Interno x externo artigo sobre a mente Marcelo Henrique Marques de Souza

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2 – Interno x Externo “O corpo é a sombra das vestes Que encobrem teu ser profundo” Fernando Pessoa (Cancioneiro, p. 137) Como podemos concluir, uma das principais conseqüências do avanço da evolução humana é o seu condicionamento aos ditames da linguagem complexa. A linguagem passa a ser, é possível arriscar, o principal órgão humano, que o introduz no mundo da cultura e que permite uma herança mínima de proteção que auxilie em sua luta pela sobrevivência. Essa herança da espécie tem, entretanto, efeitos diversos, tanto no nível da própria cultura quanto no das individualidades pensantes, que resultam da linguagem 1 , como efeito colateral 2 . É possível introduzir uma reflexão sobre esses efeitos formulando algumas perguntas: aonde se localiza a linguagem no ser humano? No que se chama de ‘consciência’? Há um suporte orgânico para a consciência? Em outras palavras, há diferenças entre cérebro e mente, ou se trata da mesma coisa? E se há diferenças, quais seriam? Já que estamos falando de fantasias, podemos estabelecer, como parâmetro reflexivo, um caminho que comece pela análise de algumas fantasias materialistas de certos cientistas para, então, ascender a um patamar tal que as fantasias se apresentem de forma autorreferente. Há uma divisão acadêmica que ainda se sustenta, a despeito das descobertas decorrentes do avanço da reflexão científica no século XX: 1 Roman Jacobson, lingüista russo, já demonstrou que a linguagem é o fundamento do que se chama de cultura, em seu trabalho Lingüística e Comunicação (2003, p. 18). Portanto, quando falamos em linguagem, estamos falando igualmente de cultura. 2 Discutiremos mais adiante este problema da individualidade como efeito colateral da linguagem, quando pensarmos no debate do sujeito, que se inicia, no ocidente, com Descartes. 1

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2 – Interno x Externo

“O corpo é a sombra das vestes

Que encobrem teu ser profundo”

Fernando Pessoa

(Cancioneiro, p. 137)

Como podemos concluir, uma das principais conseqüências do avanço

da evolução humana é o seu condicionamento aos ditames da linguagem

complexa. A linguagem passa a ser, é possível arriscar, o principal órgão

humano, que o introduz no mundo da cultura e que permite uma herança

mínima de proteção que auxilie em sua luta pela sobrevivência.

Essa herança da espécie tem, entretanto, efeitos diversos, tanto no nível

da própria cultura quanto no das individualidades pensantes, que resultam da

linguagem1, como efeito colateral2. É possível introduzir uma reflexão sobre

esses efeitos formulando algumas perguntas: aonde se localiza a linguagem no

ser humano? No que se chama de ‘consciência’? Há um suporte orgânico para

a consciência? Em outras palavras, há diferenças entre cérebro e mente, ou se

trata da mesma coisa? E se há diferenças, quais seriam?

Já que estamos falando de fantasias, podemos estabelecer, como

parâmetro reflexivo, um caminho que comece pela análise de algumas

fantasias materialistas de certos cientistas para, então, ascender a um patamar

tal que as fantasias se apresentem de forma autorreferente.

Há uma divisão acadêmica que ainda se sustenta, a despeito das

descobertas decorrentes do avanço da reflexão científica no século XX:

1 Roman Jacobson, lingüista russo, já demonstrou que a linguagem é o fundamento do que se chama de cultura, em seu trabalho Lingüística e Comunicação (2003, p. 18). Portanto, quando falamos em linguagem, estamos falando igualmente de cultura. 2 Discutiremos mais adiante este problema da individualidade como efeito colateral da linguagem, quando pensarmos no debate do sujeito, que se inicia, no ocidente, com Descartes.

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ciências humanas x ciências exatas. A história do pensamento mostra que essa

divisão é equivocada, por dois motivos. De um lado, a divisão cria a falácia de

que as chamadas ‘exatas’ teriam por objeto temas e verdades que independem

do homem, existindo para além da participação humana. Nesse grupo estariam

a física, a química, a biologia e a matemática, além de suas sub-disciplinas,

como genética, neurobiologia e demais sucursais ideológicas. Quando

descobre que, mesmo na seara física, o observador interfere na verdade do

objeto observado de forma decisiva, Einstein coloca por terra a possibilidade

intelectual desta divisão, no início do século XX3, com sua teoria da

relatividade. Ora, se a matéria também depende do observador – assim como

um texto depende do autor e do leitor, de formas diferentes –, é porque existe

uma medida de arbítrio em sua estrutura de ação. A própria matemática é um

exemplo disso em seus mínimos detalhes. Se pensarmos que os números são

infinitos, o ‘zero’ só dá lugar ao ‘um’ quando há uma definição, ‘de fora’, de

um fim para os decimais. O próprio número ‘um’ é arbitrário, porque um

planeta não é igual a uma maça. E assim por diante. Quem considera a

matemática e a física ‘ciências exatas’ precisa acessar com urgência as bases

das teorias de Einstein. Ou vai permanecer no século XIX.

No outro ponto da questão estão as chamadas ‘humanas’. Seu papel, na

arcaica divisão, seria o de estudar aquilo que precisa do homem como objeto

ou como parte do enredo temático. Assim, temos a sociologia estudando as

sociedades humanas; a antropologia estudando o homem e suas sociedades; a

psicologia estudando a mente humana; a economia estudando as trocas entre

os homens; e assim sucessivamente. O problema aqui é o de que tanto as

chamadas ciências ‘humanas’ quanto as ‘exatas’ são criações do homem e –

principalmente – dependem dele para as pesquisas de seus objetos – o objeto 3 Os três primeiros artigos de Einstein sobre a questão da relatividade datam de 1905 (sobre isso, ver Hawking, Stephen. O Universo numa casca de noz, 2001, pp. 4-27).

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depende do observador, como sacou Einstein. Ciências humanas, portanto,

soa redundante.

Apesar de todas essas evidências, há um problema que é histórico. As

ciências apelidadas de humanas cresceram seguindo a ideologia da

necessidade de coincidência absoluta entre a realidade e as teses, o que sempre

foi característica das ciências chamadas de ‘exatas’, desde o seu surgimento,

com Galileu e Descartes, no Renascimento, seguidos, depois, por Newton.

Não é à toa, por exemplo, que a sociologia, ciência dita humana, centrada no

estudo das sociedades, tenha nascido pautada, em grande parte, pela crença de

que com as sociedades humanas acontecia o mesmo que com os animais, ou

seja, um processo de ‘seleção cultural’, que daria vantagens históricas aos

grupos humanos com maior potencial a se adaptarem às mudanças4. Isso só

seria verdade se o processo de evolução dos animais fosse repetido em

essência no ser humano. Mas não é. Na cultura, os momentos mais elevados,

tanto no nível político quanto no nível artístico, são aqueles nos quais a

diferença é valorizada. Como exemplo para ilustrar essa distinção, podemos

colocar, numa ponta, o nazismo e a miséria do nordeste brasileiro, que seriam

exercícios bárbaros (de baixo nível) de ‘seleção cultural’, e, na ponta oposta, o

conceito filosófico do “contrato social”, de Jean-Jacques Rousseau – que deu

origem às constituições nacionais –, as sinfonias de Beethoven e a escola

como instituição formadora do que se chama de sociabilidade, que seriam

tentativas de bloquear o lado selvagem que perdura no humano, a partir de

mecanismos de mediação, que mantenham certo nível de confronto entre as

diferenças, sem que se ultrapasse um limite anterior à barbárie.

4 É nesta crença que nasce a hegemonia do modelo urbano em oposição ao modelo rural, o que vemos até hoje, com todas as suas implicações problemáticas.

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Essa tendência darwinista5 perdura até hoje em grande parte da

sociologia, que permanece centrada em fenômenos como as estatísticas,

instrumentos de apropriação e difusão das médias e de padrões nos veículos da

chamada ‘comunicação social’.

Esta pequena reflexão sobre a dicotomia ciências exatas–humanas se

deu para introduzir um tema fundamental para este ponto do texto: alguns

aspectos importantes que regem as divergências entre os que acreditam que o

cérebro orienta a mente e os que acreditam no inverso, em uma mente que

orienta os movimentos cerebrais. Comentemos alguns exemplos relevantes.

O principal argumento dos que acreditam num cérebro protagonista

aparece na escrita do professor de lógica Hao Wang: “Se algumas porções do

cérebro são danificadas, removidas ou desconectadas, certas atividades

mentais cessam”6. Depois de discutir um pouco sobre a enorme capacidade

dos neurônios humanos, este mesmo autor, entretanto, chega à – óbvia –

conclusão de que a mente aumenta a sua potência também através de

instrumentação externa, como livros, aprendizado e experiências com objetos.

Wang chama isso de “memória externa”7, nome que será retomado

posteriormente, porque incita à reflexão.

Esta relação dos neurônios com a linguagem e a mente não é de todo

errada. Há, entretanto, um ponto negligenciado. Em nenhum momento, os

principais defensores de uma mente protagonista abrem mão do cérebro em

suas abordagens. Sem o cérebro, claro, o ser humano não conseguiria produzir

suas complexas articulações. A diferença está em outra seara: as atividades

mentais, que, sem dúvida, são um efeito colateral de movimentos biológicos

primordiais na história evolutiva do homem, tomaram a dianteira no processo, 5 O filósofo Theodor Adorno faz crítica exatamente a este darwinismo social em seu texto A Educação contra a Barbárie, In Educação e Emancipação, pp. 155-168, especialmente p. 165.6 Wang, Hao. A mente pode fazer mais do que o cérebro?, In As Coisas são Assim, 1997, p. 160. 7 Idem, ibidem, p. 163.

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alterando a lógica de evolução. No estágio atual do ser humano, é a

linguagem, o sentido, a cultura e o desejo, como instâncias humanas, que

definem os movimentos orgânicos do bicho homem. No decorrer da

exposição, veremos os indícios disso.

Podemos retirar outro exemplo de outro texto, do bioquímico Steven

Rose. O cientista lembra que a tomografia mostra que certas regiões do

cérebro utilizam mais oxigênio e glicose quando uma pessoa está concentrada,

tentando resolver um problema matemático, por exemplo8. Os mais apressados

diriam, a partir disso, que esta é uma prova do caráter protagonista do cérebro.

Entretanto, cabe a pergunta: é a glicose e o oxigênio que movimentam a

concentração, ou é a concentração que movimenta a produção de glicose e

oxigênio?

Rose opta pela precaução, e coloca que interpretar padrões de

linguagem numa folha de papel, por exemplo, “requer conhecimento

lingüístico, e não uma química específica. Portanto, esse novo nível mais

elevado de análise requer sua própria ciência”9. Ele completa, ainda, que “os

processos que denominamos mentais e cerebrais devem estar ligados de

alguma forma. Portanto, o monismo dita as regras e não o dualismo”10.

Nessa perspectiva monista, cérebro e mente seriam uma coisa só,

dividida pela mania humana de dicotomizar tudo. Entretanto, apesar do

avanço, Rose não resiste, e mais adiante afirma que “o cérebro possui

propriedades tais como armazenamento e resgate de memória”11. Isso incita a

mais algumas pequenas reflexões.

Alguns cientistas mais apressados confundem causa e efeito e

estabelecem localização geográfica no cérebro para tipos diferentes de 8 Rose, Steven, A mente, o cérebro e a pedra de roseta, In As Coisas são Assim, 1997, pp. 215-216.9 Idem, ibidem, p. 216.10 Idem, ibidem, p. 216.11 Idem, ibidem, p. 216.

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memória, a partir do fato de que determinadas partes do cérebro acusam

atividade específica diante de determinadas atividades mentais. É o caso do

também bioquímico argentino Ivan Izquierdo, que afirma que o que chama de

“memória de trabalho” se localiza no córtex pré-frontal, parte do cérebro que

fica logo abaixo da testa; “memórias declarativas” residiriam no hipocampo e

em mais quatro tipos de córtex; enquanto que os hábitos (ou “memórias

procedurais”) nasceriam no mesmo hipocampo, migrando, posteriormente,

para o chamado núcleo caudado e o cerebelo. O cientista lista mais alguns

“tipos de memórias”, sem, entretanto, perceber que incorre no mesmo erro do

lógico Wang, alterando causa e efeito12.

Para perceber o equívoco, basta pensar no significado da palavra

“memória”: “faculdade de reter as ideias, impressões e conhecimentos

adquiridos”. Ideias, impressões e conhecimentos não são entes materiais, mas

metafísicos. Não se pode, portanto, pleitear uma localização física para eles.

Precisam, como lembra Rose em seu momento de lucidez, de uma ciência

própria (ou, de forma mais ampla, de uma abordagem mais complexa). Para

além disso, o verbo “reter”, presente na definição do dicionário, também

precisa ser revisto, na medida em que estabelece uma relação linear que não

procede de todo. Quando analisarmos as questões propostas pela psicanálise,

como os sonhos, atos falhos e sintomas, veremos que a memória é um

processo no qual convivem a intervenção do sujeito e um grau bastante

razoável de independência inconsciente. Os fenômenos do esquecimento

cotidiano e, no pólo oposto, as lembranças involuntárias, são exemplos óbvios,

que apontam para a necessidade de se repensar esse ponto.

Essa dicotomia, cérebro x mente – que se materializa, no debate

acadêmico, nas discussões envolvendo principalmente neurologia e psicologia

12 As definições de Izquierdo estão em seu livro Questões sobre Memória, nas páginas 31-35.

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–, não pára por aí. Após incorrer no mesmo erro de Izquierdo, propondo que

as memórias possuem localização física por conta de atividade cerebral

resultante de determinados trabalhos mentais13, Celso Antunes atinge um

ponto nuclear:

“(...) A mais importante propriedade da mente humana não é memorizar, mas esquecer. Quem, por acaso, jamais se esquecesse de tudo quanto a memória guarda, seria atormentado por gastar indefinidamente todos os minutos de seu dia lembrando os minutos do dia anterior. Portanto, para poder ativar a memória é essencial ‘saber esquecer’ (...)”14.

Este é basicamente o enredo do belo conto de Borges, a história de

Funes, o memorioso15, um homem que passa a não conseguir mais esquecer de

nada, tornando-se escravo da memória: “(...) O que pensasse uma única vez já

não se apagava de sua memória”16. “Funes não apenas se recordava de cada

folha de cada árvore de cada morro, mas ainda de cada uma das vezes que a

tinha percebido ou imaginado”17. Isso acaba por mergulhar o homem de tal

forma nos detalhes que não consegue mais definir ideias gerais. No extremo

angustiante desse exercício dramático de diferenciação, “seu próprio rosto no

espelho, suas próprias mãos, surpreendiam-no a cada vez”18. Enfim, passou a

ser “o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e

quase intoleravelmente preciso”19. O ponto chave para a associação que

criamos aqui se dá quando Borges utiliza a fala do narrador, que comenta que

suspeita que Funes “não fosse muito capaz de pensar. Pensar é esquecer

13 O curioso é que, no parágrafo anterior a esta conclusão equivocada, Antunes pergunta: “Quando guardamos um fato ou um evento na memória, o que acontece no cérebro?”, num indício linguístico claro de que o cérebro responde à mente (ou seja, no caso, ao ato de ‘guardar um fato ou evento’), e não o contrário.14 A Memória, 2002, pp. 17-18. 15 In Ficções, 2007, pp. 99-108. 16 Idem, ibidem, p. 106.17 Idem, ibidem, pp. 106-107.18 Idem, ibidem, p. 107.19 Idem, ibidem, p. 107.

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diferenças, generalizar, abstrair. No mundo entulhado de Funes, não havia

senão detalhes, quase imediatos”20. O ensinamento de Borges é claro: o

esquecimento é parte fundamental – e estrutural – dos processos mentais.

Entretanto, quem já sofreu por amor ou já foi acometido por uma

canção desagradável que emergiu do nada sem ser convidada, sabe que o

esquecimento também não é um processo que possa ser chamado sem

ressalvas de voluntário. É inevitável esquecer; mas isso não significa que a

mente possa definir o conteúdo a ser esquecido e o momento de esquecer de

forma totalmente independente. Não é o caso.

Outro cientista materialista a se digladiar com o problema mente x

cérebro é Daniel Dennett. No meio científico, ele é considerado filósofo e

professor de ciências e artes. E é curioso analisar as dúvidas de Dennet, como

ilustração da tentativa incansável dos materialistas de defender o ‘físico

arcaico’21 até a exaustão, mesmo com todos os indícios desfavoráveis.

Uma das dúvidas de Dennett é bem reveladora. Os adeptos de uma

mente que acarreta em respostas cerebrais – o oposto do materialismo –

consideram a mente humana um processo ‘único’. O que não significa

necessariamente que seja algo evolutivo em si mesmo, num sentido de

progresso. Assim como a mente humana consegue produzir o surrealismo, um

foguete espacial e a teoria da relatividade, ela também nos lega, de forma

irônica, o conhecimento de nossa própria perenidade, ou seja, a percepção de

nossa própria morte, o que é, no mínimo, ambíguo. Entretanto, obcecado por

suas ideias, Dennett argumenta, utilizando alguns pontos básicos da chamada

‘inteligência artificial’22, que “a melhor razão que nós temos para pensar que

um dia os robôs se tornarão conscientes é o fato de que seres humanos são 20 Idem, ibidem, p. 108.21 Esta expressão visa mostrar que a própria ideia do que seja “físico” muda inteiramente com as ideias de Einstein e com a mecânica quântica.22 Existiria algo que pudéssemos chamar de “inteligência natural”?

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também uma espécie de robô consciente”23. Land é da mesma opinião, e

coloca que nada impede que os seres humanos consigam, um dia, “produzir

uma máquina, feita de matéria não-orgânica, que possa preencher os critérios

(grifo nosso) do que chamamos um ser consciente”24.

Mario Quintana disse certa vez que “o que há de terrível nos robôs não

é como eles se parecem conosco, mas como nós nos parecemos com eles”25.

Pautados pela mesma motivação do poeta, qual seja a de reverter as premissas

banais para melhor pensar o objeto, vamos exercitar a hipótese de que o

problema de Land, Dennett e dos demais adeptos do materialismo se encontra

justamente nos critérios estabelecidos.

Segundo Land, “para muitos teóricos da mente, incluindo Dennett, o

que a mente faz é processar informações. Ela é o sistema de controle do

corpo (grifo nosso) e, para executar suas tarefas, ela coleta, transforma e

processa informações”26. Só o fato de deixar escapar o ato falho de que a

mente controla o corpo, já seria suficiente para desmentir Land com suas

próprias palavras. Entretanto, vamos aprofundar os critérios e pensar nesse

tema da chamada ‘inteligência artificial’ utilizando um texto do filósofo

francês Jean Baudrillard27, no qual ele analisa as partidas de xadrez, ocorridas

durante a década de 90, entre o supercomputador Deep Blue e o enxadrista

humano e russo Gari Kasparov. A análise de Baudrillard nos permite ampliar

os critérios.

O que mais interessa para o filósofo, como consideração reflexiva, é o

fato de que se trata, fundamentalmente, de um jogo. O fato de ser um jogo,

segundo Baudrillard, resume o dilema do homem face às máquinas 23 Citado por Land, Marcelo, In A Mente Externa – a ética naturalista de Daniel Dennett, 2001, p. 76. 24 Land, Marcelo, In A Mente Externa – a ética naturalista de Daniel Dennett, 2001, p. 75.25 Quintana, Mario. Caderno H, 2006, p. 211.26 Land, Marcelo, In A Mente Externa – a ética naturalista de Daniel Dennett, 2001, pp. 79-80.27 Deep Blue ou A melancolia do computador, In Tela Total: mito-ironias da era do virtual e da imagem, 1999, pp. 133-138.

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contemporâneas que utiliza: informatizadas, virtuais, cibernéticas, em rede

etc”28.

Baudrillard toca na ferida quando afirma que no fundo “não há

interatividade com as máquinas”29, ou seja, que “a [chamada] interface não

existe”30. E relembrando a história bíblica da Torre de Babel, reflete a questão

da diversidade lingüística, apontando a diferença fundamental em jogo na

aparente dicotomia entre máquinas e seres humanos:

“Se [Kasparov] venceu é porque (metaforicamente) consegue falar várias línguas – a do afeto, da intuição, do estratagema, do jogo rápido, sem contar a do cálculo – enquanto Deep Blue só fala a do cálculo. No dia em que esta prevalecer, seja como for, Kasparov será batido; o dia em que o próprio homem só falará essa única e exclusiva língua, a dos computadores”31.

Ora, Baudrillard percebeu o que nenhum cientista materialista mecanicista

consegue perceber: que a riqueza da espécie humana está justamente na Babel

das línguas, na diferença resultante da linguagem. Que é exatamente isso que

permite que sejamos uma espécie, ou seja, que tenhamos alguma

especificidade, algo, portanto, especial32 (e a falta de percepção disso é igual

nos profetas da língua universal, como o notório esperanto, proposto ao

mundo em 1887, pelo médico polonês Ludwig Zamenhoff33, e as mais

recentes, criadas por indivíduos como Robert Mccrum, Jean-Paul Nerrière e

Madhukar N. Gogate, que propõem variantes lingüísticas simplificadas, que

28 Idem, ibidem, p. 133.29 Idem, ibidem, p. 133.30 Idem, ibidem, p. 133.31 Idem, ibidem, p. 135.32 Que, é sempre bom reiterar, não significa algo ‘melhor’, mas apenas algo ‘diferente’, específico em relação às outras espécies.33 Eco, Umberto, A Busca da Língua Perfeita, 2002, p. 389. Para se ter uma ideia da fobia dessa gente, basta pensar num exemplo básico, o de que no esperanto não há artigo indefinido (idem, ibidem, p. 392). É como se a linguagem pudesse ser mais do que autorreferente, como se ela fosse um fim em si mesma. Nada mais tolo.

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teriam como função facilitar a comunicação entre os seres humanos34. Não

percebem que a riqueza humana está justamente no fato de que todo processo

de comunicação é uma ilusão e que a linguagem, justamente por não ser uma

referência absoluta do que enuncia, desanda, inevitavelmente, para o subjetivo

e, em maior proporção, para o aleatório, escapando, mesmo que cada vez mais

raramente, das tentativas de cerceamento desses fanáticos).

As conclusões de Baudrillard retomam o tema central. Ele aponta que

“a diferença fundamental (...) está em que para Kasparov existe uma parte

adversa, há um outro. Para Deep Blue, nada há em face, nada de outro, nada

de adversário. Ele evolui no interior de sua própria programação”35. E

completa criticando, ironicamente, a tese segundo a qual no futuro a vitória

definitiva do computador seria inevitável, por este usar linguagem

exponencial, enquanto a linguagem humana permaneceria meramente

cumulativa:

“(...) Se o saber do computador é exponencial, seu pensamento não o é, o que o condena a uma espécie de estabilidade exponencial. A cada lance, volta ao ponto de partida e refaz todas as operações. Enquanto o homem, que filtra e só retém raros dados em relação à imensidão numérica dos possíveis36, é capaz de extrapolá-los numa única direção, sem consideração pelo estado inicial. Dispõe assim de um pensamento verdadeiramente exponencial, criador de constelações inéditas, imprevisíveis, de um gênero de estratégia caótica que mesmo um computador mil vezes mais potente que Deep Blue não saberia enfrentar. Face ao computador, o homem encarna o infinito da complexidade, que não é o do cálculo, e talvez esteja mais próximo do acaso (seria aliás interessante confrontar o computador a uma

34 Os três são citados neste contexto pelo caderno Prosa e Verso do jornal O Globo do dia 10 de julho deste ano (2010), às páginas 1 e 2. 35 In Deep Blue ou A melancolia do computador, In Tela Total: mito-ironias da era do virtual e da imagem, 1999, p. 136.36 Por conta da questão inevitável do esquecimento, que Antunes e, num grau mais elevado, Borges perceberam.

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loteria, isto é, à desordem probabilística, diferente da desordem humana. Onde estariam suas garantias?)”37.

Os equívocos que rodeiam esse enredo, que compara cérebro e mente a

computadores, podem ser visualizados igualmente numa crônica do escritor

brasileiro Luis Fernando Veríssimo. Algumas afirmações do autor são

sintomáticas. Por exemplo, quando ele coloca que, “no campo do

conhecimento do cérebro, ou do pensamento sobre o pensamento, está

havendo uma guerra de teorias parecida com uma questão religiosa de alguns

séculos atrás”38. Veríssimo confunde as ideias, porque ‘cérebro’ e

‘pensamento’ não são sinônimos. Cérebro é um órgão e pensamento é um

processo inorgânico, que supera a vinculação com o corpo. Está ligado, como

veremos, a um mundo à parte do físico.

Outro problema na argumentação do cronista se dá quando ele utiliza a

já batida comparação do cérebro com um hardware e da mente com um

software: “dizem que o cérebro é um computador e a mente é um programa”39.

A reflexão de Baudrillard deixa claro que a diferença não estaria aí, porque

hardware e software agem da mesma forma, ou seja, seguem parâmetros pré-

estabelecidos.

E cabe ainda um último exemplo desta crônica. Veríssimo comenta que

sempre lhe pareceu enlouquecedor “que os sonhos, justamente a oportunidade

que nosso cérebro tem de falar conosco a sós, sejam em código, em linguagem

simbólica, geralmente ininteligível”40. Os sonhos realmente são em linguagem

simbólica – aliás, existe linguagem que não seja simbólica? –, mas há um

37 In Deep Blue ou A melancolia do computador, In Tela Total: mito-ironias da era do virtual e da imagem, 1999, pp. 137-138.38 Veríssimo, Luis Fernando. Pensar sobre o Pensar, In Banquete com os Deuses – cinema, literatura, música e outras artes, 2003, p. 227.39 Idem, ibidem, p. 228.40 Idem, ibidem, p. 228.

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pequeno deslize a reconsiderar. Nos sonhos não é o cérebro que ‘fala

conosco’41, mas a mente. De novo, as palavras traem o escritor, que, apesar de

defender a ausência de inteligibilidade, se apóia, nas entrelinhas, em um

cérebro sutilmente protagonista.

Mais interessante ainda é observar o editor da revista científica

estadunidense Scientific American, John Horgan, narrando os questionamentos

do físico Roger Penrose sobre o problema da consciência. Segundo Horgan,

Penrose não acredita na teoria da relatividade e na mecânica quântica – teorias

mais do que testadas e confrontadas com seus objetos – pelo simples fato de

que não possuem nexo. O editor narra: “a física contemporânea simplesmente

não tem sentido, completou ele [– Penrose]. A mecânica quântica, em

particular, tem de estar errada, porque é gritantemente incoerente com a

realidade macroscópica comum”42. Ainda segundo Horgan, Penrose acredita

que “deve haver uma teoria mais profunda que elimine os paradoxos da

mecânica quântica e seus elementos desconcertantemente subjetivos”43.

Entretanto, na falta de um apêndice melhor para suas crenças, Penrose

acaba propondo soluções próximas daquilo em que não acredita. Segundo

Horgan, o físico arrisca, em livro publicado no ano de 1994 e intitulado

Sombras da Mente, uma conjectura:

“os microtúbulos, túneis diminutos de proteína, servem como uma espécie de esqueleto para a maioria das células, inclusive para os neurônios. A hipótese de Penrose se baseava numa afirmação de Stuart Hameroff, anestesiologista da Universidade do Arizona, de que a anestesia inibe o movimento dos elétrons nos microtúbulos”44.

41 Veremos, mais adiante, inclusive, que há teses que defendem o sonho como uma manifestação bem mais independente do que se imagina.42 Horgan, John, O Fim da Ciência, 1998, p. 219. 43 Idem, ibidem, p. 219.44 Idem, ibidem, p. 220.

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Como coloca o próprio Horgan, Penrose ergue, sobre “essa frágil

afirmação”45, a conjectura de que “os microtúbulos desempenham

computações não deterministas, quase quânticas, que de alguma forma dão

origem à consciência”46. Em resumo, mais um exemplo de um cientista que

pensa que só porque uma droga age num determinado ponto do cérebro,

necessariamente este ponto tem antecedência no processo de criação do que

eles chamariam de material mental.

E a busca dos newtonianos contemporâneos continua. Horgan cita,

entretanto, um comentário lúcido, feito pelo físico e biólogo molecular inglês

Francis Crick, conhecido por ser o descobridor da estrutura em hélice dupla do

DNA: “A mente ‘é um sistema muito mais complicado’ do que o genoma,

observou ele [– Crick], e é provável que as teorias da mente tivessem um

poder explicativo mais limitado”47. A lucidez, entretanto, daria lugar ao

continuísmo. Horgan comenta que, por outro lado, Crick teria acrescentado

que

“um equivalente neural do princípio da incerteza de Heisenberg poderia restringir a nossa capacidade de rastrear a atividade do cérebro nos seus mínimos detalhes, e os processos subjacentes à consciência talvez fossem tão paradoxais e difíceis de compreender quanto o é a mecânica quântica”48.

Como se vê, tudo para manter a prioridade do ponto de vista material sobre

qualquer hipótese que o coloque em xeque.

Horgan ainda comenta a similaridade da posição materialista de Crick

com a do filósofo inglês Gilbert Ryle, que teria dito, em 1930, que “o

dualismo – segundo o qual a mente é um fenômeno separado, independente de

45 Idem, ibidem, p. 220.46 Idem, ibidem, p. 221.47 Idem, ibidem, p. 228.48 Idem, ibidem, p. 228.

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seu substrato físico e capaz de exercer influência sobre ele – violava a

conservação da energia e, portanto, toda a física”49. O editor concorda com o

filósofo e acrescenta, concluindo do alto de sua inocência, que “a conquista

científica da consciência será o último anticlímax, mais uma demonstração da

máxima de Niels Bohr [eminente cientista dinamarquês do início do século

XX] de que a tarefa da ciência é reduzir todos os mistérios a trivialidades”50.

Talvez a constante fuga dos paradoxos da mente que estes cientistas exercitam

seja, isso sim, uma prova incontestável de trivialidade. É bom não esquecer

que trivial não significa apenas o que todos sabem, mas igualmente aquilo que

é vulgar, reles e ordinário. Mais para frente talvez seja possível assumir um

dos dois como o mais plausível para este caso.

Um último exemplo neste rol de newtonianos pós-modernos é o de

Richard Dawkins. Analisemos um trecho de seu pretensioso e em grande

medida inocente livro Desvendando o Arco-íris. A ideia básica do livro é

semelhante à de toda uma safra de beatas da chamada ‘divulgação científica’ –

alguns deles aqui citados, neste capítulo –, que surgiu no ocidente anglo-

saxão, especialmente depois da globalização: transmitir a ideia de que a

ciência51 seria a verdade da vida e orientar os seus seguidores sobre os perigos

de todo e qualquer pensamento não-científico, imediatamente tachado de

charlatão e limitado.

Dawkins reflete, entretanto, um horizonte conflituoso e isso é um dado

importante a ser analisado. Por um lado, mantém determinados

posicionamentos limitados, como a dicotomia hardware-software e a citação

49 Idem, ibidem, p. 236.50 Idem, ibidem, p. 237.51 É importante relembrar que a ciência que esses autores divulgam, apesar de vir citando a mecânica quântica e a relatividade, raríssimas vezes exercita de fato a forma de pensar que se encontra embutida nesses campos de pensamento. É uma divisão de forma e conteúdo: o conteúdo quase sempre abrange razoável aparato histórico, mas a forma se restringe a um viés newtoniano arcaico, sempre minimizando pontos que saiam deste padrão.

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constante do crescimento do cérebro como norte reflexivo; na outra ponta,

entretanto, chega a uma reflexão mais madura sobre o fenômeno da

linguagem, no que experimenta momentos de impasse que são significativos.

Antes de falar desses impasses, contudo, vale falarmos, rapidamente,

sobre os memes. Segundo Dawkins, os memes seriam o software52, ou seja,

unidades de herança cultural53, que agiriam como agentes artificiais, no nível

da cultura, de intensificação na fidelidade e na prolixidade da replicação dos

genes54. O biólogo não deixa claro se os memes seriam entidades físicas ou

não, mas um trecho deixa uma pista possível. Diz ele que os memes seriam,

por analogia, “algo que se replica de cérebro para cérebro, via qualquer meio

disponível de cópia”55. Se a réplica é de cérebro para cérebro, então se trata de

uma cópia material. É a conclusão possível. Os memes seriam, então, para

Dawkins, o mecanismo que faltava para explicar o crescimento do cérebro

humano, que teria inflado através de uma espécie de infestação de memes.

Entretanto, apesar de seu materialismo insistente, Dawkins consegue

ultrapassar determinados determinismos e atinge o problema da linguagem, no

qual surpreende e coloca questões que, se não são das mais avançadas, ao

menos transcendem as banalidades de seus pares ‘divulgadores’. Elabora, por

exemplo, a visão de que o ‘eu’ como unidade subjetiva pode ser uma “semi-

ilusão”56 ou um tipo de “fenômeno secundário”57 em relação à genética geral;

questiona a língua (o conjunto semântico de uma cultura) como um ente que

age de forma a infectar as crianças com a herança cultural58; e sugere a

capacidade de criar metáforas por associação simbólica – como um ancestral

52 Dawkins, Richard, Desvendando o Arco-íris, 2000, p. 390. 53 Idem, ibidem, pp. 382-383.54 Idem, ibidem, p. 389.55 Idem, ibidem, p. 383.56 Idem, ibidem, p. 391.57 Idem, ibidem, p. 391.58 Idem, ibidem, p. 392.

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imitando um mamute para gerar a ideia de ‘grande’ para seu interlocutor –

como uma espécie de ‘realidade virtual’ que teria sido proveitosa num sentido

evolutivo59. Nada que o afaste da ideia do cérebro como protagonista e,

inclusive, de uma noção bem tola sobre o fenômeno da poesia, qual seja, a

tese desta como conectivo possível com a sua versão do que seja a ciência,

demasiado limitada para merecer a honraria do entrecruzamento com a

poética. Mas são impasses que denotam um pequeno movimento reflexivo. O

que não deve ser desprezado.

Terminaremos esta parte trazendo, de propósito, um caso que permite

conectar dois pontos importantes. É o caso do filósofo estadunidense John

Searle. Um dos pontos está no fato de que, por ser filósofo, Searle deveria, em

tese, avançar ainda mais na reflexão dos objetos que se predispôs a estudar,

em relação a seus colegas cientistas de influência newtoniana. Não é o que

acontece. E o segundo ponto está justamente na causa dessa dificuldade de

avanço: Searle, em verdade, acredita que a ciência é um saber mais avançado

do que a filosofia, o que o empurra a tentar várias aproximações desastrosas

entre as duas. Vejamos três exemplos ligados aos temas sobre os quais

pensamos neste capítulo.

Searle acredita que existe um mundo real independente da linguagem.

Em suas palavras, “os fatos existem, totalmente independentes da

linguagem”60. Até aí, ele estaria em uma postura contemporânea, porque esse

é um dos princípios mais avançados na discussão filosófica do século XX61.

Entretanto, o problema está na justificativa do autor. Diferente da produção

avançada em filosofia, Searle propõe que há um mundo real separado da

linguagem com o único objetivo de tentar provar que há uma descrição (!!) 59 Idem, ibidem, pp. 393-394.60 Searle, John, Mente, Linguagem e Sociedade – filosofia no mundo real, 2000, p. 30.61 Tema que, inclusive, será abordado em determinado ponto da seqüência aqui refletida, quando pensaremos, mais tarde, sobre as ideias do filósofo Clement Rosset, por exemplo.

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dos fatos que é, indiscutivelmente, a mais verdadeira. Em suas próprias e

inocentes palavras, “existe um mundo real e (...) os cientistas estão fazendo

esforços genuínos para descrevê-lo (grifo nosso)”62.

Ora, a conclusão de Searle é, por incrível que pareça, a de que há uma

realidade independente da linguagem e a de que há uma linguagem que

descreve essa realidade independente da linguagem. Mas não pára por aí.

O segundo exemplo acrescenta elementos às contradições do pretenso

filósofo. Ao descrever sua versão sobre o que seja a linguagem, o autor

começa com a seguinte pergunta: “Como passamos da física para a

semântica?”63. Em princípio, a pergunta deve ser revista, pelo simples fato de

que o saber da física é inevitavelmente semântico. Podemos resumir o

equívoco da seguinte forma: a semântica não é um problema essencialmente

físico (apesar de possuir relações com ele, como as descobertas psicanalíticas

apontam), mas toda a física se resume em problemas semânticos, de conexão

entre a linguagem e a matéria. As definições da física sobre o que chama de

‘mundo material’ são descrições, portanto subditas, sempre, à linguagem. Mas

continuemos.

Searle diz que “a linguagem se relaciona à realidade em virtude do

significado”64, para então propor algo inacreditável. Diz ele:

“a chave para a compreensão do significado é a seguinte: o significado é uma forma de intencionalidade derivada. A intencionalidade original ou intrínseca do pensamento do falante é transferida para palavras, frases, marcas, símbolos e assim por diante. Se pronunciadas de forma significativa, essas palavras, frases, marcas e símbolos passam a ter uma intencionalidade derivada dos pensamentos do falante. Elas não têm apenas um significado lingüístico convencional, mas também um significado desejado pelo falante”65 (grifos nossos).

62 Searle, John, Mente, Linguagem e Sociedade – filosofia no mundo real, 2000, p. 32.63 Idem, ibidem, p. 126.64 Idem, ibidem, p. 129.65 Idem, ibidem, p. 131.

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A quantidade de pontos negligenciados pelo autor é tão grande que temos que

escolher os mais importantes, para não perder o foco.

Em primeiro lugar, a afirmação propõe que a fala de alguém permite

que o pensamento (as intenções) deste alguém possa ser descoberto e definido.

Nas palavras do próprio Searle, a intenção intrínseca do pensamento se

transfere para as palavras e demais símbolos. Em resumo, o pretenso filósofo

define a linguagem como a possibilidade que temos de ler o pensamento

alheio (!!). Ato e intenção passam a ser a mesma coisa no delírio empirista do

filósofo. Algo que ignora todas as mais importantes discussões lingüísticas,

semiológicas, antropológicas, filosóficas, psicanalíticas e literárias dos últimos

tempos.

O segundo ponto importante a ser refletido na citação também

demonstra negligência do autor. Inclusive uma negligência de origem

semântica básica. Quando lista palavras, frases, marcas e símbolos como

elementos separados, o autor ignora que a palavra ‘símbolo’ resume todos os

outros, e já há um bom tempo, desde Lacan. Toda essa negligência tem uma

causa bem específica, com a qual vamos terminar este capítulo.

O terceiro exemplo de aproximação desastrosa de Searle está no fim de

seu livro, quando ele tenta comparar a filosofia com a ciência. Segundo o

autor, sua análise da linguagem tem como unidade básica o que chama de “ato

de fala”66. Para ele, a linguagem é algo que o ser humano usa, sempre de

forma consciente (um ato), como quem escolhe, num cardápio de restaurante,

os pratos favoritos. Além disso, entende, ainda, que mente e linguagem seriam

entes separados, que no máximo se relacionam, “enriquecendo uma à outra”67

66 Idem, ibidem, p. 135.67 Idem, ibidem, p. 141. O próprio uso do verbo “enriquecer” denota, a olhos atentos, que o autor considera a linguagem como elemento de constante ‘progresso’, o que é especialmente inocente.

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conforme a pessoa vai crescendo. Todos esses equívocos têm causa simples de

se verificar.

Para Searle, filosofia e ciência são diferentes, como já foi dito. E ele

esclarece: “muitos resultados da filosofia são esforços para rever questões a

ponto de torná-las questões científicas. Neste livro, por exemplo, tentei fazer

isso com o problema da consciência”68. Este trecho já seria suficiente, mas

vamos a outro, por ser ainda mais absurdo, e para completar a reflexão:

“essas relações entre a filosofia e a ciência explicam por que a ciência está sempre certa e a filosofia sempre errada, e por que nunca há progresso em filosofia. A partir do momento em que estamos confiantes de realmente possuir conhecimento e compreensão em alguma área, paramos de chamar isso de ‘filosofia’ e começamos a chamar de ‘ciência’ e, tão logo fazemos algum progresso definitivo, pensamos ter o direito de chamar isso de ‘progresso científico’”69.

As entrelinhas estão claras. Searle não passa de um cientista

ultrapassado, de matriz newtoniana, que exercita um empirismo reducionista

disfarçado (e muito mal disfarçado, diga-se de passagem) de filosofia. Analisa

seus objetos de estudo sob um prisma científico, considerando que o saber

científico seria o cume da compreensão humana, a ser atingido pelos outros

saberes, que teriam apenas uma existência subalterna. É exatamente por isso

que chega a tantas conclusões equivocadas e inocentes.

Ao contrário de Searle, Gaston Bachelard é um filósofo da ciência que

tentou refletir as inovações científicas trazidas pela micro-física da

relatividade e da mecânica quântica. E isso tem implicações fundamentais na

maneira como passamos a interpretar a linguagem e o conhecimento e suas

relações intra e interdisciplinares. Bachelard é importante porque, enquanto

68 Idem, ibidem, p. 146.69 Idem, ibidem, p. 146.

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filósofo, trata a ciência como objeto de análise e reflexão, e não como dogma

a ser atingido, como o faz Searle.

Bachelard sabe que, assim como a filosofia, a ciência se pretende um

tipo de saber que supere o senso comum70. E sabe também que, para isso, é

preciso ter em conta que “de modo algum o fato científico pode ser proposto

sem um corpo de precauções minuciosas. Não pode ser definido sem um

prévio sistema teórico”71. E já neste ponto encontramos uma visão mais

madura que a de Searle, porque nas entrelinhas Bachelard aponta para o

caráter prévio de toda teoria em relação aos fatos que ali se enunciam. O

curioso é que os textos em que constam as visões de Bachelard datam do

início da década de 30 do século passado, escritos, mais precisamente, entre os

anos de 1931 e 1934. Os de Searle são de 1998, portanto de mais de seis

décadas depois. É talvez o tempo que separa as reflexões da filosofia francesa

das dos Estados Unidos, sempre defasados no que diz respeito ao debate das

chamadas ‘humanidades’.

Lembrando que a “ciência realista” tenta fundamentar sempre as

imagens antes das ideias72 (paradoxalmente através de ideias), o filósofo

francês contrapõe a isso a noção da experiência científica como processo de

constante retificação, concluindo que os a priori – ou seja, as definições e

conclusões preliminares – do pensamento nunca são definitivos73. “Nenhuma

ideia isolada traz em si a marca de sua objetividade. A toda ideia é preciso

juntar uma história psicológica, um processo de objetivação para indicar como 70 Estamos pensando, claro, na produção avançada e no chamado ‘debate de ponta’, na medida em que, tanto na ciência quanto na filosofia, há muita produção que busca adaptações e simplismos, especialmente através da mídia, que têm como objetivo uma pretensa (e ideal) facilidade de absorção das ideias pela recepção massiva. Isso invariavelmente acarreta em perda de rigor e de profundidade, o que é bem fácil perceber, bastando, para isso, uma rápida releitura deste capítulo.71 Bachelard, Gaston, Estudos, 2008, p. 51.72 Idem, ibidem, p. 57.73 Idem, ibidem, p. 76.

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essa ideia chegou à objetividade”74, é o que reflete o filósofo, que não traz, em

si, o realismo ingênuo dos cientistas e filósofos de matriz newtoniana. O

próprio Newton, lembra Bachelard, era um “inimigo das hipóteses”75, adjetivo

que cabe para todos aqueles que se entregam de forma fanática às suas

conclusões, negligenciando elementos como as singularidades, as

subjetividades e os idealismos presentes em cada enunciação dos chamados

discursos do conhecimento.

Não há um suporte orgânico para a consciência humana. Linguagem,

mente e consciência são sobrenomes da mesma questão. A questão do

pensamento do homem, que reside, como veremos no decorrer das reflexões,

fora do cérebro e, por incrível que pareça, fora também do mundo que se

chama de ‘real’, do mundo que se chama, ingenuamente, de “palpável”, como

se ‘apalpar’ não fosse uma sensação de ordem subjetiva e idealista, com todos

os seus pormenores.

Mente, linguagem e consciência, não são, portanto, temas para os quais

seja possível definir cercas seguras. Talvez por isso os grandes escritores e

poetas cheguem mais perto de respostas maduras. Como Borges que, em seu

conhecido conto O Aleph, afirma que “toda linguagem é um alfabeto de

símbolos que pressupõe um passado que os interlocutores compartem”76. Esse

passado define as ideologias em jogo (no nível coletivo) e o subjetivismo de

cada operação intelectual (no nível individual). Borges sabe que os olhos só

enxergam o simultâneo e que na linguagem reside o sucessivo77 (ou seja, o

que sucede, e que, portanto, não está lá, no que seria um real definido e

seguro). Por isso, certamente concordaria com o poeta Fernando Pessoa, que

define bem a questão: “Temos, todos que vivemos, uma vida que é vivida e 74 Idem, ibidem, p. 77.75 Idem, ibidem, p. 43.76 Borges, Jorge Luis, O Aleph, in O Aleph, 2001, p. 169. 77 Idem, ibidem, p. 169.

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outra vida que é pensada. E a única vida que temos é essa que é dividida entre

a verdadeira e a errada”78.

Marcelo Henrique Marques de Souza

78 Pessoa, Fernando, O Cancioneiro, 2008, p. 168.

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