Introdução a Estudos de Fonologia Do Português BrasileiroV

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Linguística

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  • Introduo a estudos de

    fonologia do portugus brasileiro

  • Chanceler

    Dom Jaime Spengler

    Reitor

    Joaquim Clotet

    Vice-Reitor

    Evilzio Teixeira

    Conselho Editorial

    Jorge Luis Nicolas Audy PresidenteJeronimo Carlos Santos Braga Diretor

    Jorge Campos da Costa Editor-Chefe

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    Augusto Buchweitz

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    Beatriz Regina Dorfman

    Bettina Steren dos Santos

    Carlos Gerbase

    Carlos Graeff Teixeira

    Clarice Beatriz da Costa Sohngen

    Cludio Lus C. Frankenberg

    Erico Joao Hammes

    Gilberto Keller de Andrade

    Lauro Kopper Filho

    Luciano Klckner

  • Porto Alegre, 2014

    Leda Bisol

    Introduo

    a estudos de fonologia do portugus brasileiro

    (Org.)

  • Ficha Catalogrfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informao da BC-PUCRS.

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    EDIPUCRS Editora Universitria da PUCRSAv. Ipiranga, 6681 Prdio 33 Caixa Postal 1429 CEP 90619-900Porto Alegre RS Brasil Fone/fax: (51) 3320-3523 e-mail: [email protected] www.pucrs.br/edipucrs

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    EDIPUCRS, 2014, Verso eletrnica da 1 reimpresso (5 Edio).

    CAPA Vincius XavierREVISO TEXTUAL Fernanda LisbaREVISO FINAL Leda Bisol e autoresEDITORAO Supernova EditoraIMPRESSO E ACABAMENTO

    Edio revisada segundo o novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa.

    I61 Introduo a estudos de fonologia do portugus brasileiro[recurso eletrnico] / org. Leda Bisol. 5.ed. Dadoseletrnicos. Porto Alegre : EDIPUCRS, 2014.286 p.

    Modo de acesso: ISBN 978-85-397-0455-2

    1. Fonologia. 2. Lingustica. 3. Portugus Fonologia.I. Bisol, Leda.

    CDD 469.15

  • SUMRIO PREFCIO .......................................................................................... 9

    1 INTRODUO TEORIA FONOLGICA .................................... 111.1 Consideraes preliminares: fonologia e fontica ............................... 111.2 Modelos tericos ................................................................................. 131.2.1 Modelo linear de Chomsky e Halle ..................................................... 141.2.1.1 A teoria gerativa clssica: aspectos gerais ........................................... 141.2.1.2 O componente fonolgico da gramtica nveis de representao..... 151.2.1.3 Traos distintivos ................................................................................. 171.2.1.3.1 O conjunto de traos do modelo de Chomsky e Halle ........................ 201.2.1.3.2 A relevncia dos traos distintivos ...................................................... 261.2.1.3.3 Algumas revises da proposta terica ................................................. 271.2.1.4 Classes naturais ................................................................................... 291.2.1.5 Traos distintivos versus traos redundantes ....................................... 311.2.1.6 Regras fonolgicas ............................................................................. 341.2.1.7 Ordenamento de regras ........................................................................ 391.2.2 Modelos no lineares ........................................................................... 431.2.2.1 Fonologia Autossegmental .................................................................. 451.2.2.1.1 Geometria de traos ............................................................................. 471.2.2.1.1.1 Justificativadaestrutura ...................................................................... 521.2.2.1.1.2 N de raiz ............................................................................................ 521.2.2.1.1.3 N larngeo .......................................................................................... 541.2.2.1.1.4 N cavidade oral .................................................................................. 551.2.2.1.1.5 N pontos de consoante ....................................................................... 561.2.2.1.1.6 N voclico .......................................................................................... 571.2.2.1.1.7 N pontos de vogal .............................................................................. 571.2.2.1.1.8 N abertura .......................................................................................... 591.2.2.1.2 Tipos de segmentos ............................................................................. 611.2.2.1.3 Princpios bsicos ................................................................................ 641.2.2.2 Fonologia Mtrica .............................................................................. 68 Exerccios ............................................................................................ 74

    2 FONOLOGIA LEXICAL ................................................................... 822.1 Introduo ............................................................................................ 822.2 Princpios e Condies ........................................................................ 842.3 A Condio Elsewhere ......................................................................... 892.4 A Organizao do Lxico .................................................................... 922.5 Uma Derivao .................................................................................... 94 Exerccios ............................................................................................ 97

  • 63 A SLABA EM PORTUGUS ............................................................ 993.1 Teoria da slaba .................................................................................... 993.1.1 Conceitos bsicos ................................................................................ 993.1.2 Unidades de durao ............................................................................ 1013.1.2.1 Slabas pesadas e leves ........................................................................ 1013.1.2.2 As moras .............................................................................................. 1043.1.3 O molde silbico .................................................................................. 1053.1.4 Condies universais de silabao ...................................................... 1083.1.4.1 A sequncia de sonoridade .................................................................. 1093.1.4.2 O licenciamento prosdico .................................................................. 1113.2 A slaba em portugus ......................................................................... 1153.2.1 O molde silbico .................................................................................. 1153.2.2 Osfiltros .............................................................................................. 1183.3 O ditongo e o hiato .............................................................................. 1193.4 A ressilabao ...................................................................................... 1243.5 Regras fonolgicas que fazem referncia slaba ............................... 127 Leituras suplementares.......................................................................... 128 Exerccios ............................................................................................ 128

    4 O ACENTO EM PORTUGUS .......................................................... 1324.1 Fonologia Mtrica (continuao) ........................................................ 1324.2 O acento em portugus ........................................................................ 1394.2.1 Introduo ............................................................................................ 1394.2.2 Regras fonolgicas que fazem referncia ao acento ............................ 1444.2.3 Anlises gerativas do acento ............................................................... 1454.2.3.1 Mateus (1975) ...................................................................................... 1454.2.3.2 Lopez (1979) ....................................................................................... 1474.2.3.3 Leite (1974) ......................................................................................... 1484.2.4 Anlises mtricas ................................................................................. 1504.2.4.1 Bisol (1992) ......................................................................................... 1504.2.4.2 Lee (1994) ........................................................................................... 1544.3 O acento secundrio em Portugus ...................................................... 156 Leituras suplementares.......................................................................... 162 Exerccios ............................................................................................ 162

    5 O SISTEMA VOCLICO DO PORTUGUS .................................... 1665.1 As vogais ............................................................................................. 1665.1.1 Posio tnica ...................................................................................... 1665.1.2 Posies tonas .................................................................................... 1675.1.3 As vogais nasais .................................................................................. 1695.1.3.1 A proposta de Cmara Jr. ..................................................................... 1695.1.3.2 Outras propostas .................................................................................. 1715.1.3.3 Os ditongos nasais ............................................................................... 1745.2 As vogais do portugus: uma viso autossegmental ........................... 1765.2.1 Neutralizao das vogais mdias tonas .............................................. 176

    asusHighlight

  • 75.2.2 Neutralizao de vogais mdias tnicas .............................................. 1795.2.2.1 Regras condicionadas prosodicamente ................................................ 1795.2.2.1.1 Abaixamento datlico ........................................................................... 1795.2.2.1.2 Abaixamento espondeu ....................................................................... 1825.3 Harmonia verbal .................................................................................. 1845.3.1 A anlise de Harris ............................................................................... 1845.3.2 A anlise de Mateus ............................................................................. 1905.3.3 A anlise de Quicoli ............................................................................. 1925.3.4 A anlise de Wetzels ............................................................................ 196 Leituras suplementares.......................................................................... 199 Exerccios ............................................................................................ 199

    6 AS CONSOANTES DO PORTUGUS ............................................. 2026.1 O sistema consonantal do portugus ................................................... 2026.1.1 Na viso estruturalista de Cmara Jr. . ................................................ 2026.1.2 Na viso gerativista de Lopez .............................................................. 2046.1.3 Na viso autossegmental: consoante simples, complexa e de contorno 2076.2 As variantes do sistema consonantal ................................................... 2086.2.1 A vibrante ............................................................................................ 2116.2.1.1 A interpretao de Cmara Jr. .............................................................. 2136.2.1.2 A interpretao de Lopez ..................................................................... 2156.2.1.3 Uma viso autossegmental .................................................................. 2166.2.2 A lateral ps-voclica .......................................................................... 2216.2.2.1 Uma anlise no linear ........................................................................ 2226.2.2.1.1 Sob a tica da Geometria de Traos .................................................... 2226.2.2.1.2 Sob a tica da Fonologia Lexical ........................................................ 2246.2.3 A palatalizao da oclusiva dental ....................................................... 2276.2.3.1 Viso linear .......................................................................................... 2286.2.3.2 Viso autossegmental .......................................................................... 228 Leituras suplementares.......................................................................... 232 Exerccios ............................................................................................ 233

    7 TEORIA DA OTIMIDADE E FONOLOGIA................................... .. 2367.1 Propriedades da TO ............................................................................. 2367.1.1 Violabilidade ........................................................................................ 2377.1.2 Ranqueamento ..................................................................................... 2387.1.3 Inclusividade ........................................................................................ 2397.1.4 Paralelismo ......................................................................................... 2397.2 O Funcionamento da TO: arquitetura da gramtica ............................ 2407.2.1 LEXICON o inventrio lexical ......................................................... 2417.2.2 GEN o gerador .................................................................................. 2447.2.3 CON o conjunto universal de restries ........................................... 2457.2.4 EVAL o mecanismo de avaliao ..................................................... 2497.3 Questes adicionais e aplicaes da TO .............................................. 252

  • 87.3.1 O poder explicativo da TO e o problema da opacidade ...................... 2537.3.2 Aquisio da Linguagem e TO ............................................................ 2567.3.3 Variao e mudana na perspectiva da TO .......................................... 257

    8 OS CONSTITUINTES PROSDICOS .............................................. 2598.1 A hierarquia prosdica ......................................................................... 2608.1.1 A slaba ................................................................................................ 2618.1.2 O p mtrico ........................................................................................ 2628.1.3 A palavra fonolgica ............................................................................ 2638.1.4 O grupo cltico ..................................................................................... 2638.1.5 A frase fonolgica ................................................................................ 2668.1.6 A frase entonacional ............................................................................ 2688.1.7 O enunciado (U) .................................................................................. 270

    REFERNCIAS .................................................................................. 272

    NDICE REMISSIVO ......................................................................... 283

  • 9 PREFCIO Este livro, fruto de um curso que ministrei no Ps-Graduao da

    PUCRS, no segundo semestre de 1994, o resultado do esforo dos seguintes alunos do programa de doutoramento, hoje todos professores de universidades: Carmen Lcia Matzenauer, Dermeval da Hora, Elisa Battisti, Gisela Collischonn, Laura Quednau, Luiz Carlos Schwindt, Maria Jos Blaskovski Vieira e Valria N. O. Monaretto.

    Os diferentes captulos constituem resenhas didticas que se estendem da obra de Mattoso Cmara Jr. a descries fundamentadas em teorias fonolgicas, atualmente em vigor, passando pela fonologia gerativa de Chomsky e Halle, quando alguns trabalhos referentes ao portugus foram contemplados.

    verdade que no foi possvel alcanar todas as propostas tericas, por mais interessantes que fossem, nem todas as anlises do portugus brasileiro. No foi essa a inteno, mas somente a de introduzir a teoria fonolgica no linear de forma acessvel ao ensino, de modo que estudantes de nvel de graduao a ela tambm tivessem acesso. Foram escolhidas, pois, aquelas anlises que permitissem estabelecer a ponte entre a verso tradicional e a moderna, por ensejarem estudos comparativos ou por introduzirem de alguma forma o novo.

    Embora encabeado cada captulo por membros do grupo, responsveis pelaredao,aversofinalqueoconstituioreflexodemuitasversesdiscutidas em classe, sedimentadas em alto esprito de coleguismo e na convico de que se estaria oferecendo importante contribuio para o ensino da fonologia do portugus.

    Dentrodeseuslimites,olivrorefleteopensamentoeasdescobertasdemuitos fonlogos e o ideal com que foi elaborado: o de tornar a fonologia acessvel aos que se sentirem motivados para estudos lingusticos.

    Porto Alegre, 24 de abril de 2010.

    Leda BisoL

  • 11

    1 INTRODUO TEORIA FONOLGICACarmen LCia Barreto matzenauer*

    * Universidade Catlica de Pelotas, RS (UCPEL)

    1.1 CONSIDERAES PRELIMINARES: FONOLOGIA E FONTICA

    A lngua constitui o meio mais completo de comunicao entre as pessoas. De uso dirio, inclusive por crianas pequenas, to natural como parte integrante da vida humana, que passa despercebida a complexidade que a caracteriza. Os falantes de uma lngua, atravs de sons, veiculamsignificadospensamentos, sentimentos, emoes einteragem socialmente, sem dar-se conta de sua organizao interna, do sistema que a constitui.

    A forma sistemtica como cada lngua organiza os sons o objeto de estudo da fonologia. Existe outra cincia, a fontica, cujo objeto de estudo a realidade fsica dos sons produzidos pelos falantes de uma lngua. Portanto, fonologia e fontica apresentam campos de estudo relacionados, mas objetivos independentes. A fontica visa ao estudo dos sonsdafaladopontodevistaarticulatrio,verificandocomoossonssoarticulados ou produzidos pelo aparelho fonador, ou do ponto de vista acstico, analisando as propriedades fsicas da produo e propagao dos sons, ou ainda do ponto de vista auditivo, parte que cuida da recepo dos sons. A fonologia, ao dedicar-se ao estudo dos sistemas de sons, de sua descrio, estrutura e funcionamento, analisa a forma das slabas, morfemas, palavras e frases, como se organizam e como se estabelece a relao mente e lngua de modo que a comunicao se processe.

  • Leda Bisol (org.)

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    Por essa caracterizao, pode-se ver que a fontica se dedica ao estudo de todo som produzido pelo aparelho fonador e utilizado na fala; a fonologia, diferentemente, detm-se nos sons capazes de distinguir significadostradicionalmentedesignadosfonemas e na forma como se organizam e se combinam para formar unidades lingusticas maiores, bem como nas variaes que esses fonemas podem apresentar. Pelo processo de comutao, ou seja, pela substituio de sons em contextos lingusticos semelhantes, possvel observar a existncia de contraste de significado,e,consequentemente,identificarosfonemas de uma lngua. A partir dos pares mnimos pala/bala, selo/zelo, tela/dela, por exemplo, depreende-se que o trao sonoro nas consoantes distintivo em portugus, permitindoque se afirmeque /p/ e /b/, /s/ e /z/, /t/ e /d/ so fonemas diferentes.

    Apesardeossonsapareceremnofluxodafalacomoumcontinuum, para fins de anlise so considerados unidades discretas. que, nadecodificaodasmensagens,osfalantesosinterpretamcomounidadescuja funo constitui a base do sistema fonolgico. Isso quer dizer que, comoossonssomeiodeveiculaodesignificados,soempregadose percebidos pelos falantes da lngua no com base em todas as suas caractersticas fonticas, mas a partir da funo que desempenham na lngua.

    Um exemplo desse fato o status do som [t] em portugus e em ingls. Comparando-se as realizaes fonticas [tia] e [tia] (tia) em portugus e [kat] (gato) e [kat](pegar)emingls,pode-severificarquea substituio entre os sons [t] e [t] implicamudana de significadoem ingls mas no em portugus. Portanto, em virtude do fun- cionamento diferente desses sons nas duas lnguas referidas, os falantes os interpretam de forma diversa. Os falantes de portugus entendem os sons [t] e [t] como uma s unidade fonema/t/,poisessessonsconstituem variao de um mesmo fonema; a ocorrncia de [t] previsvel no portugus, porque no passa de uma variao alofnica antes de [i]. Os falantes de ingls, diferentemente, os entendem como duas unidadesdistintas/t/e/t/,poisnoseusistemalingusticocontrastamsignificados.Pode-se,assim,perceberqueasrepresentaesmentaisqueos falantes tm dos sons no so idnticas s suas propriedades fsicas; as representaes mentais so vinculadas aos fonemas da lngua. V-se tambm que cada lngua tem um sistema fonolgico diferente: o que fonolgico, distintivo em uma pode ser variao alofnica em outra e vice-versa.

  • Introduo a estudos de fonologia do portugus brasileiro

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    Verifica-se, pois, que a fontica apreende os sons efetivamente realizados pelos falantes da lngua em toda a sua diversidade; a fonologia abstrai essa diversidade para captar o sistema que caracteriza a lngua. Por tratar dos sons enquanto realidade diretamente apreendida, os estudos fonticos podem auxiliar a fonologia.

    No estudo de qualquer lngua, pode fazer-se uma descrio fontica e uma descrio fonolgica. Da primeira, a unidade de descrio so os sons, representados entre colchetes [ ]; da segunda, a unidade so os fonemas, representadosentrebarras//.H,portanto,doisnveisderepresentaodos sons: um nvel fontico e um nvel fonolgico.

    1.2 MODELOS TERICOS

    Com o objetivo de tentar estabelecer a relao entre os nveis fontico e fonolgico, ou seja, entre a realizao fontica e o nvel abstrato da fonologia, e descrever e analisar como as lnguas do mundo estruturam os sons da fala, surgiram diferentes teorias fonolgicas.

    Os modelos tericos registrados na evoluo dos estudos sobre a fonologia das lnguas podem ser enquadrados em duas grandes classes: modelos lineares e modelos no lineares. Os modelos lineares ou segmentais analisam a fala como uma combinao linear de segmentos ou conjuntos de traos distintivos, com uma relao de um-para-um entre segmentos e matrizes de traos, com limites morfolgicos e sintticos (ver seo 1.2.1). Os modelos no lineares vm a fonologia de uma lngua como uma organizao em que os traos, dispostos hierarquicamente em diferentes tiers1 (camadas), podem estender-se aqum ou alm de um segmento, ligar-se a mais de uma unidade, como tambm funcionar isoladamente ou em conjuntos solidrios (ver seo 1.2.2). Nos modelos no lineares, as relaes entre fonologia, morfologia e sintaxe so explicitadas como parte da estrutura hierrquica que caracteriza as lnguas humanas. Os itens seguintes apresentam aspectos basilares das diferentes abordagens tericas, restringindo-se aos modelos gerativos.

    1 Por falta de uma traduo que nos parea adequada, mantivemos alguns termos em ingls.

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    1.2.1 Modelo linear de Chomsky e Halle

    1.2.1.1 A teoria gerativa clssica: aspectos gerais

    Na evoluo dos estudos sobre a natureza e o funcionamento das lnguas humanas, Chomskyestabeleceuummarcosignificativoapartirdosanos 50. Determinou como objetivo do estudo descritivo de uma lngua a construodeumagramticae,aodefiniragramticacomoosistemaderegrasqueespecificaacorrespondnciaentresomesignificado,colocoua noo de regra lingustica como indispensvel para a caracterizao de qualquer lngua. Nesses termos, prope uma gramtica gerativa, constituda de um conjunto de regras formais que gera as sentenas bem-formadas da lngua e determina a interpretao do conjunto potencialmente infinitodesentenasqueformamalnguacomoumtodo.

    Dentre os muitos pressupostos tericos que fundamentam o modelo chomskiano, sero referidos aqui apenas aspectos relativos distino competncia/desempenho e existncia de uma Gramtica Uni- versal.

    Chomsky (1965) considerou relevante o fato de que qualquer pessoa capaz de fazer julgamentos imediatos, intuitivos e naturais sobre as relaes sintticas e semnticas de sua lngua, de interpretar sentenas ambguas e de detectar sentenas malformadas, sem que ningum lhe tenha ensinado. Tambm observou que a criana adquire uma lngua, com toda a sua complexidade, nos primeiros anos de vida, sendo capaz de criar e empregar expresses e sentenas que nunca ouviu.Combasenessasconstataes,defendequetodofalante/ouvintetem uma competncia lingustica, ou seja, um conhecimento incons- ciente da sua lngua, da gramtica que determina a conexo intrnseca entresomesignificadoemcadasentenaedosistemaderegrasqueacaracteriza.

    A competncia no se confunde com desempenho, que o uso real da lngua em situaes concretas, ou seja, o que o falante/ouvinte realmente faz (Chomsky, 1965). O desempenho depende no somente do conhecimento da lngua, mas de muitos outros fatores, como restries de memria, ateno, crenas e conhecimentos no lingus- ticos.

    Outro aspecto fundamental da teoria chomskiana, particularmente a partir de 1986, com Knowledge of Language: its nature, origin and

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    use, o referente Gramtica Universal (GU). Como muitos linguistas depois dos anos 30, Chomsky preocupou-se mais com as similaridades entre as lnguas do que com as diferenas existentes entre elas e atribuiu essas semelhanas a uma essncia comum que os homens possuem como parte de sua herana gentica, que a Gramtica Universal; a GUrefleteaorganizaodamentehumanae, consequentemente, temimplicaes na constituio dos sistemas lingusticos e em caractersticas por eles compartilhadas. Segundo sua proposta terica, o indivduo adquire a lngua do ambiente em que vive seja portugus, ingls ou qualquer outra com base nessa essncia comum. As diferenas que existem entre elas envolvem escolhas dentre um conjunto de opes.

    De acordo com essa concepo, as lnguas constroem suas gramticas combase naGU, ou seja, fixamparmetros particulares a partir dosprincpios gerais ditados pela GU. Um exemplo de princpio da GU que a slaba pode ter trs elementos: ataque, ncleo e coda. A partir desse princpio, cada lngua vai criar a sua gramtica, determinando, nesse caso, que tipo de segmento pode ocupar as diferentes posies na estruturasilbicaefixandoparmetros,osquaispodemestabelecer,porexemplo, que o ataque obrigatrio em todas as slabas da lngua e que a coda opcional.

    Assim, Chomsky encontrou, na GU, uma explicao natural para a existncia de muitas propriedades comuns entre as lnguas, embora cada uma delas tenha uma gramtica prpria. Seguindo a mesma linha de interpretao, esse modelo terico entende fatos da aquisio da linguagem, que deixam de ser explicados com base em analogia e generalizaodeestmulo,comoreflexosdaGU.

    1.2.1.2 O componente fonolgico da gramtica nveis de representao

    As linhas gerais da teoria fonolgica gerativa foram apresentadas por Chomsky e Halle, em 1968, com a publicao de The Sound Pattern of English(SPE).Ocomponentefonolgico,ento,definidocomo a parte da gramtica que atribui uma interpretao fontica descrio sinttica (p. 7). Nesse sentido, a gramtica gera um nmero infinitodesentenas,cadaumadelascomsuarepresentaosemntica

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    efontica.Portanto,acorrespondnciasom-significadodefinidapelagramtica da lngua.

    Segundo o modelo de Chomsky e Halle (1968, p. 164), o componente fonolgico tem, como input,ofluxoda falaestruturalmenteanalisadoe, como output, uma representao fontica dessa cadeia de fala. A representao fontica consiste em uma sequncia de segmentos fonticos,osquaissoumconjuntodeespecificaesdetraos,isto,de propriedades mnimas como nasalidade, sonoridade e outras. A representao fonolgica consiste na representao mental dos itens lexicais, emque conjuntos de especificaes de traos fonolgicospodem manter uma correspondncia unvoca ou no com o conjunto de traos fonticos (ver seo 1.2.1.3).

    Assim, todo falante possui uma informao fonolgica que congrega duas formas diferentes das unidades lexicais de sua lngua: uma representao fonolgica, mais abstrata, subjacente ao nvel fontico, que s contm informao no previsvel (distintiva), e que estabelece arelaodossonscomsignificado,eumarepresentao fontica, que indica como a palavra realizada, que isola as propriedades articulatrias eacsticasdossonsparaarealizaoeadecodificaodosinaldafala.

    Essas diferentes representaes podem ter implicaes nos sistemas ortogrficosdaslnguas.Noportugus,porexemplo,diferenasfonticas,comooalongamentodeumavogal,nosocodificadasortograficamente,pois o sistema no possui vogais longas. Por constituir apenas uma diferena fontica, a variao que h entre [t] e [t] antes de [i], j citada, emdialetosdoportugus,noregistradanaortografia;apalavratia,por exemplo, tem s uma formaortogrfica, embora possa apresentarformas fonticas diferenciadas. Como a diferena fontica entre [t] e [t] pode ser prevista pelo contexto, os dois sons so derivados da mesma unidade no nvel fonolgico, ou seja, do mesmo fonema, e essa identidade fonolgica dos dois sons est refletida no sistemaortogrficodo por- tugus.

    muito importante referir que o modelo gerativo de Chomsky e Halle (1968) se diferenou do modelo estruturalista, que o antecedeu, principalmente por tornar a relao entre a representao fonolgica e a produo fontica muito mais abstrata e por eliminar o nvel fonmico, que estabelece um nvel separado para a relao entre fonema e suas variantes contextualmente especificadas. Para omodelo gerativista,o trao a unidade mnima que tem realidade psicolgica e valor operacional.

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    No modelo Chomsky e Halle, tambm fundamental o fato de que esses dois nveis de representao fonolgico e fontico so sistematicamente relacionados atravs de regras, que apagam, inserem ou mudam sons em dados contextos. Essas regras operam com base na informao da representao fonolgica dos itens lexicais. Para cada palavra possvel construda pela sintaxe, as regras fonolgicas iro derivar, a partir da representao fonolgica (subjacente), uma representao fontica.

    Todo falante possui uma informao fonolgica que congrega duas formas diferentes das unidades lexicais de sua lngua: uma representao fonolgica, mais abstrata, subjacente ao nvel fontico, que s contm informao no previsvel (distintiva), e que estabelece a relao dos sonscomsignificado,eumarepresentao fontica, que indica como a palavra realizada, que isola as propriedades articulatrias e acsticas dossonsparaarealizaoeadecodificaodosinaldafala.

    1.2.1.3 Traos distintivos

    Traos distintivos so propriedades mnimas, de carter acstico ou articulatrio, como nasalidade, sonoridade, labialidade, coronalidade, que, de forma coocorrente, constituem os sons das lnguas.

    No nvel fontico, os traos so caracterizados por Chomsky e Halle (1968, p. 297) como escalas fsicas que descrevem aspectos do evento da fala e podem ser tomados independentemente, seja do ponto de vista da produo ou do ponto de vista da representao perceptual. Nesse sentido, a sonoridade, por exemplo, que um aspecto que pode ser isoladonoeventodafalaeque,portanto,codificadacomotrao [sonoro], corresponde a uma escala que se estende desde o maior at o menor grau de sonoridade.

    Nonvelfonolgico,ostraossomarcadoresclassificatriosabs- tratos,queidentificamositenslexicaisdalngua.Nessenvelostraoscaptamoscontrastesfonolgicosdalngua.Porteremfunoclassificatria,distintiva, os traos so binrios no modelo de Chomsky e Halle, isto , cadatraodefinidopordoispontosnaescalafsica,representandoumapresena, o outro, a ausncia da propriedade. Tomando-se, como exemplo, a sonoridade, tem-se a representao no nvel fonolgico com apenas

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    dois valores: [+ sonoro] e [ sonoro]. Assim, o segmento [v] do portugus, enquanto do ponto de vista fontico pode apresentar diferentes graus de sonoridade,dopontodevistafonolgicoclassificadocomo[+sonoro],distinguindo-se de [f], que [ sonoro]. Os traos tm, pois, uma feio fontica e uma feio fonolgica.

    Para Chomsky e Halle, os traos fonticos constituem escalas fsicas universais,ouseja,umconjuntofixoerestrito,independentedequalquerlngua. Nesse sentido, pode concluir-se que a totalidade dos traos fonticos representa as capacidades de produo de fala do aparato vocal humano.

    Ao mapearem as categorias fonolgicas no conjunto universal de traos fonticos, os autores mostram que as oposies fonolgicas so limitadas. Explicam que esses limites so indispensveis para o funcionamento das lnguas. Para o linguista e para a criana que est adquirindo uma lngua, o fato emprico o conjunto de representaes fonticas, s quais tm de ser atribudas representaes fonolgicas, devendo ser desenvolvido tambm um conjunto de regras fonolgicas que as relacione. Se no houvesse limites, a tarefa seria impossvel; quanto mais restries houver, mais fcil setornaatarefadeidentificarosistemadalngua.Assim,dentretodosos traos fonticos, as lnguas escolhem apenas alguns como distintivos ou fonolgicos.

    AfirmamChomskyeHalle(1968,p.170)quecadaentradalexicalem uma lngua consiste em uma matriz fonolgica na qual cada linha rotulada por nomes de traos fonolgicos, aos quais atribudo um valor classificatrio.Comoolxicoespecificaapenastraosidiossincrticos,omitindo todos aqueles que possam ser determinados por regras gerais, podem ser propostas, por exemplo, as seguintes subpartes das matrizes fonolgicas para estas consoantes do portugus:

    (1)

    k s mconsonantalcoronalcontnuoanteriornasalsonoroestridente

    +

    ++++0+

    +0++00

  • Introduo a estudos de fonologia do portugus brasileiro

    19

    Namatrizfonolgica,htrscodificaespossveis:+ indica a presena de determinada propriedade; indica a ausncia de determinada propriedade;0 (zero) indica que a informao em relao quela propriedade

    dispensvel.

    As propriedades imprevisveis so codificadas como + ou . Uma informao no registrada na matriz fonolgica, isto , recebe codificao zero, quando redundante; ento, essa informao fornecida por uma regra geral (uma regra default), e no constitui, portanto, uma propriedade imprevisvel. O trao [contnuo], por exemplo, redundante para as consoantes nasais, uma vez que na sua realizao a sada do ar pela boca fica bloqueada; todas as consoantes nasais,portanto, so redundantemente descontnuas. Assim, tambm as outras especificaeszero presentes nas matrizes acima apresentadas podem ser justificadascomoindicativasdevaloresprevisveisdostraoscorrespon- dentes.

    Hregrasgeraisqueconvertemasespecificaeszero em + ou . Depoisdeaplicadasessasregras,asconsoantesexemplificadasem(1)passamaterasseguintesmatrizescompletamenteespecificadas:

    (2)

    k s mconsonantalcoronalcontnuoanteriornasalsonoroestridente

    +

    +++++

    ++++

    Deve-se salientar que as matrizes fonticas, ao contrrio das fonolgicas, tmdesersempreplenamenteespecificadas.Naverdade,dizem Chomsky e Halle (1968, p. 166) que a principal funo das regras fonolgicas transformar matrizes fonolgicas em matrizes fonticas plenamenteespecificadas.

    Nesse modelo, em cada item lexical os segmentos consistem em colunas de traos ou sequncias de colunas de traos, no havendo qualquer ordenao entre os traos que compem as matrizes.

    asusNoteH uma diferena entre este quadro e o anterior, pois este fontico, enquanto o anterior fonolgico, pois como h traos que sa previsveis e redundantes, podem ser omitidos.

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    Por terem funo classificatria, distintiva, os traos sobinrios no modelodeChomskyeHalle,isto,cadatraodefinidopordoispontosna escala fsica, representando um a presena, o outro, a ausncia da propriedade.

    1.2.1.3.1 O conjunto de traos do modelo de Chomsky e Halle

    Em Chomsky e Halle (1968, p. 298-329) h a apresentao de um conjunto de traos, com a descrio dos correlatos articulatrios de cada um e a ilustrao, com exemplos, de sua ocorrncia em diferentes lnguas do mundo. Os traos so usados tanto para consoantes como para vogais. Desse conjunto, tm sido utilizados para a descrio do portugus os seguintes traos:

    TrAOs de ClAsses PrinCiPAis

    Soante Silbico (em substituio a Voclico) Consonantal

    TrAOs de CAvidAde

    Coronal Anteriorn Traos do corpo da lngua:

    Alto Baixo Posterior Arredondado

    n Traos de aberturas secundrias: Nasal Lateral

    TrAOs de MOdO de ArTiCulAO

    Contnuo Metstase Retardada Tenso

  • Introduo a estudos de fonologia do portugus brasileiro

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    TrAOs de FOnTe

    Sonoro Estridente

    TrAOs PrOsdiCOs

    Acento Tom Durao

    Deve ser referido que Chomsky e Halle (1968, p. 300) chamam ateno para o fato de que essa subdiviso de traos foi feita com propsitos explicativos e que os prprios traos mostraro estar organizados em uma estrutura hierrquica que pode parecer-se com a estrutura que ns lhes impusemos por razes puramente expositivas.

    As propriedades identificadas como traos dessemodelo tericosodefinidascombaseemumachamadaposio neutra (p. 300), que corresponde configurao tomada pelo trato vocal imediatamenteanterior produo da fala. Nela, o vu palatino est levantado e a passagemparaacorrentedearatravsdonarizficafechada;ocorpodalngua est levantado mais ou menos no nvel que ocupa na articulao davogaldapalavra inglesa bed, mas a lmina da lngua permanece mais ou menos na mesma posio da respirao silenciosa. Sendo a fala geralmente produzida na expirao, a presso de ar nos pulmes maior que a presso atmosfrica; a glote est estreitada e as cordas vocais esto posicionadasparavibrarespontaneamenteemrespostaaofluxonormalde ar desimpedido.

    Apartirdessaposioneutra,ChomskyeHalledefinemostraosdaseguinte forma:

    TrAOs de ClAsses PrinCiPAis:

    Soante no soante (obstruinte) (p. 302)Soantessoossonsproduzidoscomumaconfiguraodotratovocal

    na qual possvel a sonorizao espontnea; as obstruintes so produzidas comumaconfiguraodacavidadequetornaasonorizaoespontneaimpossvel.

    Tm o trao [+ soante]: vogais, lquidas, glides, nasais.

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    Silbico no silbico (p. 354)Silbicos so os segmentos que constituem pico de slaba; no

    silbicos so os segmentos que ocupam as margens da slaba.Tm o trao [+ silbico]: vogais, lquidas silbicas, nasais silbicas.

    Consonantal no consonantal (p. 302)Consonantais so os sons produzidos com uma obstruo radical

    da regio mdio-sagital do trato vocal, ou seja, na cavidade oral; no consonantais so os sons produzidos sem tal obstruo.

    Tm o trao [+ consonantal]: plosivas, fricativas, africadas, lquidas, nasais.

    Os traos de classes principais tm grande importncia porque distinguem as categorias bsicas de segmentos, como mostra (3):

    (3) Traos de classes principais

    Soante Consonantal SilbicoVogais + +Lquidas e Nasais no silbicas + + Lquidas e Nasais silbicas + + +Glides + Obstruintes +

    TrAOs de CAvidAde:

    Coronal no coronal (p. 304)Coronais so os sons produzidos com a lmina da lngua elevada acima

    da posio neutra; os sons no coronais so produzidos com a lmina da lngua na posio neutra.

    Tm o trao [+ coronal]: dentais, alveolares, palato-alveolares, palatais.2

    Anterior no anterior (p. 304)Anteriores so os sons produzidos com uma obstruo localizada

    na frente da regio palato-alveolar da boca; os sons no anteriores so produzidos sem essa obstruo.

    Tm o trao [+ anterior]: labiais, dentais, alveolares.

    2 Chomsky e Halle (1968) no atriburam o trao [+ coronal] aos sons palatais.

  • Introduo a estudos de fonologia do portugus brasileiro

    23

    n Traos relacionados com o corpo da lngua:Alto no alto (p. 304)Altos so os sons produzidos com a elevao do corpo da lngua aci-

    ma da posio neutra; os sons no altos so produzidos sem a elevao do corpo da lngua.

    Tm o trao [+ alto]: palato-alveolares, palatais, velares, vogais altas.

    Baixo no baixo (p. 305)Baixos so os sons produzidos com o abaixamento do corpo da lngua

    abaixo do nvel que ocupa na posio neutra; os sons no baixos so produzidos sem tal abaixamento do corpo da lngua.

    Tm o trao [+ baixo]: faringais, glotais, vogais baixas.Posterior no posterior (p. 305)Posteriores so os sons produzidos com a retrao do corpo da lngua

    a partir da posio neutra; os sons no posteriores so produzidos sem tal retrao.

    Tm o trao [+ posterior]: velares, uvulares, faringais, glotais, vogais posteriores.

    Arredondado no arredondado (p. 309)Arredondados so os sons produzidos com um estreitamento do

    orifcio dos lbios; os sons no arredondados so produzidos sem tal estreitamento.

    Tm o trao [+ arredondado]: labiais, vogais arredondadas.n Traos de aberturas secundrias:Nasal no nasal (p. 316)Nasais so os sons produzidos com um abaixamento do vu palatino,

    permitindo o escape de ar atravs do nariz; os sons no nasais so produzidos com a elevao do vu palatino de forma que o ar vindo dos pulmes possa sair somente pela boca.

    Tm o trao [+ nasal]: consoantes nasais, vogais nasais.Lateral no lateral (p. 317)Laterais so os sons produzidos com a elevao da lmina da lngua

    e o abaixamento do centro da lngua, permitindo o escape do ar por um lado ou por ambos os lados; o ar sai da boca na vizinhana dos dentes molares; nos sons no laterais tal passagem para o ar no aberta.

    Esse trao restrito a sons consonantais coronais.Tm o trao [+ lateral]: consoantes laterais.

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    TrAOs de MOdO de ArTiCulAO:

    Contnuo no contnuo (p. 317)Contnuos so os sons em cuja constrio primria o trato vocal no est

    estreitadoapontodebloquearapassagemdofluxodear;nossonsnocontnuosofluxodearpelabocaefetivamentebloqueado.

    Tm o trao [+ contnuo]: 3 vogais, semivogais, lquidas4 e fricativas.

    Metstase instantnea metstase retardada (p. 318)Esse trao afeta somente sons produzidos com fechamento no trato

    vocaleespecificaaformadesolturadoar.Apresentam metstase retardada os sons cuja soltura do ar inicial-

    mente bloqueada e, depois, liberada com turbulncia; a metstase instan- tnea normalmente acompanhada da liberao do ar sem turbu- lncia.

    Esse trao usado para distinguir consoantes plosivas e africadas.Tm o trao [+ metstase retardada] as africadas.

    Tenso no tenso (p. 324)Essetraoespecificaamaneiracomoamusculaturasupraglotalse

    comporta na produo de um som.Tensos so os sons produzidos com uma ao que envolve considervel

    esforo muscular; os sons no tensos so produzidos rapidamente, sem especial esforo muscular. Nos sons tensos, relativamente longo o perododuranteoqualosrgosarticulatriosmantmaconfiguraodevida, enquanto nos sons no tensos as aes so executadas de uma formaumtantosuperficial.Esse traosusadoparadistinoentrevogais.

    No sistema voclico do portugus, as vogais mdias podem distinguir-se pelo valor do trao[tenso]:enquantoasvogaismdiasaltas/e/e/o/apresentam o trao[+tenso],svogaismdiasbaixas//e//atribudoo trao [ tenso].

    3 Clements e Hume (1995, p. 253) consideram [+cont] os sons que permitem a continuada soltura do ar atravs do centro do trato oral, sem considerar onde sua constrio principal localizada.

    4 ChomskyeHalle(1968)classificamaslquidas como [+contnuas], no entanto alertam (p. 318) que a lateral [l] poderia ser includa entre as plosivas caso fosse considerado o bloqueio passagem de ar na constrio primria. Os autores dizem que o comportamento fonolgico de [l] em algumas lnguas d suporte sua categorizao como [+cont], em outras, como [cont].

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    TrAOs de FOnTe:

    Sonoro no sonoro (surdo) (p. 326)Sonoros so os sons produzidos com a vibrao das cordas vocais; os

    sons no sonoros so produzidos com a glote aberta e o ar passa sem fazer vibrarem as cordas vocais. Na srie das oclusivas do portugus, por exem- plo,/b,d,g/tmotrao[+sonoro]e/p,t,k/tmotrao [ sonoro].

    Estridente no estridente (p. 329)A estridncia um trao restrito s obstruintes contnuas e africadas.

    usado para diferenciar pares de fricativas e africadas com pontos de articulao iguais ou semelhantes.

    Estridentes so os sons marcados acusticamente por um rudo estridente, em virtude de uma obstruo na cavidade oral que permite a passagem do ar atravs de uma constrio estreita.

    Nasriedasfricativasdoingls,/f,v,s,z,, /tmotrao [+ estri- dente]e/, /tmotrao [ estridente].

    Retomando-se a ideia de que, para Chomsky e Halle, os segmentos soconsideradosmatrizesdetraos,exemplificam-se,aseguir,matrizes(com redundncia) de dois segmentos do portugus:

    (4)d a

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    1.2.1.3.2 A relevncia dos traos distintivos

    Uma teoria da linguagem tem de dispor de instrumentos formais que sejam capazes de mostrar, com preciso e clareza, o funcionamento das lnguas, de formular generalizaes verdadeiras e significativas ede oferecer meios de distingui-las de generalizaes falsas. Os traos distintivos, como unidade de descrio e anlise da fonologia das lnguas, tm servido como instrumento formal para mostrar a naturalidade do funcionamento dos sistemas lingusticos.

    Com a subdiviso dos segmentos em traos distintivos, foi possvel verificar adistncia entre segmentos com base na especificao dostraos compartilhados. Foi tambm possvel estabelecer classes naturais de segmentos (ver seo 1.2.1.4). Alm disso, pde-se constatar que as regras se aplicam a classes de segmentos relacionados foneticamente e no a classes arbitrrias de segmentos. Com adequao, os traos distintivos formalizam as regras e comprovam a sua naturalidade. Como exemplo, pode tomar-se a regra de palatalizao, aplicada em muitos dialetos do portugus. Sem a segmentao dos sons em traos distintivos, sua representaoficaconforme(5):

    (5)

    A regra deve ser lida da seguinte maneira: os segmentos t, d tor- nam-se respectivamente t, d quando vm antes de i.

    Essa formalizao no capaz de mostrar que se trata de um processo natural, nem de evidenciar qualquer generalizao, como o faz (6):

    (6)

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    27

    Com traos distintivos, a regra (6) expressa que o trao [ alto] se torna [+ alto] diante de [+ alto]. Portanto, os traos revelam a motivao fontica ou a naturalidade da mudana expressa nessa regra: consoantes dentais tornam-se palatais (ou seja, altas) antes da vogal i, que tambm palatal ( [+ alta]); trata-se, pois, de um processo de palatalizao. A regra (6) tambm mostra que alguns traos so alterados no processo, enquanto outros permanecem inalterados. Portanto, os traos constituem importantes instrumentos formais de descrio e explicao da fonologia das lnguas.

    1.2.1.3.3 Algumas revises da proposta terica

    A diviso dos segmentos em traos distintivos representou um dos avanosmaissignificativosnateoriafonolgica.Ocernedanecessidadedessasegmentaojseencontranaclassificaodossons,pelafonticatradicional, quanto a ponto de articulao, modo de articulao e sonoridade.

    Com Trubetzkoy um dos fundadores da Escola Lingustica de Praga , houve a primeira tentativa de estabelecer uma taxonomia das propriedades fonticas dos contrastes distintivos empregados pelas lnguas domundo,ouseja,umaclassificaodanaturezadoscontrastesentreosfonemas que compem os sistemas das lnguas.

    Mas foi somente em 1952, com o trabalho de Jakobson, Fant e Halle Preliminaries to Speech Analysis (PSA) , que houve a primeira formalizao de um modelo de traos distintivos. Na busca de uma teoria fonolgica que previsse somente as oposies que pudessem ser encontradas nas diferentes lnguas, tentaram elaborar um sistema universal de representao fonmica que, com um nmero limitado de traos 12 ou 15 traos , pudesse representar os contrastes existentes nas lnguas.

    Esse modelo reduziu todas as oposies a um sistema binrio, composto de traos que representavam propriedades fundamental- menteacsticas, cujadefinio sealiceravaunicamenteemoposiofuncional, ou seja, propriedades fonticas no distintivas no eram codificadascomotraosnessemodelo.Dessapropostavemadenomi- nao de traos distintivos para as unidades mnimas dos segmen- tos.

    asusUnderline

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    28

    Embora a teoria proposta em PSA representasse um avano para os estudos fonolgicos, muitos aspectos do funcionamento dos sistemas lingusticos permaneciam sem explicao adequada. Na tentativa de soluo desses problemas fonolgicos, Chomsky e Halle (1968), com The Sound Pattern of English (SPE), propuseram um sistema revisado de traos distintivos, distinguindo suas funes fonticas e fonol- gicas.

    O novo modelo, com base preponderantemente articulatria, passou a categorizar como trao as variveis articulatrias controlveis independentemente (nasalidade, sonoridade, etc.), no se restringindo s variveis funcionalmente distintivas. No sistema do SPE, em sua funo fonolgica os traos so binrios, como no sistema anterior (ver seo 1.2.1.3). O sistema do SPE conseguiu resolver problemas at ento insolveis, como, por exemplo, a reunio de vogais, lquidas e glides em uma nica classe (ver seo 1.2.1.3.1).

    Embora o modelo de Chomsky e Halle (1968) tenha representado um dos mais completos tratamentos dos traos distintivos, fonlogos e foneticistassugerirammuitasmodificaespropostainicial.

    Na verso primeira do modelo, os trs traos de classes principais eram [soante], [consonantal] e [voclico]. No prprio SPE (p. 354), os autores substituram o trao [voclico] pelo trao [silbico]. Ao constatarem que as lnguas comumente renem os segmentos em dois grupos vogais e no vogais (verdadeiras consoantes obstruintes , lquidas e glides) , verificaramque os traos [consonantal] e [voclico] redundantemente registram esse fato, no podendo explicar, no entanto, a restrio estrutura silbica CVCV, ou seja, no explicitando que tipo de segmento pode ocupar o pico da slaba. Era preciso mostrar que pode haver um terceiro grupo de segmentos aqueles que podem constituir ncleo silbico e, para codificartalgeneralizao,ChomskyeHalle(1968)propuseramotrao [silbico]. Esse novo trao permitiu o agrupamento de obstruintes, nasais, lquidas (no silbicas) e glides de um lado e vogais, lquidas silbicas enasaissilbicasdeoutro.Aclassificaodossegmentosquantoaessetrao pode ser vista em (3) (seo 1.2.1.3.1).

    Em se tratando do objetivo de estabelecer adequadamente classes de segmentos, o modelo de Chomsky e Halle (1968) falha, como mostra Hyman (1975, p. 53), por no poder relacionar consoantes labiais como [p, b, m], que so [+ ant, cor] e [ arr], com consoantes labializadas como [tw] e [kw], que so [+ arr]. Falha tambm em mostrar a relao entre consoantes labiais e vogais arredondadas, uma vez que as primeiras

    asusUnderline

    asusUnderline

    asusNoteNo consegui notar esse problema.

  • Introduo a estudos de fonologia do portugus brasileiro

    29

    so [ arr] e as ltimas, [+ arr]. Para solucionar esse problema, Hyman postula a utilizao do trao [labial], que capaz de adequadamente agrupar esses segmentos em uma classe. Esse trao efetivamente passou a integrar modelos posteriores, como o de Clements, por exemplo (ver seo 1.2.2).

    Outro aspecto que tem sido discutido referentemente ao modelo de Chomsky e Halle diz respeito binaridade dos traos fonolgicos. Com a utilizao de traos binrios, s trs alturas de vogais podem ser expressas: [+ alta, baixa] (vogais altas), [ alta, baixa] (vogais mdias) e [ alta, + baixa] (vogais baixas). Esse fato causa um problema na descrio de sistemas lingusticos que apresentam quatro alturas fonticas de vogal, como o Dinamarqus e o Sueco (Hyman, op. cit., p. 56). Wang (1968, p. 701) sugeriu a incluso de mais um trao: [mdio]. Mas pode haver lnguas com uma quinta altura de vogal. Ento, ao invs de se inclurem novos traos, possvel tambm questionar a binaridade dos traos. o que fazem modelos subsequentes, como o de Ladefoged (1975), que apresenta traos plurivalentes, e o de Clements (ver seo 1.2.2), que utiliza, alm de traos binrios, traos monovalentes e o trao [abertura] hierarquizado.

    Dois outros pressupostos muito criticados no modelo de Chomsky e Halle so a caracterizao dos segmentos como colunas de traos distintivos desordenados e a relao de bijectividade entre o segmento e amatrizdetraosqueoidentifica.Comoacompreensodessespontosbasilar para o entendimento de modelos no lineares, como a Fonologia Autossegmental, sero discutidos a partir da seo 1.2.2. Nessa mesma seo, ao serem apresentados os princpios da Fonologia Mtrica, ser criticado tambm o tratamento dado pelo modelo linear de Chomsky e Halle aos traos prosdicos, particularmente em se tratando do acento.

    1.2.1.4 Classes naturais

    J foi mencionado na seo 1.2.1.3.2 que um dos fatos que comprovam a relevncia dos traos distintivos como unidade de descrio e anlise fonolgica a sua utilizao como instrumento caracterizador de classes naturais de segmentos. Tambm nessa mesma seo referiu-se que as regras se aplicam no a conjuntos arbitrrios de segmentos, mas a classes de segmentos relacionados. Na verdade, classes de segmentos relacionados

  • Leda Bisol (org.)

    30

    constituem classes naturais. Portanto, pode dizer-se que as regras se aplicam a classes naturais de segmentos e que essas classes podem ser claramenteespecificadasatravsde traosdistintivos.Diz-sequedoisou mais segmentos constituem uma classe natural quando necessrio, paraespecificaraclasse,umnmerodetraosmenordoqueonmeronecessrio para caracterizar cada membro da classe isoladamente. Na regra de palatalizao mostrada em (6), assume-se que os segmentos t e d constituem uma classe natural. Para caracterizar cada segmento, necessria a utilizao de, no mnimo, 6 traos e, para caracterizar a classe, bastam 5 traos. Veja-se a seguir:

    (7)t d t, d

    Hyman(1975,p.139-140)estabelececritriosparaaidentificaodeclasses naturais. Diz que dois segmentos constituem uma classe natural quandoumoumaisdosseguintescritriossoverificadosemalgumaslnguas:

    a) os dois segmentos sofrem regras fonolgicas juntos;b) os dois segmentos funcionam juntos nos ambientes de regras

    fonolgicas;c) um segmento convertido no outro segmento atravs de uma regra

    fonolgica;d) um segmento derivado no ambiente do outro segmento (como

    nos casos de assimilao).Embora esses critrios no tenham sido comprovados, na maior parte

    das vezes servem como base para o estabelecimento de classes naturais. Retomando-se os segmentos t e d acima referidos, comprova-se que constituem uma classe natural porque preenchem o critrio a: os dois segmentos sofrem juntos a regra de palatalizao. Seria muito pouco provvel que os segmentos t e m, por exemplo, funcionassem juntos em uma regra fonolgica; no constituem uma classe natural.

  • Introduo a estudos de fonologia do portugus brasileiro

    31

    H, na verdade, uma distncia fontica e fonolgica entre os segmentos. Como refere Kenstowicz (1994, p. 19), os segmentos no so equidistantes no espao fonolgico. Retomando-se a ideia de Chomsky de que as lnguas humanas tm base na Gramtica Universal (ver seo 1.2.1.1), podem-se explicar as classes fonolgicas naturais como uma forma particular pela qual a GU organiza a informao fonolgica, a partir de dados relativos maneira como a lngua articulada e percebida.

    Deve ser lembrado que, por ser o resultado da coocorrncia de vrios traos distintivos, o mesmo segmento pode pertencer a mais de uma classe natural. O segmento p, por exemplo, pode funcionar em uma regra como parte da classe das labiais [p, b, m] e, em outra regra, como parte das plosivas surdas [p, t, k]. O que ocorre que diferentes lnguas utilizam fonologicamente algumas classes naturais e no outras. Em se tratando do segmento p, por exemplo, uma lngua pode apresentar regras fonolgicas em que aparea como integrante da classe das plosivas surdas e no ter regras em que p funcione como elemento da classe das labiais.

    incontestvel que, funcionando como unidades fonolgicas, certos sons tendem a agrupar-se e a sofrer as mesmas regras, constituindo classes naturais. O que a teoria fonolgica tem mostrado que as classes naturais tm anlise mais simples do que as no naturais. Se isso efetivamente est ocorrendo, sinal de que, como refere Kenstowicz (op. cit., p. 21), a teoria est avaliando corretamente as distines empricas e est oferecendo uma base formal para no s descrever, mas tambm explicar por que as lnguas se comportam de uma forma e no de outra.

    Dois ou mais segmentos constituem uma classe natural se for necessrio, paraespecificaraclasse,umnmerodetraosmenordoqueonmeronecessrio para caracterizar cada membro da classe isoladamente.

    1.2.1.5 Traos distintivos versus traos redundantes

    Para fazer-se a distino entre traos distintivos e traos redundantes em cada lngua, preciso verificar a existncia de variaes alof- nicas.

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    32

    Na parte introdutria deste captulo, foi referida a variao existente entre os sons [t] e [t]emdialetosdoportugus.Verificou-seseressauma variao alofnica, por ser previsvel e no implicar alterao de significados. [t] e [t] esto em distribuio complementar, nunca aparecem no mesmo contexto fonolgico: [t] ocorre somente antes da vogal [i]. Vejam-se alguns exemplos:

    (8)

    [t]ala [t]ela [t]eia [t]urma [t]olo [t]oga [t]ime

    No entanto, comparando-se o som [t] com outros do portugus, como [p] e [k], sua distribuio imprevisvel, pois todos eles podem ocorrer antes de todas as sete vogais da lngua e seu emprego implica alterao designificado.Aspalavrasseguintesconstituemexemplos:

    (9)

    [p]ala [p]ulo [t]ala [t]ubo [k]ala [k]ubo

    Os sons [p], [t] e [k] diferem em razo do ponto de articulao, caracterizado, no modelo de Chomsky e Halle, pelos traos [anterior] e [coronal]:

    (10)p t k

    asusUnderline

    asusNoteDepende de qual varivel do Portugus.

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    33

    Portanto, por esse exemplo, pode dizer-se que os traos [anterior] e [coronal] so distintivos em portugus.

    Retomando-se os sons [t] e [t] e caracterizando-os com base em traos, v-se que a diferena entre eles decorre basicamente dos traos [anterior] e [metstase retardada]:

    (11)t t

    Conformejseverificou,otrao [anterior] distintivo em portugus. Examinando-se o trao[metstaseretardada],verifica-sequeasnicasconsoantes que apresentam o trao [+ metstase retardada] em diferentes dialetos da lngua so [t] e [d]. Como esses sons so variaes previsveis, pode-se concluir que o trao [metstase retardada] redundante em portugus.

    A consequncia de um trao ser redundante em uma lngua a inter- nalizao desse fato pelos falantes. Como j foi referido na seo 1.1, os falantes de portugus fazem uso de uma das variantes dos fonemas /t/e/d/,aplicandoaregradepalatalizao sem dela tomar conscincia, de tal modo que provavelmente a aplicaro tambm ao adquirirem outra lngua. Assim explica-se a produo, por exemplo, das palavras timar (trapacear), ou timba (qualquer partida de jogo de azar), doespanhol, como [t]imar e [t]imba por um falante de portugus. A regra de palatalizao parte da gramtica do falante do portugus e a regra pode ser por ele emprestada gramtica do espanhol, at que venha a adquirir totalmente o novo sistema.

    A redundncia do trao [metstase retardada], aquiexemplificada,existe no sistema do portugus, mas pode no existir em outras lnguas. Este exemplo est entre as chamadas redundncias especficas de cada lngua. As redundnciasespecficasdecadalnguatambmexistemporquenem todas as combinaes de traos teoricamente possveis so utilizadas nos sistemas fonolgicos.

    asusNoteIsso se torna problemtica se essa palatalizao, atravs da metstase retardada vier engatilhada por outro fonema que no o [i], caracterizando, possivelmente, um trao distintivo como na palavra multa.

    asusUnderline

    asusNoteSer que a africao das oclusivas ocorrentes em Alagoas, tendo como gatilho, possivelmente, o trao coronal.

  • Leda Bisol (org.)

    34

    Alm dessas, h as chamadas redundncias universais. Um exemplo de redundncia universal a no existncia, em nenhum sistema lin- gustico, de vogal que tenha os traos [+ alto, + baixo]: toda vogal [+ alta] sempre [ baixa] e toda vogal [+ baixa] [ alta] por uma limitao articulatria, pois impossvel levantar e baixar, ao mesmo tempo, o corpo da lngua.

    Em se tratando de redundncia, tambm tem de ser lembrado, o que de certa forma j foi referido, que nem todos os traos so relevantes para a caracterizao de todas as classes de sons. O trao [contnuo], por exemplo, no diferencia as vogais: todas so redundantemente [+ contnuas]. As vogais tambm jamais diferenciam, por exemplo, pelos traos [metstase retardada] e [estridente]; no precisam, pois, ser especificadas quantoa esses traos. Portanto, nem todos os traos so necessrios para a caracterizao de todos os sons.

    1.2.1.6 Regras fonolgicas

    Para garantir clareza e comparabilidade entre as lnguas, os gerativistas utilizam um sistema de smbolos para expressar as regras fonolgicas. Observe-se, por exemplo, a regra do portugus que dessonoriza as sibilantesemfinaldepalavra:

    (12) C

    #

    (Mira Mateus, 1975, p. 33)

    Nesse tipo de regra, letras maisculas so empregadas para subs- tituir especificaes de trao de classes de segmentos: C para con- soantes, V para vogais, N para nasais, G para glides. Em (12), portanto, C designa uma consoante. O conjunto de traos distintivos esquerda da setaidentificaosegmentoquesofreoprocesso,ouoinput da regra. Este assumir as caractersticas listadas direita da seta, que representam o resultado ou output do processo fonolgico. Na regra de dessonorizao

  • Introduo a estudos de fonologia do portugus brasileiro

    35

    das sibilantes, os traos representamum/S/noespecificadona formasubjacente,queserespecificado[+ant],noportugusdoBrasil,e[ ant], no de Portugal e nos dialetos carioca e nordestino, alm de ser-lhe atribudo o trao [ son].

    O que est direita da barra inclinada constitui o ambiente no qual a regra se aplica. O ambiente composto do determinante, o fator que influenciaamudana,edamarca , que indica onde se localiza o segmento sujeito ao processo.Na regra emquesto, final de palavra,indicado por #, o determinante; a marca , que representa o input, ocupaaltimaposioantesdofinaldapalavra.

    As regras fonolgicas aplicam-se dentro de domnios, unidades da lngua como slabas, morfemas, palavras, sintagmas ou sentenas. Os domnios so limitados por junturas externas. Observe os limites para a sentenaOjogadorcomemorouogol.

    (13)sentena

    sintagma nominal sintagma verbalartigo nome verbo sintagma nominal

    artigo nome

    ### O ## jogador #### comemorou ### o ## gol ####

    Como se percebe, cada palavra da sentena est limitada por, no mnimo,duas##.Issodefineodomnio da palavra como ## ##. Na regra, o domnio mencionado apenas se for maior que a slaba, como em (12); sendo menor que a slaba, no necessrio inform-lo.

    Notaes diferenciadas so requeridas para expressar regras fonolgicas. O smbolo empregado em regras de apagamento e insero, depois e antes da seta, respectivamente. Considerem-se as regras desimplificaoeditongaodoportuguslusitano:

    (14) Regradesimplificaode[consoante]:

    (Mira Mateus, 1975, p. 41)

  • Leda Bisol (org.)

    36

    (15) Regra de ditongaoV V

    (Mira Mateus, 1975, p. 35)

    Aregra(14)simplificaumasequnciadedoissegmentos,umavogale um glide,emformascomofalou,pronunciada[flo],emqueapenasa vogal permanece, a semivogal apagada.

    J a regra (15) insere um glide entre duas vogais em vocbulos como passeio, que vem de passear.

    As regras fonolgicas de assimilao, por sua vez, relacionam o output e o ambiente da regra, de modo que partilhem um ou mais traos no presentes no input. Veja-se a regra de nasalizao do portugus, em que uma vogal assume tal caracterstica por contato com uma consoante nasal:

    (16) Regra de nasalizao C

    (Mira Mateus, 1975, p. 47)

    Em certas regras, necessrio utilizar smbolos como (alfa), (beta) e (gama) para expressar generalizaes. Esses smbolos recebem o nome de variveis e representam todos os valores de um trao. Um exemplo de emprego de variveis encontrado em uma regra do portugus: a regra de assimilao do ponto de articulao de uma consoante por parte de

    uma nasal imediatamente precedente. Antes da consoante

    +

    corant , a nasal

    especifica-secomo

    +

    corant : o[m]bro, ca[m]po; antes de consoante

    ++

    corant ,

    especificada como

    ++

    corant : co[n]de, ca[n]to; antes de

    corant , como

    corant : vi[]ga, vi[]co. Em vez de se formularem trs regras para o

    mesmo processo assimilatrio, tem-se uma, apenas, utilizando-se vari- veis:

    [ ]

    ++

    post alt

    ca post alt

    post cons

    silb ____

    [ ] [ ] [ ] ___ nas nas V ++

  • Introduo a estudos de fonologia do portugus brasileiro

    37

    (17) Regra de assimilao da consoante nasal

    [ ]

    +

    + cor

    antC

    ___ nasV cor

    ant nasC

    (Mira Mateus, 1975, p. 77)

    A regra diz que a consoante nasal ter os mesmos traos de ponto de articulao que a consoante seguinte apresenta.

    Outro modo de expressar generalizaes nas regras se caracteriza pelo uso de notao de subescrito e superescrito, que permite a incluso de um ou mais elementos opcionais no ambiente da regra. Observe-se a regra de acentuao do portugus:

    (18) Regra de acentuao

    (Mira Mateus, 1975, p. 103)

    Osnmerosemsubescritosignificamque,entreavogalacentuadae a ltima vogal da palavra, pode haver uma ou duas consoantes, e que, aps a ltima vogal, pode haver uma ou nenhuma consoante. Caso haja necessidade de indicar, alm do nmero mnimo, o nmero mximo de consoantes intervenientes, utiliza-se o superescrito: 21C significaa existncia de, no mnimo, uma e, no mximo, duas consoantes intervenientes.

    O uso de colchetes angulados tambm expressa generalizaes. Dentre colchetes angulados so colocados traos que devem ser considerados em conjunto quando processos fonolgicos so relacionados, como na regra de elevao e centralizao das vogais tonas no portugus lusitano, que se v a seguir:

    (19) V

    (Mira Mateus, 1975, p. 28)

    [ ] [ ] # ___ 01 C V CcaV +

    +

    +

    post xb

    la

    ca

    arr post tla

  • Leda Bisol (org.)

    38

    Aregra(19)resultadafusodetrsoutrasregras:deelevaodo/a/(c[]la, c[]lva),deelevaoecentralizaode/e,/(f[]sta, f[]stnha, d[]do, d[]dda) e de elevao de /o,/ (f[]go, f[u]guira, l[]ja, l[u]jista). Os traos entre colchetes angulados no input da regra representam /e,/quandoalfasubstitudopor[-](menos),e/o,/,quandoalfasubs- titudo por [+] (mais). Como o resultado da alterao dessas quatro vogais sempre uma vogal [+alt]5, esse trao colocado entre colchetes angulados no outputdaregra.Issosignificaquesasvogais [ arr, post]/e,, o, / se tornam [+ alt].A outra vogal envolvida, /a/, especificada como

    ++

    arrpost

    xbalt

    , no pode ser descrita como [ post, arr ], nem se torna [+ alt],

    apenas [ bx]. Assim, os traos no compreendidos entre colchetes anguladosreferem-sea/a/.

    Em geral, as formas de superfcie resultam da aplicao de mais de uma regra fonolgica forma subjacente, o que requer ordenamento. Segundo Chomsky (1968), parece que as regras da fonologia so linearmente ordenadas e se aplicam ciclicamente, conforme a estrutura de superfcie (in Makkai, 1972, p. 540). Isso quer dizer que, a partir da forma subjacente, as regras se aplicam uma aps a outra. A essa forma ordenada de aplicao d-se o nome de derivao. Observe-se como Mira Mateus (1975) deriva [kA )tu]de/KaNto/:

    (20)/kaNt+o/kaNt+okNt+okt+okA)t+o[kA)tu]

    forma subjacenteregra de acentuaoregra de nasalizaoregra de supresso da consoante nasalregra de elevao das vogais nasalizadasregra de elevao e centralizao das vogais tonas

    Por aplicao cclica entende-se a reaplicao de regras (ordenadas), como ocorre na acentuao de vocbulos derivados: estfo, estofdo, estofara. A regra de acento aplica-se primeiramente parte mais interna da palavra, e aps, em ciclos sucessivos, aos outros vocbulos derivados, garantindo a adequada localizao do acento primrio.

    5 Mira Mateus (1975) atribui vogal [] o trao [+alto].

  • Introduo a estudos de fonologia do portugus brasileiro

    39

    Cabe salientar que a aplicao cclica de regra no o mesmo que apli- cao iterativa. Enquanto pela primeira a regra se reaplica nas diferentes formas derivadas de um mesmo vocbulo, pela segunda a regra se aplica mais de uma vez a uma nica forma, desde que encontre contexto de aplicao. A construo de p troqueus silbicos em pintupy (Hayes, 1991), por exemplo, iterativa: conta todas as slabas da palavra. J no portugus brasileiro (Bisol, 1992), a construo de ps troqueus moraicos no iterativa: escande-se a palavra somente at formar o primeiro p, onde se localizar o acento primrio (ver seo 1.2.2.2).

    1.2.1.7 Ordenamento de regras

    Para derivar a representao fontica da representao fonolgica, todas as regras so aplicadas sucessivamente em uma ordem que foi preestabelecida. Cada regra recebe como input a representao resultante da aplicao da regra anterior. Da resulta uma srie de nveis intermedirios entre o nvel das representaes fonolgicas e o nvel das representaes fonticas, cada nvel correspondendo ao output de uma regra fonolgica. Veja-se um exemplo da lngua zuni, uma lngua indgena americana (cf. Dell, 1980, p. 76-77).

    Nozuni,avogalfinaldeumapalavraapagadaquandoforseguidade uma palavra iniciada por vogal.

    (21) Eliso

    V # __ V

    Exemplo:/nisa#elo/ [niselo]

    Alm disso, o zuni tem uma regra de palatalizaodo/k/,queseaplicaquandoo/k/precedevogaisnoarredondadas.

    (22) Palatalizao

    Exemplos: [sukja], [owikje], [okji], [naku] e [leko]

    Para determinar-se o ordenamento entre as duas regras, observem-se alguns exemplos:

    [ ] [ ] ___ // oarredondad silbico kk j + [k j] [ ]

    asusHighlight

  • Leda Bisol (org.)

    40

    (23) a) /suka#tewa/ b)/suka#owi/ [sukjatewa] [sukjowi]

    O output fontico de (23b) mostra que a palatalizao tem que ser aplicada antes da eliso e no vice-versa.

    (24) a) /suka#owi/ b) /suka#owi/ sukja#owi 1. palatalizao suk#owi 1. eliso sukj#owi 2. eliso 2. palatalizao [sukjowi] *[sukowi]

    Pode-severificarem(24b)que,teoricamente,oordenamentoeliso/palatalizao seria possvel, isto , as regras poderiam aplicar-se nesta ordem, mas o resultado seria errado. Por isso, necessrio estipular que o ordenamento palatalizao/elisoeestetipodeordenamentochamadode ordenamento extrnseco.6

    H casos, inclusive, em que necessrio estipularem-se ordenaes di- ferentes para diferentes dialetos. Veja-se o exemplo do alemo (Vennemann, 1970, apud Lass, 1984, p. 206-207).

    O alemo padro apresenta o encontro consonantal [k], como em [dkn] pensar, mas no o encontro [g]. Entretanto, h motivos para se analisarem formas como [zin] cantar e [di] coisa como se elas tivessem a sequncia [g], derivando as formas de superfcie atravs de duas regras:7

    (25) a) [ ]

    k

    g ___ /n/ N

    b) [ ] ___ /g/ N

    (26) /zingen/ /ding/ zigen dig 1. regra (25a) zien di 2. regra (25b)

    Umaterceira regraadedessonorizaodasobstruintesemfinalde slaba. Esta regra no afeta a derivao de [di], portanto, tem-se de concluir que ela no est ordenada antes da regra em (25b) acima. H, entretanto, dialetos alemes que apresentam um [k]intrusivofinal, 6 Para exemplos do portugus, veja-se Callou e Leite, 1990, p. 59.7 Observe-se que as regras no seguem o formalismo do SPE, e no o fazem por uma questo mera-

    menteexpositiva;ossmbolosn,,g,ksoabreviaesdematrizesdetraos.

  • Introduo a estudos de fonologia do portugus brasileiro

    41

    [ ] [ ] V ___ d t

    como em [dik]. Nesses dialetos deve-se estipular, portanto, que a dessonorizao se aplica antes da regra em (25b), retirando o contexto paraasuaaplicao.Vejam-secomparativamenteasderivaesde/ding/para os dois dialetos:

    (27)Alemo Padro Dialeto

    subj. /ding/Regra (25a) digRegra (25b) diDesson. _____F. font. di

    subj. /ding/Regra (25a) digDesson. dikRegra (25b) ______F. font. dik

    O ordenamento extrnseco ope-se ao ordenamento intrnseco, no qual a sequncia de aplicao determinada pelas prprias regras. Por exemplo, no caso acima, a ordenao entre (25a) e (25b) intrnseca, pois (25b) s encontra contexto de aplicao depois que [] foi produzido pela regra (25a), uma vez que no h s subjacentes. Um outro caso de ordenamento intrnseco o que ocorre entre as regras de acento do portugus e as regras de neutralizao das vogais tonas: as regras de neutralizao somente encontram contexto de aplicao depois que a regra do acento determinou quais so as vogais tonas.

    O problema com o ordenamento extrnseco que ele torna a teoria muito poderosa. Quanto mais poderosa uma teoria for, tanto mais difcil serverific-laempiricamente.Porisso,asteoriasqueseseguiramaoSPE, como a fonologia gerativa natural e a fonologia natural, procuraram restringir o seu poder, proibindo ordenamentos extrnsecos.

    A relao de ordenamento entre regras produz os efeitos denominados alimentao e sangramento (Kiparsky, 1968a in Kenstowicz, 1994). Se a aplicao de uma regra A criar input para uma regra B, diz-se que A alimenta B; se, do contrrio, a aplicao de A remover o input de B, e B no puder ser aplicada, diz-se que A sangra B. Suponha a existncia de (28) e (29) numa dada lngua:

    (28)[ ] [ ] V ___ d t

    (29)[d] [d] [i]

    [t] [d]

  • Leda Bisol (org.)

    42

    A regra em (28) alimenta a regra em (29) porque cria o segmento [d], input de (29). Retomando-se o exemplo do alemo padro, tambm tem-se um caso de alimentao com o ordenamento da regra (25) antes da regra (26). J (30) sangra (31):

    (30)

    (31)

    (Sloat, Taylor & Hoard, 1978, p. 148)

    As regras em (30) e (31) so hipotticas. Pela regra (31), u passa para o antes de l. Contudo, essa mudana tem sua amplitude de ocorrncia diminuda se l for seguido de i, quando u, em vez de passar para o, passa a i (regra em (30)); assim, a regra (30) sangra a regra (31), pois retira o seuinput.Umcasotpicodesangramentopodeseridentificadoaoreto- mar-se o exemplo da lngua zuni aqui citado, com a aplicao da regra em (21) antes da regra em (22): nessa lngua, a eliso mostrada em (21) sangra a palatalizao apresentada em (22) esse fato claramente expresso em (24b).

    Efeitos de contra-alimentao e contrassangramento so obtidos pela inverso da ordem das regras A e B: A passa a alimentar B e B, a sangrar A. Em se considerando os exemplos aqui referidos, haveria contra-alimentao se houvesse o ordenamento inverso das regras (28) e (29), ou seja, se a regra em (29) fosse aplicada antes de (28); h um exemplo de contrassangramento em (24a).

    Diz-se que duas regras fonolgicas esto disjuntivamente ordenadas quando sua aplicao mutuamente exclusiva, isto , a aplicao da primeira impede a aplicao da segunda. Em portugus, por exemplo, as regras de assimilao da consoante nasal (ver (17) acima) e a regra de supresso da consoante nasal (Mira Mateus, 1975), que se aplicam simultaneamente de nasalizao, tm atuao disjuntiva: aps a nasalizao da vogal, o segmento nasal subjacente incompletamente

    especificadosuprimido( )

    +

    // oirmaN ou assimilado (quando seguido

    deconsoante,comoem/kaNt+o/),conformearegraexpressaaseguir:

    [ ] [ ] V ___ d t [u] [i] [li]

    [ ] [ ] V ___ d t [u] [o] [l]

  • Introduo a estudos de fonologia do portugus brasileiro

    43

    (32)

    [ ]

    [ ]

    +

    +

    +

    ___ nasV

    ___ nasV ant

    nasC

    corant

    C

    cor

    (Mateus, 1975, p. 57)

    Como se v, a regra apresenta dois outputs entre colchetes: o primei-

    ro,

    corant , resulta da assimilao; o segundo, , d-se pela supresso da

    nasal se esta no for seguida de consoante.O ordenamento, caracterstico dos modelos derivacionais,8 mostra

    como se d a interao entre as regras no mapeamento das representaes subjacentes em representaes de superfcie.

    1.2.2 Modelos no lineares

    Na evoluo da teoria fonolgica, a noo de trao distintivo como unidade bsica de representao e de anlise da fonologia das lnguas passouaserfundamental.Ostraosdistintivos,definidosemtermosdepropriedadesespecficasdecarteracsticoearticulatrio,soasunidadesmnimas no segmentveis, que se combinam de diferentes maneiras para formar os sons das lnguas humanas.

    Chomsky e Halle (1968), em The Sound Pattern of English, pro- puseram a primeira formalizao conceptualmente simples para repre- sentar generalizaes lingusticas, a partir de uma matriz de traos binrios no ordenados, como mostra o exemplo a seguir (como j foi visto em 1.2.1.3):

    8 Os modelos derivacionais opem-se Teoria da Otimidade por esta no ser derivacional (ver ca- ptulo 8).

  • Leda Bisol (org.)

    44

    (33)d a r

    sonorosilbicoconsonantalcontnuonasalaltobaixoarredondadoanteriorcoronal

    ++++

    ++++

    ++++9+

    9

    Nesseexemplo,osegmento/d/oresultadodacoocorrncia,sem ordemdefinida,dos traosqueocompem,assimcomo /a/e /r/, res- pectivamente. Pelos princpios da teoria, o apagamento de um segmento determina tambm o desaparecimento de toda a matriz de traos que o caracteriza, pois cada matriz de traos caracteriza aquele e s aquele segmento.

    O que o modelo de Chomsky e Halle conseguiu explicar muito bem foi o fato de que as regras fonolgicas se aplicam a classes de sons e no somente a sons individuais. Um exemplo desse aspecto pode ser observado na representao da regra de fricativizao existente no espanhol: as consoantes plosivas sonoras se transformam em fricativas quando aparecem entre vogais, ou seja,

    b, d , g , , / V __ V.

    (34)

    [ ] V ___ V contnua sonoro soante +

    +

    Nessa regra, os traos

    +

    sonorosoante

    especificamaclasse{b.d.g},enquan-

    to os traos

    ++

    continuosonorosoante

    especificamaclasse{, ,}.

    9 Interpretamos a vibrante como coronal anterior na subjacncia, embora sua manifestao na super- fcie apresente muitas variantes e seja a fricativa velar a mais comum.

  • Introduo a estudos de fonologia do portugus brasileiro

    45

    Uma das grandes conquistas do modelo, entre muitas, foi conseguir expressar, por meio de traos, as classes naturais, possibilitando a represen- tao de generalizaes.

    Esse modelo, apesar das limitaes que apresentou no tocante ao poder explicativo relativamente a muitos fenmenos fonolgicos, tanto segmentais como prosdicos, de importncia fundamental, abrindo caminho para as fonologias no lineares: Autossegmental; Mtrica; Lexical; da Slaba e Prosdica.

    No presente captulo, em duas grandes sees subsequentes, sero apresentados os pressupostos bsicos da Fonologia Autossegmental (seo 1.2.2.1) e da Fonologia Mtrica (seo 1.2.2.2). No Captulo 2, ser apresentada e discutida a Fonologia Lexical e, no Captulo 3, ser caracterizada a Fonologia da Slaba. O Captulo 7, ao tratar dos constituintes prosdicos, expe as bases da Teoria Prosdica.

    1.2.2.1 Fonologia Autossegmental

    A Fonologia Autossegmental opera no s com segmentos comple- tos e com matrizes inteiras de traos, mas tambm com autossegmentos, ou seja, permite a segmentao independente de partes dos sons das lnguas. Esse fato explicado claramente pelo novo entendimento que a Fonologia Autossegmental apresentou relativamente a dois aspectos bsicos.

    Em primeiro lugar, a Fonologia Autossegmental entendeu que no h uma relao bijectiva (de um-para-um) entre o segmento e o con- junto de traos que o caracteriza. Desse entendimento decorrem duas consequncias importantes: a) os traos podem estender-se alm ou aqum de um segmento e b) o apagamento de um segmento no implica necessariamente o desaparecimento de todos os traos que o compem. A possibilidade dessas duas ocorrncias j grandemente comprovadas com relao a comportamentos observados em lnguas tonais (Goldsmith, 1976) tem sido constatada tambm com referncia a propriedades segmentais. Goldsmith observou, em muitas lnguas tonais, que, por exemplo, o apagamento de um segmento no implica o desaparecimento do tom que recai sobre ele, mas que esse tom pode espraiar-se para outra unidade fonolgica. O mesmo pode ocorrer em se tratando de traos segmentais e exemplos desse fenmeno vo ser apresentados quando for estudado o processo de assimilao (ver Captulo 5).

    asusUnderline

    asusUnderline

    asusUnderline

    asusNoteIsso o mesmo que acontece com o fenmeno de palatalizao, em que o [i] dispara o gatilho, mas se apaga, ou melhor, o trao coronal deste fonema se espraia para a consoante.

  • Leda Bisol (org.)

    46

    Em segundo lugar, a Fonologia Autossegmental passou a defender que o segmento apresenta uma estrutura interna, isto , que existe uma hierarquizao entre os traos que compem determinado segmento da lngua. Esse entendimento tem como consequncia no s uma nova representao formal dos traos que compem o segmento, mas tambm a exigncia de que essa representao revele que, nas regras fonolgicas, os traos podem tanto funcionar isoladamente, como podem funcionar como um conjunto solidrio. Na verdade, essa representao deve ser capaz de mostrar quais os traos que podem ser manipulados isoladamente ou em conjunto, facilitando a expresso de classes naturais.

    Portanto, ao rejeitar o princpio da bijectividade e ao reconhecer uma hierarquia entre os traos, a Fonologia Autossegmental passou a analisar os segmentos em camadas ou tiers, ou seja, pde dividir partes do som e tom-las independentemente. Assim, uma regra pode operar somente no tier [nasal], ou no tier [contnuo] ou no tier [aberto], por exemplo. Como consequncia desse entendimento que o processo de assimilao pde ser visto como um espraiamento de trao(s) (ver exemplos na seo 1.2.2.1.1.1).

    Na concepo da geometria de traos fonolgicos adotada por Clements (1985, 1991), os traos que constituem os segmentos que esto no mesmo morfema so adjacentes e formam uma representao tridimensional que permite distinguir tiers: o tier da raiz, o tier da laringe, o tier dos pontos de consoante (pontos de C), por exemplo. Dois tiers adjacentes constituem um plano. Como aparece em (35), o tier da cavidade oral e o tierdospontosdeCdefinemumplano,masotier da laringe e o tierdacavidadeoraljuntosnodefinemumplano.

    asusUnderline

  • Introduo a estudos de fonologia do portugus brasileiro

    47

    (35) Representao parcial da sequncia [ata] (com base em Clements, 1991, p. 78)

    [a t a]Esqueleto x x x

    Raiz[nasal]Larngeo[sonoro] [+] [] [+]Cavidade oral

    [contnuo] [+] [] [+]

    Ponto de C

    [coronal] [+]

    Voclico

    Ponto de V

    [dorsal] [+] [+]

    1.2.2.1.1 Geometria de traos

    Comofimderepresentarahierarquiaexistenteentreostraosfonol- gicos e o fato de que os traos podem ser tanto manipulados isoladamente como em conjuntos solidrios, Clements (1985, 1989, 1991) props uma geometria de traos. Nessa geometria cuja ltima verso aparece em Clements e Hume (1995) , os segmentos so representados com umaorganizao internaaqualsemostraatravsdeconfiguraesdens hierarquicamente ordenados, em que os ns terminais so traos fonolgicos e os ns intermedirios,classesdetraos.Essaconfigurao interpretada em um diagrama arbreo, como o seguinte (Clements e Hume, 1995, p. 249):

  • Leda Bisol (org.)

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    (36) X

    r

    B a b c

    C D

    d e

    f g

    Nesse diagrama, r (do qual emanam todos os galhos) representa o n de raiz, que corresponde ao segmento propriamente dito. Os ns A, B, C, D representam ns de classe, que dominam grupos de elementos que funcionam como unidades ou classes naturais em regras fonolgicas. Os ns C e D so irmos e ambos dependentes de B. Os ndulos terminais a, b, c, d, e, f, g so traos fonolgicos. O n de raiz (r) dominado por uma unidade abstrata de tempo (X). Os ns so ligados por linhas de associao.

    A unidade temporal que domina o nderaizpossibilitaadefiniodesegmentos independentemente de sua complexidade, como os exemplos apresentados em (37):

    (37)

    (a) (b) (c) (d) (e)

    X X X X X

    r r r r r

    [a] [a:] [t]

    A

    asusUnderline

  • Introduo a estudos de fonologia do portugus brasileiro

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    Em (37) observam-se as seguintes representaes:

    (a) vogais ou consoantes simples = uma unidade de tempo ligada a um n de raiz;

    (b) vogais longas ou consoantes geminadas = duas unidades de tempo ligadas a um n de raiz;

    (c) segmentos de contorno = uma unidade de tempo ligada a dois ns de raiz (ver seo 1.2.2.1.2);

    (d) e (e) so representaes diferentes porque apresentam unidades segmentais no associadas, flutuantes. Nesses casos, uma regra, em um momento do estgio derivacional, deve providenciar a associao desses ns ou o seu apagamento.

    A linha das unidades de tempo tambm chamada de linha esqueletal ou prosdica.

    Deve observar-se em (37) que as formalizaes exemplificadasem (b), (c), (d) e (e) so representaes tipicamente no lineares: (b) e (c) porque apresentam ligaes mltiplas, ou seja, no mostram relao de um-para-um entre o tempo fonolgico (X) e a raiz do segmento (r) em (b) uma nica raiz est ligada a mais de um tempo fonolgico; em (c) um s tempo fonolgico est ligado a dois ns de raiz ; (d) e (e)porqueapresentamelementosflutuantes.

    Na busca de representao da naturalidade de regras fonolgicas e de grupos de traos que, nessas regras, sistematicamente funcionam como solidrios, essa geometria de traos assume um princpio, segundo Clements e Hume (1995, p. 250), que est expresso em (38):

    (38) As regras fonolgicas constituem uma nica operao.

    Por esse princpio so, portanto, naturais as regras que se referem a traos individuais ou a ns de classe. Uma regra que, por exemplo, no diagrama mostrado em (36) afete os traos b, d, f no natural; ao contrrio, uma regra que s afete f ou que afete todo o n estrutural B considerada natural. O princpio expresso em (38) implica que somente conjuntos de traos que tenham um n de classe em comum podem funcionar juntos em regras fonolgicas.

    Segundo Clements e Hume (1995, p. 292), a representao da orga- nizao hierrquica de consoantes e vogais a seguinte:

    asusUnderline

    asusNoteIsso, sem dvidas importante para o objeto, pois explica o apagamento de alguns segmentos, limitados pelo tempo, em o(i)txu.

    asusUnderline

  • Leda Bisol (org.)

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    (39) a) Consoantes b) Vogais

    larngeo larngeo

    [nasal] [nasal]

    [gl. no constrita] [gl. no constrita]

    [gl.constrita] [gl.constrita] cavidade oral cavidade oral [sonoro] [sonoro]

    [contnuo] [contnuo]

    Ponto de C Ponto de C

    voclico

    abertura

    Ponto de V

    [aberto]

    [labial] [labial]

    [coronal] [coronal]

    [dorsal] [dorsal]

    [anterior] [anterior]

    [distribudo] [distribudo]

    Qualquer som da fala pode ser representado na forma mostrada em (39). Alguns traos so binrios (podem ser representados em termos de presena (+) ou ausncia ()) e outros so monovalentes (s permitem a representao em termos de presena), e so expressos em cada caso particular; o que ocorre, por exemplo, com traos