INTRODUÇÃO Só quem sonha acordado vê o sol nascer ......Só quem sonha acordado vê o sol nascer...

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11 INTRODUÇÃO Só quem sonha acordado vê o sol nascer Ainda menina, o desejo de ser professora misturava-se com as brincadeiras diárias. “Coitadas” das minhas bonecas. Tinham que ficar todas sentadas, uma do lado da outra, e me “ouvirem” por horas e horas. Foram elas as minhas primeiras alunas! Era com elas que eu “discutia”, que “problematizava” tudo que uma criança consegue formular sobre o mundo e o conhecimento. As pinturas, as brincadeiras, as histórias, as leituras e as produções de texto sempre me encantaram muito. A escola era o lugar onde eu queria estar, pois nela eu vivenciava tudo isso. Já na adolescência, o desejo de ensinar me fez querer sujeitos que dialogassem comigo; as minhas bonecas haviam ficado para trás. Nessa época me tornei catequista da Igreja do Sagrado Coração de Jesus da cidade onde nasci e morava – Itaúna/MG. O meu contato com o ato de ensinar tornou-se, neste momento, um pouco mais concreto, rico e instigante. Passaram-se cinco anos e o diálogo com o ensino foi crescendo através da catequese. Entrei para o Ensino Médio. Era hora de fazer escolhas, precisava decidir se me enveredava de vez na docência. Tinha que optar entre o Curso Técnico Magistério e o Científico. Na dúvida, optei pelos dois: cursava Magistério pela manhã, em um bairro muito distante de onde morava. Durante a noite, cursava o Científico. Os dois anos no Magistério fizeram-me vivenciar situações realmente concretas de docência, tanto nos trabalhos apresentados em sala de aula quanto em escolas onde realizava atividades de estágio. Lembro-me de que, já nesse período, destacava-me muito em todas as atividades, o que criava um alento e alimentava o meu desejo de ir cada vez mais longe. Mas, já bem próximo do final do curso, tive a convicção de que não seria a docência minha escolha profissional. Falava disso muitas vezes e uma professora, chamada Cleonice, duvidava da minha fala e dizia que teria notícias minhas na docência. Cleonice não estava errada. Realmente não foi possível me “livrar” dela, ela estava em mim, misturava-se com a minha pele. Na verdade, era a minha própria pele. E assim, inevitavelmente, optei pelo curso de Pedagogia. Uma vez na faculdade, comecei a trabalhar

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    INTRODUÇÃO

    Só quem sonha acordado vê o sol nascer

    Ainda menina, o desejo de ser professora misturava-se com as brincadeiras diárias.

    “Coitadas” das minhas bonecas. Tinham que ficar todas sentadas, uma do lado da outra, e me

    “ouvirem” por horas e horas. Foram elas as minhas primeiras alunas! Era com elas que eu

    “discutia”, que “problematizava” tudo que uma criança consegue formular sobre o mundo e o

    conhecimento.

    As pinturas, as brincadeiras, as histórias, as leituras e as produções de texto sempre me

    encantaram muito. A escola era o lugar onde eu queria estar, pois nela eu vivenciava tudo

    isso.

    Já na adolescência, o desejo de ensinar me fez querer sujeitos que dialogassem

    comigo; as minhas bonecas haviam ficado para trás. Nessa época me tornei catequista da

    Igreja do Sagrado Coração de Jesus da cidade onde nasci e morava – Itaúna/MG. O meu

    contato com o ato de ensinar tornou-se, neste momento, um pouco mais concreto, rico e

    instigante. Passaram-se cinco anos e o diálogo com o ensino foi crescendo através da

    catequese.

    Entrei para o Ensino Médio. Era hora de fazer escolhas, precisava decidir se me

    enveredava de vez na docência. Tinha que optar entre o Curso Técnico Magistério e o

    Científico. Na dúvida, optei pelos dois: cursava Magistério pela manhã, em um bairro muito

    distante de onde morava. Durante a noite, cursava o Científico.

    Os dois anos no Magistério fizeram-me vivenciar situações realmente concretas

    de docência, tanto nos trabalhos apresentados em sala de aula quanto em escolas onde

    realizava atividades de estágio. Lembro-me de que, já nesse período, destacava-me muito em

    todas as atividades, o que criava um alento e alimentava o meu desejo de ir cada vez mais

    longe. Mas, já bem próximo do final do curso, tive a convicção de que não seria a docência

    minha escolha profissional. Falava disso muitas vezes e uma professora, chamada Cleonice,

    duvidava da minha fala e dizia que teria notícias minhas na docência.

    Cleonice não estava errada. Realmente não foi possível me “livrar” dela, ela estava em

    mim, misturava-se com a minha pele. Na verdade, era a minha própria pele. E assim,

    inevitavelmente, optei pelo curso de Pedagogia. Uma vez na faculdade, comecei a trabalhar

  • 12

    como professora. Foi na Educação Infantil que passei os primeiros anos da docência. Depois

    veio o ensino fundamental. E assim, durante todo o período da faculdade, fui estabelecendo

    uma rede de significação que construíram a base da minha identidade profissional.

    Ao término da graduação, participei de vários concursos públicos e consegui

    aprovação em muitos deles. Dentre as várias cidades em cujos concursos fui aprovada, havia

    uma cidade muito próxima de Itaúna e que sempre me encantou muito: Divinópolis. Lá eu

    havia sido aprovada em concurso para o cargo de professora. Assim, mudei-me para lá, deixei

    para trás coisas importantes que me davam segurança, como casa e colo de pais. Mas levei o

    desejo de vencer, as possibilidades de crescer profissionalmente e a vontade de experimentar

    situações novas.

    Já instalada em Divinópolis, realizei o Concurso Municipal para o cargo de

    Supervisora Pedagógica. Fui aprovada e abri uma nova trilha, uma nova possibilidade de

    ensino-aprendizagem. Nesse cargo, tive a oportunidade de contribuir de forma mais

    abrangente com o saber: era possível falar de experiências, de trocas, de limitações, de

    formação, de fazer, de possibilidades. A experiência foi tão positiva que optei por deixar

    definitivamente o trabalho em sala de aula. Dizendo melhor, resolvi que não teria apenas uma,

    mas várias salas de aula. Assumira o cargo de Coordenação Pedagógica, paralelo ao de

    Supervisão. Nessas funções, tive a oportunidade de conhecer várias escolas e,

    conseqüentemente, vários sujeitos do processo de ensino-aprendizagem. Sujeitos esses que

    apresentavam histórias parecidas e diferentes das minhas, que me fizeram reformular o

    conceito e a prática do que vem a ser professora.

    Minha formação continuava durante todo esse percurso. Fiz especialização em

    Docência do Ensino Superior e vários cursos de aperfeiçoamento propostos pela Secretaria

    Municipal e Estadual de Ensino.

    O contato direto com os professores abriu portas para novas maneiras de olhar o

    trabalho docente. E, frente a isso, busquei aquele que seria o caminho natural: o Mestrado.

    Essa seria a oportunidade de aproximar um olhar crítico e investigativo para o trabalho

    docente e a saúde de professores, questão que muito me intrigava.

    A trajetória do mestrado se divide em dois momentos: a entrada no curso de Mestrado

    em Educação, Cultura e Organizações Sociais da Universidade Estadual de Minas Gerais

    (UEMG), campus Divinópolis, e um momento posterior quando migro com a pesquisa para o

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    Mestrado em Educação, na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais

    (UFMG).

    Logo nos primeiros meses de pesquisa, quando fazia levantamento dos dados

    quantitativos, tornei-me estatística da própria análise. Percebi alguns nódulos em meu pescoço

    que foram retirados através de uma cirurgia. Ao fazer análise do material retirado, percebeu-se

    que os nódulos eram malignos e o diagnóstico foi implacável: Câncer na tireóide. O período

    de descoberta desta patologia coincidiu com o processo de seleção para o Mestrado na

    Universidade Federal de Minas Gerais.

    Câncer. Quando era pequena lembro-me de que, quando alguém era diagnosticado

    com tal doença, era proibido falar sequer o nome dela. A primeira sensação que vem na

    cabeça quando se descobre que tem câncer é a proximidade da morte. Mas como poderia

    morrer, se não estava doente? Havia feito uma cirurgia, mas não sentia nenhum mal-estar?

    Continuava executando minhas atividades normalmente...Como poderia morrer? As perguntas

    não paravam de aflorar: “O que vou fazer com o meu trabalho?” “Ficarei incapaz de

    trabalhar?” Penso, hoje, que essas perguntas me causavam mais inquietude que a própria

    doença.

    Neste momento foi que processei, de maneira íntima, todos os diálogos que tive com o

    médico e filósofo George Canguilhem. Ele me ajudou a entender o que eu não conseguia

    digerir com relação à saúde e à doença, estar doente ou estar saudável. E me provou que a

    saúde é o que caracteriza o ser vivo, uma potência vigorosa de se afirmar, viver em liberdade

    todas as possibilidades da vida. Ele me falava de normas, dizia que a vida não existia sem

    elas, mas sussurrava algo que talvez seria a minha grande descoberta pessoal: “as normas não

    são universais e definitivas”. Saudável estaria o vivo quando fosse capaz de instruir novas

    normas de vida. Doente estaria pela incapacidade de ser normativo. Agora ficava tudo mais

    claro, o meu corpo havia reduzido em algum momento da vida sua margem de singularidade e

    tolerância, o que possibilitou a instalação do Câncer no organismo. Em movimento contínuo e

    dinâmico de criação e invenção, meu corpo foi capaz de produzir novas normas, no e com o

    meio. Foi esse referencial de saúde trazido por Canguilhem – que percebe o humano como

    processualidade, vivente dinâmico – que orientou toda minha trajetória desde então.

    Hoje, depois de mais dois anos de diagnóstico da doença e de percurso nessa pesquisa,

    fica a certeza de que a vida renormaliza de forma permanente, a cada atividade, a cada

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    cotidiano trazendo conseqüências, no mínimo, interessantes. Pode, por exemplo, colocar os

    humanos em situações privilegiadas ao negociar espaços coletivos de trabalho, ao desenvolver

    a capacidade de aprender com as experiências, de colocar questões e antecipar os problemas a

    serem resolvidos. Assim, desenvolve nos humanos a possibilidade de serem co-construtores

    de sua própria história.

    Mergulhados nessas idéias é que este projeto se desenvolveu: nas escutas, na

    compreensão, no olhar, nas limitações e nas possibilidades de análise da atividade do trabalho

    docente e sua relação dinâmica com a saúde de professoras do ensino fundamental de

    Divinópolis.

    Uma sistematização dos estudos feitos na UEMG é apresentada em dois capítulos

    organizados na Parte I - Os primeiros focos do olhar. No primeiro capítulo daremos espaço

    privilegiado à caracterização da Rede Municipal de Ensino de Divinópolis, através de uma

    exposição histórica e documental. O segundo capítulo esforça-se em interpretar dados

    quantitativos sobre afastamentos obtidos junto aos órgãos responsáveis da Prefeitura de

    Divinópolis. Na seqüência destes estudos prevíamos a aplicação de um questionário para uma

    abordagem do problema através de pesquisa tipo Survey. Este questionário não chegou a ser

    aplicado nesse momento (anexo 1).

    A Parte II - Outros Olhares reúne os capítulos três, quatro e cinco apresentando os

    rumos da pesquisa a partir do ingresso na UFMG, nestes capítulos expomos o esforço

    desprendido até a chegada ao objeto de pesquisa e os novos rumos teórico-metodológicos, as

    hipóteses levantadas, a chegada na escola, os métodos e procedimentos empregados, a

    atividade e os diálogos estabelecidos com os sujeitos.

    Nesta etapa de nossa investigação, aprofundamos questionamentos sobre o que

    contribui para o adoecimento das professoras de uma Escola pública de Ensino Fundamental

    do município de Divinópolis/MG: O trabalho na escola tem relação com os adoecimentos das

    professoras? Qual a relação das professoras com o seu trabalho? Por que algumas adoecem

    mais que as outras? A quantidade de professoras na escola interfere no adoecimento das

    mesmas? A organização escolar, ciclo ou série teria influência na relação saúde e trabalho? A

    faixa etária dos alunos contribui para o adoecimento das professoras? A margem de

    capacidade de tolerância e singularidade das professoras está reduzida, o que pode levar ao

    adoecimento? O que as professoras fazem no dia-a-dia da escola para renormalizarem as suas

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    atividades? Qual a relação da organização de trabalho das professoras e a saúde das mesmas

    no decorrer do ano letivo?

    Tais interrogações nos levaram a buscar analisar a atividade situada de professoras

    identificando os obstáculos epistemológicos, didáticos, psicológicos, sociais, econômicos,

    culturais, institucionais e formativos presentes em seu trabalho, discutindo o que contribui

    para a produção de sofrimento e adoecimento das mesmas. Para tanto, julgamos pertinente

    estabelecer os seguintes objetivos específicos: compreender as variáveis que envolvem a

    organização do trabalho e a saúde de professoras do Ensino Fundamental público do

    município de Divinópolis-MG (2005/2006); identificar quais os fatores que contribuem ou

    não para inserção saudável das professoras na vida profissional e; identificar e analisar as

    estratégias que as professoras utilizam para se defenderem da nocividade do ambiente de

    trabalho.

    A pesquisa de cunho qualitativo explora a dinâmica saúde/trabalho de professores das

    séries iniciais da Educação Básica em uma escola pública com base nos aportes

    teórico-metodológicos das análises ergonômica e ergológica do trabalho.

    A população estudada foi constituída por professoras que trabalham no ensino

    fundamental da fase inicial ao 3º ano do 1º ciclo, na Escola 15. A mostra foi construída por

    sete professoras, sendo a análise da atividade realizada nos períodos matutino e vespertino. A

    coleta de dados foi realizada no período de fevereiro a dezembro de 2007.

    Utilizou-se a técnica de observação participante com professoras, supervisoras e a

    diretora, objetivando compreender melhor o funcionamento e as características da escola e da

    tarefa prescrita para o professor, espaço físico geral e das salas de aulas, e organização do

    trabalho do professor. Além disso, foram analisados documentos oficiais da escola.

    Após o período de observação, resolvemos reformular e aplicar questionário (anexo 2)

    elaborado na primeira etapa da pesquisa (UEMG) com o objetivo de conhecer as

    características dos professores: sexo, idade, tempo de docência, indicadores de saúde.

    A análise da atividade das professoras foi construída inicialmente através de

    observações globais em sala de aula, com foco na comunicação com os alunos e,

    posteriormente, com as entrevistas semi-estruradas (anexo 3), as quais permitiram saber como

    as professoras compreendem a dinâmica entre o seu trabalho e a saúde. Isso foi feito através

    de gravações e de anotações em diário de campo.

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    Assim sendo, a Parte II da dissertação é composta por três capítulos. O terceiro

    capítulo será de natureza teórica, tendo como objetivo estabelecer as bases conceituais para

    pensar os conceitos de trabalho e saúde, tendo como interlocutores principais Yves Clot,

    Christophe Dejours, François Daniellou, Yves Schwartz e Georgem Canguilhem.

    No quarto capítulo a escola e os sujeitos tomarão conta do cenário. A opção foi pela

    descrição da escola e dos sujeitos. Iniciará a análise dos diálogos da pesquisa, mesclando

    categorias do campo e categorias pertencentes à fundamentação teórica.

    O quinto capítulo problematizará a relação saúde-trabalho docente com base em

    entrevistas e observação da atividade na situação de trabalho, retornando à literatura

    especializada para interrogá-la a partir dos resultados da pesquisa.

    As considerações finais retomam o objeto de pesquisa colocando-o em discussão e

    tecendo uma análise final do estudo feito. O enfoque estará na discussão de tornar o trabalho e

    a saúde possíveis. Algumas recomendações diante dos resultados serão apresentadas. As

    limitações e possibilidades que esses estudos trouxeram também serão traçadas.

    Aspectos Éticos relacionados à Pesquisa

    O presente estudo obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade

    Federal de Minas Gerais, conforme os preceitos da Resolução nº 196/96 do Conselho

    Nacional de Saúde (CNS), que trata de pesquisas com seres humanos.

    Todos os trabalhadores que participaram do estudo receberam um termo de

    consentimento (anexo 4), um informativo dos critérios pré-estabelecidos e, foram esclarecidos

    de que poderiam ausentar-se do grupo em qualquer etapa da investigação, sem sofrer qualquer

    constrangimento.

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    PARTE I

    PRIMEIROS FOCOS DO OLHAR

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    INTRODUÇÃO

    Esta pesquisa buscou inicialmente a reflexão sobre as condições de trabalho e sua

    influência na saúde de educadores de uma rede pública municipal, bem como compreender

    como esses trabalhadores se defendem da nocividade do ambiente de trabalho.

    Esse interesse se originou no meu percurso na educação, como professora e

    coordenadora pedagógica na Prefeitura Municipal de Divinópolis/MG. Na convivência de

    doze anos com a educação, vinha questionando, com certa freqüência, a respeito dos

    sentimentos de prazer e de sofrimento que envolvem o trabalho daqueles que atuam na escola

    como profissionais. Observava uma intensa insatisfação que se manifestava no dia-a-dia

    através das reclamações constantes dos educadores, que apontava não somente para

    precariedade do ensino público, mas também, para uma visível e elevada desqualificação do

    seu trabalho em seus aspectos social, econômico e psicológico, decorrentes de inúmeros

    fatores, tais como: baixos salários, distanciamento entre teoria e prática, desvalorização do

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    trabalho, ausência de ambiente adequado à realização do trabalho, dupla ou tripla jornada de

    trabalho.

    A partir dessas primeiras observações, passei a conversar mais sobre essas situações

    com os colegas de trabalho e também com alguns outros educadores de outras escolas. Foram

    conversas significativas que foram gradativamente clarificando e definindo situações que

    comporiam um campo de questões e se delineavam como objeto de estudo.

    Assim, diante da necessidade de melhor compreender a relação trabalho e saúde de

    educadores, em março de 2005 iniciei o curso de Mestrado em Educação, Cultura e

    Organizações Sociais na UEMG, na cidade de Divinópolis/MG. Neste Mestrado propus

    investigar as causas do adoecimento dos educadores da Rede Municipal de Ensino desta

    mesma cidade. Permaneci no curso por sete meses e neste período foquei o trabalho em

    estudo bibliográfico, em coleta de dados quantitativos junto à Secretaria de Educação, seleção

    de escolas, elaboração de questionário e encaminhamentos de pesquisa como, por exemplo,

    apresentação do projeto de pesquisa em algumas reuniões proporcionadas pela Secretaria

    Municipal de Educação e Associação dos Trabalhadores em Educação do município da

    mesma cidade.

    Nesse contexto, iniciei a investigação, tendo como orientação a seguinte questão: “O

    que vem provocando o adoecimento dos educadores da rede municipal de Divinópolis?”

    Diante desta questão, o objetivo da pesquisa era: desenvolver uma análise que levasse

    à compreensão da dinâmica da relação trabalho-saúde de educadores, tendo como universo os

    educadores do ensino fundamental da rede pública do município de Divinópolis.

    Fez-se necessário coletar dados quantitativos que confirmasse: o número de licenças,

    se aconteciam realmente, em que períodos aconteciam, em que escolas eram mais freqüentes e

    em quais não aconteciam. Traçar um mapa quantitativo das licenças que aconteciam neste

    município era importante para iniciar outros diálogos com o objetivo de pesquisa.

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    CAPÍTULO 1

    A Rede Municipal de Ensino de Divinópolis em foco

    A Rede Municipal de Ensino de Divinópolis é composta por trinta e quatro escolas

    localizadas na zona urbana e três localizadas na zona rural, como apresenta o gráfico1.

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    Gráfico 1: Localização das escolas da rede Municipal de Educação de Divinópolis, Brasil, 2006

    Fonte: Elaborado pela autora com base em dados da Secretaria de Educação de Divinópolis, 2006.

    A Rede conta com 1.535 (mil quinhentos e trinta e cinco) funcionários em educação,

    distribuídos nas várias funções educacionais.

    De acordo com alguns registros e relatos de profissionais, a Rede Municipal de Ensino

    de Divinópolis vem, nos últimos anos, sofrendo mudanças que deixaram e deixam suas

    marcas no contexto histórico da educação nessa cidade.

    O documento consultado, (fruto de oficinas, encontros, reuniões e cursos) consolida as

    experiências pedagógicas da Rede, apontando para uma educação mais comprometida com a

    relação político-pedagógica e sócio-cultural, como assinala o próprio documento: “A

    proposta, que retrata um processo em construção e envolve planejamentos constantes, tem

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    como pilar a valorização da criança e do adolescente e das relações que se estabelecem no

    espaço escolar”. (Plano Diretor, 1997, p.10)

    O projeto-político da Escola Aberta pretendia e/ou pretende abrir as portas para a

    autonomia de cada escola dentro de sua singularidade, norteando algumas diretrizes

    importantes tais como construções dialógicas – democráticas. O aluno é percebido como

    elemento central do processo de construção e de socialização do conhecimento e ainda há

    uma valorização da relação dialética da prática pedagógica com as demais práticas culturais,

    políticas e econômicas.

    A questão que se coloca para a escola, como para toda instituição educativa, é de como

    organizar o tempo, os espaços, as práticas educativas, os conteúdos, os horários, os trabalhos

    dos professores e professoras, de tal maneira que dêem conta do desenvolvimento e formação

    plenos dos educandos, respeitando cada tempo. Isso é uma prática concreta que considera,

    inclusive, como organizar as turmas entre os que sabem ler e os que não sabem, respeitando

    os tempos da vida. (ARROYO, 2007, p.26)

    A Rede Municipal de Ensino de Divinópolis propôs, em 1998, a organização de ciclos

    de formação (cada ciclo teria a duração de três anos). O primeiro ciclo acopla os anos

    característicos da infância (06 a 08/9 anos), o segundo, pré-adolescência (09 a 11/12 anos) e o

    terceiro da adolescência (12 a 14/15 anos). Isso foi respaldado pelo Decreto Municipal nº

    2.917, de 26/10/98 que foi encaminhado às escolas, sendo que algumas delas mantiveram sua

    organização seriada.

    Conforme defende Arroyo (2000), trata-se do rompimento definitivo com as práticas

    excludentes e seletivas presentes no sistema seriado. Para o autor, a reorganização do tempo

    escolar em ciclos propõe uma intervenção nessa lógica, na ossatura da escola que vem se

    mantendo intacta durante séculos. Com esse mesmo ponto de vista, Freitas (2003) defende a

    lógica de organização do tempo que o ciclo traz para a escola. Para ela a organização em

    ciclos, iniciada na década de 1990, tem uma perspectiva crítico-social e é herdeira de uma

    postura progressista que aposta na possibilidade de transformação social e concebe a escola

    como locus que deve ser igualmente transformada em suas finalidades e práticas. Dentre as

    fundamentais mudanças, o autor recomenda o empreendimento na construção de uma gestão

    democrática e efetivamente participativa, o desenvolvimento da auto-organização do aluno, as

    alterações curriculares que considerem as vivências culturais e o estudo crítico da realidade,

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    desenvolvimento de todo trabalho fundamentado em temas transversais, temas geradores,

    projetos de trabalho e complexos temáticos. Essas mudanças se devem a uma nova

    organização do tempo na escola.

    Já naquele momento, a Secretaria Municipal de Educação vislumbrava o empenho dos

    educadores na implantação desta pedagogia. Mas os educadores precisavam se sentir agentes

    de construção desta proposta, como elementos transformadores da prática educacional. Era

    necessário contrariar o que aponta Heckert (1998), quanto às reformas educacionais em que os

    educadores são inseridos sem participarem da elaboração e avaliação.

    Obviamente, a educação pública de Divinópolis enfrentava desafios presentes nas

    demais redes públicas de Educação Básica, bem como uma visível e elevada desqualificação e

    desvalorização do trabalho dos professores em seus aspectos econômico, social e psicológico,

    decorrentes de inúmeros fatores como: baixos salários, distanciamento entre teoria e prática,

    ausência de ambiente adequado à realização do trabalho, dupla ou tripla jornada de trabalho.

    Surgem, então, novas reflexões e questionamentos que apontaram para a necessidade de

    realização do 1º Congresso Municipal de Educação, que se inicia em novembro de 1999 e

    termina em outubro de 2000, efetuado em quatro fases.

    Na primeira fase, há a instalação do Congresso, em novembro de 1999. A segunda

    fase, realizada de novembro de 1999 a abril do ano 2000, foi dividida em dois momentos.

    Num 1º momento, iniciaram-se as discussões e plenárias escolares, as quais aconteciam dentro

    das próprias escolas, onde eram elaborados questionamentos pertinentes a cada uma delas. As

    temáticas principais que permearam as discussões nas escolas introduzidas pela Secretaria de

    Educação foram: Regime seriado ou Organização por ciclos?, O tempo do professor e o tempo

    do aluno, gestão escolar e modalidade de ensino e suas especificidades. Cada assembléia

    discutia duas temáticas, uma das citadas acima e outra que era determinada pelo grupo da

    escola. Num 2º momento, aconteceram atividades culturais.

    Em maio de 2000 iniciou-se a terceira fase do Congresso, com as assembléias

    regionais, nas quais as escolas se organizavam por regiões e votavam os questionamentos

    daquele determinado grupo. A quarta fase aconteceu em junho de 2000, com a plenária

    municipal, na qual foram traçadas diretrizes para a Rede Municipal de Ensino como:

    organização em ciclo de formação; carga horária para planejamento; professor 1.5 por turma;

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    retenção ao final de cada ciclo; eleição de diretores (idade mínima para os alunos votarem –

    16 anos).

    O Primeiro Congresso Político-Pedagógico da Rede Municipal possibilitou a

    discussão e o estabelecimento de diretrizes gerais para o funcionamento das escolas, o

    reconhecimento da importância dos projetos político-pedagógicos de cada escola, além de

    trazer novos ânimos e expectativas para os educadores. Contudo, com o passar dos anos, a

    implementação das decisões tomadas neste Congresso tornou-se frágil e é, atualmente, alvo de

    discussões constantes e polêmicas nas escolas da rede.

    Não constam, em registro, dados de avaliação e tomada de decisões do processo ao

    longo dos cinco anos seguintes. Há os que acreditam que se passou pouco tempo para se

    avaliar o processo, pois acreditam que as mudanças e os frutos das mudanças em educação são

    em longo prazo. Mas a verdade é que as avaliações estão presentes em todos os momentos de

    nossas vidas e os momentos educacionais não são imunes a elas. Percebe-se certo descrédito

    quanto ao ciclo de formação, devido às avaliações que são feitas diariamente nos ambientes

    escolares - avaliações estas que não resultam em reflexões mais amplas e tomadas de

    decisões.

    No final de 2005, os educadores foram convocados a realizar avaliações referentes à

    estrutura dos ciclos de formação nas escolas. Após algumas reuniões foi decretada, em 2006, a

    mudança da reorganização da estrutura e nomenclatura dos ciclos de formação. O então

    primeiro ano do 1º ciclo foi nomeado Fase Inicial, com caráter do trabalho voltado para a

    psicomotricidade e atividades de aprendizagem para alunos na faixa etária de 6 anos. Os

    ciclos ficaram assim organizados: fase inicial (6 anos), primeiro ciclo: 1º ano (7 anos), 2º ano

    (8 anos), 3º ano (9 anos) e 4º ano (10 anos); segundo ciclo: 5º ano (11 anos), 6 ano (12 anos),

    7º ano (13 anos), 8º ano (14 anos) e 9º ano (15 anos). Essa mudança, ainda muito recente,

    parece ser bem aceita pelos educadores. Durante as avaliações feitas nas escolas, muitos foram

    os questionamentos que apontavam as fragilidades dos Ciclos de Formação nas escolas

    municipais. Os educadores, neste momento, insistem na formulação de um novo Congresso

    para avaliação de assuntos tais como operacionalidade e funcionalidade dos Ciclos de

    Formação, organização do tempo escolar, a alocação de professores à norma do “1.5”, entre

    outros.

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    Ainda em 2006, as turmas do 1º ao 4º anos do Ensino Fundamental receberam

    professores de Educação Física e Ensino Religioso, ficando como proposta que, durante o

    tempo em que os alunos participam destas atividades, os professores regentes das turmas se

    reúnam com seus pares para planejamentos semanais. O que sabemos que não acontece em

    todas as escolas, devido à dinâmica e organização escolar de cada uma.

    A Rede Municipal de Educação de Divinópolis encontra-se muito distante de alcançar,

    de forma abrangente, os objetivos a que se propõe. Várias são as diretrizes que apontam para

    essa constatação: dificuldade de ruptura com antigos referenciais impregnados na prática

    docente; carência de espaços de discussão pedagógica, uma vez que o tempo destinado para

    esse fim é freqüentemente desviado para resolução de problemas administrativos e

    substituição de profissionais faltosos; problemas de diversas ordens (tais como: currículo,

    disciplina, organização pedagógica etc.) gerados pela mudança no paradigma ciclo/série;

    dificuldades e tensões na relação família/escola no que diz respeito à assimilação das

    mudanças preconizadas; entre outros.

    Sente-se a necessidade urgente de um novo Congresso ou qualquer outra intervenção

    que o valha, que possa contar com os educadores para a reflexão, avaliação e execução de

    ações concretas as quais se processem realmente no cotidiano escolar. No dizer de Huberman

    (1996, p.130), “as operações de ensino são conduzidas por pessoas, que são instrumentos da

    transformação, e não graças a meios materiais técnicos”.

    Fica evidenciado que a visão dos educadores com relação à proposta da Escola Aberta

    é dilacerada, devido à limitação que ela vem apresentando ao longo desses anos. Limitações

    que podem fornecer um quadro de instabilidades no trabalho escolar e uma grande

    possibilidade de gerar conflitos os quais podem interferir diretamente na qualidade de vida e

    no trabalho dos educadores desta rede de ensino.

  • 26

    CAPÍTULO 2

    Saúde e Trabalho na Rede Municipal de Ensino de Divinópolis: uma primeira

    abordagem

    Nosso primeiro esforço de pesquisa para compreender o que vinha provocando o

    adoecimento dos educadores da Rede Municipal de Divinópolis, foi o levantamento de

    licenças médicas junto à Secretaria de Educação desse município. Essa sistematização seria

    seguida da aplicação de questionário (anexo 1) para um estudo quantitativo de tipo Survey. A

    metodologia de Survey busca informação diretamente com um grupo de interesse a respeito

    dos dados que se deseja obter. Trata-se de um procedimento útil, especialmente em pesquisas

    exploratórias e descritivas. É um tipo de pesquisa muito usada por órgãos de estatísticas

    particulares e oficiais, quando se faz um recorte quantitativo do objeto de estudo através de

    vários instrumentos para coleta de dados como questionários e entrevistas pessoais

    (LAKATOS, 2005).

    Mesmo não dando prosseguimento à pesquisa de tipo Survey, os dados coletados junto

    à Prefeitura de Divinópolis nesta fase da pesquisa mostraram freqüência importante de

    solicitação de afastamento do trabalho por motivo de saúde no período compreendido entre

    janeiro de 2005 a fevereiro de 2006. Interpretar estes dados era dar uma qualificação da

    grandeza a este fenômeno que se manifesta revelando as reais condições de trabalho dos

    educadores no contexto dado e trazendo elementos para compreender o adoecimento dos

    mesmos.

    Antes de apresentar e analisar os dados coletados é importante relatar como funciona,

    na Prefeitura Municipal de Divinópolis, o processo de licenças médicas dos funcionários.

    Todos os funcionários que se licenciam por um ou dois dias, por motivo de doença,

    apresentam os atestados para o enfermeiro da SESMET. Já os que se licenciam de três a

    quinze dias, precisam passar pelo médico da SESMET. Quando o período é superior a quinze

  • 27

    dias, além de passar pelo médico da SESMET, são também encaminhados para o médico

    perito da DIVIPREV. Todas as licenças referentes aos funcionários que trabalham na

    Educação são protocoladas na Secretaria de Educação, após a liberação dos médicos peritos.

    Percebe-se, nesse cenário, uma desorganização no armazenamento das informações referentes

    aos atestados médicos.

    Segundo o Secretário da SESMET, os CID-10 que mais aparecem nos diagnósticos

    das licenças são os relacionados ao CID-F32. Assim os transtornos e episódios depressivos,

    associados ou não a outros transtornos, ocupam o primeiro lugar em afastamentos e, somados

    aos diagnósticos de reação ao stress grave e transtorno de adaptação, formam o quadro geral

    dos afastamentos dos professores. Entretanto seria necessário um estudo sistemático das

    licenças para a confirmação dessa afirmativa.

    A Secretaria de Educação não autoriza os sub-registros, mas é sabido que eles

    acontecem nas escolas. São anotadas as faltas dos professores de um ou mais dias e a escola

    negocia com esse funcionário o dia da reposição. Outras práticas que serão ou não

    confirmadas ao longo desta pesquisa, diz respeito ao presenteísmo e ao absenteísmo.

    No presenteísmo, o trabalhador (com medo de ser despedido ou preterido por não estar

    presente) comparece ao trabalho mesmo doente. Contudo, ao iniciar as tarefas, por sentir-se

    mal, finge que trabalha ou executa com pouca eficiência suas atividades. A situação pode

    perdurar por semanas ou meses. O presenteísmo, tal como definido por estudiosos, não

    consiste em usar de “má-fé”. O termo vem ganhando aceitação, apesar de incomodar alguns

    teóricos pelo tom de modismo da palavra, se refere à perda de produtividade resultante de

    problemas de saúde reais. Algumas pesquisas sobre presenteísmo partem do princípio de que

    os trabalhadores levam a sério o trabalho e que a maioria, se puder, precisa e quer seguir

    trabalhando mesmo não se sentindo bem. (MARTINES, 2007).

    Podemos aceitar basicamente dois conceitos de presenteísmo. O primeiro, que

    envolve uma visão em saúde ocupacional, utilizada particularmente na Europa, que reflete a

    propensão do trabalhador em permanecer trabalhando, mesmo doente, havendo uma relação

    com a organização e as condições de trabalho. O segundo, mais utilizado nos Estados Unidos,

    é resumida por como a extensão (mensurável) em que os sintomas, condições e doenças

    afetam negativamente a produtividade no trabalho de pessoas que decidem permanecer no

    trabalho. (PEDRO, 2008).

  • 28

    Num estudo sobre a economia e os trabalhadores australianos, encomendado pelo

    Medibank Private à consultora econômica Econtech, chega à conclusão que o presenteísmo é

    muito mais prevalecente do que o absenteísmo. De acordo com o estudo, apresentado em abril

    de 2008, no período de um mês 53% dos trabalhadores australianos ausentou-se do emprego

    durante um ou mais dias, ao passo que 77% foram trabalhar com problemas de saúde nessas

    mesmas quatro semanas. Dos que foram trabalhar doentes, 88% sentiram que tinham sido

    menos produtivos. Em média, essa quebra de produtividade foi de 45%.

    Já o absenteísmo implica, necessariamente, na ausência do trabalhador

    independentemente da justificação da mesma. O absenteísmo trabalhista pode ser definido

    como: “toda a ausência de uma pessoa do seu posto de trabalho, nas horas que correspondam

    a um dia trabalhista, dentro da jornada legal de trabalho” (RIBAYA, 1996, p.32).

    Em um estudo realizado com os professores da cidade de Vitória da Conquista-BA,

    ficou demonstrado que o percentual de docentes com diagnósticos médicos de saúde, desde

    que começaram a trabalhar, foi bastante elevado, visto que os mais freqüentes foram varizes

    em membros inferiores e lesões por esforços repetitivos, doenças que são potencialmente

    relacionadas ao trabalho. Um terço destes professores referiu que tiveram problemas de saúde

    nos 15 dias anteriores à entrevista, e não comparecem nas escolas, o que pode ser traduzido

    num elevado absenteísmo ao trabalho. (DELCOR, 2004)

    Na nossa ótica, se devemos analisar as condições de saúde relacionadas ao

    presenteísmo, ao sub-registro e ao absenteísmo não devemos deixar de avaliar questões

    básicas relacionadas à estrutura, à organização do trabalho e às relações inter-pessoais que

    acontecem dentro da escola e que explicam em parte, a produção deste fenômeno.

  • 29

    *

    * *

    Os dados coletados na Secretaria de Educação de Divinópolis mostram freqüência

    importante de solicitação para afastamento do trabalho nas Escolas Municipais por motivo de

    saúde, no período de janeiro de 2005 a fevereiro de 2006, como a ponta a Tabela 1

    TABELA 1Distribuição de licenças dos Educadores no período de janeiro de 2005 a fevereiro de 2006, por

    escola -

    Fonte: Elaborado pela autora com base em dados da Secretaria de Municipal de Educação de Divinópolis, Brasil, 2006

  • 30

    A demanda inicial da pesquisa não estava direcionada especificamente a nenhum

    segmento profissional, tinha um caráter mais global e estava voltada para os adoecimentos e

    os afastamentos do conjunto de trabalhadores da Educação (Educadores). A reformulação da

    demanda se deu em função de desejarmos compreender melhor o processo dinâmico entre

    saúde e trabalho docente.

    Entre as 2520 licenças médicas contabilizadas no período observado (Tabela 1), 1775

    foram licenças médicas solicitadas por professores, totalizando mais 50% dos servidores

    afastados. Podemos pensar, a partir destes dados, que as razões de procura à perícia médica

    podem não ser banais.

    TABELA 2Distribuição de licenças de professores no período de janeiro de 2005 a fevereiro de 2006

    MÊS ANO Total de Licenças

    dos Educadores

    (TABELA1)

    Total de licenças

    dos professores

    Janeiro 2005 49 18

    fevereiro 2005 137 87

    Março 2005 191 116

    Abril 2005 199 141

    Maio 2005 225 158

    Junho 2005 260 174

    Julho 2005 145 64

    Agosto 2005 234 166

    Setembro 2005 336 250

    Outubro 2005 199 183

    Novembro 2005 253 205

    Dezembro 2005 146 120

    Janeiro 2006 55 14

    fevereiro 2006 91 79

    Total 13 meses 2520 1775

    Fonte: Elaborado pela autora com base na Tabela 1 e em dados da Secretaria de Municipal de Educação de Divinópolis,

    Brasil, 2006.

  • 31

    A análise dos dados aponta para oscilações no número de licenças ao longo do período

    observado. Percebe-se uma queda nos meses julho/2005 e janeiro/2006, período de férias dos

    professores. As férias de julho tiveram início no dia 14 (catorze) e foram até o dia 31 (trinta e

    um), já as referentes a janeiro tiveram início no dia 23/12/2005 e terminaram no dia

    31/01/2006.

    Prosseguindo com a análise, é importante avaliar uma significativa elevação das

    licenças entre os meses de agosto e setembro de 2005. No mês de outubro, as licenças

    continuam com um número elevado, porém há uma queda em relação a setembro porque

    temos em outubro menos dias letivos (há uma semana sem aulas, o que popularmente

    conhecemos como semana da criança ou do professor). Já em novembro o número de licenças

    cresce novamente, com queda em dezembro justificado pela quantidade de dias letivos. Em

    fevereiro de 2006, início do ano letivo, também nota-se uma queda no número de licenças, o

    que pode sinalizar possível relação da alteração da saúde no fim do ano letivo.

    Estudos citados por Esteve (1999), buscam identificar os ciclos de stress ao longo do

    ano escolar. Nos finais de trimestre (especialmente do primeiro) e no final do curso, o número

    de licenças médicas aumenta progressivamente. No início do primeiro trimestre, em especial,

    o número de licenças médicas aumenta bruscamente, detendo-se após feriados e tornando-se

    insignificante durante as férias.

    Outro dado importante para análise é que a maioria das escolas consideradas pequenas,

    apresentam relevantes evoluções de licenças ao longo do período observado, necessitando de

    uma análise mais detalhada do fato. As referências usadas para classificar o tamanho da escola

    foram baseadas no número de professores que trabalham em cada uma delas. Escolas

    consideradas pequenas são aquelas que possuem de 0 a 25 professores e escolas grandes

    aquelas com mais de 25 professores.

  • 32

    G

    RÁFIC

    O 2: Distribuição da classificação das escolas quanto ao número de professores, Brasil, 2006

    Fonte: Elaborado pela autora com bases em dados da Secretaria de Educação de Divinópolis, 2006.

    Acredita-se que os dados de afastamento encontrados nas escolas municipais de

    Divinópolis não podem expressar todos os problemas de saúde vividos pelos professores, seja

    pelo fato de não se encontrarem sistematizados, seja pela prática do sub-registro e/ou pelo

    fenômeno do presenteísmo, bem como absenteísmo que escapam ao tipo de controle

    estabelecido pela SESMET e SEMEC. Tampouco é possível estabelecer associações diretas

    destes dados com os trabalhos desenvolvidos por eles, mas tais fatores podem contribuir para

    elaborar hipóteses que, articuladas aos dados de literatura já existente e com análise da

    atividade situada do trabalho docente, poderão apontar caminhos.

    Foi nesta etapa, que havíamos elaborado o questionário (anexo1), para uma pesquisa

    tipo Survey que objetivasse traçar o perfil do grupo estudado, sondar a opinião deste sobre a

    questão saúde/trabalho, caracterizar hábitos e comportamentos, além de levantar diagnósticos

    diversos. Conforme explicamos, o questionário não chegou a ser aplicado, mas a coleta de

    dados realizada nesse momento foi fundamental para o prosseguimento da pesquisa.

    É Gatti, quem nos mostra que:

    ... é preciso considerar que os conceitos de quantidade e qualidade não sãototalmente dissociados, na medida em que de um lado a quantidade é uma

  • 33

    interpretação, uma tradução, um significado que é atribuído à grandeza comque o fenômeno se manifesta (portanto é uma qualificação dessa grandeza)e, de outro ela precisa ser interpretada qualitativamente, pois sem relação aalgum referencial não tem significante em si. (GATTI, 2002, p.74)

    Assim fez-se necessário realizar a análise dos dados através de uma abordagem

    dialética. Segundo Minayo (2000), essa proposta de interpretação descortina o conteúdo

    antagônico da realidade, contextualizando social e historicamente e, ainda, permite ao

    observador estar dentro do processo de pesquisa, nunca de forma contemplativa. É um

    caminho que conduz à teorização sobre os dados e a conseqüente construção de novos

    conhecimentos.

    A realidade apresentada pelos dados coletados na Rede Municipal de Divinópolis está

    bem próxima dos cenários contemporâneos de sintomas mórbidos apresentados por

    professores, nos estudos da literatura especializada que revisamos. Entre ele destacamos: Ruiz

    (1995), Vasconcelos (1995), Neves (1999), Brito (1999), Codo (1999), Esteves (1999), Barros

    (2000), Amado (2000), Neto (2000), Oliveira (2001), Noronha (2002), Assunção (2003),

    Gonçalves (2003), Delcor (2003), Araújo R. S.(2004), Santos e Fonseca (2005), Mariano

    (2005), Gasparini (2005), Paschoalino (2007) entre outros.

    Ruiz (1995) analisou a demanda ambulatorial entre professores de 1º e 2º graus da

    rede pública de Sorocaba – SP. Foram avaliados dados de um ambulatório médico

    especializado em saúde ocupacional, durante o ano de 1995, onde havia sido realizado o total

    de 1480 consultas, sendo selecionadas 118 destas que se referiam a atendimentos médicos

    para trabalhadores da área de educação, especificamente professores. Buscou-se encontrar, no

    perfil dos diagnósticos médicos, associações claras com as condições de trabalho, guiados

    pela classificação Internacional das Doenças (CID-10). Assim os critérios para os diagnósticos

    foram baseados em parâmetros clínicos, ou seja, história clinica, história ocupacional e exame

    físico. Verificou-se que a laringite é um dos principais motivos de ausência ao trabalho,

    seguida de patologias relacionadas a processos alérgicos, em geral, e alterações

    músculo-esqueléticas.

    Vasconcelos (1995), analisando dados do Hospital do Servidor Público de São Paulo

    relativos ao ano de 1994, revela o grau de comprometimento da saúde mental dos professores

    nesse Estado: a neurose e a depressão afastam, em média, 33 professores por dia letivo.

  • 34

    Neves (1999), realizando uma pesquisa de caráter qualitativo e interdisciplinar junto a

    professores do ensino fundamental da rede municipal em João Pessoa – PB, estudou as

    condições de trabalho e de vida desses profissionais, buscando-se compreender como se dá o

    processo de luta pela vida, uma vez que não existe um estado ideal de saúde. Dessa forma,

    preocupou-se em entender como se opera a opção eminentemente feminina pela profissão de

    professora primária. Os resultados evidenciaram que a escola é um lugar em que se exerce

    uma prática profissional sexuada feminina (explorando o tipo de processo de socialização

    feminina hegemônico), possibilitando a saída da clausura do espaço doméstico e uma

    distinção social para as provenientes das classes populares. O sofrimento dos professores

    estaria ligado à formação deficiente, à dificuldade para operar regras de ofício, como a do

    "controle-de-turma" (que diz respeito à organização das condições de ensino em sala de aula),

    à inexistência de espaços de intercâmbio profissional e de planejamento das atividades

    docentes, às relações hierárquicas, à falta de pessoal e de material nas escolas, à insuficiência

    de pausas e de momentos de lazer e descanso, à tripla jornada de trabalho, à contaminação das

    relações familiares pela invasão das atividades escolares no espaço domiciliar e, sobretudo, à

    desqualificação, aos baixos salários e ao não reconhecimento social de seu trabalho.

    O trabalho de Esteve, em 1999, sobre as condições de trabalho dos professores do

    sistema de ensino espanhol, mostrou que fatores específicos constituem um mal-estar típico

    dessa categoria profissional. Partindo de dados estatísticos que indicam problemas concretos

    na categoria docente, além de relatórios sobre a saúde e a condições de trabalho de instituições

    de ensino, apresentou a evidência do problema em questões relativas aos recursos materiais e

    humanos, e ainda nas modificações no contexto social das últimas décadas, o que mudou

    significativamente o perfil do professor e as exigências pessoais e do meio em relação à

    eficácia de sua atividade. Entre o ideal da função de professor – requerido tanto pelo sistema,

    como pelos alunos – e as condições que o mercado de trabalho impõe, perdura um espaço de

    tensão que ocasiona um nível de stress elevado, pressionando para baixo a eficiência da

    atividade docente. Esteve ainda se refere ao fato de que o mal-estar docente não se restringe

    ao sistema educacional espanhol, mas se trata de um fenômeno que pode ser percebido em

    âmbito internacional.

    Brito também, em 1999, desenvolveu um estudo (objetivando a analise da relação

    trabalho e saúde dos docentes) que revelou aspectos dessa relação e as formas de combate

  • 35

    tecidas nos conflitos e tensões do cotidiano. Focou sua atenção na análise de fatores que

    contribuem para a “sobrecarga de trabalho”, buscando revelar também que tipos de

    movimentos são feitos pelos professores e professoras, para instaurar novas normas de saúde

    diante de condições tão adversas. Teve como universo os professores do ensino médio de uma

    escola estadual da cidade do Rio de Janeiro.

    Ainda no ano de 1999, o burnout foi apresentado em um estudo brasileiro, coordenado

    por Wanderley Codo, como a síndrome da desistência do educador, que pode levar à falência

    da educação. A pesquisa desenvolvida por Codo e sua equipe envolveu 52.000 sujeitos em

    1.440 escolas do ensino básico, que compreende o ensino infantil, fundamental e médio,

    situadas em vários pontos de todos os estados do Brasil. Após investigação exaustiva e

    abrangente, chegaram a um resultado alarmante: 48% dos profissionais da educação

    entrevistados apresentam sinais de mal-estar com a profissão, características da síndrome de

    burnout. Burnout, expressão inglesa que pode ser traduzida como “perder o fogo”, “perder a

    energia” ou “queimar (para fora) completamente”, e assim definida, como “uma síndrome

    através da qual o trabalhador perde o sentido da sua relação com o trabalho, de forma que as

    coisas já não o importam mais e qualquer esforço lhe parece ser inútil” (CODO, 1999, p. 238).

    Realizando uma pesquisa intitulada "Trabalho docente e saúde mental", em

    Vitória/ES, Barros (2000) buscou compreender as relações trabalho/saúde dos docentes da

    rede municipal, analisando as condições e a organização do trabalho no campo da educação.

    Procurou ainda entender que relações poderiam ser estabelecidas entre a forma de gestão

    implementada no município, a forma de organização do trabalho e a saúde dos docentes.

    Assim, a pesquisa se desenvolveu a partir da presença dos pesquisadores na realidade das

    escolas, e teve como elemento fundamental de análise a experiência dos trabalhadores,

    incorporando-a na produção de conhecimento no campo das relações saúde-trabalho.

    Observaram ainda, nas escolas onde os índices de licença médica foram baixos, uma maior

    autonomia no trabalho, uma vez que havia processos mais democráticos de decisões, apesar

    das determinações impostas pela Secretaria da Educação. Entretanto, nas escolas onde o

    índice de licenças médicas foi alto, constataram formas de organização do trabalho em que

    predominam práticas autoritárias e a ausência de atividades nas quais os professores podem

    colocar em análise suas práticas.

  • 36

    O Trabalho dos Professores do Ensino Fundamental: Uma Abordagem Ergonômica foi

    uma pesquisa realizada por Elizabeth Amado no Mestrado em Engenharia de Produção, na

    Universidade Federal de Santa Catarina, em 2000. O trabalho desenvolve-se a partir de um

    histórico da educação no Brasil, associado aos conceitos de ergonomia, buscando destacar a

    importância de um corpo docente saudável para uma melhor qualidade do ensino. Os

    resultados da pesquisa demonstraram um índice elevado de professores com problemas

    psicológicos que apresentavam, em comum, o fato de acumularem várias funções dentro da

    mesma atividade com uma carga de responsabilidade muito grande, tudo associado à

    desvalorização da profissão perante a sociedade. Este estudo demonstrou também que as

    doenças evoluem de acordo com o tempo de trabalho destes profissionais

    Estudando o perfil de professores de 58 escolas da rede particular de ensino de

    Salvador/Bahia, Neto (2000) encontrou uma população cuja média de idade é de 35 anos,

    75% são mulheres e 56% são casadas. Chama a atenção para o duplo vínculo de trabalho com

    escola pública (25%), sendo o número médio de aulas de 25 horas. Os professores citaram dor

    de garganta, dor nas pernas e nas costas, cansaço mental e rouquidão como problemas de

    saúde enfrentados por eles. Associam os problemas de saúde à salas inadequadas, exposição a

    pó de giz, ambiente de trabalho repetitivo, falta de materiais e equipamentos adequados ao

    trabalho e ritmo de trabalho acelerado. O estudo ressalta os aspectos positivos do trabalho

    mencionados pelos professores, que dizem da boa relação com os colegas, a autonomia de

    planejamento, a satisfação no desempenho das atividades e a existência de banheiro privativo

    e de espaço para descanso.

    Oliveira (2001) realiza em Campinas um estudo com professores do Ensino Superior

    particular. Os resultados evidenciam a contaminação do tempo extra-trabalho dos professores,

    sendo freqüentes as dificuldades em realizar as tarefas diárias com satisfação, situação que

    explica o quadro em que se encontram os professores: nervosismo, tensão e preocupação.

    Por meio da análise do trabalho de um grupo de professoras do ensino fundamental,

    Noronha (2002) buscou compreender as queixas de cansaço e esgotamento feitas por elas. Os

    resultados apresentados permitem afirmar que grande parte do tempo das professoras em sala

    de aula é ocupado com o controle, visando diminuir a indisciplina na sala, o que gera

    insatisfação para as elas. A hipótese da autora discute a regulação expressa na Lei de

    Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) sobre o trabalho dos professores e as

  • 37

    reformas educacionais que não são acompanhadas de uma efetiva adequação das condições de

    trabalho ao perfil do aluno nas escolas públicas da periferia, cada vez mais carente e violento.

    Assunção (2003) mostrou que, no espaço da produção do ensino, ao professor não são

    garantidas as condições que lhe permitam atingir os objetivos os quais orientam as reformas

    educacionais recentes, as metas de produtividade e os planos pedagógicos. Isso faz com que

    ele se veja às voltas com exigências para as quais só lhe resta contar com seu corpo,

    tornando-se o único meio de ajuste das necessidades impostas pelo sistema ao seu processo de

    trabalho. Tais esforços individuais para compensar a inadequação das metas educacionais às

    condições de trabalho são tomados, pela autora, como fatores explicativos das queixas de

    cansaço, dos distúrbios psíquicos menores e dos índices de afastamento do trabalho por

    transtornos mentais, freqüentemente presentes em diferentes pesquisas sobre a saúde dos

    professores.

    Procurando compreender a alta prevalência de disfonia entre as professoras, Gonçalves

    (2003) desenvolve um trabalho de análise da voz em sala de aula e sua relação com aspectos

    da organização do trabalho e da gestão escolar pública. No estudo são descritas estratégias das

    professoras para economizar a solicitação das cordas vocais, mostrando que, quando possível,

    os trabalhadores elaboram estratégias de preservação da saúde.

    Um estudo sobre as condições de saúde e trabalho de professores da rede particular de

    ensino do Estado da Bahia, desenvolvido por Delcor (2003), destaca uma grande proporção de

    adoecimento numa população relativamente jovem, com queixas significativas relacionadas

    ao funcionamento psíquico, como cansaço mental e nervosismo. Os resultados revelam uma

    freqüência de 20% de distúrbios psíquicos menores (DPM), aferido pelo Self Reporting

    Questionnaire (SRQ-20). Foram classificados como suspeitos de apresentar DPM, os

    professores que responderam positivamente a sete ou mais questões dentre as vinte propostas

    apresentadas pelo teste.

    Uma pesquisa realizada por Araújo R. S.(2004), em Belo Horizonte, teve como objeto

    de estudo 36 sujeitos de três instituições particulares do ensino médio e, como objetivo,

    entender o mal-estar do professor diante da violência. Desses participantes, dezoito eram

    professores e dezoito professoras. Muitos professores chegaram a afirmar que os alunos os

    tratam como seus empregados. Assim, eles têm que conviver com esse desconforto do

  • 38

    dia-a-dia em sala de aula, onde relações de respeito e admiração pelo professor foram

    esfaceladas, dando lugar ao desconhecimento do outro e a desgastadas relações.

    Santos e Fonseca(2005) descreveu análises de pesquisas que ocorreram no Brasil entre

    1995 a 2000. O objetivo consistiu em apresentar os pressupostos teórico-metodológicos das

    investigações sobre os problemas atuais de saúde dos educadores, marcados pelas

    transformações nos processos do trabalho, a partir das queixas que os mesmos vinham

    apresentando no que diz respeito à saúde e disposição para o enfrentamento cotidiano. A

    perspectiva metodológica foi construída utilizando da pesquisa bibliográfica, através de um

    aprofundamento teórico, buscando explicar os fenômenos que abrangem estudos sobre o

    trabalho docente e saúde, de uma forma ampla, possibilitando a discussão de conceitos e a

    compreensão das principais características do trabalho sobre a saúde dos que o executam,

    tanto quanto as características de sua atuação. Os resultados dos estudos descritos permitem

    visualizar um quadro de adoecimento dos educadores em que as queixas são variadas e

    suscitam o interesse pela abordagem de uma perspectiva de gênero e pela metodologia da

    análise ergonômica do trabalho.

    Trabalho docente e saúde: o caso das professoras da segunda fase do ensino

    fundamental, foi título de uma pesquisa desenvolvida por Mariano (2005) que buscou analisar

    a relação entre saúde mental e trabalho docente das professoras da segunda fase da rede

    pública do município de João Pessoa-Paraíba. Utilizou as contribuições teóricas da

    psicodinâmica do trabalho, propondo-se a analisar a dinâmica dos processos psíquicos pela

    confrontação do sujeito com a realidade do trabalho. Os resultados evidenciaram que as

    docentes vivenciam diferentes formas de sofrimento psíquico ao confrontar-se com as

    situações desfavoráveis de sua atividade, mas que também desenvolvem estratégias de

    enfrentamento que amenizam o sofrimento e favorecem transformar a angústia em força

    propulsora de mudança.

    Uma pesquisa realizada por Gasparini (2005) objetivou-se estimar a prevalência de

    transtornos mentais em professores da rede municipal de ensino de Belo Horizonte-Minas

    Gerais, e investigar a associação com as características do trabalho docente. Ela empregou um

    estudo (com corte transversal) em professores do ensino fundamental da Regional Nordeste,

    utilizando-se um questionário auto-aplicado, com seis blocos de questões. Participaram do

    estudo, 751 dos 792 professores do ensino fundamental de vinte e seis escolas municipais da

  • 39

    regional citada (94,8%). Os transtornos mentais foram significativamente associados à

    experiência com a violência e piores condições ambientais (ambiente físico e conforto no

    trabalho) e organizacionais (margem de autonomia, de criatividade e de tempo no preparo das

    aulas). Os resultados apontam para uma situação relativamente grave da saúde da população

    pesquisada e fornecem elementos consistentes para a proposição de medidas com vistas à

    melhoria das condições do trabalho docente.

    Paschoalino (2007) realizou um estudo com o objetivo de investigar o mal-estar

    docente, vivenciado por professores do ensino médio, vinculados a uma escola da Rede

    Municipal de Belo Horizonte-MG. Os resultados da pesquisa mostraram múltiplos mal-estares

    permeando os docentes observados: o mal-estar das perdas, o mal-estar das relações de

    disputas a partir dos processos de eleições de diretores e coordenadores, o mal-estar dos

    “silenciamentos” -os docentes, o mal-estar da culpa, do absenteísmo e do presenteísmo.

    Percebe-se que o estudo do tema saúde e trabalho docente têm sido avaliados sob

    diferentes perspectivas teórico-metodológicas. Essa diversificação propicia compreender de

    maneira mais global a complexidade da dinâmica saúde-trabalho no exercício da docência.

    Nossa contribuição está em buscar compreender a dinâmica saúde-trabalho docente a partir do

    entendimento de saúde como produção dinâmica de um ser vivo na interação com o meio

    sócio-econômico e histórico-cultural, para tanto, os aportes teórico-metodológicos da

    ergonomia da atividade e da ergologia são fundamentais.

  • 40

    PARTE II

    OUTROS OLHARES

  • 41

    INTRODUÇÃO

    Ao iniciar o mestrado na FAE/UFMG 2005, o projeto seguiu em algumas direções. A

    primeira delas foi com relação à delimitação do objeto. No início pensei investigar o

    adoecimento de todos os educadores, considerando que todos os agentes escolares participam

    do ato de educar, do porteiro ao diretor da escola. Mas ao coletar os dados, deparei-me com

    um grande número de informações, percebendo assim, que seria impossível terminar uma

    pesquisa deste porte no tempo estabelecido para a conclusão do mestrado. Outra constatação

    foi a dificuldade que a pesquisa encontraria devido à complexidade, diferença e variáveis que

    envolvem o processo de trabalho das diversas categorias dos Educadores.

    Neste contexto, iniciei a investigação tendo como orientação a seguinte questão: “O

    que contribui para a produção do adoecimento das professoras de uma escola pública de

    ensino fundamental do município de Divinópolis/MG?”

    O estudo das relações entre o processo de trabalho docente, as reais condições sob as

    quais elas se desenvolvem e o possível adoecimento físico, e mental dos professores, constitui

    um desafio e uma necessidade para se entender o processo saúde/doença e buscar as possíveis

    associações com o afastamento do trabalho por motivos de saúde na docência.

    Era como se o Riobaldo de João Guimarães Rosa soprasse em meu ouvido: “Digo: o

    real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente no meio da travessia”

    (ROSA, 1986, p.60). Assim, à medida que me aproximava da análise dos dados, a questão

    inicial ia se ampliando e entendia que, para compreender o trabalho docente e as possíveis

    relações com a saúde, seria preciso, primeiro, que o trabalho fosse observado, sentido e

    vivenciado. Era preciso ir ao campo, estreitar encontros com a atividade e com os sujeitos

    desta atividade, estar à escuta deles e analisar, inicialmente, as situações reais do trabalho dos

    professores.

  • 42

    A análise da atividade nas situações de trabalho consiste em uma busca detalhada dos

    procedimentos reais utilizados pelo operador durante a execução do trabalho e leva em

    consideração todos os aspectos relativos à tarefa, bem como as características pessoais, a

    experiência e o treinamento.

    A pesquisa investigou as atividades de um grupo de professoras do Ensino

    Fundamental de uma escola pública em situação real de trabalho. Entende-se aqui por

    ‘atividade’ o que a professora faz e o modo como o faz para atender aos objetivos propostos

    em condições de trabalho determinada e com seus recursos internos: cognitivos, afetivos e

    físicos (LIMA, 2000).

    Na tentativa de abarcar os fenômenos complexos que envolvem as dimensões

    humanas implicadas no trabalho do professor e compreender um pouco mais sobre esse

    universo, percebeu-se a necessidade de novas abordagens, baseadas na análise ergonomia e

    ergológica do trabalho.

    Foi necessário designar uma escola onde a pesquisa seria realizada. A Escola 15 é

    considerada pequena por ter somente vinte e dois funcionários, sendo que destes, doze são

    professoras, apresentam um número significativo de licenças em relação as outras escolas

    consideradas pequenas (conforme Tabela 1, página 28), atende alunos do 1º ao 3º ano do 1º

    ciclo e sua organização escolar faz-se através de ciclos de formação.

    O trabalho de campo constituiu-se a partir do desenvolvimento das seguintes etapas:

    negociação e apresentação da pesquisa, caracterização do funcionamento geral da escola,

    entrevista semi-estruturada e observações do campo.

  • 43

    CAPÍTULO 3

    Outros olhares sobre Trabalho e a Saúde

    O trabalho é antes de tudo um conjunto de confinamento e desafiosimpostos aos homens e às mulheres dentro de formas historicamente esocialmente determinados.(DEJOURS, 1995 p.35)

    Tarefa difícil olhar para o conceito/sentido de/o trabalho sem pensar em vida, desafios,

    (in)capacidades, normas, transformações e mobilidade.

    São outorgados vários sentidos ao termo trabalho, sentidos estes que variam até em um

    mesmo momento histórico. O que se considera trabalho também varia de uma sociedade para

    outra. O sentido de trabalho como pena, sacrifício e sofrimento concebido nos séculos IX e X,

    passa a ser visto como exercício de um oficio no século XIII e, no século XVIII se restringe

    basicamente às atividades produtivas. O sentido mais atual de trabalho vincula-se ao conceito

    engendrado pela economia política e fundamenta-se na relação de troca entre homem e

    natureza que se processa sob condições sociais determinadas.

    Hirata & Zarifian (2000) acreditam que este último sentido possibilitou o avanço na

    conceitualização de trabalho assalariado, inaugurando a idéia de trabalho como atividade

    social mensurável e passível de ser objetivada como trabalho abstrato.

    A Ergonomia e os ergonomistas da atividade, nos anos 60 do século passado,

    apresentam a (des)construção do sentido do trabalho como até então era concebido e introduz

    os conceitos de trabalho prescrito (tarefa) e trabalho real (atividade).

  • 44

    O trabalho prescrito (ou tarefa) refere-se ao que é esperado no âmbito de um processo

    de trabalho específico. É vinculado, de um lado a regras e objetivos fixados pela organização

    do trabalho e, de outro, às condições dadas.

    Como trabalho real (atividade), pode-se dizer que é aquilo que é posto em jogo pelo

    trabalhador para realizar o trabalho prescrito. Logo trata-se de uma resposta às imposições

    determinadas externamente, que são, ao mesmo tempo, apreendidas e modificadas pela ação

    do próprio trabalhador. Está vinculado ao pressuposto de que as prescrições são recursos

    incompletos, isto é, desde a sua concepção elas são incapazes de contemplar todas as

    situações encontradas no exercício cotidiano de trabalhar.

    Ao se aproximar do trabalho humano, ao sair do laboratório, ao “descer do cavalo”

    (GUÉRIN, 2001) e observar de mais perto possível a atividade real do trabalho, o que liga as

    condições materiais e organizacionais do trabalho a seus resultados, e a levá-la em

    consideração desde o início, ampliando o coletivo envolvido na concepção e os objetivos da

    concepção, a Ergonomia mostrou que o trabalho efetuado não corresponde jamais ao

    esperado, fixado por regras, orientados por objetivos determinados.

    O distanciamento entre a tarefa e a atividade se deve ao fato das situações reais de

    trabalho serem dinâmicas, instáveis e submetidas a imprevistos. A atividade de trabalho pode

    ser definida, então, como um processo de regulação e gestão das variabilidades e do acaso.

    Compreender a atividade de trabalho é compreender os compromissos estabelecidos pelos

    trabalhadores para atender as exigências conflitivas e muitas vezes contraditórias.

    Infelizmente a idéia de que o trabalho é totalmente definido previamente por regras e

    instruções tem-se mantido, mesmo depois de várias análises comprovarem que, de fato, o

    trabalho é uma atividade complexa, enigmática e não estática.

    Clot (1981) acredita que os trabalhadores desenvolvem uma experiência “informal”,

    pois mesmo no taylorismo outro tipo de saber circula nos espaços produtivos. Em 1995, Clot

    aponta que existirão sempre as diferenças entre o que é prévia e tecnicamente determinado e

    as ações efetivas dos operários, pois o raciocínio muda de acordo com as situações que, por

    sua vez, possuem sempre variações diferentes. O funcionamento normal da atividade

    produtiva é atípico, sendo sempre marcada pela variabilidade. Daniellou (1989) vai além

    afirmando que a produção só é atingida em qualidade e quantidade porque os trabalhadores

    não seguem à risca as instruções dadas.

  • 45

    O Movimento Operário Italiano de luta pela saúde muito contribuiu para essa

    discussão. Levantou a questão de que o processo de continua aprendizagem, que se

    desenvolve por via da experiência, por sua transmissão e pela reflexão coletiva nela originada

    é encontrado mesmo nos trabalhos de mais simples execução. E foi forte inspirador na luta

    dos trabalhadores pelo direito à saúde, na Reforma Sanitária.

    Ao fazer um breve histórico das lutas dos trabalhadores após a revolução industrial, na

    França, Dejours (1992) descreve alguns momentos distintos, em busca de melhores condições

    de saúde: num primeiro momento, nos primórdios da industrialização, quando as jornadas de

    trabalho eram intoleráveis e a mão de obra era recrutada mesmo entre crianças, o importante

    era reduzir a intensidade do trabalho, reduzindo as cargas horárias, delimitando uma idade

    mínima para o trabalho, enfim, diminuindo a carga que a quantidade do trabalho poderia

    trazer para a saúde do indivíduo. Num segundo momento, os trabalhadores voltaram-se para

    as condições de trabalho, buscando determinar riscos nos ambientes de trabalho, detectando

    substâncias químicas nocivas, agentes físicos, biológicos, riscos de acidentes, entre outros.

    Dejours advoga que o sofrimento mental (que pode gerar doenças mentais ou

    psicossomáticas) deverá ser procurado não entre as condições de trabalho, mas através da

    organização de trabalho. Vejamos como o autor entende estes conceitos:

    Por condição de trabalho é preciso entender, antes de tudo, ambiente físico(temperatura, pressão, barulho, vibração, irradiação, altitude, etc.), ambientequímico (produtos manipulados, vapores e gases tóxicos, poeiras, fumaças,etc.), ambiente biológico (vírus, bactérias, parasitas, fungos), as condiçõesde higiene, de segurança e as características antropométricas do posto detrabalho. Por organização do trabalho designamos a divisão de trabalho, oconteúdo da tarefa (na medida em que ele dela deriva), o sistemahierárquico, as modalidades de comando, as relações de poder, as questõesde responsabilidades, etc. (DEJOURS, 1992, p.25).

    Estudos demonstram que a rigidez do modelo de organização do trabalho exerce

    influência negativa no funcionamento psíquico dos trabalhadores. A existência do conflito

    entre a realidade do trabalho (organizado restritamente) e a subjetividade do trabalhador

    impede a satisfação das necessidades dos indivíduos, gerando neles um sofrimento mental

    específico. Inicialmente, estes estudos se orientaram por um modelo causalista e buscavam

    encontrar evidências de doenças mentais especificas do trabalho. No entanto, as pesquisas não

  • 46

    chegaram aos resultados pretendidos de caracterizar doenças especificas. Demonstraram, no

    entanto, que as influências negativas geradas no funcionamento psíquico do trabalhador “...

    conduzem menos à aparição de doenças mentais clássicas, do que uma fragilização que

    favorecia à eclosão de doenças do corpo” (DEJOURS, 1993). Assim este autor revela como o

    conflito entre uma subjetividade já construída e a realidade do trabalho, organizado de forma

    restritiva, gera um sofrimento especifico. Esse sofrimento é resultante da não-satisfação de

    necessidades. Estas são, segundo Dejours, de origem inconsciente e estão relacionadas aos

    desejos mais profundos dos sujeitos. Desta forma, o trabalho, pode se tornar fonte de prazer

    ou de sofrimento, dependendo da maneira como possibilita ou não a satisfação dos desejos

    inconscientes. Ainda segundo este autor, o prazer do trabalhador resulta da descarga de

    energia psíquica que a tarefa autoriza.

    Assim o conflito que aparece entre o funcionamento psíquico e a organização do

    trabalho, pode provocar sofrimento, como também suscitar estratégias defensivas. Para

    Dejours (1993), as estratégias defensivas são resguardes que os trabalhadores utilizam para

    minimizar a percepção das pressões da organização do trabalho que geram sofrimento. É uma

    atividade realizada a nível mental, já que não institui nenhuma mudança real da pressão.

    Dejours (1993:164) afirma que "(...) o trabalho nunca é neutro em relação à saúde, e

    favorece, seja a doença, seja a saúde". Ainda segundo o autor, o equilíbrio físico, psíquico e

    social passa pela liberdade que é deixada a cada um na organização de sua vida. Assim, um

    trabalho que se organiza de forma restritiva, cria um conflito entre uma necessidade interna do

    indivíduo e as exigências externas do trabalho.

    Na tentativa de melhor compreender a relação dinâmica entre trabalho e saúde, surgem

    abordagens do trabalho que se apropriam do conceito de atividade, e que realçam a

    abrangência e inconstâncias das situações de trabalho, e ainda da capacidade dos trabalhadores

    de mobilidade dentro de seus processos. Assim voltamos nossos olhares, agora de maneira

    detalhada, para a Ergonomia da Atividade e para a Ergologia.

    A Ergonomia da Atividade se configura como uma área transdiciplinar abrangendo um

    campo formado pelas ciências que estudam o homem e o mundo do trabalho. Nestes termos,

    encontramos nesse campo conhecimentos provenientes da psicologia, fisiologia, antropologia,

    engenharia, sociologia, as quais se articulam. Lima (1992, p.6) descreve a Ergonomia como

  • 47

    “ciência transdiciplinar cuja especificidade está dada pelo objetivo teórico-prático de conhecer

    e transformar o trabalho”.

    A Ergonomia tal como é praticada hoje no mundo, diferencia-se a partir de duas

    principais correntes e respectivas abordagens: a anglo-saxônica e a francofônica. A primeira,

    de caráter acentuadamente experimental, volta-se para a eficiência da relação

    homem-máquina, através da incorporação de conhecimentos sobre o ser humano – corrente

    mais disseminada nos Estados Unidos e países de língua anglo-saxônica, sendo também

    conhecida como "Human Factors" ou "Human Engineering". A segunda, bastante difundida

    na Europa, especialmente na França, considerada como Ergonomia da Atividade, rompe com

    a abordagem experimental em ergonomia.

    A intervenção da Ergonomia da Atividade, de linhagem francofônica, está calcada na

    análise das situações reais de trabalho e não simuladas em laboratório, conforme abordagem

    hegemônica na ergonomia anglo-saxônica, que impossibilita aos ergonomistas um contato

    mais direto com a realidade social do trabalho.

    A Ergonomia da Atividade se propõe a desenvolver a análise da atividade realizada

    pelo trabalhador na sua situação de trabalho, ou seja, a análise dos comportamentos ou das

    condutas, dos processos cognitivos e das interações empregadas pelos trabalhadores, em uma

    abordagem mais global que envolve a análise de fatores econômicos, técnicos e sociais do

    funcionamento da empresa e da população trabalhadora.

    Entende-se, então, que para o conhecimento da atividade em situação de trabalho,

    com suas variabilidades, cargas, entre outros aspectos presentes na dinâmica do processo, é

    fundamental perceber o trabalho real.

    A “atividade é sempre mais do que um simples gesto realizado, passível deobservações direta e mensurável para fins da avaliação de produtividade,envolvendo também, além do que foi realizado. O que não foi feito, o que éfeito para não fazer, o que se gostaria de fazer e o que deveria ser feito”(CLOT, 2006, p.116).

    É importante ressaltar, que uma das grandes contribuições da Ergonomia da Atividade

    ao estudo da organização do trabalho foi a diferenciação entre o trabalho prescrito e o trabalho

  • 48

    real. Ao se aproximar do trabalho humano em situações reais, essa ergonomia mostrou que o

    trabalho efetuado não corresponde jamais ao trabalho esperado, fixado por regras, orientado

    por objetivos determinados. Ao realizar a tarefa, a pessoa se encontra diante de várias fontes

    de variabilidade: panes, disfuncionamentos, dificuldades de previsão, fadiga, diferenças de

    ritmo, efeitos da idade, experiência.

    A distinção entre tarefa e atividade, desenvolvida pelos ergonomistas franceses

    torna-se aqui pertinente, já que, para eles, a dimensão vivida do trabalho é sempre uma

    criação, uma novidade. O problemático é que essa dimensão não pode ser apreendida

    totalmente em palavras ou descrita previamente, mesmo levando em consideração o

    depoimento daqueles que trabalham (SCHWARTZ, 1993). Entre a prescrição ou a norma e o

    que é efetivamente realizado, há sempre um deslocamento, uma recriação; e é isso que faz

    com que cada tarefa possa ser realizada.

    Já a Ergologia, abordagem também transdiciplinar, estuda o trabalho em sua dimensão

    micro, utilizando-se de uma “lupa” e tentando entendê-lo a partir da atividade concreta de

    quem trabalha. Tem como ponto de partida a distinção apontada pela Ergonomia entre

    trabalho prescrito e trabalho efetivamente realizado.

    Essa nova abordagem surgiu na França, na Universidade de Provence em 1983, em

    contextos sobre estudos da análise pluridisciplinar das situações de trabalho, que em seguida

    originou o Departamento de Ergologia na citada Universidade. O objetivo deste Departamento

    é, assim, criar estratégias, metodologias de pesquisa e técnicas que viabilizem a interlocução

    entre as experiências dos mundos do trabalho e os saberes das ciências. Uma vez que

    Ergologia significa o estudo das atividades humanas, de forma a produzir interlocuções dos

    diferentes saberes que sustentam as atividades e as experiências diversas.

    Ao propor um triângulo de análise que mescla valores-saberes-atividades, aergologia incorpora e aprofunda as contribuições da ergonomia da atividade,resultando numa reflexão epistemológica sobre a produção deconhecimentos sobre trabalho nas ciências humanas. Nesse sentido valeressaltar que a ergologia assume as contribuições da ergonomia da atividadefrancesa como uma propedêutica pertinente a uma epistemologia interessadado trabalho humano (CUNHA, 2006)

  • 49

    Trabalhar, para a Ergologia, é a atividade de seres humanos situados no tempo e no

    espaço, que se dá no acontecer da vida. São atividades sempre complexas e que possuem um

    caráter enigmático.

    Atividade de trabalho é a maneira pela qual os humanos se envolvem no cumprimento

    dos objetivos do trabalho, em um lugar e tempo determinados, utilizando-se dos meios

    colocados à sua disposição. Para lidar com as variabilidades que se apresentam, o trabalhador

    se engaja por inteiro, a cada momento, com seu corpo biológico, sua inteligência, sua

    afetividade, seu psiquismo, sua história de vida e suas relações com outros humanos.

    Na visão da Ergologia, é impossível que não exista atividade. Em uma situação de

    trabalho, não há como se ater ao prescrito. Reforça a idéia que o trabalho efetivamente

    realizado nunca é só prescrição, pois envolve sempre atividade humana.

    Schwartz (2000) é bastante assertivo quando enuncia que não seria possível viver sob

    total heterodeterminação. Homens e mulheres fazem um uso de si pelo outro - “O que vai

    das normas econômico – produtivas às instruções operações”, e um uso de si por si:

    O que revela compromissos microgestionários. Negociações problemáticas,pois os trabalhadores renormalizam as prescrições e criam estratégias paraenfrentar os desafios do seu meio. O trabalho é uso de si, pois é o lugar deum problema, de uma tensão problemática, de espaço de possíveis sempre ase negociar: há não execução mas uso e isto supõe um espectro continuo demodalidades.. É o individuo no seu ser que é convocado; são, mesmo noinaparente, recursos e capacidades infinitamente mais vastos que os que sãoexplicados, que a tarefa cotidiana requer, mesmo que este apelo possa serglobalmente esterilizante em relação às virtualidades individuais. Há umademanda específica e incontornável feita a uma entidade que se supõe dealgum modo uma livre disposição de um capital pessoal. Tal é a justificaçãoda palavra “uso” e tal é aqui forma indiscutível de manifestação de um“sujeito”. (SCHWARTZ, 2000, p.41)

    Assim Schwartz (1998, p. 142) já afirmava que podemos "(...) caracterizar todo

    trabalho como lugar de uma dramática singular onde serão negociados, para cada

    protagonista, a articulação dos usos de si pelos `outros' e ‘por si'". Aqui, o uso de si pelos

    outros seria o colocar-se para que sua capacidade produtiva seja usada para realizar uma

    atividade, ou seja, produzir algo que se dirige a outrem. O uso de si por si diz respeito ao fato

    de essa pessoa utilizar seus recursos, suas capacidades, escolhendo uma determinada maneira

  • 50

    para realizar a atividade e também os sentidos que ela dá a um trabalho e suas conseqüências.

    Schwartz está dizendo, então, que, no trabalho, é a pessoa por inteiro que se coloca e que ali é

    lugar onde cada um pode desenvolver-se, utilizando sua capacidade de produzir e de conviver,

    visto que as atividades de trabalho têm um aspecto de coletivo e de coordenação.

    Para o autor, toda situação de trabalho convoca ‘dramáticas do uso de si’, quando

    “cada um avalia a trajetória e o produto, ao mesmo tempo individual e social, do que é levado

    a fazer” (SCHWARTZ, 1998, p. 107). Dito de outro modo, para viver e trabalhar, os homens

    buscam recriar o meio, produzindo novas normas (Canguilhem, 2001). O ângulo a partir do

    qual Schwartz observa o trabalho é aquele que tende a ser negado/ignorado pelas

    organizações. É o ângulo da vida, do trabalho vivo, buscando identificar o que existe de

    presente nas atividades. Encontrar a vida no processo de trabalho nos parece fundamental

    quando pretendemos construir alternativas que favoreçam a saúde dos grupos envolvidos.

    A Ergologia contribui para mostrar que em toda situação de trabalho há sempre uma

    tentativa de renormalização, de criação de um novo meio de trabalho: “toda situação de

    trabalho seria sempre, segundo graus variáveis, experiência, encontro; por isso, ela é colocada

    à prova de normas e valores antecedentes numa situação histórica sempre em parte singular”

    (SCHWARTZ, 2000, p.81).

    Faz-se necessário, neste momento, entender a saúde para além da concepção de

    ausência de doença, expandindo para os aspectos econômicos, psicológicos e sociais. Se

    considerarmos a doença como uma espécie de norma biológica, o estado patológico não pode

    ser chamado de anormal no sentido absoluto, mas apenas na relação com uma situação

    determinada. Assim como aponta Canguilhem:

    Reciprocamente, ser sadio e ser normal não são fatos totalmenteequivalentes, já que o patológico é uma espécie de normal. Ser sadiosignifica não apenas ser normal numa situação determinada, mas ser tambémnormativo, nessa situação e em outras situações eventuais. O que caracterizaa saúde é a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normalmomentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e deinstituir normas novas em situações novas. (CANGUILHEM, 2000, p.158).

  • 51

    Assim entendemos que estar saudável é poder viver e exercer diversas atividades em

    diferentes situações, de acordo com o desejo e a necessidade.

    Clot (2006) vem dar contribuição relevante na discussão saúde e normalidade. Para o

    autor, diferente da saúde, a normalidade não é isenta de sofrimento. O sofrimento é

    compensado de uma maneira aceitável pelas múltiplas estratégias defensivas. O autor afirma

    que a normalidade e, principalmente, a saúde não são estados passivos. Afirma ainda que a

    normalidade é uma conquista difícil, jamais definitivamente adquirida, mas sempre

    reconstruída. Portanto a normalidade se baseia no jogo de defesas entre os sofrimentos que a

    desestabilizam e tendem a fazer oscilar o sujeito na doença. As defesas supõem uma

    aprendizagem, e os aprendizados mediados são super determinantes para a construção e

    proteção da normalidade em comparação às defesas não mediadas. Quanto à saúde, diz que é

    intersubjetiva, e a intencionalidade que mobiliza as defesas é fundamentalmente sustentada

    pela luta para a construção da identidade (centro gravitacional e ponto organizador dos

    processos defensivos).

    As contribuições dos autores acima citados permitem perceber a saúde como uma

    dinâmica polaridade entre o sujeito e o meio.

    E como fica o trabalho nesta dinâmica complexa?

    Embora, muitas vezes, fique claro que a lógica que regula as formas e as situações de

    trabalho é totalmente estranha à lógica que organiza a construção da saúde, sempre existirão

    sujeitos que, individualmente ou na coletividade, serão capazes de se defenderem da

    nocividade do trabalho. São sujeitos que conseguem se valer do trabalho para sua

    auto-realização, concebem-no como fonte de prazer e utilizam-no para transformar e construir

    suas identidades.

    Os referenciais teóricos metodológicos da Ergonomia da atividade e da Ergologia,

    consoantes com a definição de saúde de Canguilhem (2000), reafirmam a ação do sujeito. Isso

    ocorre na medida em que a atividade de trabalho jamais é totalmente enquadrada, uma vez

    que, se observarmos de perto, notamos uma acentuada diferença entre o que está prescrito

    (aquilo que está estabelecido pelos formalizadores do trabalho) e o real (aquilo que realmente

    se faz durante o trabalho ou, ainda, o que se é impedido de fazer). Trabalhar sempre implica

    uma distância entre o prescrito e o real; disso decorre a necessidade de se fazer escolhas,

  • 52

    renormalizações e arbitragens para que o trabalho possa se desenvolver da melhor maneira

    possível para o trabalhador.