introdução

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introdução Os textos que compõem esta autobiografia são um resumo editado das seguintes entrevistas concedidas por Radamés Gnattali, entre 1976 e 1985: Depoimento gravado no Museu da Imagem e do Som, em 28 de agosto de 1985, com a participação do percussionista Luciano Perrone; do compositor e pianista Tom Jobim; do poeta, escritor e produtor Hermínio Bello de Carvalho; do pesquisador, escritor e produtor Jairo Severiano; do violonista Manoel da Conceição; dos músicos Aluísio Didier e Sergio Sarraceni; e da historiadora Elizabeth Versiani Formaginni, representando o MIS. Entrevista concedida ao jornalista Luiz Carlos Saroldi para o programa Especial JB, de 11 de outubro de 977, na Rádio Jornal do Brasil FM, com Ney Hamilton e participação especial de J. C. Botezeli (Pelão). Entrevista concedida à jornalista Mara Caballero para o Jornal do Brasil de 1 de dezembro de 1976. Entrevista concedida ao jornal semanal O Pasquim para a edição de 6 a 12 de maio de 1977. Entrevista concedida ao poeta, compositor e escritor Hermínio Bello de Carvalho, para o programa CONTRA/LUZ da TVE do Rio de Janeiro, gravado em 1985. RAÍZES raízes Infância Nasci no dia 27 de janeiro de 1906, na Rua Fernandes Vieira, em Porto Alegre [RS]. Era o mais velho dos irmãos. Meu nome não era pra ser Radamés, mas Ernani. Mas nasceu o filho de uma parenta e ela botou o nome de Ernani. Então, quando eu nasci, minha mãe me deu o nome de Radamés. Aí, quando o meu irmão nasceu minha mãe deu a ele o nome de Ernani. Depois veio a Aida, o Alexandre e a Maria Terezinha. Alessandro Gnattali

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introdução

Os textos que compõem esta autobiografia são um resumo editado das seguintes entrevistas concedidas por Radamés Gnattali, entre 1976 e 1985:

Depoimento gravado no Museu da Imagem e do Som, em 28 de agosto de 1985, com a participação do percussionista Luciano Perrone; do compositor e pianista Tom Jobim; do poeta, escritor e produtor Hermínio Bello de Carvalho; do pesquisador, escritor e produtor Jairo Severiano; do violonista Manoel da Conceição; dos músicos Aluísio Didier e Sergio Sarraceni; e da historiadora Elizabeth Versiani Formaginni, representando o MIS.

Entrevista concedida ao jornalista Luiz Carlos Saroldi para o programa Especial JB, de 11 de outubro de 977, na Rádio Jornal do Brasil FM, com Ney Hamilton e participação especial de J. C. Botezeli (Pelão).

Entrevista concedida à jornalista Mara Caballero para o Jornal do Brasil de 1 de dezembro de 1976.

Entrevista concedida ao jornal semanal O Pasquim para a edição de 6 a 12 de maio de 1977.

Entrevista concedida ao poeta, compositor e escritor Hermínio Bello de Carvalho, para o programa CONTRA/LUZ da TVE do Rio de Janeiro, gravado em 1985.

RAÍZES

raízes

Infância

Nasci no dia 27 de janeiro de 1906, na Rua Fernandes Vieira, em Porto Alegre [RS]. Era o mais velho dos irmãos. Meu nome não era pra ser Radamés, mas Ernani. Mas nasceu o filho de uma parenta e ela botou o nome de Ernani. Então, quando eu nasci, minha mãe me deu o nome de Radamés. Aí, quando o meu irmão nasceu minha mãe deu a ele o nome de Ernani. Depois veio a Aida, o Alexandre e a Maria Terezinha.

Alessandro Gnattali

Meu pai era operário; quando veio da Europa, em 1896, era marceneiro. Como gostava muito de música, acabou estudando piano, contrabaixo, foi fagotista de orquestra, escrevia música, depois acabou sendo maestro, dirigindo orquestra.

Adélia Fossati Gnattali

Minha mãe era dona de casa, fazia todo o serviço de casa (todo, mesmo!) e ainda tinha tempo pra ensinar música aos filhos. Era uma mulher extraordinária. Minha irmã Aida sempre fala que ela tinha uma intuição musical fabulosa.

Primeiras letras

Quando comecei a estudar foi em italiano. Primeiro, eu estudei numa escola que tinha na mesma rua onde morávamos. Todo bairro tinha uma espécie de clube de italianos, de

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operários italianos. Aquele lá se chamava "Helena de Montenegro", que era filha do rei da Itália. Nesse clube tinha jogo de bocha, faziam baile, davam aulas, tinha uma professora de italiano que dava aula para as crianças.

Formação colegial

Depois, meu pai me colocou no Ginásio Anchieta. Eu estudei lá até os 14 anos de idade. Mas eu não gostava daquilo, porque eu era gago e só tirava zero nas provas orais. Eu não queria estudar, era vagabundo, meu pai achava ruim, era aquele troço. Até que ele chegou e disse: "Mas o que você quer fazer, afinal?" Eu respondi: "eu quero é estudar música". Aí ele me tirou da escola, do ginásio, e fui estudar particular, português e aqueles troços todos.

Formação musical

Eu comecei com minha mãe, com 3, 4 anos, estudando piano. Com 14 anos, fiz um exame de admissão para o Conservatório (porque naquele tempo não tinha essa porcaria de vestibular) e me puseram no 5º ano de piano, na aula do prof. Guilherme Fontainha. Eram 9 anos, naquele tempo. Agora mudou, não sei como é mais o sistema. Fiz um estudo de nove anos tocando Bach, Chopin, Beethoven. ...Estudei um pouco de flauta, de clarinete, estudei violino oito anos, que isso é muito bom para se conhecer cordas. Depois, quando eu toquei viola no quarteto de cordas, durante dois anos, com um repertório ótimo, eu aprendi muito. Cordas eu conheço bem. Eu sei bem piston; saxofone, mais ou menos....Estudei harmonia com algumas pessoas, com Agnelo França, aqui no Rio, mas eu não gostava. Estudei com o Paulo Silva e um dia perguntei para ele se estudar contraponto me ajudaria a sair daquela situação [questionamentos e inquietações da juventude]. Ele disse para eu continuar o que estava fazendo porque não ia adiantar nada.

Primeiro concerto

O primeiro concerto que fiz foi com 18 anos, em 1924, no Rio de Janeiro, quando cursava o último ano de piano. O Fontainha [Guilherme Halfeld Fontainha, diretor do Conservatório Musical de Porto Alegre] me trouxe para o Rio, para apresentar um aluno dele (...) acho que ele queria arranjar emprego na Escola de Música (...) mais tarde foi até contratado, mesmo. Toquei Liszt e um concerto de órgão de Wilhelm Friedemann Bach, transcrito para piano. Foi na Escola Nacional de Música e o Fontainha convidou os críticos todos, até a Guiomar Novais estava lá.

Formatura

Depois do concerto no Rio de Janeiro, voltei para Porto Alegre para fazer os exames finais. Deu uma encrenca danada com os outros alunos. Eu tinha faltado muito, tinha ficado fora mais de 3 meses e os outros acharam que eu não podia fazer os exames. Só que eu estava no Rio de Janeiro com o professor, que era diretor do Conservatório, e ninguém pôde falar nada. Fiz o concurso que era realizado no Conservatório e ganhei o Prêmio Araújo Vianna, com medalha de ouro.

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músico completo

Pianista

Eu comecei como concertista. Terminei meu curso em Porto Alegre e vim para o Rio para ser concertista. Eu tinha qualidades para isso. Mas naquele tempo não havia possibilidade de se viver só de concerto. Hoje, há uma porção de sociedades que dão bolsas, mas naquele tempo não havia. Então eu tive que ir para a música popular para sobreviver. ...Eu tenho muita inveja desses pianistas todos, como o Estrella [Arnaldo Estrella], o Moreira Lima [Arthur Moreira Lima], esses pianistas todos que vivem disso, porque o que eu gosto, mesmo, é de tocar piano. Mas para isso tem que se estudar, no mínimo, oito horas por dia, não se preocupar em ter que trabalhar para ganhar dinheiro. Eu gostaria de ser um grande pianista....Eu não toco mais piano, mas gostaria de tocar. Há mais de seis meses estou estudando piano para ver se consigo tocar como tocava quando tinha vinte anos [dito à imprensa em 1984, aos 78 anos]. Tá difícil, mas eu vou chegar lá. Vou gravar o Nazareth, com dois pianos. [Radamés não concretizou este projeto].

Piano popular

Com 18 anos, enquanto eu estudava no Instituto teoria, solfejo, piano e violino, tocava ao mesmo tempo num cinema para ganhar uns cobres. Em 1924 integrei uma pequena orquestra (...) a gente tocava no Cinema Colombo, no bairro Floresta, e ganhava 10 mil réis por dia. As partituras eram pot pourri de canções francesas, italianas, operetas, valsas, polcas. Nós líamos tudo o que havia na estante enquanto na tela passavam os filmes mudos....Tocar piano é muito difícil, escrever é fácil.

O compositor

Talvez, eu gostasse de viver apenas da música erudita, o que é muito difícil. Talvez, nos países socialistas não seja assim. Mas aqui, viver do direito autoral das composições, não é possível. Se eu fosse tentar viver das minhas composições, eu estaria maluco, hoje. Já tinha me suicidado. Não dá. A não ser tocando em orquestra de rádio, em cinema, em televisão.

Minhas peças prediletas são os 12 concertos para piano, 4 concertos para violino, 3 para violoncelo, 1 para saxofone, bandolim, harpa...Tenho de tudo, até mesmo uma cantata de umbanda com texto do Bororó [Alberto de Castro Simões da Silva]. É a cantata Maria Jesus dos Anjos, para coro e orquestra, narrada pelo Milton Gonçalves e apresentada no Theatro Municipal. Bororó fez o texto todo e compôs alguns pontos. O Pai Jerônimo do centro espírita é que é o autor dos pontos. Mas eu tratei tudo livremente. Eu também tenho dois pontos lá....Nunca me frustrei em fazer música popular, faço isso com todo o prazer e gosto muito. Só de conviver com Pixinguinha [Alfredo da Rocha Viana Filho], um sujeito fabuloso,

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com Garoto [Aníbal Augusto Sardinha], Dino [Dino 7 cordas - Horondino Silva], João [João da Baiana], Jacob [Jacob do Bandolim], excelentes músicos. Se eu tivesse ido à Europa, poderia ter sido um grande pianista, mas nunca seria um compositor brasileiro.

O compositor/arranjador de música popular

Eu gravei minhas primeiras composições na Victor. Quando aparecia um trio - piano, clarinete e bateria [como nos choros Cabuloso e Recordando de 1937] - era eu, o Luís Americano e o Luciano [Luciano Perrone]. Depois apareceu aqui um conjunto com saxofone barítono para fazer uns arranjos para o Orlando Silva. Esses troços meio malucos. Mas foi ótimo porque a gente vai aprendendo....Sempre me interessei muito pela música popular, talvez já pensando no futuro. Dizem que isso é premonição, não é? Em Porto Alegre, só se tocava tango argentino. O samba estava restrito ao Rio. Nem em São Paulo se tocava samba. Aliás, até há pouco tempo não se tocava samba em São Paulo [risos]. Eu aprendi a tocar piano popular com os pianeiros. Eu ficava ouvindo os discos do Fontainha [provavelmente, discos de jazz, do seu professor de piano] e aprendendo como se usava os saxofones. É uma escola....Os arranjos orquestrais passaram a ser habituais na década de 1930, encomendados, principalmente, por Mr. Evans, diretor da RCA Victor, para as gravações de Orlando Silva, Francisco Alves, Sílvio Caldas. Esse Mr. Evans encarregou a mim e ao Pixinguinha de cuidar dos arranjos das médias e grandes orquestras da RCA. Ele queria dar um tom mais profissional às gravações, a fim de competir, com mais apuro, com o disco estrangeiro, que chegava ao Brasil com belos arranjos orquestrais. Ouvia-se muita música brasileira e Mr. Evans chegou a trazer de São Paulo o maestro Galvão, a quem encomendou os primeiros arranjos. Pixinguinha trabalhava mais com os arranjos carnavalescos, que eram o seu forte, ficando a parte romântica comigo e outros maestros.

Aquarela do Brasil

A Aquarela do Brasil foi composta para a revista Joujoux e Balangandans, em 1939. A entrada [Radamés se refere ao famoso tan, tan, tan - tan, tan, tan], o Ary queria botar aquilo nos contrabaixos. Aí eu disse: "Ô Ari, faz a música que eu faço o arranjo". Aí eu botei aquilo nos saxofones, que dava mais impacto. Foi só isso, aquilo não é meu, não.

vida profissional

Predestinação

Eu já sabia que isso aqui era uma esculhambação. Naquele tempo já funcionava o negócio de pistolão. Eu vim definitivamente para o Rio em 1931. O Fontainha praticamente nunca me ajudou em nada, mas dessa vez ele me escreveu dizendo que tinha uma vaga na Escola de Música [UFRJ] para a cadeira de Professor Catedrático e perguntou se eu não queria concorrer. Eu larguei tudo em Porto Alegre, e vim para cá. Fiquei aqui estudando 4 ou 5 meses à espera do concurso. Mas fui falar com Getúlio [Presidente Getúlio Vargas]. Eu trouxe uma carta do Raul Pilla, que era um político muito bom. Inimigo do Getúlio, mas que Getúlio respeitava. Entreguei a carta na portaria. Alguns dias depois chegou um telegrama para eu ir lá que ele ia me receber. E

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ele disse:GV - O que o senhor quer? RG - Só quero saber se o concurso vai ser realizado no fim do ano, mais nada.GV - Tem minha palavra!Mas não houve concurso nenhum.

Primeiros anos no Rio de Janeiro

Aquele era o tempo da miséria, da fome. Todo mundo, eu, os músicos, o Murilo Mendes (...) a gente se reunia na casa do Portinari em Laranjeiras. A gente ia pra lá. O Portinari ficava pintando o tempo todo... a gente batendo papo.

Ingresso no rádio

Eu cheguei aqui no Rio em 1924. Foi a primeira vez que eu toquei em rádio. A Rádio Clube do Brasil tinha um estúdio no Largo do Machado. Só tinha um piano, não tinha orquestra, nada. Foi lá que toquei a primeira vez. Depois mais tarde, em 1930 mais ou menos, a data eu não me lembro, eu comecei a tocar na Rádio Clube como músico da orquestra. Depois fui para Cajuti e depois fui para a Nacional. Antes passei, também, pela Mayrink Veiga....Na Mayrink Veiga eu tocava tudo, popular e erudito. Ganhava mal. Eu tocava piano em todas as orquestras da rádio e ainda acompanhava os cantores que iam lá. O violonista recém-contratado ganhava mais do que eu. Aí eu fui embora. Quando saí, tiveram que contratar quatro pianistas. O César Ladeira mandou a orquestra toda me chamar lá em casa e perguntar quanto eu queria para voltar. Eu não queria nada, não. Você fica com a tua rádio, lá, que eu não quero.

Rádio Nacional

Início - 1936

Na Rádio Nacional, por exemplo, tinha uma orquestra de jazz, tinha uma orquestra de tango e eu era o pianista. Naquele tempo não tinha orquestra de música brasileira, tinha regional e orquestra de salão, com cordas e flautas, para tocar trechos de operetas, árias de óperas. Já vinha tudo impresso, tudo de fora. (...) eu comecei a fazer pequenos arranjos para trio - eu no piano, o Iberê [Iberê Gomes Grosso] no violoncelo e o Romeu Ghypsman no violino. Eu comecei a fazer pequenas peças, como toada, choro, valsa. Porque naquele tempo não tinha um roteiro: um buraco na programação, e eu tocava alguma música para tapar esse buraco. Daí comecei a escrever. Depois os cantores começaram a gostar e pediram para eu fazer os arranjos.

Metendo o malho: "isso é uma esculhambação!"

Eu trabalhei 30 anos na Rádio Nacional e nunca fui diretor de nada. Um dia, eu cheguei lá e vi no quadro minha nomeação como diretor artístico. Aí eu fui ao Pedro Calmon [diretor geral] perguntar qual seria a minha função. E ele: "A sua função é procurar melhorar o nível da programação". Eu disse, "então tá, vamos cortar esse programa, esse e esse, porque são uma droga completa". Aí ele disse: "Ah! mas não pode porque esses aí têm anunciantes..." Eu digo: "Então já não sou mais diretor", pedi demissão.

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...Eu não gosto nem de lembrar daquilo, era uma exploração desgraçada. Exploravam todos os músicos. Quem ganhava bem lá era a direção. Todo mundo rico, todo mundo tomando whisky....A Rádio Nacional era uma esculhambação. Não saía uma lei. Quando saía uma lei beneficiando os funcionários públicos, nós não éramos funcionários públicos. Aí saía outra lei e era sempre a mesma coisa....A qualidade das músicas da Rádio Nacional era porque eu fazia, o Leo [maestro Leo Peracchi] fazia, o Lyrio [maestro Lyrio Panicali] fazia. Nós éramos responsáveis por todas as coisas boas que se fazia por lá. A orquestra era boa, porque a Rádio Nacional funcionava como vitrine para aquele pessoal que ganhava pouco, mas ia fazer show fora.

Ampliação da orquestra (nota)

(...) o jazz, por exemplo, é muito baseado no piano, bateria, contrabaixo e guitarra. Eu então disse: "pra fazer uma boa orquestra de música brasileira, precisamos ter uma boa base. Então, tinha dois violões, cavaquinho. Às vezes três cavaquinhos, conforme o arranjo que eu queria. (...) tinha uma bateria espetacular, que era o Luciano (Luciano Perrone); o João da Baiana, no pandeiro. O pessoal que toca pandeiro por aí precisava ouvir o João da Baiana pra ver como se toca pandeiro. O Heitor dos Prazeres, que tocava caixeta, prato e faca e o Bide [Alcebíades Barcelos], que tocava ganzá. Era uma massa muito boa.

Um Milhão de Melodias - nove arranjos por semana

Eu trabalhava todo dia na Rádio Nacional. Ensaiava duas horas por noite. Aí, o José Mauro veio falar comigo, para eu fazer um programa de música popular de meia hora, com nove músicas ligadas uma na outra. O programa era o Um Milhão de Melodias . Aí eu disse pro Zé Mauro: eu posso fazer isso, mas não venho mais trabalhar aqui como pianista, não. Acabou esse negócio. Agora eu venho aqui para fazer o programa nas quartas feiras e acabou. Não ia ganhar mais por isso, não. O programa era na quarta-feira. Eu trabalhava quinta, sexta e sábado. Fazia tudo e entregava ao copista. A segunda e a terça-feira eram para fazer o que eu quisesse. (...) O programa todo era uma espécie de parada musical. Eu fazia nove arranjos por semana, para esse programa. (...) Quem escolhia as músicas era o Paulo Tapajós e o Haroldo Barbosa, que era o discotecário da rádio e estava por dentro de todas as músicas de sucesso, do mundo inteiro.

Liberdade para criar

Eu só fazia o Um Milhão de Melodias. O Lyrio Panicali fazia a orquestra dramática e o Leo Peracchi a música sinfônica. Porque tinha orquestra sinfônica na Rádio Nacional! Eu podia fazer qualquer coisa na Rádio Nacional. Tenho muita música sinfônica lá. Não tinha esse negócio comercial. A Rádio Nacional não precisava de dinheiro. Quando o Gilberto de Andrade tomou conta da estação, ele disse: "vocês façam o que quiserem, gastem o dinheiro que tiverem". Aquilo era do governo. A Globo, por exemplo, é uma estação comercial, tem que dar ao anunciante o que ele quer.

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música erudita no Brasil

No Brasil, não dá...A primeira vez que eu saí do Brasil eu fui para Buenos Aires, para dirigir o programa a Hora do Brasil, isso no tempo da Rádio Nacional, em 1941. Eu fui diretor, lá, fui para organizar a orquestra. Levei então o Luciano Perrone [baterista], o pistonista Mariano Pizziali, o Zacarias, no saxofone. Para depois contratar uma orquestra de lá. Fiquei oito meses naquela cidade, que é fantástica. Na volta, quando eu cheguei aqui no Brasil, tive uma decepção tão grande, quase que jurei nunca mais sair do Brasil. Porque a volta é triste, sabe? Lá você é respeitado. Quando eu cheguei, uma semana depois, fui convidado por um jornalista para um almoço, oferecido a mim, organizado pelos músicos e críticos locais. Eu disse: "mas eu não fiz nada, ainda". E ele: "nós já conhecemos o que você fez no Brasil". Aí fizeram um almoço, com cinqüenta pessoas, no teatro Colón, críticos, artistas, cantores, escritores. Eu fiquei maluco, não era possível. Não é pela homenagem, é pelo sentido de que a cultura é outra. Quem é que grava música de concerto no Brasil?

música popular

Eu sempre trabalhei em música popular e gosto muito. Aliás, devo a isso eu fazer alguma coisa de brasileiro, hoje. Aprendendo com o povo, pois só o povo ensina essa coisa. ...Em Porto Alegre, eu já tocava cavaquinho num bloco de carnaval, organizado pelo Sotero Cosme, que se chamava Os exagerados. Saíamos fantasiados de palhinha.

Samba

Aquela batida do surdo, no tempo fraco, em parte nenhuma no mundo existe. Só no Brasil. O mundo está acostumado a ouvir a marcação do bumbo ou do surdo no tempo forte. A bossa nova, como mudou o ritmo, ficou mais fácil de tocar. Tanto que todo mundo toca hoje bossa nova. Outro dia eu estava vendo um filme francês, que tocam Carolina, do Chico [Chico Buarque de Holanda]. Tocam perfeitamente bem, lá.

Bossa nova

O movimento mais importante na música brasileira foi a bossa nova. Mas o Garoto já acompanhava botando uns acordes diferentes. Esse negócio já veio de antes. A bossa nova não começou de repente. O João Gilberto vivia sempre com o Garoto, assim como o Baden. A bossa nova mudou a harmonia, e os compositores da época já tocavam violão muito melhor que os outros, já tinham um sentido harmônico diferente, usando acordes dissonantes e fazendo melodias em cima desses acordes, como é o caso do Tom. A harmonia dele é toda muito boa, como é o caso do Johnny Alf, formidável. ...A bossa nova deu certo no mundo inteiro porque o samba tradicional ninguém sabe tocar. Se não fossem as escolas de samba, talvez tivesse acabado. Porque até o hino nacional se toca com marcação de marcha de rancho. O balanço do samba, ninguém toca isso no mundo inteiro. Ninguém toca. (...) A batida da bossa nova tirou essa coisa [a acentuação no segundo tempo do samba], mas ficou uma outra coisa, que ficou

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mesmo e está aí. Ninguém pode negar isso. Em vez de um samba agora temos dois. O samba não pode ficar parado lá no "Pedro Álvares Cabral", não dá! Não pode!

referências

Naquele tempo, em Porto Alegre, eu não ouvia música, só tocava. Tocava Villa-Lobos, Nazareth, meu pai comprava tudo. Ouvir, mesmo, só muito tempo depois, com 24, 25 anos, quando já tinha vitrola.

Músicos populares

Fui muito ligado ao Jacob, Heitor dos Prazeres, João da Baiana, Bide [Alcebíades Barcelos], Marçal e Luciano Perrone. Cada um me deu uma coisa. Quando conheci Pixinguinha, quase não se tocava música popular brasileira. O negócio era tango, fox trot. O jazz ganhou o mundo, porque não se exigia uma orquestra cara. Apenas piano, contrabaixo um ou outro instrumento de sopro. Jazz é a música popular mais evoluída do mundo e é claro que me influenciou. Mas minha música é toda brasileira, baseada em temas folclóricos e urbanos do Rio de Janeiro. Sobre isso de influência jazzística, a gente conversa depois, com mais calma. Agora, ninguém tira nada do nada, portanto, tem sempre que haver influências.

Ernesto Nazareth

Conheci Nazareth com 25, 26 anos, quando ele tocava no Cinema Odeon, na Rio Branco com Sete de Setembro [no centro do Rio de Janeiro]. Um dia eu estava passando, ouvi aquele som e era o próprio Nazareth tocando. Eu não entrava porque não tinha dinheiro pro cinema, mas do lado de fora eu o ouvia. Sempre juntava um povinho para ouvir.

Eu acho que não tocam hoje o Nazareth como se deve, porque pensam que Nazareth era um pianeiro, quando era um pianista. Não tocava nada staccato. Tocava, mesmo, como se estivesse tocando Chopin, usava o pedal, era um pianista muito bom.

companheiros

Garoto (Aníbal Augusto Sardinha)

Eu comprei uma flauta e comecei a estudar uns chorinhos. O Garoto comprou um sítio ao lado do meu, com o dinheiro que ganhou com a música São Paulo Quatrocentão, e enquanto a casa dele não ficava pronta, ele ficava lá em casa. E à noite a gente tocava, ele no violão e eu na flauta. Eu era o pior flautista acompanhado pelo melhor violonista.

Pixinguinha (Alfredo da Rocha Viana Filho)

Conheci Pixinguinha tocando no dancing Eldorado na Praça Tiradentes, na década de 30. Era uma pequena orquestra de jazz, como muitas da época. No piano, Centopéia, extraordinário. No ganzá, Vidraça. Eles faziam uma sessão de choro, e eu ali, aprendendo. ...A gente trabalhava na RCA Victor, o Pixinguinha era flautista de lá, com os Diabos do

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Céu. Ele fazia uns arranjos e já era samba. Pixinguinha era bom mesmo como flautista e compositor. Seu estilo [como arranjador] era mais antiquado, mais negócio de banda. Eu era o pianista da orquestra. Agora, quando eu fazia os arranjos de música romântica, samba-canção, valsa... Pixinguinha era o flautista e o violinista era o Romeu Ghypsman....Depois, eu fiz muita amizade com ele, porque Pixinguinha era um sujeito excepcional. Tão bom quanto ele só o meu pai. E como compositor eu o acho excepcional e foi um flautista fabuloso.

Os músicos do Sexteto Radamés Gnattali

Acho que todos são muito meus amigos porque escrevi, sempre, o que eles queriam, sem deturpar nada. ...A Aida [Aida Gnattali, segundo piano], minha irmã, tocou muito comigo, em duo. Nós fomos à Europa, com o sexteto (...) e viajamos a Europa toda. ...O Chiquinho [Romeu Seibel] já está comigo desde a Rádio Nacional. O Zé Mauro, que era o diretor da Rádio, disse: "por que você não bota um acordeão na orquestra?". Eu não queria. Aí chegou um magricela lá na rádio, chegado do sul, e começou a tocar. Aí eu disse: "agora pode!"....O Menezes, também [José Menezes, guitarra elétrica], começou comigo desde a Rádio Nacional. Naquele tempo tinha 3 violões espetaculares: o Menezes, que tocava violão, cavaquinho e viola caipira, o Garoto e o Bola Sete....O Vidal [Pedro Vidal Ramos] era o contrabaixista da orquestra da Rádio Nacional. Ele chegou lá para dar uma canja, como substituto, e eu disse pro Zé Mauro: contrata esse contrabaixo, porque é esse que vai servir pra gente, para a música popular....Eu conheci o Luciano [Luciano Perrone, bateria] em 1929 e começamos a trabalhar juntos. Esse negócio de transferir o ritmo para os metais foi idéia do Luciano. Ele era um ótimo baterista da orquestra e um dia disse: por que você não bota nos metais esse ritmo da bateria. Então eu comecei a fazer. Hoje a gente não toca mais porque é só rock. Então, ficamos encostados.

Sobre a Camerata Carioca

Um dia o Joel [Joel Nascimento] apareceu lá em casa tocando o Retratos e me pediu para fazer a transcrição da parte da orquestra para regional, só. Eu achava que aquilo não ia dar muito certo mas fiz, e ficou bom. Quando eu comecei a trabalhar com a Camerata, eu achava aquilo fabuloso. "Os caras querem estudar e querem tocar. Estudar, para tocar bem!"

Tom Jobim (Antonio Carlos Jobim)

Eu morava lá no [edifício] Igrejinha, no Posto 6 [Copacabana], e o Tom ia lá bater papo. Ele estava naquela "fossa" e veio pedir conselho, e eu disse: "Ô Tom, ninguém vai te ensinar nada, porque também aconteceu isso comigo. Você deixa sair o que tem dentro de você e pronto, só isso. Fica prendendo, não acontece nada. Você não precisa procurar

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ninguém, porque ninguém vai te ensinar coisa nenhuma. Você vai fazer uma grande composição para piano e orquestra, você vai dirigir e eu vou tocar piano. Aí ele foi.

Tom com a palavra: "(...) Isso foi na Rádio Nacional, eu morri de medo, pois aqueles músicos são uma raça desgraçada. Aquele pessoal do sindicado que fica olhando pro relógio, faz queixa, "acabou o ensaio". Então, o Radamés me ajudou a enfrentar essas coisas da vida, essas feras."

erudito e popular

Eu gravei um disco na Continental, de música popular, com orquestra, e um crítico disse que o disco estava muito bonito, mas que eu tinha levado, um pouco, para o lado clássico. Porque eu não tinha colocado o que todo mundo estava acostumado.Quando eu toquei pela primeira vez o Concerto Carioca N.º 1 com a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal, com o Morelembaum dirigindo [maestro Henrique Morelembaum], o pessoal comentou: "Ih, no Municipal, até samba estão tocando agora". Hoje, graças a Deus, não tem mais isso. ...Quando ganhei o Prêmio Shell, em 1983, (...) apresentei o Concerto nº. 3 - Seresteiro, para piano e orquestra. Como a música desse concerto é muito brasileira, achei bom botar um regional junto com o piano. Os puristas não gostam muito de misturar regional com orquestra sinfônica, mas se o concerto é meu, eu escolho o repertório que vou tocar, é ou não é? ...

Luciano Perrone com a palavra: "(...) Radamés é impermeável, porque quando ele faz música popular é música popular; e quando ele faz música de concerto é música de concerto. Uma não atrapalha a outra."

mensagem ao jovem

Não estude música. Ser profissional de música no Brasil é fogo. Aqui é muito difícil. A não ser que você tenha dinheiro para fazer disso um hobby. Começa que pra você entrar para a escola de música tem que fazer vestibular. Como se fosse para medicina ou qualquer outra coisa. Depois, tem que aprender um instrumento, estudar oito horas por dia, e aí não se tem tempo para mais nada. Aqui, só se pode fazer isso por diversão.

Escola Radamés Gnattali

Não sei disso, não. Quando as coisas estão acontecendo, ninguém dá importância nenhuma. Mais tarde é que vão se lembrar, aí ninguém sabe mais nada. ...Eu acho que ninguém pode ensinar música a ninguém. Eu não sei ensinar, não tenho paciência. Só tive um aluno, de 4 anos, que tinha talento, em Porto Alegre. ...Eu tinha vontade de ensinar, com a minha experiência, mas ensinar o quê eu não sei, não sei como.

perfil

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Gosto musical

Eu gosto muito de música. Em qualquer parte que eu vou, sempre a gente aprende alguma coisa, sempre. Quando ouço música, sou um músico vendo um quadro do Portinari: gosto ou não gosto do som que está saindo, não me preocupa a técnica.

Vero

O Vero fui eu mesmo. A minha primeira mulher, que faleceu, chamava-se Vera, e eu, quando comecei a fazer esses arranjos para a RCA Victor [c.1932] - naquele tempo não ficava bem o compositor de música sinfônica, erudita, fazer música popular - arranjei esse nome. Pronto, ficou Vero.

Mau-humor

Eu não sei disso, não, eu não acho que eu tenho mau humor (...) eu fico meio chateado, às vezes, é com a burrice, sabe? (risos)...Eu acho que está tudo certo, tudo bem. Por que o mau humor? (risos)...É porque é o seguinte: quando você trabalha, o sujeito custa a entender e aí acham que você que é o mal-humorado. (risos)

Ética profissional

Poderia, se quisesse, ter entrado em muita parceria, pois não faltavam propostas de compositores. Isso, contudo, eu achava abominável, ficando até mesmo, com o modesto cachê de arranjador, que dava para comprar um bom par de sapatos e nada mais. O cachê variava entre quarenta e cinqüenta mil réis. Se eu tivesse ganho pelo menos uma pequena parte de tudo o que eu escrevi, de 1930 até hoje, estaria rico. O pior é que a marginalização do arranjador continua a mesma. Ele ganha apenas um magro cachê. Na Europa, o arranjador recebe parte do direito autoral. Aqui não recebe nada.

Religiosidade

Nós sempre estudamos em colégio de padre porque eram as melhores escolas de Porto Alegre, não porque meus pais fossem religiosos.Eu sou espiritualista. Me interessa muito a parte da música, mais o candomblé do que a umbanda, por causa dos atabaques, os ritmos, aqueles pontos todos.Se não tiver alguma coisa do outro lado, esse mundo não tem significação nenhuma, não tem sentido....Eu tinha um sítio, em Areal [Estado do Rio]. Tinha um padre italiano lá e a gente conversava muito. Um dia ele disse assim: "eu estou meio preocupado porque o senhor não reza". Eu falei que rezava à minha maneira, mas que não ia à Igreja. Aí, eu toquei um concerto no Teatro Municipal e ele ouviu pelo rádio. Depois, ele chegou para mim e disse: "agora já sei como o senhor reza".

Casamento

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Casei a primeira vez com Vera [Vera Maria Bieri], uma moça, pianista, de São Leopoldo [RS]. Fui casado 35 anos com ela. Ela morreu. Eu não poderia conviver com uma pessoa que não fosse da música, não ia dar certo. A segunda, Nelly, [Nelly Biato Gnattali] também é pianista, cantora (...). Agora, eu toco com ela, que também foi da Rádio Nacional, fez muitas novelas, cinema e agora está cursando medicina.

coda

Não estou satisfeito com a situação dos músicos no Brasil, mas estou satisfeito comigo mesmo.Eu sou feliz. Casei duas vezes, muito bem casado. Tenho bons amigos, sempre tive. O Luciano [Luciano Perrone] me convida para almoçar todo mês.Tenho meu dinheiro para tomar um chopezinho. Quando não tenho, o Tom paga.

Radamés Gnattali (1906-1988) – Braziliana nº 13 e outras obras para violão soloPublicado em 27 de fevereiro de 2007 por admin Share on facebook Share on twitter Share on email Share on pinterest_share More Sharing Services 0

O grande Maestro Radamés fez frutífero contato com o violonista Rafael Rabello (1962-1995) numa época em que ressurgia o choro no Rio de Janeiro. Radamés foi um dos mestres mais requisitados nesse período, demonstrando uma jovialidade que encantou novos chorões como Joel Nascimento, Rafael Rabello e Maurício Carrilho. Nasceram assim amizades que geraram muitos encontros e parcerias. Em 1986, Rafael gravou este excepcional registro de obras do mestre gaúcho.

01 Braziliana nº 13: Samba bossa nova02 Braziliana nº 13: Valsa03 Braziliana nº 13: Choro04 Tocata em ritmo de samba I05 Tocata em ritmo de samba II06 Dança brasileira07 Estudo I – Presto possibile08 Estudo V – Alegretto09 Estudo VII – Comodo

Violonista: Rafael Rabello