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INDÍGENAS KADIWÉU NA HISTÓRIA E NO ENSINO DE HISTÓRIA (1997-2004): UMA RADICAL EXPERIÊNCIA DE ALTERIDADE Giovani José da Silva – Universidade Federal do Amapá (Unifap) Considerações iniciais Publicado em 1994, o texto de Circe M. F. Bittencourt intitulado O ensino de História para populações indígenas apresentou o problema do ensino de História para índios como um desafio de proporções imensuráveis. Tomando o título e as idéias daquele texto como fonte de inspiração, a presente comunicação tem por objetivo geral contribuir ao debate teórico- metodológico sobre um tema que já foi “[...] inexplorado por educadores, antropólogos e completamente ignorado por historiadores [...]” (BITTENCOURT, 1994, p. 105). Especificamente, o ponto de partida para as reflexões é a experiência docente do autor entre indígenas Kadiwéu, localizados atualmente em Mato Grosso do Sul. Os Kadiwéu ou Ejiwajegi 1 (lê-se “edjiúádjêguí”), como se autodenominam, concentram-se no município de Porto Murtinho, Reserva Indígena Kadiwéu, a maior porção de terras indígenas do Centro-sul brasileiro, com mais de meio milhão de hectares. Entre 1997 e 2004 viviam distribuídos em pelo menos cinco aldeias (Barro Preto, Bodoquena, Campina, São João e Tomázia), sendo a maior delas a aldeia Bodoquena, com pouco mais de 1.000 habitantes 2 , onde está situada a Escola Municipal Indígena “Ejiwajegi” – Pólo, criada no final de 1998. Nesta unidade escolar, entre os anos 1997 e 2004, o autor desenvolveu atividades como docente do componente curricular escolar História, dentre outros, nas séries finais do Ensino Fundamental (então 5 a a 8 a séries) e no Ensino Médio (Curso Normal de Formação de Professores Indígenas). No texto a seguir, a memória da comunidade Kadiwéu sobre a escola dos “tempos de antigamente” e sobre o ensino de História, em particular a Guerra do Paraguai, é problematizada a partir das categorias práticas culturais, identidades e representações. Crê-se que imbricada à história, em uma perspectiva cultural, a memória social de grupos indígenas, como a dos Kadiwéu, potencializa epistemologicamente a produção de conhecimentos nas áreas de Ensino de História e História da Educação. Dessa 1 As palavras em língua Kadiwéu, apresentadas ao longo do texto, foram retiradas do Dicionário da língua Kadiwéu (SOCIEDADE INTERNACIONAL DE LINGÜÍSTICA, 2002). 2 PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO MURTINHO, 1998.

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INDÍGENAS KADIWÉU NA HISTÓRIA E NO ENSINO DE HISTÓRIA (1997-2004):

UMA RADICAL EXPERIÊNCIA DE ALTERIDADE

Giovani José da Silva – Universidade Federal do Amapá (Unifap)

Considerações iniciais

Publicado em 1994, o texto de Circe M. F. Bittencourt intitulado O ensino de História

para populações indígenas apresentou o problema do ensino de História para índios como um

desafio de proporções imensuráveis. Tomando o título e as idéias daquele texto como fonte de

inspiração, a presente comunicação tem por objetivo geral contribuir ao debate teórico-

metodológico sobre um tema que já foi “[...] inexplorado por educadores, antropólogos e

completamente ignorado por historiadores [...]” (BITTENCOURT, 1994, p. 105).

Especificamente, o ponto de partida para as reflexões é a experiência docente do autor entre

indígenas Kadiwéu, localizados atualmente em Mato Grosso do Sul. Os Kadiwéu ou

Ejiwajegi 1 (lê-se “edjiúádjêguí”), como se autodenominam, concentram-se no município de

Porto Murtinho, Reserva Indígena Kadiwéu, a maior porção de terras indígenas do Centro-sul

brasileiro, com mais de meio milhão de hectares. Entre 1997 e 2004 viviam distribuídos em

pelo menos cinco aldeias (Barro Preto, Bodoquena, Campina, São João e Tomázia), sendo a

maior delas a aldeia Bodoquena, com pouco mais de 1.000 habitantes 2, onde está situada a

Escola Municipal Indígena “Ejiwajegi” – Pólo, criada no final de 1998.

Nesta unidade escolar, entre os anos 1997 e 2004, o autor desenvolveu atividades

como docente do componente curricular escolar História, dentre outros, nas séries finais do

Ensino Fundamental (então 5a a 8a séries) e no Ensino Médio (Curso Normal de Formação de

Professores Indígenas). No texto a seguir, a memória da comunidade Kadiwéu sobre a escola

dos “tempos de antigamente” e sobre o ensino de História, em particular a Guerra do

Paraguai, é problematizada a partir das categorias práticas culturais, identidades e

representações. Crê-se que imbricada à história, em uma perspectiva cultural, a memória

social de grupos indígenas, como a dos Kadiwéu, potencializa epistemologicamente a

produção de conhecimentos nas áreas de Ensino de História e História da Educação. Dessa

1 As palavras em língua Kadiwéu, apresentadas ao longo do texto, foram retiradas do Dicionário da língua

Kadiwéu (SOCIEDADE INTERNACIONAL DE LINGÜÍSTICA, 2002). 2 PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO MURTINHO, 1998.

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forma, espera-se contribuir, por meio do presente texto, com os debates acadêmicos, ainda

escassos 3, que versam sobre a História da Educação Escolar Indígena no Brasil e as

implicações do ensino de História para grupos indígenas no país.

Sabe-se da existência de unidades escolares presentes na Reserva Indígena Kadiwéu

pelo menos desde a década de 1940 (JOSÉ DA SILVA; LACERDA, 2004). Até 1997, porém,

as escolas localizadas nas aldeias dos Kadiwéu e Kinikinau (estes últimos concentrados na

aldeia São João) ofereciam somente as quatro séries iniciais do Ensino Fundamental e eram

administradas pela Fundação Nacional do Índio (Funai), em parceria com a Secretaria de

Estado de Educação de Mato Grosso do Sul, missões evangélicas, Secretarias Municipais de

Educação de Bonito e de Bodoquena e o então Summer Institute of Linguistics, hoje

Sociedade Internacional de Linguística (SIL). Salienta-se que em nada diferiam das escolas

públicas encontradas comumente no meio rural brasileiro, com problemas de atraso de

pagamento de salários aos professores, falta de merenda escolar e de material didático-

pedagógico, dentre outros.

Em dezembro de 1998 foi criada, por Lei Municipal (nº. 1.149/98), a Escola Municipal

Indígena “Ejiwajegi” – Pólo, na aldeia Bodoquena, e Extensões nas aldeias Barro Preto

(Extensão Barro Preto), Campina (Extensão Campina), São João (Extensão Aquidabã) e

Tomázia (Extensão Tomázia). No início de 1999, organizou-se o primeiro quadro curricular,

com a inclusão de Língua Indígena como um dos componentes curriculares escolares

obrigatórios. Uma das metas de curto prazo estabelecidas pelos indígenas foi o afastamento de

todos os professores não índios dos anos iniciais do Ensino Fundamental. O maior problema a

ser enfrentado na época, era o fato de que a maioria dos candidatos indígenas apresentados

pelas próprias comunidades, para ocupar vagas de professor, não tinha formação mínima

adequada para exercer as funções no magistério.

Entretanto, não era apenas a regularização da escola que os preocupava, pois os índios

mostravam-se descontentes também com o fato de os estudos na aldeia se encerrarem na 4ª

série do Ensino Fundamental. Quem desejava continuar estudando, deveria procurar a cidade

e, por essa razão, muitos paravam de frequentar a escola. Ainda de acordo com Circe M. F.

Bittencourt:

3 Nos anos 2000 foram publicados textos sobre o ensino de História entre populações indígenas, o que se constituiu honrosa exceção ao silêncio acadêmico sobre o assunto durante anos. Confira, por exemplo, LOPES DA SILVA; FERREIRA, 2001.

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Existe uma solicitação por parte de vários grupos indígenas em torno da educação escolar, na qual se inclui a inserção das várias disciplinas escolares e não apenas o domínio da escrita e da leitura. Esta demanda de educação, segundo os padrões da cultura dos brancos [não índios], é um dado significativo pelo qual podemos identificar alguns aspectos do atual momento histórico das relações entre o grupo dominador e o dominado, relações cuja tônica tem sido marcada por desigualdades de trocas (BITTENCOURT, 1994, p. 105).

Para os Kadiwéu, ao final da década de 1990, a situação não se apresentava de forma

distinta. A instalação das séries finais do Ensino Fundamental na Escola Municipal Indígena

“Ejiwajegi” – Pólo, a partir do ano 2000, colocou, entretanto, um impasse para o grupo

indígena. Ao mesmo tempo em que desejavam ver crianças, adolescentes e jovens estudando

na própria aldeia Bodoquena, pais e mães não abriam mão de que seus filhos fossem

ensinados por professores habilitados. Naquele momento, porém, poucos índios haviam

concluído o Ensino Fundamental e a solução encontrada foi a contratação de professores não

índios (ecalailegi, lê-se “ecalailêguí”). Assim, no início de 2000, um dos autores deste artigo,

Giovani José da Silva, acompanhado pelo sociólogo e professor José Luiz de Souza, oriundo

do município de Santo André, Estado de São Paulo, iniciou os trabalhos pedagógicos com

duas turmas de 5a série do Ensino Fundamental, que totalizavam, em conjunto, 54 alunos

indígenas.

Os primeiros contatos com esses alunos revelaram o que meninos e meninas Kadiwéu

entendiam, até então, por uma “boa escola” (elee niigaxinagadi, lê-se “elé niirratchinarrádi”).

Em recorrentes representações, os alunos referiam-se ao “lugar de ensino” como um local de

castigos físicos e psicológicos de toda sorte, além de ser função da escola somente ensinar “as

coisas dos brasileiros”. Os professores não índios se percebiam em distintas categorias

relacionais, tais como ecalailegi, “brasileiro” ou “forasteiro”. Todas essas categorias

remetiam para as marcas da alteridade nas quais se posicionavam frente à identidade étnica

Kadiwéu: em suma, eram “estrangeiros”. Além disso, os próprios pais e mães de alunos

cobravam atitudes tornadas corriqueiras na escola da aldeia Bodoquena e demonstravam não

compreender o fim dos castigos.

A partir dessa situação, foi necessário recuperar a História da Educação Escolar entre

os próprios Kadiwéu. A elaboração dessa história ocorreu em momentos distintos, tanto no

Ensino Fundamental como no Ensino Médio. Entre os alunos de 5ª a 8ª séries e os alunos do

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Curso Normal em Nível Médio – Formação de Professores Kadiwéu e Kinikinau (2001-2004)

foi realizada uma vasta pesquisa que consistiu na delimitação do objeto a ser investigado (a

escola dos “tempos de antigamente”), realização de entrevistas, transcrição do material

gravado, apresentação de resultados nas modalidades oral e escrita das línguas portuguesa e

Kadiwéu, devolução dos resultados à comunidade pesquisada. De forma geral, obteve-se um

amplo painel de narrativas que abrange praticamente toda a segunda metade do século XX e

retrata o ambiente escolar na aldeia Kadiwéu, a partir da memória de seus protagonistas, ou

seja, os próprios índios.

A escola nos “tempos de antigamente” entre os Kadiwéu: memórias indígenas

Nas narrativas apresentadas abaixo, verifica-se como a escola foi vista e vivenciada

por indígenas Kadiwéu, na segunda metade do século XX4:

1ª narrativa (referente à década de 1950):

Quando eu conheci a escola dos primeiros tempos não tinha professor, o professor era o chefe de posto, ele era chefe e professor. Todo dia de manhã a primeira coisa que nós fazíamos era ler todo o alfabeto, por isso a turma se chamava 1ª A. Aí depois do A fazíamos as contas de 500 números e quando já sabíamos, passávamos para as contas de 1.000 números. Nós ganhávamos material escolar, essa escola era do tempo do SPI e o nome da escola era Escola Indígena Alves de Barros. Quando os alunos entravam, formavam fila, quando saíam, também formavam fila. Quando saíamos no intervalo, o chefe ensinava a aula de Educação Física, os homens com o chefe e as meninas com a mulher do chefe, ensinavam direitinho como é que deve fazer. Aí nos encontrávamos de manhã, cantávamos o Hino à Bandeira, porque ele ensinava muito bem. Quem cantava bem o hino era quem cantava primeiro e ensinava aos colegas que não sabiam cantar. [...]. Nessa época, ninguém se formou na 8ª série, só na 4ª série. Passou alguns anos e a escola parou certo tempo, aí ninguém estudou mais porque o chefe saiu do posto. Quando era para fazer a prova no final do ano, eles ficavam lá até acertar o que o professor tinha passado na prova. Nessa escola, quando uma criança brigava, ela ficava de joelhos na pedra, [...]. (Ermínio Valentim Marcelino, em narrativa concedida a Reginaldo da Silva Marcelino, em 2001).

A narrativa de Ermínio Marcelino revela, dentre outras coisas, o rígido

disciplinamento presente no ambiente escolar Kadiwéu e reforça a idéia vigente na época de

4 As narrativas aqui utilizadas foram apresentadas, também, em outro trabalho. Cf. JOSÉ DA SILVA; LACERDA, 2004.

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que os não índios eram os únicos detentores de conhecimentos, cabendo aos índios aceitar as

regras que lhes eram impostas. O controle sobre as crianças era realizado por meio de

castigos, entretanto, não se percebem ações punitivas com muita intensidade, ao contrário da

segunda narrativa, referente à década seguinte, bastante contundente nesse aspecto.

2ª narrativa (referente à década de 1960):

Sobre o regulamento da escola Alves de Barros no ano de 1966. A professora chamava-se I. T. I. M. F. 5, cada aluno tinha por obrigação pronunciar o nome desta professora claramente. Os alunos tinham livro de chamada. Nós respondíamos firmemente: “– Presente!”. Após esta chamada nós tínhamos por obrigação cantar o Hino Nacional e o Hino à Bandeira. O regulamento era como se nós estivéssemos no serviço militar. Entrávamos em forma e em posição de sentido na entrada e na saída da aula e, também, quando se aproximava uma autoridade, como o chefe de posto ou da comunidade. O aluno desobediente recebia como castigo a sua retenção em um lugar escuro por um tempo determinado pela professora. Conforme a gravidade, era usada a palmatória ou se colocava a criança de joelhos sobre grãos de milho ou pedrinhas. Essa punição era a que mais pesava durante o período de aula. Não se podia conversar com os colegas, somente quando determinado, no horário do recreio. A professora era nossa segunda mãe, dava carinho e conversava alegremente, mas no seu horário de trabalho era muito rigorosa. Usávamos uniformes de cores azul e branco, escrevíamos muito no quadro-negro, fazíamos ditados e tarefas de Matemática (Martinho da Silva, em narrativa concedida a Élton Magalhães da Silva, em 2001).

Nessa segunda narrativa, observa-se a presença de muitos dos dispositivos de

disciplinamento de que os funcionários do antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) faziam

uso. Como este era um órgão institucional controlado por militares em sua quase totalidade no

período em questão, não é difícil se chegar à conclusão de o porquê a escola dos Kadiwéu se

parecer com um quartel. Cerimônias em torno da execução de hinos, formação de filas,

posição de sentido, respeito hierárquico, dentre outros, constituíam o cotidiano escolar de

crianças e adolescentes indígenas na segunda metade da década de 1960. Aos alunos que não

se adequavam às normas prescritas estavam reservados os castigos arrolados. Verifica-se

também que a professora, alegre, carinhosa e considerada uma segunda mãe, tornava-se, na

escola, severa e rigorosa. A situação parece ter se perpetuado ao longo da década de 1970,

como mostram as narrativas seguintes.

5 A pedido dos colaboradores, os nomes de professores serão referidos apenas pelas iniciais.

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3ª narrativa (referente à década de 1970):

Eu iniciei minha educação escolar na cidade de Campo Grande, cursando a 1ª e 2ª série. Quando estava estudando na cidade, eu me lembro de algumas coisas, pois estava com apenas oito anos de idade. O estudo que tive durante esses dois anos foi ótimo, pois aprendi a ler, escrever e fazer continhas. Durante esses dois anos, nunca recebi nenhum tipo de castigo da professora, pois me comportava o máximo, pois era somente eu de índio no meio de tantos não índios, mas de vez em quando eu brigava com alguns meninos que queriam tirar alguma com a minha raça [sic!] e eu me defendia. Ficava sem ir à escola por dois ou três dias. No ano de 1977, vim embora pra aldeia e estudei durante seis meses, só que esses meses foram árduos, pois a educação dos professores daqui era diferente da cidade. Quando comecei a estudar, a professora me voltou para a 2ª série, ele [sic!] argumentou que eu não estava preparado para cursar a 3ª série. Fiquei durante seis meses cursando a 2ª. O método de ensino da professora era totalmente diferente porque aqui existiam vários tipos de castigos, o aluno aprendia na base do castigo. Citarei alguns castigos mais conhecidos: ficar de joelhos em cima de grãos de milho, puxões de orelhas, ficar abraçado ao coqueiro ou ficar de braços abertos durante todo o recreio, até aprender determinada matéria. Não suportando, voltei a estudar novamente em Campo Grande (Maximino de Farias, em narrativa concedida a Odenil Matechua Leite, em 2001).

A narrativa de Maximino de Farias revela que na década de 1970, quando o SPI já

havia sido substituído pela Funai, o contato com a vida urbana se fazia mais intenso entre os

Kadiwéu. Mesmo alegando não ser tratado com violência na escola não indígena, o

colaborador manifesta ter sido vítima de preconceito e discriminação pelo fato de ser índio.

Na escola indígena, por sua vez, os castigos normatizavam as ações pedagógicas, pois o

próprio entrevistado lembra que “o aluno aprendia na base do castigo”. Verifica-se que a

professora da escola da aldeia determinou, inclusive, a incapacidade de o aluno indígena

prosseguir os estudos na série para a qual tinha sido aprovado. Situação semelhante revela-se,

também, na próxima narrativa, situada entre o final da década de 1970 e o início dos anos

1980.

4ª narrativa (referente às décadas de 1970 e 1980):

Eu comecei a estudar com 7 anos. Minhas professoras eram gêmeas, I. e G. Elas eram muito bravas. Elas colocavam os alunos de castigo, puxavam orelhas, jogavam apagador nos alunos, deixavam os alunos ajoelhados no milho ou na pedra. As matérias eram Português, Matemática, Ciências,

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Estudos Sociais e Educação Física. [...]. Quem trazia a lenha [para a merenda] eram os alunos. Cada aluno tinha que trazer cinco pauzinhos de lenha. A professora, certo dia, pediu pra trazer lenha e todos os alunos tinham que trazer. Se não trouxessem lenha, a professora mandava os alunos imediatamente sair da sala e entrar no mato em busca de lenha para a cozinha. Quem não participava da Educação Física, ela dava castigo toda segunda-feira. Enquanto os outros estudavam, o aluno que não participasse da aula de Educação Física, ficava de joelhos até a hora da saída (narrativa de Martina de Almeida, em 2001, a Giovani José da Silva).

Esta narrativa revela que os componentes curriculares escolares oferecidos aos

indígenas em nada diferiam daqueles encontrados em escolas rurais e urbanas de todo o país

na mesma época. Os castigos perduraram até o final da década de 1990 como uma triste

herança da escola dos “tempos de antigamente”. A narrativa a seguir, de uma jovem Kadiwéu,

revela o quanto a situação se transformou no final do século XXI.

5ª narrativa (referente ao final da década de 1990):

Quando comecei a estudar eu não sabia nada. Quando minha mãe me deixou na escola eu chorei, ela voltou para casa e eu saí correndo atrás dela. Ela brigou comigo, mas eu não voltei, pois já tinha ido embora. Eu não podia ficar sozinha na escola, eu tinha medo da professora. Depois fui indo, eu já sabia ler as vogais e todo o alfabeto, a minha professora me ensinou a escrever e ler o meu nome. Depois fui para 2ª série e eu já sei ler algumas palavras. A minha professora me deu um texto pra eu ler, ela deu prova pra nós e eu tirei nota alta. No outro ano eu já fui para a 3ª série e eu reprovei porque eu parei um mês de estudar. Quando minha mãe me mandou de novo à escola, eu consegui passar de ano. Para eu estar na 4ª série eu estava estudando, mas a nossa escola estava feia, as janelas sem vidros, as carteiras muito velhas e quebradas; hoje em dia as nossas carteiras estão novas, a nossa escola está tudo em ordem, cada sala tem um filtro de água, a nossa escola melhorou muito [...]. (narrativa de Zilda de Almeida, a Giovani José da Silva, em 2001).

Nota-se nesta última narrativa, que a entrevistada não faz menção direta a castigos

físicos ou psicológicos que tenha sofrido no âmbito escolar. Entretanto, sua fala revela que

não se sentia preparada para entrar nesse ambiente (“eu tinha medo da professora”) e que se

operavam, entre os Kadiwéu, os mesmos sistemas de notas e reprovações das escolas não

indígenas (“fui para a 3ª série e eu reprovei”; “ela deu prova pra nós e eu tirei nota alta”).

Apesar dessas dificuldades, apontam-se melhorias, tais como a aquisição de mobiliário

adequado. Nota-se, ainda, que os dispositivos de disciplinamento não estavam ausentes, mas

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agora se revestiam de outros significados, com outras representações (“a nossa escola está

tudo em ordem”).

A violência física e psicológica infringida aos Kadiwéu na escola, ao longo do tempo,

não foi exclusiva nesta sociedade indígena. A pesquisadora Darlene Yaminalo Taukane,

indígena Bakairi, em sua obra A história da educação escolar indígena entre os Kurâ-

Bakairi, registra que:

Os meninos que frequentavam a sua escola que funcionavam em regime semi-internato, trabalhavam nas hortas e as meninas como empregadas domésticas na missão. Como forma de pagamento pelo trabalho realizado, estas crianças recebiam os mesmo brindes [sabonetes, sabão, colares de miçangas, roupas, tecidos e perfumes]. Assim, sua metodologia se diferenciava daquela dos agentes do SPI, que escravizavam as crianças e contra elas praticavam os tipos de violência já mencionados, para “civilizá-las” através da educação escolar. Mas assemelhava-se a eles em termos do método para exercer a “atração”, ou seja, os brindes (TAUKANE, 1999, p. 135).

Os “tipos de violência” a que se refere Taukane eram os seguintes:

[...] [as lembranças] estão associadas à palmatória, ao castigo de joelho sobre pedrinhas, ao arrancar capim e ervas daninhas até que as mãos vertessem sangue, ao trabalho compulsório nas hortas, cujos produtos que não tinham o hábito de ingerir (incluindo o transporte da água dos rios para regá-las), no pomar, na lida com o gado bovino e caprino. Enfim, tinham que trabalhar muito para se tornarem “civilizados” (TAUKANE, 1999, p. 108- 109).

Uma narrativa coletada pela pesquisadora indígena merece ser transcrito na íntegra,

especialmente por se referir ao ensino de História:

Antigamente era assim... eu sou aluna do SPI, eu estudei naquela época. Quando a gente não sabia a lição, a gente logo ficava de castigo. Era castigo coletivo. A professora tomava a lição de todo mundo e quem não sabia... Nós já ficávamos enfileirados com o livro na mão, mas a nossa atenção não era no livro. A gente olhava as pessoas que iam em direção à casa do posto de repente, a professora vinha com um pedaço de pau para bater na nossa cabeça, a gente levava aquele susto. Outro castigo que me lembro muito bem... a professora prendia a gente num quarto escuro e também fechava todas as janelas da escola e a gente morria de medo e de fome, esperando a nossa hora. Quem vinha soltar a gente era sempre o Chefe de Posto. Ele perguntava por que ficamos de castigo. A gente respondia, a gente não deu conta de decorar o nosso ponto. Nosso ponto era de vinte questões e respostas. Antes era assim, para estudar História do Brasil era na base do

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questionário. [...]. Em 1951 eu tinha sete anos e me lembro que a professora colocava os alunos em cima de pedregulhos, eles ficavam horas e saíam daí cheio de sangue nos joelhos. [...]. Aí a professora batia com a régua em cima da mesa para acalmar a conversa na sala de aula. [...]. Quando a professora puxou a minha orelha com sua unha de tatu me feriu bastante e meu pai veio decidido a bater na professora. [...] (TAUKANE, 1999: 110-111).

A idéia de “civilizar” os índios, por meio da educação escolar, esteve sempre presente

nas diretrizes do órgão indigenista oficial e se constituiu na pedra de toque de todo o trabalho

pedagógico realizado nas escolas das aldeias.

O historiador Leandro Mendes Rocha, em seu trabalho sobre a política indigenista no

Brasil, no período de 1930 a 1967, revela que:

Em relatório do Ministério da Agricultura de 1942, o governo explicita o que entende por educação indígena: O que chamamos educação dos índios consiste em: a) dar-lhes a idéia da pátria e o seu culto cívico, cerimônias em torno da bandeira, hinos, História do Brasil através dos fatos mais culminantes etc.; b) alfabetização dos menores e adultos de ambos os sexos; c) ensino de trabalhos manuais e domésticos; d) prática agrícola e pecuária; e) limpeza e higiene. (BRASIL. Ministério da Agricultura, Relatório, 1942, p. 132 apud ROCHA, 2003, p. 127-128).

Os próprios indígenas foram assimilando a idéia de que “civilizados” eram apenas os

não índios e para alcançarem essa pretensa “civilização”, mostrada como um modelo a ser

atingido, era necessário passar pelos dispositivos de disciplinamento do órgão indigenista. Em

outras palavras, os indígenas aceitaram, nem sempre passivamente, as regras instauradas pelos

não índios em suas aldeias, a fim de se apropriarem dos conhecimentos do Outro, tentando

seguir seu comportamento. Esta difícil relação, muitas vezes marcada pela resignação,

encontra-se também registrada na narrativa abaixo:

Meu pai começou a estudar com oito anos de idade com o professor E. R. A escola era simples como uma cabana (feita de palha) e o professor era rígido, o castigo era a palmatória. O nome da palmatória era bolo, feito de madeira. Se ocorresse uma briga, um dava uma palmada de bolo no outro, e ainda ficava de joelho nas pedras menores, de frente um para o outro. Durante o tempo das aulas, ele estudou com o professor E. até a 2ª série, na 3ª série ele estudou com o professor A. J. e a 4ª ele estudou com uma professora chamada T. e percorria os mesmos quilômetros que eu percorro durante as aulas, hoje: 4 km (Malom da Silva Reginaldo falando sobre seu pai, Gideão Gabriel Reginaldo, em 2001).

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Malom da Silva Reginaldo é indígena Terena e quando coletou a narrativa transcriada

acima, estudava no Ensino Fundamental entre os Kadiwéu. Seu pai, hoje um pastor

evangélico, frequentou escolas das aldeias Terena nos anos 1960/ 70 e passou por castigos

semelhantes aos referidos em outras aldeias. Na narrativa, fala-se de castigos físicos com certa

naturalidade, como se fosse “normal” recebê-los nas escolas. Os “tempos de antigamente”

são, assim, relembrados com tristeza e, ao mesmo tempo, com o sentimento de um “dever

cumprido”, como se estivesse destinado aos índios aprender a serem “cada vez mais parecidos

com os brancos”, com castigos que tinham o caráter civilizatório pretendido pelos dirigentes

do órgão indigenista, então responsável pela Educação Escolar oferecida aos indígenas no

Brasil.

Aqui se faz uma consideração de ordem teórico-metodológica, pois não basta

convocar e inventariar a memória social Kadiwéu (ou a de qualquer outro povo indígena)

sobre os tempos escolares, pois apenas essa operação não se constitui em História. O ofício do

historiador se realiza numa operação que envolve a coleta, o recorte, a análise e a síntese de

dados. É necessário, portanto, delimitar, selecionar e avaliar as fontes orais, bem como outras

fontes, entrecruzando informações (a esse respeito, cf. CERTEAU, 2000). A memória pode

ser uma valiosa fonte histórica, mas, sozinha, não é história. Dessa forma, há a necessidade de

o pesquisador do Ensino de História ter uma formação ampla, que o possibilite enxergar além

das aparências e manusear, com critério, os discursos que remetem às tradições e vivências de

um grupo indígena, por exemplo. Faz-se necessário, portanto, ressaltar a importância da

Antropologia para a compreensão da atualização de tradições entre povos indígenas

(OLIVEIRA, 1999).

As narrativas apresentadas, assim como inúmeros outras, foram cotejadas com

documentos6 encontrados no Dedoc (Departamento de Documentação) da Fundação Nacional

do Índio, em Brasília, e apresentados à comunidade pelos próprios alunos e alunas que

realizaram as pesquisas. O resultado mais imediato foi uma mudança de postura dos Kadiwéu

em relação à escola. Simbolicamente, pais e mães de alunos decidiram colorir as paredes da

escola da aldeia Bodoquena com a conhecida arte gráfica Kadiwéu e afirmaram que a partir

daquele momento, não eram mais “cativos” da escola e, sim, “senhores” da sua própria

6 BRASÍLIA. Arquivo do Departamento de Documentação (Dedoc) da Fundação Nacional do Índio – Funai. Caixas 1-4, referentes aos índios Kadiwéu. Cf. JOSÉ DA SILVA, 2004.

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educação! 7 A iniciativa ainda deu origem a uma discussão sobre a necessidade de se formar

professores oriundos das próprias aldeias para os trabalhos pedagógicos de 1ª a 4ª séries, o

que resultou no Curso Normal em Nível Médio – Formação de Professores Kadiwéu e

Kinikinau.

O curso de formação de professores indígenas ocorreu entre 2001 e 2004, em etapas

presenciais e não presenciais. Durante as etapas presenciais, na aldeia Bodoquena, os

discentes foram estimulados a contar a história dos povos indígenas do seu próprio ponto de

vista. O resultado foi a elaboração do projeto Construindo com as próprias mãos: o ensino de

Artes, Geografia e História na escola Kadiwéu, premiado com o 1º lugar na Categoria

Ciências Sociais, na II Mostra PUC - Rio/ Petrobrás, em 2002. A Guerra do Paraguai (1864-

1870) é um tema central na história dos Kadiwéu e Kinikinau e foi escolhido pelos futuros

professores indígenas, então discentes, como um dos eixos geradores de conhecimentos nas

aulas de História e Metodologia do Ensino de História, componentes curriculares escolares

ministrados pelo autor deste artigo no Curso Normal em Nível Médio.

A Guerra do Paraguai contada pelos Kadiwéu: outras histórias

Ainda que a cultura Kadiwéu tenha sofrido inúmeras mudanças ao longo do tempo,

valores ligados à guerra marcam os limites da identidade étnica do grupo. O relembrar a

relação com os não índios, por meio das alianças com os brasileiros, está mediada pelas

práticas culturais e pelas representações. A atualização de ancestrais práticas culturais entre os

Kadiwéu pode ter adquirido significados distintos para os atuais indígenas, interessados na

reafirmação de sua identidade étnica, pois como bem observa a antropóloga Manuela Carneiro

da Cunha:

A cultura original de um grupo étnico [...] em situações de intenso contato, não se perde ou se funde simplesmente, mas adquire uma nova função, essencial e que acresce às outras, enquanto se torna cultura de contraste: este novo princípio que a subentende, a do contraste, determina vários processos. A cultura tende ao mesmo tempo a se acentuar, tornando-se mais visível, e a se simplificar e enrijecer, reduzindo-se a um número menor de traços que se tornam diacríticos (CARNEIRO DA CUNHA, 1986, p. 99-100).

7 Em uma sociedade estratificada como é a dos Kadiwéu, ainda hoje dividida entre “senhores” (os Kadiwéu considerados “puros”) e “cativos” (descendentes de outros povos ou de relacionamentos interétnicos), a representação é mais do que pertinente.

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Os relatos da Guerra do Paraguai são elaborados pelos Kadiwéu em categorias de

histórias concebidas por eles: as “histórias de admirar” (o que seria chamado de mitos, por

antropólogos) e as “histórias que aconteceram mesmo” 8, (narrativas de cunho verídico). O

ethos guerreiro, então, é recordado por meio dessas narrativas e acionado na relação com os

não índios como advertência contra a ameaça à integridade cultural e territorial dos Kadiwéu.

De acordo com a antropóloga Mônica Pechincha:

A Guerra do Paraguai é, sem dúvida, o acontecimento da história das relações com o branco [não índio] mais contemplado pela memória deste povo. [...]. É evento que posiciona os Kadiwéu frente à nação brasileira. É marco fundamental na reivindicação de direitos territoriais (PECHINCHA, 1994, p. 135).

Relembrando situações contadas pelos pais e avós, o indígena Kadiwéu Antônio

Mendes, por exemplo, afirma que “Mas ainda temos a segurança que ajudamos a segurar a

bandeira do Brasil. Por isso mesmo que ganhamos esta terra. Aqui é sagrado. Já veio esse

sabido que iludiu os índios... mas aqui ninguém toma, ninguém toma” (Citado por

PECHINCHA, 1994, p. 153). A apropriação que estes índios fazem de sua participação na

Guerra do Paraguai, associando o conflito platino à legitimação da posse do atual território

indígena, pode ser compreendida também na fala da anciã Durila Bernaldino:

[...], mas foi uma autoridade superior de quem o capitão ganhou esta terra, como recompensa no término da guerra contra os paraguaios. Dizia para ele: – Tome esta terra capitão, esta será sua, se eu pagasse em dinheiro não daria, mas essa terra durará para sempre, cuide sempre desta terra, não deixe que ninguém a tome (Citada por SIQUEIRA JR., 1993, p. 210).

Segundo o antropólogo Jaime Garcia Siqueira Jr., “[...] os depoimentos sobre a

participação na guerra [do Paraguai] têm uma grande riqueza de detalhes, revelando a minúcia

com que elaboraram esse evento na sua memória e ressaltando um ‘ethos’ guerreiro [...] com

que enfrentaram os brancos [não índios]” (SIQUEIRA JR., 1993, p. 210). Desse

enfrentamento, os Kadiwéu teriam saído fortalecidos e, por essa razão, agraciados com o

conjunto de terras que hoje constituem a Reserva Indígena Kadiwéu.

8 As expressões “histórias de admirar” e “histórias que aconteceram mesmo” foram recolhidas no trabalho de campo da antropóloga Mônica T. S. Pechincha (1994).

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Entre os indígenas mais jovens, a história da Guerra do Paraguai (Gaxiana, lê-se

“gatchiâna”), com pequenas variações, é contada da seguinte forma pelos mais velhos:

Quando aconteceu a Guerra do Paraguai contra os Guaikurus. Eles que invadiram o campo dos Guaikurus e os índios brigaram com os paraguaios e atiraram neles, mas não morreu nenhum dos Guaikurus. Os índios mataram o “cacique” dos paraguaios. Depois, o Paraguai tentava invadir o território dos Guaikuru, mas não conseguiu matar os Guaikurus. Então os Guaikurus ganharam a guerra contra o Paraguai e por isso se chamam “índios cavaleiros”. Então venceram a guerra contra os paraguaios. Os Kadiwéu são muito perigosos e até hoje são guerreiros vencedores. E assim aconteceu a guerra (Narrativa de Domingos Soares, concedido a Vanilda Fernandes, em 2001).

Em uma elaboração coletiva, os discentes do curso de formação de professores

indígenas registraram a seguinte versão da Guerra no livro Construindo com as próprias

mãos:

ICA JOTIGIDE GAXIANA ONE IDELEGE EPOLOTOWE NOIKA EJIWAJEGI ELEDI ODAXAWA-NATAKATELODO GAXIANA JOANEGIDAA LEEGODI ME ODINIGAYETECE ELIODI LIWAINIPODIGI. CODA INANOKO EGINI OKO ANA YOWOGODI ME YEEMATI ICA ANE LAWIKODIGI ME NIDELAGA (COLETIVO DE AUTORES INDÍGENAS, 2005). 9

A elaboração de histórias contadas do ponto de vista dos indígenas demonstra o

quanto as escolas destinadas aos índios do Brasil mudaram de perfil nos últimos anos. De uma

perspectiva assimilacionista e integradora para o respeito à pluralidade étnica e cultural, os

caminhos percorridos pelos movimentos indígenas e indigenistas não foram fáceis. A

Constituição Federal de 1988 e a subsequente edição de documentos voltados para a

Educação Escolar Indígena, como o RCNEI (Referencial Curricular Nacional para as Escolas

Indígenas), estabeleceram novos paradigmas para a Educação dos índios e para o ensino de

História nas aldeias.

O processo de ensino e aprendizagem do componente curricular escolar História entre

os Kadiwéu, e com outros povos indígenas não foi diferente, foi marcado pelo insistente uso

9 Tradução: “Antigamente, o Paraguai teve uma guerra contra o Brasil. Os índios Kadiwéu também fizeram parte nesta guerra em favor do Brasil. É por isso que os Kadiwéu conseguiram a maior parte das terras que possuem hoje. Até nos dias de hoje ainda existem pessoas que contam o sufoco que eles passaram”.

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de técnicas de memorização de datas, nomes e fatos completamente alheios à realidade em

que viviam os indígenas. Além disso, há que se considerar a violência física e psicológica

sofrida pelos indígenas em âmbito escolar por anos a fio, pelo menos até meados dos anos

1990. Toda essa situação, somada à proibição de não se poder falar o idioma Kadiwéu dentro

da escola, durante anos, causou um profundo desinteresse por parte da comunidade indígena

pelos estudos. Havia altos índices de repetência e evasão, demonstrando que o modelo

adotado era ineficaz e traumatizante. As primeiras tentativas de se mudar esse estado de

coisas em sala de aula foram frustradas pelas expectativas de pais e alunos de que os castigos

continuariam. Entretanto, os Kadiwéu foram percebendo que a escola poderia ser diferente do

“cemitério” 10 que a consideravam até então.

A princípio, pais e avós ficaram muito desconfiados, acreditando que todo o material

produzido fosse apropriado de forma inadequada fora da Reserva Indígena Kadiwéu.

Percebeu-se, então, o quanto os Kadiwéu sentiam-se frustrados com pesquisadores que

passavam pelas áreas indígenas, recolhiam informações e sequer retornavam para dizer a eles

os resultados das pesquisas. A apresentação de monografias, dissertações e teses constituiu-se,

portanto, em um valioso recurso no ensino de História entre aquela população indígena. Com

base na leitura e compreensão dos textos, os alunos Kadiwéu, por exemplo, perceberam falhas

e lacunas e expressaram o desejo de tornarem-se “antropólogos de si mesmos” (JOSÉ DA

SILVA, 2003), uma representação bastante rica, de significados múltiplos. O desafio consistiu

no convite ao estranhamento de sua própria identidade étnica, a ponto de escreverem sobre o

que ouviam dos mais velhos como se não fossem Kadiwéu, como se fossem ecalailegi.

Uma experiência pedagógica radical

No tocante à disciplina História, o desafio foi o de mostrar aos Kadiwéu que as

culturas indígenas são importantes, revelando os modos de ser e viver desses povos e que

precisam ser valorizadas, a fim de não caírem no esquecimento e serem substituídas, sem

reflexão, pelos usos e costumes dos não índios. Para os Kadiwéu da aldeia Bodoquena, a

escola sempre havia sido o lugar para se aprender as coisas dos “brasileiros” (é assim que eles

se referem comumente aos não índios ou ecalailegi) e de receber castigos.

10 O uso dessa expressão era comum entre os Kadiwéu ao se referirem à escola dos “tempos de antigamente”. Nota-se que na tradição Kadiwéu, o cemitério (apiigo, lê-se “apiirro”) é um lugar indesejado, posto que seja o local das almas errantes, o que torna bastante interessante a representação.

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Percebia-se neles que sempre esperavam por maus tratos e que o ensino de História

ministrado, até então, era marcado pela “decoreba” de datas, fatos e personagens

completamente alheios à realidade em que viviam. Não havia, até aquele momento, espaço

para a reflexão e nem mesmo para um estudo de quem eram eles próprios ou o que os

diferenciava dos não índios. Assim, os objetivos de ensino e aprendizagem iniciais foram:

identificar relações sociais no próprio grupo de convívio, na localidade, na região, e outras

manifestações estabelecidas em outros tempos e espaços; compreender que as histórias

individuais são partes integrantes de histórias coletivas; dominar procedimentos de pesquisa

escolar e de produção de textos, aprendendo a observar, colher e sistematizar informações.

Quanto ao conteúdo curricular ensinado, estabeleceu-se o seguinte: como surgiram o

povo Kadiwéu e outros povos; como viviam os Ejiwajegi antigamente; diferenças entre os

índios e entre índios e não índios. Inicialmente, houve conversas sobre os “tempos de

antigamente” (essa expressão é utilizada para referências ao passado) e os alunos indígenas

foram estimulados a falar sobre tudo o que sabiam. Muitas histórias foram relatadas,

acompanhadas de expressões, tais como “Meu avô me contou...”. A partir disso, resolveu-se

que as pessoas mais velhas da aldeia seriam entrevistadas pelos próprios alunos. Foram

sugeridos, então, seis temas: Moradia, Vestuário, Brinquedos, Alimentação, Guerras e Luto e

cada um escolheu um ou mais temas para pesquisar. Os alunos foram para as entrevistas e

voltaram com muitas histórias, que socializaram com os colegas. Dentre essas histórias, foi

contado o mito de criação dos Kadiwéu, que acreditam terem sido tirados pelo Criador

(Aneotedogoji, lê-se “Aneotedôrrôdji”), assim como toda a humanidade, de dentro de um

buraco.

Variações do mito surgiram durante as apresentações dos resultados das entrevistas e

isso estimulou o autor a falar com eles sobre o surgimento da espécie humana. A escola havia

recebido um livro didático e aproveitou-se um dos capítulos para conversar sobre o

aparecimento de homens e mulheres. Foi interessante perceber que mesmo entre os alunos

indígenas protestantes, existia a ideia de que se homens e mulheres vieram de Adão e Eva,

esses devem ter sido tirados de um buraco! Não houve intenção de desqualificar nenhuma das

interpretações (mítica, religiosa ou científica), mas de conhecê-las, compreendê-las e discuti-

las. Após essa atividade, propôs-se aos alunos refletir sobre as diferenças entre as pessoas e

entre os grupos humanos.

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Os alunos sentiram que o conhecimento sistematizado por eles sobre o povo indígena

do qual faziam parte tem tanto valor quanto os conhecimentos adquiridos nos livros dos

“brasileiros”. Com isso, identificaram relações sociais no próprio grupo de convívio, na

localidade e na região em que vivem. Perceberam, também, modos de vida muito diferentes

que os Ejiwajegi desenvolveram em outros tempos e espaços. Puderam compreender que as

histórias individuais coletadas eram partes integrantes da história dos Kadiwéu. O mais

importante é que tomaram conhecimento e aplicaram procedimentos de pesquisa escolar em

História e de produção de textos, em que puderam aprender a observar, colher e sistematizar

informações, tornando-se (nas palavras dos próprios alunos) “antropólogos de si mesmos”.

A avaliação dos resultados foi feita em sala de aula, quando da exposição oral das

entrevistas, da socialização e sistematização dos conhecimentos adquiridos, da confecção de

desenhos e por meio de prova escrita bilíngue, em que aos alunos foi solicitada uma síntese do

que haviam aprendido. Se o diagnóstico inicial não foi exatamente animador, o mesmo não se

pode dizer dos resultados obtidos por meio dessa experiência de ensino com os Kadiwéu nas

aulas de História. Trabalhando o conceito de diferença, todos compreenderam que não eram

inferiores aos não índios, mas únicos e particulares. Ao tornarem-se “antropólogos de si

mesmos”, os Kadiwéu descobriram uma sociedade rica em tradições, que há muito vive em

contato com os não índios, que enfrenta problemas com invasores de suas terras até hoje e

vive um contínuo processo histórico do qual eles próprios fazem parte.

Anos de castigos físicos e psicológicos na escola, porém, deixaram marcas profundas

entre os Kadiwéu. Vencer essa primeira resistência foi outro grande desafio que se impôs ao

trabalho como professor não índio. O autor sentiu que havia sido aceito não somente quando

homens e mulheres Kadiwéu, pais das crianças e jovens, pintaram as paredes da escola com

motivos da arte daquele povo, mas especialmente quando o batizaram de Oyatogoteloco (“a

luz que brilha longe”, no idioma Kadiwéu) e afirmaram que quando seus filhos estivessem

dando aulas para as gerações futuras, a história de Oyatogoteloco e de Wanixogowe (José

Luiz, “o pássaro que voa alto”) entre eles seria contada dentro e fora da escola.

Os Kadiwéu, enfim, descobriram e sentiram o quanto é bom ser índio e conhecer a

própria história. Com essa verdadeira “aventura” pedagógica foi possível enxergar melhor nos

alunos indígenas, tão diferentes dos não índios e ao mesmo tempo tão semelhantes, a riqueza

da diversidade étnica e cultural do Brasil. A experiência rendeu ao autor o Prêmio Victor

Civita 2001 – Professor Nota 10, na categoria Escola Pública. Vencida a desconfiança inicial,

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vislumbrou-se um vasto repertório ainda presente na memória dos anciãos (laxokodi, lê-se

“latchocôdi”) e repassado para as gerações mais jovens por meio da oralidade. Os alunos não

só registraram através da escrita como também ilustraram as informações coletadas. Os passos

iniciais para que se tornassem autores de livros escritos por eles próprios estavam dados.

Assim, o objetivo do ensino de História entre a população indígena Kadiwéu foi o de

oportunizar aos alunos o conhecimento a respeito de outras maneiras de lembrar e interpretar

os fatos, comparando-as aos modos pelos quais esses fatos são contados pelo próprio povo

indígena. Circe M. F. Bittencourt lembra que:

Ao se introduzir os estudos de História para as sociedades indígenas, surge obrigatoriamente a questão das formas de relações estabelecidas com os brancos [não índios] e que têm sido marcadas, na maioria das vezes, por conflitos e violência. Assim qualquer proposta educacional dessa área de ensino deve considerar os problemas dos dois grupos envolvidos, no sentido de possibilitar a construção de uma cultura escolar histórica, por intermédio da qual haja reciprocidade no processo do conhecimento em elaboração (BITTENCOURT, 1994, p.106).

As discussões sobre o ensino de História entre populações indígenas, invariavelmente,

remetem ao problema da dicotomia entre o oral e o escrito. Enquanto a sociedade não

indígena supervaloriza a forma escrita de conhecimento, é necessário atentar para o

importante papel desempenhado pela oralidade entre os povos indígenas (JOSÉ DA SILVA,

2005). Contudo, mais importante do que saber o que a escrita poderá fazer com os povos

indígenas, talvez seja o questionamento do que os povos indígenas podem fazer com a

modalidade escrita das línguas. Vale ressaltar que diversos povos indígenas pelo Brasil afora

têm demonstrado uma enorme capacidade de ressignificação de práticas culturais dos Outros,

sem deixarem, afinal, de serem o que são. A cristalização de determinadas versões registradas

no papel é outro ponto importante a ser levantado e questionado no ensino de História.

Considerações finais

A Reserva Indígena Kadiwéu é hoje uma pequena porção de terras, se comparada ao

imenso território por onde os Mbayá-Guaikuru, ancestrais dos atuais Ejiwajegi, transitavam

em séculos anteriores. Ainda assim, a sociedade não indígena elabora um discurso de que os

Kadiwéu possuem, na atualidade, mais terras do que necessitam. Esses índios, por sua vez,

criaram uma tradição oral e nela se apóiam para explicar a posse das terras que hoje ocupam.

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Segundo essa tradição, o Imperador D. Pedro II (“o finado Pedro”!) teria doado a eles as

terras da Reserva. Faz-se necessário deixar claro que, do ponto de vista do historiador, não

houve de fato doação alguma, embora se acredite que a memória social Kadiwéu continuará a

reproduzir o evento dessa maneira para as próximas gerações.

A verdade que contam os Kadiwéu em suas memórias não é a mesma verdade do

historiador e nem poderia ser. Os indígenas legitimam o que contam por meio da autoridade

que conferem ao ancião: o “João dos tempos”, na feliz expressão utilizada por Taunay (1931,

p. 54). O historiador busca legitimação no que escreve por meio do entrecruzamento de

diversas fontes, naquilo que sobreviveu ao tempo para contar o que teria acontecido. Muito

daquilo que contam os anciãos Kadiwéu está, provavelmente, impregnado da chamada

“aproximação da verdade do historiador”, pois jamais se saberá o que realmente aconteceu no

passado. A memória, portanto, pode ser uma auxiliar útil nessa doce e difícil tarefa de

perscrutar o passado. Deseja-se ter conseguido, brevemente, mostrar que os indígenas, ao

contrário do que sugeriu a historiografia durante muito tempo, não reagiram passivamente à

presença do Outro em seus territórios, em suas vidas, em suas escolas. Na elaboração dos

discursos aqui apresentados, foi revelada uma profunda ressignificação de sentidos, de

posturas e da própria cultura escolar dos Kadiwéu.

Assim, depara-se com a força da memória e dos mitos como explicação de

determinados eventos importantes para idosos, jovens e crianças, enfim, gente de toda a idade.

Em sala de aula, ouvia-se de alunos indígenas nas aulas de História da Escola Municipal

Indígena “Ejiwajegi” – Pólo, que a Reserva fora doada pelo Imperador D. Pedro II, em

gratidão pela bravura demonstrada pelos Kadiwéu na Guerra do Paraguai, a Grande Guerra

(em que nenhum Ejiwajegi foi sequer ferido, pois tinha o corpo protegido, além de o fato do

rio Paraguai ter se transformado em um mar de sangue inimigo!). Os alunos Kadiwéu

contavam, ainda, que se os brasileiros não tivessem feito alianças com os Ejiwajegi, o Brasil

teria perdido a Guerra e o atual Mato Grosso do Sul seria território paraguaio. Dessa forma,

crê-se que é possível chamar a atenção da memória como uma possível (e valiosa) fonte

histórica, pois cada uma a seu modo, memória e história não querem deixar que homens e

mulheres esquecessem o que são, nem de onde vieram.

O pressuposto básico é a concepção de história e memória enquanto critérios

definidores das práticas culturais e das representações, fatores intrínsecos à construção da

identidade étnica Kadiwéu. O interesse esteve em examinar e compreender que aspectos da

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história foram selecionados pela memória de membros desse povo indígena e incorporados ao

acervo de conhecimentos sobre o seu próprio passado. Argumenta-se que as narrativas

Kadiwéu portam sentidos outros, pois, embora sejam relatos sobre o passado, fundem os

tempos pretérito e presente, revelando sua contemporaneidade. Reitera-se que essa forma de

conhecer o passado é fundamental para o reforço da coesão e da identidade cultural e étnica

do grupo.

Por que alguns povos indígenas parecem mais preocupados que outros em lembrar o

passado? Por que esse agudo contraste de atitudes para com o passado em diferentes culturas?

A Guerra do Paraguai, exaustivamente contada e recontada entre os Kadiwéu como fonte de

legitimação da posse da Reserva Indígena Kadiwéu é exemplo claro do uso do passado, da

memória social e dos mitos para construir a identidade étnica desse povo indígena, pois a

finalidade de tudo isso é, sem dúvida, dizer quem são Eles e diferenciá-los dos Outros. A

memória social não é homogênea e é impossível discuti-la sem se observar conflitos e

dissensões. Se há, entre os Kadiwéu, memória de conflitos, tais como a Guerra do Paraguai,

há também conflitos de memórias. Haveria, então, uma “guerra pela memória” no interior do

grupo? De quem serão as versões registradas ou preservadas, agora que o grupo começa a

escrevê-las?

Trabalhar com a memória de jovens e velhos Kadiwéu sobre a escola de outros tempos

e a Guerra do Paraguai foi estar, a todo tempo, tateando a presença da vida e da morte,

lidando com o tempo que se esgota lentamente e em um determinado momento se transforma

nos “tempos de antigamente”, marca temporal deste e de outros povos indígenas. Este

trabalho alinha-se com a proposição de que a memória social fertiliza e renova a história, ao

invés de se opor a ela. A memória Kadiwéu criou um corpo de conhecimentos próprios e

exclusivos, constitutivos da identidade cultural e étnica do grupo e referir-se à construção de

identidade através do tempo, é falar de representações e de adoção de atributos específicos aos

Kadiwéu, em oposição a outros povos indígenas e à sociedade não indígena. Tudo isso é o

resultado de uma situação de expansão da sociedade nacional sobre as áreas originais e

sucessivamente ocupadas pelos índios. As lutas do tempo presente podem não ser mais as

lutas dos “tempos de antigamente”, mas, com certeza, falam de guerra para uma sociedade de

guerreiros.

Para concluir, espera-se deixar claro que não se defende o uso indiscriminado de mitos

nas aulas de História e da presença de anciãos indígenas às aulas. Um dos ensinamentos mais

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importantes que se aprendeu com os Kadiwéu é que tudo tem o seu lugar e momento certos.

Foram trazidas suas “histórias de admirar” e “histórias que aconteceram mesmo” para a sala

de aula como forma de estimulá-los a estudarem a própria história e a de outros povos. Os

anciãos, na tradição Kadiwéu, têm lugar privilegiado como os “senhores-memória”, na

expressão de Jacques Le Goff (1992), guardiões da memória que torna o grupo coeso.

Entretanto, seu espaço, segundo os índios, não é dentro de uma sala de aula. Ali eles querem

aprender a respeito do mundo dos ecalailegi, para poder entendê-los melhor e estabelecer um

diálogo mais equilibrado. Acompanhando algumas experiências de Educação Escolar

Indígena no Brasil, fica-se preocupado com a confusão que ainda se faz entre memória e

história, cultura e tradição, só para ficar com dois exemplos em ensino de História. Acredita-

se que não basta juntar um punhado de histórias dos “tempos de antigamente” e apontar isso

como a solução para as aulas de História para índios. Tampouco é possível basear o programa

exclusivamente em conteúdos dados em escolas não indígenas.

O desafio concreto é saber como abordar o passado entre povos em que muitas vezes

os nomes daqueles que já morreram não podem ser sequer pronunciados, como é o caso dos

Kadiwéu. Como trabalhar conteúdos da Antiguidade, falar sobre Feudalismo, Revolução

Francesa, etc.? No caso específico aqui citado, e espera-se que com ele se consiga estabelecer

um diálogo com outras experiências, a saída encontrada foi, inicialmente, a recuperação da

própria História da Educação Escolar, perceber que essa instituição foi, durante muito tempo,

mais um dos locais onde os Kadiwéu aprendiam a desejar serem outros e não eles mesmos.

Um lugar onde apanhar por ser índio, por ser “preguiçoso” e por falar uma língua estranha,

era absolutamente normal. Recuperar a autoestima desses alunos e alunas foi o primeiro passo

para estabelecer com eles um rico diálogo sobre o passado, descobrindo juntos o que podia e o

que não deveria ser revelado.

A Guerra do Paraguai, evento-símbolo para os Kadiwéu e os Kinikinau, dentre outros

povos indígenas sul-mato-grossenses 11, revelou-se a força propulsora de uma série de

pesquisas e debates realizados em âmbito escolar no ensino de História. Tornando-se

“antropólogos de si mesmos”, os Kadiwéu redescobriram uma sociedade rica em tradições,

que há muito vive em contato com a sociedade não indígena, que enfrenta problemas com

invasores de terras há tempos e que vive um contínuo processo histórico do qual eles mesmos

11 Cf. BITTENCOURT; LADEIRA, 2000, para a importância da Guerra do Paraguai entre os Terena.

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fazem parte, ou seja, descobriram-se e sentiram o quanto é bom sentir orgulho de ser

Kadiwéu, o quanto é bom possuir uma história própria e diferente da dos demais. Enfim,

tornando-se momentaneamente estranhos a si mesmos, ganharam confiança para mostrarem o

que foram, o que são e o que desejam ser.

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histórica: os Kadiwéu e a “pedagogia da violência” (segunda metade do século XX).

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