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INTERDISCIPLINARIDADE – A ATUAL PERCEPÇÃO DO REAL Jayme Costa Barros Há algumas afirmações consensuais no mundo contemporâneo. Uma delas é a necessidade de ver o mundo como um todo indiviso, porque, de fato, “todas as partes do universo, incluindo o observador e seus instrumentos, fundem-se numa totalidade”. O que chamamos de partes são fios de uma teia inseparável de relações. O universo, portanto, é relacional. Uma segunda, resultante do que acima é referido: nenhuma área de conhecimento é completa em si mesma. Há inseparáveis conexões que unem as diversas áreas do conhecimento. Essa mesma afirmação é que vemos no HOLISMO, na ECOLOGIA HUMANA. Esta última redefine o lugar do homem dentro do universo, não mais como “o rei absoluto da criação”, mas como alguém inserido no universo, cujas ações repercutem para o bem ou para o mal em todo o universo. Essas verdades, consciente ou inconscientemente, estão presentes no homem contemporâneo. Em seu mundo interior. Em seu “estar no mundo”. O homem contemporâneo tem uma percepção interdisciplinar dos fatos, dos fenômenos, do mundo em que vive e de si mesmo. Não é por acaso que os meios de comunicação mais modernos são interdisciplinares. Eles atendem às aspirações interdisciplinares do homem contemporâneo. Unem som, imagem, palavra, música, paisagem, cor. É emblemático, por exemplo, que o celular, criado para uma comunicação verbal a distância, hoje já tenha imagens, cores, música, paisagens e tantas outras coisas. E quantas áreas diferentes de conhecimento estão presentes quando um jornal noticia o assassinato de um jovem da periferia de Salvador por estar envolvido com traficantes de crack! É claro que não é o crack a causa do homicídio! Na notícia e na realidade concreta e na maneira como nós a percebemos estão presentes aspectos geossociais das periferias das grandes metrópoles, a grande desigualdade social, as classes sociais em que o crack é mais difundido, o porquê disso, os aspectos bioquímicos da droga e suas consequências. E tantos outros aspectos de diferentes áreas de conhecimento poderiam ser lembrados aqui! Há pouco tempo, um canal de TV, falando da favela carioca do Morro da Providência, reportou- se às suas origens, quando soldados que lutaram na Guerra de Canudos se alojaram no Morro, por não terem recebido as casas que o governo lhes prometera. E falando da citada favela, o repórter lembra Tia Ciata e a origem do samba, aborda os aspectos religiosos, culturais. Tudo isso para noticiar a instalação de um posto policial na citada favela. De fato, nossa relação com a realidade concreta, hoje, tem uma dimensão social, uma dimensão natural, uma dimensão cultural que se conectam sempre, inseparavelmente. E é essa “rede de relações” que dá sentido aos fatos que vivemos ou observamos. A realidade é una, complexa; nós a vemos assim, de forma interdisciplinar. E a escola precisa perceber isso. Precisa perceber que o homem contemporâneo entende que uma visão “disciplinar” não lhe dá uma análise e compreensão da realidade como um todo. Não lhe satisfaz mais. Sua forma de “ver e sentir o mundo” é interdisciplinar. A prática “disciplinar” não atende mais aos desejos do homem contemporâneo. Daí a desmotivação dos alunos, o seu descompromisso com um universo – velho, ultrapassado – que não é o seu.

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INTERDISCIPLINARIDADE – A ATUAL PERCEPÇÃO DO REAL

Jayme Costa Barros

Há algumas afirmações consensuais no mundo contemporâneo. Uma delas é a necessidade de ver o mundo como um todo indiviso, porque, de fato, “todas as partes do universo, incluindo o observador e seus instrumentos, fundem-se numa totalidade”. O que chamamos de partes são fios de uma teia inseparável de relações. O universo, portanto, é relacional. Uma segunda, resultante do que acima é referido: nenhuma área de conhecimento é completa em si mesma. Há inseparáveis conexões que unem as diversas áreas do conhecimento.

Essa mesma afirmação é que vemos no HOLISMO, na ECOLOGIA HUMANA. Esta última redefine o lugar do homem dentro do universo, não mais como “o rei absoluto da criação”, mas como alguém inserido no universo, cujas ações repercutem para o bem ou para o mal em todo o universo.

Essas verdades, consciente ou inconscientemente, estão presentes no homem contemporâneo. Em seu mundo interior. Em seu “estar no mundo”. O homem contemporâneo tem uma percepção interdisciplinar dos fatos, dos fenômenos, do mundo em que vive e de si mesmo. Não é por acaso que os meios de comunicação mais modernos são interdisciplinares. Eles atendem às aspirações interdisciplinares do homem contemporâneo. Unem som, imagem, palavra, música, paisagem, cor. É emblemático, por exemplo, que o celular, criado para uma comunicação verbal a distância, hoje já tenha imagens, cores, música, paisagens e tantas outras coisas.

E quantas áreas diferentes de conhecimento estão presentes quando um jornal noticia o assassinato de um jovem da periferia de Salvador por estar envolvido com traficantes de crack! É claro que não é o crack a causa do homicídio! Na notícia e na realidade concreta e na maneira como nós a percebemos estão presentes aspectos geossociais das periferias das grandes metrópoles, a grande desigualdade social, as classes sociais em que o crack é mais difundido, o porquê disso, os aspectos bioquímicos da droga e suas consequências. E tantos outros aspectos de diferentes áreas de conhecimento poderiam ser lembrados aqui!

Há pouco tempo, um canal de TV, falando da favela carioca do Morro da Providência, reportou-se às suas origens, quando soldados que lutaram na Guerra de Canudos se alojaram no Morro, por não terem recebido as casas que o governo lhes prometera. E falando da citada favela, o repórter lembra Tia Ciata e a origem do samba, aborda os aspectos religiosos, culturais. Tudo isso para noticiar a instalação de um posto policial na citada favela.

De fato, nossa relação com a realidade concreta, hoje, tem uma dimensão social, uma dimensão natural, uma dimensão cultural que se conectam sempre, inseparavelmente. E é essa “rede de relações” que dá sentido aos fatos que vivemos ou observamos. A realidade é una, complexa; nós a vemos assim, de forma interdisciplinar. E a escola precisa perceber isso. Precisa perceber que o homem contemporâneo entende que uma visão “disciplinar” não lhe dá uma análise e compreensão da realidade como um todo. Não lhe satisfaz mais. Sua forma de “ver e sentir o mundo” é interdisciplinar. A prática “disciplinar” não atende mais aos desejos do homem contemporâneo. Daí a desmotivação dos alunos, o seu descompromisso com um universo – velho, ultrapassado – que não é o seu.

Page 2: INTERDISCIPLINARIDADE – A ATUAL PERCEPÇÃO DO … Atual Percepção Do Real.pdf · “A interdisciplinaridade, como diz Heloísa Luck, começa aí: no entendimento de que a complexidade

“A interdisciplinaridade, como diz Heloísa Luck, começa aí: no entendimento de que a complexidade dos mundos físico e social requer que as disciplinas se articulem, superando a fragmentação e o distanciamento para que possamos conhecer mais e melhor.”

Superar a visão disciplinar, desenvolver um trabalho interdisciplinar é uma exigência da maneira atual de percepção da realidade. Por isso, sente-se, hoje, um movimento, também universal, de crítica ao anacronismo da escola e de busca de inseri-la na contemporaneidade. E vemos já muitas e muitas experiências interessantes de transformação da escola.

O que desejamos é que esse movimento ganhe força, que essas experiências se multipliquem e que, em breve, possamos ter uma escola contemporânea mais crítica, mais ativa, mais presente no mundo, mais motivadora. Uma contemporânea aprendizagem significativa vai muito além dos conteúdos cognitivos de cada disciplina.

O Módulo, desde 2001, vem trabalhando com projetos interdisciplinares. Tais projetos buscam superar a visão fragmentada do conhecimento, utilizando-o de modo mais totalizante para ver o real, interpretá-lo e atuar sobre ele. O aluno transforma informações, ideias, conceitos em formas de conviver e de intervir na realidade. Nos projetos interdisciplinares, o cognitivo se une ao procedimental e ao atitudinal, de modo que a busca do conhecimento e da ação se torna oportunidades de conviver em grupo, em equipe, de trabalhar as relações interpessoais através da interação solidária dos saberes, dos afetos e das ações.

Temos uma convicção bastante clara: a função da escola, no século XXI, vai muito além do cognitvo. Ela tem de trabalhar as relações. E atitudes, procedimentos, habilidades e competências se tornam indispensáveis tanto na construção do conhecimento, como na construção de relações interpessoais.