos: Secretaria Nacional de Segurana Pblica (Senasp), Departamento de Polcia Federal, e Departamento de Polcia Rodoviria Federal. Cabe mencionar, ainda, a existncia de conselhos ligados ao Ministrio da Justia, tais como o Conselho Nacional de Segurana Pblica, que tambm exercem papel importante para as definies e avaliaes da poltica.

    A Senasp, criada em 1997,9 tem por principais atribuies: promover a integrao dos rgos de segurana pblica; planejar, acompanhar e avaliar as aes do governo federal na rea; estimular a modernizao e o reaparelhamento dos rgos de segurana pblica; estimular e propor aos rgos estaduais e municipais a elaborao de planos integrados de segurana; e implementar e manter o Sistema Nacional de Informaes de Justia e Segurana Pblica (Infoseg),10 entre outras.

    a Senasp que gerencia o programa Sistema nico de Segurana Pblica (Susp), bem como a administrao dos recursos do Fundo Nacional de Segurana Pblica, por meio do qual so apoiados projetos de estados e municpios.

    O Fundo Nacional de Segurana Pblica foi criado em 2000, logo aps o lanamento do Plano Nacional de Segurana Pblica, e tem por objetivo apoiar projetos na rea de segurana pblica e projetos sociais de preveno violncia, tanto de estados quanto de municpios, desde que atendam aos critrios estabelecidos.

    8. A Constituio Federal prev a atuao da Polcia Ferroviria Federal, que, na prtica, quase inexistente, tanto devido privatizao das ferrovias quanto ausncia de regulamentao da carreira de policial ferrovirio federal. 9. A secretaria foi criada por meio do Decreto no 2.315, de 4 de setembro de 1997, tendo sucedido a Secretaria de Planejamento de Aes Nacionais de Segurana Pblica (Seplanseg), criada em 1995. 10. O Infoseg uma rede nacional que integra informaes dos rgos de segurana pblica, justia e fiscalizao como polcias, tribunais de Justia e Receita Federal referentes a pessoas com inquritos, processos, mandados de priso, alm de dados de veculos e armas. A rede pode ser acessada, pelos agentes pblicos autorizados, por meio de computadores, rdios e celulares, assim como de viaturas.

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    O Susp, lanado em 2003, um programa criado para articular as aes federais, estaduais e municipais na rea da segurana pblica e da Justia criminal. A integrao ao Susp se d via assinatura de um protocolo de intenes entre o governo do estado e o Ministrio da Justia, a partir do qual se institui no estado um Gabinete de Gesto Integrada, composto por representantes do Poder Executivo estadual, das polcias e guardas municipais, Polcia Federal e Polcia Rodoviria Federal, alm da cooperao do Ministrio Pblico e do Poder Judicirio. O gabinete deve definir as aes a serem implementadas, e suas decises so repassadas para o Comit Gestor Nacional. Este modelo j est em funcionamento em todos os estados da Federao, mas esbarra na dificuldade de falta de regulamentao por parte do Susp do ponto de vista normativo.

    O papel da Senasp vem sendo sobretudo fomentar a discusso, delinear diretrizes gerais especialmente na rea de capacitao de recursos humanos, de informao e conhecimento , e manter o elo entre governo federal e governos estaduais e municipais.

    Ainda no mbito do Ministrio da Justia, o Departamento de Polcia Federal cumpre uma funo bem distinta. A norma constitucional define que cabe Polcia Federal apurar infraes penais contra a ordem poltica e social ou em detrimento de bens, servios e interesses da Unio (...) assim como outras infraes cuja prtica tenha repercusso interestadual ou internacional e exija represso uniforme. Cabe, ainda, prevenir e reprimir o trfico ilcito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho (...), exercer as funes de polcia martima, aeroporturia e de fronteiras e exercer, com exclusividade, as funes de polcia judiciria da Unio (CF, art. 144, 1o, incisos I a IV).

    Dessa forma, a Polcia Federal cumpre um importante papel nas investigaes que envolvem crimes contra o patrimnio da Unio, a includos delitos cometidos por autoridades polticas, no policiamento de fronteira, e no combate ao trfico de drogas, atuando em todo o pas por meio de suas unidades regionalizadas 27 superintendncias regionais e 81 delegacias, alm de postos avanados, centros especializados, e delegacias de imigrao, entre outros. A Polcia Federal atua tambm na fiscalizao nos aeroportos, na emisso de passaportes e no registro de armas de fogo. Seus principais rgos centrais so: Comando de Operaes Tticas, Academia Nacional de Polcia, Diretoria Tcnico-Cientfica, Coordenao-Geral de Polcia de Imigrao, e Coordenao-Geral de Controle de Segurana Privada.

    A Polcia Rodoviria Federal, que tambm tem suas atribuies definidas constitucionalmente, deve exercer o patrulhamento das rodovias federais. Integram sua atuao: realizar patrulhamento ostensivo, inclusive operaes relacionadas com a segurana pblica; exercer os poderes de autoridade de polcia de trnsito; aplicar e arrecadar multas impostas por infraes de trnsito; executar servios de preveno, atendimento de acidentes e salvamento de vtimas; assegurar a livre circulao nas rodovias federais; efetuar a fiscalizao e o controle do trfico de crianas e adolescentes; colaborar e atuar na preveno e represso aos crimes contra a vida, os costumes, o patrimnio, o meio ambiente, o contrabando, o trfico de drogas e demais crimes.11

    Na espera do governo federal, cabe mencionar tambm a atuao do Gabinete de Segurana Institucional da Presidncia da Repblica, que o rgo de

    11. Decreto no 1.655, de 3 de outubro de 1995, e Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997.

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    coordenao das atividades de inteligncia federal e, juntamente com outros doze, compe o Sistema Brasileiro de Inteligncia, cujo rgo central a Agncia Brasileira de Inteligncia (Abin),12 tambm responsvel por atividades relacionadas segurana pblica, e que atua muitas vezes em conjunto com a Secretaria Nacional Anti-Drogas (Senad) e com a Polcia Federal.

    A Senad, por sua vez, subordinada ao Gabinete de Segurana Institucional da Presidncia da Repblica, o rgo executivo das atividades de preveno do uso indevido de substncias entorpecentes e drogas que causem dependncia, bem como daquelas relacionadas com o tratamento, recuperao, reduo de danos e reinsero social de dependentes. A secretaria gerencia o Fundo Nacional Anti-Drogas e, junto ao Conselho Nacional Anti-Drogas, atua na implementao da Poltica Nacional sobre as Drogas, lanada em 2005.13

    Finalmente, cumpre lembrar a recente instituio da Fora Nacional de Segurana Pblica, criada em novembro de 2004, por meio do Decreto no 5.289, considerando o princpio de solidariedade federativa que orienta o desenvolvimento das atividades do sistema nico de segurana pblica, para exercer atividades relacionadas com policiamento ostensivo no caso de solicitao expressa de um governador de estado. Integram a Fora Nacional servidores de rgos de segurana pblica estaduais e federais selecionados e treinados para trabalhar conjuntamente. Os estados podem aderir voluntariamente ao programa. O emprego da Fora Nacional ser determinado pelo ministro da Justia, sempre de forma episdica e planejada, e aps solicitao do governador de estado. Portanto, a Fora Nacional no possui sede prpria nem contingente prprio os policiais capacitados para integr-la so convocados para misses especficas , e tampouco funciona de maneira permanente.

    2.1.2 rgos estaduais de segurana pblica

    A Constituio Federal define o papel das Polcias Civil e Militar, que se subordinam ao Poder Executivo estadual. A Polcia Militar deve realizar o policiamento ostensivo e garantir a preservao da ordem pblica. A Polcia Civil tem como principal atribuio a investigao de crimes. Nesse sentido, cumpre a funo de polcia judiciria, devendo apurar as infraes penais, com exceo das militares.

    As Polcias Civil e Militar, o Corpo de Bombeiros14 e os rgos de percia vinculam-se ao Poder Executivo estadual e organizam-se, sob o princpio da norma constitucional, de acordo com a legislao local, havendo diferenas entre os estados brasileiros. So as constituies estaduais que explicitam a organizao das corporaes policiais e da poltica de segurana pblica local.

    12. Decreto no 4.376, de 13 de setembro de 2002. 13. At 1998, o Ministrio da Justia, por meio do Conselho Federal de Entorpecentes e do Departamento de Entorpecentes da Secretaria Nacional de Segurana Pblica, era o responsvel pela poltica. A Senad j foi instituda subordinada ento Casa Militar da Presidncia da Repblica, o que, poca, gerou discusses a respeito do gerenciamento da poltica de combate s drogas no governo federal. Subordinar a Senad, o Conselho Nacional Anti-Drogas e o Fundo Nacional Anti-Drogas Casa Militar da Presidncia da Repblica, desde 1999 transformada em Gabinete de Segurana Institucional, significa reconhecer a questo como afeta defesa nacional e s Foras Armadas. 14. A Constituio Federal, em seu art. 144, define o papel dos Corpos de Bombeiros militares, que devem executar atividades de defesa civil. no abordar esta corporao por considerar que suas funes no se referem manuteno da segurana pblica no sentido aqui adotado.

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    Em geral, compem as Secretarias Estaduais de Segurana Pblica: Polcia Civil, Polcia Militar, Corpo de Bombeiros, Polcia Tcnico-Cientfica quando separada da Polcia Civil , Departamento de Trnsito, conselhos comunitrios, instituto de identificao, alm de Corregedoria e Ouvidoria de Polcia.

    A Polcia Civil atende a populao em delegacias ou distritos, nos quais so registradas as ocorrncias de infraes. Em geral, cada delegacia de polcia deve registrar e apurar os delitos de sua rea de circunscrio. o delegado de polcia que abre o inqurito policial para investigar os crimes e realiza os procedimentos relacionados investigao, como interrogatrio de testemunhas, solicitao de percias etc. Com vistas a subsidiar a investigao, entra em ao o trabalho da Polcia Cientfica, formada pelos especialistas que atuam nos institutos de criminalstica e institutos ou departamentos de medicina legal.

    Uma vez concludo, o inqurito policial (procedimento administrativo anterior ao penal) encaminhado para o Judicirio, que o remete ao Ministrio Pblico. Este pode requerer seu arquivamento ou apresentar denncia. O Ministrio Pblico tem competncia privativa de promover a ao penal pblica,15 fazendo a denncia que d incio ao processo criminal. Cabe lembrar, ainda, que as provas produzidas pela polcia, como os depoimentos, tm de ser refeitas no mbito do Judicirio, para que sejam respeitados os princpios do contraditrio, da ampla defesa e do devido processo legal.

    O inqurito policial no obrigatrio. Se j h elementos para propor a ao penal, ele se torna dispensvel. No caso de infraes penais de menor potencial ofensivo, a polcia pode lavrar termo circunstanciado,16 encaminhado ao Judicirio, no contexto dos procedimentos mais simplificados para a concluso judicial.

    A relao da Polcia Civil com o Judicirio e o Ministrio Pblico se d em diferentes circunstncias, no somente ao longo da instruo do inqurito policial e do processo criminal, mas tambm para cumprir mandados de priso, de busca e apreenso, entre outros.

    Cada estado organiza seu departamento de polcia civil de maneira independente, sendo que, na maioria das vezes, tal organizao normatizada por uma lei orgnica. Freqentemente h ainda, em separado, um estatuto, um regulamento disciplinar e um cdigo de tica, todos publicados por lei estadual ou decreto governamental, embora seja mais comum que a lei orgnica aborde todos os aspectos relativos organizao da corporao, finalidades, atribuies, regime disciplinar, cargos e carreiras etc. O governador deve publicar em lei o nmero de cargos existentes nas polcias, com base na proposta do comandante-geral da corporao.

    15. A ao penal pode ser pblica, quando promovida por membro do Ministrio Pblico, com o oferecimento da denncia; ou privada, quando promovida pelo particular, sendo sua pea inicial a queixa-crime, apresentada pelo ofendido ou seu representante legal. A ao penal pblica pode ser incondicionada, quando seu exerccio no depende de manifestao de vontade; ou condicionada, quando a propositura da ao depende de uma manifestao de vontade. Ver mais detalhes na subseo 2.2. 16. H controvrsias sobre a aplicao do art. 69 da Lei no 9.099/95, que prev que a autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrncia lavrar termo circunstanciado e o encaminhar imediatamente ao Juizado. Em princpio, compreende-se que somente o delegado de polcia lavra o termo circunstanciado, mas o que vem ocorrendo que em muitas localidades policiais militares o tm feito, sob o pressuposto de que o conceito de autoridade policial compreende qualquer autoridade que atue na rea policial.

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    Uma das possibilidades encontradas nos estados a organizao da Polcia Civil em departamentos e institutos, o que contribui para uma especializao entre os policiais e das prprias delegacias, que se voltam para reas como: homicdios e proteo pessoa; narcticos; crime organizado, alm de departamento de polcia da capital e departamento de polcia do interior; e departamento de inteligncia, entre outros. H ainda grupos ostensivos em alguns estados.

    Normalmente ligado unidade de percias est o instituto de identificao, visto que cabe Polcia Civil executar os servios de identificao civil e criminal. Outras unidades desta polcia so corregedoria e academia, alm de departamentos administrativos e de apoio, rgos colegiados ou equivalentes.

    As carreiras da Polcia Civil tambm encontram diferenas de um estado para outro, havendo necessariamente distino entre carreira de delegado de polcia e de agente, alm de carreiras especficas ligadas s atividades de percia. O ingresso em todas as carreiras se d mediante concurso pblico, sendo necessrio, para delegado, ser detentor de curso superior em Direito.

    Em alguns estados, a Polcia Cientfica, que trabalha nas atividades de percia e medicina legal, constitui uma corporao especfica, independente da Polcia Civil.

    A organizao da Polcia Militar (PM) tambm difere entre os estados, mas em geral formada por batalhes e companhias. Existem atualmente doze graus hierrquicos, de soldado a coronel em reproduo organizao do Exrcito, exceo do grau de general, inexistente na polcia. O comandante-geral da polcia no estado deve ter a patente de coronel. Os integrantes das polcias militares so denominados pela Constituio Militar dos estados, constituindo fora auxiliar do Exrcito.17

    O trabalho de mais visibilidade da PM o policiamento ostensivo, caracterizado pela ao em que o agente identificado pela farda, pelo equipamento e pela viatura, podendo ser: ostensivo geral, urbano e rural; de trnsito; florestal e de mananciais; rodovirio e ferrovirio, nas vias estaduais; porturio; fluvial e lacustre; de radiopatrulha terrestre e area; e de segurana externa dos estabelecimentos penais, entre outros.18

    Cada corporao policial possui uma corregedoria-geral encarregada de investigar infraes penais e transgresses disciplinares de seus agentes, assim como de realizar correies. Alm da corregedoria, quatorze estados j possuem tambm Ouvidorias de Polcia tanto ligadas especificamente a cada corporao quanto configuradas como ouvidorias nicas. A Ouvidoria de Polcia atua como controle externo da atividade policial, encaminhando denncias e acompanhando seu andamento junto Corregedoria, que se incumbe das apuraes.

    No mbito do Poder Executivo estadual, coordenam as aes relativas segurana pblica as secretarias estaduais (Secretarias de Segurana Pblica e Secretarias de Defesa Social), que muitas vezes tambm tm como atribuio a fiscalizao de trnsito urbano. Na verdade, o Cdigo Nacional de Trnsito remeteu esta fiscalizao aos

    17. O Exrcito acompanha a execuo das atividades das Polcias Militares (PMs), tendo voz no que diz respeito: aos cursos de formao e de aperfeioamento dos agentes; aos efetivos estaduais; e ao material blico permitido para uso pelas PMs (Decreto no 88.777, de 30 de setembro de 1983). 18. Decreto no 88.777, de 30 de setembro de 1983, que aprova o regulamento para as Polcias Militares e Corpos de Bombeiros Militares.

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    municpios, mas ela ainda se encontra sob a responsabilidade dos governos estaduais na maioria dos casos, ou sob responsabilidade compartilhada, por meio de convnios entre estado e municpio. a Polcia Militar a responsvel, na maior parte dos estados, pela fiscalizao de trnsito.

    Pode-se concluir que a organizao dual das foras policiais no Brasil se explica pela seguinte diviso: a ao da Polcia Militar se d enquanto o crime ocorre ou para evit-lo, ao passo que a ao da Polcia Civil se d prioritariamente aps a ocorrncia do crime.

    2.1.3 rgos municipais de segurana pblica

    A Constituio Federal de 1988, em seu art. 144, prev que os municpios podero constituir guardas municipais destinadas proteo de seus bens, servios e instalaes.

    As guardas municipais so instituies de carter civil, que se encarregam no somente de zelar pelo patrimnio pblico e cuidar da segurana coletiva em eventos pblicos, mas tambm atuam em rondas e assistncia nas escolas, em atividades de defesa civil, e na mediao de conflitos, entre outras atividades desenvolvidas, conforme levantamentos realizados pela Senasp.19 Destaca-se o importante papel das guardas municipais na preveno da violncia e da criminalidade, por meio da articulao de projetos sociais e comunitrios. Tem-se observado, ainda, a expanso da atuao das guardas municipais no sentido de cumprir papis legalmente destinados s corporaes policiais, o que vem sendo tema de debates e propostas no mbito dos Poderes Executivo e Legislativo.

    Nesse sentido, uma importante questo reside na permisso para porte de armas de fogo pelos integrantes das guardas municipais. A legislao federal determina que podem ter porte de arma de fogo os integrantes das guardas municipais das capitais e dos municpios com mais de 500 mil habitantes, enquanto os integrantes das guardas municipais de municpios com populao entre 50 mil e 500 mil habitantes e de municpios de regies metropolitanas podem utilizar arma de fogo quando em servio. Tal permisso est condicionada existncia de mecanismos de fiscalizao e controle interno nas instituies, assim como de formao de seus integrantes em estabelecimentos de ensino de atividade policial.

    Existem hoje no Brasil cerca de 400 guardas municipais, que se renem por meio de uma associao denominada Conselho Nacional das Guardas Municipais. Diversos municpios, especialmente os de maior porte e aqueles localizados em regies metropolitanas, possuem tambm Secretarias Municipais de Segurana Pblica.

    19. Cf. Ministrio da Justia (2005).

  • ipea texto para discusso | 1330 | mar. 2008 15

    Segurana privada

    Os servios particulares de segurana e vigilncia so normatizados no Brasil desde a dcada de 1980, quando foram estabelecidas as normas para a segurana de estabelecimentos financeiros. A Lei no 7.102, de 20 de junho de 1983, alterada posteriormente por leis de 1994, 1995 e 2001 e regulamentada por portarias do Ministrio da Justia, estabelece, entre outros, que o vigilante deve ter no mnimo 21 anos, ter concludo at pelo menos a 4a srie do ensino fundamental, ter concludo curso de formao em estabelecimento credenciado, no ter antecedentes criminais e ter sido aprovado em exames de sade fsica e mental e psicotcnico. O Ministrio da Justia deve conceder autorizao para o funcionamento das empresas especializadas em servios de vigilncia, servios de transporte de valores, e dos cursos de formao de vigilantes. O vigilante pode portar arma de fogo quando em servio, sendo os calibres permitidos definidos na lei, e as armas de propriedade das empresas tm de ser registradas junto Polcia Federal.

    Como j apontava estudo de Musumeci (1998), o pessoal ocupado na atividade de vigilncia e guarda vem aumentando consideravelmente ao longo dos anos. Em 2005, o nmero de pessoas ocupadas em servios de segurana privada j alcanava 45% do total de ocupados na rea de segurana, sendo que na regio Sudeste j alcanava 51,6% do total, ultrapassando o nmero de ocupados em servios de segurana pblica. Esta expanso dos servios de segurana privada no Brasil engendra questionamentos importantes relacionados at mesmo ao papel do Estado. A importncia de garantir o monoplio estatal da coero fsica tem como pressuposto a proteo dos indivduos e dos grupos sociais, inclusive contra abusos do prprio Estado no exerccio desta sua funo. Diante da preocupao de que a expanso da segurana privada colocaria em risco importantes conquistas da democracia ocidental, cabe ressaltar a necessidade de o Estado permanecer com as atribuies de polcia e justia criminal e com o monoplio da delegao e regulao do uso da fora, delimitando as atribuies pblicas e privadas (MUSUMECI, 1998, p. 3).

    2.2 ESTRUTURA DOS RGOS DE JUSTIA CRIMINAL

    A Constituio Federal delineia uma srie de princpios e diretrizes relativos ao processo penal. Entre os princpios constitucionais, destacam-se: i) a presuno da inocncia ou da no-culpabilidade, como preferem alguns juristas; ii) o princpio do devido processo legal, contraditrio e da ampla defesa; iii) o da verdade real ou da busca da verdade; iv) da irretroatividade da lei penal; v) o princpio da publicidade; e vi) do juiz natural ningum ser processado nem sentenciado seno pela autoridade competente (CF, art. 5o, LIII).

    Os rgos de Justia criminal no Brasil organizam-se nos nveis federal e estadual: juzes federais, Tribunais Regionais Federais, Ministrio Pblico Federal e Defensoria Pblica da Unio, no primeiro caso, e juzes estaduais, Tribunais de Justia, Ministrios Pblicos e Defensorias Pblicas Estaduais, no ltimo.20 As competncias de cada um destes rgos so ditadas pela Constituio Federal e pelas legislaes especficas, como as leis estaduais de organizao judiciria.

    20. Nos mbitos federal e estadual, no esto sendo considerados os ramos eleitoral e militar, que, apesar de tratarem de crimes, no so objeto de interesse do presente trabalho.

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    A seguir, sero apresentados brevemente os principais rgos de cada nvel de governo, suas atribuies e os principais elementos de organizao institucional do sistema de justia criminal.

    2.2.1 rgos federais de justia criminal

    O Poder Judicirio no mbito federal composto pelas justias especializadas Justia do Trabalho, eleitoral e militar 21 e Justia comum, constituda pelos juzes federais e pelos Tribunais Regionais Federais.

    As competncias da Justia comum federal so definidas pela Constituio Federal, em seus artigos 108 e 109. Entre elas, no que diz respeito s competncias criminais, destaca-se o julgamento: i) dos crimes polticos e das infraes penais praticadas em detrimento de bens, servios ou interesse da Unio; ii) dos habeas corpus em matria criminal de sua competncia ou quando o constrangimento provier de autoridade cujos atos no estejam diretamente sujeitos a outra jurisdio; iii) dos crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves; e iv) dos crimes de ingresso ou permanncia irregular de estrangeiro.

    Enquanto os juzes federais constituem o primeiro grau de jurisdio, os Tribunais Regionais Federais cinco em todo o pas, cada qual com sua rea de jurisdio 22 constituem o segundo grau, com a competncia de julgar, em grau de recurso, as causas decididas pelos juzes federais e pelos juzes estaduais no exerccio da competncia federal em sua rea de jurisdio, alm de processar e julgar mandados de segurana e habeas corpus contra ato do prprio tribunal ou de juiz federal, entre outras competncias.

    A Justia federal em cada regio est organizada em varas especializadas e no-especializadas, havendo varas federais criminais em algumas comarcas, alm dos Tribunais Regionais Federais e dos Juizados Especiais Federais. Cada tribunal atua por meio de seu pleno, de seu rgo especial e de sees e/ou turmas especializadas,23 entre as quais algumas se dedicam exclusivamente ou no aos feitos de matria penal.

    Os Juizados especiais federais criminais julgam infraes de menor potencial ofensivo de competncia da Justia federal, pautando sua atuao pelos princpios de oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, de acordo com a Lei no 10.259/2001.

    21. Vale observar que a Justia do Trabalho no possui competncia para julgamento de aes criminais, ao passo que as Justias eleitoral e militar possuem. 22. O Tribunal Regional Federal (TRF) - 1a regio tem jurisdio no Distrito Federal e nos estados do Acre, Amap, Amazonas, Bahia, Gois, Maranho, Mato Grosso, Minas Gerais, Par, Piau, Rondnia, Roraima e Tocantins. O TRF - 2a regio tem jurisdio no estado do Rio de Janeiro e do Esprito Santo. O TRF - 3a regio tem jurisdio nos estados de So Paulo e Mato Grosso do Sul. O TRF - 4a regio tem jurisdio nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paran. O TRF - 5a regio tem jurisdio nos estados de Alagoas, Cear, Paraba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe. Fonte: . 23. O pleno do tribunal rene todos os seus desembargadores, e cada seo ou turma formada por um determinado nmero de desembargadores, encarregados de examinar os feitos relacionados ao tema de especializao.

  • ipea texto para discusso | 1330 | mar. 2008 17

    QUADRO 1

    Justia federal comum criminal rgos Especializao rea criminal

    Juzes federais (que atuam nas varas federais) Juzes federais atuando nas varas federais criminais Tribunais Federais Regionais Sees e turmas especializadas em matria penal Justia Federal Regional

    Juizados Especiais Federais Juizados Especiais Criminais

    Elaborao dos autores.

    2.2.2 rgos estaduais de justia criminal

    Os juzes de direito, em primeira instncia, e os Tribunais de Justia, em segunda instncia, integram o Poder Judicirio nos estados e se regem pelas constituies estaduais e pelas normas especficas que organizam suas unidades e atribuies.

    Os Tribunais de Justia Estaduais atuam por meio das varas criminais, Juizados Especiais Criminais e tribunais do jri. O nmero e a distribuio das varas criminais, das varas no-especializadas que tratam das causas relacionadas a crimes, das varas de execuo penal e dos juizados especiais e tribunais do jri so determinados pela lei de organizao judiciria de cada estado, complementada pelo regimento interno do Tribunal de Justia Estadual.

    O fluxo de justia criminal obedece a seqncias e ritos especficos de acordo com alguns fatores relacionados infrao penal cometida. A primeira distino diz respeito ao tipo de ao penal, pblica ou privada, que determinar os procedimentos a serem adotados pela autoridade policial, pelo Ministrio Pblico, assim como os respectivos fluxos no mbito do Poder Judicirio. A seguir, so apresentadas as principais distines entre os dois tipos de ao no que diz respeito ao inqurito policial e ao incio da ao penal.

    QUADRO 2

    Inqurito policial e denncia/queixa de acordo com o tipo de ao penal Crimes de ao pblica1 Crimes de ao privada1

    Inqurito policial O inqurito policial iniciado com ofcio ou mediante requisio da autoridade judiciria ou do Ministrio Pblico (MP), ou a requerimento do ofendido ou representante. Nos crimes de ao pblica condicionada, o inqurito s poder ser iniciado mediante representao. O inqurito, com relatrio minucioso, encaminhado para o juiz competente. O MP s poder requerer a devoluo do inqurito polcia para novas diligncias imprescindveis ao oferecimento da denncia.

    O inqurito policial depende de requerimento de quem tenha qualidade de intentar a ao penal o ofendido, seu representante legal etc. Exemplo de crime de ao penal privada: estupro. Os autos do inqurito so remetidos ao juzo competente, onde aguardam a iniciativa do ofendido.

    Denncia ou queixa Contm: exposio do fato criminoso, com todas as suas circunstncias; qualificao do acusado ou esclarecimentos para identific-lo; classificao do crime; e rol das testemunhas, quando necessrio.

    A ao promovida por denncia do MP e depende, quando a lei o exigir, de requisio do ministro da Justia ou de representao do ofendido. O MP no poder desistir da ao penal. Quando o MP dispensar o inqurito policial, o prazo para o oferecimento da denncia ser contado a partir da data de recebimento das informaes ou da representao.

    A ao intentada pelo ofendido ou por quem tenha qualidade para represent-lo. A queixa poder ser aditada pelo MP, a quem caber intervir em todos os termos subseqentes do processo.

    Elaborao dos autores.

    Nota: 1 De acordo com o art. 100 do Cdigo Penal, A ao penal pblica, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido.

  • 18 texto para discusso | 1330 | mar. 2008 ipea

    O tipo de crime e a pena cominada no Cdigo Penal definem os ritos a serem seguidos no mbito do Poder Judicirio para que sejam ouvidas as testemunhas, os acusados e, finalmente, para que possa haver formao de convencimento pelo juiz e este profira a sentena.

    O Cdigo de Processo Penal prev o procedimento comum e os especiais. Entre estes, cabe destacar os ritos do jri e dos Juizados Especiais Criminais. A seguir, apresenta-se um quadro resumido em que so classificados os procedimentos previstos na legislao de acordo com os tipos de infrao aos quais se aplicam.24

    QUADRO 3

    Ritos processuais de acordo com os tipos de crime Tipo de rito Aplica-se a

    Rito ordinrio ou comum Crimes punidos com recluso Rito do Tribunal do Jri Crimes dolosos contra a vida Rito sumrio Crimes punidos com deteno, priso simples ou multa Rito sumarssimo Infraes penais de menor potencial ofensivo (contravenes e

    crimes com pena mxima de 2 anos) Outros ritos especiais Crimes de:

    - falncia; - responsabilidade dos funcionrios pblicos; - contra a propriedade imaterial; e - de calnia e injria.

    Elaborao dos autores.

    Vale chamar ateno para o procedimento especial que ocorre no caso dos crimes de competncia dos Juizados Especiais Criminais, nos quais se d o rito sumarssimo, normatizado originalmente pela Lei no 9.099/ 1995.

    O Juizados Especiais Criminais (JECrims) tratam as infraes penais de menor potencial ofensivo, cujas penas previstas no ultrapassam dois anos de privao de liberdade.25 Nestes casos, o inqurito policial substitudo pelo termo circunstanciado, remetido ao juizado, onde se d incio audincia preliminar (anexo 2).

    O objetivo da lei que instituiu os Juizados Especiais Criminais foi desburocratizar a Justia, garantir a reparao do dano na prpria ao penal e tambm contribuir para a ampliao da aplicao de penas alternativas s de priso no caso de infraes menos graves.26

    A pena aplicada por meio de transao penal no consta de certido de antecedentes criminais nem implica reincidncia. Perde o direito transao penal o autor que j tiver sido condenado a pena privativa de liberdade em carter definitivo, que j tiver sido anteriormente beneficiado por pena alternativa ou, no caso de seus antecedentes, conduta e personalidade e/ou os motivos e circunstncias da infrao indicarem que a pena alternativa no suficiente.

    24. No anexo 2, encontram-se disponveis os fluxogramas detalhados de cada um dos ritos aqui mencionados exceo dos outros ritos especiais. 25. Os Juizados Especiais Criminais foram criados pela Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, que previa a transao penal para crimes cujas penas no ultrapassassem um ano. A Lei no 11.313/2006 alterou este limite para dois anos. 26. Conforme a Lei no 9.714/1998, essas penas alternativas podem ser: i) pagamento de prestao pecuniria; ii) perda de bens e valores; iii) prestao de servios comunidade ou a entidades pblicas; iv) limitao de final de semana; v) interdio temporria de direitos; e vi) pagamento de multa que no se confunde com a prestao pecuniria.

  • ipea texto para discusso | 1330 | mar. 2008 19

    2.3 ESTRUTURA DO SISTEMA DE EXECUO PENAL BRASILEIRO

    A Constituio prev diretrizes relativas pena para o transgressor das leis: a pena individual e pode ser de privao ou restrio de liberdade, de perda de bens, de multa, de prestao social alternativa ou de suspenso ou interdio de direitos, entre outras. A Carta Magna veta a pena de morte, a de carter perptuo, a de trabalhos forados, a de banimento e as penas cruis, e prev os direitos bsicos do apenado.

    O Cdigo Penal (Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940) divide-se em: parte geral, alterada pela Lei no 7.209, de 11 de julho de 1984, que prev as normas no-incriminadoras, referentes aplicao da lei penal, crime, imputabilidade penal, penas e medidas de segurana, tipos de ao penal e extino da punibilidade; e parte especial, que prev as normas incriminadoras, que descrevem uma conduta e impem as respectivas penas.

    A legislao brasileira prev dois tipos de infraes penais: crimes (ou delitos) e contravenes. Estas ltimas so infraes penais de menor impacto e esto tipificadas na Lei de Contravenes Penais (Decreto-Lei no 3.688, de 3 de outubro de 1941). O Cdigo Penal define, portanto, somente os crimes ou delitos, que podem ser cometidos por ao ou por omisso, podem ser dolosos ou culposos e, ainda, terem sido consumados ou caracterizar-se como tentativa.

    Os tipos de pena so: privativas de liberdade, restritivas de direitos, e multa. As penas privativas de liberdade podem ser de recluso cumprida em regime fechado, semi-aberto ou aberto ou de deteno cumprida em regime semi-aberto ou aberto. Os regimes para cumprimento das penas privativas de liberdade so, portanto:

    1) Fechado, que por lei deveria ser cumprido em cela individual, de no mnimo seis metros quadrados, com trabalho durante o dia e isolamento noite;

    2) Semi-aberto, cumprido em colnia agrcola, industrial ou similar, em alojamento coletivo, com possibilidade de atividades externas sem vigilncia, caso permitidas pelo juiz da execuo; e

    3) Aberto, no qual o preso trabalha sem vigilncia e se recolhe casa de albergado para dormir e passar os dias de folga.

    Se a pena definida superior a oito anos, inicia-se seu cumprimento em regime fechado; para penas maiores de quatro anos e inferiores a oito, em regime semi-aberto; e para as penas menores de quatro anos, no caso de rus primrios, inicia-se em regime aberto. Por regra, o cumprimento da pena deve ser progressivo. O juiz da execuo define o regime inicial e sua progresso ocorre com o tempo e de acordo com o comportamento do preso. Para passar de um regime para outro mais brando, o condenado deve cumprir pelo menos um sexto da pena no regime anterior, sendo que a progresso depende de pareceres internos que avaliam o comportamento e a recuperao do preso. Alm disso, para passar para o regime aberto, preciso comprovar trabalho ou promessa de emprego. No caso de o condenado sofrer nova condenao ou desobedecer s exigncias da execuo, o regime penitencirio pode regredir.

    A Lei no 8.072/90 previa, em seu art. 2o, 1o, que a pena por crimes hediondos, trfico de drogas e terrorismo deveria ser cumprida integralmente em regime fechado.

  • 20 texto para discusso | 1330 | mar. 2008 ipea

    Contudo, no dia 23 de fevereiro de 2006, o Supremo Tribunal Federal julgou tal determinao inconstitucional, por violar o princpio constitucional da individualizao da pena.27

    O livramento condicional, por sua vez, se d somente aps cumprimento de um tero da pena, se o condenado tem bons antecedentes e no reincidente em crime doloso. Se reincidente, deve ter cumprido metade da pena. Para ter o livramento condicional, deve comprovar bom comportamento, aptido para prover a subsistncia e ter reparado o dano, se possvel. Durante o livramento condicional, preciso cumprir diferentes condies impostas pelo juiz, como ter ocupao, voltar para casa em hora fixada e no freqentar determinados lugares.

    No caso de crimes hediondos, trfico de drogas, tortura e terrorismo, se o condenado primrio, tem direito ao livramento condicional somente aps cumprir dois teros da pena em regime fechado.

    A graa ou indulto individual, outro benefcio concedido a presos que atendam a determinados critrios, tambm vetada a praticantes de crimes hediondos e assemelhados. A graa e o indulto so concedidos pelo presidente da Repblica, por meio de decreto que especifica todos os apenados sujeitos a ter suas penas perdoadas ou aliviadas individual, no caso da graa, e coletivo, no caso do indulto.

    A suspenso condicional da pena, ou sursis, outro instituto previsto no Cdigo de Processo Penal e na Lei de Execuo Penal (LEP, Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984), por meio do qual se suspende uma pena de recluso ou de deteno, desde que atendidos os critrios especificados na lei. A suspenso condicional porque o condenado deve cumprir as condies estabelecidas pelo juiz para continuar tendo direito ao benefcio.

    A Lei no 10.792, de 1o de dezembro de 2003, alterou a Lei de Execuo Penal, ao prever o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), que deve ser aplicado ao preso que cometer crime doloso, ao preso que apresente alto risco para a segurana do estabelecimento penal ou da sociedade, e ao preso suspeito de ligao com o crime organizado. O RDD tem durao mxima de trezentos e sessenta dias e se caracteriza pelo recolhimento em cela individual, visitas semanais de duas pessoas por no mximo duas horas, e banho de sol de duas horas dirias, quando o preso sai da cela. Dessa forma, no RDD estende-se o prazo limite para as sanes de isolamento, suspenso e restrio de direitos, previstas originalmente na Lei de Execuo Penal. A nova lei prev, inclusive, a construo de estabelecimentos penais destinados exclusivamente aos presos sujeitos ao regime disciplinar diferenciado.

    A mesma norma que criou o RDD aboliu a necessidade de exame criminolgico, previsto no Cdigo de Processo Penal e na Lei de Execuo Penal, para a avaliao da progresso de regime, o que vem sendo objeto de grande controvrsia entre especialistas da rea. Alguns criminalistas acreditam que a ausncia do exame d mais dinamismo execuo penal e se justifica na medida em que o preso no permanentemente acompanhado pelo Estado, lacuna que no poderia ser preenchida por um exame realizado em condies pouco transparentes e em circunstncias

    27. A Lei no 11.464, de 28 de maro de 2007, alterou as regras para a progresso de regime no caso desses crimes, prevendo que o apenado deve cumprir dois quintos da pena se for primrio, e trs quintos se for reincidente, para que possa progredir para outro tipo de regime.

  • ipea texto para discusso | 1330 | mar. 2008 21

    pontuais. Muitos estudiosos, contudo, defendem que o exame criminolgico embasa em grande medida a deciso do juiz e fundamental por contemplar aspectos referentes personalidade do apenado, vida pregressa, comportamento na priso, percepo sobre o crime e sobre a pena, e possibilidade de reinsero social, entre outros.28 Aps a mudana, com vistas a determinar a progresso de regime, a lei se atm to-somente ao bom comportamento carcerrio, que deve ser atestado pelo diretor do estabelecimento. No entanto, muitos operadores do direito interpretam que a lei no aboliu o exame criminolgico, mas somente sua obrigatoriedade, interpretao adotada pelo Superior Tribunal Federal (STF) e pelo Superior Tribunal de Justia (STJ). Ou seja, quando da avaliao do pedido de progresso de regime, o juiz da execuo pode solicitar a realizao do exame criminolgico.

    A pena privativa de liberdade poder ser reduzida pelo trabalho, razo de um dia de pena por trs dias de trabalho do preso. A legislao brasileira determina que ningum pode permanecer preso por mais de trinta anos, mas ainda h controvrsias a respeito das regras para progresso de regime e livramento condicional no caso de penas superiores a trinta anos.

    A Lei de Execuo Penal, que regulamenta o cumprimento das penas privativas de liberdade, especifica o princpio constitucional de individualizao da pena, ao determinar tanto que cabe Comisso Tcnica de Classificao elaborar o programa individualizador da pena, como que devem ser separados nos estabelecimentos penais os presos provisrios dos condenados, e os primrios dos reincidentes.

    de fundamental importncia ressaltar que a funo da pena no Brasil, de acordo com a legislao em vigor, a reinsero social do condenado. A exposio de motivos da nova parte geral do Cdigo Penal, reformulada em 1984, explicita e defende este princpio, que deve permear a atuao de todos os integrantes do sistema de execuo penal.

    Nossa legislao estabelece que so penalmente inimputveis os menores de dezoito anos, os doentes mentais e os ndios ditos no-aculturados. No caso dos menores de dezoito anos, o Estatuto da Criana e do Adolescente (Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990) disciplina as chamadas medidas socioeducativas no caso de ato infracional (ver box ao final desta seo); e no caso dos ndios no-aculturados, o regime penal deve ser de semiliberdade, sob controle da Fundao Nacional do ndio (Funai). Os doentes mentais que cometerem infraes devero cumprir medida de segurana em hospitais de custdia e tratamento psiquitrico. Isto se aplica no caso de infratores com doena ou deficincia mental no ato da infrao e para presos com doena mental adquirida durante o cumprimento da pena. Para readquirir liberdade, preciso exame psiquitrico especfico, sendo a sano de tempo indeterminado, pois somente aplicada se constatada periculosidade.

    Alm das penas privativas de liberdade, existem as penas restritivas de direitos, tambm chamadas penas alternativas, e as penas de multa. As penas restritivas de direito podem ser: prestao pecuniria, perda de bens e valores, prestao de servios comunidade, interdio temporria de direitos e limitao de fim de semana. Estas penas so imputadas pelo juiz da execuo, aps converso da pena de priso se esta for inferior a quatro anos e se o crime no tiver sido cometido com violncia ou grave

    28. Cf. .

  • 22 texto para discusso | 1330 | mar. 2008 ipea

    ameaa contra pessoa, e quando, qualquer que seja a pena, se tratar de crime culposo. O condenado no pode ser reincidente em crime doloso apenas excepcionalmente e o juiz deve verificar se a substituio da pena de priso por uma pena restritiva de direitos suficiente para a reprovao do crime cometido.

    Dessa forma, a pena de priso de at um ano pode ser substituda por pena restritiva de direitos ou multa, e a pena de priso de um a quatro anos pode ser convertida em pena restritiva de direitos e multa ou em duas penas restritivas de direitos. Caso o condenado no cumpra as medidas impostas, a pena converte-se em privativa de liberdade.

    No caso de todas as infraes penais de menor potencial ofensivo (contravenes penais e crimes cujas penas no ultrapassem dois anos de privao de liberdade), admite-se a transao penal, isto , se o acusado aceitar a pena restritiva de direitos ou de multa sem a instaurao do processo e o julgamento da causa, no perde a primariedade e o caso se extingue no Juizado Especial Criminal.

    A execuo penal fica predominantemente a cargo dos estados, que organizam o sistema penitencirio de acordo com as leis nacionais e locais em vigor. No mbito do governo federal, alm dos rgos do Poder Judicirio, existem os rgos do Poder Executivo encarregados de definir a poltica penitenciria e fiscalizar sua aplicao nos estados. A seguir, sero tratados os dois nveis de governo separadamente.

    2.3.1 rgos federais do sistema penal

    Ligados ao Ministrio da Justia, os principais rgos do sistema penal na esfera federal, com finalidades definidas inclusive na Lei de Execuo Penal, so o Conselho Nacional de Poltica Criminal e Penitenciria (CNPCP) e o Departamento Penitencirio Nacional (Depen). Somam-se a estes o Ministrio Pblico Federal, os presdios federais e os rgos da Justia federal envolvidos na execuo penal.

    O CNPCP foi instalado em 1980 e composto por treze membros designados pelo ministro da Justia entre professores e profissionais da rea de execuo penal, bem como por representantes da comunidade e de ministrios da rea social. O mandato de seus integrantes de dois anos, o colegiado se rene ordinariamente uma vez por ms, e vem atuando especialmente mediante a publicao de resolues e de pareceres.

    Tal conselho tem como competncias, entre outras:

    1) Propor diretrizes da poltica criminal quanto preveno do crime, administrao da Justia criminal e execuo das penas e medidas de segurana;

    2) Promover a avaliao peridica do sistema criminal, assim como estimular e promover a pesquisa criminolgica;

    3) Elaborar programa nacional de formao e aperfeioamento do servidor penitencirio;

    4) Estabelecer regras sobre a construo e reforma de estabelecimentos penais;

    5) Inspecionar e fiscalizar os estabelecimentos penais e informar-se acerca do desenvolvimento da execuo penal nos estados;

  • ipea texto para discusso | 1330 | mar. 2008 23

    6) Representar ao juiz da execuo ou autoridade administrativa para instaurao de sindicncia ou procedimento administrativo em caso de violao das normas de execuo penal;

    7) Representar autoridade competente para a interdio de estabelecimento penal;

    8) Opinar sobre matria penal, processual penal e execuo penal submetida sua apreciao; e

    9) Estabelecer os critrios e prioridades para aplicao dos recursos do Fundo Penitencirio Nacional (Funpen Decreto no 5.834, de 6 de julho de 2006).

    O Departamento Penitencirio Nacional, tambm vinculado ao Ministrio da Justia, o rgo executivo da poltica penitenciria nacional. Deve zelar pela aplicao da legislao penal e das diretrizes emanadas do Conselho Nacional de Poltica Criminal e Penitenciria, o qual apia administrativa e financeiramente. Tem como principais competncias:

    1) Planejar e coordenar a poltica penitenciria nacional;

    2) Inspecionar e fiscalizar periodicamente os estabelecimentos e servios penais;

    3) Assistir tecnicamente s Unidades federativas na implementao dos princpios e regras da execuo penal;

    4) Colaborar com as Unidades federativas, mediante convnios, na implantao de estabelecimentos e servios penais e gerir os recursos do Funpen;

    5) Colaborar com as Unidades federativas na realizao de cursos de formao de pessoal penitencirio e de ensino profissionalizante do condenado e do internado; e

    6) Coordenar e supervisionar os estabelecimentos penais federais.

    Os estabelecimentos penitencirios federais j estavam previstos na Lei de Execuo Penal, de 1984, para recolher condenados em local distante da condenao caso isto seja necessrio para a segurana pblica e a segurana do prprio condenado. Atualmente, dois presdios federais encontram-se em funcionamento um localizado em Catanduvas (PR) e outro em Campo Grande (MS) , e outras trs unidades encontram-se em processo de construo. Os presdios federais so de segurana mxima e possuem, cada um, 208 celas padronizadas. Os presos ocupam celas individuais, sendo a segurana monitorada por equipamentos de alta tecnologia. Os presdios vm recebendo presos considerados de alta periculosidade e ligados ao crime organizado e ao trfico de drogas, alm de presos que se encontrem em regime disciplinar diferenciado. O Conselho da Justia Federal (CJF) determinou que os detentos s podem permanecer nestes presdios pelo prazo mximo de um ano, que pode ser prorrogado se solicitado pelo juiz federal encarregado da execuo.

    No caso dos presdios federais, resoluo do CJF estabeleceu regras para a atuao dos juzes federais na execuo penal. O Tribunal Regional Federal de cada regio deve designar o juzo competente para a execuo penal nas unidades.

    A atuao do Ministrio Pblico Federal (MPF) na execuo penal se assemelha dos Ministrios Pblicos Estaduais, sendo que, no caso do MPF, a atuao se refere aos crimes contra a Unio, a administrao pblica, aos chamados crimes federais, e em relao aos presos nas penitencirias federais.

  • 24 texto para discusso | 1330 | mar. 2008 ipea

    2.3.2 rgos estaduais do sistema penal

    Conforme determina a Lei de Execuo Penal (LEP), so rgos da execuo penal nos estados: o Juzo da Execuo, o Ministrio Pblico, o Conselho Penitencirio, o Conselho da Comunidade, o Patronato e os departamentos penitencirios locais.

    Cada Unidade da Federao possui uma legislao especfica para a organizao judiciria. nestas normas que se explicitam as varas existentes em cada comarca e suas atribuies. Normalmente, nas comarcas maiores existem varas criminais e vara de execuo penal. O juiz da vara de execuo penal o responsvel por todas as determinaes e acompanhamento relativos ao cumprimento da pena pelo condenado, tomando decises referentes a: progresso e regresso de regimes, soma ou unificao de penas, remio, livramento condicional, sadas temporrias, revogao de medidas de segurana, converso da pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos, inspeo peridica dos estabelecimentos penais, entre outras competncias delineadas na LEP. No caso de no haver vara especfica de execuo penal, a lei de organizao judiciria indica o juiz incumbido destas competncias.

    A atuao do Ministrio Pblico (MP) no que tange execuo penal est delineada na mesma lei. Seu papel fiscalizar a execuo da pena e da medida de segurana, zelando pela regularidade dos procedimentos e correta aplicao da medida de segurana e da pena. Entre outras competncias, cabe ao MP requerer a converso de penas, a progresso ou regresso de regimes, e a revogao da medida de segurana. O MP deve fiscalizar mensalmente os estabelecimentos penais e pode interpor recursos de decises proferidas pela autoridade judiciria.

    O Conselho Penitencirio rgo consultivo deve emitir pareceres sobre pedidos de indulto e de livramento condicional e fiscalizador da execuo da pena deve inspecionar os estabelecimentos penais e supervisionar os patronatos e a assistncia aos egressos. Integrado por membros nomeados pelo governador de estado, entre professores e profissionais da rea e representantes da comunidade, sua funo primeira est relacionada ao livramento condicional, sobre o qual no apenas deve obrigatoriamente emitir parecer indispensvel para a deciso do juiz , como pode protocolar diretamente o pedido. O Conselho Penitencirio de cada estado encaminha anualmente relatrio ao Conselho Nacional de Poltica Criminal e Penitenciria. Os conselhos penitencirios, criados originalmente em 1924, esto hoje presentes em todas as Unidades da Federao.

    O patronato a instituio encarregada dos programas de assistncia aos egressos e tambm aos albergados. De acordo com a LEP, pode ter carter pblico ou privado, e tem tambm como atribuies orientar os condenados a penas alternativas, fiscalizar as penas de prestao de servios comunidade e de limitao de fim de semana, bem como colaborar na fiscalizao do cumprimento das condies da suspenso e do livramento condicional. Na maior parte dos estados, o patronato insere-se no sistema de execuo penal, enquanto rgo ligado ao Poder Executivo estadual. Mas sua presena ainda muito limitada: segundo apurao do Departamento Penitencirio Nacional (Depen), somente quatro estados possuem patronatos atualmente.29

    A LEP prev, ainda, como um dos rgos da execuo penal, o Conselho da Comunidade, que deve existir em cada comarca e ser composto por representantes da sociedade civil. Incumbe ao Conselho visitar pelo menos mensalmente os estabele-

    29. Cf. Ministrio da Justia, 2007a.

  • ipea texto para discusso | 1330 | mar. 2008 25

    cimentos penais existentes na comarca, entrevistar os presos, apresentar relatrios ao Conselho Penitencirio e ao juiz da execuo, e providenciar a obteno de recursos materiais e humanos para melhor assistncia ao preso.

    Alguns estados possuem ainda rgos ligados ao Poder Executivo encarregados da administrao penitenciria, como o caso das Secretarias de Estado do Rio de Janeiro, So Paulo e Paraba.

    No caso dos estabelecimentos penais administrados pelos estados, tm-se os seguintes tipos:

    1) Penitencirias estaduais, destinadas pena de recluso em regime fechado;

    2) Colnias agrcolas, industriais ou similares, destinadas ao cumprimento da pena em regime semi-aberto;

    3) Casas do albergado, para os condenados em regime aberto e com pena de limitao de fim de semana;

    4) Centros de observao, onde so realizados exames gerais;

    5) Cadeias pblicas, para o recolhimento de presos provisrios a LEP determina que cada comarca tenha pelo menos uma; e

    Hospitais de custdia, destinados aos sentenciados para cumprir medida de segurana.

    Medidas socioeducativas para crianas e adolescentes

    A Constituio Federal garante que crianas e adolescentes com menos de dezoito anos de idade so penalmente inimputveis (art. 228). Diante disso, em caso de cometerem infrao crime ou contraveno penal , devem se adequar s normas estabelecidas pelo Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990). O ECA estabelece que ao ato infracional cometido por criana com at 12 anos de idade correspondem medidas de proteo como tratamento mdico, psicolgico ou psiquitrico, incluso em programa de auxlio famlia, tratamento a alcolatras ou toxicmanos, matrcula e freqncia obrigatrias em escola, entre outras.

    No caso de ato infracional praticado por adolescente com idade entre doze e dezoito anos podem ser adotadas, alm das supracitadas, as seguintes medidas, de acordo tanto com as circunstncias e a gravidade do ato como com as capacidades do adolescente: i) advertncia; ii) obrigao de reparar o dano; iii) prestao de servios comunidade; iv) liberdade assistida; v) insero em regime de semiliberdade; e vi) internao em estabelecimento educacional. A internao medida excepcional, no pode ultrapassar trs anos, e deve ser aplicada somente no caso de ato infracional cometido mediante grave ameaa ou violncia a pessoa, por reiterao no cometimento de outras infraes graves e/ou por descumprimento reiterado e injustificvel de medida imposta anteriormente. O adolescente deve ser recolhido em estabelecimento especfico para esse fim, que deve contar com atividades pedaggicas, educacionais e profissionalizantes.

  • 26 texto para discusso | 1330 | mar. 2008 ipea

    3 UM DIAGNSTICO DO SISTEMA DE JUSTIA CRIMINAL NO BRASIL

    Nesta seo, a proposta realizar um diagnstico da atuao do sistema de justia criminal sob dois parmetros: o respeito ao Estado de Direito e a capacidade de prevenir crimes.

    3.1 O ESTADO DE DIREITO E O SISTEMA DE JUSTIA CRIMINAL NO BRASIL

    Para verificar o respeito ao Estado Democrtico de Direito no Brasil pelos rgos do sistema de justia criminal importante, primeiramente, debruar-se sobre os fundamentos bsicos para o sistema. Na Constituio Federal est estabelecida uma srie de direitos individuais e limites para o funcionamento do sistema de justia criminal. So eles, entre outros:

    1) Direitos individuais e limites gerais: todos so iguais perante a lei; so inviolveis os direitos vida, liberdade, igualdade, segurana e propriedade; proibida a tortura e o tratamento desumano ou degradante; so inviolveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas; toda leso ou ameaa de direito sempre pode ser apreciada pelo Poder Judicirio; proibido juzo ou tribunal de exceo; crimes e penas devem ser estabelecidos em lei e s sero reprimidos a partir dela; o preso ser informado de seus direitos; aos presos deve ser assegurada a integridade fsica e moral; ningum ser privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; habeas corpus; as crianas e adolescentes so inimputveis e esto sujeitos legislao especial;

    2) Direitos individuais e limites para ao e abordagem policial: a casa asilo inviolvel do indivduo; ningum ser preso seno em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciria competente; a priso de qualquer pessoa e o local onde se encontre sero comunicados imediatamente ao juiz competente e famlia do preso;

    3) Direitos individuais e limites no processo penal: nenhuma pena passar da pessoa do condenado; a lei regular a individualizao da pena; no haver penas de morte, de carter perptuo, de trabalhos forados, de banimento e cruis; nenhum brasileiro ser extraditado; ningum ser processado nem sentenciado seno pela autoridade competente; aos litigantes e aos acusados em geral so assegurados o contraditrio e ampla defesa; ningum ser considerado culpado at o trnsito em julgado de sentena penal condenatria; so inadmissveis, no processo, as provas obtidas por meios ilcitos; o Estado prestar assistncia jurdica integral e gratuita aos que comprovarem insuficincia de recursos; e

    4) Direitos individuais e limites para o sistema penal: a pena ser cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado; s presidirias sero asseguradas condies para que possam permanecer com seus filhos durante o perodo de amamentao.

  • ipea texto para discusso | 1330 | mar. 2008 27

    No Brasil, em complemento norma constitucional, est em vigor um conjunto de atos multilaterais que estabelecem direitos individuais, limites e diretrizes para a atuao do Estado e do sistema de justia criminal:

    1) A Declarao Universal dos Direitos Humanos; o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Polticos;

    2) O Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Polticos;

    3) A Conveno Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de So Jos da Costa Rica);

    4) A Conveno sobre os Direitos da Criana;

    5) A Conveno contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruis, Desumanos ou Degradantes;

    6) O Protocolo Facultativo Conveno contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruis, Desumanas ou Degradantes;

    7) O Protocolo Adicional Conveno Americana sobre os Direitos Humanos Relativo Abolio da Pena de Morte; e

    8) A Conveno Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura.30

    Alm deles, o Cdigo Penal, o Cdigo de Processo Penal e a Lei de Execuo Penal, entre outras leis, estabelecem os parmetros e as bases para o funcionamento do sistema de justia criminal, conforme descrito na seo anterior.

    H uma vasta bibliografia no Brasil que trata do desrespeito pelo Estado Brasileiro aos direitos individuais bsicos na atuao do sistema de justia criminal. Recentemente foram publicados quatro documentos que renem uma extensa lista de casos de violaes aos direitos humanos cometidos por agentes dos rgos pertencentes aos sistemas de justia criminal: i) U.S. State Department, 2007; ii) Nev, 2007; iii) Amnesty International, 2007; iv) Human Rights Watch, 2007. Nestes documentos so citados casos recentes de violncia policial e de pssimas condies de custdia em presdios. Alm de casos narrados, h crticas quanto no-punio de responsveis. Logo a seguir, sero tratados separadamente alguns problemas relativos violncia policial, ao acesso defensoria pblica e situao das prises, enquanto indicadores do respeito ao Estado de Direito.

    3.1.1 Violncia policial

    H uma ampla gama de direitos e de proibies que podem ser violados na ao policial. Partindo apenas dos direitos civis assegurados na CF, os suspeitos, os indiciados ou uma pessoa qualquer podem ser alvos de vrios tipos de excessos passveis de serem cometidos por agentes policiais e que violem sua integridade fsica e moral: tortura, violao da imagem, abertura de correspondncia e grampo telefnico sem autorizao judicial, desrespeito inviolabilidade do domiclio, deteno de civis sem mandado judicial ou flagrante delito, a demora na comunicao de prises ao juiz e familiares, no informao ao detido sobre seus direitos, vedao assistncia da famlia e de advogados ao detido etc. Tais violaes

    30. Cf. Ministrio das Relaes Exteriores (2007).

  • 28 texto para discusso | 1330 | mar. 2008 ipea

    so classificadas por Costa (2004) em sete tipos de violncia policial: abuso da fora letal, tortura, detenes violentas, mortes sob custdia, controle violento de manifestaes pblicas, intimidao e vingana.

    Dispem-se de poucos dados sobre violncia policial. No h pesquisas de vitimizao nacionais que tenham dimensionado o fenmeno. Nas corregedorias de polcia (militares, civis, rodoviria federal e federal) so registrados casos de violaes cometidas por policiais, mas no h uma sistemtica de coleta, anlise e divulgao destas informaes. Algumas ouvidorias de polcia estaduais e secretarias de segurana pblica divulgam nmeros, e organizaes da sociedade civil, como SOS Tortura e Comisso Teotnio Vilela, acompanham denncias e colaboram na produo de relatrios, como o j citado do Ncleo de Estudos da Violncia da USP, alm daqueles produzidos por relatores especiais da ONU (UNITED NATIONS, 2004).

    Num dos poucos estados com informaes facilmente acessveis, So Paulo, registram-se fortes indcios de um constante abuso da fora letal. Neste estado, no perodo 1996-2006, morreram 5.447 pessoas em conflito com a polcia estando os policiais em servio ou em folga , isto , uma mdia de 495 pessoas mortas por ano (GOVERNO DO ESTADO DE SO PAULO, 2007a) (tabela 5, anexo 1). Alm disso, morreram 503 policiais em servio. Assim, somente as mortes envolvendo policiais (em servio ou no) e no policiais respondem por aproximadamente 4% das mortes por agresso31 no perodo 1996-2005. Neste caso, no fica configurado que as mortes de pessoas em conflito com policiais ocorreram de forma ilegal. No entanto, mesmo que houvesse a certeza de que todos os casos atendem aos requisitos da legtima defesa, surge o questionamento sobre se a operao policial respondeu da melhor maneira possvel ao incidente que a provocou, ou seja, procurando preservar a integridade fsica de suspeitos, policiais e demais cidados, e respeitando os princpios do uso da fora: necessidade, legalidade e proporcionalidade (COMIT INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA, 2005). Os indcios de abusos aumentam quando se consideram os registros de denncias recolhidas pela Ouvidoria de Polcia do estado. O Relatrio Anual de Prestao de Contas da Ouvidoria de Polcia do Estado de So Paulo de 2006 aponta que foram recebidas 3.809 denncias de homicdios que teriam sido cometidos por policiais de 1995 a 2006 (GOVERNO DO ESTADO DE SO PAULO, 2007b) (quadro 3, anexo 1). No estado do Rio de Janeiro, a situao tambm grave: apenas entre janeiro e junho de 2007, foram registrados 652 autos de resistncia (INSTITUTO DE SEGURANA PBLICA, 2007) (tabela 5, anexo 1), que so, na realidade, mortes de civis em intervenes policiais (CANO, 2006).

    Um fato que chamou grande ateno da opinio pblica em 2006 foram as mortes ocorridas no perodo dos ataques atribudos ao Primeiro Comando Capital em So Paulo. Segundo notcia da Ouvidoria de Polcia do Estado de So Paulo, houve 87 vtimas em 52 casos de execuo sumria no perodo de 12 a 21 de maio daquele ano. Em onze casos, segundo a ouvidoria, h suspeitas de participao de policiais (GOVERNO DO ESTADO DE SO PAULO, 2007c).

    31. Essa porcentagem o resultado da diviso do nmero de mortes de policiais e suspeitos (5.419 pessoas; dados da Secretaria de Segurana Pblica do Estado de So Paulo) pelo total de bitos por agresso e interveno legal (134.750; dados do Ministrio da Sade, 2007a). O ano de 2006 no foi considerado para este clculo, pois os dados de mortalidade do Ministrio da Sade ainda no esto disponveis.

  • ipea texto para discusso | 1330 | mar. 2008 29

    Alm dos homicdios j citados, a Ouvidoria de Polcia recebeu, de 1995 a 2006, denncias de: abuso de autoridade sem classificao especfica (2.159 casos); agresso (468); constrangimento ilegal (431); invaso de domiclio (136); priso (69); ameaa (1.518); tortura (834); agresso (799); leso corporal (444); tentativa de homicdio (274); maus tratos (177); abordagem com excesso (124); maus tratos a presos (32); superlotao carcerria (26); entre outras (GOVERNO DO ESTADO DE SO PAULO, 2007b) (quadro 3, anexo 1).

    A Ouvidoria de Polcia de So Paulo apresenta tambm nmeros sobre os resultados dessas denncias. De 1998 a 2006, de um total de 22.279 denncias contra policiais, houve os seguintes encerramentos (GOVERNO DO ESTADO DE SO PAULO, 2007d):

    1) 11.398 denncias no confirmadas (51,16%);

    2) 3.992 denncias procedentes (17,92%);

    3) 2.450 denncias no apuradas (11,00%);

    4) 1.848 denncias improcedentes (8,29%);

    5) 1.208 denncias parcialmente procedentes (5,42%);

    6) 280 denncias no encaminhadas para nenhum rgo (1,26%);

    7) 84 denncias retiradas a pedido do denunciante (0,38%);

    8) 68 denncias encaminhadas a outros rgos (0,31%); e

    9) 951 com outros encaminhamentos (4,27%).

    Aqui o maior problema so as denncias que nem sequer foram apuradas. Outra informao que, de um total de 23.549 policiais denunciados ouvidoria, 8.001 foram investigados e 4.923 punidos (GOVERNO DO ESTADO DE SO PAULO, 2007e). Infelizmente, no h informaes mais detalhadas sobre as punies e os tipos de casos mais punidos.

    Alguns operadores do direito tambm apontam violaes em aes ordinrias das polcias. Em artigo datado de julho de 2005, o juiz de Direito Srgio Ricardo de Souza critica a falta de proteo imagem, ao nome e honra de suspeitos e indiciados em operaes realizadas pela Polcia Federal. Segundo ele,

    (...) no h qualquer lei que autorize a autoridade policial a submeter o suspeito ou mesmo o

    indiciado (investigado) ao constrangimento de ser filmado ou fotografado pelos profissionais

    ligados aos meios de comunicao jornalstica e, acha-se patente que esse investigado no perde a

    sua condio de ser humano e a proteo constitucional a sua honra e imagem (CF, art. 5o,

    incisos V e X). Logo, quando a autoridade que mantm a custdia dele vem a submet-lo a tal

    constrangimento, age com manifesto abuso de autoridade e em afronta lei respectiva (...)

    (SOUZA, 2005, p. 2).

    Outro abuso de autoridade criticado a utilizao banal do baculejo ou revista policial. Segundo artigo de Edison Miguel da Silva Jnior, procurador de Justia em Gois, a revista policial s seria legal se h fundada suspeita de que a pessoa oculte consigo objeto fruto de crime, de porte proibido ou de interesse probatrio. Nessa perspectiva, as blitz policiais com revistas aleatrias seriam ilegais (Silva Jnior, 2005).

  • 30 texto para discusso | 1330 | mar. 2008 ipea

    3.1.2 Acesso Defensoria Pblica

    Tambm considerando os parmetros constitucionais, os cidados podem ser vtimas diante do Judicirio, entre outras, nas seguintes situaes: no poder submeter apreciao do Judicirio leso ou ameaa de direito; no ter habeas corpus quando se achar ameaado de sofrer violncia ou coao em sua liberdade de locomoo, por ilegalidade ou abuso de poder; no ter acesso a contraditrio e ampla defesa; ter provas contra si que foram obtidas por meios ilcitos; no ter recursos para custear um advogado e no dispor de assistncia jurdica integral e gratuita.

    No entanto, a avaliao da atuao da Justia criminal tambm prejudicada pela falta de informaes. Faltam pesquisas que verifiquem a qualidade do acesso justia criminal ou que identifiquem violaes de direitos que possam estar sendo cometidas nesse atendimento. No h informaes, por exemplo, sobre uso de provas ilcitas ou sobre a utilizao de elementos produzidos no inqurito policial como provas, sem que tenham passado por contraditrio. Sem tal transparncia o controle social fica muito prejudicado.

    Um dos poucos direitos sobre os quais h informaes de acesso em relao assistncia jurdica, mesmo que s em relao s Defensorias Pblicas, rgos responsveis pela prestao de assistncia jurdica integral e gratuita. Pesquisa realizada sobre a Defensoria Pblica no Brasil (MINISTRIO DA JUSTIA, 2006a) mostra que cerca de 20% dos atendimentos realizados pelas defensorias so relativos rea criminal, o que em 2005 corresponderia a um total aproximado de 1 milho e 300 mil atendimentos. As Defensorias Pblicas, em 2005, tambm propuseram 275.422 aes criminais sem contar Cear, Distrito Federal e a Defensoria Pblica da Unio. Segundo o estudo, no entanto, nem todas as comarcas tm acesso aos servios de defensoria. Entre os estados pesquisados que possuem defensoria pblica, o grau de cobertura de apenas 37,7% das comarcas existentes (tabela 6, anexo 1). Alm disso, em apenas seis Unidades da Federao todas as comarcas so atendidas (AC, AP, DF, MS, PB e RR). A situao ainda agravada pelo fato de a Defensoria Pblica da Unio (DPU) estar presente em apenas 17,7% das comarcas.

    A pesquisa revelou tambm outras informaes da capacidade de atendimento atual das defensorias:

    1) Presena nas varas de execuo penal: nos estados em que foi implantada, a Defensoria Pblica est presente nas varas de execuo penal, exceo do Par;

    2) Plantes regulares em delegacias de polcia: existente em apenas sete estados (AM, AP, CE, MS, PA, PI e RS). A DPU no realiza tais plantes;

    3) Plantes regulares em unidades prisionais: constitudo em dezesseis Unidades da Federao (AL, BA, CE, DF, ES, MS, MT, PA, PB, PE, PI, RJ, RO, RR, RS e SP). A DPU no realiza tais plantes;

    4) Plantes regulares em unidades de internao de adolescentes: constitudo em quatoze Unidades da Federao (AL, AP, BA, DF, ES, MS, PA, PB, PE, PI, RJ, RO, RR e RS). A DPU no realiza tais plantes; e

    5) Ncleos especializados no atendimento ao sistema prisional: existentes em quatro estados (AC, CE, RJ e SP).

  • ipea texto para discusso | 1330 | mar. 2008 31

    3.1.3 A situao nas prises

    Para a avaliao do sistema de execuo penal em relao ao respeito aos direitos civis previstos na Constituio Federal, possvel prever os seguintes tipos de violaes dentro de estabelecimentos penais: tortura; tratamento desumano ou degradante; violao de correspondncia; excluso de apreciao do Poder Judicirio de leso ou ameaa de direito; restries assistncia da famlia; ausncia de assistncia legal; violao da integridade fsica e moral; no separao de estabelecimentos penais segundo delito, idade e sexo; presidirias cujos filhos no permaneam consigo em perodo de amamentao, entre outros.

    A Lei de Execuo Penal prev ainda os seguintes direitos: alimentao suficiente e vesturio; atribuio de trabalho e sua remunerao; previdncia social; constituio de peclio; proporcionalidade na distribuio do tempo para o trabalho, o descanso e a recreao; exerccio das atividades profissionais, intelectuais, artsticas e desportivas, desde que compatveis com a execuo da pena; assistncia material sade, jurdica, educacional, social e religiosa; proteo contra qualquer forma de sensacionalismo; entrevista pessoal e reservada com o advogado; visita do cnjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados; chamamento nominal; igualdade de tratamento salvo quanto s exigncias da individualizao da pena; audincia especial com o diretor do estabelecimento; representao e petio a qualquer autoridade, em defesa de direito; contato com o mundo exterior por meio de correspondncia escrita, da leitura e de outros meios de informao que no comprometam a moral e os bons costumes; atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena de responsabilizao da autoridade judiciria competente.

    Apesar da escassez de informaes, possvel se formar um retrato da situao. Em termos de separao por idade e sexo, poucos so os estados que possuem estabelecimentos separados para o sexo feminino. Somente quatorze contam com penitencirias, dois possuem colnia agrcola, industrial ou similar, trs possuem casa do albergado, e nenhum possui cadeia pblica ou hospital de custdia e tratamento psiquitrico para mulheres. Por fim, estabelecimentos para presos maiores de 60 anos, conforme estabelecido pela Lei no 9.460/97, so inexistentes. Com isso, o tratamento diferenciado a estes grupos fica comprometido.

    QUADRO 4

    A existncia de estabelecimentos penais nas Unidades da Federao 2006 Estabelecimentos penais Total Masculino Feminino Ambos

    Penitenciria 26 20 14 18 Presdio 14 9 4 11 Cadeia pblica 15 14 0 12 Casa do albergado 16 6 3 12 Colnia agrcola, industrial ou similar 19 8 2 12 Hospital de custdia e tratamento 17 3 0 17

    Fonte: Elaborao dos autores a partir de dados de MJ/Depen (Ministrio da Justia, 2007a).

    Os estabelecimentos existentes tambm apresentam dficit de vagas. Segundo dados do Ministrio da Justia (2007b), no sistema penitencirio havia, em junho de 2007, 105.075 condenados submetidos a medidas de segurana, e presos provisrios alm da capacidade do sistema, que de 233.907 (tabelas 7 e 8 no anexo 1). Este nmero j maior que o dficit encontrado em junho de 2003 (LEMGRUBER, 2004): 104.363 vagas. Alm disso, indevidamente, h 58.721 presos sob responsabilidade da Polcia Civil. Assim, o sistema precisaria ampliar em 70% o nmero de vagas para zerar o dficit.

  • 32 texto para discusso | 1330 | mar. 2008 ipea

    A consolidao dos relatrios com informaes estatsticas do sistema prisional das Unidades da Federao permite notar a situao de mais alguns quesitos para sua avaliao, tendo como ms de referncia dezembro de 2006 (MINISTRIO DA JUSTIA, 2007c). No caso da sade do preso, existiam 3,7 leitos ambulatoriais por estabelecimento penal, pois 921 estabelecimentos informaram que contavam com 3.417 leitos. Em termos do respeito ao direito vida, a situao preocupante. Em dezembro de 2006, faleceram dezesseis pessoas por motivo criminal (em 921 estabelecimentos penais) (tabela 9 no anexo 1). Estas mortes que ocorrem sob a custdia do Estado, alm de constiturem uma marca clara de sua incapacidade para fazer cumprir a lei, indicam um clima de insegurana nos estabelecimentos que em nada colabora para o objetivo de tratamento dos internos..39/

    Uma pesquisa nacional realizada em 2003 (MINISTRIO DA JUSTIA/ FIRJAN/SESI/PNUD, 2004, p. 310) identificou outros problemas poca:

    1) 36% dos presos em delegacias eram condenados, contrariando as normas legais (tabela 10, anexo 1);

    2) 4.355 condenados a regimes semi-aberto e aberto cumpriam pena em delegacias policiais, sem poder usufruir de benefcios como trabalho externo e visita ao lar (tabela 11, anexo 1);

    3) apenas 70,6% dos presos recebiam visitas (tabela 12, anexo 1); aproximadamente 48% dos sistemas penitencirios estaduais no dispunham de creches para os filhos pequenos de mulheres presas.

    A execuo penal sofre ainda suspeita de violar as previses constitucionais por meio de um instituto relativamente recente: o regime disciplinar diferenciado (Lei no 10.792/03). As concluses de parecer do Conselho Nacional de Poltica Criminal e Penitenciria do Ministrio da Justia apontam que:

    Diante do quadro examinado, do confronto das regras institudas pela Lei no 10.792/03

    atinentes ao Regime Disciplinar Diferenciado, com aquelas da Constituio Federal, dos

    Trata