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INTERSETORIALIDADE, ÉTICA E SERVIÇO SOCIAL: ENTRE A POSTURA
ÉTICO-POLÍTICA E O ENCAMINHAMENTO PRAGMÁTICO
Gabriela Dutra Cristiano 1
Berenice Rojas Couto 2
Resumo: Este artigo tem como objetivo apresentar a discussão sobre um dos elementos
emergentes da pesquisa de mestrado da autora: a relação do Serviço Social com a
Intersetorialidade. A partir deste estudo, observamos que desde os primórdios da profissão a
intersetorialidade já se apresentava enquanto perspectiva de atendimento, ainda que de forma
embrionária. Na contemporaneidade, a intersetorialidade manifesta-se nos discursos e na
atuação profissional de forma paradoxal: por vezes enquanto postura ético-política de atuação,
entretanto, no ato ético-moral objetivado, apresenta-se hegemonicamente enquanto
encaminhamento pragmático. Neste sentido, buscamos contribuir para as reflexões sobre as
formas de assistentes sociais construírem ética e tecnicamente formas de atendimento integral
e intersetorial.
Palavras-chave: Serviço Social. Ética. Intersetorialidade.
1 INTRODUÇÃO
Mulheres e homens, seres histórico-sociais, nos tornamos capazes de
comparar, de valorar, de intervir, de escolher, de decidir, de romper, por isso
tudo, nos fizemos seres éticos. (PAULO FREIRE)
A intersetorialidade, com esta denominação, vem ganhando espaço de discussão em
diversas profissões e especialmente no campo da política social brasileira. No Serviço Social,
ainda que de forma bastante embrionária, a perspectiva de atuar conjuntamente com as redes
de serviços e de articular o trabalho com outros setores de atendimento já estava presente
desde os primórdios da profissão.
Talvez este seja o principal motivo pelo qual, ainda que este não fosse o tema de
estudo da dissertação da autora, o assunto foi recorrente nos dados coletados, mostrando-se
um nó para a discussão da transversalidade ética na atuação e na formação profissional de
assistentes sociais. A referida dissertação é produto de uma pesquisa de mestrado que teve
como objetivo analisar as implicações éticas derivadas do cotidiano de trabalho de
estagiárias/os em Serviço Social inseridas/os em diferentes espaços de atuação.
1 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected];
2 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected].
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Embasada na perspectiva histórico-ontologica lukácsiana, essa pesquisa teve como
objetivo analisar os processos que, mediados por complexos interrelacionados, incidem nos
modos como os sujeitos estagiários refletem e posicionam-se eticamente em seus cotidianos
de trabalho, a fim de contribuir com a formação ética. Em diferentes espaços de atuação no
campo das políticas sociais observamos a emergência e o desafio que é ressignificar nos atos
ético-morais cotidianos os valores historicamente construídos nestes espaços, como o
assistencialismo, o clientelismo, a lógica do mando e da mercantilização. Observamos,
também, as dificuldades e as possibilidades de objetivar os valores éticos da profissão –
expressos no código de ética do Serviço Social.
O estágio obrigatório é, muitas vezes, o primeiro contato das/os estudantes com o
realidade prática do Serviço Social e seus inúmeros limites e desafios, entre eles a objetivação
de valores éticos com consciência e responsabilidade. O estágio é um espaço de formação
pelo trabalho. Ou seja, as/os assistentes sociais em formação inseridas/os em estágio se
transformam através da ação, da experimentação do exercício profissional através do trabalho
e, assim, vão pouco a pouco construindo seus jeitos de serem assistentes sociais; formando
concepções, conceitos e valores.
Neste sentido, este estudo tem como dimensões centrais a ética, o trabalho e a
formação. Afinal, “a formação profissional tal qual por nós defendida, em consonância com o
projeto ético-político, só pode se realizar em havendo uma centralidade da ética nesse
processo”. (SOUSA, SANTOS e CARDOSO, 2013 p. 50)
Em se tratando de estudantes, é preciso dar voz e visibilizar ao lugar que estes ocupam
nas instituições em que se inserem, como são seus cotidianos de trabalho e os desafios para o
desenvolvimento de uma formação pelo trabalho com centralidade em valores éticos
conscientes e responsáveis. Desta forma é possível qualificar este importante momento da
formação profissional, assumindo a transversalidade da ética na graduação em Serviço Social.
Para que o estudo ganhasse materialidade, o campo de estudo da pesquisa
desenvolvida foram as faculdades de Serviço Social de uma universidade pública e outra
privada. Como sujeitos de pesquisa, delimitamos aqueles inseridos em estágio supervisionado
de nível três, por entender que neste momento da formação profissional já há uma maior
maturação, apropriação e incorporação do que é ser assistente social.
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A coleta de dados se desenvolveu em dois momentos. No primeiro, foi entregue as/aos
estudantes um instrumento alternativo elaborado pela pesquisadora. No segundo momento,
realizamos entrevistam semi-estruturadas na intenção de aprofundar a discussão sobre os
elementos que emergiram das respostas ao instrumento alternativo e abranger outras questões
de interesse na pesquisa.
O referido instrumento alternativo foi construído em forma de questionário,
apresentando inicialmente questões fechadas sobre o perfil das/os estudantes participantes e,
após, o relato de três casos “típicos”, com elementos que comumente são atendidos por
assistentes sociais. Cada caso apresentava um dilema ético atravessado por questões de saúde,
trabalho, habitação, gênero, entre outras. Após cada caso apresentado, perguntamos “como
você analisa esta situação?” e “diante desta situação, com as condições de trabalho que tens, o
que faria?”
Assim, as respostas ao questionário foram projeções teleológicas para a intervenção
que apresentaram, entre outros elementos, a constante intencionalidade de articular com as
redes de serviços e/ou realizar encaminhamentos. Por este elemento ser bastante expressivo
nas respostas do questionário, também o abordamos nas entrevistas semi-estruturadas.
Para analisar os dados, utilizamos a metodologia de análise textual discursiva, que “é
uma abordagem de análise de dados que transita entre duas formas consagradas de análise na
pesquisa qualitativa, que são a análise de conteúdo e a análise de discurso”. (MORAES;
GALIAZZI, 2006, p. 118) Esta metodologia de análise busca compreender os sentidos e
significados emergentes dos dados, exigindo uma constante (re)construção de caminhos para
a produção de um conhecimento não linear. (MORAES, 2003)
Neste artigo, como foi dito anteriormente, apresentaremos a discussão sobre os dados
referentes à relação entre Serviço Social e intersetorialidade. Para tanto, inicialmente
abordaremos a concepção de ética que embasa o estudo e que orienta a análise dos dados da
pesquisa. Após, discutiremos teórica e empiricamente esta relação, tendo como eixo norteador
de análise a ética, buscando explicitar como a intersetorialidade se manifesta nos discursos e
na atuação de estagiárias/os de Serviço Social nos diferentes espaços socio-ocupacionais.
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2 ÉTICA E SERVIÇO SOCIAL
A ética, enquanto campo de estudo, vem crescendo e ganhando espaço em diversas
áreas e esferas da vida social. Muito se discute o tema, comumente buscando referir o que é
considerado certo ou errado em determinada estrutura de pensamento. Quando nos referimos
a uma profissão específica, torna-se importante a clareza de pelo menos dois conceitos: de que
ética se está falando e qual a concepção de ética profissional.
Mais do que o que é considerado certo ou errado no Serviço Social, mais do que as
prerrogativas e normatizações do Código de Ética de assistentes sociais, buscamos neste
estudo discutir o ethos da profissão; isto é, a produção e reprodução de valores na vida
concreta de profissionais e como estas/es transformam posicionamentos ético-políticos em
atos ético-morais.
No Serviço Social este tema vem sendo aprofundado com maior intensidade a partir
dos anos 80 onde, na efervescência do denominado Movimento de Reconceituação, a
profissão pactua com valores progressistas e emancipatórios, bem como com as necessidades
e interesses da classe trabalhadora. Entretanto, sabemos que não é de forma romântica e
voluntarista que se constroem as possibilidades de objetivação desses valores de forma
consciente, crítica e responsável.
2.1 DE QUE ÉTICA ESTAMOS FALANDO?
A ética, na perspectiva histórico-ontológica lukacciana, precisa ser pensada partindo a
da vida concreta de homens e mulheres de nosso tempo. Enquanto seres humanos somos seres
éticos porque, diferente de outras espécies animais, temos a capacidade de pensar sobre aquilo
que fazemos, isto é, projetar teleologicamente a intencionalidade de uma ação e escolher os
meios necessários para a realização desta. A ética, nesse sentido, é entendida como
[...] uma capacidade humana posta pela atividade vital do ser social; a
capacidade de agir conscientemente com base em escolhas de valor, projetar
finalidades de valor e objetivá-las concretamente na vida social, isto é, ser
livre. (BARROCO, 2010a, p. 19)
São dimensões fundamentais da ética nessa perspectiva a escolha entre alternativas, a
consciência, a responsabilidade e a liberdade. Cada uma dessas dimensões contêm em si
discussões profundamente filosóficas, que assumem direções diferentes conforme o momento
histórico, a escola teórica e o contexto da época em que se está falando. O importante aqui é
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entendermos que esse debate é bastante complexo, e que essas dimensões não podem ser
vistas separadamente – uma está imbricada na outra.
Vivemos, todos nós, inseridos na vida cotidiana. Nesta, pouco a pouco vamos
apreendendo e assimilando as formas de fazer as coisas, repetindo a forma como já é feito e,
assim, assimilando em parte a história e o desenvolvimento social no modo de ser cotidiano
(HELLER, 2014). Essa assimilação decorre, em certa medida, de um processo de imitação;
podemos levar muito tempo para questionar o modo de fazer algo, assim como as concepções
e valores de determinada comunidade em certa época.
São características da vida cotidiana a ultrageneralização, o pragmatismo, o
pensamento espontaneo, a imediaticidade entre pensamento e ação, entre outras. (HELLER,
2014). No cotidiano de trabalho de assistentes sociais, assim como outras profissões inseridas
na divisão sócio-técnica do trabalho, tendemos a reproduzir pragmatismos institucionais e
valores construídos historicamente no campo da política social de forma a-crítica, devido as
próprias características dessa esfera da vida social. Contudo, não necessariamente precisa ser
assim.
Enquanto sujeitos ético-morais (BARROCO, 2010a), somos indivíduos
singulares/particulares. Somos condicionados e formados por aspectos econômicos, culturais,
biológicos, psicológicos, entre outros, em constante interação. Nossas decisões são movidas
pela razão, mas também por aspectos inconscientes, por paixões. (CHAUI, 2012). é na
complexa relação entre estes e outros elementos que nos movemos na vida cotidiana,
tornando desafiadora a realização de atos ético-morais conscientes e responsáveis, que
suspendem momentaneamente a vida cotidiana ao encontro da alteridade.
O ato ético é aquele que se orienta à fruição do ser-genérico. Se a maioria de nossos
atos são voltados ao Eu (HELLER, 2014), as nossas necessidades e desejos inerentes da
manutenção da vida, o ato ético só pode ser considerado enquanto tal quando o Eu – as
minhas paixões, meus desejos e afetos – entra em convergência com a alteridade, na direção
da ampliação do espaço de liberdade dos sujeitos e, no limite, de toda a humanidade.
Para a objetivação da ética é preciso liberdade. Não há como nos responsabilizarmos
criticamente e/ou imprimirmos uma direção para nossas ações se não temos liberdade para tal.
Entretanto, também não podemos recusar a liberdade, assumindo posturas fatalistas. Há
sempre liberdade no seio da necessidade, afinal,
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[...] O possível não é apenas alguma coisa sentida ou percebida
subjetivamente por nós, mas é também e, sobretudo, alguma coisa inscrita
objetivamente no seio da própria necessidade, indicando que o curso de uma
situação pode ser mudado por nós, em certas direções e sob certas condições.
A liberdade é a capacidade para perceber tais possibilidades e o poder para
realizar aquelas ações que mudam o curso das coisas, dando-lhe outra direção
ou outro sentido. (CHAUI, 2012, p. 418)
Cotidianamente nos defrontamos com situações e temos que tomar decisões em face a
elas. Para isso, escolhemos entre alternativas que estão postas no campo do real. (BARROCO,
2013). Para fazer essas escolhas, nos fundamentamos em juízos de valor, em critérios de
utilidade ou, comumente, devido as características próprias da vida cotidiana, escolhemos
espontaneamente fundamentando as decisões na própria experiência cotidiana e nas
probabilidades de acerto/erro.
Entretanto, há situações que mobilizam mais intensamente escolhas fundamento
moral, como os dilemas éticos e situações limite envolvendo outras pessoas. Em todo caso,
sempre é possível decidir, em face as alternativas histórias, de modo diverso do que aquele
que realmente se decide. (HELLER, 2014).
Não somos uma autarquia. Aquilo que fizemos incide na vida de outras pessoas e,
potencialmente, em toda humanidade (TERTULIAN, 2014) e, por isso, temos
responsabilidade sobre os nossos atos. Contudo, homens e mulheres jamais estarão “em
condições de ver todos os condicionamentos da própria atividade, para não falar de todas as
suas consequências” (LUKÁCS, 2010, p. 98)
Então, somos responsáveis por aquilo teleologicamente elaboramos, ou pelo resultado
da ação objetivada, que pode ser diferente da elaboração teleológica? Tertulian (2014) explica
que Lukács busca um meio termo entre essas duas premissas. Em todo caso, é preciso que
tenhamos consciência e liberdade para que seja possível nos responsabilizarmos sobre nossas
ações, embora mesmo sem elas nossas ações produzam resultados objetivos que se inserem no
tecido social.
2.2 CAMINHOS DA DISCUSSÃO ÉTICA NO SERVIÇO SOCIAL
Embora conheçamos os marcos históricos que possibilitaram a legitimação do Serviço
Social enquanto profissão no Brasil na década de 30, em toda a história social houve práticas
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de auxílio e caridade. A análise de passagens da obra de Fontoura (1958)3 revela que,
enquanto profissão, o Serviço Social nega, supera, mas também reproduz diversos elementos
das antigas práticas de ajuda aos pobres.
No estudo da ética nos interessa o processo histórico de produção e reprodução de
valores, que implicam na (re)formulação de perspectivas e formas de atuação no exercício
profissional. Por exemplo, conforme a análise dos dados da pesquisa, a motivação que leva
estudantes a escolherem o Serviço Social como profissão ainda é, em geral, o desejo de ajudar
ao outro, embora não necessariamente se trate de uma ajuda cristã, como nos primórdios da
profissão. É, sobretudo, uma das primeiras manifestações de sentimentos de alteridade, de
encontro das motivações do Eu com o outro.
Ao final da década de 50, constroem-se socialmente as bases necessárias para o início
do denominado Movimento de Reconceituação no âmbito da profissão. Na década de 60 esse
movimento ganha força diante da aproximação do Serviço Social com o marxismo, com
vertentes críticas ao capitalismo e com movimentos sociais4. Este processo se constituiu de
forma bastante complexa, paradoxal e contraditória; mas não há como aprofundarmos a
discussão aqui.
Cabe, no entanto, referir que é a partir da década de 80 que a discussão sobre ética
ganha força no Serviço Social. A primeira reformulação do Código de Ética profissional que
busca romper com o conservadorismo presente historicamente nos códigos anteriores é datada
de 1986. Neste, a profissão pactua com os interesses e necessidades da classe trabalhadora
(BARROCO, 2010b), buscando romper com a atuação profissional que respondia aos
interesses da classe capitalista e do Estado (NETTO, 1999; FALEIROS 1986). Rompe,
principalmente, com a pretensa neutralidade a que se propunha a profissão nos códigos
anteriores. Pretensa porque, como sabemos, neutralidade é algo que não existe; mesmo
quando não temos consciência de qual, a nossa atuação assume uma direção política.
Entretanto, como analisa Barroco (2010b), em 1986 o Código pactua com uma classe
como se esta, em si, fosse portadora de valores “positivos”. Além disso, o referido código
3 Um dos primeitos livros na tentativa de sistematização do Serviço Social brasileiro, publicado originalmente
em 1948.
4 Não é nosso objetivo, neste texto, reconstruir os marcos históricos da profissão. Para aprofundar essa discussão
sugerimos, especialmente, as obras de Yazbek, Iamamoto, Barroco e Netto.
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tinha pouca possibilidade de objetivação e de fiscalização no exercício profissional, embora o
debate em torno desse seja considerado educativo e politizador para a categoria.
O Código de Ética de 1993, em vigor até os dias de hoje, avança nessa discussão,
sendo formulado com base em debates que ocorreram em todo o país. (BARROCO, 2012) A
partir deste, os atos ético-morais de assistentes sociais devem se orientar por valores5 como: a
liberdade enquanto princípio ético central, a defesa intransigente dos direitos humanos, a
ampliação da cidadania e da democracia, em busca da equidade e da justiça social. Assistentes
sociais devem se empenhar na eliminação de todas as formas de preconceito e discriminação,
se comprometendo com a qualidade dos serviços prestados à população e respeitando os
posicionamentos teóricos e políticos plurais no âmbito da profissão.
Entretanto, não é sem desafios que os princípios éticos da profissão se traduzem em
atos ético-morais no cotidiano de trabalho de estudantes e assistentes sociais. Somos seres
sociais permeados por muitos fatores da vida cotidiana, com tendencia a reprodução de
valores conservadores e ao pragmatismo decorrente do modo de gestão da força de trabalho
na contemporaneidade. Como explica Barroco (2012) por vezes, mesmo que os sujeitos
pactuem e concordem com os valores do Código de Ética e do Projeto Ético-Político, estão
vulneráveis à reprodução de valores de outra ordem, ainda que inconscientemente.
3 OS ATOS ÉTICO-MORAIS E A OBJETIVAÇÃO DA INTERSETORIALIDADE:
AS VOZES DE ESTUDANTES EM SERVIÇO SOCIAL
Nos atos ético-morais estudantes e assistentes sociais exteriorizam diversos aspectos
do Eu; sua personalidade, seus conhecimentos e afetos, para objetivar ações com uma
intencionalidade que convirja as motivações do Eu particular com a alteridade. As ações
realizadas no exercício profissional se traduzem, em geral, como atos ético-morais que
mobilizam conhecimentos, valores e um arcabouço instrumental para a sua objetivação.
A intersetorialidade, enquanto perspectiva de atendimento que relacione diferentes
setores, áreas e políticas buscando atender integralmente as necessidades dos sujeitos de
forma não fragmentada, está presente na história da profissão. De forma embrionária, o 5°
procedimento para a prática da caridade na Charity Organization Society - C.O.S. já apontava
5 Para uma reflexão aprofundada sobre os princípios éticos do Serviço Social, sugere-se a leitura de A nova ética
profissional (PAIVA; SALES, 2011), e Código de Ética do/a Assistente Social Comentado (BARROCO;
TERRA, 2012).
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para a necessidade de atendimento intersetorial, orientando seus trabalhadores a acionarem as
diversas instituições que pudessem contribuir com a intervenção em determinado caso.
A C.O.S foi fundada no século XIX, em Londres, e é considerada uma das primeiras
instituições organizadoras da caridade (FONTOURA, 1958). Os princípios dessa organização
nos auxiliam na reflexão sobre a relação de rupturas e continuidades no Serviço Social. Eram
estes os oito pontos/procedimentos para a prática da caridade em Londres:
1. Cada caso será objeto de um inquérito cujos resultados serão consignados
em um relatório escrito;
2. O relatório será submetido a uma comissão que se pronunciará sobre as
medidas a tomar;
3. Não serão atribuidos auxílios temporários, mas sim um auxílio bastante
racional, bastante importante e bastante prolongado para que a família ou o
indivíduo sejam recolocados em condições normais de vida;
4. O assistido será o agente de sua própria recuperação e procurar-se-á
interessar nessa obra seus parentes, vizinhos e amigos;
5. Solicitar-se-á em favor do assistido a cooperação das diversas instituições
que possam intervir no caso;
6. Os dirigentes e visitadores das obras receberão instruções gerais escritas;
sua formação será feita através de leituras e estágios práticos;
7. As instituições de caridade organizarão as listas de seus protegidos, que
enviarão à direção geral, de maneira a permitir a organização de um “fichário
geral dos assistidos”; garantir-se-á dessa maneira a Sociedade contra os
possíveis exploradores da filantropia, bem como se evitará a renovação de
inquéritos já feitos;
8. Enfim, constituir-se-á uma relação geral das obras, o que permitirá a
eliminação de instituições parasitas, a descoberta de lacunas e da duplicidade
de instituições para o mesmo fim. (FONTOURA, 1959, p. 47-48)
A análise das origens de uma profissão não pode basear-se apenas no que esta faz, ou
seja, como se operacionaliza. Isto é, “a análise da profissão, de suas demandas, tarefas e
atribuições em si mesmas não permitem desvendar a lógica no interior da qual essas
demandas, tarefas e atribuições ganham sentido” (YAZBEK, 2013, p. 3).
Porém, sem tentar simplesmente transpor para realidade atual do Serviço Social tais
procedimentos, é possível evidenciar semelhanças no que se refere à forma de atuação
contemporânea. Ainda que com outro palavreado, nos oito procedimentos expostos estão
presentes noções como articulação com a rede de serviços e rede afetiva, assistência
continuada, cadastramento de usuários de serviços e até – com certo equívoco de
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interpretação – o princípio da autonomia, que cotidianamente confunde-se com
responsabilização individual.
Algumas destas formas de atuação foram amplamente expressas nos questionários. Em
uma das respostas, uma estudante responde da seguinte maneira como atuaria na situação
apresentada:
Se o local que eu trabalhasse fosse CAPS ou Posto de Saúde, orientaria a
família sobre a importância do Pré-Natal; 2º orientaria sobre um possível
aborto; 3º condicionalidades do BF; 4º marcaria um horário para conversar
com o esposo de Valéria, para acompanhá-lo e encaminhar para tratamento
de alcoolismo e ainda para o SINE; 5º marcaria uma VD para conhecer a
família e moradia – em caso de posto de saúde, conversaria com a agente
comunitária da região; 6º sensibilizaria para o atendimento com médico
clínico dos irmãos da adolescente; 7º contato com a secretaria de habitação
para ver a possibilidade de inscrição em programa habitacional. (CASO 2,
QUESTIONÁRIO 4, 2014)
Esta resposta apresenta uma forma de estruturar o pensamento e a ação de maneira
muito parecida com os oito pontos/procedimentos da C.O.S., além de evidentes semelhanças
no conteúdo. Pode-se pensar que tal maneira procedimentalista de organizar o pensamento
voltado à ação tem fundamento não apenas na história da profissão, mas também nas
exigências do mundo do trabalho que, de certa forma e em variados níveis, são incorporadas
por todos nós.
A intersetorialidade é uma dimensão que vem sendo amplamente discutida e defendida
no campo das políticas sociais em diversos setores. Segundo Nascimento (2010, p. 118),
“tanto a política de desenvolvimento urbano quanto a social trazem em seu bojo algumas
perspectivas de ações intersetoriais”, o que não é o suficiente para que esta perspectiva de
materialize e ganhe efetividade no atendimento às necessidades sociais.
A intersetorialidade é assimilada como um valor positivo, que deve orientar práticas
de estudantes em estágio supervisionado obrigatório, perpassando seus discursos e práticas.
Ela
[...] supõe também a articulação entre sujeitos que atuam em áreas que,
partindo de suas especificidades e experiências particulares, possam criar
propostas e estratégias conjuntas de intervenção pública para enfrentar
problemas complexos impossíveis de serem equacionados de modo isolado.
(COUTO et al., 2010, p. 40)
A possibilidade de construir estratégias e propostas de intervenção de forma conjunta,
articulando diferentes áreas e setores em torno de objetivos comuns, se apresenta nas
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narrativas de estudantes como uma possibilidade a ser explorada diante da fragmentação nas
formas de atendimento instituídas nos serviços.
[...] eu acho que se os profissionais das diversas áreas que atuam juntos no
mesmo espaço, eles pudessem de fato ter um trabalho integrado, um trabalho
compartilhado, um trabalho que extrapolasse as barreiras da formação, eu
acho que qualificaria muito todas as instâncias de trabalho. Tanto nas coisas
mais simples, como nas coisas mais complexas, a própria execução de uma
política pública, se as pessoas trabalhassem integradas, aquilo seria muito
mais amplo, muito mais qualificado, sabe? [...] Eu enxergo a
intersetorialidade como forma de resistência também, porque a gente vem de
um processo de formação e de um processo histórico onde tu tem que estar
cada vez mais individualizado, tu é detentor do teu conhecimento, detentor do
teu espaço de trabalho, tu é detentor do teu usuário. Isso é algo extremamente
cruel, porque a partir do momento que tu te apropria daquele usuário, do
processo de trabalho, daquela política, tu trabalha completamente isolado, em
um lógica que tu não vai dar conta de atender todas as demandas e tu te
perde, tu também te aliena, tu acha que tu dá conta, mas tu não dá.
(ENTREVISTA 4, 2014)
A intersetorialidade é um valor que se articula com outros valores, como a qualidade
do atendimento aos usuários, constituindo-se enquanto perspectiva de atendimento e modo
operativo da intervenção contra-hegemônica, em uma sociedade cada vez mais fragmentada e
individualizada. Sua materialização tensiona lógicas e concepções construídas historicamentes
nas formas de atendimento à questão social. Tensiona valores capitalistas como a propriedade
– que se manifesta em discursos de posse em relação a saberes e até mesmo em relação aos
usuários –, a competitividade entre setores e serviços e a fragmentação no modo de análise
positivista, funcional a (re)produção do status quo.
Não sendo suficiente que esta seja uma prerrogativa escrita em documentos
legislativos de diferentes políticas sociais, sua efetividade depende da capacidade de
articulação política de governantes, gestores e trabalhadores que objetivam as políticas nos
territórios e na relação direta com a população. Após fazer a narrativa de uma intervenção
realizada com diversas dificuldades, uma das estudantes refere:
A gente está articulando toda uma rede para que esse menino tenha um
acompanhamento. E mesmo assim, ele não está conseguindo frequentar a
escola, então para ti ver que é bem complexo [...]. Se a gente fizer uma
análise bem superficial de tudo isso que a gente fez – ah, fez tudo isso e não
deu em nada – eu já consigo ver de uma outra forma, a gente conseguiu que
os serviços se comunicassem. (ENTREVISTA 3, 2014)
Como resultado do trabalho realizado, a comunicação entre os serviços mostra-se
como uma das dimensões que permeiam a construção cotidiana de perspectivas de
atendimento intersetorial, dentro do que é possível em instituições, serviços e programas que
se constituem fragmentadamente. Em geral, esta é uma perspectiva que transversaliza as
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narrativas das/os estudantes, perpassando suas propostas de projetos de intervenção, as
críticas que tecem em relação às formas de intervenção institucionalizadas e o que conseguem
visualizar enquanto produto de seus atos.
Entretanto, é preciso refletir sobre as formas concretas que possibilitam mediar a
concepção de intersetorialidade como valor e ato em si, isto é, a intervenção objetivada. Nas
narrativas das/os estudantes, termos como “articulação com a rede” e “encaminhamento”
aparecem quase como sinônimos.
Em síntese, podemos definir que articular é construir coletivamente propostas e
estratégias de intervenção, integrando setores e saberes. Já encaminhar é dar um rumo, é
transferir a responsabilidade do atendimento de determinada parte da demanda apresentada
para outro profissional, serviço ou setor de política social.
Nas respostas ao questionário, a intersetorialidade manifesta-se muito mais como a
soma de diferentes políticas acionadas para atender determinada situação, do que como
construção coletiva de propostas e estratégias de intervenção.
Neste caso, mais uma vez, é preciso um trabalho em rede. Que este usuário
possa ser acompanhado ou continuar acompanhado pelos serviços. Quanto
mais profissionais de diferentes áreas conseguirem acompanhá-lo, melhor.
Cada um na sua área específica, da saúde, da assistência, etc., trabalhar na
perspectiva da integralidade, em busca sempre da garantia de acesso aos
direitos. (CASO 3, QUESTIONÁRIO 3, 2014)
As tentativas de atender de forma setorial reproduzem formas fragmentárias, dividindo
a demanda apresentada em partes, para então acionar as áreas que irão atender o seu
respectivo pedaço. Além disso, há uma valoração da quantidade de serviços e setores
acionados, como é possível observar com clareza no trecho acima, e como se manifesta de
forma implícita em outras narrativas.
A valoração da intersetorialidade, como possível forma de garantir acesso a direitos e
proteção social, é objetivada em tentativas de construir junto com outros profissionais e criar
espaços de comunicação entre os serviços. Contudo, a partir da análise da totalidade dos
dados, evidenciamos que há uma certa ansiedade em resolver as situações apresentadas e o
caminho que surge como consenso nas respostas é o encaminhamento pragmático, pautado na
fragmentação positivista, ainda que travestido pelo discurso da intersetorialidade e, por vezes,
contendo elementos desta.
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No exercício profissional de assistentes sociais, bem como de profissionais de outras
áreas e de estudantes estagiárias/os em formação, a atuação voltada ao atendimento integral
de sujeitos usuários é um desafio que se impõe contemporaneamente. Nossa formação é,
desde a infância, em geral fragmentada e setorizada. Nas exigências do mundo do trabalho na
sociedade capitalista, somos convocadas/os a dar respostas imediatas e pragmáticas às
situações.
É na contracorrente desta lógica que assumimos a intersetorialidade como perspectiva
ético-política de atendimento. No entanto, ao encontro dos diversos elementos socio-culturais
que compõe o nosso jeito se ser, estar e atuar no mundo, tendemos a reproduzir ações
fragmentadas e pragmáticas, analisando as situações que atendemos de forma a dividir estas
em áreas/setores a fim de encaminhar cada “pedaço” para sua área correspondente.
Este nó ético de distanciamento daquilo que dizemos e pactuamos com aquilo que
conseguimos, por meio de múltiplas mediações, objetivar na ação profissional, precisa ser
posto em questão. Não basta que na graduação se estude e conheça as diferentes política
sociais. É necessário que a formação profissional desenvolva habilidades de apreender as
conexões inerentes da realidade social, a articulação entre saberes e áreas, para que assim seja
possível desenvolver formas não fragmentadas de análise das situações que atendemos e
desenvolver habilidades de articulação entre os diferentes setores de política social.
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