Interculturalidade, Filosofia, Linguagem e Sociedade

download Interculturalidade, Filosofia, Linguagem e Sociedade

of 13

Transcript of Interculturalidade, Filosofia, Linguagem e Sociedade

  • 7/30/2019 Interculturalidade, Filosofia, Linguagem e Sociedade

    1/13

    Conexo Comunicao e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 4, n. 8, p. 117-129, jul./dez. 2005 117

    TEORIADACOMUNICAO:INTERCULTURALIDADE, FILOSOFIA,

    LINGUAGEMESOCIEDADEAlberto Efendy Maldonado*

    Resumo: A teoria da comunicao problematizada em termos depesquisa terica/epistemolgica em dilogo com os pensamentos dafilosofia analtica. (WITTGENSTEIN, PITKIN, HALLER). O artigoprocura estabelecer relaes entre pensamento, modos de vida,sentimentos e discurso numa perspectiva metodolgico-crtica quecontribua para a formulao de problemas tericos em comunicao. A

    prxi sfilosfica est situada no mundo intercultural dos fluxos sociaiscontemporneos; no respeito s alteridades epistmicas numaconfluncia transformadora.

    Palavras-chave: teoria; comunicao; pensamento; interculturalidade;sociedade.

    Abstract: Communication theory is investigated in terms of theoretical /epistemological research while dialoguing with thoughts belonging tothe analytical philosophy (Wittgenstein, Pitkin, H aller). This paper tries

    * Doutor em Cincias da Comunicao pela USP. Ps-Doutor em Cincias da Comunicao pela UAB.Coordenador do Grupo de Pesquisa PROCESSOCOM (Unisinos/Capes/CNPq). Professor/Pesquisador noPrograma de Doutorado e Mestrado em Comunicao (Unisinos). Editor da Revista Fronteiras/Estudos Miditicosdo PPGCC Unisinos. Professor-Visitante em universidades da Amrica Latina, Brasil e Europa.Consultor das revistas acadmicasComunicao& Educao(USP);Cadernos de Pesquisa(ESPM); Communicare(Csper Lbero) eCiberlegenda(UFF). Pesquisador no Observatrio e Grupo de Pesquisa MIGRACOM (UAB Espanha). Coordenador do GT Teoria da Comunicao INTERCOM, 1998-2000.Fundador do GT Epistemologia da Comunicao COMPS 2000. Autor de textos de referncia em teoria,metodologia, epistemologia e pesquisa miditica.

  • 7/30/2019 Interculturalidade, Filosofia, Linguagem e Sociedade

    2/13

    118 Maldonado, Alberto Efendy. Teori a da comunicao: intercul turalidade,...

    to establish some relations among thought, ways of living, feelings, anddiscourse in a critical methodological perspective that may contribute forthe formulation of theoretical problems in communication. Philosophicalpraxis is located in the intercultural world of contemporary social flow;in the respect for epistemic alteri ty in a transforming confluence.

    Key words: theory; communication; thought; intercultural; society.

    A COMPREENSOINTERCULTURAL

    A problemtica do conhecimento nas cincias sociais com relao a diferentessociedades e contextos culturais apresenta um conjunto de questes e aspectos de singu-lar interesse para a reflexo e o debate. Uma pergunta importante sobre isso a seguinte: possvel, ou no, a compreenso intercultural?Os antroplogos, socilogos, filsofos,

    lingistas, etc. tomam posies divergentes conforme sua resposta, seja negativa oupositiva. De fato o logos ocidental hegemnico continua avaliando outros universos dediscurso situando-se como o nico universo verdadeiro.

    Esse tipo de argumentao no permite o desenvolvimento de pensamentosquestionadores dos logocentrismoseuropeus e estadunidenses, j que no consideraas diferenas contextuais entre os discursos explicativos sobre sociedades diferentes(o objeto real dinmicocondiciona e participa na delimitao do objeto de conheci-mento). imprescindvel fortalecer a compreenso de que essas diferenas gerampercursos (construes lingsticas) distintos para explicar e avaliar as sociedades

    em questo. No existe um nico discurso verdadeiro, h alternativas que depen-dem da realidade cultural na qual so construdas.E aprofundando esse carter dediferenaeunidade, afirmamos, em concor-

    dncia com as reflexes epistmicas contemporneas, que a cincia existe numcontexto cultural; quem no conhece as regras do jogonessa dimenso no sercapaz de organizar um discurso de relevncia histrica.

    A possibilidade de compreenso intercultural fundamentada na pesquisahistrica da produo cientfica que mostra que existe algo parecido a una co-munidad de racionalidad, la cual seria compartida por todos los hombres.

    (WINCH, 1970). Nessa linha de pensamento, vislumbra-se que a humanidadeconfigurou, entre outras, uma cultura mundial pluralista (WINCH, 1970), queaprende daexperincia e especialmente dos erros.

    As pesquisas tericas dos pesquisadores analticos Wittgenstein (1988),Winch (1970), Pitkin (1984) e Habermas (1999) contribuem sustentao deuma epistemologia crtica transformadora ao fundamentar a existncia da possibi-lidade de um conhecimento interculturalmediante a sistematizao de argumentosque tecem confluncias alm das diferenas que distinguem uma cultura de outra.

  • 7/30/2019 Interculturalidade, Filosofia, Linguagem e Sociedade

    3/13

    Conexo Comunicao e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 4, n. 8, p. 117-129, jul./dez. 2005 119

    A histria e a sociologia da cincia mostram a seu e a nosso favor, que existemsimilitudes epistmicas de carter mundial.

    Na conjuntura intelectual contempornea, no incio do sculo XXI, observa-mos a intensificao dosfluxosculturais, tanto em termos de bens simblicos quan-to no deslocamento de dezenas de milhes de pessoas entre os vrios continentes.Considerando isso e em interlocuo com as propostas analticas, podemos e expe-rimentamos a existncia de reformulaes significativas na produo cientfica emcincias sociais e comunicao.

    S o choque de outras perspectivas e outros ordenamentos tericos tem permi-tido pensar cientificamente as sociedades, superando ortodoxias e modas etnocntricas.O impacto supe uma miscigenao e, por conseguinte, a presena de modos discur-sivos e compreenses de outra cultura presentes na nossa. O isolamento e o purismocultural so pouco provveis num mundo em crescente inter-relao.

    Supor, a priori, a prpria sociedade (uma configurao social determinada)

    como instrumento de medida e referente de correo, um enunciado que contmuma forte carga etnocntrica. Perguntemo-nos, por exemplo, como corrigir cren-as ou costumes de vida diferentes, que simplesmente no tm parmetros de com-parao porque seu desenvolvimento histrico-cultural-ecolgico outro. Essascorrees interculturais supem que h um referente correto. Ser uma pretensopertinente pretender disciplinar num formato, modelo ou matriz lgica, contedosrelevantes produzidos em outras configuraes histrico-culturais?Pensemos emcomo comparar e corrigir erros entre o pensamento cientfico maiae o pensa-mento cientfico grego. Nesse sentido, importante a observao de Wittgenstein

    (1988) com respeito aos pensadores ocidentais: eles no compreendem a magia deoutros povos; muitas vezes captam a maioria das regras dos jogos de outras culturas,porm no conseguem compreender o espritodo jogo, a essncia vital, ldica,filosfica, agonstica, epopica e dramtica desses jogos.

    importante pensar que as formas de vida, os discursos e as linguagens noso simplesmente construes racionais que se resolvem mediante a compreensode sua estrutura formal interna. Wittgenstein prope a seguinte reflexo em relaoa essa falncia formalista:

    544. Quando a saudade fala de dentro de mim Ah, se ele viesse!, o sentimento conferesignificado s palavras. Mas ele confere s palavras isoladas os seus significados?Poder-se-ia, no entanto, dizer tambm, o sentimento confere verdades palavras. E voc vcomo os conceitos aqui fluem um no outro. (WITTGENSTEIN, 1994, p. 197).

  • 7/30/2019 Interculturalidade, Filosofia, Linguagem e Sociedade

    4/13

    120 Maldonado, Alberto Efendy. Teori a da comunicao: intercul turalidade,...

    AS FORMASDEVIDA NOSO DADAS

    A importncia que tem o conceito de formas de vidapara a concepowittgensteniana da linguagem e para a reflexo nas cincias sociais e comunicaooferece caminhos de produo terica instigantes:

    Wittgenstein formulou o seguinte enunciado: [...] imaginar uma linguagemsignifica imaginar uma forma de vida [...]. E ele no construiu uma definio ntida doque so as formas de vidaou os jogos de linguagem, porque um tipo de formalizaonessa tica seria redutora da multidimensionalidade de combinaes possvel:

    71. Pode-se dizer que o conceito jogo um conceito de contornos imprecisos. Mas um conceito impreciso , por acaso, um conceito? Uma fotografia desfocada, por acaso, o retrato de uma pessoa?Bem, pode-se substituir sempre com vantagemum retrato desfocado por um ntido? Freqentes vezes no o retrato desfocadoprecisamente aquilo de que mais precisamos?1 (WITTGENSTEIN, 1994, p. 54).

    Wittgenstein enfrenta, assim, a tendncia a reduzir as formas lgicas e aracionalidade ao mbito da lgica axiomtica. As definies aristotlicas nas cin-cias sociais, quando trabalhadas como verdades absolutas, confundem percursos,e seus intentos de formalizao tericos produziram propostas retricas sofisticadasde profundo sentido etnocntrico.

    As linguagens tm diferentes racionalidades, suas lgicas so de distintostipos, mas a complexidade no s se d nas diferenas, tambm se d na combi-nao, j que na realidade as regies so constitudas por uma combinao de re-

    gies. A definio das fronteiras entre essas regies depende com freqncia daperspectiva com a qual assumida a pesquisa.Essa caracterstica de forma nevoadapermite s formas de vida, aos jogos de

    linguagem, e a outras formas no-axiomticas(no-formais), ter sua prpria racio-nalidade. As inconsistnciase os paradoxosso aspectos essenciais de sua confi-gurao; as classificaes totalizantes no tm possibilidade de montagem, j queresultariam num despropsito nada criativo.

    Asformas de vidaso um resultado histrico sociocultural; portanto, no soconcesses de um poder absoluto, nem produtos naturais. So fabricaes culturais

    tipicamente humanas em movimento e transformao. Na pesquisa terica comu-nicacional e social, questionar os saberes dados, completos, totais uma posturabsica e crucial da gerao de conhecimento substantivo e vivo.

    1 71. Puede decirse que el concepto de juego es un concepto de bordes borrosos. Pero es un concepto borrosoen absoluto un concepto?. Es una fotografa difusa en absoluto una figura de una persona?S; puede siemprereemplazarse con ventaja una figura difusa por una ntida?No es a menudo la difusa la que justamentenecesitamos? (WITTGENSTEIN, 1988).

  • 7/30/2019 Interculturalidade, Filosofia, Linguagem e Sociedade

    5/13

    Conexo Comunicao e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 4, n. 8, p. 117-129, jul./dez. 2005 121

    As formaes histrico-sociais so produzidas por mltiplas configuraes com-plexas; suas possibilidades de combinao, seleo, segregao, coerncia, consistncia,inconsistncia, incoerncia, etc. no podem ser quantificadas ou definidasnitidamente.As alternativas, variaes e definies, num jogo de xadrez, futebol, tnis, basquete, etc.,so mltiplas. As possibilidades de construo de um discurso em qualquer linguagemnatural so, tambm, incomensurveis. A capacidade criativa, o desenvolvimento deestilos de composio, a simplicidade, a beleza, a esttica de uma linguagem no podemser medidos por quantidades aritmticas ou por estatsticas simples.

    Para a clareza numa reflexo terico/metodolgica no se necessita de definiestotalizantes; necessita-se sim de uma perspectiva geral esclarecedora dos casos maisimportantes. Em palavras de Wittgenstein (1998): Nossa gramtica tem uma falta deviso sinptica. A representao sinptica produz a compreenso que consiste em verconexes. Da a importncia de encontrar e de inventar casos intermedirios.

    Essa viso sinpticatorna possvel aprofundar e ampliar nossas potencia-

    lidades criativas; esses jogos construdos e no dados so formas fundamentais ebsicas de auto-expresso criativa. Nosso pensamento, nossas intuies cientficas,nossa qualidade esttica realizam-se atravs desses mltiplos jogos sociais que con-figuram nossa interpretao do mundo, nossa viso de mundo, nossos compro-missos ticos e nossas aes concretas.

    Essencialmente somos uma espcie que adquire capacidades, somos animaislogos, animais ldicos, animais construtores que recebemos um condiciona-mento gentico aberto e muita potencialidade para fabricar. Biologicamente, esseparadoxo de debilidade e fora define nossa essncia: uma contnua tendncia para

    criar, mudar, comunicar e despertar curiosidade.

    UMAVISOABERTAEHISTRICADACINCIA

    O empirismo lgico, em especial o Crculo de Viena, trabalhou a hiptese daunidimensionalidademetodolgica de todas as cincias; e o suposto de que erafatvel construir uma linguagem cientfica nica, na qual podiam expressar-se todas

    as linguagens cientficas. Essa tentativa fracassou porque os argumentos centrais eas premissas sobre o que a linguagem tinham uma viso geral, de conjunto,formalista; que, apesar de todo o esforo e inteligncia utilizados, no conseguiramformalizar o seu modelo e demonstraram os limites da lgica axiomtica e dasalternativas formalistas para estruturar problemticas sociais e comunicacionais.

    importante lembrar que foi Neurath se pudermos acreditar em Carnap quem repetidamente apontou o fato de que mesmo a linguagem ela prpria um fenme-no que est dentro do mundo, ao invs de algo que o influencia de fora. (HALLER,

  • 7/30/2019 Interculturalidade, Filosofia, Linguagem e Sociedade

    6/13

    122 Maldonado, Alberto Efendy. Teori a da comunicao: intercul turalidade,...

    1990, p. 28). Isso significa que o dadoe o a prioricomo fundamentosfilosficos paraexplicar a linguagem foram seriamente questionados. Haller, no seu livroWittgenstein e afilosofia austraca: questes, traz reflexes importantes sobre esse aspecto terico:

    Realmente, desde 1908, ele defendeu uma forte argumentao duhemiana em favor

    de uma viso holstica e histrica de cincia [...]. Os pontos centrais em que Neurathseguiu o passado de Duhem foram, primeiro, que mais de um sistema autoconsis-tente de hipteses pode satisfazer um dado conjunto de fatos e, segundo, que qual-quer teste de uma teoria refere-se a uma rede completa de conceitos e no a conceitosque possam ser isolados. (1990, p. 28).

    Haller, aprofundando o raciocnio, continua:

    Eu apelidei o princpio de Neurath. Este princpio certamente derivado deDuhem e diz: se aceitamos uma viso holstica das teorias, ento estamos sempre nafeliz posio de ter duas opes com referncia a uma proposio, que no est coe-rente com o sistema total: podemos mudar ambos, ou a proposio que gostaramosque fosse coerente com o sistema, ou o sistema. (1990, p. 50).

    Vrios sistemas autoconsistentes de hipteses podem ser vlidos para explicar efundamentar um conjunto de fatos. Isso significa que a construo de uma teoria nica,totalizante e excludente, uma aspirao absurda; dado que em outro momento, ousimultaneamente, aparecer um sistema diferente que ser coerente e consistente com osfatos e explicar essa rea de conhecimento de maneira forte, bela e penetrante.

    Essa viso aberta e confluente das teorias nega a possibilidade de trabalhar

    com hipteses ou conceitos isolados. As demonstraes, refutaes, fundamen-taes e aprofundamentos metodolgicos tm que ser trabalhados como tecidos. Oconjunto de relaes e combinaes entre eles (conceitos, hipteses) permite con-figurar teorias que apresentam uma beleza abrangente.

    Por outro lado, uma concepo aberta, histrica, crtica da cincia amplia asopes ou alternativas de compreenso. Ao no acreditar numanica explicao, opercurso metodolgico pode mudar o sistema, mudar a hiptese ou mudar ambos.Uma crise gnosiolgica, trabalhando com essa perspectiva, provocaria uma varia-o de orientao e no o fimdas possibilidades de conhecimento.

    A formao de esquemas interpretativos sinpticos/amplos para estruturar asproblemticas tericas, ou suas ocorrncias no tempo, a partir de uma perspectivaaberta/produtiva, torna possvel realizar mltiplas construes e, tambm, configu-rar quadros de anlise sistemticos seguindo diferentes percursos tericos.

    Essa amplitude, liberdade e coerncia so contrrias aos esquemas totalizan-tes que se propem uma interpretao acabadasobre o universo. Uma opo abertafecunda as alternativas metodolgicas e fortalece uma compreenso aprofundadadas relaes entre problemas tericos especficos e questes epistemolgicas gerais.

  • 7/30/2019 Interculturalidade, Filosofia, Linguagem e Sociedade

    7/13

    Conexo Comunicao e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 4, n. 8, p. 117-129, jul./dez. 2005 123

    A PRAGMTICADE WITTGENSTEIN

    importante salientar que Wittgenstein, nas suas investigaes filosficas damaturidade, no pretendeu estruturar um quadro de categorias; no seu raciocnio preciso optar por uma anlise que considere a multiplicidade das formas de cons-truo das afirmaes (percurso multidimensional). Essa variedade tomada comobase de explicao, e as condies da experincia so concebidas como uma alter-nativa entre mltiplas. (WITTGENSTEIN, 1994, p. 294).

    A necessidade lgica a priori de Kant est longe da inspirao deWittgenstein. Na sua perspectiva pragmtica, a atividade, a ao, as prticas, oscostumes, as repeties, as normalizaes e as regularizaes dessas atividades efundamentalmente dessas prticas so a base da cognio.

    Sua pragmtica no se restringe ao empirismo abstrato; ela aprofunda, tam-bm, a dimenso psicolgica e insere na sua reflexo os aspectos emotivos e espiri-tuais que intervm na compreenso. Lembremos a reflexo de Wittgenstein, nopargrafo 544 dasInvestigaes filosficas: [...] o sentimento confere significado spalavras [...] o sentimento... confere verdade s palavras [...]. (1994, p. 197).

    A cognio e a compreenso, nessa perspectiva, no so as conseqncias deprocessos lgicos formais (existentes numacoisa em si: a priori); so, sim, o produtode uma atividade humana sociocultural que inclui aspectos sociais, culturais,psicolgicos e intelectuais de carter complexo e amplo. Portanto, o conhecimentono uma ao racionalistaacabada, mas uma forma de vida que tem como uma desuas expresses centrais a linguagem.

    A IMPORTNCIADALINGUAGEM

    Para Wittgenstein, o trabalho filosfico crtica da linguagem; nasInvestigaesfilosficas, essa compreenso de filosofia est presente, e a definio dereflexoque oautor adota para desenvolver seus argumentos. Porm, essa postura crtica da linguagemteve suas fases e mudanas: num primeiro momento Wittgenstein acreditava na pos-

    sibilidade de construir uma linguagem de signos ideal, que seria uma expresso lgicae filosfica superior, capaz de evitar os erros da linguagem articulada. O intenso esforopara realizar essa tarefa e o fracasso para conseguir esse objetivo levaram Wittgenstein aformular suas Investigaes filosficas, nas quais expe os seus resultados da pesquisaterica realizada no percurso da prpria vida; nesse livro sistematiza os raciocnios sobresuas novas teses com relao linguagem: jogo, atividade, forma de vida, ao, lgicadiferente da linguagem matemtica. So alguns aspectos que aprofunda e constri comocomponentes configuradores da sua compreenso filosfica/comunicacional. So a

  • 7/30/2019 Interculturalidade, Filosofia, Linguagem e Sociedade

    8/13

    124 Maldonado, Alberto Efendy. Teori a da comunicao: intercul turalidade,...

    vida social e o sentimento/esprito profundo da espcie humana que entram na suaargumentao; os sistemas de regras, as normas e os nexos estruturais so concebidosnuma confluncia antropolgica transcendente. Na teoria de Wittgenstein, na suapragmtica comunicacional, incluem-se tambm o contexto, as circunstncias, assituaes, os interlocutores, a historicidadee a culturacomo elementos substanciais na

    compreenso do que a linguagem, quebrando, assim, as concepes racionalistas,formalistase ortodoxas da filosofia da linguagem.

    Quem fala?, para quem fala?, em que situao fala?, com que emoo fala?,em que meio ambiente fala? um conjunto de elementos que Wittgenstein siste-matizou e trabalhou com singular aprofundamento e beleza.

    Em termos epistemolgicos, Haller sublinha algumas proposies relevantesde Wittgenstein para o pensar filosfico em comunicao:

    A filosofia no um conjunto de doutrinas, mas uma atividade; que os resultados filosficos

    no so encontrados em proposies filosficas, mas no esclarecimento de proposies;que a filosofia no uma cincia natural e que no se comporta hipottico-empiricamente;essas crenas, j concebidas noTractatus, no s permanecem isentas de autocrtica, mas sotambm repetidas na fase posterior, em variaes diferentes. (1990, p. 78-79).

    A relao entre linguagem e pensamento abordada por Wittgenstein comointerconexo profunda, e, simultaneamente, como diferena substancial. Na suaanlise, ele critica o que se denota como a concepo agostiniana de linguagem,que foi paradigmtica durante quase dois milnios.

    32. Acredito que podemos dizer ento: Santo Agostinho descreve a aprendizagem dalinguagem humana como uma criana que chegasse a um pas estrangeiro e noentendesse a lngua do pas; isto : como se ela j tivesse uma lngua, s que no esta.Ou tambm como se a criana j fosse capaz de pensarmas no ainda de falar. Epensar significaria aqui algo como: falar para si mesmo. (1994, p. 32).2

    A premissa agostiniana que supe a linguagem como dadana mente humana criticada mediante uma analogia esclarecedora (os supostos do sbio africano so subme-tidos anlise e refutao com uma argumentao contundente): A denominao no ainda nenhum lance no jogo de linguagem to pouco quando a colocao de uma pea

    de xadrez um lance no jogo de xadrez. (WITTGENSTEIN, 1994, p. 42).3

    2 Y ahora podemos, creo yo, decir: Agustn describe el aprendizaje del lenguaje humano como si el nio llegasea un pas extrao y no entendiese el lenguaje del pas; esto es como si ya tuviese un lenguaje, slo que no ese. Otambin: como si el nio ya pudiera pensar, slo que no todava hablar. Y pensar quera decir aqu algo como:hablar consigo mismo. (WITTGENSTEIN, 1994).

    3 Nomear no ainda em absoluto uma jogada no jogo da linguagem como tampouco colocar uma pea dexadrez uma jogada no xadrez. (WITTGENSTEIN, 1994).

  • 7/30/2019 Interculturalidade, Filosofia, Linguagem e Sociedade

    9/13

    Conexo Comunicao e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 4, n. 8, p. 117-129, jul./dez. 2005 125

    Pensar e falar so questes diferentes j que a 512. A linguagem verbal admi-te combinaes de palavras sem sentido. (WITTGENSTEIN, 1994, p. 189). Paraque uma frase tenha sentido, no suficiente diz-la, preciso tambm poder pen-s-la. Essa distino em comunicao crucial: produzimos e emitimos milhes demensagens cotidianamente; afirmamos o carter pedaggico de um conjunto con-sidervel da produo miditica; debatemos sobre os campos de efeitos de sentidogerados pelas inter-relaes mdia/pblicos, porm pouco nos preocupamos emrefletir e estruturar estratgias e produes que articulem sistemas de significao epensamento suscitador. Por que o entretenimentoest em muito reduzido a rituaisde preguia mental. No campo terico em comunicao, temos inmeros exem-plos de retrica voluptuosa sem sentido, palavras juntadas em formas atrativas ouimpressionantes, muitas vezes retalhos tecidos com habilidade de fragmentos teri-cos que no se vinculam com os processos reais sociopolticos dos contextos nosquais produzimos o pensamento terico. Pensamento, fala e intenes so elemen-

    tos profundamente ligados e, tambm essencialmente diferentes:

    A inteno com a qualse age no acompanha a ao, to pouco quanto o pen-samento acompanha a fala. Pensamento e inteno no so nem articulados neminarticulados, no podem ser comparados nem com um som isolado que se fazouvir ao agir ou falar, nem com uma melodia. Falar (com som ou em silncio) epensar no so conceitos idnticos; mesmo que na mais estreita conexo.(WITTGENSTEIN, 1994, p. 281).4

    A linguagem fundamental para o entendimento, mas no o entendi-

    mento. Os propsitos ajudam-nos a explicar os discursos, mas no so os discursos.E a compreenso e a veracidade das expresses no possvel demonstr-las me-diante procedimentos lgicos.

    A CAPACIDADEINTERPRETATIVA

    Os tecidos de objetos, fenmenos, conceitos, palavras ou hipteses no so

    estruturas acabadasnessa caminhada que compartilhamos com Wittgenstein. Todacaracterizao ou definio so interpretaes, so um ponto de vista, um olhar,uma perspectiva determinada.

    4 El propsito con el cual se acta no acompana a la accin, como tampoco el pensamiento acompana al discurso.El pensamiento y el propsito no estn articulados ni inarticulados, no se pueden comparar ni a un sonidoaislado, que sonara durante la actuacin o el discurso, ni a una melodia.Hablar (ya sea en alta voz o en silencio)y pensar no son conceptos equiparables; si bien estn en ntima conexin. (WITTGENSTEIN, 1994).

  • 7/30/2019 Interculturalidade, Filosofia, Linguagem e Sociedade

    10/13

    126 Maldonado, Alberto Efendy. Teori a da comunicao: intercul turalidade,...

    Quando uma teoria, ou um corpo de conceitos no pode explicar uma questo necessrio procurar outra dimenso. Ele utiliza nasInvestigaesos exemplos da cabeapato-coelho, da cruz preta-branca, da figura triangular, dos nmeros imaginrios.Nesses exemplos, Wittgenstein (1994, p. 255-270) mostra que um mesmo objeto temmltiplas (ou pelo menos vrias) faces ou aspectos que o caracterizam. Depende daperspectiva que tenha o pensador para estud-lo e observ-lo.

    Para aprofundar e ampliar a compreenso de algo, precisa-se desenvolverumacapacidade imaginativa que seja capaz de encontrar o maior nmero de facesde um objeto, ou a maior quantidade de fatores de uma problemtica.

    O recurso epistmico demudana de dimenses um elemento central napossibilidade metodolgica para sair de inconsistncias reiteradas. Quando noencontramos caminhos de resoluo num tecido ou conjunto de hipteses econceitos, possvel mudar a hiptese, mudar o conjunto, ou ambos. Em certoscontextos de pensamento, em especial os lineares, impossvel adiantar a com-

    preenso de novas complexidades.Como formula o pensamento wittgensteniano, para sair de um estado de

    confuses no precisamos de regras, ou definies, mas de umaperspectiva clarae abrangente dos casos relevantes. necessrio desenvolver a capacidade deprojeo de nossosconceitos indo para o esprito profundo das problemticas;eesta capacidade estprofundamenteligada com apotencialidade de imaginaoque alcancemos.

    Assim como os jogos de linguagem so tremendamente variados, tambm ospercursos de reflexo e pesquisa so mltiplos. No existe, nem pode existir ummtodo acabadoque resolva todos os nossos problemas. A realidade tem mltiplasdeterminaes, suas faces so inumerveis; as combinaes de conceitos paraexplic-la e as redes interpretativas que se podem construir atingem somente umaparte dos infinitos conjuntos e sistemas que tentamos explicar. Em face de todifcil situao, Hanna Pitkin numa perspectiva wittgensteniana d a seguintesada esclarecedora:

    La pregunta bsica conceptual respecto de la relacin entre las palabras y el mundono admite una nica respuesta consistente; pero puede ser reemplazada por todo unconjunto variado de preguntas ms especficas que tienen respuestas consistentes yque son ilustradora. (1984, p. 172).5

    5 A pergunta bsica conceitual com respeito relao entre as palavras e o mundo no admite uma nica respostaconsistente, mas pode ser substituda por todo um conjunto variado de perguntas mais especficas que tmrespostas consistentes e que so ilustradoras. (Traduo livre do autor deste artigo.)

  • 7/30/2019 Interculturalidade, Filosofia, Linguagem e Sociedade

    11/13

    Conexo Comunicao e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 4, n. 8, p. 117-129, jul./dez. 2005 127

    O avano na compreenso requer uma viso sinptica em palavras deWittgenstein que seja capaz de estabelecer relaes entre as questes importantes deuma problemtica. Nas problematizaes tericas em comunicao, os objetos deman-dam a organizao de componentes (idias, argumentos, raciocnios, noes, hiptesese tecidos conceituais) em termos da necessidade do objeto. Esses construtos tericossaem do objeto, no sentido que a sua existncia concreta delimita e condiciona nossasabstraes e flui no mundo da vida no sentido que os pensamentos gerados a partir dasua problematizao e produo transcendem o objeto particularmostrando nexos,aspectos e qualidades que so comuns a conjuntos de problemas.

    Para abordar um problema com profundidade, precisa-se de um alto grau dehumildade, j que necessrio partir do entendimento das limitaes epistmicas.Isso no supe uma atitude de fraqueza ou conservadorismo em relao pesquisa.A humildade, para ser criativa, combina-se com a certeza da importncia dotrabalho rigoroso, e com a paixo por construir algo relevante.

    A COMPREENSONOUMPROCESSOMENTAL

    O tempo da compreenso distinto do tempo cronolgico, histrico. Tampouco simplesmente o tempo lgicoformal. A compreenso no pode ser definida como umprocesso porque ela no resultado de fases compreensivas atravs das quais (linear-mente) se alcana o objetivo de compreender. Wittgenstein aconselha:

    Tente uma vez no pensar na compreenso como processo psquico! queesteo modo de falar que o confunde. Mas pergunte-se: em que caso, em que cir-cunstncias, dizemos agora sei continuar?quero dizer, quando a frmula me ocor-reu. No sentido em que h para a compreenso processos caractersticos (tambmprocessos psquicos), a compreenso no um processo psquico. (Diminuir e au-mentar uma sensao de dor, ouvir uma melodia, ouvir uma frase: processos ps-quicos.). (1994, p. 88).6

    Essa uma questo epistemolgica e metodolgica interessantssima: para

    alcanar a compreenso, intervm vrios tipos de processos lgico, psquico, social,cultural, institucional, histrico, e da comunidade cientfica. Porm, a compreen-

    6 No pienses ni una sola vez en la comprensin como um proceso mental. Pues sa es la manera de hablar que teconfunde. Pregntate en cambio: en qu tipo de caso, bajo qu circunstancias, decimos ?,quiero decir, cuando se me ha ocurrido la frmula.- En el sentido en que hay procesos (incluso procesos mentales)caractersticos de la comprensin, la comprensin no es un proceso mental. (La disminucin y aumento de unasensacin dolorosa, la audicin de una meloda, de una oracin: procesos mentales). (WITTGENSTEIN, 1988).

  • 7/30/2019 Interculturalidade, Filosofia, Linguagem e Sociedade

    12/13

    128 Maldonado, Alberto Efendy. Teori a da comunicao: intercul turalidade,...

    so em si no um processo; ela se d num momento singular no qual o domniode uma problemtica se expressa na capacidade de exposio de um discurso con-sistente sobre o assunto.

    O percurso metodolgico, efetivo, para refletir a compreenso, seguindoWittgenstein, deve ser trabalhado a partir de uma pergunta-chave: Se algo tem queestar atrs da articulao da frmula, trata-se ento de certas circunstnciasque me

    justificam dizer que sou capaz de continuar, caso a frmula me ocorra. (1994, p. 88).7

    Voltamos desse modo a ter uma perspectiva clara dos casos relevantes, e tam-bm a refletir sobre as condies histricas nas quais esse conhecimento foi alcanado.

    REFERNCIAS

    HALLER, Rudolf.Wittgenstein e a fi losofia austraca:questes.So Paulo: Edusp, 1990.WINCH, Peter. A idia de uma cincia social e sua relao com a fi losofia. So Paulo:Nacional, 1970.

    MALDONADO, A. Efendy. Teorias da comunicao na Amrica Latina. So Leopoldo:Unisinos, 2001.

    PITKIN, Hanna.Wittgenstein: el lenguaje, la poltica y la justicia.Madrid: Centro deEstudios Constitucionales, 1984.

    WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigaes fi losficas. Petrpolis: Vozes, 1994.

    ______. Investigaciones fi losficas. Barcelona: Crtica; Mxico: Instituto de InvestigaesFilosficas Unam, 1988.

    Referncias de fundamentao

    ADORNO, Theodor W. Experincias cientficas nos Estados Unidos. In: Consignas.Buenos Aires: Ammorrortu, 1973.

    AREND, Hannah. Origens do totali tarismo/anti-semiti smo, imperi ali smo, totali tarismo.So Paulo: Companhia das Letras, 1989.

    BACHELARD, Gastn. Epistemologie. Paris: Presses Universitaries de France, 1974.BEN-DAVID, Joseph. O papel do cient ista na sociedade. So Paulo: Pioneira, 1974.

    BLIKSTEIN, Izidoro.Kaspar Hauser e a fabricao da realidade. So Paulo: Cultrix, 1985.

    7 En qu tipo de caso, bajo que circunstancias, decimos ?, quiero decir, cuando se me haocurrido la frmula. (31 WITTGENSTEIN, 1988).

  • 7/30/2019 Interculturalidade, Filosofia, Linguagem e Sociedade

    13/13

    Conexo Comunicao e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 4, n. 8, p. 117-129, jul./dez. 2005 129

    BOURBAKI, Nicolas. Elementos de historia de las matemticas. 2. ed. Madrid: Alianza, 1986.

    BRITTON, Jack R.; BELLO, Ignacio. Matemticas contemporneas. 2. ed. Mxico:Harla, 1982.

    BRONOWSKI, Jacob. O senso comum da cincia. So Paulo: Itaitaia, 1977.

    BUNGE, Mario. Epistemologia. So Paulo: T.A. Queiroz, 1980.CARRILHO, Manuel Maria et al. Retrica e comunicao. Porto: Edies Asa, 1994.

    CASIRRIER, Ernest.El problema del conocimiento. Mxico: Fondo de Cultura Econ-mica, 1986.

    GORTARI, Eli de. Siete ensayos sobre la ciencia moderna. Mxico: Grijalbo, 1969.

    ______. Lgica General. Mxico: Grijalbo, 1965.

    ______.Introduccin a la lgica dialctica. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1956.

    HABERMAS, Jrgen. Teora de la accin comunicativa. Madrid: Taurus, 1999.

    HARR, R. (Org.). Problemas da revoluo cientfica.So Paulo: Itaitaia, 1976.KNELLER, George F.A cincia como atividade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.

    MARX, Karl. Contribuio crtica da economia poltica.So Paulo: Martins Fontes,1977.

    ______.O Capital. So Paulo: Nova Cultural, 1985.

    PITKIN, Hanna.Wittgenstein: el lenguaje, la poltica y la justicia.Madrid: Centro deEstudios Constitucionales, 1984.

    POPPER, Karl. A racionalidade das revolues cientficas. In: HARR, R. (Org.).Problemas da revoluo cientfica. So Paulo: Itaitaia, 1976.WALLERSTEIN, Immanuel; PRIGOGINE, Peter J. Taylor et. al. Para abrir as cinciassociais. So Paulo: Cortez, 1996.

    WICH, Peter. A idia de uma cincia social e sua relao com a fi losofia. So Paulo: Na-cional, 1970.

    WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigaes fi losficas. Petrpolis: Vozes, 1994.

    ______. Investigaciones fi losficas. Barcelona: Crtica, 1988.