Introdução à história do nosso tempo

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REN RMOND INTRODUO HISTORIA DO NOSSO TEMPO Do Antigo Regime aos Nossos Dias

Reviso cientfica de: JORGE MIGUEL PEDREIRA Departamento de sociologia da Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Ttulo original: Introduction Ihistoire de not re temps ditions chi Senil, 1974 e 1989 Traduo: Teresa Loureiro Reviso cientfica: Jorge Miguel Pedreira

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Reviso de texto: Jos Soares de Almeida 1 edio:Setembro de 1994 4 edio: Agosto de 2011 Depsito legal n. 329 771/2011 ISBN: 978-972-662-375-5

AdvertnciaSe o uso, na abertura de uma obra, da advertncia ao leitor tem outra justificao para alm da formal, tal verifica-se neste livro. Ela impe-se tanto por uma questo de necessidade como de cortesia: de facto, este livro tem a marca das circunstncias que precederam a sua publicao e uma simples aluso s mesmas , sem dvida, a melhor forma de lhe definir o objeto e a inteno. Ele saiu diretamente de um curso lecionado no Instituto de Estudos Polticos de Paris que se destinava aos estudantes do 1. ano dito preparatrio. Trata-se de um ensino de carcter geral, sem preocupaes eruditas, com a nica ambio de introduzir no entendimento do mundo contemporneo um auditrio mais virado para o exerccio das responsabilidades ativas do que atrado pelo conhecimento desinteressado. Persuadido desde h muito de que o ensino oral e a escrita pertencem a gneros completamente diferenciados e de que um curso, mesmo de qualidade, no faz um bom livro, nunca teria pensado em apresentar ao pblico os apontamentos de que se alimentavam as minhas lies. Alm disso, tendo conhecimento por experincia prpria das dificuldades da sntese, sei como demorada toda a investigao e estou demasiado convencido da necessidade da anlise para ter meramente concebido o projeto - quo presunoso - de encerrar dois sculos de histria nas pginas de um livro. Foi a amizade de Michel Winock que acabou por me convencer de que, se o curso tinha prestado algum servio a um auditrio de estudantes, a sua leitura no seria talvez completamente intil para um pblico mais vasto, desejoso de compreender o seu tempo. Se pensarmos que o entendimento do presente escapa a quem ignora tudo do passado e que s possvel ser contemporneo do seu tempo tendo conhecimento das heranas, consentidas ou contestadas, no deveria ento um ensino que se prope estudar o passado em funo do presente - e mesmo do futuro interessar outros para alm dos adolescentes que fazem os respetivos cursos? Com a condio de no disfarar a sua verdadeira natureza e de lhe deixar, para o melhor e para o pior, as suas caractersticas originais tanto na forma como no contedo, preservou-se o tom oral, suprimindo-se unicamente as repeties necessrias pedagogia direta e reduzindo-se a parte dos avisos e das recapitulaes, insuportveis na leitura. Cabe ao leitor julgar se a manuteno de um tom mais direto, eco abafado de um ensino que aspirava a restituir a vida aos acontecimentos do passado, compensa at ao absurdo a expresso menos rigorosa que o resgate quase inevitvel por esse tipo de ensino. Os principais inconvenientes para o contedo que podero advir do gnero escolhido justificam que nos alonguemos numa explicao prvia. Composto para alunos que estudaram durante anos histria no ensino secundrio e que, ao contrrio dos seus colegas das universidades que vo ensinar histria durante toda a vida, no tencionavam prosseguir o estudo para alm do ano em curso, esse ensino devia no apenas apoiar-se nos conhecimentos adquiridos, pressupondo, portanto, o conhecimento da relao dos factos, mas tambm bastar-se a si prprio. O presente trabalho no , assim, um manual: no apresenta um resumo dos acontecimentos. Recorre a maior parte das vezes a aluses que compete ao leitor decifrar e esclarecer: a sua leitura no dispensa o conhecimento das circunstncias. Confesso que, ao reler a verso policopiada deste curso, senti a cada instante um desejo furioso de reintroduzir, por meio de notas de rodap, todas as referncias exatas dos factos evocados apenas sub-repticiamente. Mas desisti, pois as notas teriam devorado a totalidade das pginas: estaria a tentar escrever uma histria geral, como j existem algumas e excelentes. Mais valia deixar a este curso os seus traos de origem, incluindo os defeitos, do que chegar a um resultado abastardado. Os inconvenientes inerentes ao gnero poderiam ser agravados - embora talvez tambm legitimados - pela amplitude do assunto tratado: dois sculos de histria do mundo. Nada

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menos. Esta extenso, fixada pelo programa de estudos, tem uma justificao objetiva. Com efeito, se no Instituto de Estudos Polticos o estudo do passado encontra a sua razo de ser na contribuio que traz compreenso das situaes e das questes, das foras e das mentalidades que compem o mundo de hoje, no conviria recuar at aos primeiros frmitos que anunciam a convulso revolucionria do fim do sculo XVIII? A Revoluo Francesa de 1789 certamente, mas tambm a vaga revolucionria que assola o mundo ocidental no ltimo quartel do sculo e que tem origem na declarao de independncia dos Estados Unidos, em 1776. Porm, como o significado de uma mudana s pode apreciar-se pela referncia ao estado precedente e a apreciao do efeito de uma revoluo est subordinada comparao com o regime que derruba, foroso recordar os traos essenciais da sociedade do antigo regime. Eis a razo por que este curso tem aproximadamente, como ponto de partida, os meados do sculo XVIII. So ento um pouco mais de duzentos anos, ou seja, a durao de seis ou sete geraes, que constituem a matria e medem a extenso desta sntese encurtada. Dois sculos ao longo dos quais o rosto do mundo, a composio das sociedades, as relaes entre os povos, as condies de vida e talvez mesmo as mentalidades e as sensibilidades mudaram mais do que durante os milnios anteriores. A densidade do perodo acentua at caricatura a tendncia de todo o ensino para a simplificao. Como meter uma tal superabundncia de acontecimentos dentro dos limites necessrios sem subverter as evolues, contrariar os tempos, escamotear preparaes e maturaes? A tentativa expe-se a outro risco: o da sistematizao a posteriori. Como forte para o historiador, conhecedor da sequncia dos factos, a tentao de atribuir aos acontecimentos uma racionalidade que o contemporneo era incapaz de discernir no apenas devido incapacidade do seu olhar, mas tambm porque a realidade histrica a no comportava de modo algum! Ao olhar de um ponto demasiado alto o desenrolar circunstancial, perde-se de vista a contingncia dos encadeamentos, o improviso das situaes. , pois, essencial reafirmar a importncia da conjuntura, reencontrar o papel do acontecimento, a influncia das individualidades, em suma, reabilitar o fortuito e restituir a importncia ao singular. Esta profisso de f no implica de modo algum que no haja tambm uma certa lgica das evolues. falso o dilema a que certas escolhas pretendem limitar-nos: a alternativa entre o reconhecimento de um determinismo da histria integralmente orientada para a consecuo de um fim nico e derradeiro e a sua dissoluo numa infinidade de situaes sem tom nem som. Por no se deixar reduzir lgica dos nossos sistemas de pensamento e de interpretao, a experincia histrica no foge a toda a racionalidade. possvel admitir ao mesmo tempo que a histria apresenta algumas grandes orientaes e que os processos pelos quais estas se manifestam e se realizam comportam em cada momento uma pluralidade de combinaes possveis. precisamente no esforo para discernir estas linhas mestras e desenhar os eixos principais da evoluo no decurso dos ltimos sculos que este curso encontra a sua razo de ser. Todo o estudo histrico se situa no ponto de interseco de duas dimenses, as mesmas cujo entrecruzamento define a posio da histria de todo o ser e de toda a coletividade: o tempo e o espao. As referncias cronolgicas acabam de ser expostas: delineemos o cenrio geogrfico. No ltimo tero de um sculo que assistiu emancipao dos pases colonizados no seria possvel existir outra histria contempornea que no fosse universal: de hoje em diante j nada justifica que limitemos o nosso campo de observao Europa e menos ainda Frana. O ensino da histria em Frana sofreu durante muito tempo de um ponto de vista quase exclusivamente ocidental, quando no mesmo de um preconceito galocntrico que levava a apreciar-se a experincia dos outros pases em funo da nossa histria nacional. Ora, se o anacronismo, que consiste em projetar as preocupaes de um tempo - o nosso -, o seu vocabulrio e os seus conceitos no passado, realmente um pecado mortal em histria, no menos grave o erro que leva a imaginar as sociedades contemporneas tomando como modelo a nossa. Tal erro leva a menosprezar tanto a diversidade dos povos como a singularidade de cada experincia. Os efeitos so ainda mais nocivos quando o esprito do sistema, legitimando o preconceito e a preguia intelectual, no receia erigir em dogma o postulado de que todos os pases devem passar pelas mesmas etapas de uma evoluo uniforme. - ou deveria ser - uma das virtudes principais da cultura histrica dilatar as nossas estreitezas e alargar a nossa experincia, tornando-nos contemporneos de outros tempos e cidados de outros povos. Tambm s existe verdadeira histria quando alargada s dimenses do Globo.

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E, no entanto, como se ver, a maior parte das pginas que se seguem continua a ser consagrada histria da Europa. Apesar do que acima se disse, esta preponderncia dada ao nosso continente no puramente arbitrria. Tem uma justificao, mais legtima do que simples razes de facto, tais como este curso ter sido ministrado num estabelecimento de ensino francs ou ainda o nosso conhecimento do passado ser muito desigual conforme os continentes. um facto que para alguns a histria de frica, por exemplo, s agora comea a ganhar forma: a inexistncia da escrita e a indiferena dos historiadores europeus em relao a essa histria antes da colonizao tm como consequncia ser hoje impossvel consagrar aos povos de frica o lugar a que a envergadura do continente, a antiguidade do seu povoamento e a diversidade das tradies lhes dariam direito. A verdadeira razo histrica: desde o dealbar dos tempos modernos que a Europa representou na histria do mundo um papel que no corresponde sua prpria importncia, simples verificao que no comporta nenhum juzo de valor sobre as riquezas das respetivas civilizaes. verosmil que as civilizaes da India ou da China tenham sido mais requintadas do que a da Europa; certo que so mais antigas: numa altura em que os pases europeus faziam ainda figura de brbaros, o Extremo Oriente atingira j um elevado grau de evoluo. Tambm verdade que foi a Europa que, de facto, com o seu avano tcnico e intelectual, tomou a iniciativa, se apoderou do comando e partiu ao encontro dos outros. Foram os navegadores e exploradores europeus, os conquistadores vindos da Europa, que descobriram, reconheceram, organizaram, exploraram o universo. Esta anterioridade teve consequncias incalculveis: a Europa imps ao resto do mundo a sua organizao poltica e administrativa, os seus cdigos, as suas crenas, os seus modos de vida, a sua cultura e o seu sistema de produo. em relao Europa que os outros povos tiveram, de boa ou m vontade, de se definir, fosse para a imitar e adotar o modelo ocidental, ou, pelo contrrio, para o combater e recusar. Num e noutro caso, o Asitico e o Africano afirmaram-se, tomaram conscincia de si prprios por referncia ao Europeu. Tambm as relaes entre a Europa e os outros continentes definem um dos eixos fundamentais da histria dos ltimos sculos. Eis as razes pelas quais, sem ser infiel convico de que a histria deve ser universal, ser dado aos acontecimentos que afetaram primeiro a Europa revolues polticas ou sociais, industrializao, xodo rural, sistemas ideolgicos, despertar do sentimento nacional, afirmao do Estado-nao um lugar que poder parecer desproporcionado e que o seria na verdade se nos abstrassemos da repercusso, direta ou indireta, que cada um destes fenmenos teve no exterior da Europa. A fim de determinar com preciso o objetivo deste empreendimento, impe-se uma ltima indicao, relativa natureza dos factos considerados: na multiplicidade dos factos que se oferecem observao do historiador, foi feita uma escolha deliberada a favor do poltico e do social. Sem nos dispersarmos na procura de difceis e sempre dececionantes definies, dizemos que por poltica se entender tudo quanto se relacione, de uma maneira ou de outra, com o governo dos homens: organizao do poder, exerccio e conquista da autoridade, foras constitudas para esse fim, tenses internas e conflitos externos. Quanto ao social, o substantivo sociedade mais satisfatrio do que o adjetivo a que a prtica conferiu uma aceo restritiva, como se, no social, s existisse uma classe os operrios da indstria e uma questo a que colocada sociedade pela existncia deste proletariado. O estudo destes factos sociais o das sociedades, da sua organizao, isto , de todo o conjunto dos diversos grupos que as compem, das suas relaes, de direito e de facto, das consideraes de princpio que fixam o seu lugar no conjunto e das relaes de fora, de poder ou de riqueza que os aproximam ou opem. Conceder, assim, uma ateno privilegiada aos factos polticos e sociais implica duas convices: que uns e outros existem por si prprios, tm uma consistncia prpria e dispem de uma certa autonomia em relao s realidades de uma outra ordem; que, alm disso, h entre as duas sries de factos relaes pelo menos to estreitas como em qualquer outra, em particular com as realidades econmicas, as que envolvem as relaes do homem com a Natureza, a matria, a terra, a energia e a sua atividade produtiva. Se o assunto materializado neste livro apresenta alguma originalidade, na conjuno desses dois pressupostos que ela poder residir. Aps mais de vinte anos consagrados a tentar decifrar os fenmenos polticos e a investigar-lhes as causas consolidou-se a minha convico inicial de que pertencem, na verdade, a uma ordem da realidade autnoma que tem uma especificidade prpria e cuja explicao deve ser prioritariamente procurada nessa mesma ordem. O mesmo se passa com os factos sociais: no constituem o simples reflexo de uma realidade mais fundamental: tm tambm uma existncia

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relativamente autnoma. Afirmar, assim, a autonomia do poltico e do social no significa de modo algum que os erijamos em sectores totalmente independentes dos outros domnios da histria: em particular tal no significa que se ignore a infncia, muitas vezes assaz determinante, que a evoluo da conjuntura econmica ou o progresso tcnico podem exercer sobre o governo das sociedades e as relaes entre as classes. Mas estamos convencidos de que, com algumas excees, os fatores econmicos, poltica e socialmente neutros ou ambivalentes , s intervm no encadeamento dos acontecimentos polticos ou na dialtica das relaes sociais pela mediao de realidades intermedirias, psicolgicas ou ideolgicas. Por outras palavras, no pensamos que toda a realidade histrica se resuma, em ltima instncia, s relaes de produo, nem que todos os conflitos que tm por lugar a sociedade se reduzam luta de classes, nem to-pouco que o homem se defina essencialmente pelo lugar que ocupa no processo de transformao da Natureza e que o trabalhador seja, em si mesmo, mais decisivo do que o habitante, o crente ou o cidado. A realidade social mais rica, mais variada, mais complexa tambm do que a imagem simplificada que nos propem todos os sistemas explicativos. Rejeitar as interpretaes monistas por causa da simplificao excessiva. Afirmar, pelo contrrio, a pluralidade dos factos e dos princpios de explicao, no resolve, no entanto, o problema de fundo, o das relaes causais. Ora, quando se prope estudar conjuntamente o poltico e o social, est a apresentar-se o problema em toda a sua extenso e no seu n mais inextricvel pela via das relaes entre os regimes polticos e as ordens das sociedades: haver alguma relao entre aqueles e estas e de que natureza? Sero os regimes que exprimem e traduzem na organizao do poder uma certa ordem social e poder-se- ento estabelecer uma estreita correspondncia entre a classificao dos tipos de governo, exerccio favorito da filosofia poltica, e as distines entre os tipos de sociedade? Ou reagiro os regimes em funo da evoluo das estruturas sociais? Mais do que formular abstratamente propostas tericas, permitimo-nos remeter o leitor para o corpo da obra: ver que a nossa preferncia vai para um sistema de relaes complexas cujo sentido no est fixado irrevogvel e unilateralmente, mas pode, segundo as situaes e as sociedades, inverter-se: o tipo de causalidade mais frequentemente observado na histria e que, em definitivo, nos parece propor a traduo menos inadequada da realidade a causalidade recproca ou circular. Pensaro talvez que nos rodemos de preocupaes apreciveis para apresentarmos uma perspetiva expedita da histria contempornea. Sem dvida, mas no h nem ser possvel haver um olhar absolutamente inocente sobre a histria. Sem que por isso seja foroso concluir que a objetividade impossvel, toda a leitura do passado tem a marca do seu tempo e exprime uma opinio pessoal. No exige a honestidade que se enunciem em plena luz do dia os seus pressupostos?

PRIMEIRA PARTE O ANTIGO REGIME (1750-1789)

1 - O homem e o espao: mundo conhecido e mundo ignoradoO primeiro passo a dar voltar ao ponto de partida, isto , cerca de duzentos anos atrs. Precisamos menos de memria do que de imaginao para concebermos o mundo tal como era por volta de 1750, tudo o que os homens desde ento lhe acrescentaram em obras (construes, organizao do espao), assim como as modificaes das suas estruturas mentais. Como se apresenta o mundo em meados do sculo XVIII? 1.1 O mundo no est unificado

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Impe-se partida uma verificao carregada de consequncias: em 1750, para a humanidade, o mundo no existe como uma unidade; no concebido como tal e, se o para alguns espritos, no vivido como experincia. Compreenderemos melhor o alcance desta observao por comparao. Atualmente, um acontecimento, por pouco interesse que apresente, imediatamente propagado, levado ao conhecimento do mundo inteiro, que deste modo se torna espectador e ao mesmo tempo ator. Todo o planeta est coberto de uma densa rede de informaes que pe em contacto todas as partes do mundo. No plano do conhecimento, atravs do canal da informao e dos meios de comunicao, o mundo constitui presentemente uma unidade efetiva e basta um curto perodo para que todos os homens ou quase sejam informados de um dado acontecimento. Outro exemplo: as relaes econmicas e a interdependncia que se estabeleceu progressivamente entre os diferentes pases. A determinao dos preos correntes, tanto dos gneros alimentcios como dos produtos industriais, depende de dados que ultrapassam o quadro de um mercado nacional, por muito desenvolvido que seja. O criador de gado na Argentina, ou o agricultor da Costa do Marfim, depende dos mercados mundiais quanto ao montante da sua remunerao, ao seu nvel de vida, s suas possibilidades de existncia e, por vezes, mesmo sua subsistncia. As crises propagam-se de um pas para os outros. A primeira grande crise que exps de forma evidente este carcter universal foi a que teve origem em Outubro de 1929 em Nova Iorque; em poucos anos afetou a vida econmica de todos os pases do mundo. No se tratou de um caso isolado; desde ento assistimos ao desencadear, ainda que com menos intensidade, de fenmenos anlogos. A guerra da Coreia, em Junho de 1950, provocou uma subida em flecha dos preos, qual nenhuma economia escapou. o sinal de que atualmente as oscilaes dos preos e as crises econmicas se propagam num meio relativamente homogneo, contnuo e consideravelmente unificado. Apercebemo-nos por este meio da universalidade em que o mundo contemporneo vive. Um terceiro exemplo vem apoiar esta afirmao: os conflitos. No sculo passado havia ainda a possibilidade de os limitar geograficamente: no sculo XIX no h ainda um conflito mundial propriamente dito. O sculo XX , pelo contrrio, o sculo dos conflitos mundiais. Poderamos ainda alargar a demonstrao - a causa seria ainda mais convincente - aos movimentos de ideias. As filosofias polticas so atualmente postas em prtica e despertam simpatias ou suscitam contestaes no mundo inteiro, quer se trate da experincia comunista, quer do nacionalismo: so fenmenos universais. Verificou-se portanto - e essa uma das linhas de evoluo da histria nos dois ltimos sculos - a passagem de um mundo fragmentado e compartimentado para um mundo que apresenta uma unidade relativa: universalidade e simultaneidade. O mundo de 1750 no apresenta nada de semelhante. No existe simultaneidade. E no podia deixar de ser assim. As invenes tcnicas que permitiram essa instantaneidade esto ainda para chegar: no se conhece a revoluo dos meios de comunicao, tornada possvel pela descoberta da eletricidade e das ondas, nem a revoluo dos transportes. Em meados do sculo XVIII o homem desloca-se a passo, no seu passo ou no da sua montada. o passo do cavalo e a velocidade dos navios vela que condicionam as comunicaes, ritmam a transmisso das notcias ou das ideias, medem a distncia. Com efeito, ao lado da distncia objetiva, que se mede em nmeros, a distncia relativa, que varia segundo as facilidades e as condies materiais, muito mais importante para as relaes entre grupos de homens; o essencial no que 5000 ou 6000 km separem a Europa dos Estados Unidos, mas o facto de hoje bastarem apenas algumas horas para transpor essa distncia, enquanto nos finais do sculo XVIII eram necessrios dois longos meses para a ida e a vinda da correspondncia, das notcias e das instrues diplomticas. Ser assim at meados do sculo XIX. Esta passagem de uma durao longa para uma durao breve mostra bem a amplitude da transformao. Do facto de o navio ser mais rpido (no sendo essa a nica razo) advm o avano, a superioridade comercial e frequentemente poltica dos Estados martimos em relao aos Estados continentais: o mar facilita muito mais a comunicao do que a terra. Em certa medida, o mundo surge portanto aos contemporneos de 1750 incomparavelmente mais extenso e vasto do que atualmente. Desde ento o mundo encolheu. Podemos mesmo dizer, para caracterizar esta relao entre o homem e o espao, entre a humanidade e a terra

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que ocupa, que o homem se encontrava ento mais longe do homem. Tal verificao implica todo o gnero de consequncias. Consequncias polticas: devido a este distanciamento, mais difcil constituir associaes polticas durveis, mais complicado para os governantes administrarem os seus povos. Os imprios demasiado vastos esto condenados decomposio. Os continentes no podem dar origem a unidades polticas. Os agrupamentos polticos so por isso naturalmente mais restritos. No sculo XVIII no se est to longe do tempo em que os soberanos, para se fazerem obedecer, se viam obrigados a tornar-se viajantes e a deslocar-se de provncia em provncia para restabelecerem a sua autoridade sobre uma feudalidade turbulenta. Na falta do soberano, os seus emissrios percorriam o territrio. Richelieu cria os intendentes, que comeam por ser itinerantes; pouco a pouco, recebero uma comisso, que na maioria dos casos, os fixa numa diviso administrativa, mas, na origem, os intendentes da monarquia administrativa so herdeiros dos missi dominici de Carlos Magno. Ainda no sculo XVI, apesar de a Frana ter sido um dos primeiros pases onde o rei poderia ter renunciado a este exerccio itinerante do poder, os reis andavam de residncia em residncia. Os lugares onde os ditos so assinados so disso testemunha: numerosos textos administrativos do sculo XVI so conhecidos pelo nome de uma residncia real, castelo do Loire ou da regio parisiense. A pouco e pouco desponta um novo fenmeno: o aparecimento de monarquias fixas no espao, frequentemente relacionado com o nascimento de capitais artificiais: Madrid, de Filipe II, Versalhes, de Lus XIV e, um pouco mais tarde, Sampetersburgo, de Pedro, o Grande. Este fenmeno no faz mais do que representar no mapa o aparecimento de algo de novo na ordem poltica: a possibilidade de um pas ser dirigido a partir de um ponto fixo, o nascimento de uma forma de governar distncia, o governo de gabinete. O rei dirige o povo do seu gabinete. a substituio de um governo literalmente pessoal, que tinha necessidade de contactos diretos entre homens, por um governo por correspondncia, um governo distncia, pois o espao comea a diminuir. No sculo XVIII est-se ainda nos prdromos do fenmeno; assim, os meados de Setecentos no assinalam, deste ponto de vista, uma rutura, mas uma mera transio dentro de uma lenta evoluo. Consequncias sociais: os indivduos no saem de um crculo estreito. Vivem num quadro restrito: aldeia, parquia, uma regio geograficamente limitada. A maior parte nunca transpe as fronteiras do seu pequeno rinco e ignora o resto do mundo; deste modo, vive numa dependncia muito estrita no interior desse pequeno grupo. Consequncia econmica: como se sabe, os mercados so limitados. As unidades de produo devem bastar-se a si prprias. ainda a economia de subsistncia, em que se deve produzir praticamente tudo aquilo de que se precisa, pois as trocas so quase totalmente inexistentes. O mundo do sculo XVIII tambm no conhece a unidade. As diferentes partes do Globo no entraram ainda em relao umas com as outras. Ignoram-se mutuamente; chegam mesmo a ignorar a existncia alheia. Muito poucos homens tm uma viso de conjunto do planeta. Os Japoneses ou os Chineses conhecem bem os seus vizinhos e podem mesmo ter uma ideia do que o Extremo Oriente, mas no sabem quase nada do resto. Mesmo os Europeus s tm ainda uma viso fragmentria e confusa do conjunto da humanidade. O mundo parece formado por humanidades separadas. Entre elas existem numerosas trocas, embora limitadas e intermitentes, ocasionais, merc das correntes de circulao. Os mercadores rabes, no priplo do oceano ndico, puseram em comunicao a ndia com a frica oriental e a Malsia. Em frica as caravanas ligam com regularidade os pases do Magrebe frica negra. Mas as trocas continuam a ser muito reduzidas e insuficientes para darem uma viso global do continente africano ou do oceano ndico. 1.2. As etapas do reconhecimento do mundo: dos Descobrimentos conquista do espao - a epopeia geogrfica Convm, no entanto, registar que nos meados do sculo XVIII esta situao se encontra em vias de modificao. uma consequncia dos Descobrimentos e do que se lhes seguiu desde o princpio dos tempos modernos. Em 1750 est-se, de certo modo, a meio caminho entre o dealbar dos tempos modernos e a situao caracterizada atualmente pela universalidade, a unicidade e a instantaneidade. Em 1750, graas s iniciativas dos Ocidentais, o conhecimento geogrfico do Globo fez j grandes progressos. Foram os Europeus que comearam a

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estabelecer um sistema unificado de conhecimento e, por isso, foram eles que partiram descoberta do mundo. A epopeia geogrfica foi escrita por alguns pases europeus. Nenhum facto modelou to poderosamente a fisionomia do mundo atual, imprimindo em todos os pases a marca de uma civilizao, aquela que fora elaborada na extremidade ocidental da Europa. Porqu os Europeus? Eis uma das perguntas mais interessantes, mas tambm uma das mais difceis de responder. Como sempre em semelhantes assuntos, tratou-se de um concurso de circunstncias: evitemos ceder tentao simplificadora de privilegiarmos um tipo de causas em detrimento das demais. Alguns fatores so intelectuais ou morais: os Europeus sentiram o desejo e conceberam a possibilidade de descobrir o mundo: curiosidade, nsia de saber, de estender os limites do mundo conhecido. Para os portugueses que rodeiam Henrique, o Navegador, desde os meados do sculo XV os motivos so especificamente cientficos. A estes motivos cientficos juntam-se outros, igualmente desinteressados, de ordem religiosa: a universalidade do cristianismo, a vontade de levar at aos limites da Terra a mensagem evanglica em conformidade com as palavras de Cristo antes da sua ascenso. tambm necessrio referir os motivos mais interesseiros. Motivos comerciais: a procura de novas vias de acesso s riquezas da sia. Motivos polticos: a vontade de poder das naes e a rivalidade que elas transpem da Europa para os teatros externos. Os primeiros pases descobridores fazem tudo para conservarem o segredo das suas descobertas, indo ao ponto de fazerem desaparecer os navegadores estrangeiros que se aventurem pelas mesmas rotas. Mas estes diversos motivos s conduziram a descobertas porque existiam os meios necessrios. Meios cientficos: aperfeioamento dos instrumentos de navegao, que permitem desenhar mapas, fazer levantamentos, progressos ligados ao desenvolvimento da astronomia e da hidrografia. O avano cientfico da Europa ocidental talvez um dos fatores mais determinantes. Meios tcnicos: o navio o meio de explorao habitual. At revoluo dos transportes, no sculo XIX, caracterizada sobretudo pela aplicao do vapor aos caminhos de feiro, a terra presta-se menos penetrao do que o mar. Dada a sua extenso, a sua massa, os seus relevos, dada a hostilidade dos indgenas, o continente torna-se frequentemente um obstculo quase intransponvel, enquanto os mares pem em comunicao as costas mais distantes. Reencontramos o avano cronolgico dos pases martimos em relao aos pases continentais. Aps a prosperidade dos mares fechados, que caracteriza os finais da Idade Mdia e d vantagem aos portos italianos - Gnova e Veneza - e aos do Bltico, verifica-se um deslocamento do eixo da atividade martima em benefcio das costas martimas da Europa ocidental. Comea por ser a extremidade sudoeste - a Pennsula Ibrica, o pequeno Portugal que progride ao longo da costa africana antes de dobrar o cabo da Boa Esperana e de descobrir a India; depois segue-se a Espanha, que, num pice, atravessa o Atlntico. Portugal e Espanha aproveitam esta anterioridade para edificarem imprios coloniais, que, escala de ento e tendo em conta a distncia relativa, possuem uma prodigiosa extenso. No sculo XVIII estes imprios esto j em declnio. Tomaram-lhes ento o lugar a Frana, a Inglaterra, as Provncias Unidas e mesmo os pases escandinavos. No sculo XVII os Suecos fixaram-se em alguns pontos da Amrica do Norte: encontram-se ainda na Pensilvnia vestgios de estabelecimentos suecos anteriores chegada dos Ingleses. Antes de se chamar Nova Iorque, a futura metrpole americana teve o nome de Nova Amsterdo: os Holandeses, que foram os primeiros, estabeleceram a uma feitoria. Muito mais tarde, a Alemanha e a Itlia juntar-se-o ao grupo das potncias coloniais, mas s depois de terem realizado a sua unificao poltica. O facto, tanto para uma como para outra, de terem entrado to tarde na corrida s colnias influenciar a orientao das respetivas polticas mundiais. A lista dos pases que tiveram um papel importante no reconhecimento e na conquista do mundo resume-se a estes que referimos. A Rssia tem tambm o seu lugar nesta lista, mas a sua expanso de natureza diferente: trata-se de um pas continental e opera por contiguidade. A Rssia expandiu-se na sia atravs de uma espcie de dilatao da prpria massa territorial, e no, como aconteceu com os pases acima enumerados, por um salto transocenico em direo a pases separados por milhares de quilmetros. Este apanhado cronolgico comporta um ensinamento. Se, na verdade, os Europeus se anteciparam, tal no se verificou por parte de todos os europeus: houve um avano da Europa ocidental e, acessoriamente, da Europa central. Para as relaes entre a Europa e o mundo,

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captulo essencial da histria europeia, existem duas Europas profundamente diferentes: uma teve um papel decisivo, a outra um papel inexistente. Estas duas Europas correspondem a dois tipos de sociedades. Existem sociedades martimas - adotemos por agora esta denominao provisria -, que se caracterizam por uma organizao mais diferenciada, nomeadamente com uma burguesia numerosa e ativa, uma economia em que o comrcio externo detm um lugar aprecivel, e sociedades continentais, quase exclusivamente orientadas para a terra, cuja economia totalmente agrria. Provavelmente, prolongando esta distino, no plano das formas polticas, seremos levados a descobrir algumas correlaes entre esta dualidade geogrfica, estes tipos de sociedades e os respetivos regimes. Assim, fica a dever-se iniciativa da Europa que o resto do mundo tenha sido descoberto. a Europa que comea por estabelecer laos entre um continente e outros e por tecer essa rede de noes das quais o nosso mundo unificado atualmente herdeiro. Se passarmos agora da Europa para os outros pases e dos pases descobridores aos pases descobertos, verificaremos que o conhecimento comeou, naturalmente, pelas costas aonde os navegadores arribavam e que estas descobertas no se fizeram por uma ordem lgica, de proximidade decrescente: a face da Terra oposta Europa foi conhecida antes de estar acabada a explorao de regies mais prximas. Deste modo, o mundo austral, os antpodas, ou seja, a regio exatamente oposta Europa, foram explorados muito antes da frica central. E por volta de 1770-1775 que os navegadores britnicos ou franceses - Cook, La Prouse, Bougainville descobrem os arquiplagos da Ocenia, entre os quais o Taiti. S um sculo mais tarde que os grandes exploradores - Brazza, Livingstone, Stanley - descobriram as nascentes do Zambeze e a bacia interior do Congo. Em meados do sculo XVIII subsistem ainda enigmas, grandes lacunas, assinalados nos mapas da poca por manchas brancas ou pela meno terra incognita. Diversos problemas atormentam a imaginao dos gegrafos, como, por exemplo, o das passagens: a passagem do Nordeste e a passagem do Noroeste, que deveriam permitir passar atravs do mar livre do Atlntico setentrional ao Pacfico pelo norte do continente europeu e asitico ou pelo norte do continente americano. O pretexto de Chateaubriand para a sua viagem Amrica em 1791 o de descobrir a passagem do Noroeste. Outro enigma a nascente dos principais rios, americanos ou africanos. Quer se trate do Nilo, do Congo, do Nger ou do Zambeze, quer do Amazonas, conhecem-se as embocaduras, por vezes troos dos seus cursos interiores, mas impossvel estabelecer o traado completo. no sculo XIX que os exploradores resolvero, pouco a pouco, estes diversos enigmas. Esta descoberta progressiva constitui tambm um captulo da histria geral, que toca de perto a histria intelectual e poltica da humanidade: a histria intelectual, sim, porque ela avalia o progresso do conhecimento, e tambm a histria poltica, visto que a colonizao segue a explorao. A segunda metade do sculo XVIII constitui uma etapa decisiva desta histria. Em poucas dcadas a situao modifica-se rapidamente. A curiosidade cientfica intensa: uma das componentes do movimento das luzes. Paralelamente, as tcnicas progridem e fornecem aos homens meios mais rpidos, mais aperfeioados, mais eficazes, para satisfazerem a sua curiosidade. Expedies de todos os gneros esforam-se por arrancar os segredos que a Terra ainda esconde. A face ainda desconhecida da Terra, o avesso do mundo conhecido, o Pacfico, os arquiplagos, excitam particularmente a curiosidade. Diversas expedies partem explorao do continente austral, que se supunha ser o contrapeso da massa das terras emersas do hemisfrio norte. Nas vsperas da Revoluo Francesa, a diferena entre as partes conhecidas do Globo e as desconhecidas j no a mesma que em 1750. Na charneira dos dois sculos (1798), a expedio militar ao Egipto torna-se uma verdadeira expedio cientfica, constituindo um modelo de investigao. Se a expedio ao Egipto no altera o nosso conhecimento da geografia - o Egipto j era conhecido -, revela uma outra dimenso, o passado da humanidade. A humanidade comeou a encontrar o seu passado com a inesperada descoberta das riquezas escondidas em Pompeia e Herculano. O regresso s origens da sua histria outra etapa da procura empreendida pelo esprito humano desde h dois sculos. Entre 1750 e os dias de hoje o homem tomou conscincia do seu domnio espacial; atualmente conhecemos melhor o passado da humanidade do que h dois sculos e descobrimos numerosas civilizaes desaparecidas.

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No sculo XIX a explorao por via terrestre substitui a explorao martima, ou completa-a, e os exploradores, partindo das regies que j conheciam, embrenham-se no interior das terras e tentam completar o puzzle. Exporemos adiante as consequncias polticas, sociais, demogrficas e econmicas destas descobertas. Na Amrica do Norte d-se um alargamento para oeste: Jefferson envia, logo aps a aquisio da Luisiana (1803), uma expedio em direo s montanhas Rochosas: subida do vale do Missuri, descoberta das Rochosas, da Califrnia e juno entre o Leste e o Oeste dos Estados Unidos em meados do sculo XIX. Na sia central o avano deve-se iniciativa dos Russos, mas sobretudo em frica que os progressos so mais sensveis. No princpio do sculo XIX quase no se conhece um dcimo do continente. No incio do sculo XX so poucas as regies ainda inexploradas. Expedies polares, que integram ingleses, americanos e noruegueses, lanam-se ento conquista dos dois polos: o polo norte em 1909 e o polo sul em 1911. Pode dizer-se que nas vsperas do primeiro conflito mundial a humanidade adquirira j um conhecimento praticamente total do Globo. 1.3. A poca do mundo acabado comeou A experincia recente: s duas geraes que a adquiriram. S ento comea aquilo a que Valry chamou a poca do mundo acabado num sugestivo ensaio escrito aproximadamente nesta altura e compilado em Regards sur le monde actuel. Compreenda-se acabado em dois sentidos: completo, mas, ao mesmo tempo, limitado. At ento existia mais espao do que aquele que a humanidade podia ocupar. A partir da ela atingiu os seus limites em todas as direes. O mundo conhecido coincide atualmente com o mundo inteiro. J no h diferena entre o mundo objetivo, tal como existia, e o mundo tal como a humanidade o conhecia. O homem no tardar a sentir-se comprimido, embora subsistam ainda imensos espaos a conquistar e a ordenar. A humanidade est, globalmente, na mesma situao que os camponeses dos pases que sofrem de fome de terras quando so demasiado numerosos para a terra disponvel. O remate final da descoberta do mundo um dos elementos que contribuem para o agravamento das rivalidades entre as naes e para o aparecimento do imperialismo. As grandes potncias disputam entre si os restos ainda por atribuir com cada vez maior aspereza porque so os ltimos. As potncias colonizadoras retardatrias, como a Itlia e a Alemanha, esto duplamente desenfreadas. No constitui uma mera coincidncia a simultaneidade do fim da explorao e do aparecimento dos conflitos mundiais. Toda uma srie de problemas que comeamos a pressentir vai surgindo a pouco e pouco: a falta de terras; para as cidades, o abastecimento de gua, a qualidade do ar, todos os problemas com que se ter de debater a humanidade de amanh. No entanto, se inegvel que a humanidade atingiu os confins da Terra, o mesmo no acontece com a histria dos Descobrimentos: ainda subsistem alguns enigmas superfcie do Globo. Existe sobretudo a terceira dimenso: a vertical. No nos aperceberemos bem do significado histrico das descobertas mais recentes se no as integrarmos numa perspetiva a longo prazo que as apresente como o captulo mais recente de uma histria que comeou ao mesmo tempo que a da humanidade. Terceira dimenso: tanto o so as conquistas dos cumes montanhosos como a conquista das profundezas dos mares, e mais ainda a conquista do espao. A conquista dos espaos interestelares o prolongamento da epopeia geogrfica empreendida desde h sculos. Tendo dado a volta do mundo, o homem transporta para o exterior do planeta o seu desejo de conhecer, a sua curiosidade e os meios tcnicos que soube criar. Alonguei-me para l do sculo XVIII para restabelecer a perspetiva. Evidentemente ainda a no chegmos em 1750: a humanidade no existe ainda como unidade. H somente humanidades separadas e descontnuas. O mundo surge ento como uma justaposio de sociedades estranhas entre si. Devido falta de meios de informao e de comunicao, estas esto mais separadas umas das Outras do que atualmente. Seguem caminhos paralelos e ignoram-se. Por exemplo, os Franceses no sabem praticamente nada sobre os Japoneses, e vice-versa. Em contrapartida, estas sociedades so menos diferentes uma das outras do que atualmente: entre elas existem grandes analogias e as semelhanas sobrelevam as diferenas. A humanidade ainda no enveredou por vias divergentes. Hoje em dia entre as sociedades mais desenvolvidas

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e as menos desenvolvidas cavam-se abismos capazes de desencorajar o esforo dos que pretendem reduzi-los. No sculo XVIII no h um afastamento muito pronunciado entre o nvel e o modo de vida das civilizaes mais requintadas e os dos pases mais primitivos. Tm em comum o lao com a terra, uma economia principalmente rural; a sociedade assenta ainda nos ritmos naturais e na explorao do solo.

2 - O povoamento2.1. A dimenso demogrfica Acabmos de falar da humanidade, mesmo de diversas humanidades. Que representam elas numericamente? Qual , em 1750, o efetivo global e como se repartem os homens no espao? Aps a dimenso geogrfica, a dimenso demogrfica. S h pouco tempo foi estudada como realidade autnoma e os historiadores e socilogos deram ao fator demogrfico a importncia que lhe devida. , no entanto, um dos dados essenciais e que comanda em grande parte os outros. impossvel fazer um estudo objetivo da evoluo poltica e das relaes entre os pases sem ter em conta a quantidade. o suporte de muitas outras coisas. Para os Estados, o poder numrico a condio sem a qual muitos grandes projetos esto condenados ao malogro. A evoluo demogrfica de uma sociedade tem incidncias, negativas ou positivas, noutros aspetos da sua vida. Por isso, a nossa descrio da Europa e do mundo nas vsperas da Revoluo Francesa ficaria incompleta se no soubssemos ento quantos seres humanos contavam e como se distribuam pelas unidades territoriais. Se a pergunta fundamental, a resposta continua incerta. As informaes de que dispomos so fragmentrias. Conhecemos mal o nmero de homens e os contemporneos ainda estavam mal informados. Por mais surpreendente que isso possa parecer, estamos mais bem informados do que os contemporneos. Os nossos conhecimentos retrospetivos progrediram. Na poca o interesse pela demografia mal comea a despertar. At ento no se haviam preocupado com a contagem dos seus administrados. Comea-se a compreender que o homem um fator de riqueza para a economia e de poder para o Estado. Os soberanos inauguram uma poltica de imigrao. Procuram igualmente saber o nmero dos seus sbditos. Paralelamente a estas consideraes interessadas, a curiosidade cientfica suscita o estudo da populao: a cincia demogrfica nasce no sculo XVIII. mais um aspeto do progresso cientfico, com o mesmo valor que a geografia, a astronomia, a hidrografia: as cincias sociais beneficiam do seu primeiro surto. da segunda metade do sculo XVIII que datam muitos dos nossos mtodos demogrficos, tambm nesta altura que alguns demgrafos equacionam os problemas que ainda hoje preocupam a conscincia coletiva, como o caso do famoso ensaio de Malthus sobre a populao, em 1798. Ao mesmo tempo que desperta o interesse, surgem novos mtodos de investigao; reencontramos, como para as descobertas, a interao entre o desejo e as possibilidades, as motivaes e os meios. At ento os mtodos de investigao eram raros e defeituosos. No existia nenhuma operao comparvel aos nossos modernos recenseamentos; nenhum Estado empreende - e a fortiori praticamente com regularidade - esta espcie de contagem sistemtica, e isto por diversas razes de ordem psicolgica e prtica. Na verdade, qualquer operao estatstica suscita uma animosidade comparvel s que as investigaes fiscais ou econmicas podem atualmente provocar entre os comerciantes ou os industriais: associada tributao ou milcia, a operao impopular. Enfim, a administrao no est preparada para levar a cabo tais operaes. Os contemporneos esto, assim, limitados utilizao de meios indiretos. atravs de hipteses e verificaes que chegamos a estimativas aproximativas. Os procedimentos so diversos. Um deles consiste em extrapolar a partir dos movimentos da populao, ou seja, pelos nmeros anuais de nascimentos e bitos, tendo em conta o que consideramos ser a durao mdia de vida: calculamos assim qual ter sido a populao global do pas em estudo. Um outro mtodo consiste em contar os fogos, isto , as habitaes, e em multiplicar o nmero por um coeficiente - a mdia do nmero pressuposto de pessoas que vivem na mesma casa.

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Assim, os contemporneos, e no s os curiosos por estatsticas ou os apaixonados pela demografia, mas tambm a administrao, os governantes, no sabem o nmero de habitantes da Frana, da Inglaterra ou da Espanha. Imaginem o que isto significa: os governos, mesmo os mais absolutos, cuja legitimidade no contestada por ningum, esto, na sua ao quotidiana, menos bem armados do que os governos mais dbeis do sculo XX. Ignoram a quantos milhes aproximadamente ascende o nmero de habitantes, contribuintes, mobilizveis. Os soberanos, por mais absolutos, desconhecem sobre quantos sbditos se estende a sua soberania. A sua situao anloga dos Estados atualmente menos desenvolvidos, que nunca fizeram um recenseamento e no tm uma administrao capaz de o levar a bom termo. Tais consideraes servem tanto para a Frana como para a Espanha ou para a China de h alguns anos atrs, quando no se sabia, com uma margem de erro de cerca de 100 milhes, o total de chineses. As nossas informaes so, assim, frgeis. E, para mais, a situao que acabo de indicar a dos pases civilizados. Que dizer das regies da frica central ou da Amrica Latina? No entanto, por muito frgeis que sejam estas estimativas, do-nos uma ideia do que , por volta de 1750, o povoamento humano e a sua repartio. Vejamos os resultados destes numeramentos, sem esquecermos estas reservas de mtodos e de documentao. Da podemos tirar alguns ensinamentos. 2.2. A populao e o seu crescimento Em 1750 avalia-se o efetivo total de seres humanos em cerca de 700 milhes. Sendo estes nmeros, por si prprios, desprovidos de significado, devemos compar-los com o efetivo atual da populao mundial. As ltimas estatsticas publicadas pela Organizao das Naes Unidas indicavam, aproximadamente, 4000 milhes de homens, peste modo, em pouco mais de duzentos anos a populao do mundo quintuplicou. Esta comparao d-nos a noo da mudana e justifica a expresso revoluo demogrfica. O crescimento no foi regular nem constante. A curva abriu-se a pouco e pouco, aproximando-se da vertical. Eis alguns marcos escalonados de cinquenta em cinquenta anos: 1750 cerca de 700 milhes 1800 800 milhes 1850 1100 milhes 1900 1540 milhes 1950 2509 milhes 1976 4000 milhes De 1950 a 1976 a populao mundial aumentou, portanto, 1500 milhes. Este crescimento em apenas um quarto de sculo vertiginoso: ultrapassa, s por si, a populao mundial de 1750. As causas desta evoluo demogrfica so mltiplas: algumas tm a ver com a diminuio da mortalidade devido aos progressos da higiene, outras com as modificaes das estruturas da economia e da sociedade. Teremos ocasio de evocar em si mesmos alguns destes grandes factos ligados revoluo demogrfica. Primeiro convm tomar nota da importncia do fenmeno. um dos factos humanos mais importantes e mais carregados de consequncias. Os efeitos desta revoluo demogrfica so inumerveis e esto na raiz de todos os nossos problemas contemporneos. 2.3. A repartio entre os continentes Em 1750 a repartio da populao muito desigual. Ao lado de regies fortemente povoadas existem outras praticamente desabitadas. Alis, desde meados do sculo XVIII o crescimento no se produziu em todos os continentes, ao mesmo ritmo: revelaremos discordncias na expanso demogrfica. A assimetria muito marcada entre o Velho Mundo - Europa, sia, frica - e o Novo Mundo - a Amrica -, que, se encontra praticamente vazio. Estima-se que em, 1750 no existiam mais de 12 milhes de homens em todo o continente americano (em 1800 o nmero aproxima-se dos 18 milhes), ou seja, 2% da populao mundial.

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Estes poucos milhes esto, por sua vez, desigualmente repartidos. a Amrica do Sul que leva vantagem, com trs quartos da populao do continente, vivendo ao sul do istmo do Panam, nos imprios coloniais espanhol e portugus. Populao muito heterognea, pois compreende tanto os descendentes dos autctones estabelecidos nos planaltos da cordilheira dos Andes e no Mxico como os herdeiros, dos conquistadores, que constituem uma estrutura colonial cujas estratificaes sociais coincidem com as diferenas de raas: populao indgena sobrepe-se a dos dominadores. Na Amrica do Norte os ndios so pouco numerosos: provvel que nunca tenham ultrapassado 1 milho em todo o espao ocupado atualmente pelo Canad e pelos Estados Unidos. O ncleo de origem francesa pouco numeroso: quando a Frana teve de ceder o Canad e a Luisiana (1763), os canadianos franceses seriam cerca de 60 000. O resto muito heterogneo, originrio da Inglaterra, da Sucia, da Dinamarca ou das Provncias Unidas. Em 1750 conta-se cerca de 1 milho de colonos nas treze colnias da coroa da Inglaterra. Da Ocenia no se sabe praticamente nada. S em 1750 ser reconhecida. Um ponto de interrogao em face de um nmero que se limita a indicar uma ordem de valores: talvez 1 milho de indgenas. A esmagadora maioria da populao mundial encontra-se ento concentrada na Europa, na sia e em frica. O homem est ainda longe de ter ocupado o seu domnio; espaos imensos esperam ainda ser conquistados e habitados. A distribuio no interior do mundo antigo tambm uma das mais desiguais. De frica sabemos pouca coisa. Arriscamos nmeros, mas no temos nenhum meio de os verificar. Fala-se de 100 milhes em 1800, tendo em conta a parte mais povoada de frica, a frica branca, a do Magrebe e do Egipto, a frica das cidades. Mas necessrio recordar que em 1750 a populao da frica negra diminua, desde h dois sculos e meio, devido ao trfico de escravos, que provoca uma hemorragia demogrfica; este facto teve consequncias incalculveis e constituiu o primeiro grande movimento migratrio da histria moderna: talvez 10 ou 15 milhes de africanos tenham sido arrancados ao seu continente e deportados para a Amrica. Primeiro lado do tringulo: os navios partem das costas atlnticas carregados de vidrilhos com os quais os negociantes compram os escravos. Segundo lado: o encaminhamento para os portos do Novo Mundo, onde os escravos so vendidos. Terceiro lado: graas ao produto da venda, os navios regressam a Frana e a Inglaterra carregados de rum, acar e tabaco. um elemento essencial para a prosperidade dos grandes portos franceses e britnicos. O luxo e o esplendor arquitetnico de Bordus ou Nantes assentam em parte no comrcio de pau de bano. O trfico prolongar-se- durante o sculo XIX, apesar de ter sido objeto de diversas interdies. Os plenipotencirios reunidos em Viena em 1815 proibi-lo-o, e foi para fazerem respeitar esta interdio que a Frana e a Inglaterra concederam urna outra o direito que esteve na origem de muitos conflitos diplomticos ou de flutuaes de humor da opinio pblica. Se o trfico de escravos acaba de extinguir-se no sculo XIX, as suas consequncias perduraro nos trs continentes interessados. Se para a Europa foi uma fonte de riqueza, para a frica esta hemorragia est na origem da penria de homens de que a economia de diversos Estados da frica central ainda sofre atualmente. O trfico desorganizou as trocas, abalou os fundamentos das sociedades africanas, provocou a fuga das populaes litorneas para o interior. Para a Amrica a origem do problema negro, sob formas que variaram desde a escravatura at guerra da secesso e, desde a sua abolio, em 1863, as suas sequelas com a segregao e a integrao racial: o problema tem um grande peso na vida poltica dos Estados Unidos. A sia o continente mais povoado de todos. Mais do que todos os outros reunidos: 450 milhes em 700, isto , perto de dois teros. Por outras palavras, dois homens em trs so asiticos, o que ainda hoje se verifica, embora numa proporo menor. Em 1975 o continente asitico continha ainda 57% da populao global. Em dois sculos a proporo passou de 64% para 57%. Os dois pases mais povoados do mundo so asiticos: a China, com 800 milhes, e a ndia, com 600 milhes. S a ndia tem hoje mais habitantes do que toda a sia h dois sculos atrs. Apercebemo-nos, atravs destes valores, de um trao constante na histria demogrfica: esta predominncia demogrfica, esta predominncia macia da sia, que faz dela o grande reservatrio da humanidade. No existe nada de comparvel no mundo s multides da sia, aos seus formigueiros rurais ou urbanos. So cidades asiticas sete dos vinte maiores aglomerados populacionais atuais: Tquio, a primeira de todas, com cerca de 15 milhes,

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Xangai, saca, Pequim, Calcut, Bombaim e Seul. Assim, a sia tem a supremacia tanto no que se refere populao global como concentrao nos centros urbanos. Esta populao encontra-se distribuda muito desigualmente sobre a superfcie do continente asitico. Espaos imensos permanecem totalmente desertos. A populao agrupa-se no permetro do continente, desenhando uma espcie de grinalda, com a ndia, a pennsula indochinesa, a China e o arquiplago japons. Em 1750, estas multides nada pesam na balana das foras polticas, apesar de estes pases terem civilizaes antigas, requintadas, por vezes mesmo superiores s da Europa. A Europa bastante menos povoada do que a sia, mais do que a frica e muito mais do que a Amrica. Em 1750 estima-se em cerca de 140 milhes, o total de europeus. Num total de 700 milhes, este nmero representa um quinto. Dois homens em trs so asiticos; podemos acrescentar que um homem em cinco europeu. Se a Europa est, assim, na segunda posio, muito atrs da sia, distancia-se dela no que respeita densidade. A relao de densidade concede Europa uma primazia que nenhum continente lhe pode contestar: tem as taxas mais elevadas e certamente justo pensar que entre a densidade e a expanso da Europa no h uma mera coincidncia. E verosmil que os Europeus tenham encontrado nesta densidade um dos impulsos para a sua expanso na superfcie do Globo. No sculo XVIII a Europa , muito mais do que a sia, uma reserva ilimitada de homens. na Europa que os grandes movimentos migratrios da humanidade encontraro o seu ponto de partida no sculo XIX: cerca de 60 milhes de europeus expatriar-se-o. No sculo XVIII, o movimento era mais limitado e s afetava ainda algumas centenas de milhares de indivduos. Recordemos os valores: 60 000 canadianos de origem francesa nas margens do So Loureno, 1 milho de colonos nas treze colnias inglesas. O grande movimento de emigrao desencadear-se- aps as guerras da Revoluo e do Imprio e tomar uma amplitude considervel. No impediu, no entanto, o crescimento muito rpido da populao da Europa, apesar do dfice que deveria ter resultado d partida de 60 milhes de europeus e dos ganhos cessantes da sua descendncia. Sem dvida que o crescimento da Europa em dois sculos foi inferior ao da Amrica (passando de 12 ou 15 milhes para 440), mas foi superior ao da sia e na ordem do qudruplo. So estes os valores brutos, repartidos por grandes massas. O nosso planisfrio comea a animar-se e podemos j dispor nele fragmentos de humanidade, valores ponderados segundo a extenso do territrio. Estes fragmentos da humanidade continuam separados, o povoamento desigual, descontnuo, compartimentado. Existem ncleos densos, separados uns dos outros e que se ignoram: no tm mesmo a possibilidade de entrar em contacto uns com os outros, tendo em conta a mobilidade muito reduzida de que dispem ento os agrupamentos humanos. Esta descontinuidade contribui para a manuteno de uma grande diversidade das condies de vida, de mentalidades e de civilizaes. 2.4. O mundo simultaneamente subpovoado e superpovoado? Em temos relativos, o mundo de 1750 deve parecer-nos muito povoado: 700 milhes, contra 4000 milhes atualmente. O universo est subpovoado e, contudo, em 1750 j se encontra superpovoado em certos lugares. Aos contemporneos afigura-se mesmo no limite do superpovoamento. que a prpria noo de superpovoamento relativa: a resultante momentnea de uma relao, cujos termos variam constantemente, entre o nmero de homens e as suas possibilidades de existncia. Ora, estas possibilidades de existncia a subsistncia e o emprego no so definidas de uma vez por todas, modificam-se. Teramos, sem dvida, tendncia, atualmente, por causa da importncia dada ao problema da fome, a privilegiai a primeira em detrimento do segundo. H quarenta anos, devido grande crise econmica e gravidade do desemprego, teramos concedido menos ateno ao problema das subsistncias e mais ao do emprego, ou melhor, ao do subemprego. Na verdade, preciso tomar em considerao os dois aspetos.

As subsistncias 14

Na economia de antigo regime, a capacidade de um pas para sustentar a sua populao estritamente limitada pelo volume dos recursos alimentares. Seja qual for o seu grau de desenvolvimento, todos os pases esto sujeitos mesma lei; s mais tarde surgir uma diferena (que depois se consolidar) entre as economias que a partir de ento esto libertas da dependncia em relao ao problema das subsistncias e os dois teros da humanidade que, ainda hoje, conhecem o problema da fome como toda a humanidade o conhecia h duzentos anos. Em 1750 o volume da produo , portanto, limitado por um constrangimento aparentemente inexorvel. um dado determinante do regime demogrfico em todas as sociedades de antigo regime: vivem todas na obsesso da escassez, da qual ainda nenhuma conseguiu subtrair-se. Durante a Revoluo Francesa uma das componentes das jornadas revolucionrias: o abastecimento defeituoso, a inquietao da populao parisiense, a rutura dos stocks, desencadeiam surtos insurrecionais e a coincidncia entre o calendrio das dificuldades de abastecimento e o das peripcias revolucionrias frequentemente impressionante. Ser assim em Frana at s vsperas da revoluo de 1848. S desde meados do sculo XIX podemos dizer que a Frana est ao abrigo deste receio, com exceo, claro, das circunstncias excecionais ligadas guerra, derrota e ocupao estrangeira, como em 1940-1944. Assim, at meados do sculo XIX para a Frana, um pouco mais cedo para a Inglaterra, muito mais tarde para o resto do continente europeu, mas atualmente ainda para a maior parte dos outros continentes, a vida da populao e as suas possibilidades de crescimento demogrfico so comandadas, ritmadas, pela produo dos cereais, entre outros bens alimentares. Est-se merc de uma m colheita, das intempries, de um Vero chuvoso ou de um Inverno tardio; exemplo clssico o da Irlanda em 1846, onde a fome vitima meio milho de habitantes e condena outro meio milho emigrao. E custa desta diminuio brutal que os que ficam podem sobreviver. Apercebemo-nos, graas ao caso-limite deste pas exclusivamente agrcola, da fatalidade dos processos atmosfricos que ritmam a capacidade da agricultura e, consequentemente, o quantitativo da populao. No sculo XVIII, em alguns pontos privilegiados, os homens comeam a subtrair-se a esta dependncia. A revoluo agrcola, os progressos da agronomia, a descoberta feita pelos Britnicos da possibilidade de integrar a criao de gado na agricultura, a supresso do pousio e, em consequncia, a reconquista de um tero do solo abrem a esperana de perspetivas inesperadas.

O empregoNo suficiente haver alimento para todos. ainda necessrio que os que no tm terra possam ganhar a vida, obter os recursos que lhes permitam alimentar-se. Ora, no antigo regime, a situao caracteriza-se, na maior parte dos pases europeus, por um excedente de mo-de-obra. A revoluo demogrfica precedeu a revoluo industrial; por outras palavras, o crescimento da populao antecedeu a expanso das possibilidades de emprego. Toda uma populao excedentria de indigentes est espera de trabalho. Correndo o risco de repetir at saciedade este gnero de comparao mas s ele pode isentar-nos de projetarmos sobre a Frana e a Inglaterra do sculo XVIII as realidades dos nossos dias , estes dois pases conhecem ento uma situao anloga da Itlia meridional, que dispe de um excedente de mo-de-obra, no qual as economias industriais da Europa do Norte gostam de ir abastecer-se para satisfazerem as suas necessidades de trabalhadores. Estas sociedades esto sobrecarregadas com um excedente de populao: vagabundos, indigentes, que andam de aldeia em aldeia ou se amontoam nos subrbios das aglomeraes. O que por vezes se chama quarto estado constitudo por vrios milhes destes seres errantes. Na populao parisiense representam um quarto ou um quinto. Noutros pases, onde a ordem pblica no to eficazmente assegurada como nas monarquias absolutas, esta massa de trabalhadores sem emprego alimenta o banditismo; o bandoleirismo consequncia do desemprego em Itlia, nos estados da Igreja, no reino de Npoles (na Calbria), na Grcia, em Espanha. Teremos ainda de esperar pela revoluo industrial e pelos seus efeitos para que, pelo menos na Europa, se reabsorva a pouco e pouco o excedente de populao; mas todos os pases ditos em

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vias de desenvolvimento conhecem este problema, seja em frica, seja na Amrica Latina; estas massas miserveis, apinhadas nos subrbios, nos bairros-de-lata, nas favelas, so os irmos dos caminheiros, dos vagabundos, da Europa ocidental dos meados do sculo XVIII.

3 - A organizao social do antigo regimeEncarmos, sucessivamente, o espao sem os homens, depois contmos, recensemos e repartimos os homens pelo espao. Mas os homens no so meras individualidades isoladas: pertencem a agrupamentos, vivem em sociedade. ento necessrio situar estes homens nos conjuntos polticos e sociais que constituem. Este terceiro ponto de vista demorar-nos- mais do que os dois precedentes, pois faz parte do prprio corpo do nosso estudo. 3.1. Os princpios de toda a organizao social Os homens so apanhados num conjunto de relaes sociais que derivam do seu habitat, da sua condio profissional, da natureza da sua atividade e tambm das concees inspiradoras da sociedade. Encontram-se associados em pirmides de agrupamentos sobrepostos, enquadrados em sistemas sociais. Todas as sociedades so diferenciadas: esta afirmao no vlida apenas para as sociedades do antigo regime, mas tambm para as sociedades anteriores a ele ou para as sociedades contemporneas. No existem sociedades uniformes no interior das quais os indivduos sejam absolutamente intermutveis. Todas as sociedades se decompem - e organizam - num nmero maior ou menor de grupos intermedirios entre a poalha dos indivduos e a sociedade global. Isto por razes de ordem prtica: mesmo que no tivesse justificao, esta diferenciao seria imposta s sociedades por necessidades materiais, que resultam da diviso das tarefas, da velha lei da diviso do trabalho, que se aplica a todas as sociedades. Mesmo nas sociedades primitivas existe uma distino entre os que tm como funo preservar a segurana do grupo e que combatem e os que, ao abrigo da proteo assim assegurada, trabalham para garantirem a subsistncia do grupo. Esta distino implica outras: nos hbitos de vida, nos costumes, nos cdigos. A interdio feita aos nobres de trabalharem, cuja sano para os que a transgredissem era a derrogao, consequncia e efeito jurdico de tal distino. Alm da diferenciao das funes, imposta por necessidades de ordem prtica, surgem outras distines, de considerao, de estatuto jurdico, e que resultam das concees em vigor, da representao que os indivduos tm das relaes sociais, de sistemas de valores morais e sociais. , por exemplo, a ideia de que o servio de Deus deve preceder todas as atividades terrenas que justifica a proeminncia do clero sobre as outras ordens na sociedade do antigo regime. uma diferenciao de funes, mas legitimada por uma conceo das relaes entre o espiritual e o temporal. Do mesmo modo, o preconceito que confere maior estima atividade espiritual do que s atividades manuais est na origem da hierarquia social que coloca as profisses liberais, as artes liberais, acima daquilo a que se chamava artes mecnicas, abandonadas a uma mo-de-obra frequentemente servil. Assim, a organizao social a resultante de, pelo menos, dois tipos de fatores: uns econmicos e tcnicos (diviso do trabalho, distribuio das tarefas, especializao profissional) e os outros culturais, intelectuais, ideolgicos, filosficos. A sociedade sovitica atual, por razes tanto ideolgicas como materiais, coloca, na escala dos salrios, os intelectuais ou os tcnicos acima de todas as outras categorias. A sociedade do antigo regime, como todas as sociedades, a expresso destas duas ordens de fatores. Acabo de dizer: a sociedade do antigo regime. Na verdade, a afirmao inexacta, pois, falando corretamente, no existe uma sociedade do antigo regime, da mesma maneira que atualmente no poderamos falar de uma sociedade do sculo XX. Desafio quem quer que seja a propor uma descrio vlida para todas as sociedades que compem o mundo de 1978. Sociedade do sculo XVIII ou sociedade do sculo XX so abstraes por simplificao. De uma maneira geral, devemos desconfiar sempre que se fale da realidade, social ou poltica, no singular: o nmero habitual da histria e da realidade o plural. ento das sociedades do

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antigo regime que conveniente falar, mesmo que existam certas analogias ou traos comuns entre si. No as passarei todas em revista, exatamente por causa da sua diversidade. essencialmente da sociedade europeia do antigo regime que vou esquematizar os traos principais. Muitos destes traos sero realmente vlidos para o resto das sociedades que encontraremos mais tarde, quando estudarmos as relaes estabelecidas entre a Europa e os outros continentes. 3.2. As atividades profissionais Alguns caracteres dominantes definem as sociedades da Europa do antigo regime e permitem organizar um inventrio das atividades.

A sociedade rural partida, devemos sublinhar a esmagadora predominncia da sociedade rural sobre a sociedade urbana. Tal facto ainda verdadeiro em 1789 para todos os pases do mundo. Atualmente, j no se poderia dizer o mesmo, mas seria necessrio estabelecer uma classificao das sociedades contemporneas em funo das que so predominantemente urbanas e daquelas que so predominantemente rurais. Esse princpio de classificao no seria de nenhuma utilidade para a sociedade do antigo regime, visto que em todos os pases, sem exceo, a sociedade rural domina. Mesmo os pases mais avanados, economicamente e socialmente mais desenvolvidos, como a Inglaterra, as Provncias Unidas e a Itlia do Noite, tm ainda uma forte maioria de rurais. Na Frana, em 1789, numa populao global que podemos estimar em 26 ou 27 milhes de habitantes, mais de 20 milhes vivem no campo; noutros pases, a populao rural no representa 80%, mas 85%, 90%, 95%. A superioridade do campo sobre a cidade estende-se a todos os aspetos da vida social. vlida para a distribuio dos homens e tambm para o rendimento nacional: em 1780, os rendimentos dos campos representam ainda quase trs quartos do rendimento nacional total. O mesmo se passa quanto aos investimentos. Com exceo, talvez, das cidades hanseticas, das Provncias Unidas, de uma parte da Inglaterra e de alguns portos, a forma habitual de aplicar o dinheiro na terra. No que a renda fundiria o rendimento proporcionado pela posse ou pela explorao da terra assegure benefcios superiores aos outros investimentos, bem pelo contrrio; o rendimento dos capitais aplicados no comrcio, interno ou externo, infinitamente mais remunerador. Se a burguesia francesa aplica normalmente os seus proventos na terra, porque a encontra mais segurana; deste ponto de vista, a desastrosa experincia feita no princpio da regncia com o sistema de Law s podia ter encorajado os investimentos fundirios. As razes essenciais desta ligao pertencem ao foro da psicologia coletiva: numa sociedade dominada por valores rurais s a posse da terra digna de considerao, s ela enobrece. ela que est na origem da ascenso social. Sociedade rural no sinnimo de populao agrcola. A distino importante: a populao agrcola aquela que vive diretamente do trabalho da terra, a cultiva e dela retira a sua subsistncia. Comporta uma hierarquia de posies. No cume, os proprietrios exploradores, aqueles que na sociedade rural da Frana do antigo regime eram conhecidos como laboureurs1, tm suficientes bens ao sol para no precisarem de arrendar terras alheias. No mais baixo da escala esto os que trabalham a terra sem a possurem. Entre a posse da terra e o trabalho da terra, as relaes podem ser diversas e revestir mltiplas formas, que tanto se confundem como se dissociam, segundo as regies da Europa. Os regimes que definem estas relaes dependem, por um lado, de fatores propriamente econmicos e, por outro, de fatores jurdicos ou polticos, instituies, cdigos, regras impostas pelo direito. Exemplo de fator econmico: o endividamento, fenmeno clssico de todas as sociedades rurais, drama de todos os camponeses do mundo, de todos os tempos, da antiguidade greco-latina

1 Laboureur, na origem, aquele que dispunha de terra suficiente para lavrar com animais. Estadefinio recobre depois um conjunto de proprietrios desafogados e corresponde, de algum modo, de lavradores em algumas pocas e regies de Portugal. (N. do R.)

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(Slon ou os Gracos), da China anterior revoluo agrria, dos agricultores americanos nos tempos da grande crise. O endividamento um problema crnico que se pe a todas as sociedades rurais. Tem como consequncia despojar os camponeses e transferir a posse da terra daqueles que a detinham para os usurrios, os bancos ou os prestamistas. A par dos fatores econmicos aparecem tambm fatores sociais ou jurdicos. Deste ponto de vista, observam-se na Europa anterior Revoluo Francesa diferenas muito marcadas. Alm disso, verificam-se evolues em sentido contrrio: a Europa oriental parece enveredar por uma via exactamente oposta quela que os camponeses da Europa ocidental seguem. A Europa est longe de formar uma unidade, tornando-se impossvel falar no singular de uma sociedade de antigo regime como se apresentasse traos anlogos de uma ponta outra do continente.

No Oeste da EuropaNo Oeste da Europa ( sobretudo verdade para a Frana), um movimento lento, mas contnuo, tende, h vrios sculos, a emancipar os homens da terra. A servido quase desapareceu. Calcula-se que haver pouco menos de 1 milho de servos na Frana do antigo regime, cuja condio melhorou sensivelmente. O desaparecimento da servido a rutura do vnculo que sujeitava o homem vontade de um senhor e a uma dada terra. uma etapa capital na evoluo que a pouco e pouco liberta o indivduo e lhe permite escolher a sua residncia, o seu ofcio, o seu emprego; esta mobilidade aumentar nos sculos XIX e XX. Contudo, os direitos feudais perpetuam um sinal tangvel da dependncia do campons em relao aos senhores. Mas a realidade desses direitos no cessou de se amenizar. Com efeito, geralmente em dinheiro que esses direitos so liquidados. O montante foi definido num passado distante e, mais tarde, o movimento da alta dos preos, que implica a depreciao da moeda, aliviou singularmente esse encargo. Esta progressiva diminuio provocar o fenmeno da reao nobiliria. Com o desaparecimento da servido, a reduo progressiva dos direitos feudais, o campons, em Frana e numa parte da Europa ocidental, sente-se senhor em sua casa. Considera como sua a terra que trabalha. Tem a garantia de nela poder permanecer e de a transmitir aos filhos. A Revoluo Francesa, enquanto revoluo social, consagrar este movimento secular. No inverte a tendncia, antes a aproxima do termo. Sem ela teriam sido, provavelmente, necessrios vrios sculos para se chegar extino dos direitos feudais. A revoluo vai aboli-los em duas etapas - noite de 4 de Agosto, decretos da Conveno em 1793. Tal o significado das medidas tomadas pelas assembleias revolucionrias sobre a matria: consagram como um direito um movimento irreversvel iniciado vrios sculos antes.

Na Europa centralMais a leste, na Europa central (possesses dos Habsburgos, Alemanha e leste do Elba), a situao bem diferente: a servido ligada economia fundiria a condio normal. Aps os desastres da guerra dos Trinta Anos, a aristocracia reconstituiu os grandes domnios. A economia essencialmente agrria; h muito pouco dinheiro, poucas trocas. Na falta de dinheiro e na impossibilidade de os proprietrios formarem uma mo-de-obra assalariada, estes vem-se obrigados a reduzi-la servido. A servido uma componente essencial e como que a contrapartida do sistema econmico e social. De que serviria aos grandes proprietrios da Bomia ou da Hungria disporem de vastos domnios se no tivessem mo-de-obra para os explorar? A servido uma necessidade, na medida em que ainda no existe uma economia monetria que comporte a circulao e as trocas. A servido durar na Europa central at ao sculo XIX, apesar de ter sido sujeita a um certo nmero de proibies. Em 1781 Jos II aboliu a servido pessoal, ou seja, a forma mais humilhante, a que se afigurava ao esprito do sculo como a mais contrria dignidade do homem, a servido que ligava o indivduo, no ao solo, mas a um senhor, a que parecia irm da escravido. Em 1807, logo aps a derrota de Jena, quando a Prssia empreendeu um conjunto de reformas destinadas a modernizar-se para que pudesse encarar ulteriormente uma prova de fora com a Frana da revoluo, suprimiu a servido. Em 1848, beneficiando da revoluo na ustria, a grande Assembleia Constituinte abolir os vestgios da servido. Assim, na parte

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central da Europa preciso esperar por meados do sculo XIX para que desapaream, por um ato legislativo, os resqucios da servido, que fora, durante sculos, o sistema de relaes entre a terra e o homem.

Na RssiaMais a leste, na Rssia, a evoluo inversa. A servido acaba de desaparecer no Ocidente, mas mantm-se no centro, onde as suas posies comearam j a ser desorganizadas. A leste estende-se. A Rssia no a conheceu praticamente at ao sculo XVI. Desde ento tende a tornar-se uma regra. nesse ponto que a histria russa diverge fundamentalmente da do resto da Europa. a poltica dos czares que alarga a servido; Pedro, o Grande, Isabel, Catarina, obedecem a duas ordens de consideraes. Para eles o meio de recompensarem a fidelidade dos nobres primeiro dar-lhes terras; no entanto, que vale a terra sem a mo-de-obra? Reencontramos a mesma necessidade inelutvel. -lhes ento concedida, ao mesmo tempo que o domnio, a mo-de-obra, uma ou mais aldeias, com as suas almas, como se diz na literatura russa do sculo XIX. Em Frana o rei pode dar uma penso aos nobres: a economia j suficientemente monetria, o rei suficientemente rico para o fazer. O czar no pode dar mais do que aquilo que tem: terra e homens. A esta razo juntam-se razes administrativas. Poder-se-ia dizer da Rssia setecentista do sculo XVIII que era subadministrada. Os czares no dispem de pessoal suficiente para administrar um territrio to amplo e para enquadrar a populao. Recordemos o que dissemos da distncia relativa e da disperso dos -homens em vastssimos espaos. No sculo XVIII a Rssia no governvel pelos mtodos e pelas prticas de uma administrao centralizada. O soberano v-se, assim, obrigado a deixar a administrao dos homens nos senhores; cede aos proprietrios o cuidado de administrar, de manter o Estado civil, de exercer a justia, de lanar os impostos, de fornecer milicianos ao exrcito. Em contrapartida, os homens pertencem-lhes. A servido no mais do que uma pea de um sistema social que uma sobrevivncia do feudalismo. Ser preciso esperar pelo ucasse libertador de 1861, pelo qual o czar Alexandre II tomou a iniciativa de abolir a servido. Assim, em 1750 muitos camponeses europeus esto ainda submetidos a diversas dependncias: servides, direitos feudais. Mas algumas coaes so mais horizontais do que verticais: as que advm j no da sobreposio de uma ordem autoritria, mas de costumes, de tradies, de regulamentos adotados em comum. So as chamadas obrigaes comunitrias ou serventias coletivas, expresses que designam a mesma realidade. Estas obrigaes esto em relao direta com as condies da economia. So impostas, em primeiro lugar, pelo estado da agricultura, dos conhecimentos e das possibilidades agrcolas, das condies tcnicas, pela diviso das terras, o fraco rendimento, a necessidade de associar numa mesma rea a produo de cereais e a criao de um rebanho. Estas exigncias de ordem tcnica sero mais tarde consagradas pelas obrigaes jurdicas, sancionadas em caso de infrao. O conjunto destas serventias, que se elaborou pouco a pouco, vem de um passado extremamente antigo e remonta a milnios: estas obrigaes so bastante anteriores ao feudalismo; comparativamente, a servido recente. Desenvolveram-se nas regies de campos abertos, onde as parcelas se entrelaam e tornam indispensvel o cultivo em conjunto: necessrio plantar as mesmas sementes, fazer a colheita ao mesmo tempo. Da decorre um certo nmero de interdies. Os camponeses, mesmo que sejam proprietrios de pleno direito, no podem cultivar o que querem, nem variar de culturas a seu bel-prazer. Os afolhamentos so fixados pela tradio. Eles no podem to-pouco murar ou fechar as suas terras, pois, logo que a colheita feita, o rebanho comunitrio tem de ter acesso sua parcela; o que se chama a vaine pture. Toda a atividade est, assim, inscrita numa rede cerrada de obrigaes que a comunidade local procura fazer respeitar. No existe individualismo agrrio. Esta a situao tanto das comunidades francesas da Champagne e da Picardia como das aldeias alems e hngaras ou do mir da plancie russa. Por toda a parte, comunidades fortemente constitudas encerram as iniciativas dos indivduos em limites estreitos fixados pelo costume, pelas tradies, pelas autoridades locais. Esta dependncia econmica prolonga-se por uma obrigao social que regula todos os pormenores da existncia. Os usos, os costumes, mesmo as crenas, so impostos pela comunidade. No h mobilidade nem liberdade.

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As coisas passam-se de modo um pouco diferente nas regies de campo fechado, de bocage2, onde o habitat disperso d aos indivduos uma mais ampla margem de iniciativa; mas isto constitui uma exceo em relao a sociedades rurais fortemente organizadas e estruturadas. No sculo XVIII o caso da Inglaterra diferente. , juntamente com a Rssia, a segunda anomalia na Europa: a Inglaterra comea a seguir uma via original. A sua agronomia est mais avanada; os proprietrios ingleses podem vedar o seu domnio, pedindo uma autorizao ao Parlamento: so os enclosure acts. Uma vez vedadas, as propriedades so frequentemente transformadas: o cultivo dos cereais substitudo por culturas de forragens e pela pecuria, mais remuneradora e que exige menos mo-de-obra. Ao mesmo tempo desenha-se um movimento de concentrao da terra. De incio, a transformao assim econmica, posto que exija uma formalidade jurdica. Implica consequncias sociais. Com a concentrao da terra, a classe dos pequenos proprietrios, os yeomen, progressivamente despejada. E ganha fora uma aristocracia de grandes proprietrios fundirios, que ao mesmo tempo proprietria da terra, senhora da administrao local, e detm a esmagadora maioria dos lugares no Parlamento. Eis a diversidade das condies em que vive a populao agrcola da Europa do antigo regime. Mas a sociedade rural no se compe unicamente dos camponeses, dos agricultores. Ao seu lado, no campo, existe igualmente uma populao numerosa que no vive diretamente do trabalho da terra: artfices rurais, comerciantes rurais, todos os que exercem pequenos ofcios a meio caminho entre a agricultura e a indstria. A Europa do sculo XVIII possui uma indstria rural dispersa. Na verdade, no sculo XVIII a agricultura e a indstria no se opem como atualmente. Hoje em dia a agricultura est no campo e a indstria na cidade; nessa poca entremeavam-se. Cidade e indstria no se atraem necessariamente. As cidades esto longe de serem em todos os casos centros industriais. As funes especficas das cidades so outras: funo de troca, com o comrcio e a banca, ou funo administrativa e intelectual, raramente a atividade industrial. Reciprocamente, a indstria encontra-se pouco concentrada: no tem ainda necessidade de mquinas, de energia, de mode-obra importante. Pode dispersar-se pelo campo. A indstria fixa-se perto dos cursos de gua, que fornecem a energia para acionar moinhos, prensas de papel, forjas, martelos, ou na proximidade das florestas, que lhe do o combustvel necessrio. A indstria domstica difundiuse at nas pequenas aldeias. Muitos camponeses tm tambm um ofcio. A indstria proporciona-lhes durante o Inverno um trabalho complementar, um salrio adicional. Os mercadores fornecem-lhes a matria-prima e revendem os produtos fabricados. H assim toda uma circulao de produtos e de trocas na qual as aldeias esto integradas. Deste modo, dada a osmose entre o trabalho da terra e a indstria caseira e dadas as obrigaes impostas pelas comunidades agrcolas, a sociedade rural do antigo regime muito diferente da nossa.

A sociedade urbana As cidadesSobre o sustentculo que a sociedade rural estabeleceu em toda a parte desenham-se as cidades. A existncia de cidades como conjuntos organizados to antiga como a das sociedades. Trata-se de um elemento constitutivo de todas as sociedades. Mas o fenmeno urbano pode revestir-se das formas mais diversas e a sua importncia quantitativa variar no tempo e no espao. No sculo XVIII o fenmeno encontra-se ainda pouco desenvolvido. a contrapartida do predomnio da sociedade rural; s uma pequena minoria vive na cidade. Existem numerosas cidades, mas muito poucas grandes cidades. Em 1800, mesmo a Inglaterra que, no entanto, se adianta na via da urbanizao ao resto da Europa e mais ainda aos outros continentes no tem mais de cinco cidades com mais de 100.000 habitantes, havendo vinte e trs em toda a Europa. Em Frana, Paris rene, nas vsperas da Revoluo Francesa, cerca de 650.000 habitantes; todavia, no podemos generalizai- a partir de Paris, que um monstro. Com

2 Bocage, regime agrrio, prprio de algumas regies da Frana, caracterizado pela delimitaoclara das exploraes agrcolas, separadas por sebes vivas ou renques de rvores. (TV. do R.)

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excluso de Paris, s Lyon ultrapassa - embora por pouco - a cota dos 100 000, com cerca de 135 000 habitantes. O fenmeno est desigualmente repartido pela Europa. O grau de urbanizao varia de maneira considervel de regio para regio em funo da antiguidade da urbanizao de cada uma. Grosso modo, as regies urbanizadas desenham uma espcie de faixa orientada de noroeste para sueste da Europa ocidental, desde as costas do mar do Norte e do Bltico at parte setentrional da Itlia, Adritico e mar Tirreno. Esta nebulosa composta pelas cidades hanseticas, pelas cidades holandesas, portos das Provncias Unidas (Amsterdo, Delft, tiveram o seu sculo de ouro nos princpios do sculo XVII, depois de terem sido libertadas da tutela da coroa de Espanha); pelas cidades flamengas mais antigas, que tiveram em muitos casos de conquistar a sua liberdade aos bispos e algumas das quais, desde o sculo XIII, eram centros ativos graas ao comrcio e tecelagem de panos e peles; pelas cidades alems do vale do Reno, da Baviera, na Subia, na Francnia, no sop dos Alpes, na sada dos desfiladeiros por onde passam as vias de comunicao entre a Europa do Norte e a Europa do Sul, entre todas essas partes ativas da Europa; finalmente, pelas grandes cidades da Itlia setentrional, Milo, Verona, e os portos, Veneza, Gnova. Eis, desenhado sumariamente, o mapa das maiores zonas urbanas. Se momentaneamente nos abstrairmos dos meados do sculo XVIII e considerarmos a Europa da atualidade, descobriremos algumas analogias. O mapa dos centros urbanos, da concentrao humana, das grandes vias de comunicao, das auto-estradas, reconstitui hoje essa trajetria orientada de noroeste para sueste, do mar do Norte at Itlia, que deixa a Frana um pouco a oeste. A existncia e a prosperidade destas cidades esto em muitos casos ligadas a certas indstrias (txtil e por vezes tambm indstrias mais modernas, como a tipografia, em Lyon), mas entre o negcio e a cidade que o lao mais estreito. A cidade , em primeiro lugar, um centro de trocas, sejam sazonais (as feiras peridicas), sejam permanentes. Foi do comrcio que nasceu a maior parte dos grandes centros urbanos. Esta correlao entre a atividade das trocas e a cidade tem consequncias quanto composio social da populao urbana. A burguesia antes de mais uma burguesia de mercadores, de negociantes. Existe uma verdadeira hierarquia desde o pequeno retalhista, o regato, at ao negociante que faz comrcio com o resto do mundo conhecido. Trata-se portanto de comrcio interno e de comrcio externo, continental e martimo.

Os portosA maior parte das grandes cidades so portos. Em Itlia, para Veneza e para Gnova, a prosperidade econmica traduz-se politicamente na independncia. Veneza e Gnova so repblicas soberanas que conseguiro preservar a independncia at s convulses da revoluo. O mesmo se passa nas Provncias Unidas, onde os portos detm a primazia. Em Inglaterra, Londres, capital poltica, um grande porto de mar. Em Frana tambm se verifica esta concomitncia entre a importncia dos centros urbanos e a atividade martima. A seguir a Paris e Lyon, por ordem decrescente, sucedem-se Marselha, com 90.000 habitantes, Bordus, com 84.000, Roven, com 72.500, e Nantes, com 57.000, estes valores referem-se s vsperas da Revoluo Francesa. Entre Roven e Nantes situa-se Lille, que se incorpora na constelao das cidades txteis da Flandres. significativo que, entre as sete primeiras cidades de Frana, quatro sejam portos, trs dos quais do Oeste: Bordus, Roven e Nantes. A geografia dos centros urbanos modificou-se desde ento. Nas vsperas da revoluo mais de metade dos grandes centros urbanos estavam situados a oeste do meridiano de Paris. Atualmente a leste do mesmo meridiano que encontramos as regies mais ativas, mais povoadas e mais industrializadas. H aqui uma mudana profunda na distribuio do rendimento nacional e na estrutura das atividades. Para se retomar a distino, agora clssica, entre Frana dinmica e Frana esttica, nas vsperas da revoluo a Frana dinmica a Frana do Oeste; hoje a do Leste, e sabemos bem os problemas que implica para o ordenamento do territrio a reanimao das regies em declnio do Oeste e do Sudoeste.

As burguesias 21

Da mesma forma que descrevemos diversas sociedades do antigo regime, falaremos em seguida de diversas burguesias do antigo regime, diferentes nas suas origens, nas suas atividades profissionais, no seu modo de vida. Ao lado de uma burguesia que vive do comrcio existe uma burguesia intelectual e da administrao, uma burguesia das profisses liberais, a que gravita roda dos parlamentos. A burguesia, seja de comrcio ou de funo, est muito desigualmente desenvolvida atravs da Europa. A sua amplitude depende do grau de desenvolvimento dos pases, o qual varia em funo do desenvolvimento econmico e da difuso dos conhecimentos. No domnio econmico, sabemos que as sociedades martimas tomaram um avano considervel em relao s sociedades continentais. o mesmo que dizer que no Ocidente encontramos uma burguesia importante que no tem equivalente no Leste, onde, salvo raras excees, nada se interpe entre um campesinato de servos e uma aristocracia de grandes proprietrios, boiardos russos ou magnates hngaros. A inexistncia de burguesia tem consequncias para a economia e para a governao da Europa oriental. A ausncia de uma classe que disponha de capitais e desejosa de os investir, instruda, culta, capaz de tomar iniciativas, fora o Estado a substituir-se-lhe. Na Rssia e na Prssia o poder que suscita a indstria, que desenvolve o pas. uma das caractersticas do regime. Uma poltica econmica de iniciativa governamental, com interveno do Estado, uma das caractersticas do despotismo iluminado, e no um acaso que o mapa do despotismo iluminado coincida com o dos pases onde a burguesia praticamente inexistente. Pressentimos, assim, numa medida que ser necessrio precisar, que o estado da sociedade modela a forma do regime poltico e concorre para fixar a natureza do governo. Em Frana a situao completamente diferente: existe desde h sculos uma burguesia importante, ativa, rica, culta, mas muito pouco audaciosa, sendo assim o Estado obrigado a desempenhar o papel de empresrio. A Frana possui uma tradio de iniciativa governamental, de que o sistema colbertista a expresso mais acabada. Esta burguesia no desempenha em Frana o papel que a vemos representar em Inglaterra, onde se encontra na origem do progresso. As razes so essencialmente psicolgicas e culturais e sublinham bem o peso de fatores no econmicos. Se o Estado se v assim obrigado a substituir a burguesia porque a burguesia se desvia da economia. Por um lado, ela compra terras, o que, como j vimos, equivale a dizer que, no fundo, est mais vida de considerao do que de lucros. Procura a honorabilidade, aspira a identificar-se com a nobreza. O cdigo dos valores sociais desvia assim os capitais do comrcio ou da indstria e esteriliza-os na compra de terras, sem que haja qualquer preocupao em modernizar a sua explorao ou melhorar o seu rendimento. Por outro lado, a burguesia compra cargos. a consequncia da venalidade dos ofcios. Devido organizao defeituosa das finanas, a monarquia francesa nunca soube aproveitar os recursos da sua poltica; esteve sempre reduzida a viver de expedientes. Um desses expedientes consistia em vender os cargos de justia e administrativos. Esses cargos tentam a burguesia, pois fornecem-lhe essa considerao de que est vida e uma possibilidade de os seus herdeiros ascenderem nobreza. A terra e os cargos, eis para onde vo em Frana os recursos da burguesia. 3.3. Ordens e classes Aps a descrio da sociedade em funo da sua localizao no espao, das suas atividades profissionais e da distino entre cidade e campo, convm considerar agora os aspetos jurdicos. Qual o lugar, qual o estatuto deste ou daquele grupo no todo social? Quais so as relae