Instinto nacionalidade

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1 O INSTINTO DA NACIONALIDADE E CONTROLE IDEOLÓGICO DA NATUREZA Fabiana Móes Miranda Não basta certamente a adoção do sistema para acabar logo com a dor, mas é indispensável; o resto é a natural evolução das coisas. (Machado de Assis Memórias póstumas de Brás Cubas) Introdução O panorama da literatura brasileira, que Machado de Assis revelou no Instinto de Nacionalidade, não diferia das outras literaturas produzidas na América no início do século XIX, em que a busca por uma imagem nacionalista fazia parte da busca da identidade cultural. Em seu estudo sobre a antiphysis em Jorge Luiz Borges, Costa Lima demonstra como o autor argentino escapou de uma crítica controladora: a que buscava na forma documentária uma expressão quase espelhada da nação. Borges controlou em seus textos todos aspectos possíveis, transformando em estético os elementos diversos ao seu redor e dispondo a physis como espelho, mas de sua percepção. Estes dois exemplos o desprezo pela “cor local” e o não comprometimento com a physis mostram como a concepção da natureza havia sido deslocada no centro da literatura, desde o descobrimento até o presente, a uma metáfora de nação. As duas perspectivas de conceber a imagem da natureza americana tão universal com era a idéia central de Machado de Assis, justamente criticando os autores que se prendiam exclusivamente aos aspectos “pitorescos” e naturais do país, ou, como em Borges, em de uma liberdade criadora que o des-localizava. Mas, tanto o excesso como a escassez criaram os parâmetros da literatura no nosso caso brasileira, tornando controlada o único elemento que não podia se auto- representar em sua relação entre localidade/globalidade: a natureza. A visão da natureza na literatura obrigava em parte à metáfora e à comparação e, como bem colocou Machado de Assis, aparecia no texto como descrição do que a pátria oferecia de beleza natural e assim, justificava também os homens da nação.

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O INSTINTO DA NACIONALIDADE E CONTROLE IDEOLÓGICO DA

NATUREZA

Fabiana Móes Miranda

Não basta certamente a adoção do sistema para acabar logo com a

dor, mas é indispensável; o resto é a natural evolução das coisas.

(Machado de Assis – Memórias póstumas de Brás Cubas)

Introdução

O panorama da literatura brasileira, que Machado de Assis revelou no Instinto de

Nacionalidade, não diferia das outras literaturas produzidas na América no início do século

XIX, em que a busca por uma imagem nacionalista fazia parte da busca da identidade

cultural.

Em seu estudo sobre a antiphysis em Jorge Luiz Borges, Costa Lima demonstra

como o autor argentino escapou de uma crítica controladora: a que buscava na forma

documentária uma expressão quase espelhada da nação. Borges controlou em seus textos

todos aspectos possíveis, transformando em estético os elementos diversos ao seu redor e

dispondo a physis como espelho, mas de sua percepção.

Estes dois exemplos – o desprezo pela “cor local” e o não comprometimento com a

physis – mostram como a concepção da natureza havia sido deslocada no centro da

literatura, desde o descobrimento até o presente, a uma metáfora de nação. As duas

perspectivas de conceber a imagem da natureza americana – tão universal com era a idéia

central de Machado de Assis, justamente criticando os autores que se prendiam

exclusivamente aos aspectos “pitorescos” e naturais do país, ou, como em Borges, em de

uma liberdade criadora que o des-localizava.

Mas, tanto o excesso como a escassez criaram os parâmetros da literatura – no

nosso caso – brasileira, tornando controlada o único elemento que não podia se auto-

representar em sua relação entre localidade/globalidade: a natureza. A visão da natureza na

literatura obrigava em parte à metáfora e à comparação e, como bem colocou Machado de

Assis, aparecia no texto como descrição do que a pátria oferecia de beleza natural e assim,

justificava também os homens da nação.

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Este ensaio servirá para esboçar algumas questões gerais sobre a imagem da

natureza como instinto de nacionalidade, na sua condição e representação como uma

natureza controlada ideologicamente no texto.

1. Uma margem do rio

A natureza controladora a que me refiro é a que escapa, dentro do texto, e questiona

a descrição e a verossimilhança, sem precisar tornar-se antiphysis. Podemos dizer que é

aquela que exibe as relações de trabalho ou ainda a que, em seu “não-dito”, encontra

espaços em que distingue contingentes históricos.

Contrariando um pouco Machado de Assis, por exemplo, poderíamos inferir que

em pleno século XIX – era do desenvolvimento industrial – já estava se tornando possível

colocar a natureza em segundo plano, pois a “civilidade” (aquela que, segundo o autor, não

nos fez em nada devedores ao indígena) estava baseada na premissa de que se podia

controlar os elementos naturais e “bárbaros” que se circunscreviam no ambiente. Desta

forma, o meio mais rápido de se chegar ao universal seria atravessar com máquina a vapor

as palmeiras e os sabiás.

Ora, Machado de Assis pode voltar atrás percorrendo as eras em cima de um

hipopótamo, e podendo ver, face a face, a Natureza. Uma forma feminina cruel, que

atormenta o delirante Brás Cubas: “chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua

inimiga” (ASSIS, 2007, p.26) e se manifesta tanto como construção, como destruição. Brás

Cubas faz o percurso do naturalista – na melhor inconsciência universalizada machadiana –

e demonstra que o único momento de visão da vida natural é para ele congelada e significa

um aviso de sua morte.

Caiu do ar? Destacou-se da terra? Não sei; sei que um vulto imenso, uma

figura de mulher me apareceu então, fitando-me uns olhos rutilantes

como o sol. Tudo nesta figura tinha a vastidão das coisas selváticas, e

tudo escapava à compreensão do olhar humano, porque os contornos

perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muitas vezes

diáfano. (ASSIS, 2007, p. 25, grifo meu)

Se a primeira visão é a da Natureza – e mais uma vez a tese evolucionista da força

dos sobreviventes: aqueles que ganham “as batatas” – a segunda visão é a da História,

numa progressão que vai também escapar ao campo de visão de Brás Cubas, embora ele

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possa acompanhar a seqüência que é feita de repetições e sua manutenção é feita pelo

egoísmo da conservação.

A história do homem e da Terra tinha assim uma intensidade que não lhe

podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais

lenta e a imaginação mais vaga, enquanto o que eu via era a

condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso

fixar o relâmpago. (ASSIS, 2007, p. 28 – grifo meu)

Mas, a compreensão do protagonista vai se fazendo, a partir do momento em que o

homem passa a controlar a natureza pela detenção da técnica e a forjar sua história.

Ao passo que a vida tinha assim uma regularidade de calendário, fazia-se

a história e a civilização, e o homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-

se, construía o tugúrio e o palácio, a rude Aldeia e Tebas de cem portas,

criava a ciência, que percrusta, e a arte que enleva, fazia-se orador,

filósofo, corria a face do globo, descia ao ventre da Terra, subia à esfera

das nuvens, colaborando assim na obra misteriosa, com que entretinha a

necessidade da vida e a melancolia do desamparo. (ASSIS, 2007, p. 29)

Basta o capítulo do Delírio para que sejam redimensionadas algumas perspectivas

sobre a concepção da natureza, seja ou não na obra de Machado de Assis, uma vez que a

escolha foi mais sugestiva que generalizadora. Outros textos já destacam a relação da obra

de Machado com as idéias vigentes em sua época. Neste aspecto o capítulo em questão é

quase descritivo, uma vez que o diálogo crítico com estas idéias não são desenvolvidos

pelo protagonista. Entretanto, a forma como o autor conduz a narrativa parece atemporal,

ou melhor, atual.

O que interessa nas passagens acima são as três determinantes que servem de base

como produção e reprodução do que fundamentam das ideologias modernas: o domínio da

Natureza; a História como idéia de evolução e a ciência/técnica como mediadora destas

relações. A base de tudo, como mostra o trecho acima, é a criação da necessidade, a “obra

misteriosa”. Por que não podemos chamar de capitalismo?

O trecho ainda mostra que fazer “civilização” é o percurso do “desarmado” ao

“armado”, da “rude Aldeia” à “Tebas de cem portas”, e por fim, criar oposições

ciência/arte e política/filosofia. O título do capítulo pode tanto se referir ao estado de Brás

Cuba como a consciência histórica daquele momento, pois seria através deste “delírio” que

a nação deixaria sua “cor local” que a primitizava, com orgulho ao que possuía face aos

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outros países coloniais, e seria inserida arrebatadamente numa vertigem civilizatória, com

traços semelhantes ao que ocorreu no “descobrimento”.

Foi e seria, mais uma vez, para servir a um desequilíbrio global em termos de

produção que o Brasil ofereceria “suas belezas naturais” em troca da civilização do Velho

Mundo. Nossa natureza devia comungar com o mercado e servir de moeda de troca nas

engrenagens do desenvolvimento unilateral: era o momento da natureza sair do assunto da

literatura, já havia se fixado a metáfora da abundância, restava a exploração, não pela

palavra, mas pela ação.

O que resta a Natureza ou Pandora – no que possui de males e esperanças humanas

– era sua alternativa entre representação e descrição. Como descrição era material

revelador de uma geografia exuberante e diferenciada daquela conhecida pelos europeus e,

dada a extensão territorial do país, pelos próprios brasileiros. Como representação,

constituía um campo vasto para uma metáfora ambivalente, sendo a esperança benfeitora

(amiga), já que sinônimo de nossa caracterização social e uma ameaça, já que encobria os

verdadeiros problemas sociais e culturais. Não é a toa que as formigas saúvas, no Triste

Fim de Policarpo Quaresma, são a contra-representação da ideologia utópica da terra em

“que se plantando tudo dá”.

A representação continua até mesmo na crítica quando, de forma bastante singular,

Silviano Santiago, num dos ensaios de Vale quanto Pesa, mostra a alegoria do rio, na

concepção da hierarquia no livro O Guarani de Alencar. O rio é hierarquicamente inferior

ao mar. Toda esta linguagem de equivalência – mesmo que não seja este o cerne da

atenção de Silviano – apenas confirma e reforça a forma de apreensão figurativa do espaço

natural.

Assim como Peri tem vidas sociais paralelas, assim também o rio. São

eles que têm uma ambigüidade social que permite, por exemplo, Peri ser

fidalgo e selvagem. O rio é livre, é suserano dos rochedos, é vassalo do

rio Paraíba. (SILVIANO, 1981, p. 108)

Estas formas de representação demonstram que a nossa identidade cultural se

apoiou numa linguagem espacial (geográfica) em substituição a uma linguagem histórica,

já que nos faltava o “amadurecimento” intelectual cultivado pelo Velho Mundo – éramos,

como diria Machado de Assis, um povo na “adolescência”.

Até para a superação desta “adolescência” foi necessário o afastamento geopolítico

nos textos literários – havendo sempre recortes por regiões: a Semana de Artes Modernas

no eixo Sul ou a Literatura de 30, de caráter regionalista, no Centro-Norte. Cada localidade

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apresentava geograficamente a sua identidade, se certificando assim de uma

heterogeneidade cultural e de uma linguagem particularizante.

A linguagem particularizante era levada ao extremo ainda pela nomeação, que

Machado de Assis censurava, de todos os elementos naturais de cada região. Um exemplo

está em Grande Sertões: Veredas, de Guimarães Rosa: nos sertões seria impossível não

chegar a verossimilhança sem a descrição ou nomeação dos elementos naturais que

constituam a geografia local. Aqui nossa literatura já chegou a maioridade e permanece

descritiva, embora não apresente e apenas cite espaços, mas reencontre a subjetividade que

relaciona a história em seu tempo/espaço na apreensão do ambiente.

Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente,

deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua

região, mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a

empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo

sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda

quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. (ASSIS, 1953).

2. A outra margem do rio

Esta premissa pela descrição como patrimônio tanto de uma literatura brasileira,

como de uma natureza brasileira deveriam ser reconsiderados, senão como identidade ou

alteridade, ao menos em suas implicações culturais sobre a concepção de espaço na nossa

literatura. De certa forma, seria realmente um “engano” constituir uma literatura que

abordasse a “cor-local” como distinção de um lugar constituído colonialmente?

Tudo isto oferece não apenas uma história das idéias sobre o Brasil e seu desejo de

sair do estado “selvagem”, diga-se natural, e ingressar na fase da produção – que era deixar

para trás uma geografia comprometedora do pensamento colonial (uma vez que nossas

“idéias” estavam na Europa e na América do Norte como observa Schwarz em Idéias Fora

do Lugar). A idéia fora do lugar comprometia tanto os conceitos de liberdade num país

escravocrata, como a forma de produção, fosse econômica ou literária.

Em textos como o de Ferdinand Denis1 podemos concluir que o Brasil era ainda um

país que oferecia a matéria-prima e recebia os produtos manufaturados da Europa

industrializada. Esta dependência, persistente ainda hoje, como característica de um país

1 DENIS, Ferdinand. Brésil, Paris: Firmin Didot frères, éditeurs, 1837.

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agrário, que permanecia no cultivo e que contava desta forma com os recursos naturais –

na verdade, naturalizados, já que importados para o solo brasileiro – e prorrogava nos

modos de produção coloniais.

Neste caso, parecia que a natureza impedia o desenvolvimento e a indústria. O

excedente da matéria-prima precisava suportar o mercado externo e se adaptar aos da

balança comercial dos outros países. Na literatura estes acontecimentos aparecem de várias

formas, mas todas, como colocou Marx conseguem ocultar a exploração da natureza das

relações. O que aparece é a técnica e a ciência no que podem contribuir para o progresso

dos países periféricos.

O mascaramento da exploração da natureza representa o que se tem chamado de

crise ecológica, que inclui o esgotamento dos recursos naturais e, ao mesmo tempo, um

conjunto de relações históricas que incluem as condições e meios de trabalho. Esta alusão

se deu também nas produções culturais e reflete a urbanização e a tecnocracia das relações

sociais, que abarcam autores e leitores.

O panorama da literatura modifica-se, suas paisagens transformam-se e o mesmo

recurso que encobre as relações de trabalhos e produção, não permitem que se enxergue a

perda da consciência geográfica. Podemos questionar se havia mais responsabilidade no

romântico, que via utopicamente um país integral geograficamente e por suas belezas

naturais ou no realista que, passando para o texto, transformou a natureza em história da

degeneração humana?

Nem o romantismo, nem o realismo poderiam, entretanto, exceder sua própria

produção como forma literária. O Brasil era um país que se desconhecia, o Nordeste se

tornou uma criação do Sul e vice-versa, as dimensões continentais impediam o

reconhecimento e, muitas vezes, geravam preconceitos e fantasias sobre as condições de

um estado para outro. Como dimensionar uma modernidade que não chegava a todos

cantos do país e quando os lugares mais avançados tecnologicamente continuava a ver

como “selvagens” os que ainda não estavam incluídos na produção, como sinônimo de

produtividade e crescimento econômico?

O próprio título do ensaio machadiano revela sua escolha: a nacionalidade é

colocada como instinto e não como razão. A razão não poderia apenas se fixar no local,

esta argumentação é certa, partindo-se do principio de que se precisava saber com quem

estávamos tratando e reconhecer a exploração, mas parece um engano se não inclui parte

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do pensamento de nacionalidade como uma racionalização do próprio estado de

colonizado.

Intuir muitas vezes se torna a primeira forma de criticar. Tento imaginar que foi

nesta idéia que Machado de Assis observou os escritores de sua época e da anterior: todos

dotados de intuição sobre como constituir uma identidade nacional e ao mesmo tempo sem

ter alcance da melhor norma de representação, que não acabasse apenas num “retrato”

físico do país.

O que parece estranho é que ao mesmo tempo que toda “fotografia” parecia

constituir um patrimônio cultural, e assim, um representativo do povo brasileiro, por outro

lado mantinham-se as manchas com as metáforas comuns e como também coloca

Machado, com a pastora árcade em nosso território. O paradoxo é o acima citado, ou seja,

os verdadeiros espaços que poderiam ser representados eram considerados infrutíferos, isto

justifica todas as críticas feitas aos poetas que falavam do campo estando confortavelmente

na cidade.

Este método de fazer a literatura nacional mostra suas problemáticas quando todo

estudo esquece-se do objeto representado e desloca para o imaginário as atenções

primordiais. Torna a representação uma verdade inquestionável e tudo o que poderia ser

revelador de um acontecimento ou de um compromisso histórico passa a ser considerado

metáfora ou alegoria no ato da criação. Mas, também, ocorre o inverso e o excesso

metafórico obscurece a clareza da palavra.

Voltando mais uma vez ao exemplo de Brás Cubas no seu delírio, a Natureza era

tão imensa que não podia ser compreendida e esta concepção parece idêntica aos contornos

do Brasil. Brás Cubas não monta num animal do país e nem visita o rio Amazonas, sua

origem do mundo começa na Europa, sua formação intelectual e sua passagem pelo Éden

descarta toda origem autóctone do indígena brasileiro. Aqui, o crítico e o autor

demonstram coerência. Mesmo que se busque a natureza e a naturalização esta não é

interna, mas depende do sentido de autenticidade concedida pelo exterior.

A Natureza de Cubas deve seguir a história natural mundial para sua legitimação. A

história que dizemos ser nossa só tem sentido junto da História que começa no início do

mundo que nos colonizou. Mas, o hipopótamo também representa um elemento da

colonização européia e a máquina do tempo que gira na frente dos olhos do protagonista

mostrando o mundo e partes não percebidas do futuro mostra também as tenazes correntes

com que a história do Brasil está presa à história mundial.

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Peri, o rio e o hipopótamo mostram a hierarquização das representações na

literatura brasileira. E é a consciência desta hierarquia, em maior ou em menor grau, que

faz com que se busquem saídas regionalistas para resgatar as identidades nacionais do

Brasil. A passagem de uma margem para outra, oferece os mesmos riscos e oferece

alternativas criativas nos textos. Entretanto, o Sertão é o mundo, mas o mundo não é o

sertão, isto revela a singularidade até “um dia em que o mar vire sertão”.

3. A terceira margem

Como, ao que parece, o questionamento da representação tem se colocado junto as

condições de produções de discursos hegemônicos, a mímeses em forma de physis e

antiphysis2, sendo entendidas como elementos de controle textual poderiam se entregar a

novas revisões, pois, como coloca Costa Lima, o problema fica em dois extremos, o lugar

sem tempo/espaço que é o labirinto borgiano e o documentarismo que é o espaço/tempo da

nacionalidade.

Tudo que continua sendo refletido, em maior ou menor grau, é a supremacia da

palavra representativa dos discursos, sem que se resolva a velha tripartição entre

natureza/história/homem, uma vez que, segundo Marx, o homem faz a sua história

transformando a natureza. Esta transformação dos recursos naturais em energia, ou seja,

em produção e, posteriormente, em consumo, só encontraria na crítica das representações

um caminho como re-interpretação.

A re-interpretação passa por toda sociedade e cultura e deve questionar a forma

como os elementos representados aparecem ou não nos textos literários. O que fica oculto,

quando apenas a descrição geográfica é colocada como elemento mimético, são também

possíveis demonstradores históricos e culturais da sociedade. Sua função econômica

também fica relegada ao segundo plano, uma vez que aparecem o “utópico”, apresentando

este país como um paraíso ou não, e os contrastes para uma diferenciação entre as regiões,

que mostra a pobreza e atraso de algumas regiões ainda como falta de desenvolvimento e

devido a fatores como condições climáticas e outros.

Esta criação de uma imagem nacional, com estruturas diferentes em cada região,

exploram os elementos geográficos e climáticos. Desta maneira, alega-se como natural

2 N da A. Aqui, a citação do texto de Costa Lima é apenas de localização, pois os termos physis e antiphysis

que estou empregando estão mais no sentido de mundo em que as representações coincidem com os objetos

representados e de outro mundo, em que as referências não coincidem com os elementos naturais.

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certas diferenças e da mesma forma a literatura explora estas diferenças para “localizar” o

texto e o discurso.

Nem deixou de recordar que em algumas partes do globo o espetáculo é

mais grandioso: as criaturas humanas é que disputam aos cães os ossos e

outros manjares menos apetecíveis; luta que se complica muito, porque

entra em ação a inteligência do homem, com todo o acúmulo da

sagacidade que lhe deram o século, etc. (ASSIS, 2007, p.193)

O tão conhecido diálogo entre Brás Cubas e Quincas Borba sobre a luta dos cães

pela sobrevivência justifica o delírio de Brás Cubas que vê na sucessão da História a

contínua luta, que segundo Borba é a própria vida. É a mesma vida que se apresenta como

Pandora ou Natureza.

Machado de Assis continua a falar no universal: as lutas pelo “osso” ocorrem em

alguma “parte do globo” – o flagelo histórico não é nacional. Se o texto fosse escrito na

atualidade ofereceria uma crítica para a globalização da economia, mas podemos verificar

que todo caminho histórico parece determinado e a soma da inteligência humana é “o

espetáculo mais grandioso”, o que lhe dá formas de produção e exploração.

O texto Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, nos oferece as

metáforas da subjetivação da natureza (de forma alguma é o único ou primeiro texto a

fazê-lo), pois as pessoas são, para o protagonista, questões de botânica, de geologia, e não

é a toa que o livro é dedicado ao verme, o devorador da sua matéria – a mesma que não

transmitiu “a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.” (ASSIS, 2007, p.209)

Pode-se referir a consciência, a religião e tudo o que se quiser

como distinção entre os homens e os animais; porém, esta distinção

só começa a existir quando os homens iniciam a produção dos seus

meios de vida, passo em frente que é conseqüência da sua

organização corporal. Ao produzirem os seus meios de existência,

os homens produzem indiretamente a sua própria vida material.

(Marx & Engels.)

Esta é a existência material que transmite como legado a cultura e a história das

idéias, como formas de produção que distinguem os homens e os tornam mais nacionais

que naturais. Podemos questionar o quanto de idealismo havia nas idéias nacionalistas, de

construção do discurso da identidade, mas também podemos reconhecer que este discurso

foi mantido a partir do momento que se fixaram as bases materiais das produções

nacionais, ainda que dependentes do elemento estrangeiro.

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Isso demonstra que a ilusão ou o espelhamento da realidade fazem parte dos

contingentes históricos e da representação da natureza na cultura (luta da physis e

antiphysis). Na atualidade resgatar essa representação nos produtos culturais – no nosso

caso na literatura – é uma forma de compreender como se re-constroem as identidades

sociais.

A lição de Machado de Assis permanece em sua crítica, mas a “cor-local” – a

physis como descrição – deve ser resgatada nos estudos literários, não como romantismo

ou realismo, mas como matéria de exploração global. E, em termos literários como matéria

de elaboração textual.

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