Interno x externo artigo sobre a mente Marcelo Henrique Marques de Souza
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2 – Interno x Externo
“O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo”
Fernando Pessoa
(Cancioneiro, p. 137)
Como podemos concluir, uma das principais conseqüências do avanço
da evolução humana é o seu condicionamento aos ditames da linguagem
complexa. A linguagem passa a ser, é possível arriscar, o principal órgão
humano, que o introduz no mundo da cultura e que permite uma herança
mínima de proteção que auxilie em sua luta pela sobrevivência.
Essa herança da espécie tem, entretanto, efeitos diversos, tanto no nível
da própria cultura quanto no das individualidades pensantes, que resultam da
linguagem1, como efeito colateral2. É possível introduzir uma reflexão sobre
esses efeitos formulando algumas perguntas: aonde se localiza a linguagem no
ser humano? No que se chama de ‘consciência’? Há um suporte orgânico para
a consciência? Em outras palavras, há diferenças entre cérebro e mente, ou se
trata da mesma coisa? E se há diferenças, quais seriam?
Já que estamos falando de fantasias, podemos estabelecer, como
parâmetro reflexivo, um caminho que comece pela análise de algumas
fantasias materialistas de certos cientistas para, então, ascender a um patamar
tal que as fantasias se apresentem de forma autorreferente.
Há uma divisão acadêmica que ainda se sustenta, a despeito das
descobertas decorrentes do avanço da reflexão científica no século XX:
1 Roman Jacobson, lingüista russo, já demonstrou que a linguagem é o fundamento do que se chama de cultura, em seu trabalho Lingüística e Comunicação (2003, p. 18). Portanto, quando falamos em linguagem, estamos falando igualmente de cultura. 2 Discutiremos mais adiante este problema da individualidade como efeito colateral da linguagem, quando pensarmos no debate do sujeito, que se inicia, no ocidente, com Descartes.
1
ciências humanas x ciências exatas. A história do pensamento mostra que essa
divisão é equivocada, por dois motivos. De um lado, a divisão cria a falácia de
que as chamadas ‘exatas’ teriam por objeto temas e verdades que independem
do homem, existindo para além da participação humana. Nesse grupo estariam
a física, a química, a biologia e a matemática, além de suas sub-disciplinas,
como genética, neurobiologia e demais sucursais ideológicas. Quando
descobre que, mesmo na seara física, o observador interfere na verdade do
objeto observado de forma decisiva, Einstein coloca por terra a possibilidade
intelectual desta divisão, no início do século XX3, com sua teoria da
relatividade. Ora, se a matéria também depende do observador – assim como
um texto depende do autor e do leitor, de formas diferentes –, é porque existe
uma medida de arbítrio em sua estrutura de ação. A própria matemática é um
exemplo disso em seus mínimos detalhes. Se pensarmos que os números são
infinitos, o ‘zero’ só dá lugar ao ‘um’ quando há uma definição, ‘de fora’, de
um fim para os decimais. O próprio número ‘um’ é arbitrário, porque um
planeta não é igual a uma maça. E assim por diante. Quem considera a
matemática e a física ‘ciências exatas’ precisa acessar com urgência as bases
das teorias de Einstein. Ou vai permanecer no século XIX.
No outro ponto da questão estão as chamadas ‘humanas’. Seu papel, na
arcaica divisão, seria o de estudar aquilo que precisa do homem como objeto
ou como parte do enredo temático. Assim, temos a sociologia estudando as
sociedades humanas; a antropologia estudando o homem e suas sociedades; a
psicologia estudando a mente humana; a economia estudando as trocas entre
os homens; e assim sucessivamente. O problema aqui é o de que tanto as
chamadas ciências ‘humanas’ quanto as ‘exatas’ são criações do homem e –
principalmente – dependem dele para as pesquisas de seus objetos – o objeto 3 Os três primeiros artigos de Einstein sobre a questão da relatividade datam de 1905 (sobre isso, ver Hawking, Stephen. O Universo numa casca de noz, 2001, pp. 4-27).
2
depende do observador, como sacou Einstein. Ciências humanas, portanto,
soa redundante.
Apesar de todas essas evidências, há um problema que é histórico. As
ciências apelidadas de humanas cresceram seguindo a ideologia da
necessidade de coincidência absoluta entre a realidade e as teses, o que sempre
foi característica das ciências chamadas de ‘exatas’, desde o seu surgimento,
com Galileu e Descartes, no Renascimento, seguidos, depois, por Newton.
Não é à toa, por exemplo, que a sociologia, ciência dita humana, centrada no
estudo das sociedades, tenha nascido pautada, em grande parte, pela crença de
que com as sociedades humanas acontecia o mesmo que com os animais, ou
seja, um processo de ‘seleção cultural’, que daria vantagens históricas aos
grupos humanos com maior potencial a se adaptarem às mudanças4. Isso só
seria verdade se o processo de evolução dos animais fosse repetido em
essência no ser humano. Mas não é. Na cultura, os momentos mais elevados,
tanto no nível político quanto no nível artístico, são aqueles nos quais a
diferença é valorizada. Como exemplo para ilustrar essa distinção, podemos
colocar, numa ponta, o nazismo e a miséria do nordeste brasileiro, que seriam
exercícios bárbaros (de baixo nível) de ‘seleção cultural’, e, na ponta oposta, o
conceito filosófico do “contrato social”, de Jean-Jacques Rousseau – que deu
origem às constituições nacionais –, as sinfonias de Beethoven e a escola
como instituição formadora do que se chama de sociabilidade, que seriam
tentativas de bloquear o lado selvagem que perdura no humano, a partir de
mecanismos de mediação, que mantenham certo nível de confronto entre as
diferenças, sem que se ultrapasse um limite anterior à barbárie.
4 É nesta crença que nasce a hegemonia do modelo urbano em oposição ao modelo rural, o que vemos até hoje, com todas as suas implicações problemáticas.
3
Essa tendência darwinista5 perdura até hoje em grande parte da
sociologia, que permanece centrada em fenômenos como as estatísticas,
instrumentos de apropriação e difusão das médias e de padrões nos veículos da
chamada ‘comunicação social’.
Esta pequena reflexão sobre a dicotomia ciências exatas–humanas se
deu para introduzir um tema fundamental para este ponto do texto: alguns
aspectos importantes que regem as divergências entre os que acreditam que o
cérebro orienta a mente e os que acreditam no inverso, em uma mente que
orienta os movimentos cerebrais. Comentemos alguns exemplos relevantes.
O principal argumento dos que acreditam num cérebro protagonista
aparece na escrita do professor de lógica Hao Wang: “Se algumas porções do
cérebro são danificadas, removidas ou desconectadas, certas atividades
mentais cessam”6. Depois de discutir um pouco sobre a enorme capacidade
dos neurônios humanos, este mesmo autor, entretanto, chega à – óbvia –
conclusão de que a mente aumenta a sua potência também através de
instrumentação externa, como livros, aprendizado e experiências com objetos.
Wang chama isso de “memória externa”7, nome que será retomado
posteriormente, porque incita à reflexão.
Esta relação dos neurônios com a linguagem e a mente não é de todo
errada. Há, entretanto, um ponto negligenciado. Em nenhum momento, os
principais defensores de uma mente protagonista abrem mão do cérebro em
suas abordagens. Sem o cérebro, claro, o ser humano não conseguiria produzir
suas complexas articulações. A diferença está em outra seara: as atividades
mentais, que, sem dúvida, são um efeito colateral de movimentos biológicos
primordiais na história evolutiva do homem, tomaram a dianteira no processo, 5 O filósofo Theodor Adorno faz crítica exatamente a este darwinismo social em seu texto A Educação contra a Barbárie, In Educação e Emancipação, pp. 155-168, especialmente p. 165.6 Wang, Hao. A mente pode fazer mais do que o cérebro?, In As Coisas são Assim, 1997, p. 160. 7 Idem, ibidem, p. 163.
4
alterando a lógica de evolução. No estágio atual do ser humano, é a
linguagem, o sentido, a cultura e o desejo, como instâncias humanas, que
definem os movimentos orgânicos do bicho homem. No decorrer da
exposição, veremos os indícios disso.
Podemos retirar outro exemplo de outro texto, do bioquímico Steven
Rose. O cientista lembra que a tomografia mostra que certas regiões do
cérebro utilizam mais oxigênio e glicose quando uma pessoa está concentrada,
tentando resolver um problema matemático, por exemplo8. Os mais apressados
diriam, a partir disso, que esta é uma prova do caráter protagonista do cérebro.
Entretanto, cabe a pergunta: é a glicose e o oxigênio que movimentam a
concentração, ou é a concentração que movimenta a produção de glicose e
oxigênio?
Rose opta pela precaução, e coloca que interpretar padrões de
linguagem numa folha de papel, por exemplo, “requer conhecimento
lingüístico, e não uma química específica. Portanto, esse novo nível mais
elevado de análise requer sua própria ciência”9. Ele completa, ainda, que “os
processos que denominamos mentais e cerebrais devem estar ligados de
alguma forma. Portanto, o monismo dita as regras e não o dualismo”10.
Nessa perspectiva monista, cérebro e mente seriam uma coisa só,
dividida pela mania humana de dicotomizar tudo. Entretanto, apesar do
avanço, Rose não resiste, e mais adiante afirma que “o cérebro possui
propriedades tais como armazenamento e resgate de memória”11. Isso incita a
mais algumas pequenas reflexões.
Alguns cientistas mais apressados confundem causa e efeito e
estabelecem localização geográfica no cérebro para tipos diferentes de 8 Rose, Steven, A mente, o cérebro e a pedra de roseta, In As Coisas são Assim, 1997, pp. 215-216.9 Idem, ibidem, p. 216.10 Idem, ibidem, p. 216.11 Idem, ibidem, p. 216.
5
memória, a partir do fato de que determinadas partes do cérebro acusam
atividade específica diante de determinadas atividades mentais. É o caso do
também bioquímico argentino Ivan Izquierdo, que afirma que o que chama de
“memória de trabalho” se localiza no córtex pré-frontal, parte do cérebro que
fica logo abaixo da testa; “memórias declarativas” residiriam no hipocampo e
em mais quatro tipos de córtex; enquanto que os hábitos (ou “memórias
procedurais”) nasceriam no mesmo hipocampo, migrando, posteriormente,
para o chamado núcleo caudado e o cerebelo. O cientista lista mais alguns
“tipos de memórias”, sem, entretanto, perceber que incorre no mesmo erro do
lógico Wang, alterando causa e efeito12.
Para perceber o equívoco, basta pensar no significado da palavra
“memória”: “faculdade de reter as ideias, impressões e conhecimentos
adquiridos”. Ideias, impressões e conhecimentos não são entes materiais, mas
metafísicos. Não se pode, portanto, pleitear uma localização física para eles.
Precisam, como lembra Rose em seu momento de lucidez, de uma ciência
própria (ou, de forma mais ampla, de uma abordagem mais complexa). Para
além disso, o verbo “reter”, presente na definição do dicionário, também
precisa ser revisto, na medida em que estabelece uma relação linear que não
procede de todo. Quando analisarmos as questões propostas pela psicanálise,
como os sonhos, atos falhos e sintomas, veremos que a memória é um
processo no qual convivem a intervenção do sujeito e um grau bastante
razoável de independência inconsciente. Os fenômenos do esquecimento
cotidiano e, no pólo oposto, as lembranças involuntárias, são exemplos óbvios,
que apontam para a necessidade de se repensar esse ponto.
Essa dicotomia, cérebro x mente – que se materializa, no debate
acadêmico, nas discussões envolvendo principalmente neurologia e psicologia
12 As definições de Izquierdo estão em seu livro Questões sobre Memória, nas páginas 31-35.
6
–, não pára por aí. Após incorrer no mesmo erro de Izquierdo, propondo que
as memórias possuem localização física por conta de atividade cerebral
resultante de determinados trabalhos mentais13, Celso Antunes atinge um
ponto nuclear:
“(...) A mais importante propriedade da mente humana não é memorizar, mas esquecer. Quem, por acaso, jamais se esquecesse de tudo quanto a memória guarda, seria atormentado por gastar indefinidamente todos os minutos de seu dia lembrando os minutos do dia anterior. Portanto, para poder ativar a memória é essencial ‘saber esquecer’ (...)”14.
Este é basicamente o enredo do belo conto de Borges, a história de
Funes, o memorioso15, um homem que passa a não conseguir mais esquecer de
nada, tornando-se escravo da memória: “(...) O que pensasse uma única vez já
não se apagava de sua memória”16. “Funes não apenas se recordava de cada
folha de cada árvore de cada morro, mas ainda de cada uma das vezes que a
tinha percebido ou imaginado”17. Isso acaba por mergulhar o homem de tal
forma nos detalhes que não consegue mais definir ideias gerais. No extremo
angustiante desse exercício dramático de diferenciação, “seu próprio rosto no
espelho, suas próprias mãos, surpreendiam-no a cada vez”18. Enfim, passou a
ser “o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e
quase intoleravelmente preciso”19. O ponto chave para a associação que
criamos aqui se dá quando Borges utiliza a fala do narrador, que comenta que
suspeita que Funes “não fosse muito capaz de pensar. Pensar é esquecer
13 O curioso é que, no parágrafo anterior a esta conclusão equivocada, Antunes pergunta: “Quando guardamos um fato ou um evento na memória, o que acontece no cérebro?”, num indício linguístico claro de que o cérebro responde à mente (ou seja, no caso, ao ato de ‘guardar um fato ou evento’), e não o contrário.14 A Memória, 2002, pp. 17-18. 15 In Ficções, 2007, pp. 99-108. 16 Idem, ibidem, p. 106.17 Idem, ibidem, pp. 106-107.18 Idem, ibidem, p. 107.19 Idem, ibidem, p. 107.
7
diferenças, generalizar, abstrair. No mundo entulhado de Funes, não havia
senão detalhes, quase imediatos”20. O ensinamento de Borges é claro: o
esquecimento é parte fundamental – e estrutural – dos processos mentais.
Entretanto, quem já sofreu por amor ou já foi acometido por uma
canção desagradável que emergiu do nada sem ser convidada, sabe que o
esquecimento também não é um processo que possa ser chamado sem
ressalvas de voluntário. É inevitável esquecer; mas isso não significa que a
mente possa definir o conteúdo a ser esquecido e o momento de esquecer de
forma totalmente independente. Não é o caso.
Outro cientista materialista a se digladiar com o problema mente x
cérebro é Daniel Dennett. No meio científico, ele é considerado filósofo e
professor de ciências e artes. E é curioso analisar as dúvidas de Dennet, como
ilustração da tentativa incansável dos materialistas de defender o ‘físico
arcaico’21 até a exaustão, mesmo com todos os indícios desfavoráveis.
Uma das dúvidas de Dennett é bem reveladora. Os adeptos de uma
mente que acarreta em respostas cerebrais – o oposto do materialismo –
consideram a mente humana um processo ‘único’. O que não significa
necessariamente que seja algo evolutivo em si mesmo, num sentido de
progresso. Assim como a mente humana consegue produzir o surrealismo, um
foguete espacial e a teoria da relatividade, ela também nos lega, de forma
irônica, o conhecimento de nossa própria perenidade, ou seja, a percepção de
nossa própria morte, o que é, no mínimo, ambíguo. Entretanto, obcecado por
suas ideias, Dennett argumenta, utilizando alguns pontos básicos da chamada
‘inteligência artificial’22, que “a melhor razão que nós temos para pensar que
um dia os robôs se tornarão conscientes é o fato de que seres humanos são 20 Idem, ibidem, p. 108.21 Esta expressão visa mostrar que a própria ideia do que seja “físico” muda inteiramente com as ideias de Einstein e com a mecânica quântica.22 Existiria algo que pudéssemos chamar de “inteligência natural”?
8
também uma espécie de robô consciente”23. Land é da mesma opinião, e
coloca que nada impede que os seres humanos consigam, um dia, “produzir
uma máquina, feita de matéria não-orgânica, que possa preencher os critérios
(grifo nosso) do que chamamos um ser consciente”24.
Mario Quintana disse certa vez que “o que há de terrível nos robôs não
é como eles se parecem conosco, mas como nós nos parecemos com eles”25.
Pautados pela mesma motivação do poeta, qual seja a de reverter as premissas
banais para melhor pensar o objeto, vamos exercitar a hipótese de que o
problema de Land, Dennett e dos demais adeptos do materialismo se encontra
justamente nos critérios estabelecidos.
Segundo Land, “para muitos teóricos da mente, incluindo Dennett, o
que a mente faz é processar informações. Ela é o sistema de controle do
corpo (grifo nosso) e, para executar suas tarefas, ela coleta, transforma e
processa informações”26. Só o fato de deixar escapar o ato falho de que a
mente controla o corpo, já seria suficiente para desmentir Land com suas
próprias palavras. Entretanto, vamos aprofundar os critérios e pensar nesse
tema da chamada ‘inteligência artificial’ utilizando um texto do filósofo
francês Jean Baudrillard27, no qual ele analisa as partidas de xadrez, ocorridas
durante a década de 90, entre o supercomputador Deep Blue e o enxadrista
humano e russo Gari Kasparov. A análise de Baudrillard nos permite ampliar
os critérios.
O que mais interessa para o filósofo, como consideração reflexiva, é o
fato de que se trata, fundamentalmente, de um jogo. O fato de ser um jogo,
segundo Baudrillard, resume o dilema do homem face às máquinas 23 Citado por Land, Marcelo, In A Mente Externa – a ética naturalista de Daniel Dennett, 2001, p. 76. 24 Land, Marcelo, In A Mente Externa – a ética naturalista de Daniel Dennett, 2001, p. 75.25 Quintana, Mario. Caderno H, 2006, p. 211.26 Land, Marcelo, In A Mente Externa – a ética naturalista de Daniel Dennett, 2001, pp. 79-80.27 Deep Blue ou A melancolia do computador, In Tela Total: mito-ironias da era do virtual e da imagem, 1999, pp. 133-138.
9
contemporâneas que utiliza: informatizadas, virtuais, cibernéticas, em rede
etc”28.
Baudrillard toca na ferida quando afirma que no fundo “não há
interatividade com as máquinas”29, ou seja, que “a [chamada] interface não
existe”30. E relembrando a história bíblica da Torre de Babel, reflete a questão
da diversidade lingüística, apontando a diferença fundamental em jogo na
aparente dicotomia entre máquinas e seres humanos:
“Se [Kasparov] venceu é porque (metaforicamente) consegue falar várias línguas – a do afeto, da intuição, do estratagema, do jogo rápido, sem contar a do cálculo – enquanto Deep Blue só fala a do cálculo. No dia em que esta prevalecer, seja como for, Kasparov será batido; o dia em que o próprio homem só falará essa única e exclusiva língua, a dos computadores”31.
Ora, Baudrillard percebeu o que nenhum cientista materialista mecanicista
consegue perceber: que a riqueza da espécie humana está justamente na Babel
das línguas, na diferença resultante da linguagem. Que é exatamente isso que
permite que sejamos uma espécie, ou seja, que tenhamos alguma
especificidade, algo, portanto, especial32 (e a falta de percepção disso é igual
nos profetas da língua universal, como o notório esperanto, proposto ao
mundo em 1887, pelo médico polonês Ludwig Zamenhoff33, e as mais
recentes, criadas por indivíduos como Robert Mccrum, Jean-Paul Nerrière e
Madhukar N. Gogate, que propõem variantes lingüísticas simplificadas, que
28 Idem, ibidem, p. 133.29 Idem, ibidem, p. 133.30 Idem, ibidem, p. 133.31 Idem, ibidem, p. 135.32 Que, é sempre bom reiterar, não significa algo ‘melhor’, mas apenas algo ‘diferente’, específico em relação às outras espécies.33 Eco, Umberto, A Busca da Língua Perfeita, 2002, p. 389. Para se ter uma ideia da fobia dessa gente, basta pensar num exemplo básico, o de que no esperanto não há artigo indefinido (idem, ibidem, p. 392). É como se a linguagem pudesse ser mais do que autorreferente, como se ela fosse um fim em si mesma. Nada mais tolo.
10
teriam como função facilitar a comunicação entre os seres humanos34. Não
percebem que a riqueza humana está justamente no fato de que todo processo
de comunicação é uma ilusão e que a linguagem, justamente por não ser uma
referência absoluta do que enuncia, desanda, inevitavelmente, para o subjetivo
e, em maior proporção, para o aleatório, escapando, mesmo que cada vez mais
raramente, das tentativas de cerceamento desses fanáticos).
As conclusões de Baudrillard retomam o tema central. Ele aponta que
“a diferença fundamental (...) está em que para Kasparov existe uma parte
adversa, há um outro. Para Deep Blue, nada há em face, nada de outro, nada
de adversário. Ele evolui no interior de sua própria programação”35. E
completa criticando, ironicamente, a tese segundo a qual no futuro a vitória
definitiva do computador seria inevitável, por este usar linguagem
exponencial, enquanto a linguagem humana permaneceria meramente
cumulativa:
“(...) Se o saber do computador é exponencial, seu pensamento não o é, o que o condena a uma espécie de estabilidade exponencial. A cada lance, volta ao ponto de partida e refaz todas as operações. Enquanto o homem, que filtra e só retém raros dados em relação à imensidão numérica dos possíveis36, é capaz de extrapolá-los numa única direção, sem consideração pelo estado inicial. Dispõe assim de um pensamento verdadeiramente exponencial, criador de constelações inéditas, imprevisíveis, de um gênero de estratégia caótica que mesmo um computador mil vezes mais potente que Deep Blue não saberia enfrentar. Face ao computador, o homem encarna o infinito da complexidade, que não é o do cálculo, e talvez esteja mais próximo do acaso (seria aliás interessante confrontar o computador a uma
34 Os três são citados neste contexto pelo caderno Prosa e Verso do jornal O Globo do dia 10 de julho deste ano (2010), às páginas 1 e 2. 35 In Deep Blue ou A melancolia do computador, In Tela Total: mito-ironias da era do virtual e da imagem, 1999, p. 136.36 Por conta da questão inevitável do esquecimento, que Antunes e, num grau mais elevado, Borges perceberam.
11
loteria, isto é, à desordem probabilística, diferente da desordem humana. Onde estariam suas garantias?)”37.
Os equívocos que rodeiam esse enredo, que compara cérebro e mente a
computadores, podem ser visualizados igualmente numa crônica do escritor
brasileiro Luis Fernando Veríssimo. Algumas afirmações do autor são
sintomáticas. Por exemplo, quando ele coloca que, “no campo do
conhecimento do cérebro, ou do pensamento sobre o pensamento, está
havendo uma guerra de teorias parecida com uma questão religiosa de alguns
séculos atrás”38. Veríssimo confunde as ideias, porque ‘cérebro’ e
‘pensamento’ não são sinônimos. Cérebro é um órgão e pensamento é um
processo inorgânico, que supera a vinculação com o corpo. Está ligado, como
veremos, a um mundo à parte do físico.
Outro problema na argumentação do cronista se dá quando ele utiliza a
já batida comparação do cérebro com um hardware e da mente com um
software: “dizem que o cérebro é um computador e a mente é um programa”39.
A reflexão de Baudrillard deixa claro que a diferença não estaria aí, porque
hardware e software agem da mesma forma, ou seja, seguem parâmetros pré-
estabelecidos.
E cabe ainda um último exemplo desta crônica. Veríssimo comenta que
sempre lhe pareceu enlouquecedor “que os sonhos, justamente a oportunidade
que nosso cérebro tem de falar conosco a sós, sejam em código, em linguagem
simbólica, geralmente ininteligível”40. Os sonhos realmente são em linguagem
simbólica – aliás, existe linguagem que não seja simbólica? –, mas há um
37 In Deep Blue ou A melancolia do computador, In Tela Total: mito-ironias da era do virtual e da imagem, 1999, pp. 137-138.38 Veríssimo, Luis Fernando. Pensar sobre o Pensar, In Banquete com os Deuses – cinema, literatura, música e outras artes, 2003, p. 227.39 Idem, ibidem, p. 228.40 Idem, ibidem, p. 228.
12
pequeno deslize a reconsiderar. Nos sonhos não é o cérebro que ‘fala
conosco’41, mas a mente. De novo, as palavras traem o escritor, que, apesar de
defender a ausência de inteligibilidade, se apóia, nas entrelinhas, em um
cérebro sutilmente protagonista.
Mais interessante ainda é observar o editor da revista científica
estadunidense Scientific American, John Horgan, narrando os questionamentos
do físico Roger Penrose sobre o problema da consciência. Segundo Horgan,
Penrose não acredita na teoria da relatividade e na mecânica quântica – teorias
mais do que testadas e confrontadas com seus objetos – pelo simples fato de
que não possuem nexo. O editor narra: “a física contemporânea simplesmente
não tem sentido, completou ele [– Penrose]. A mecânica quântica, em
particular, tem de estar errada, porque é gritantemente incoerente com a
realidade macroscópica comum”42. Ainda segundo Horgan, Penrose acredita
que “deve haver uma teoria mais profunda que elimine os paradoxos da
mecânica quântica e seus elementos desconcertantemente subjetivos”43.
Entretanto, na falta de um apêndice melhor para suas crenças, Penrose
acaba propondo soluções próximas daquilo em que não acredita. Segundo
Horgan, o físico arrisca, em livro publicado no ano de 1994 e intitulado
Sombras da Mente, uma conjectura:
“os microtúbulos, túneis diminutos de proteína, servem como uma espécie de esqueleto para a maioria das células, inclusive para os neurônios. A hipótese de Penrose se baseava numa afirmação de Stuart Hameroff, anestesiologista da Universidade do Arizona, de que a anestesia inibe o movimento dos elétrons nos microtúbulos”44.
41 Veremos, mais adiante, inclusive, que há teses que defendem o sonho como uma manifestação bem mais independente do que se imagina.42 Horgan, John, O Fim da Ciência, 1998, p. 219. 43 Idem, ibidem, p. 219.44 Idem, ibidem, p. 220.
13
Como coloca o próprio Horgan, Penrose ergue, sobre “essa frágil
afirmação”45, a conjectura de que “os microtúbulos desempenham
computações não deterministas, quase quânticas, que de alguma forma dão
origem à consciência”46. Em resumo, mais um exemplo de um cientista que
pensa que só porque uma droga age num determinado ponto do cérebro,
necessariamente este ponto tem antecedência no processo de criação do que
eles chamariam de material mental.
E a busca dos newtonianos contemporâneos continua. Horgan cita,
entretanto, um comentário lúcido, feito pelo físico e biólogo molecular inglês
Francis Crick, conhecido por ser o descobridor da estrutura em hélice dupla do
DNA: “A mente ‘é um sistema muito mais complicado’ do que o genoma,
observou ele [– Crick], e é provável que as teorias da mente tivessem um
poder explicativo mais limitado”47. A lucidez, entretanto, daria lugar ao
continuísmo. Horgan comenta que, por outro lado, Crick teria acrescentado
que
“um equivalente neural do princípio da incerteza de Heisenberg poderia restringir a nossa capacidade de rastrear a atividade do cérebro nos seus mínimos detalhes, e os processos subjacentes à consciência talvez fossem tão paradoxais e difíceis de compreender quanto o é a mecânica quântica”48.
Como se vê, tudo para manter a prioridade do ponto de vista material sobre
qualquer hipótese que o coloque em xeque.
Horgan ainda comenta a similaridade da posição materialista de Crick
com a do filósofo inglês Gilbert Ryle, que teria dito, em 1930, que “o
dualismo – segundo o qual a mente é um fenômeno separado, independente de
45 Idem, ibidem, p. 220.46 Idem, ibidem, p. 221.47 Idem, ibidem, p. 228.48 Idem, ibidem, p. 228.
14
seu substrato físico e capaz de exercer influência sobre ele – violava a
conservação da energia e, portanto, toda a física”49. O editor concorda com o
filósofo e acrescenta, concluindo do alto de sua inocência, que “a conquista
científica da consciência será o último anticlímax, mais uma demonstração da
máxima de Niels Bohr [eminente cientista dinamarquês do início do século
XX] de que a tarefa da ciência é reduzir todos os mistérios a trivialidades”50.
Talvez a constante fuga dos paradoxos da mente que estes cientistas exercitam
seja, isso sim, uma prova incontestável de trivialidade. É bom não esquecer
que trivial não significa apenas o que todos sabem, mas igualmente aquilo que
é vulgar, reles e ordinário. Mais para frente talvez seja possível assumir um
dos dois como o mais plausível para este caso.
Um último exemplo neste rol de newtonianos pós-modernos é o de
Richard Dawkins. Analisemos um trecho de seu pretensioso e em grande
medida inocente livro Desvendando o Arco-íris. A ideia básica do livro é
semelhante à de toda uma safra de beatas da chamada ‘divulgação científica’ –
alguns deles aqui citados, neste capítulo –, que surgiu no ocidente anglo-
saxão, especialmente depois da globalização: transmitir a ideia de que a
ciência51 seria a verdade da vida e orientar os seus seguidores sobre os perigos
de todo e qualquer pensamento não-científico, imediatamente tachado de
charlatão e limitado.
Dawkins reflete, entretanto, um horizonte conflituoso e isso é um dado
importante a ser analisado. Por um lado, mantém determinados
posicionamentos limitados, como a dicotomia hardware-software e a citação
49 Idem, ibidem, p. 236.50 Idem, ibidem, p. 237.51 É importante relembrar que a ciência que esses autores divulgam, apesar de vir citando a mecânica quântica e a relatividade, raríssimas vezes exercita de fato a forma de pensar que se encontra embutida nesses campos de pensamento. É uma divisão de forma e conteúdo: o conteúdo quase sempre abrange razoável aparato histórico, mas a forma se restringe a um viés newtoniano arcaico, sempre minimizando pontos que saiam deste padrão.
15
constante do crescimento do cérebro como norte reflexivo; na outra ponta,
entretanto, chega a uma reflexão mais madura sobre o fenômeno da
linguagem, no que experimenta momentos de impasse que são significativos.
Antes de falar desses impasses, contudo, vale falarmos, rapidamente,
sobre os memes. Segundo Dawkins, os memes seriam o software52, ou seja,
unidades de herança cultural53, que agiriam como agentes artificiais, no nível
da cultura, de intensificação na fidelidade e na prolixidade da replicação dos
genes54. O biólogo não deixa claro se os memes seriam entidades físicas ou
não, mas um trecho deixa uma pista possível. Diz ele que os memes seriam,
por analogia, “algo que se replica de cérebro para cérebro, via qualquer meio
disponível de cópia”55. Se a réplica é de cérebro para cérebro, então se trata de
uma cópia material. É a conclusão possível. Os memes seriam, então, para
Dawkins, o mecanismo que faltava para explicar o crescimento do cérebro
humano, que teria inflado através de uma espécie de infestação de memes.
Entretanto, apesar de seu materialismo insistente, Dawkins consegue
ultrapassar determinados determinismos e atinge o problema da linguagem, no
qual surpreende e coloca questões que, se não são das mais avançadas, ao
menos transcendem as banalidades de seus pares ‘divulgadores’. Elabora, por
exemplo, a visão de que o ‘eu’ como unidade subjetiva pode ser uma “semi-
ilusão”56 ou um tipo de “fenômeno secundário”57 em relação à genética geral;
questiona a língua (o conjunto semântico de uma cultura) como um ente que
age de forma a infectar as crianças com a herança cultural58; e sugere a
capacidade de criar metáforas por associação simbólica – como um ancestral
52 Dawkins, Richard, Desvendando o Arco-íris, 2000, p. 390. 53 Idem, ibidem, pp. 382-383.54 Idem, ibidem, p. 389.55 Idem, ibidem, p. 383.56 Idem, ibidem, p. 391.57 Idem, ibidem, p. 391.58 Idem, ibidem, p. 392.
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imitando um mamute para gerar a ideia de ‘grande’ para seu interlocutor –
como uma espécie de ‘realidade virtual’ que teria sido proveitosa num sentido
evolutivo59. Nada que o afaste da ideia do cérebro como protagonista e,
inclusive, de uma noção bem tola sobre o fenômeno da poesia, qual seja, a
tese desta como conectivo possível com a sua versão do que seja a ciência,
demasiado limitada para merecer a honraria do entrecruzamento com a
poética. Mas são impasses que denotam um pequeno movimento reflexivo. O
que não deve ser desprezado.
Terminaremos esta parte trazendo, de propósito, um caso que permite
conectar dois pontos importantes. É o caso do filósofo estadunidense John
Searle. Um dos pontos está no fato de que, por ser filósofo, Searle deveria, em
tese, avançar ainda mais na reflexão dos objetos que se predispôs a estudar,
em relação a seus colegas cientistas de influência newtoniana. Não é o que
acontece. E o segundo ponto está justamente na causa dessa dificuldade de
avanço: Searle, em verdade, acredita que a ciência é um saber mais avançado
do que a filosofia, o que o empurra a tentar várias aproximações desastrosas
entre as duas. Vejamos três exemplos ligados aos temas sobre os quais
pensamos neste capítulo.
Searle acredita que existe um mundo real independente da linguagem.
Em suas palavras, “os fatos existem, totalmente independentes da
linguagem”60. Até aí, ele estaria em uma postura contemporânea, porque esse
é um dos princípios mais avançados na discussão filosófica do século XX61.
Entretanto, o problema está na justificativa do autor. Diferente da produção
avançada em filosofia, Searle propõe que há um mundo real separado da
linguagem com o único objetivo de tentar provar que há uma descrição (!!) 59 Idem, ibidem, pp. 393-394.60 Searle, John, Mente, Linguagem e Sociedade – filosofia no mundo real, 2000, p. 30.61 Tema que, inclusive, será abordado em determinado ponto da seqüência aqui refletida, quando pensaremos, mais tarde, sobre as ideias do filósofo Clement Rosset, por exemplo.
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dos fatos que é, indiscutivelmente, a mais verdadeira. Em suas próprias e
inocentes palavras, “existe um mundo real e (...) os cientistas estão fazendo
esforços genuínos para descrevê-lo (grifo nosso)”62.
Ora, a conclusão de Searle é, por incrível que pareça, a de que há uma
realidade independente da linguagem e a de que há uma linguagem que
descreve essa realidade independente da linguagem. Mas não pára por aí.
O segundo exemplo acrescenta elementos às contradições do pretenso
filósofo. Ao descrever sua versão sobre o que seja a linguagem, o autor
começa com a seguinte pergunta: “Como passamos da física para a
semântica?”63. Em princípio, a pergunta deve ser revista, pelo simples fato de
que o saber da física é inevitavelmente semântico. Podemos resumir o
equívoco da seguinte forma: a semântica não é um problema essencialmente
físico (apesar de possuir relações com ele, como as descobertas psicanalíticas
apontam), mas toda a física se resume em problemas semânticos, de conexão
entre a linguagem e a matéria. As definições da física sobre o que chama de
‘mundo material’ são descrições, portanto subditas, sempre, à linguagem. Mas
continuemos.
Searle diz que “a linguagem se relaciona à realidade em virtude do
significado”64, para então propor algo inacreditável. Diz ele:
“a chave para a compreensão do significado é a seguinte: o significado é uma forma de intencionalidade derivada. A intencionalidade original ou intrínseca do pensamento do falante é transferida para palavras, frases, marcas, símbolos e assim por diante. Se pronunciadas de forma significativa, essas palavras, frases, marcas e símbolos passam a ter uma intencionalidade derivada dos pensamentos do falante. Elas não têm apenas um significado lingüístico convencional, mas também um significado desejado pelo falante”65 (grifos nossos).
62 Searle, John, Mente, Linguagem e Sociedade – filosofia no mundo real, 2000, p. 32.63 Idem, ibidem, p. 126.64 Idem, ibidem, p. 129.65 Idem, ibidem, p. 131.
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A quantidade de pontos negligenciados pelo autor é tão grande que temos que
escolher os mais importantes, para não perder o foco.
Em primeiro lugar, a afirmação propõe que a fala de alguém permite
que o pensamento (as intenções) deste alguém possa ser descoberto e definido.
Nas palavras do próprio Searle, a intenção intrínseca do pensamento se
transfere para as palavras e demais símbolos. Em resumo, o pretenso filósofo
define a linguagem como a possibilidade que temos de ler o pensamento
alheio (!!). Ato e intenção passam a ser a mesma coisa no delírio empirista do
filósofo. Algo que ignora todas as mais importantes discussões lingüísticas,
semiológicas, antropológicas, filosóficas, psicanalíticas e literárias dos últimos
tempos.
O segundo ponto importante a ser refletido na citação também
demonstra negligência do autor. Inclusive uma negligência de origem
semântica básica. Quando lista palavras, frases, marcas e símbolos como
elementos separados, o autor ignora que a palavra ‘símbolo’ resume todos os
outros, e já há um bom tempo, desde Lacan. Toda essa negligência tem uma
causa bem específica, com a qual vamos terminar este capítulo.
O terceiro exemplo de aproximação desastrosa de Searle está no fim de
seu livro, quando ele tenta comparar a filosofia com a ciência. Segundo o
autor, sua análise da linguagem tem como unidade básica o que chama de “ato
de fala”66. Para ele, a linguagem é algo que o ser humano usa, sempre de
forma consciente (um ato), como quem escolhe, num cardápio de restaurante,
os pratos favoritos. Além disso, entende, ainda, que mente e linguagem seriam
entes separados, que no máximo se relacionam, “enriquecendo uma à outra”67
66 Idem, ibidem, p. 135.67 Idem, ibidem, p. 141. O próprio uso do verbo “enriquecer” denota, a olhos atentos, que o autor considera a linguagem como elemento de constante ‘progresso’, o que é especialmente inocente.
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conforme a pessoa vai crescendo. Todos esses equívocos têm causa simples de
se verificar.
Para Searle, filosofia e ciência são diferentes, como já foi dito. E ele
esclarece: “muitos resultados da filosofia são esforços para rever questões a
ponto de torná-las questões científicas. Neste livro, por exemplo, tentei fazer
isso com o problema da consciência”68. Este trecho já seria suficiente, mas
vamos a outro, por ser ainda mais absurdo, e para completar a reflexão:
“essas relações entre a filosofia e a ciência explicam por que a ciência está sempre certa e a filosofia sempre errada, e por que nunca há progresso em filosofia. A partir do momento em que estamos confiantes de realmente possuir conhecimento e compreensão em alguma área, paramos de chamar isso de ‘filosofia’ e começamos a chamar de ‘ciência’ e, tão logo fazemos algum progresso definitivo, pensamos ter o direito de chamar isso de ‘progresso científico’”69.
As entrelinhas estão claras. Searle não passa de um cientista
ultrapassado, de matriz newtoniana, que exercita um empirismo reducionista
disfarçado (e muito mal disfarçado, diga-se de passagem) de filosofia. Analisa
seus objetos de estudo sob um prisma científico, considerando que o saber
científico seria o cume da compreensão humana, a ser atingido pelos outros
saberes, que teriam apenas uma existência subalterna. É exatamente por isso
que chega a tantas conclusões equivocadas e inocentes.
Ao contrário de Searle, Gaston Bachelard é um filósofo da ciência que
tentou refletir as inovações científicas trazidas pela micro-física da
relatividade e da mecânica quântica. E isso tem implicações fundamentais na
maneira como passamos a interpretar a linguagem e o conhecimento e suas
relações intra e interdisciplinares. Bachelard é importante porque, enquanto
68 Idem, ibidem, p. 146.69 Idem, ibidem, p. 146.
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filósofo, trata a ciência como objeto de análise e reflexão, e não como dogma
a ser atingido, como o faz Searle.
Bachelard sabe que, assim como a filosofia, a ciência se pretende um
tipo de saber que supere o senso comum70. E sabe também que, para isso, é
preciso ter em conta que “de modo algum o fato científico pode ser proposto
sem um corpo de precauções minuciosas. Não pode ser definido sem um
prévio sistema teórico”71. E já neste ponto encontramos uma visão mais
madura que a de Searle, porque nas entrelinhas Bachelard aponta para o
caráter prévio de toda teoria em relação aos fatos que ali se enunciam. O
curioso é que os textos em que constam as visões de Bachelard datam do
início da década de 30 do século passado, escritos, mais precisamente, entre os
anos de 1931 e 1934. Os de Searle são de 1998, portanto de mais de seis
décadas depois. É talvez o tempo que separa as reflexões da filosofia francesa
das dos Estados Unidos, sempre defasados no que diz respeito ao debate das
chamadas ‘humanidades’.
Lembrando que a “ciência realista” tenta fundamentar sempre as
imagens antes das ideias72 (paradoxalmente através de ideias), o filósofo
francês contrapõe a isso a noção da experiência científica como processo de
constante retificação, concluindo que os a priori – ou seja, as definições e
conclusões preliminares – do pensamento nunca são definitivos73. “Nenhuma
ideia isolada traz em si a marca de sua objetividade. A toda ideia é preciso
juntar uma história psicológica, um processo de objetivação para indicar como 70 Estamos pensando, claro, na produção avançada e no chamado ‘debate de ponta’, na medida em que, tanto na ciência quanto na filosofia, há muita produção que busca adaptações e simplismos, especialmente através da mídia, que têm como objetivo uma pretensa (e ideal) facilidade de absorção das ideias pela recepção massiva. Isso invariavelmente acarreta em perda de rigor e de profundidade, o que é bem fácil perceber, bastando, para isso, uma rápida releitura deste capítulo.71 Bachelard, Gaston, Estudos, 2008, p. 51.72 Idem, ibidem, p. 57.73 Idem, ibidem, p. 76.
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essa ideia chegou à objetividade”74, é o que reflete o filósofo, que não traz, em
si, o realismo ingênuo dos cientistas e filósofos de matriz newtoniana. O
próprio Newton, lembra Bachelard, era um “inimigo das hipóteses”75, adjetivo
que cabe para todos aqueles que se entregam de forma fanática às suas
conclusões, negligenciando elementos como as singularidades, as
subjetividades e os idealismos presentes em cada enunciação dos chamados
discursos do conhecimento.
Não há um suporte orgânico para a consciência humana. Linguagem,
mente e consciência são sobrenomes da mesma questão. A questão do
pensamento do homem, que reside, como veremos no decorrer das reflexões,
fora do cérebro e, por incrível que pareça, fora também do mundo que se
chama de ‘real’, do mundo que se chama, ingenuamente, de “palpável”, como
se ‘apalpar’ não fosse uma sensação de ordem subjetiva e idealista, com todos
os seus pormenores.
Mente, linguagem e consciência, não são, portanto, temas para os quais
seja possível definir cercas seguras. Talvez por isso os grandes escritores e
poetas cheguem mais perto de respostas maduras. Como Borges que, em seu
conhecido conto O Aleph, afirma que “toda linguagem é um alfabeto de
símbolos que pressupõe um passado que os interlocutores compartem”76. Esse
passado define as ideologias em jogo (no nível coletivo) e o subjetivismo de
cada operação intelectual (no nível individual). Borges sabe que os olhos só
enxergam o simultâneo e que na linguagem reside o sucessivo77 (ou seja, o
que sucede, e que, portanto, não está lá, no que seria um real definido e
seguro). Por isso, certamente concordaria com o poeta Fernando Pessoa, que
define bem a questão: “Temos, todos que vivemos, uma vida que é vivida e 74 Idem, ibidem, p. 77.75 Idem, ibidem, p. 43.76 Borges, Jorge Luis, O Aleph, in O Aleph, 2001, p. 169. 77 Idem, ibidem, p. 169.
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outra vida que é pensada. E a única vida que temos é essa que é dividida entre
a verdadeira e a errada”78.
Marcelo Henrique Marques de Souza
78 Pessoa, Fernando, O Cancioneiro, 2008, p. 168.
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