INSEGURANÇA NAS “CIDADES MODERNAS”: …© Luis dos... · ... podem ser percebidas de maneira...

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1 GT I - Direitos Humanos e Criminalização da ‘Questão Social’ na América Latina INSEGURANÇA NAS “CIDADES MODERNAS”: DISCUSSÕES SOBRE A VIOLÊNCIA URBANA A PARTIR DE BAUMAN E CALDEIRA JOSÉ LUIS DOS SANTOS LEAL – UNIFAP/PET/GEPVIC DELQUE PANTOJA MEDEIROS – UNIFAP/GEPVIC RUBIELI DE ABREU OLIVEIRA – UNIFAP/GEPVIC RIO DE JANEIRO – RJ 2016 DISCUSSÕES SOBRE A VIOLÊNCIA URBANA A PARTIR DE BAUMAN E CALDEIRA José Luis dos Santos Leal Delque Pantoja Medeiros Rubieli de Abreu Oliveira Resumo: Este trabalho é um desdobramento de reflexões iniciadas na pesquisa “Representações da Criminalidade Urbana: Medo e Insegurança Social no Estado do Amapá”, realizada pelo GEPVIC (Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Violências e Criminalizações). O presente trabalho pretende apresentar análises e reflexões feitas a partir das noções de medo e insegurança nas “cidades modernas” sob a luz de Zygmunt Bauman e as formas de segregação espacial e discriminação frutos da violência e do medo discutidas por Tereza Caldeira. Partindo destas noções a violência urbana deve ser encarada como uma representação que tem como alguns aspectos; a) a ameaça do sujeito criminalizado que é colocado á parte da sociedade dita cidadã; b) o medo e a insegurança ocasionados por essa ameaça criam sensações que constitui no individuo um estado de constante alerta. Palavras-chave: violência; criminalidade; segregação espacial; insegurança e medo. DISCUSSIONS ON THE URBAN VIOLENCE FROM BAUMAN AND CALDEIRA Abstract: This work is an outgrowth of discussions launched in " Representations of Urban Crime: Fear and Social Insecurity in the state of Amapá " survey, conducted by GEPVIC (Group of Studies and Research on Violence and criminalization) . This work intends to present analyzes and reflections from the notions of fear and insecurity in modern cities in the light of Zygmunt Bauman and forms of spatial segregation and discrimination product of violence and fear discussed by Teresa Caldeira. With these

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GT I - Direitos Humanos e Criminalização da ‘Questão Social’ na América Latina

INSEGURANÇA NAS “CIDADES MODERNAS”: DISCUSSÕES SOBRE A VIOLÊNCIAURBANA A PARTIR DE BAUMAN E CALDEIRA

JOSÉ LUIS DOS SANTOS LEAL – UNIFAP/PET/GEPVICDELQUE PANTOJA MEDEIROS – UNIFAP/GEPVICRUBIELI DE ABREU OLIVEIRA – UNIFAP/GEPVIC

RIO DE JANEIRO – RJ2016

DISCUSSÕES SOBRE A VIOLÊNCIA URBANA A PARTIR DE BAUMAN E CALDEIRA

José Luis dos Santos LealDelque Pantoja MedeirosRubieli de Abreu Oliveira

Resumo: Este trabalho é um desdobramento de reflexões iniciadas na pesquisa “Representações daCriminalidade Urbana: Medo e Insegurança Social no Estado do Amapá”, realizada pelo GEPVIC(Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Violências e Criminalizações). O presente trabalho pretendeapresentar análises e reflexões feitas a partir das noções de medo e insegurança nas “cidadesmodernas” sob a luz de Zygmunt Bauman e as formas de segregação espacial e discriminação frutosda violência e do medo discutidas por Tereza Caldeira. Partindo destas noções a violência urbanadeve ser encarada como uma representação que tem como alguns aspectos; a) a ameaça do sujeitocriminalizado que é colocado á parte da sociedade dita cidadã; b) o medo e a insegurançaocasionados por essa ameaça criam sensações que constitui no individuo um estado de constantealerta.

Palavras-chave: violência; criminalidade; segregação espacial; insegurança e medo.

DISCUSSIONS ON THE URBAN VIOLENCE FROM BAUMAN AND CALDEIRA

Abstract: This work is an outgrowth of discussions launched in " Representations of Urban Crime: Fearand Social Insecurity in the state of Amapá " survey, conducted by GEPVIC (Group of Studies andResearch on Violence and criminalization) . This work intends to present analyzes and reflections fromthe notions of fear and insecurity in modern cities in the light of Zygmunt Bauman and forms of spatialsegregation and discrimination product of violence and fear discussed by Teresa Caldeira. With these

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concepts to urban violence should be regarded as a representation that has as few aspects; a) thethreat of criminalized subject that is placed will be part of society dictates citizen ; b) the fear and theinsecurity caused by this threat creates sensations that constitutes individual in a state of constant alert.

Keywords: Violence; Crime; Spatial segregation; insecurity and fear.

INTRODUÇÃO

Neste trabalho abordaremos as análises de Zygmunt Bauman e Tereza Caldeira com

relação ao medo e a insegurança moderno dentro dos espaços urbanos principalmente no que toca à

criminalidade. A perspectiva de Bauman parte da metáfora da modernidade líquida e como se dá esse

processo de “dissolução dos sólidos” para a constituição de uma nova ordem social marcada pelo

afrouxamento dos laços humanos e a gradual decomposição da solidariedade.

Essa decomposição impede a construção ou manutenção da comunidade enquanto

lugar seguro de inteira confiança entre seus membros. Isto, por suas vez, contribui para a difusão do

medo e da insegurança na sociedade ocasionados pela sensação constante da existência de perigos

que não podemos calcular e muito menos evitar.

A extrema individualidade, característica intrínseca dessa modernidade, tem origem no

“desejo moderno” de se libertar das obrigações morais e éticas que não permitiriam a emergência da

verdadeira racionalidade capitalista pautada no dinheiro.

Essas características, então, podem ser percebidas de maneira mais clara nas

grandes cidades, que segundo Caldeira (2000), passam a ser lugares de segregação do que de

encontro. A dinâmica desse processo é permeada pelo medo do outro, do desconhecido, do

estrangeiro, e, de maneira mais abrangente, das “classes perigosas”.

Segundo a pesquisa de Caldeira em São Paulo, a construção dos estereótipos ligados

às classes perigosas é fruto de uma visão categorizante que se dá em diversos níveis e em todos os

grupos sociais. Tal fenômeno tem estreita relação com os sentimentos de medo e insegurança e se

refletem na construção de verdadeiras fortalezas urbanas ou em pequenas atitudes do dia-a-dia

revelando o que para Bauman é uma paranóia moderna.

O resultado de tudo isto é a convivência diária com o medo, a segregação social, a

morte da política, e o esvaziamento de categorias e instituições como a família, classe e bairro e a

emergência do individualismo.

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1. A LIQUEFAÇÃO DA MODERNIDADE

A obra de Bauman, de maneira geral, é marcada por uma análise do processo de

transformação da sociedade pós-industrial através da metáfora da liquidez. O “espírito moderno”

pregado principalmente pelo iluminismo requeria o derretimento dos sólidos marcados pela “tradição”

que havia congelado a sociedade e a impedido de trilhar novos caminhos rumo ao “progresso”. A

liquefação da modernidade haveria de dissolver “(...) o que quer que persistisse no tempo e fosse

infenso à passagem ou imune a seu fluxo” (BAUMAN, 2001: 9). Esse progresso social significaria,

entre outras coisas, uma nova ordem marcada pelo fim das incertezas e a emergência da verdadeira

segurança, em outras palavras:

Os tempos modernos encontram os sólidos pré-modernos em estadoavançado de desintegração; e um dos motivos mais fortes por traz daurgência em derretê-los era o desejo de, por uma vez, descobrir ou inventarsólidos de solidez duradoura, solidez em que se pudesse confiar e quetornaria o mundo previsível e, portanto, administrável (BAUMAN, 2001: 10).

Ao derreter os sólidos eliminaríamos as “obrigações irrelevantes” pregadas por

instituições como a família e a igreja, eliminaríamos tudo que não fosse por meio e fins racionais

restando apenas o dinheiro como mediador entre os homens. A racionalidade, base desse processo,

levaria, então, a uma ordem pautada majoritariamente na economia.

A característica fluida, no entanto, alerta Bauman, ao contrário do que se imagina que

permitiria uma maior liberdade dos seres humanos com relação as “obrigações” e inúmeros problemas

presentes na antiga sociedade industrial, na verdade possui uma estrutura extremamente rígida não

possibilitando a tão desejada liberdade de escolha além de se configurar em um complexo sistema que

interliga todos os setores das nossas vidas.

A situação presente emergiu do derretimento radical dos grilhões e dasalgemas que, certo ou errado, eram suspeitos de limitar a liberdade individualde escolher e de agir. A rigidez da ordem é o artefato e o sedimento daliberdade dos agentes humanos. Essa rigidez é resultado de “soltar o freio”:da desregulamentação, da liberalização, da “flexibilização”, da “fluidez”crescente, do descontrole dos mercados financeiro, imobiliário e do trabalho,tornando mais leve o peso dos impostos etc (...) (BAUMAN, 2001:11).

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Nesse sentido, a liquidez da modernidade toma posição central na configuração das

grandes cidades, tanto nas suas estruturas físicas quanto no relacionamento entre seus cidadãos e um

dos grandes fenômenos intrínsecos desse processo, como aponta Bauman, é o medo.

2. O MEDO NA MODERNIDADE

Bauman faz uma profunda abordagem sobre o medo na sociedade moderna afirmando

que o medo “(...) é o nome que damos a nossa incerteza: ignorância da ameaça e do que deve ser

feito – do que pode e do que não pode – para fazê-la parar ou enfrenta-la, se cessá-la estiver além do

nosso alcance” (BAUMAN, 2008: 8). O autor afirma que nas trevas está a incerteza e que a

“modernidade” seria a possibilidade de acabar com o medo na medida em que as luzes da razão

iluminista iriam dissipar as trevas da ignorância, mas esta foi uma promessa que não se cumpriu, pois

essa razão, que antes pretendia a liberdade, torna-se mais um mecanismo de dominação do homem

pelo homem dentro da sociedade moderna. O medo, então, é algo que compartilhamos diariamente,

mas nos relacionamos com ele individualmente.

O medo é o sentimento conhecido de toda criatura viva. Os seres humanoscompartilham essa experiência com os animais. (...) Os humanos, porém,conhecem algo mais além disso: uma espécie de medo de “segundo grau”,um medo, por assim dizer, social e culturalmente “reciclado”, ou (...) um“medo derivado” que orienta se comportamento (tendo primeiramentereformado sua percepção do mundo e as expectativas que guiam suasescolhas comportamentais), quer haja ou não uma ameaça imediatamentepresente (BAUMAN, 2008: 9).

Ainda segundo o autor, esse medo derivado pode ser encarado como uma sensação

de insegurança, de vulnerabilidade com relação aos perigos. Estamos sujeitos a perigos que não

podemos prever e dificilmente nos proteger e riscos que, a priori, poderíamos calcular. O medo, então,

deriva de vários fatores, mas dentre eles, nenhum é tão significativo quanto à violência em forma da

criminalidade. Nenhum fenômeno perigoso moderno toma tanto da nossa atenção e dos nossos

esforços no dia-a-dia quanto à criminalidade.

Constantemente nos vemos tentando calcular a probabilidade de sermos assaltados,

de sofremos sequestro, de termos nossa casa invadida e de perdemos a nossa vida ou a de outras

pessoas nessas investidas criminosas. Treinamos nossos olhares para identificar pessoas que

possam ser perigosas, não passamos por certos lugares considerados perigosos sozinhos ou

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acompanhados e em horários também considerados perigosos. Isto, como afirma Bauman, é uma

paranoia, fruto da insegurança social causada pelo cruzamento de fatores como: estatísticas de

criminalidade, sensação de crescimento da mesma e o descrédito no poder público. Sentir medo e

tensão se tornou parte da “rotina” nas cidades. Ainda nesse contexto com a banalização da violência

há de forma paradoxal, por um lado, o crescimento do medo e da insegurança e por outro a ideia da

naturalização das violências.

Ainda de acordo com o autor, a sensação de insegurança e vulnerabilidade derivada

do medo é uma característica essencial na formação dos espaços urbanos. A cidade surgiu para

proteger seus cidadãos dos “outros”, dos “estrangeiros”, promessa que também não se cumpriu,

criando assim, o que Bauman denomina “mixofobia”, uma grande suspeita contra o “outro” e um clamor

por segurança. Para ele “(...) a cidade é um espaço em que os estrangeiros existem e se movem em

estreito contato” (BAUMAN, 2009: 36).

O estrangeiro é, por definição, alguém cuja ação é guiada por intenções que,no máximo, se pode tentar adivinhar, mas que ninguém jamais conhecerácom certeza. O estrangeiro é a variável desconhecida no cálculo dasequações quando chega a hora de tomar decisões sobre o que fazer. Assim,mesmo quando os estrangeiros não são abertamente agredidos e ofendidos,sua presença em nosso campo de ação sempre causa desconforto etransformar em árdua empresa a previsão dos feitos de uma ação, suasprobabilidades de sucesso ou insucesso (BAUMAN, 2009: 38).

Assim a cidade que foi um espaço pensado primeiramente para proteger os seus

habitantes, segundo o autor, é associada cada vez mais ao perigo aumentando o investimento em

segurança particular, vigilância de locais públicos e descrédito da segurança pública juntamente com a

redução do controle estatal.

Os medos modernos tiveram início com a redução do controle estatal (achamada desregulamentação) e suas consequências individualistas, nomomento em que o parentesco entre homem e homem – aparentementeeterno, ou pelo menos presente desde tempo imemoriais -, assim como osvínculos amigáveis estabelecidos dentro de uma comunidade ou de umacorporação, foi fragilizada ou até rompido (...) (BAUMAN, 2009: 19).

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Bauman (2009) afirma que o Estado sempre teve a difícil tarefa de administrar o medo

nas sociedades e tecer uma rede de proteção, mas os laços naturais ou artificiais que constituíam a

solidariedade na modernidade sólida é que permitiam a administração do medo, com o rompimento

desses laços as incertezas, os medos, a insegurança emergiram dentro das sociedades.

3. A DISSOLUÇÃO DA COMUNIDADE

A fragilidade de laços e o individualismo tiveram, então, forte relação com o medo e a

insegurança modernos, pois criaram uma desconfiança contínua no outro, no estrangeiro, no

desconhecido e consequentemente um maior isolamento das pessoas nas cidades. A presença da

criminalidade nas cidades fez com que a figura do outro, do estrangeiro e do desconhecido se fundisse

e confundisse com a do criminoso, fazendo emergir uma suspeita constante.

Poderíamos dizer que a insegurança moderna, em suas váriasmanifestações, é caracterizada pelo medo dos crimes e dos criminosos.Suspeitamos dos outros e de suas intenções, nos recusamos a confiar (ounão conseguimos fazê-lo) na constância e na regularidade da solidariedadehumana. Castel atribui a culpa por esse estado de coisas ao individualismomoderno (...) (BAUMAN, 2009: 16).

O que isto provoca, no entanto, é o esvaziamento do sentido de comunidade. Segundo

Bauman, “comunidade”, antes de tudo, significa “segurança”; estar entre os seus conhecidos. Na

comunidade não há perigos, não há estranhos dos quais tenhamos de nos proteger, podemos confiar

uns nos outros.

Em suma, “comunidade” é o tipo de mundo que não está lamentavelmente, anosso alcance – mas no qual gostaríamos de viver e esperamos vir apossuir. (...) Podemos acrescentar que ela sempre esteve no futuro.“Comunidade” é nos dias de hoje outro nome do paraíso perdido – mas aque esperamos ansiosamente retornar, e assim buscamos febrilmente oscaminhos que podem levar-nos até lá (BAUMAN, 2009: 9).

A busca por essa segurança levou cada vez mais a sociedade a produzir fronteiras

tanto materiais quanto imaginárias. A solidariedade, essência da comunidade, deu lugar ao

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individualismo, desconfiança e falta de diálogo. As cidades espaços privilegiados para o encontro entre

os diferentes se tornou espaço para a segregação. Sendo assim, como afirma Caldeira, “a violência e

o medo combinam-se a processos de mudanças sociais nas cidades contemporâneas, gerando novas

formas de segregação espacial e discriminação social” (CALDEIRA, 2000: 9).

Por isso, Caldeira afirma que principalmente as classes mais altas da sociedade

costumam utilizar o medo da violência e do crime numa tentativa de justificar a exclusão social e se

isolam em busca de segurança quando se sentem ameaçados pela ordem social insurgente das

grandes cidades, mas que, além de preocupações com relação ao crime, essas atitudes “(...) também

incorporam preocupações raciais e étnicas, preconceitos de classe e referências negativas aos pobres

e marginalizados.” (CALDEIRA, 2000: 9). O estrangeiro é uma categoria que constitui, juntamente aos

os pobres e marginalizados, as “classes perigosas”.

As novas classes perigosas são, (...), aquelas consideradas incapacitadaspara reintegração e classificadas como não-assimiláveis,porque nãosaberiam se tornar úteis nem depois de uma “reabilitação”. Não é corretodizer que estejam “em excesso”: são supérfluas e excluídas de modopermanente (trata-se de um dos poucos casos permitidos de “permanência”e também dos mais ativamente encorajados pela sociedade “líquida”)(BAUMAN, 2009: 22).

É exemplo disto o pensamento categorizante com relação ao nordestino dentro das

características do estrangeiro, “(...) eles são descritos como sendo menos do que humanos, perigosos,

sujos e contaminantes; são habitantes de lugares impróprios, como cortiços e favelas” (CALDEIRA,

2000: 37). Tais “características do nordestino” entram em confluência com as do pobre e a sucessivas

hierarquizações de aspectos negativos de determinados grupos sociais. No limite dessa

hierarquização com certeza está o criminoso.

4. AS FRONTEIRAS FÍSICAS E IMAGINÁRIAS

Um aspecto interessante abordado por Caldeira é o “espaço do crime”, nas entrevistas

que efetuou com pessoas de diversos grupos sociais durante sua pesquisa na cidade de São Paulo

entre os anos de 1988 e 1998, os espaços marginais são apontados como sendo os “lugares onde o

crime habita”. Lugares considerados perigosos.

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Embora todos os grupos sociais sejam vítimas do crime, elas são vítimas dediferentes tipos de delitos, sendo as classes trabalhadoras as maisvitimizadas pelos crimes violentos. É óbvio que essas diferentes experiênciasmarcam a percepção que cada classe tem do crime. No entanto, paulistanosde diferentes grupos sociais – pelo menos os que eu entrevistei –compartilham algumas concepções sobre o crime e o mal. Eles parecemachar que os espaços do crime são espaços marginais, como favelas ecortiços, e que seus habitantes, criminosos em potencial, são pessoas queestão no limite da sociedade, da humanidade e da sociedade, dahumanidade e da comunidade política. Eles ainda vêem o crime como algoassociado ao mal, que se espalha e contamina facilmente, e que requerinstituições fortes e autoridades para controlá-lo. Esse controle é visto comouma tarefa da cultura contra as forças da natureza (CALDEIRA, 2009: 57).

No entanto, como mostrado por Caleira, apesar do medo da violência ter como alvo

das discussões de Bauman majoritariamente a classe média, as camadas pobres da sociedade que

vivem nesses espaços marginais da sociedade também são vítimas desse medo. As entrevistas feitas

por Caldeira mostram que a imagem do criminoso geralmente está associada ao do pobre e

vice-versa. As favelas, áreas de ressaca, e até conjuntos habitacionais populares construídos para

pessoas de baixa renda são considerados lugares perigosos. Subtende-se, então, que os seus

moradores pertenceriam às classes perigosas e, portanto, o medo não os afetaria.

Nas cidades existem os bairros considerados perigosos, muitas vezes por conta da

difusão do medo “produzido”, em grande parte, pela fala do crime reforçada pelos meios de

comunicação. Ao contrário do que se imagina, nesses lugares há a presença de “atitudes” e aparatos

relacionados à segurança privada de acordo com a condição financeira do indivíduo, que vão desde

pequenas atitudes até mais elaboradas como mostram as imagens a seguir:

Figura 1: Casa em área de rua do bairro Remédios 2 Figura 2: Casa em área de ponte

Figura 3: Casa 02 em área de ponte Figura 4: Casa 03 em área de ponte

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Note como o telhado da casa em área de rua do bairro encontra o muro deixando

apenas uma estreita brecha entre os dois, enquanto que nas casas em área de ponte a atitude mais

comum com relação a impedir o acesso de pessoas indesejadas a casa é uma espécie de portão

colocado na “ponte privada” que leva a residência em áreas alagadas impedindo a passagem.

Esse bairro localizado na cidade de Santana no Amapá é considerado pobre e

perigoso por está localizado numa área de ressaca e por conter em grande maioria pontes. A área de

ponte é constantemente atrelada ao perigo, pobreza e insegurança por vários fatores, dentre eles, o

acesso difícil da polícia ao local e a precária prestação de serviços públicos no que diz respeito à

coleta de lixo, água, energia, ausência de esgoto e uma série de outras questões utilizadas para a

construção da visão estereotipada marginalizante que se tem com relação à essas áreas.

Com relação aos aparatos ligados à segurança, em muitos casos, porém, a arquitetura

envolvendo as casas pode significar uma tentativa de distinção social. A tentativa de estabelecer

distinção e hierarquização social se encontra em todas as camadas. E como afirma Caldeira com

relação a distância social:

Ela pode ser criada materialmente através do uso de grades, que ajudam amarcar uma casa própria como algo claramente distinto de cortiços. O uso decercamentos ainda oferece o sentimento de proteção, crucial em tempos demedo do crime (CALDEIRA, 2000: 70).

Com relação à visão categorizante de pobres e criminosos, em alguns casos Caldeira

afirma que por diversas vezes durante as entrevistas em periferias ocorreram tentativas por parte dos

entrevistados de se diferenciarem dos criminosos:

A proximidade real com o estereótipo do criminoso, entretanto, requer umdiscurso elaborado de distanciamento e separação. Quando entrevistei aspessoas na periferia ou na Moóca, perguntei-me várias vezes se a minha

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insistência no assunto do crime não iria gerar automaticamente ansiedade,dúvidas sobre se eu suspeitava que eles fossem criminosos, e aconsequente necessidade de enfatizar as diferenças As pessoas pobres queentrevistei sempre se esforçaram para distanciar a si mesmos e a outras“pessoas honestas, trabalhadoras” da imagem do criminoso. (...) a categoriado criminoso e seu repertório de preconceitos e depreciações raramente sãocontestados. Ao contrário, a categoria é continuamente legitimada e ospreconceitos e estereótipos contra os pobres (favelados, nordestinos,moradores de cortiços) são reencenados diariamente (CALDEIRA, 2000: 89).

Bauman, fazendo menção a uma entrevista de Ulrick Beck, afirma que a família, a

classe e o bairro seriam “categorias e instituições zumbi”, ou seja que “estão mortas e ainda vivas”

(BAUMAN, 2001: 12). Ocorreu um esvaziamento do sentindo de cada uma delas na medida em que

os laços humanos foram sendo dissolvidos restando apenas o indivíduo levando a perda de

referências na modernidade afetando também a construção de identidade.

O bairro, nesse sentido, enquanto categoria urbana seria o lugar onde poderia habitar

a comunidade e se consolidar a segurança, como afirma Bauman:

A segurança, como todos os outros aspectos da vida humana num mundoinexoravelmente individualizado e privatizado, é uma tarefa que toca a cadaindivíduo. A ‘defesa do lugar’, vista como condição necessária de todasegurança, deve ser uma questão do bairro, um ‘assunto comunitário’(BAUMAN, 2003: 102).

No entanto o bairro se configura em mais um espaço perigoso na modernidade com

suas “ruas ou pontes inseguras”:

O bairro seguro concebido com guardas armados controlando a entrada; ogatuno e suas variantes substituindo os primeiros bichos-papões modernosdo mobile vulgus, e juntamente promovidos à posição de inimigos públicos aenclaves “defensáveis” com acesso seletivo; a separação em lugar denegociação da vida em comum; a criminalização da diferença residual –essas são as principais dimensões da atual evolução da vida urbana. E é namoldura cognitiva dessa evolução que a nova concepção de “comunidade”se forma (BAUMAN, 2003: 104).

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Os laços humanos por sua vez são trocados por cercas elétricas, muros e câmeras e a

insegurança “(...) mantém as pessoas longe dos espaços públicos e a afasta da procura da arte e

habilidades necessárias para participar da vida pública” (BAUMAN, 2003: 104).

CONCLUSÕES

Os fenômenos do medo, da insegurança, da criminalidade, da falta de solidariedade,

da segregação espacial e da discriminação, estão imersos no que Bauman chama de modernidade

líquida. Há um processo crescente de dissolução dos laços que antes ligavam os homens

voluntariamente e diretamente sem a presença de nenhum mediador.

Nessa modernidade, o que se vê são uma série de mediadores como o dinheiro e de

fronteiras que impedem o verdadeiro encontro do homem com o homem, a consequência disso é a

falta de diálogo e a morte da política enquanto atividade inerente aos seres humanos.

Vivemos numa modernidade ambígua, se por um lado a internet, por exemplo, trouxe

diversos avanços no que se refere ao contato e mobilização de pessoas do mundo inteiro, por outro

lado, muitas vezes condiciona as pessoas ao contato virtual e não ao encontro direto que impossibilita

a existência da comunidade.

Nesse sentido, as cidades vêm intensificando e reafirmando a formação dessas

fronteiras. O espaço urbano, como afirma Caldeira, “(...) reforça e valoriza as desigualdades e

separações e é, portanto, um espaço público não-democrático e não-moderno.” (CALDEIRA, 2000:

12). A única saída que Bauman aponta é a tentativa da construção da verdadeira comunidade

restabelecendo os laços humanos e a política.

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REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

______ Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Tradução Plínio Dentzien. Rio de

Janeiro: Zahar, 2003.

______ Medo Líquido. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2008.

______Confiança e medo na cidade. Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2009.

CALDEIRA, Tereza. Cidade de Muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo:

34/Edusp, 2000.

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