Insurgência impressa: Uma análise do periodismo no primeiro movimento de independência mexicano...

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1 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL LAÍS OLIVATO Insurgência impressa: Uma análise do periodismo no primeiro movimento de independência mexicano (1810-1814) São Paulo 2012

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Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

Transcript of Insurgência impressa: Uma análise do periodismo no primeiro movimento de independência mexicano...

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL

    LAS OLIVATO

    Insurgncia impressa:

    Uma anlise do periodismo no primeiro

    movimento de independncia mexicano (1810-1814)

    So Paulo

    2012

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL

    Insurgncia impressa:

    Uma anlise do periodismo no primeiro movimento

    de independncia mexicano (1810-1814)

    LAS OLIVATO

    Dissertao de Mestrado apresentada ao

    Programa de Ps-Graduao em Histria

    Social do Departamento de Histria da

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias

    Humanas da Universidade de So Paulo.

    ORIENTADORA: Prof Dr GABRIELA PELLEGRINO SOARES

    So Paulo

    2012

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    NOME: OLIVATO, Las

    TTULO: Insurgncia impressa:Uma anlise do periodismo no primeiro movimento de

    independncia mexicano (1810-1814)

    Dissertao de Mestrado apresentada ao

    Programa de Ps-Graduao em Histria

    Social do Departamento de Histria da

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias

    Humanas da Universidade de So Paulo.

    Aprovada em:

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. ..............................................................................................................................

    Instituio ...........................................................................................................................

    Julgamento ..........................................................................................................................

    Assinatura ...........................................................................................................................

    Prof. Dr. ..............................................................................................................................

    Instituio ...........................................................................................................................

    Julgamento ..........................................................................................................................

    Assinatura ...........................................................................................................................

    Prof. Dr. ..............................................................................................................................

    Instituio ...........................................................................................................................

    Julgamento ..........................................................................................................................

    Assinatura ...........................................................................................................................

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    Agradecimentos

    O desenvolvimento desta dissertao tornou-se possvel graas a colaborao e ao afeto

    de inmeras pessoas com quem eu dividi ideias, pensamentos, angstias e conhecimentos nos

    ltimos trs anos. Gostaria de agradecer tanto aqueles que acompanharam de perto as

    dificuldades do trabalho de pesquisa acadmica e seus frutferos resultados, assim como os

    que, com diferentes interesses e generosidades, tornaram mais prazeroso esse processo.

    Primeiramente agradeo minha orientadora, Prof Gabriela Pellegrino Soares, pelo

    acolhimento constante. Suas leituras minuciosas, as crticas, as discusses, a motivao, a

    compreenso e, principalmente, a amizade foram imprescindveis para minha formao.

    Prof Maria Lgia Coelho Prado que fez parte da minha trajetria acadmica desde a

    Graduao. Suas aulas e seu entusiasmo pela Histria da Amrica Latina foram fundamentais

    para minhas escolhas na ps-graduao. Com ela aprendi a me apaixonar cada dia mais pelo

    estudo da Histria e pelo povo latino-americano.

    Aos amigos historiadores e pesquisadores, Vanessa Pacheco, Renan Perondi, Bruno

    Galeano, Marcio Botelho, Lucas Jorge de Freitas, Lorena Leite, Andr Navajas Madio, Rafael

    Viegas, Marina Garcia de Oliveira, Camila Souza Lima, Gyrgy Henyei Neto e Caio Pedrosa

    da Silva interlocutores fiis dessa pesquisa. Foram bons companheiros e, ocasionalmente,

    revisores detalhistas de meus textos.

    Vivian Krauss e Camilla Fontes, pelas madrugadas dedicadas a preciosas discusses

    historiogrficas, a paixo pelo mundo e ao cultivo da amizade. So pessoas inesquecveis.

    s ex-alunas, Livia Orsati e Giovanna Crescitelli, que me ensinaram sobre a

    importncia de ser professora em momentos de dvidas e crises profissionais. Obrigada pelos

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    sorrisos, pelas palavras de afeto, pelo reconhecimento, pelos momentos ldicos e pelo

    conhecimento dividido.

    Aos meus colegas de trabalho, que compartilham diariamente o gosto pela profisso e

    pelo debate acadmico, Patrcia Andrade da Silva, Carolina Gabriel de Paula, Valter Roitman,

    Bruna Renata Cantele, Vanessa Sobrino, Mirtes Timpanaro e Paulo Ramirez.

    Ao meu grande amigo Roberto do Valle, por toda a ajuda tcnica no trabalho com as

    fontes documentais da pesquisa. Pelo carinho, disposio e ateno fundamentais para a

    concluso deste trabalho.

    s minhas amigas, Mayara Zaneli, Fernanda Nogueira e Talita Medinilha pela

    pacincia, compreenso e amor que s os piracicabanos entendem.

    minha irm Luiza Olivato, eterna companheira de vida. Obrigada pelas sugestes

    assertivas, bom-humor, revises e pacincia em todos os momentos.

    Aos meus pais, Luiz e Renata Olivato, minhas referncias sempre. Incentivaram-me a

    seguir meus sonhos e a superar adversidades com amor.

    Por fim, no posso deixar de citar o acolhimento dos mexicanos em viagem para

    pesquisas ao Mxico. Era o primeiro dia do ano de 2010, quando encontrei uma senhora

    indgena muito simples em frente Catedral na Cidade do Mxico. Ela disse viajar de muito

    longe para poder assistir a primeira missa do ano com todos os milhares de mexicanos que ali

    estavam. Pediu que eu permanecesse ao seu lado para sentir, naquele pas estrangeiro, a fora

    de seu povo.

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    Ao povo mexicano.

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    Resumo: A imprensa insurgente encomendada por Miguel Hidalgo e por Jos Morelos,

    durante o movimento de independncia da Nova Espanha, marcou uma ruptura com a

    imprensa oficial no incio do sculo XIX. Ao levantar os problemas sociais do Vice-Reino e

    estratgias para combat-los, configurou um novo espao de debate poltico que respondia

    prioritariamente s urgncias de notcias da guerra e publicao de constantes manifestos em

    que se justificava a causa separatista. Analisar o desenvolvimento dos impressos durante a

    independncia constitui um mecanismo para compreendermos a formao de espaos de

    sociabilidade num momento de debate intenso sobre a formulao de uma identidade

    mexicana. Os jornais revolucionrios podem ser lidos, a partir desta perspectiva, no apenas

    como um lugar de discusso, mas como um elemento que se vincula a outras instncias de

    ao social e estabelece uma comunicao a fim de formar opinies polticas.

    Palavras Chave: Independncia da Nova Espanha Histria do Mxico periodismo

    insurgente

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    Abstract:. The insurgent press demanded by Miguel Hidalgo and Jos Morelos, during the

    independence movement of New Spain, established a rupture with the official media from the

    early 19th

    century. When putting through the light the social problems of the Vice-Reign and

    the strategies to fight against it, a new space for political debate was created, answering

    mainly to the urgency of the news from the war and the publication of constant manifests in

    which the independence is a mechanism for us to understand the formation of places for

    sociability in a moment of intensive debates on the construction of a Mexican identity. The

    revolutionary newspapers can be read, through this perspective, not only as a place for

    arguments, but also an element connected to other social practices and establish a

    communication with the mission to create political opinion.

    Key words: Independence of New Spain - Mexican History insurgence periodism

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    SUMRIO

    INTRODUO ................................................................................................................. p. 13

    1: A escrita da independncia

    1.1 O grito de Dolores ........................................................................................... p. 21

    1.2 Novos debates e perspectivas ..........................................................................p. 36

    2: Revoluo impressa

    2.1 A imprensa na Nova Espanha ......................................................................... p. 53

    2.2 Construo do periodismo insurgente ............................................................. p. 64

    2.3A mediao das ideias polticas na construo da luta .................................... p. 79

    3: As ideias insurgentes

    3.1 A dinmica simblica .......................................................................................p. 90

    3.2 O rei oculto versus a Ptria Americana ........................................................... p. 91

    3.3 A proteo da Virgem e as luzes da razo .....................................................p. 102

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ...........................................................................p. 114

    ANEXOS .......................................................................................................................... p. 121

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    ndice de imagens

    Figura 1:

    Mapa com as principais localidades citadas no texto ..........................................................p. 12

    Figura 2:

    Vicente Riva Palacio, Julio Zrate (1880) "Mxico a travs de los siglos" Tomo III: "La guerra

    de independencia" (1808 - 1821) p. 20

    Figura 3:

    Semanrio Americano, nmero vinte e trs do dia 20 de dezembro de 1812.......................p. 52

    Figura 4:

    El Correo Americano del Sur nmero quatro do dia 18 de maro de 1813..........................p. 89

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    Introduo

    As reflexes aqui apresentadas buscam compreender a formao dos canais de

    mediao poltica e cultural entre os lderes rebeldes e a populao da Nova Espanha durante

    o primeiro movimento de independncia mexicano. Por meio da anlise de uma srie de

    jornais publicados entre 1810 e 18141, possvel traar um panorama da formao do dilogo

    entre diferentes grupos sociais no contexto de ruptura com o Antigo Regime para a

    configurao de uma dinmica popular luta emancipacionista.

    A insurgncia iniciada h duzentos anos pelo Padre Miguel Hidalgo de Costilla e,

    posteriormente, continuada por Padre Jos Maria Morelos y Pavn e Igncio Lpez Rayn

    coloca o problema da construo de um espao de debate e de uma nova conscincia poltica.

    O questionamento soberania poltica, s hierarquias sociais, ao problema da liberdade de

    imprensa e subordinao da populao indgena aparecem em evidncia nessa conjuntura.

    O momento foi crucial para favorecer a mobilizao dos setores populares. Com a

    captura de Fernando VII pelos franceses, instaurou-se em todo o Imprio uma discusso sobre

    o papel da populao como instncia soberana de exerccio do poder. Na Nova Espanha, o

    movimento de Hidalgo e Morelos dialogava diretamente com essa questo.

    Durante a trajetria da luta, os curas ilustrados contaram com a ajuda de homens

    letrados que apoiaram a insurgncia e publicaram textos para formular um ponto de encontro

    possvel entre o discurso promovido por criollos em relao aos anseios dos setores

    populares, considerando sua participao neste momento. Atuando como mediadores polticos

    e culturais, os editores dos jornais insurgentes produziram um interessante material impresso

    1 El Despertador Americano (Guadalajara, 1810-1811), El Ilustrador Nacional (Sultepec, 1812)

    substitudo pelo El Ilustrador Americano (1812-1813), Semanario Patriotico Americano (Huichapa y

    Tlalpujahua, 1812, 1813), Gazeta del Gobierno Americano, en el Departamento del Norte (Yuriria, 1812) e o

    Correo Americano del Sur, (Oaxaca, 1813).

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    que evidenciava os principais debates polticos do momento de formao da luta

    emancipacionista. O dilogo destes com os setores populares foi capaz de unir os diferentes

    setores sociais, que permaneceram afastados durante os sculos da colonizao.

    Nos ltimos anos, os estudos sobre populaes indgenas nas Amricas tm se

    desenvolvido numa perspectiva histrico-antropolgica que tende a valorizar os ndios como

    sujeitos ativos dos processos histricos nos quais se inserem2. Assim, ao longo desta

    dissertao, pretendo explorar o dilogo entre os editores ilustrados e a populao como

    fundamental na formao da rebelio. Para tanto, necessrio traar um quadro panormico

    sobre como os mestios indgenas se integraram ao movimento inicialmente liderado por

    Hidalgo e o momento histrico que permitiu a ampliao da participao popular.

    De antemo, considero que o processo de emancipao da Nova Espanha se distingue

    dos demais movimentos hispano-americanos por trs motivos centrais. Primeiro, foi iniciado

    no interior de uma provncia do vice-reinado e no na capital. Segundo, seus principais lderes

    eram sacerdotes que conduziam uma populao rural. Por ltimo, o carter eminentemente

    popular que teve a insurreio em sua primeira etapa 1810-1815. Alm disso, importante

    destacar que neste processo o dilogo entre religio e poltica esteve muito estreito, muitas

    vezes confundindo seu papel na formao discursiva do movimento. Para a compreenso

    dessas especificidades, a dissertao est dividida em trs partes centrais.

    No primeiro captulo, A escrita da independncia, o movimento de independncia foi

    analisado luz dos novos debates historiogrficos que surgiram em ocasio das

    comemoraes do bicentenrio no ano de 2010. Alm de contribuio para o avano das

    pesquisas acadmicas, a utilizao poltica do evento para a formao de uma memria

    2 Essa forma de anlise foi trabalhada por John Monteiro, para quem os avanos recentes nos estudos

    etno-histricos, no entanto, vm minando (...) perspectivas arraigadas desde h muito introduzindo uma nova

    conjuno entre pesquisa documental e perspectivas antropolgicas para produzir um renovado retrato das

    respostas ativas e criativas dos atores indgenas que, apesar de todas as foras contrrias, conseguiram forjar

    espaos significativos na histria colonial, de modo que no mais admissvel omiti-los do registro histrico.

    MONTEIRO, John Revista Histria 149, 2 - 2003, 109.

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    histrica mexicana merece destaque para a compreenso da conjuntura atual. No dia 18 de

    setembro, em ocasio destas festividades, o presidente do Mxico, Felipe Caldern declarou

    que:

    O ano de 2010 ser, sem dvidas, tempo de jbilo e alegria. Em cada

    lugar, em cada escola, em cada bairro ou praa pblica, viveremos

    intensamente o orgulho de sermos mexicanos, o orgulho de prover desse

    nosso passado rico em complexidade, dramatismo e glria, porm

    celebraremos tambm o orgulho de nosso futuro. Um orgulho que

    construiremos juntos, com a firme determinao de engrandecer cada dia

    nossa Ptria, como foi o ideal de nossos libertadores; porque, finalmente, a

    Ptria de todos, a Ptria para todos3.

    O discurso de Caldern evidencia um imaginrio social sobre a independncia que

    percorre o Mxico at os dias de hoje, alm de fazer parte da idealizao sobre a construo

    da identidade nacional de seu povo. O fato de no representar apenas a separao com a

    Espanha, mas tambm o momento fundador da Ptria recuperado constantemente pelo

    discurso poltico. Em decorrncia das festividades oficiais do governo e da relevncia do tema

    para os mexicanos, o nmero de publicaes, acadmicas ou no, sobre o movimento iniciado

    em 1810 aumentou significativamente. Muitos historiadores tm se debruado sobre tarefa de

    reinterpretar esse passado, seja criticamente, ou para torn-lo mais herico.

    Em uma entrevista dada em 2011 ao Peridico y Agencia de Notcias Imagen del

    Golfo4, o historiador Enrique Florescano alertou que as comemoraes pelo Bicentenrio

    produziram uma nova historiografia oficial que se preocupou em apagar as diversidades

    regionais do pas por trs de um discurso de unidade nacional que serviria para atender s

    exigncias polticas do momento histrico do pas atualmente. Contudo, temos que reconhecer

    3 http://www.bicentenario.gob.mx/index.php?catid=68:arco-bicentenario&id=259:discurso-del-

    presidente-felipe-calderon-hinojosa&option=com_content&view=article acessado em novembro de 2010.

    (Optou-se por traduzir as citaes das obras historiogrficas originalmente em espanhol para facilitar a leitura do

    texto) 4 Entrevista com Enrique Florescano Disponvel em

    http://www.imagendelgolfo.com.mx/resumen.php?id=234538 acessado em maro de 2011.

    http://www.bicentenario.gob.mx/index.php?catid=68:arco-bicentenario&id=259:discurso-del-presidente-felipe-calderon-hinojosa&option=com_content&view=articlehttp://www.bicentenario.gob.mx/index.php?catid=68:arco-bicentenario&id=259:discurso-del-presidente-felipe-calderon-hinojosa&option=com_content&view=articlehttp://www.imagendelgolfo.com.mx/resumen.php?id=234538

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    a existncia de uma produo historiogrfica acadmica de peso que, buscando analisar as

    especificidades dos acontecimentos do Mxico em 1810, vem questionando a utilizao de

    antigos mtodos e fontes de uma antiga histria oficial. A partir desse debate, possvel

    reconstruir um breve panorama histrico dos principais eventos que cerceiam as distintas

    produes historiogrficas que analisaram a luta de Hidalgo e Morelos como uma parte

    constituinte da cultura poltica5 do pas nos ltimos anos.

    No segundo captulo da dissertao, Revoluo impressa, delinearei o percurso dos

    jornais insurgentes produzidos durante a luta poltica do incio do sculo XIX. El Despertador

    Americano (Guadalajara, 1810-1811), El Ilustrador Nacional (Sultepec, 1812) substitudo

    pelo El Ilustrador Americano (1812-1813), Semanario Patriotico Americano (Huichapa y

    Tlalpujahua, 1812, 1813), Gazeta del Gobierno Americano, en el Departamento del Norte

    (Yuriria, 1812) e o Correo Americano del Sur, (Oaxaca, 1813) 6 atuaram como intermedirios

    nesse debate entre letrados e populares, mundo urbano e o rural dos indgenas e, inclusive,

    entre uma ilustrao especfica da Nova Espanha e as tradies populares.

    Para estabelecer a relao desses mediadores polticos e a populao durante o

    processo de construo da luta poltica, utilizei as cartas pessoais dos lderes insurgentes,

    especificamente uma antologia documental de cartas enviadas por Morelos, publicadas por

    5 Marta Abreu prope uma definio pertinente do conceito de cultura poltica no livro Cultura poltica e

    leituras do passado. Para a autora, o interesse pelo conceito se deve ao fato que ele permite explicar ou

    compreender o comportamento poltico de atores individuais e coletivos, privilegiando suas prprias percepes,

    lgicas cognitivas, memrias, vivncias e sensibilidades. Considerado "um sistema de representaes, complexo

    e heterogneo", o conceito torna-se til ao historiador que rejeita anacronismos e no deseja estabelecer

    interpretaes normativas ou unvocas. De modo geral, pode-se dizer que as culturas polticas tm formas pelas

    quais se manifestam e se evidenciam mais frequentemente, como um projeto de sociedade, de Estado ou uma

    leitura compartilhada de um passado comum. Tm igualmente algumas instituies-chave, como a famlia, os

    partidos, os sindicatos, as Igrejas, as escolas, embora grupos sociais diversos tambm possam ser importantes

    para sua transmisso e recepo. Por outro lado, as culturas polticas exercem papel fundamental na legitimao

    e regimes ou na criao de identidades, sendo seus usos extremamentes eficientes e pragmticos. Em todos os

    casos, as culturas polticas articulam ideias, valores crenas, smbolos, ritos, vocabulrio, imagens e memrias

    em prol de lutas polticas e culturais. ABREU, Marta, SOIHET, Rachel e GONTIJO, Rebeca (orgs) Cultura

    poltica e leituras do passado: historiografia e ensino de histria Rio de Janeiro: Civilizao brasileira, 2007. p.

    13- 14. 6 Todos os peridicos insurgentes citados ao longo do texto esto disponveis no stio virtual

    Antorcha,net.

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    Ernesto Lemoine Villicaa7,

    para compreender o dilogo entre esses grupos em meio a um

    novo espao pblico na Nova Espanha. interessante observar a distino das duas fontes

    documentais utilizadas nesta pesquisa. Enquanto os jornais eram elaborados durante as

    batalhas e confrontos militares do movimento e destinados populao da Nova Espanha, as

    cartas eram elaboradas cuidadosamente pelos lderes insurgentes antes de serem enviadas aos

    seus correspondentes, fossem eles integrantes da luta em outras frentes de combate ou criollos

    politizados das principais cidades rebeldes.

    Para Roger Chartier, a criao de uma esfera pblica de debate definiu um novo

    espao pblico na Europa do sculo XVIII e nos Estados da Amrica Latina do sculo XIX.

    Para alm da definio de Jgen Habermas, para quem as novas formas de sociabilidade

    ocorriam a partir de encontros entre pessoas privadas que discutiam e criticavam os assuntos

    do Estado e das autoridades em cafs, clubes e sales literrios, havia tambm o espao da

    sociabilidade escrita, Chartier utiliza o texto O que Iluminismo de Kant para definir o

    espao pblico como um local associado produo, circulao e apropriao do escrito.

    Conforme o iluminista, o iluminismo mais um processo, uma tendncia, um movimento

    que ter concludo quando cada um possa atuar produzindo textos como sbio e recebendo

    outros como leitor 8

    .

    Segundo Franois Xavier Guerra e Annick Lemprire,

    pblico nos remete sempre poltica: a concepes da comunidade

    como associao natural ou voluntria, ao governo, legitimidade das

    autoridades. Longe de ser somente o qualificativo neutro e cmodo de um

    espao ou de uma esfera que se ope sempre, implcita ou

    explicitamente ao campo do privado, esfera dos indivduos e das

    famlias, das conscincias e das propriedades, o pblico ao mesmo tempo

    o sujeito e o objeto da poltica: seja a do Antigo Regime (o bem comum, os

    7

    TORRE VILLAR, Ernesto de la Testimonios Historicos Guadalupanos. Mxico, FCE, 1982 e,

    VILLICANA, Ernesto Lemoine Morelos: su vida revolucionaria a travs de sus escritos y de otros testimonios

    de la poca Mxico: UNAM, 1965. 8 CHARTIER, Roger Cultura escrita, Literatura e Histria: conversa de Roger Chartier com Carlos

    Aguirre Anaya, Jess Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio Saborit Porto Alegre, Artmed, 2001, p. 64-65.

  • 18

    cargos pblicos, a felicidade pblica dos ilustrados) ou a revolucionria (a

    salut public dos jacobinos) ou a do constitucionalismo liberal (os poderes

    pblicos legitimados pela soberania do povo9

    Contudo, interessante notar que a ambio iluminista de tornar a populao mais

    sbia com a utilizao da leitura e da escrita no ocorria dessa forma. No sculo XIX, a

    valorizao ilustrada da cultura letrada nem sempre contemplava o grande pblico.

    O papel dos editores dos peridicos insurgentes foi fundamental para a construo dos

    canais pelos quais ocorreu a difuso das ideias do movimento. Discutir a trajetria de

    personagens como Jos Mara Cos, Carlos Mara Bustamante, Francisco Severo Maldonado e

    Andr Quintana Roo compreender uma parte importante da formulao discursiva da luta

    poltica travada pelas lideranas populares, assim como o entendimento de que este debate

    no permanecia estagnado, mas era constantemente reformulado nos impressos.

    O terceiro captulo, As ideias insurgentes, compreende uma anlise discursiva dos

    jornais rebeldes. A dinmica de construo do movimento ao longo destes peridicos est

    composta de elementos que permitiram a aproximao da populao com os ideais polticos

    de Hidalgo e Morelos. O dio aos gachupines10

    , o simbolismo do culto Virgem de

    Guadalupe, a justificativa moral da luta por meio de argumentos religiosos, a constante

    evocao de Fernando VII como guardio do Imprio espanhol e liderana oculta dos rebeldes

    eram constantes nos primeiros jornais insurgentes. Aos poucos, esse discurso tradicional

    9 GUERRA, Franois Xavier e LEMPRIRE, Annick Los espacios pblicos en Ibereoamrica:

    ambigedades y problemas. Siglos XVIII-XIX. Mexico: Fondo de cultura econmico, 1998, p. 7. 10

    De acordo com Alfredo vila, "durante o perodo do vice-reinado, os descendentes de espanhis eram

    considerados como tal, espanhis, sem importar o lugar em que tivessem nascido. Por essa razo, quando

    fizermos referncia aos que nasceram no territrio da atual Espanha, os chamaremos espanhis europeus ou

    espanhis peninsulares para distingui-los dos espanhis americanos, nascidos no vice-reinado. Os termos

    gachupin e crioulo, que na poca tinham uma carga pejorativa, sero empregados quando fizermos referncia

    retrica e tais termos das fontes estudadas. "Crioulo" referia-se ao nascido na Amrico, filho ou descendente de

    espanhis europeus, enquanto que "gachupin" era chamado o espanhol europeu que ocupava cargos e empregos

    no vice-reinado ou que havia enriquecido na Amrica; ainda que, pouco a pouco, comeou a ser utilizado para

    designar qualquer espanhol peninsular." VILA, Alfredo e PUGA, Gabriel T. Do francs ao gachupin: a

    xenofobia no discurso poltico e religioso da Nova Espanha, 1760-1821 In: PAMPLONA, Marco A. e MDER,

    Maria Elisa (org) Revolues de independncias e nacionalismos nas Amricas - Nova Espanha So Paulo:

    Paz e Terra, 2008 p. 120.

  • 19

    associado poltica do Antigo Regime foi substitudo por novos debates que permeavam a

    discusso por um novo Estado Nacional. A partir de 1813, conforme as fontes documentais, o

    separatismo poltico da insurgncia prevalecia diante aos antigos argumentos que, no incio,

    haviam permitido uma identificao popular de grande flego com a causa.

    A construo do debate poltico sobre a formao do movimento de Hidalgo e Morelos

    passava, ento, pelo questionamento das antigas estruturas sobre as quais estavam aliceradas

    as caractersticas sociais do Antigo Regime em confronto com literatura ilustrada que chegava

    Nova Espanha aos poucos. Coube aos jornais insurgentes sintetizar essas discusses que

    estavam no seio da configurao da luta armada e nas balizas polticas do movimento.

  • 20

  • 21

    Captulo 1

    A escrita da independncia

    1.1 O grito de Dolores

    Quando em 1808, Napoleo Bonaparte aprisionou Fernando VII e colocou a Espanha

    sob os domnios polticos de Jos Bonaparte, o movimento civil de resistncia peninsular

    organizou uma Junta Suprema na qual se reuniam os representantes do Imprio Espanhol na

    ilha de Len, em frente a Cdiz. O objetivo era formar um governo paralelo que se mantivesse

    fiel ao rei cativo. No momento em que as notcias chegaram a Cidade do Mxico, capital do

    vice-reinado da Nova Espanha, o vice-rei Jos de Iturrigay passou a conviver com uma crise

    poltica que se arrastou por toda a Ibero-Amrica.

    Nas reunies, tertlias e textos publicados a partir de 1808, tanto na metrpole, quanto

    nas colnias, o tema central era o desaparecimento do rei espanhol. A discusso foi dividida

    entre aqueles que defendiam que a soberania tinha sido partilhada com o povo e julgavam,

    portanto, ser necessrio convocar uma Junta Local em todas as provncias americanas e

    aqueles que acreditavam que quem governava era a pennsula, e a Nova Espanha deveria

    continuar a obedecer s decises da metrpole, representada naquele momento pela Junta de

    Cdiz.

    Conforme Maria Elisa Mder e Marco Pamplona,

    A invaso napolenica da Pennsula Ibrica em 1808 provocou

  • 22

    mudanas definitivas no mundo colonial ibrico; em Portugal, ocasionou a

    transferncia da famlia real para o Brasil; na Espanha, a abdicao do rei

    Carlos IV em nome de seu filho, Fernando VII e a captura deste ltimo por

    Napoleo, criaram uma situao de crise da monarquia que acabou

    permitindo aos reinos da pennsula e da Amrica viverem, por algum tempo,

    uma fase de intensa experimentao poltica. Entre 1808 e 1812, coube aos

    povos na pennsula e na Amrica assumirem os poderes detidos pelo rei e

    debaterem sobre o fundamento e o conceito de soberania, sobre

    representao, a ideia de Nao, e a necessidade de dar uma Constituio

    monarquia. Estes homens comearam a compartilhar sentimentos e a

    engendrar um novo vocabulrio poltico, e, por meio de ideias e aes, re-

    significaram valores e configuraram novas prticas polticas no interior de

    suas sociedades. 11

    Na Nova Espanha, para apoiar os criollos que defendiam a soberania local, o vice-rei

    Jos Iturrigay facilitou a formao de uma junta com os principais representantes do vice-

    reino. Contudo, os defensores do poder peninsular organizaram um golpe e assassinaram os

    principais lderes da Junta da nova-hispana, Francisco Primo de Verdad e Frei Melchor de

    Talamantes. Os gachupines, que consumaram este golpe de Estado, nomearam Pedro de

    Garibay o novo vice-rei. Em meados de 1809, o arcebispo Francisco Xavier Lizana substituiu

    Pedro de Garibay e passou a reconcentrar esforos para aumentar a cobrana de impostos e

    enviar fundos a Cdiz.

    Foi durante o vice-reinado de Lizana que ocorreu a primeira conspirao pela

    independncia e em defesa da Nova Espanha, organizada em Valladolid pelos criollos.

    Aprisionados facilmente pelas tropas vice-reais, os primeiros lideres rebeldes, Jos Maria

    Obeso e Jos Mariano Michelena12

    , no puderam participar do processo continuado por

    Igncio Allende, um dos membros da organizao, em San Miguel el Grande em Guanajuato,

    11

    PAMPLONA, Marco A. e MDER, Maria Elisa (org) Revolues de independncias e

    nacionalismos nas Amricas - Nova Espanha So Paulo: Paz e Terra, 2008 p. 7-8. 12

    REYES, Ral Cardiel La primera conspiracin por la independencia de Mxico. Mxico: SEP,

    1980.

  • 23

    no centro-sul da provncia.

    Enquanto se formavam novas conspiraes pela soberania local na Amrica, em

    Cdiz, a Junta Suprema Nacional prosseguia a guerra contra os franceses com apoio britnico.

    Ao apoiar medidas violentas dos espanhis nas batalhas, a Junta perdia cada vez mais o

    respaldo das foras autonomistas. Para ganhar mais adeptos, a resistncia espanhola passou a

    reconhecer a igualdade entre os povos americanos perante a metrpole e nomeou uma

    regncia que convocou Cortes. As eleies foram feitas para nomear os representantes das

    Cortes de Cdiz e elegeram 17 nomes da Nova Espanha.

    Durante a primeira sesso em Cdiz, a questo americana foi logo colocada em pauta.

    Os americanos apresentaram uma petio que se baseava em trs pontos: igualdade nos

    direitos concedidos aos europeus, integrao de sua representao como parte da monarquia e

    a aprovao de um decreto de anistia tendo em vista o movimento insurgente que avanava

    em todo o sul da Amrica. Os americanos apresentaram uma petio que se baseava em trs

    pontos: igualdade nos direitos concedidos aos europeus, integrao de sua representao

    como parte da monarquia e a aprovao de um decreto de anistia. A petio gerou um

    decreto no qual se afirmava que "os domnios espanhis em ambos os hemisfrios formam

    uma mesma e nica Nao, e por isso, os naturais oriundos desses domnios europeus ou

    ultramarinos so iguais em direitos aos desta pennsula"13

    .

    Contudo, mesmo com as peties encaminhadas s Cortes, as conspiraes na Nova

    Espanha ganhavam cada vez mais forma nesse cenrio turbulento. Muitos criollos no

    reconheciam a autoridade de Cdiz ou dos franceses e, por isso, passaram a defender uma

    soberania poltica popular. Nas redondezas de Quertaro, especificamente, o criollo Don

    Miguel Dominguez e sua esposa reuniram em sua casa, sob o pretexto de discutir tertlias

    literrias, homens ilustrados que articulavam um levante contra o vice-reinado. Oficiais como

    13

    BERBEL, Marcia R. Cortes de Cdiz: entre a unidade da Nao Espanhola e as independncias

    americanas In: PAMPLONA, Marco A. e MDER, Maria Elisa (org) Revolues de independncias e

    nacionalismos nas Amricas - Nova Espanha So Paulo: Paz e Terra, 2008 p. 26.

  • 24

    Ignacio Allende, Juan Adalma, Pe. Jos Mara Sanchez e mais uma dezena de indivduos

    insatisfeitos, sobre os quais se encontrava tambm Miguel Hidalgo, o padre de Dolores e ex-

    reitor do Colgio de San Nicols em Valladolid14

    , planejavam iniciar a revoluo no final do

    ms de dezembro de 1810.

    Antes que pudessem concluir os planos de ao para a luta armada, a conspirao

    liderada por Allende foi denunciada. Imediatamente, o intendente de Guanajuato, Jos

    Antonio de Rino, ordenou que se fizessem as detenes. Juan Adalma e Ignacio Allende

    conseguiram fugir com alguns soldados para Dolores e se reuniram com o Padre Hidalgo em

    15 de setembro de 1810. Nesse encontro, decidiram adiantar os planos de insurreio e,

    aproveitando que era domingo, Hidalgo, em lugar de missa, incitou seus fiis a empreender

    uma luta contra o governo vigente. A resposta foi imediata: camponeses, trabalhadores

    domsticos, mineiros entre outros, se apresentaram com instrumentos e armas de luta15

    .

    Hidalgo fazia uma interessante releitura da realidade social da Nova Espanha a partir

    de algumas ideias ilustradas no incio do sculo XIX. Com o apoio financeiro de um grupo

    poltico urbano formado por profissionais liberais, conduziu a populao indgena camponesa

    rebelde contra o vice-rei. Seu discurso popular e heterogneo foi carregado de smbolos e

    mensagens polivalentes que traziam tona a tradio mtica pr-colonial e traos do

    catolicismo espanhol, aliados com anseios de liberdade, direitos civis e soberania popular.

    O pensador conservador, autor de Historia de Mjico desde los primeros movimientos

    que prepararon su independencia hasta la poca presente, Lucas Alamn foi provavelmente o

    14

    Valladolid de Michocan era caracterizada em meados do sculo XVIII como uma cidade importante,

    tanto em sua vida cultural como em seu aspecto urbano. Era situada s margens das grandes rotas comerciais que

    partiam da capital do vice-reinado, carente em minerais para as regies abastecedoras como Zacatecas,

    Guanajuato, Puebla e Guadalajara. Portanto, constitua um espao propcio para a formao de novas redes de

    sociabilidade das quais Hidalgo fazia parte. In: VILLICAA, Ernesto Lemoine Morelos: su vida revolucionaria

    a travs de sus escritos y de otros testimonios de la poca Mxico: UNAM, 1965 p. 11-12. 15

    O historiador Jos Serrano em seu livro Jerarqua territorial y transicin poltica: Guanajuato 1790-

    1836 analisou como a guerra e as instituies liberais transformaram a hierarquia territorial dessa regio, uma

    vez que as cidades ganharam mais autonomia. Para Serrano, a regio foi a que mais sofreu com a guerra, uma

    vez que o liberalismo estava mais presente ali em forma de prefeituras, deputados provinciais, milcias cvicas e

    eleies. In: SERRANO, Jos Antonio Jerarqua territorial y transicin poltica: Guanajuato 1790-1836,

    2001.

  • 25

    primeiro a relatar que, conforme a tradio oral16

    , o grito de guerra que lanou Hidalgo na

    parquia de Dolores foi Viva Fernando VII! Viva a religio! Viva a Virgem de Guadalupe!

    Morram os guachupines!. A ambiguidade dessas afirmativas, que vinculavam ao movimento

    smbolos do Antigo Regime ao dio contra os espanhis j revela algumas caractersticas do

    discurso ilustrado na Nova Espanha.

    Miguel Hidalgo (1753-1811) conhecido pela historiografia mexicana como o cura

    ilustrado. Estudou com os jesutas desde os 12 anos de idade e, aps a expulso dos mesmos

    em 1767, o padre se dedicou teologia, filosofia e s artes no Colegio de San Nicols. Foi

    um estudante de destaque que aprendeu latim, francs, italiano, nahuatl, otomi e tarasco,

    lnguas da populao indgena. Aos vinte e cinco anos foi nomeado sacerdote e com trinta e

    nove se tornou reitor do mesmo colgio. Destacou-se no estudo das teorias liberais que

    estavam em discusso na Europa ao final do sculo XVIII. Devido s presses da alta

    hierarquia eclesistica, foi nomeado proco na cidade de Dolores no interior do estado de

    Guanajuato. Nessa cidade, o padre cuidou da instruo dos indgenas camponeses e

    mineradores. 17

    Dentro da historiografia clssica sobre a independncia, um dos historiadores que mais

    se preocupou com a anlise das ideias polticas do lder insurgente foi Juan Hernndez Luna.

    Em El mundo intelectual de Hidalgo18

    reconhece que os projetos renovadores do professor e

    reitor nicolata se moviam nos limites da teologia. Para o historiador, o padre de Dolores

    poderia ser um telogo muito original e moderno, porm de nenhuma maneira era um

    16

    Lucas Alamn (1792-1853) foi um renomado intelectual mexicano que reescreveu a histria mexicana

    aps a Independncia. Era filho de uma famlia de mineiros prsperos em Guanajuato e, aos 18 anos de idade

    viu as foras rebeldes de Hidalgo invadirem sua cidade. Foi tambm viajante, cientista, poltico burocrata e

    homem de negcio. Considerado um historiador conservador, em 1851 publicou Historia de Mjico desde los

    primeiros movimentos que prepararon su independncia hasta la poca presente em 5 volumes pela editora de J.

    Mariano Lara. In: ARCHER, Christian Historia militar em la poca de la independncia de Nueva Espaa In:

    VILA, Alfredo, GUEDEA, Virginea (coord) La independencia de Mxico: temas e interpretaciones recientes

    Mxico: UNAM, Instituto de Investigaciones Histricas, 2010. 17

    LUNA, Juan Hernndez, El mundo intelectual de Hidalgo, historia mexicana, 10, III:4, octubre-

    diciembre de 1953, 157-177. 18

    Idem.

  • 26

    rousseauniano como os liberais queriam ver.

    Entender a Ilustrao como um movimento plural nos ajuda a compreender a dinmica

    aparentemente ambgua na formao da luta poltica desses homens. Em setembro de 1810,

    San Miguel el Grande foi ocupada e, no dia 21, a multido popular estava em Celaya e

    nomeava Hidalgo seu generalsimo e Allende como tenente-general. No santurio de

    Atotonilco, o padre deu ao exrcito sua primeira bandeira: uma imagem da Virgem de

    Guadalupe. Considerado protetor e guardio do movimento insurgente, o estandarte

    guadalupano acompanhou toda a peregrinao do exrcito popular contra o exrcito do vice

    reino.

    Enquanto a maior parte da populao indgena que apoiava Hidalgo era camponesa, o

    vice-rei contava com a ajuda de oficiais indgenas da cidade. Antes mesmo do incio da

    insurgncia em setembro, algumas comunidades indgenas j se manifestavam a respeito da

    captura de Fernando VII. No dia 21 de julho, os governados de San Juan e de Santiago se

    dirigiram ao vice-rei, por escrito, informando sua posio diante das calamidades pblicas:

    Bien conocen los indios, seor excelentsimo, que son unos

    miserables destituidos de proporciones para ofrecer un servicio

    considerable, y que tal vez se cree son los nfimos en el valor y dems

    vistudes militares; pero son los primeros que sacrificarn sus cortos bienes

    propios y comunes, su reposo y tranquilidad, sus hijos y familias, y hasta la

    ltima gota de su sangre, por no rendir vasallaje a quien slo merece el justo

    enojo de nuestra nacin. 19

    Segundo o relato, esses representantes se referiam a 14 mil ndios que poderiam ser

    colocados a servio do rei cativo. O documento conta com a assinatura das autoridades

    indgenas de San Juan, Eleuterio Severino Guzmn e de Francisco Antonio Galcio. Para

    19

    Ofertas hechas al excelentsimo seor virrey por las parcialidades de indios de esta capital", 21 de julio

    de 1808, Suplemento a la Gazeta de Mxico del sbado 10 de septiembre de 1808, publicado el martes 13, t. XV,

    n. 94, p. 665-666. In: GUEDEA, Virginia Los voluntarios de Fernando VII. Estudios de Historia Moderna y

    Contempornea de Mxico, lvaro Matute (editor), Mxico, Universidad Nacional Autnoma de Mxico,

    Instituto de Investigaciones Histricas, v. 10, 1986, p. 11-83.

  • 27

    cumprir sua promessa, mandaram que se confeccionassem listas dos habitantes dos pueblos

    que compunham sua jurisdio.

    Outros grupos indgenas tambm se voluntariaram. Em Quertaro, o corregedor de

    letras Miguel Domnguez informou que:

    estamos todos los caciques de esta dicha nobilsima ciudad dispuestos a

    plantar diez mil hombres de Honda y piedra y de ms armas que se puedan

    adquirir en toda la jurisdiccin de esta ciudad; y ltimamente estamos

    resueltos a derramar primero hasta la ltima gota de sangre que tenemos que

    desamparar la defensa de la ley de Dios y de nuestro Catlico Monarca (Que

    Dios Guarde). 20

    Na cidade de Texcoco, ofereceram ao vice-rei "sus personas, sus cortos intereses, seis

    mil indios y todos los vecinos de razn del propio Tezcuco y sus contornos, para que vuestra

    excelencia, como primer jefe de la nacin, cuente con este corto, sincero obsequio, dispuestos

    todos a defender la religin, el rey y la ptria. 21

    Quando o movimento de Hidalgo se iniciou, em San Juan, no dia 28 de setembro, os

    habitantes do pueblo indgena encaminham ao vice-rei Venegas um documento que diziam

    que o mesmo fazia parte de uma "alucinao delinquente" e que chegava com pesar a

    informao de "que cuenta en su nmero con algunos indios que les auxilian". Tanto as

    autoridades como os demais integrantes da comunidade entendiam que "los nicos dueos de

    este reino" eram Fernando VII e seus sucessores. Por isso, expressavam que quem queria se

    separar da pennsula "cuando an existe all quien resista a la dominacin extranjera, no

    puede ser fiel a Fernando VII sino que imposibilita en cuanto est de su parte su restitucin al

    20

    Representacin de la repblica de naturales de Quertaro al virrey Iturrigaray, Quertaro 27 de julio de

    1808, Suplemento a la Gazeta de Mxico del mircoles 31 de agosto de 1808, publicado el viernes 2 de

    septiembre, t. XV, n. 87. In: GUEDEA, Virginia Los voluntarios de Fernando VII. Estudios de Historia

    Moderna y Contempornea de Mxico, lvaro Matute (editor), Mxico, Universidad Nacional Autnoma de

    Mxico, Instituto de Investigaciones Histricas, v. 10, 1986, p. 11-83. 21

    "Otras ofertas hechas por la ciudad de Texcoco y las repblicas de naturales de su jurisdiccin",

    septiembre de 1808, Suplemento de la Gazeta de Mxico del mircoles 14 de septiembre de 1808, publicado el

    viernes 16, t. XV, n. 96, p. 677. In: Idem.

  • 28

    trono"22

    . Como o vice-rei no tinha um exrcito bem treinado e organizado aceitou

    inicialmente a ajuda dessas autoridades indgenas para combater os insurgentes.

    Doze dias depois de iniciada a marcha, os insurgentes estavam nas portas de

    Guanajuato, uma das cidades mais ricas da Nova Espanha, e Hidalgo exigiu a redeno do

    intendente Riao, mostrando um crescimento numericamente significativo de seu exrcito:

    Sabe usted ya el movimiento que ha tenido lugar en el pueblo de

    Dolores, la noche del 15 del presente: su principio, ejecutado con el nmero

    insignificante de 15 hombres ha aumentado prodigiosamente en tan pocos

    das. Me encuentro actualmente rodeado de ms de cuatro mil hombres que

    me han proclamado su Capitn General.23

    O intendente buscou asilo ao lado dos gachupines e resistiu tentativa de ocupao

    dos insurgentes. Em resposta, a multido comandada pelo generalsimo invadiu e saqueou a

    cidade por dois dias. Tal fato passou a gerar grande temor dos criollos, que permaneceram

    fiis Coroa. 24

    Aps determinar vrias penas para aqueles que no cumpriram o mandato, Hidalgo

    lanou um novo decreto que suspendia alguns impostos:

    Es tambin el nimo piedoso de S. E., quede totalmente abolida para

    siempre la paga de tributos para todo gnero de castas, sean las que fueren,

    para que ningn juez ni recaudador exijan esta pensin, ni los miserables

    que antes la satisfacan la paguen, pues el nimo del Excmo. Sr. Capitn

    General es beneficiar a la Nacin Americana en cuanto le sea posible. 25

    22

    Exposicin de la parcialidad de San Juan, 27 de septiembre de 1810, en Juan E. Hernndez y Dvalos,

    Coleccin de documentos para la historia de la guerra de Independencia de Mxico de 1808 a 1821, 6 v., Mxico

    (Biblioteca de "El Sistema Postal de la Repblica Mexicana"), Jos Mara Sandoval, 1878-1881, t. II, p. 115-116.

    In: GUEDEA, Virginia Los voluntarios de Fernando VII. Estudios de Historia Moderna y Contempornea de

    Mxico, lvaro Matute (editor), Mxico, Universidad Nacional Autnoma de Mxico, Instituto de

    Investigaciones Histricas, v. 10, 1986, p. 11-83. 23

    Carta de Hidalgo al intendente Riao (n1) 181 In: TORRE VILLAR, Ernesto Historia documental de

    Mxico, Mxico, UNAM, 1974 p. 44. 24

    El bando original de Ansroena en AGN, Operaciones de Guerra, t. 4, f. 77 In: VILLICAA, Ernesto

    Lemoine Morelos: su vida revolucionaria a travs de sus escritos y de otros testimonios de la poca Mxico:

    UNAM, 1965 p. 34-35. 25

    Idem.

  • 29

    Tal decreto contribuiu para a popularizao do movimento de Hidalgo. Muitos dos

    indgenas que lutavam ao lado do vice-rei, pertencentes s comunidades de San Juan,

    Quertaro e Texcoco, passaram para o exrcito insurgente. Rapidamente, por todo o territrio

    da Nova Espanha surgiram novos levantes. Jos Mara Morelos26

    , padre de Carcuaro e ex-

    aluno de Hidalgo, apresentou-se e recebeu a tarefa de tomar Acapulco. Jos Antonio Torres

    comeou a vencer tropas do intendente de Guadalajara. As propriedades de espanhis

    americanos e peninsulares comearam a sofrer constantes saques nesta etapa do movimento.

    O bispo de Valladolid, Abad y Queipo, que outrora havia se identificado com os

    problemas sociais e com a causa de seu amigo e ex-aluno Hidalgo, no hesitou em

    excomung-lo. Quando as tropas atingiram a cidade com aproximadamente 80 mil revoltosos,

    o bispo anunciou sua deciso ao proco e facilmente rendeu os habitantes da cidade para

    evitar um massacre.

    Un ministro del Dios de la Paz, un sacerdote de Jesucristo, un pastor

    de almas (no quisiera decirlo), el cura de Dolores don Miguel Hidalgo (que

    haba merecido hasta aqu mi confianza y mi amistad), asociado de los

    capitanes del regimiento de la Reina, don Ignacio Allende, don Juan

    Adalma, y don Jos Mariano Abasolo, levant el estandarte de la rebelin, y

    encendi la tea de la discordia y anarqua, y seduciendo una porcin de

    labradores inocentes, les hizo tomar las armas; y, cayendo con ellos sobre el

    pueblo de Dolores el 16 del corriente amanecer, sorprendi y arrest los

    vecinos europeos, saque y rob sus bienes; y pasando despus a las siete de

    la noche a la villa de San Miguel el Grande, ejecut lo mismo apoderndose

    en una y otra parte de la autoridad y del gobierno. El viernes 21 ocup del

    26

    Jos Maria Morelos y Pavn nasceu em 1765 na cidade de Valladolid de Michocan vindo de famlia de

    criollos e mestios. Na sua infncia, por problemas econmicos de sua famlia, trabalhou como carpinteiro. Com

    as poucas economias de sua me, entrou no seminrio em 1790. Neste perodo conheceu o professor Miguel

    Hidalgo que, embora no tenha sido seu mestre direto, foi considerado assim por Morelos que o considerava seu

    mestre de cultura, de vida e de Revoluo. Em 1797, fomou-se no ministrio sacerdotal e se ordenou presbtero.

    Tornou-se proco em Carcuaro, uma cidade muito pobre formada por ndios e mestios que viviam da

    agricultura de subsistncia. Em 1810, juntou-se a insurgncia iniciada por Hidalgo, seu ex-professor, e recebeu a

    misso de libertar o sul da Nova Espanha. Na declarao escrita em seu julgamento inquisitorial, Morelos

    declarou que siempre cont com la justicia de la causa, em que habra entrado, aunque no hubiera sido

    sacerdote. Foi preso e fuzilado em 1815. In: HERREJN, Carlos Morelos, Antologa documental Mxico:

    Consejo Nacional de Fomento Educativo, 1985.

  • 30

    mismo modo a Celaya; y segn noticias, parece que se ha extendido ya a

    Salamanca e Irapuato. Lleva consigo los europeos arrestados, y, entre ellos,

    al sacristn de Dolores, al cura de Chamacuero , y a varios religiosos

    carmelitas, amenazando a los pueblos que los ha de degollar si le oponen

    alguna resistencia. E insultando a la religin y a nuestro soberano, don

    Fernando VII, pint en su estandarte la imagen de nuestra augusta patrona,

    nuestra Seora de Guadalupe, y puso la inscripcin siguiente: Viva la

    Religin. Viva nuestra madre santsima de Guadalupe. Viva Fernando VII.

    Viva la Amrica y muera el mal gobierno.27

    Alguns anos antes, entre 1804 e 1806, o bispo Abad y Queipo havia escrito uma

    interessante obra sobre as dificuldades econmicas pela qual passava a colnia. O texto

    Representacin a nombre de los labradores y comerciantes de Valladolid28

    um protesto

    contra os novos impostos cobrados a partir das reformas bourbnicas, especificamente

    relativos ao pagamento tesouraria de uma taxa por cada emprstimo feito. A falta de terras

    da Igreja na Nova Espanha fazia com que o clero recorresse a emprstimos feitos de

    fazendeiros, mineiros, comerciantes e empresrios, que integravam a aristocracia vice-reinal.

    O bispo defendia, ento, uma unio de interesses entre estes dois grupos num programa

    reformista.

    Conforme o historiador Rafael Rojas29

    , o programa poltico de Abad y Queipo inclua,

    alm da abolio dos tributos pessoais sobre a terra para o clero e a aristocracia, a insero

    dos ndios, negros e mulatos a fim de consolidar o terceiro estado na Nova Espanha para

    integrar o povo nas decises do reino. Segundo David Brading, o bispo foi o progenitor

    intelectual do liberalismo mexicano.30

    Contudo, seu repdio ao movimento de Hidalgo

    27

    Decreto de excomunin de los insurgentes dado por el obispo Abad y Queipo (1810) In: TORRE

    VILLAR, Ernesto Historia documental de Mxico, Mxico, UNAM, 1974 p. 37. 28

    ROJAS, Rafael La escritura de la independencia: el surgimiento de la opinin pblica en Mxico,

    Mxico: Taurus, 2003 p. 31-32. 29

    Idem. 30

    BRADING, David Orbe indiano. De la monarquia catlica a la repblica criolla, Mxico, FCE, 1991

    p. 611-613

  • 31

    estava, como apontado na carta de excomunho, principalmente, fundado sobre recusa feita

    o seu ex-aluno s tradies polticas da Nova Espanha e ideia de subverso da ordem

    proposta pelo padre de Dolores.

    O contexto social e econmico dos anos de movimento armado foi marcado por secas,

    colheitas perdidas e aumento nos preos dos gros. As regies mais afetadas pelo desemprego

    e pela fome se localizavam justamente no centro do vice-reinado. Vale destacar que a maior

    parte dos integrantes do movimento era pessoas do campo e das minas com planos e ideias

    polticas prprias, muitas vezes difceis de serem especificadas. Se fossem capturados pelo

    Exrcito Oficial, poderiam ser executados, aoitados, encarcerados ou condenados a trabalhos

    forados. Contudo, mesmo com as dificuldades, uma legio de mestios e indgenas se

    juntava causa da insurgncia por verem no movimento de Hidalgo uma possibilidade de

    melhora poltica e social na Nova Espanha.

    Com o fracasso da administrao de Pedro de Garibay, o vice-rei Venegas iniciou a

    organizao da defesa. Don Flix Mara Calleja recebeu ordens de avanar para a Capital e

    levava um estandarte com a imagem da Virgem de Remdios para supostamente proteger a

    tropa oficial contra a multido de Hidalgo. Toda aquela multido heterognea onde os

    uniformes se perdiam entre trajes de rancheiros, ndios, mestios e at alguns espanhis,

    encontrou-se frente a mil soldados realistas no dia 30 de outubro em Monte de las Cruces.

    Essa batalha foi a maior vitria dos insurgentes. Contudo, a cidade se recolheu. Muitos

    insurgentes desertaram em poucos dias, alm disso o exrcito rebelde dissipado enfrentou

    uma grande derrota em Aculco. Allende marchou rumo a Guanajuato para buscar mais apoio e

    Hidalgo foi at Guadalajara.

    A cidade recebeu com tanto entusiasmo o generalsimo que Hidalgo planejou estender

    o movimento com a ajuda do padre Jos Mara Mercado para tomar Tepic e San Blas e Don

    Jos Mara Gonzlez para rebelar as provncias internas do ocidente.

  • 32

    Os recursos econmicos da regio deram mais segurana ao movimento. O padre

    insurgente comeou a planejar um novo governo e a editar o primeiro jornal, El Despertador

    Americano. Em 29 de novembro decretou o fim da escravido e do tributo indgena. No dia 5

    de dezembro declarou de uso exclusivo dos indgenas as terras da comunidade e tambm

    autorizou a execuo de espanhis prisioneiros31

    .

    Enquanto as tropas de Calleja se reorganizavam para atacar Guadalajara, Allende se

    apressou em reunir o exrcito rebelde para proteger o generalsimo. No dia 17 de janeiro de

    1811, cinco mil soldados convocados nas cidades do vice-reino pelo exrcito realista

    enfrentaram noventa mil rebeldes provocando a sua total disperso na batalha de Puente de

    Caldern.

    Os chefes iniciaram sua fuga para noreste e em Saltillo decidiu-se que Ignacio Lopez y

    Rayn continuaria a luta iniciada por Hidalgo. Apriosionados, Ignacio Allende e Miguel

    Hidalgo foram fuzilados em julho de 1811.

    Em um interessante artigo sobre os lderes da independncia na Amrica Latina, Maria

    Lgia Coelho Prado descreve os arrependimentos de Hidalgo em seu julgamento aps a

    captura.

    Hidalgo, movido por suas crenas, pegou em armas e liderou um

    movimento revolucionrio. Viveu profundos dramas de conscincia ao fazer

    conviver a doutrina catlica com as prticas violentas da luta armada. Foi

    um homem perturbado por fortes sentimentos de remorso e arrependimento,

    mas tambm uma figura de extrema coragem, desobedeceu a Igreja,

    enfrentou a excomunho e sofreu acusaes de toda ordem, sem abandonar

    os objetivos nos quais acreditava. 32

    A postura do padre antes do fuzilamento reflete a ambiguidade tambm presente na

    31

    O Decreto contra la esclavitud, las gabelas y el papel sellado de Miguel Hidalgo est disponvel no

    stio http://www.cervantesvirtual.com, acessado em 23/11/09. 32

    PRADO, Maria Ligia Coelho Amrica Latina no Sculo XIX: Tramas, Telas e Textos So Paulo,

    Edusp, 2004, p. 68.

    http://es.wikisource.org/wiki/Decreto_contra_la_esclavitud,_las_gabelas_y_el_papel_sellado_(Miguel_Hidalgo)http://es.wikisource.org/wiki/Decreto_contra_la_esclavitud,_las_gabelas_y_el_papel_sellado_(Miguel_Hidalgo)http://www.cervantesvirtual.com/

  • 33

    produo de seu discurso poltico. Ao mesmo tempo em que lutava pela manuteno da

    religio catlica e empreendia uma luta com o estandarte da Virgem de Guadalupe, propunha

    transformaes significativas para a ordem social, poltica e econmica do Antigo Regime

    como a abolio de castas, distribuio de terras e defesa dos direitos dos indgenas e

    mestios.

    O triunfo sobre Hidalgo no significou a restaurao da ordem no territrio da Nova

    Espanha, pois os movimentos de conspirao continuaram a existir em todo o pas. Rayn

    cumpriu a misso que lhe foi delegada e em agosto de 1811 instalou a Junta Suprema

    Gubernativa de Amrica em Zitcuaro. Morelos seria encarregado da administrao.

    Jos Mara Morelos y Pavn (1765-1815) reuniu um novo exrcito insurgente aps a

    morte do generalsimo em 1811. Embora menos numeroso, era mais disciplinado que o de

    Hidalgo. Suas tropas mestias procediam das camadas mdias e baixas da sociedade e

    conseguiram facilmente dominar Chilpancingo, Tixtla, Chilapa, Taxco, Izcar e Cualtla. Seus

    grandes colaboradores foram o fazendeiro Hermenelgildo Galeana e o padre Mariano

    Matamoros, que receberam o ttulo de sub-generais do exrcito. Entre seus fiis seguidores

    estavam as famlias Bravo, Guadalupe Victoria, Mier y Tern e Guerrero. Por dois meses,

    Morelos resistiu ao cerco do general Calleja em Cualtla, o que seria considerado heroico por

    seus admiradores da poca e inclusive por grande parte da historiografia clssica. Sua

    popularidade, a partir das conquistas militares, era propagada por toda a Nova Espanha, como

    relatada em uma carta de um espio dirigida a Don Lus, bispo de Oaxaca.

    sta, seor, es una guerra que jams se ha visto; una persecucin de

    la Iglesia y del Trono que no tiene ejemplo. Valerse de Dos contra Dos y

    del Rey contra el Rey, slo es invencin del hereje Hidalgo; pero, a pesar de

    todo, las gentes estn engaadas, porque a los prisioneros obsequia con

    dinero y ropa Morelos, y enva a uno u otro que le parece propio para

    seducir a sus casas. Los indios oyen estas cosas y esperan que los

    enriquezca aquel maldito, quien tambin dice que los viene a aliviar de

  • 34

    contribuciones parroquiales, as como los alivi del tributo. 33

    Muitos letrados perseguidos se refugiaram junto ao seu exrcito, sendo assim,

    contriburam para a organizao dos ideais polticos do novo governo. No dia 14 de setembro

    de 1813, Morelos apresentou na abertura do Congresso de Chilpancingo seu texto

    Sentimientos de la Nacin que sintetizava seu iderio poltico. Comeava afirmando que a

    Amrica livre e independente da Espanha e de qualquer outra nao e que a soberania

    emana imediatamente do povo e depositada em seus representantes. O Congresso publicou

    no dia 6 de dezembro a declarao da independncia e Morelos foi nomeado para o poder

    executivo, intitulado de siervo de la Nacin34

    .

    Durante as reunies do Congresso, Morelos orientou Rayn a retirar o nome de

    Fernando VII do texto Elementos de la Constitucin.

    En cuanto al punto quinto de nuestra Constitucin, por lo respectivo

    a la soberana del Sr. D. Fernando VII, como es tan pblica y notoria la

    suerte que le ha cabido a este grandsimo hombre, es necesario exluirlo para

    dar al pblico la Constitucin. 35

    Foi a primeira vez que um chefe insurgente negou a utilizao da imagem de Fernando

    VII na campanha militar. Alm disso, Morelos se posicionou claramente a respeito das Cortes

    de Cdiz, assunto no mencionado por Hidalgo at ento. Para ele,

    las Cortes de Cdiz han asentado ms de una vez que los americanos eran

    iguales a los europeos, y para halagarnos ms, nos han tratado de hermanos;

    pero si ellos hubieran procedido con sinceridad y buena fe, era consiguiente

    que al mismo tiempo que declararon su independencia, hubieran declarado

    la nuestra y nos hubieran dejado libertad para establecer nuestro gobierno,

    33

    VILLICAA, Ernesto Lemoine Morelos: su vida revolucionaria a travs de sus escritos y de otros

    testimonios de la poca Mxico: UNAM, 1965. Doc. 8 p. 165. 34

    HERREJN, Carlos Morelos, Antologa documental Mxico: Consejo Nacional de Fomento

    Educativo, 1985, p. 160. 35

    VILLICAA, Ernesto Lemoine Morelos: su vida revolucionaria a travs de sus escritos y de otros

    testimonios de la poca Mxico: UNAM, 1965. Doc. 41 p. 90

  • 35

    as como ellos establecieron el suyo. 36

    No discurso de abertura do Congresso de Chilpancingo, desapareceu o termo jurdico

    Nueva Espaa para dar origem ao Estado Mexicano. Redigido por Carlos Mara Bustamante

    editor do Correo Americano del Sur em Oaxaca o texto declarava que a soberania

    correspondia nao mexicana e declarava o fim total da obedincia ao trono espanhol. O

    Congresso obteve faculdades legislativas e Morelos foi aclamado chefe do poder executivo.

    Contudo, as delimitaes de funes polticas no ficaram muito claras.

    O Siervo de la Nacin seguiu sua campanha de volta a Valladolid com o objetivo de

    conquistar Michocan, Guadalajara e Guanajuato. Porm, Calleja37

    , que havia assumido o

    papel de Chefe Poltico da Nova Espanha (com a obedincia Constituio de 1812, o papel

    do vice-rei havia sido extinto), comeou empreender cada vez mais golpes contra o

    movimento insurgente. Recuperou Acapulco e limitou a atuao militar de Morelos. Em junho

    de 1814, Calleja recebe reforos peninsulares e consegue retomar o poder absoluto no

    territrio da Nova Espanha.

    No dia 5 de novembro de 1815, Morelos foi capturado e feito prisioneiro pelo tribunal

    da Inquisio no Mxico. Submetido a julgamento inquisitorial e eclesistico, o padre foi

    fuzilado no dia 22 de dezembro em San Cristbal Ecatepec.

    A campanha de Calleja contra a insurgncia resultou em sua disperso. Em setembro

    36

    VILLICAA, Ernesto Lemoine Morelos: su vida revolucionaria a travs de sus escritos y de otros

    testimonios de la poca Mxico: UNAM, 1965. Doc. 53 p. 165. 37

    Ernesto Lemoine Villacaa fez uma interessante caracterizao de Calleja em que compara suas aes

    de Hernn Cortez: Entre 1810 y 1816, el enemigo ms poderoso y terrible de la revolucin fue Calleja. Junto a

    l, los virreyes Venegas y Apodaca son figuras secundarias. Militar de carrera, ambicioso, de reacciones rpidas,

    astuto, ayuno de sentimentalismo, seguro de s, convencido hasta el fanatismo de que la preservacin de la

    Colonia era asunto de vida o muerte para l, pocas veces Espaa nos envi un funcionario con una personalidad

    y un carcter tan reciamente definidos - y, a la vez, tan funestos - como Calleja. Llegado a Nueva Espaa en la

    comitiva del segundo Conde de Revillagigedo, viva entre nosotros desde 1789. Al estallar la revolucin tena, en

    consecuencia, vientin aos de experiencia regional. () Calleja haya sido la manu militari ms eficaz que

    utiliz Venegas para reprimir el movimiento libertador. Aculco, Guanajuato, Caldern y Zitcuaro, ms que

    triunfos importantes en su carrera, fueran verdaderas masacres de insurgentes, que atestiguaron lo que poda

    esperarse de este hombre, tan hbil en el arte de la guerra como sdico y sanguinario para ensearse con los

    vencidos. Reencarnacin de Hernn Cortes, y ardiente defensor de la herencia de ste, no fue remiso en preparar

    braceros para quemar pies ni disponer ceibas para ahorcar a cuantos considerara involucrados en el pecado de

    insurgencia. El terror, fsico y moral, fue su objetivo, conservar el virreinato, a cualquier precio! In: Idem.

  • 36

    de 1816, o chefe poltico substitudo por Juan Ruiz de Apodaca que iniciou uma poltica de

    conciliao.

    Aps seis anos de guerra civil, os povoados continuavam insatisfeitos com os

    impostos exorbitantes e as destruies. Os territrios estavam fragmentados e Apodaca no

    conseguia restabelecer a ordem colonial por completo.

    Em 1820, de volta ao poder poltico na Espanha, Fernando VII jurou a Constituio de

    1812 e convocou eleies para deputados nas Cortes. Na Nova Espanha, a grande maioria dos

    criollos era favorvel independncia. Os eclesisticos e burocratas convocam o coronel

    Agustn de Iturbide para fazer um pronunciamiento que favorecesse a ideia da independncia.

    Iturbide, oriundo de Valladolid, havia militado ao lado de Calleja sendo um de seus

    melhores oficiais. Dirigido aos americanos, seu discurso chegou a convocar Fernando VII, ou

    algum dos infantes, a ocupar o trono da Nova Espanha e assegurar a religio catlica. O Plan

    de Iguala de fevereiro de 1821 foi enviado s principais personalidades do pas e amplamente

    aceito entre os militares.

    1.2 Novos debates e perspectivas

    Os estudos sobre as independncias na Amrica Latina tm ganhado um grande

    nmero de publicaes recentes em razo das comemoraes do bicentenrio, que vem

    marcando uma reestruturao poltica da memria histrica em nossa sociedade atual38

    . Estes

    atos de rememorao promovidos por atividades patrocinadas pelos governos, universidades e

    38

    Conforme Benedict Anderson em Comunidades Imaginadas, as narrativas histricas que aparecem para

    formar as biografias das naes esto carregadas de memria e esquecimento. A conscincia de estarem

    inseridas no tempo secular e serial, com todas as suas implicaes de continuidade e, todavia, de esquecer a

    vivncia dessa continuidade fruto das rupturas do final do sculo XVIII gera a necessidade da narrativa de

    uma identidade. ANDERSON, Benedict Comunidades Imaginadas: reflexes sobre a origem e difuso do

    nacionalismo. So Paulo, Cia das Letras, 2008, p. 279.

  • 37

    institutos de pesquisa promoveram o aumento de estudos que privilegiam a discusso sobre a

    entrada ou no destes pases na modernidade, a partir do incio da suposta adoo de um

    discurso liberal no debate poltico em 1808.

    Essa nova produo se preocupa em circunscrever estes eventos luz da formao do

    nacionalismo e, para tanto, tem delimitado sobre quais circunstncias as ideias presentes na

    Europa se encontraram com as discusses que ocorriam na Amrica na virada do sculo

    XVIII. Produziram aqui uma nova cultura poltica capaz de formar os Estados nacionais de

    orientao liberal. No se trata, portanto, de descartar a participao poltica europeia nos

    rumos da independncia da Amrica Latina, mas sim de evidenciar como os atores polticos

    americanos e as discusses polticas locais que produziram os movimentos de insurgncia39

    .

    Contudo, antes de abordar estes novos temas, necessrio traar um breve panorama

    sobre as discusses mais pertinentes acerca deste momento histrico. Dentre a historiografia

    clssica sobre o tema da independncia na Nova Espanha, est Luis Villoro, autor de El

    proceso ideologico de la revolucin de independencia, publicado pela primeira vez em 1951.

    Em seu prlogo, na primeira edio, o Villoro declara que trabalha com o conceito de classe

    que, em suas palavras, pode nos servir para assinalar a circunscrio do mundo social vivido

    39

    Uma das crticas mais contundentes feitas a essa nova historiografia o excessivo papel atribudo

    anlise das Cortes de Cdiz. Sobre esse assunto, o historiador Roberto Brea ressaltou que a despeito da

    maneira como o liberalismo de Cdiz foi capaz (ou no) de responder a certos grupos sociais e a certas questes

    polticas que hoje nos parecem fundamentais desde a perspectiva liberal do sculo XXI, acredito que se o lugar

    que a Constituio de Cdiz ocupa na histria da Espanha indiscutvel, no acontece o mesmo quando nos

    transladamos ao outro lado do Atlntico. De cara, por uma razo muito simples: alguns territrios americanos j

    haviam declarado a sua independncia (a capitania geral da Venezuela) ou j eram praticamente independentes (o

    vice-reinado do Rio da Prata), quando foi promulgada a Constituio de Cdiz em setembro de 1812. O que no

    quer dizer, certamente, que no tenham recebido no s o influxo do texto (como fica manifesto em muitos dos

    documentos constitucionais redigidos em ambos os territrios nos anos seguintes), mas que estiveram a par dos

    dois anos de debates que foram realizados na Assembleia reunida em Cdiz desde setembro de 1810. Uma

    ateno que esteve precedida pelo que Guerra denominou de "o binio crucial" (1808-1809), durante o qual a

    modernidade poltica peninsular exerceu uma enorme influncia sobre as ideias polticas americanas (na poca,

    mais tradicionais) atravs da numerosa imprensa metropolitana que chegava por navios aos territrios

    americanos. Territrios que estavam vidos por notcias e informaes de todo tipo, na medida em que sabiam

    muito bem quo grave era a situao vivida pela pennsula. In: BREA, Roberto Uma reflexo sobre as

    comemoraes dos bicentenrios, a questo do liberalismo (espanhol) e a peculiaridade do caso novo hispnico.

    In: PAMPLONA, Marco A. e MDER, Maria Elisa (org) Revolues de independncias e nacionalismos nas

    Amricas - Nova Espanha So Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 193-194.

  • 38

    por cada homem e constitui um ponto de referncia indispensvel para situar o objeto40

    . Sua

    anlise se concentra, portanto, na leitura da Independncia como um processo revolucionrio

    que colocou em choque diversos movimentos antagnicos de diferentes estratos sociais.

    A obra de Villoro percorreu a construo das classes sociais e seus respectivos

    interesses ao longo da colonizao da Nova Espanha, at a crise provocada pela formao da

    concepo de soberania nacional entre os criollos. O autor marcou a captura de Fernando VII

    pelo exrcito napolenico para iniciar esse processo de ciso ideolgica. Seu objeto central de

    estudo era a ideologia, entendida como um conjunto de crenas, ideias e propostas

    condicionadas pela formao intelectual de diferentes classes sociais. Por isso, em sua anlise

    sobre a sociedade vice-reinal, fez uma subdiviso social da classe europeia, da classe

    eurocriolla (formada por espanhis americanos que obedeciam metrpole), uma classe

    criolla ou classe mdia e as classes populares, considerada a classe mais problemtica pela

    simplificao que as agrupa.

    A insurgncia iniciada por Hidalgo em Dolores foi descrita por Villoro como um

    momento vivncia do instante41

    . O padre foi interpretado como um representante do

    movimento de uma vasta comunidade humana. Hidalgo coloca a liberdade como fundamento

    e, nesse precioso instante, buscou se encontrar com a fonte originria de toda a ordem social:

    o povo.42

    Tornou-se o smbolo de luta contra a opresso a que estavam sujeitas as classes

    proletrias, a misria e a falta de organizao que as impediam de projetar por si mesmas uma

    possibilidade revolucionria. Entretanto, a traduo dessa liderana instantnea para as classes

    populares foi um movimento de desordem em que predominou a violncia.

    Alm de analisar as classes que compuseram o movimento de independncia, Villoro

    descreveu as ideias polticas de representatividade que permearam a revoluo,

    40

    VILLORO, Luis El proceso ideolgico de la Revolucin de Independncia Mxico: Cien de Mxico

    (1 ed. 1951), 2002. p. 70. 41

    VILLORO, Luis El proceso ideolgico de la Revolucin de Independncia Mxico: Cien de Mxico

    (1 ed. 1951), 2002, p. 76. 42

    Idem. p. 77.

  • 39

    principalmente no tocante formao do Congresso de Chilpancingo.

    A transposio do poder do caudilho popular, em contato direto com

    o povo, seguido e aceitado unanimemente por este, a uma assembleia

    deliberante, revela a inteno (talvez inconsciente) da classe mdia em ditar

    a direo da revoluo ao seu aliado campons: a ideia representativa o

    instrumento dessa implantao. O choque do Congresso com os caudilhos

    populares resultava inevitvel; nele se manifesta a juno entre duas classes

    e movimentos.43

    Por outro lado, segundo o autor, quando Iturbide chegou ao poder em 1820, a nova

    Assembleia declarou que o Congresso encarnava a soberania somente como nacional, sem

    haver nenhuma referncia quela originria do povo de que falava o movimento de Hidalgo.

    Luis Villoro marcou a historiografia da independncia mexicana, j que pensou nesse

    movimento como um conflito social. Por esse motivo, a religio foi vista como um tema

    secundrio em sua obra. O autor preferiu tratar das condies econmicas que motivaram os

    envolvidos no conflito. No mencionou o misticismo manifesto pelos indgenas liderados por

    Hidalgo e nem as implicaes sociais que tal fato acarretou para os populares que aps a

    derrota de seus lderes foram fortemente reprimidos pelo vice-reinado com prises e

    excomunhes.

    Outro historiador que buscou interpretar os grupos sociais que compuseram o

    movimento de Hidalgo, mas numa corrente histrico-antropolgica, foi Eric Van Young. Em

    The Other Rebellion: popular violence, ideology, and mexican struggle for Independence,

    1810-1821, publicado em 200144

    , o autor analisou como os dirigentes criollos e os seguidores

    indgenas se uniram nesse momento. Partindo do princpio que os dois grupos possuam ideias

    to diferentes sobre a poltica e a realidade social, Van Youg foi alm das explicaes

    43

    VILLORO, Luis El proceso ideolgico de la Revolucin de Independncia Mxico: Cien de Mxico

    (1 ed. 1951), 2002 p. 121. 44

    Eric Van Young The Other Rebellion: popular violence, ideology, and mexican struggle for

    Independence, 1810-1821, Stanford, California, Stanford Press, 2001.

  • 40

    econmicas para a rebelio.

    Parece-me que a resposta popular do meio rural s condies da

    mudana econmica, a privao material e a crise a curto prazo de finais da

    Colnia foi to variada ao longo do pas, que deveriam se considerar

    tambm outras origens , alm das econmicas, da ao poltica coletiva e as

    formas ainda mais annimas de protesto que tiveram lugar em suas margens

    (...) Este livro se dedica a argumentar que o corao de grande parte da

    insurgncia popular se encontra na defesa da comunidade indgena rural

    como projeto moral, poltico, e inclusive teleolgico; e no o agravamento

    econmico como tal45

    .

    Diferentemente de Villoro, Van Youg reconheceu que, para lidar com a documentao

    disponvel sobre a independncia, foi necessrio compreender os termos do imaginrio

    permeados por smbolos religiosos dos envolvidos. Logo, o historiador traou o perfil da

    autenticidade das emoes religiosas da populao do campo baseado no que considera

    verdadeiro. Assim, esses sentimentos seriam facilmente manipulados pelos criollos como

    pressupe,

    que houve elementos que um observador histrico agora denominaria

    ideologia secular na expresso poltica popular, ainda que os prprios atores

    histricos no fizeram distino entre o tipo de pensamento secular e o

    religioso. (...) Por isso, no deveria nos surpreender que as manifestaes

    mais ferventes da ideologia popular insurgente foram de carter religioso,

    como o poderoso smbolo da Virgem de Guadalupe. De todo o repertrio de

    manifestaes, o sentimento milenarista/messinico o mais interessante e

    em algumas formas mais difcil de captar. Aqui o problema ideolgico

    seria se poderamos explicar melhor a forma e genealogia dessas crenas,

    vinculando-as com estruturas materiais como seguramente faramos com

    uma ideologia secular de mudana econmica e poltica ou talvez

    tomando as como entendimentos culturais desenvolvidos em um reino

    simblico relativamente autnomo, ou inclusive abordando as mediante

    45

    VAN YOUNG, Eric La otra rebelin: la lucha por la independencia de Mxico, 1810-1821 traduccin

    de Rossana Reyes Vega Mxico, FCE, 2006 p. 74.

  • 41

    alguma combinao de ambos enfoques46

    .

    Como possvel observar a partir desse fragmento, a obra de Van Youg se vale do

    conceito de messianismo para legitimar suas concluses. Fernando VII representaria, segundo

    essa interpretao, a verdadeira liderana do movimento, uma vez que os relatos indgenas

    utilizados pelo autor apontam que o rei andava mascarado ao lado de Hidalgo para salvar a

    populao da opresso do inimigo francs.

    Em The Othe Other Rebellion, Eric Van Young oferece uma interessante anlise do

    que ele denomina "ideologias populares" durante a guerra iniciada em 1810. O ponto de

    partida que os diversos grupos subalternos que deram apoio insurgncia de Miguel

    Hidalgo tinham aspiraes muito diferentes da direo criolla. Enquanto essa estava formada

    por ilustrados (catlicos, mas ilustrados), a maioria da populao rural tinha como objetivo a

    conservao de sua comunidade, com seus prprios valores cristos e tradicionais. Por isso, o

    messianismo, a xenofobia, o medo e a religio teriam tido um papel mais importante que as

    ideias de liberdade e independncia na unio de milhares de pessoas na guerra. O

    monarquismo messinico foi, para Van Youg, o motivo que levou os indgenas a aderirem ao

    movimento.

    Outro ponto importante a ser ressaltado a figura da Virgem de Guadalupe que

    aparecia como elemento mais forte da mediao do discurso feito pelos padres do que a

    presena do rei Fernando VII, tambm com um carter messinico, que pressupe

    manipulao dos indgenas e no elementos importantes que compem um discurso poltico.

    Explorarei melhor essa questo no terceiro captulo.

    Ao contrrio de Van Youg, Jacques Lafaye, em Quetzalcoatl Y Guadalupe: la

    formacion de la conciencia nacional en Mexico, analisou a presena da religio47

    como sendo

    46

    VAN YOUNG, Eric The Other Rebellion: popular violence, ideology, and mexican struggle for

    Independence, 1810-1821, Stanford, California, Stanford Press, 2001. p. 78 47

    LAFAYE, Jacques Quetzalcltl y Guadalupe: la formacin de la consciencia nacional en Mxico.

  • 42

    uma continuidade no processo de formao da conscincia poltica nacional mexicana. Pois, a

    identidade mexicana, para o autor, foi construda a partir da juno do iderio mtico indgena

    representado por Quetzacotl e da f crist consagrada com a apario da Virgem de

    Guadalupe. Enquanto os indgenas conservaram sua antiga religio no nvel ritualstico e

    adotaram, ao mesmo tempo, novos smbolos cristos, o cristianismo tambm se viu

    contaminado, sobretudo em sua moral. A f religiosa e a f nacional deveriam ser

    correspondentes e complementares, mas para que houvesse uma aproximao efetiva do

    mundo mtico indgena com o cristo, era necessrio que o catolicismo se mexicanizasse.

    Para o autor, um novo esprito milenarista foi absorvido pela Igreja Catlica e, assim, criou-se

    uma viso messinica da Conquista e da Independncia.

    De acordo com o historiador, esse perodo de formao identitria teria ocorrido

    anteriormente, em 1767 com a expulso dos jesutas da Nova Espanha, considerados os

    guardies da f do povo mexicano. Para ele, o evento criou um vazio espiritual e intelectual

    que se espalhou por toda a colnia. Por esse motivo, o movimento de independncia se

    constituiu a partir da legitimao da soberania popular concedida aos indgenas pelos procos

    ilustrados e o lugar central dado ao patrimnio religioso no centro poltico das decises da

    nova nao. Tal anlise evidencia uma hiptese otimista de Lafaye, que no reconheceu a

    excluso social promovida pelos governos do sculo XIX no tocante s terras indgenas.

    Nos discursos polticos de Morelos, podemos analisar que o padre buscou relacionar

    os eventos da guerra de independncia com referncias bblicas e com o passado indgena.

    Para Lafaye, essa foi uma tentativa de elevar os fatos a um acontecimento comandado pelas

    mos de Deus, o que configurou uma guerra santa semelhante ao Apocalipse.

    Outro autor que tratou do movimento de independncia por esse mesmo prisma foi

    Enrique Florescano48

    . Em sua anlise sobre o perodo da independncia, o historiador relatou

    Abismo de conceptos. Identidad, nacin, mexicano. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1992. 48

    FLORESCANO, Enrique Memoria Mexicana Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 2002.

  • 43

    as diferenas entre as aspiraes de uma elite criolla e as das massas indgenas. O primeiro

    grupo, almejando alcanar um Estado Nacional; o segundo, retornando a um estado pr-

    colombiano e ambos motivados por uma guerra santa.

    De acordo com o autor, a construo do Estado Nacional pelos criollos passava pela

    afirmao de uma identidade religiosa expressa pelo smbolo da Guadalupe. J os indgenas e

    as massas populares estavam embebidos num furor religioso que os convencera de que eram

    eles os defensores da religio ameaada pelos gachupines. Alm disso, os dois lados

    classificaram seus inimigos como hereges ou partidrios do Satans e a maior punio de

    Hidalgo foi a excomunho. Para Florescano, os participantes da insurgncia

    defendiam a religio catlica e a Santssima Virgem de Guadalupe,

    desejavam a instaurao de um novo reino, mas no sentido religioso, e

    queriam continuar sendo indgenas, homens integrados nas tradies

    igualitrias e solidrias de suas comunidades49

    Acreditamos que o movimento de independncia no pode ser classificado apenas

    como uma guerra santa, pois a luta pela liberdade poltica e a participao popular na

    construo de um Estado moderno passou tambm por discusses como o fim da escravido e

    da cobrana de tributos por castas50

    . necessrio frisar que a presena da religiosidade na luta

    poltica foi fundamental para seus avanos, inclusive esteve presente no primeiro captulo da

    Constituio de Apatzingn51

    . Mas, a noo de soberania popular presente nos captulos

    subsequentes nos revela que havia princpios liberais na sua composio que derivavam de

    uma ilustrao especifica da Nova Espanha.

    A identidade nacional no processo de independncia no estava, no entanto, acabada.

    A utilizao do apelo popular, por meio dos elementos religiosos, nem sempre implicava a

    49

    FLORESCANO, Enrique Memoria Mexicana Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 2002.p. 513. 50

    Decreto contra la esclavitud, las gabelas y el papel sellado (Miguel Hidalgo) est disponvel no stio

    http://www.cervantesvirtual.com, acessado em 23/11/09 51

    Artculo 1.- La religin catlica apostlica romana es la nica que se debe profesar en el Estado. A

    Constitucion de Apatzingn est disponvel no stio http://www.cervantesvirtual.com, acessado em 23/11/09

    http://es.wikisource.org/wiki/Decreto_contra_la_esclavitud,_las_gabelas_y_el_papel_sellado_(Miguel_Hidalgo)http://www.cervantesvirtual.com/http://www.cervantesvirtual.com/

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    construo de uma nao. Apenas aps a morte de Hidalgo, em 1811, que Morelos comeou

    a delinear um projeto que contemplasse a populao e, ainda assim, os documentos revelam

    que o termo mais correto para definir ideologicamente o movimento soberania.

    O historiador Alfredo vila fez uma discusso interessante a respeito deste conceito na

    obra En nombre de la nacin: la formacin del Gobierno representativo em Mxico (1808-

    1824)52

    . Dialogando com a historiografia tradicional, vila pretendeu estudar os grupos

    sociais formados em corporaes, a fim de compreender os conflitos sociais na Nova

    Espanha, que contriburam para a formulao de um novo sentido de soberania. Enquanto as

    obras clssicas na historiografia da independncia53

    apontam apenas para uma viso centrada

    na dicotomia entre insurgentes versus realistas, ou criollos versus peninsulares, vila vai mais

    alm, pois parte da anlise de uma procisso catlica, reconhecendo a variedade de grupos

    sociais em conflito na Nova Espanha que estavam vinculados a um lugar comum: a Igreja.

    Dessas procisses participavam uma grande quantidade de corporaes que, segundo a

    cultura poltica do Antigo Regime, eram representantes de toda a sociedade nova-hispana. No

    entanto, j era possvel observar em princpios de 1808, algumas rivalidades. Muitos artesos

    j no se identificavam com os grmios. O nmero de fazendeiros sem vinculao poltica

    estava aumentando e, assim como nas cidades, o montante de ociosos era crescente. Portanto,

    o crescimento demogrfico e a nova realidade econmica tornavam inteis as divises sociais

    tradicionais. Alm das doutrinas e as polticas da Ilustrao, que contribuam para destruir a

    antiga ordem.

    Na interpretao de vila, a data determinante para a formao do movimento de

    52

    VILA, Alfredo En nombre de la nacin: la formacin del Gobierno representativo em Mxico

    (1808-1824) Mxico, Taurus-Centro de Investigacin y Docencia Econmicas, 2002. 53

    Ver VILLORO, Luis El proceso ideolgico de la Revolucin de Independencia Mxico: Cien de

    Mxico, 1951; HAMNET, Brian Roots of insurgency: Mexican Regions, 1750-1824, Cambridge, Cambridge

    University Press, 1986; BENSON, Nettie Lee (editor), Mxico and the Spanish Cortes, 1810-1822. Eight

    essays, Austin, University of Texas Press, 1966; TUTINO, John From insurrection to revolution in Mexico:

    social bases of agrarian violence, 1750-1940, Princeton, N.J., Princeton University Press, 1986; ANNA,

    Timothy, The fall of the royal government in Mexico City, Lincoln University of Nebraska Press, 1978;

    HAMMIL, Hugh The Hidalgo revolt. Prelude to