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Os conceitos junguianos de inconsciente coletivo e arquétipo mostram o caráter universal das imagens e dinâmicas do inconsciente, que representam modos de estruturação da subjetividade no processo de individuação

Individuaçãoe subjetivação

UUma das idéias centrais da psicologia analítica é o processo de indivi-

duação, que percorre toda a evolução humana (tanto no nível pessoal

como no coletivo) e refere-se ao processo de tornar-se uma pessoa

inteira, subjetivamente integrada, o que desperta um sentido de auto-

realização. É claro que se trata aqui de uma visão idealizada, mas que

sem dúvida motiva o ser humano do nascimento à velhice e o guia nas

escolhas afetivas e profissionais.

Embora todos nós tenhamos os mesmos padrões básicos de comporta-

mento, a relação destes com a consciência vai se transformando à medida

que novos conteúdos da subjetividade são assimilados pela consciência

coletiva. Portanto, a psicologia junguiana é claramente evolutiva, revelando

que o nível de consciência teve grande evolução desde nossos ancestrais

até os dias de hoje, o que inclui conhecimento, cultura, ética e moral.

Por outro lado, o sentido de “ser” e “existir”, independentemente da

educação ou da cultura em que vivemos, é uma experiência intuitiva

cujas bases não podem ser localizadas em uma célula ou em algum lugar

no cérebro. Basta observar bebês recém-nascidos para encontrarmos

certos traços de personalidade que não podem ser reduzidos apenas à

genética ou ao ambiente familiar. É comum crianças entre 3 e 5 anos fala-

rem de si mesmas ou de sua origem não biológica com grande convicção.

Uma menina de 5 anos, ao visitar com a mãe a casa dos avós, pergunta:

“Mamãe, onde eu estava quando você dormia nesse quarto?”.

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O SONHO (1910), de Henri Rousseau. Segundo o próprio pintor, a tela representa uma mulher que, adormecida no sofá, sonha que foi transportada para a floresta. Além dos sonhos, as etapas do processo de individuação (tendência psíquica a realizar potencialidades inatas) se descortinam nos contos de fadas, nos mitos e nas mais diversas produções do inconsciente

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A convicção de haver uma existência anterior à vida consciente, embora não seja uma prova científica de existência pré ou pós-morte, é uma convicção psicológica arque-típica, isto é, comum a toda a humanidade. Portanto, é um fato psicológico, assim como a sensação da existência de um ser transcen-dente, um deus. Com isso, Jung introduziu a possibilidade de estudar a religião como mani-festação psicológica, distinguindo a psicologia do estudo das religiões e da teologia. Aqui não se disputa a existência de “Deus”, mas pode-se afirmar que a idéia de uma representação divina e onipotente está presente na psique, sendo, portanto, comum a toda a humanida-de. Apenas a aparência, forma e características dinâmicas da imagem divina são singulares para cada cultura e era. Mas a essência é a mesma. Ao observar o comportamento de povos primitivos, Jung concluiu que com-portamento religioso é tão elementar quanto a sexualidade, e não necessariamente resulta de uma projeção de aspectos reprimidos da vida erótica. Povos livres na sua expressão sexual cultivavam seus deuses, mantinham suas crenças e seus rituais tradicionais. A vida religiosa decorrente da repressão sexual, observou Jung, era resultante de uma cultura moralista e proibitiva (como na Viena do sécu-lo XIX, em que viveu Freud), a qual limitava a livre expressão e produzia certas psicopa-tologias. Em sociedades menos repressoras,

a vida sexual e a religiosa não se opunham e eram integradas culturalmente por meio de ritos e imagens de fertilidade. Essa afirmação, que em grande medi-da foi um dos pomos da discór-dia entre a célebre ruptura de Freud com Jung, tem sido objeto de inúmeros estudos científicos, especialmente no campo da psi-coneurologia contemporânea.

O processo de individua-ção, tal como concebido por Jung, é resultante da interação do indivíduo com o coletivo. No plano individual, à medida que a criança se desenvolve, certas aptidões e características da subjetividade tornam-se mais evidentes e singulares. De certo modo, o processo de individua-ção depende dessa fina sintonia com o que podemos chamar de nossa essência, que, embora dependa da genética, da edu-cação e do ambiente familiar e

cultural, certamente a tudo transcende.A alegria é a nossa bússola no caminho da

individuação, uma convicção forte e espon-tânea que emerge quando nossas escolhas atuais estão alinhadas com nossa essência inata. Por isso se diz que o horizonte do pro-cesso de individuação são as inúmeras elabo-rações simbólicas que aproximam o indivíduo da pessoa que realmente é. Essa singularidade diferencia um ser de qualquer outro e o torna insubstituível, pois a tarefa que cada um deve cumprir de acordo com seus talentos não pode ser reproduzida por nenhuma outra pessoa, tampouco pode ser reprimida.

Sistemas educativos e políticos rígidos, que tentam adequar o indivíduo a fins lucrativos ou ao bem do Estado, produzem distorções de subjetivação e graves neuro-ses. Depressões e suicídios de jovens são freqüentes em sistemas totalitaristas ou alie-nantes, que obrigam a servidão a uma causa ou colocar-se a serviço de uma idealização em detrimento do desenvolvimento de sua singularidade. Dessa forma, a psicologia junguiana apenas recentemente entrou na Rússia, pois foi execrada na antiga União Soviética, onde a educação estava a serviço do Estado, e não do bem-estar individual.

O mesmo acontece com a criatividade. Indivíduos criativos são mais livres em sua auto-expressão em todos os campos. Sua ligação com o inconsciente, com o material ainda desconhecido pela consciência cole-tiva, traz à tona novas perspectivas e novas soluções técnicas e instrumentais para pro-blemas antes insolúveis.

Exemplos notáveis são encontrados na lite-ratura e na biografia de pessoas célebres que, mesmo desprovidas de qualquer possibilida-de educativa ou de recursos materiais, desen-volveram grandes talentos. James Hillman dá como exemplo um grande pianista de jazz americano (possivelmente Van Cliburn Jr.) que, por falta de recursos financeiros para comprar o próprio instrumento, utilizava o desenho de um teclado sobre uma folha de papel para exercitar a leitura musical. Durante muito tempo em sua infância, esse desenho foi o único teclado em que ensaiou e treinou suas capacidades, até o dia em que se trans-formou em um músico profissional.

dinâmicas do inconscienteSaindo dos exemplos excepcionais, a forma como cada um de nós lida com dificuldades e desafios do cotidiano revela, em boa parte, as qualidades do Self. Por Self entendemos tanto a totalidade psíquica, que inclui os ©

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PRESENTE PARA IEMANJÁ, na praia do Rio vermelho, em

Salvador. Os arquétipos mudam a forma de se apresentar, mas seu

dinamismo continua o mesmo ao longo dos tempos e nas

diferentes culturas. No brasil, a imagem arquetípica da Grande Mãe ressurge, por exemplo, na figura dessa rainha do mar, que

protege os filhos a todo custo

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aspectos conscientes e inconscientes, como também o arquétipo do centro da persona-lidade, que confere orientação e sentido à vida psíquica. Assim o Self é entendido paradoxalmente como totalidade dinâmica e arquétipo central de onde emergem os símbolos que podem ser experimentados e integrados pela psique subjetiva. Sendo um arquétipo, o Self abrange toda experiência humana e representa uma trama de sentidos potenciais, de caráter universal, que carac-teriza a natureza igualmente paradoxal do homem como ser coletivo e ser ontológico.

Jung concebe o inconsciente como fonte de criatividade e potencialidade, e não ape-nas como o depositário de conteúdos recal-cados, imagens infantis e vivências dolorosas protegidas por mecanismos de defesa. Do inconsciente surgem os impulsos que tomam forma na matéria, de acordo com o espaço e o tempo de uma pessoa.

O conceito de arquétipo, como represen-tação psicológica da vida instintiva, explica o aspecto universal dos padrões de compor-tamento humano, tal como o esqueleto que estrutura e dá base ao corpo. Embora todos nós tenhamos a mesma anatomia e fisiologia, não há um ser idêntico ao outro. A maneira como cada pessoa atualiza os arquétipos depende das vivências individuais, educa-cionais e socioculturais. Em cada época, os arquétipos mudam a roupagem com que se apresentam, embora seu dinamismo básico permaneça o mesmo.

A exemplo do arquétipo da Grande Mãe, podemos observar que desde as épocas das cavernas já havia cultos a imagens femininas de largos quadris e muitas mamas, apontadas como criadoras do mundo e deusas da ferti-lidade. Essa imagem passou por transforma-ções ao longo do tempo e hoje aparece no Brasil, por exemplo, nas formas de Iemanjá e de Nossa Senhora Aparecida. A crescente expansão do culto a Iemanjá observada em todo o litoral é uma demonstração da força que esse arquétipo exerce sobre a psique do povo brasileiro. Nesse ritual, repete-se o culto que os antigos gregos faziam à deusa Afrodite, com oferendas de flores, perfumes e pedidos levados em pequenos barcos lan-çados ao mar. Para muitos brasileiros, a espe-rança de renovação da vida por meio desse ritual independe da religião e tornou-se um ritual pagão feito por pessoas de diferentes níveis socioculturais.

Os arquétipos também são facilmente observáveis na literatura e nas artes em geral, entre eles os contos de fadas, em que pode-

mos identificar as tarefas que o ego infantil deve superar durante seu crescimento. A história de João e Maria mostra que, quan-do as crianças são fragilizadas pela falta de capacidade dos pais em alimentá-las (amo-rosamente), elas são levadas a uma jornada solitária pela floresta, onde são seduzidas com doces e guloseimas pela bruxa malvada. A falta de um ambiente familiar acolhedor e amoroso faz com que os filhos tenham de desenvolver por si mesmos a capacidade de superar o desamparo e a aridez de uma mãe que vive da vida dos filhos, isto é, de uma grande mãe devoradora.

O caráter atual do conto também pode ser observado na psicodinâmica simbólica da anorexia e da bulimia, que se tornaram distúr-bios bastante comuns na cultura contemporâ-nea. A ditadura da moda de magreza extrema obriga, principalmente os jovens, a perseguir um padrão estético por vezes incompatível com o bem-estar físico e revelador de uma base afetiva extremamente frágil. Ou seja, ser benquisto está profundamente associado (e estimulado pela mídia) a apresentar um corpo escultural, uma pele impecável (de bebê) ou uma roupa que esconde as formas femininas em seu aspecto maternal. Vemos com isso duas polaridades do arquétipo da Grande Mãe. O positivo – quando sua ima-gem é reverenciada nos rituais de renovação do Ano-Novo – e o negativo – como na magreza excessiva, na tentativa de vencê-la como forma de adentrar uma outra dinâmica

JuvENTuDE HITLERISTA faz a saudação nazista. Sistemas totalitários – como o Terceiro Reich ou a união Soviética – submetem o indivíduo ao Estado, distorcendo o processo de individuação

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arquetípica. No processo evolutivo, observa-mos também os movimentos ecológicos como uma maior consciência da Mãe Natureza, antes menosprezada e vilipendiada.

A passagem do arquétipo da Grande Mãe para o do Pai Espiritual é ilustrada na história dos Três Porquinhos e o Lobo Mau. Aqui vemos a necessidade de fortalecimento do ego para enfrentar as adversidades do crescimento, deixando a casa da mãe para construir um mundo independente. Ao depa-rarem com o Lobo Mau, o aspecto negativo da figura paterna, os porquinhos percebem que uma casa feita às pressas, com material frágil, é facilmente derrubada pelo sopro da violência. A experiência vai ensinar que somente uma casa solidamente construída (ego forte e em contato com a realidade) pode lhes oferecer um abrigo suficientemen-te seguro, no qual poderão sobreviver longe da proteção materna.

O arquétipo subjacente a essas histórias é o Mito do Herói, talvez o mais presente no mundo literário e cinematográfico de todos os tempos. De Tarzan, o rei da selva, a Neo, o herói de Matrix, a imagem arquetípica do jovem que é levado a desafiar os valores pre-dominantes da cultura nos ensina a incorporar habilidades inovadoras e a vencer obstáculos

aparentemente intransponíveis. Sua função libertadora ajuda a humanidade a confiar no aspecto transcendente e transitório da condi-ção humana. Os símbolos presentes nessas histórias são também elementos facilitadores na integração dos conteúdos inconscientes.

a união dos opostosJung usou o conceito de símbolo de acordo com sua etimologia: sym = juntar, unir; bal-lein = em direção a uma meta, um objetivo. Nesse sentido, symballein significava, na anti-ga Grécia, o ato de unir duas metades de uma mesma moeda que fora partida na separação de duas pessoas. Quando uma delas desejava enviar uma mensagem importante à outra, o mensageiro trazia consigo uma das metades da moeda. Desse modo, o destinatário da mensagem poderia verificar sua autenticidade ao constatar a perfeita união das duas meta-des (uma conhecida, outra incógnita).

A palavra “símbolo” passou a ser empre-gada para designar a união de opostos – algo conhecido, consciente, com algo desconhe-cido, inconsciente. Como aquilo que é des-conhecido tem um valor afetivo, o símbolo sempre desperta uma emoção. É esse o seu aspecto numinoso: ele aponta para uma cone-xão entre aspectos conscientes e inconscien- D

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MITO DO HERÓI. Tarzan, o rei da selva, representa a força do jovem

que desafia valores predominantes. Abaixo, pôster do filme de 1932,

dirigido por W. S. van Dyke

Entramos no século XXI com uma questão, talvez a mais intrigante de todas, muito pouco esclarecida: como matéria e psique se relacionam? Essa pergunta, que tem sido objeto de estudo desde os primeiros filósofos até os cientistas de ponta de nossa era, está longe de ser respondida. Várias tentativas têm sido feitas, até mesmo por Freud, que em 1895 tentou construir um modelo neuro-científico da mente. Ao final, foi obrigado a desistir desse projeto, ao perceber que a maioria dos conceitos fundamentais sobre os quais se baseava não passava de mera especulação.

O argumento da época era que a biologia não seria suficien-temente avançada para ser útil à psicanálise. Mais de um século se passou, e, apesar do incrível progresso nas ciências biológicas, um grande número de psicanalistas continua a manter o ponto de vista de Freud, às vezes de modo mais radical. Alguns afirmam, por exemplo, que a ciência da mente e a ciência do corpo usam lin-guagens, conceitos e instrumentos tão diferentes que não é possível unificá-las em uma linguagem comum. Outros, entretanto, buscam na interdisciplinaridade a formação de um campo fértil de idéias, com a expectativa de propor um novo salto no conhecimento.

Nesse sentido, o Núcleo de Estudos Junguianos do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP tem sido pioneiro ao promover um debate com cientistas das áreas da física, neurologia

e psicologia. O diálogo entre física e psicologia não é novo para os junguianos. É bem conhecido o relacionamento de Jung com Albert Einstein e Wolfgang Pauli. Se a física newtoniana pressupunha um objeto a ser estudado fora da psique, a física quântica questionou a primazia da objetividade e afirmou que toda observação depende da posição do observador, trazendo a subjetividade, da qual algumas correntes da psicologia tentaram se livrar, de volta à física.

Do mesmo modo, o reducionismo da neurologia do século passado e a crença no domínio da genética estão cedendo lugar à neuropsico-logia e à hipótese de que o gene pode sofrer mutações por causa do stress psicológico. Portanto, o que iremos discutir daqui para a frente não é mais se esses campos se relacionam, mas como eles o fazem.

Jung afirmou que o inconsciente coletivo contém toda a herança espiritual da evolução da humanidade, renascida na estrutura cerebral do indivíduo. E também que a separação entre psicologia e biologia é artificial, pois a psique humana vive em união indisso-lúvel com o corpo, de modo que a cisão entre a mente e o corpo começa agora a ser sanada. Para isso, contudo, é necessário com-preender que psique e matéria são fenômenos inter-relacionados e não redutíveis um ao outro. Usando uma metáfora, poderíamos dizer que, embora a música dependa de um instrumento, ela não é redutível à matéria da qual este é feito. Assim como o piano não

ORGANISMO COMO TOTALIDADE INDIVISÍVELPsique e matéria são fenômenos inter-relacionados, que não se reduzem um ao outro

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tes de um mesmo fenômeno. Por mais que saibamos o significado racional das cores e da forma de uma bandeira brasileira, é quase impossível não nos emocionarmos quando a vemos tremulando em um evento de impor-tância internacional, por exemplo.

Assim, o símbolo sempre contém um aspecto irracional e tem um enorme poder de mobilização. Ele pode provocar grandes trans-formações de caráter estruturante, mas tam-bém conflitos étnicos e religiosos. Podemos perceber o símbolo em formas concretas, como bandeiras, slogans e hinos, ou em eventos como a queda do Muro de Berlim, a derrubada da estátua de Stalin ou de Saddam Hussein. O símbolo representa a conexão com a energia arquetípica necessária para a consecução de feitos que alteram o estado das coisas e podem trazer novas soluções para conflitos aparentemente insolúveis.

Grandes invenções tiveram o símbolo como mediador do processo de conheci-mento, como conta a história da descoberta do anel de benzol. Friedrich Kekulé, químico alemão do século XIX, que tentava, com pouco sucesso, descobrir a estrutura química do benzeno, sonhou que as moléculas se reuniam na forma de serpentes. Quando uma delas mordeu a própria cauda, de

súbito Kekulé entendeu que a estrutura era um anel, dando assim um grande passo no progresso da química.

Em outros momentos, o símbolo é o elemento que traz nova luz a uma situação aparentemente sem saída. Um jovem exe-cutivo bem-sucedido de 42 anos, solteiro e muito assediado pelas mulheres, achava-se bastante deprimido e desmotivado, pois, segundo sua opinião, “já havia alcançado o topo de tudo que desejava, nada mais restando a fazer”. Um sonho lhe esclareceu bem sua situação, revelando o perigo em que se encontrava. Sonhou que estava em uma nave espacial brilhante e prateada, que de repente despencou, caindo em um charco na periferia da cidade. Imediatamente, men-digos sujos e maltrapilhos invadiram a nave e roubaram tudo que é precioso. Percebemos dessa forma que o sonhador estava vivendo com uma atitude de superioridade, inflada, dissociada de seus aspectos mais simples e humildes, correndo o risco de tudo perder.

Esses aspectos menosprezados ou reprimi-dos pela atitude consciente podem surgir nos sonhos sob a forma de figuras degeneradas, ladrões, personagens estrangeiros ou de cons-tituição física oposta. Podem aparecer também nos preconceitos, nos atos falhos, nos lapsos RE

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faz a música, a matéria do cérebro não faz a psique – mas um não existe sem o outro. Poderíamos dizer que toda produção humana, como a música, é produto de um fator que transcende a matéria e a própria consciência – isto é, o símbolo, fator básico na construção do ser humano e da cultura.

Por exemplo, ao investigarmos por que a doença cardíaca está entre as que mais matam no mundo moderno, tendo sua incidência crescido nos últimos anos, percebemos que o coração não é somente um órgão fisiológico, mas tem também uma psique que reage ao sofrimento emocional. Isto é, um sofrimento amoroso é também um sofrimento cardíaco, e vice-versa. Pesquisas atuais têm colocado a hostilidade e o cinismo como fatores de risco para doenças cardiovasculares.

O organismo, enfim, é uma totalidade indivisível onde qualquer sofrimento emocional é imediatamente traduzido em diferentes sis-temas corporais, podendo dar origem às mais diferentes doenças. Um estímulo visual traumático, por exemplo, é transduzido em cada sistema orgânico de acordo com sua especificidade. O sistema cardiovascular pode se expressar por uma taquicardia, o sistema imunológico por uma diminuição das células NK (natural killers), diminuindo assim a capacidade de sobrevivência do organismo.

(Por Denise Gimenez Ramos)

ORGANISMO COMO TOTALIDADE INDIVISÍVELPsique e matéria são fenômenos inter-relacionados, que não se reduzem um ao outro

A DIvINA FORMA HuMANA. A ilustração alquímica de D. A. Freher (1764) mostra o caminho do conhecimento, do coração à cabeça, onde, depois de passar pelos “sete espíritos de Deus”, de que é feito o homem, desperta o conhecimento puro

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de língua, como o de uma jovem que, ater-rorizada perante seu professor de física, um homem muito severo e repressor, pergunta aos colegas, ao tentar entender uma formula-ção complexa sobre o movimento parabólico: “O que é movimento paralítico?”. A situação provavelmente provocou a emergência de um complexo paterno autoritário projetado sobre a figura do professor, paralisando a jovem na sua capacidade de pensar.

Assim, os complexos fazem parte do nosso inconsciente pessoal, isto é, da sombra, e são responsáveis em grande parte por nossos comportamentos mais aberrantes e pobre-mente adaptados à realidade. Podem levar, por exemplo, um pai de família calmo e tranqüilo a se tornar um assassino em poten-cial, quando provocado no trânsito. Nesse momento, o complexo de inferioridade assu-me o controle, subjuga o ego, e uma enorme quantidade de energia é despendida na tarefa de vencer um adversário imaginário. Sob a ótica da psicologia analítica, esse adversário intangível é projetado sobre um motorista desconhecido que inadvertidamente deflagra a atitude defensiva, a qual, por sua vez, vinha protegendo o pacato pai de família contra o próprio sofrimento inconsciente, cerne do complexo. Esse sofrimento pode ter origem em um conflito, recente ou primitivo, mas de todo modo inacessível à consciência.

máscaras e projeçõesA necessidade de nos adaptarmos à vida em sociedade e às exigências culturais leva-nos também a desenvolver aquilo que Jung cha-mou de persona, isto é, uma máscara coleti-vamente reconhecível e socialmente aceitável. Ela é responsável por nossa adaptação ao mundo social e é expressa no nosso esti-lo de vida, nas imagens que temos sobre as categorias profissionais e até mesmo na moda. Esta tem assumido uma importância cada vez maior na sociedade, pois aquele que tem uma persona bem adaptada – isto é, que corresponde às expectativas da moda – tem maiores chances de ser reconhecido como uma pessoa bem-sucedida e amada. Quando extremamente rígida, a persona pode se dissociar dos aspectos mais profundos do ser e passa a expressar apenas um aspecto desejado externamente, sem refletir o caráter mais ontológico do Self. Quando integrada, a persona é criativa e possibilita a expressão de diferentes facetas do indivíduo.

Outro conceito importante na psicologia de Jung é a hipótese sobre um aspecto do inconsciente mais indiretamente observado: a anima e o animus, que são as contrapartes sexuais do homem e da mulher, respecti-vamente, e funcionam como ponte entre o mundo interno e o ego.

Assim como existem aspectos biológicos masculinos na mulher, há também aspectos psicológicos masculinos correspondentes ao arquétipo do animus. A anima ou o animus contêm as qualidades humanas que faltam na disposição consciente. Uma mulher muito feminina terá aspectos inconscientes mais viris, assim como um homem muito másculo terá em seu mundo interno qualidades pro-fundamente enraizadas no feminino. Como na cultura contemporânea o masculino e o feminino estão em constantes transfor-mações, anima e animus passaram a ser denominações para tudo que é deixado de fora da persona.

O essencial desse conceito é que anima e animus são representações psíquicas daquilo que nos inspira a seguir nossos desejos e ideais, de modo a ampliar nossa consciência. As projeções românticas têm a função de estabelecer um confronto com o inconsciente, e sua retirada permite uma expansão do auto-conhecimento. Mediante a relação com o sexo oposto podemos conhecer a realidade de nosso potencial, pois tornar-se consciente não é um projeto isolado. Embora requeira certa dose de introspecção, essa jornada implica um convívio com o outro para se realizar.

O CRÍTICO DE ARTE Carleton Smith examina

escultura egípcia com Jung, que foi grande conhecedor

de filosofia, arqueologia, mitologia e paleontologia.

Seu interesse nessas áreas o levou a investigar os símbolos

utilizados pela humanidade com fins mágicos ou religiosos

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deusas, divas e pin-upsAo longo dos séculos, a figura feminina tem sido para o homem a inspiradora nas suas descobertas e feitos heróicos. Tomando a mitologia como ilustração, percebemos em Ariadne a imagem da anima, cuja promessa de amor não apenas inspira a luta de Teseu contra o Minotauro – o aspecto sombrio e monstruoso do herói –, mas também fornece a ele o fio condutor para um retorno segu-ro para fora do labirinto. Ela é, ao mesmo tempo, a musa que inspira a luta heróica e a luz que aponta a saída da escuridão do inconsciente. Deusas, divas, pin-ups, mode-los e artistas são o objeto dessa projeção arquetípica e inspiram desde sempre os fei-tos heróicos, artísticos e científicos que dão sentido à busca da individualidade.

Enquanto a anima se associa à receptivi-dade afetiva no homem, o animus representa sistemas de avaliação e capacidade de julga-mento. Assim, liga-se a convicções por vezes indiferenciadas quando uma mulher passa a se acreditar portadora de certezas abso-lutas e defensora de valores extremamente rígidos. Em seu aspecto criativo, o animus liga a mulher à capacidade de discrimina-ção, às atitudes e iniciativas construtivas de modo consciente. Por meio da dinâmica do animus, ela aprende a aceitar a reparação, a independência e a responsabilidade por suas reações emocionais. Em geral, o animus é projetado em figuras de professores, líderes e figuras de autoridade que inspiram às mulheres a realização de seu potencial social e a saída dos recônditos do mundo familiar. Entretanto, quando a união entre mãe e filha é tão intensa que a possibilidade de um casamento é sentida quase como um ato de ruptura abrupta, figuras de homem-vilão podem emergir.

É a história de Perséfone, a jovem ino-cente, filha da grande mãe Deméter, que um dia foi raptada por Hades, o rei do mundo inferior, quando passeava pelos campos floridos. Aqui, Hades representa a imagem do animus que transporta Perséfone para outra dimensão, retirando-a das limitações do mundo conhecido. A mesma temática pode ser percebida em novelas e filmes em que o homem-vilão desempenha o papel daquele que abre por vezes dolorosamente os horizontes e dá, apesar do sofrimento, novas perspectivas para o desenvolvimento do potencial da mulher.

Os complexos também se manifestam no plano da identidade de um grupo social, e nesse caso são denominados complexos cultu-

PARA CONHECER MAIS

● O Homem e seus símbolos. C. G. Jung e M. L. von Franz. Nova Fronteira, 1964.

● O mapa da alma. M. Stein. Cultrix, 1998.

● Memórias, sonhos, reflexões. C. G. Jung. Nova Fronteira, 1986.

● O código do ser. J. Hillman. Objetiva, 2001.

● Corruption: Symptom of a cultural complex in Brazil?. D. Ramos, em The Cultural Complex – Contemporary Jungian perspectives on psyche and society, T. Singer e S. L. kimbles (orgs.). Hove: brunner-Routledge, 2004

rais. No Brasil, o complexo cultural mais evidente é o sentimento de inferioridade, visível especialmente nas relações dos brasileiros com países do exterior. A supervalo-rização do que é estrangeiro em detrimento do produto nacional, atitudes autodepreciativas presen-tes em piadas e na falta de valo-rização de tudo que é nativo têm contribuído em grande parte para a tolerância com corrupção, que-bra da lei, favoritismos e outros comportamentos espúrios de, prin-cipalmente, figuras de autoridade. Somente a consciência desse com-plexo, cuja raiz remonta à época do descobrimento e da escravidão, possibilitará a recuperação da auto-estima, dando a real dimensão do valor da identidade brasileira.

Embora a incorporação dos elementos inconscientes na cons-ciência seja um processo lento e doloroso, cada passo nessa direção, mesmo que comece por um pequeno grupo, certamente contribuirá para uma melhora na qualidade de vida de todos. O desenvolvimento da consciência traz, também, uma mudança no padrão ético. O comportamento moral e a saúde mental são, sem dúvida, as bases de uma sociedade saudável.

Jung, em sua última entrevista (1959), aos 84 anos, disse a um repórter da BBC de Londres que precisaríamos cada vez mais da psicologia, pois todo mal que estava por vir partiria do próprio homem. A história continua como testemunho dessa verdade, mas também podemos dizer que todo bem que está por vir só depende do desenvolvimento de nossa consciência – e esse caminho é, sem dúvida, a grande contribuição do mestre Jung.

OS AuTORES. DENISE GIMENEZ RAMOS é coordenadora do Núcleo de Estudos Junguianos do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PuC-SP, membro analista da Sociedade brasileira de Psicologia Analítica e do comitê executivo da International Association for Analytical Psychology. Autora de A

psique do coração (Cultrix, 1990) e A psique do corpo (Summus, 2006). PERICLES PINHEIRO MACHADO Jr. é psicólogo, membro da International Association for Jungian Studies. Psicanalista em formação junto ao Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientae. Tradutor dos livros Jung e a vida simbólica, de Christian Gaillard (Loyola, 2003) e O pai: história e psicologia de uma espécie

em extinção, de Luigi Zoja (Axis Mundi, 2005).

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OS SERES ANDRÓGINOS representam a busca da completude humana no que diz respeito à conjunção dos aspectos feminino e masculino. Separados por Zeus, eles vivem para encontrar sua metade. A imagem deles é um entre tantos símbolos da anima e do animus, as contrapartes do homem e da mulher, respectivamente, que fazem a ponte entre o mundo interno e o ego