Indícios de autoria e marcas identitárias em textos nota mil do ...

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667 INDÍCIOS DE AUTORIA E MARCAS IDENTITÁRIAS EM TEXTOS NOTA MIL DO EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO (ENEM) Maristela Rabaiolli Valéria Brisolara RESUMO: Desde 1998, ano de sua primeira versão, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) tem se consolidado como um dos principais instrumentos não só de avaliação da educação básica, como também de ingresso à universidade. Uma dessas avaliações diz respeito ao nível de proficiência dos estudantes em leitura e escrita, habilidades que o Enem também avalia quando solicita a escrita de uma redação. Um dos critérios contemplados na matriz de avaliação do exame refere-se ao investimento autoral do candidato no momento da escritura do texto. Logo, a capacidade do estudante de exercer uma autoria na redação, posicionando-se frente ao tema proposto, é avaliada. Afinal, o texto instancia o lugar de dizer do candidato e reflete suas convicções a respeito do mundo, da cultura e da historicidade, num espaço enunciativo no qual, ainda que pese o caráter artificial do contexto de produção, ele se pretende autor. Diante desse contexto, este trabalho objetiva identificar traços de autoria e marcas identitárias presentes em cinco redações que obtiveram nota mil no concurso 2014, cujo tema foi A publicidade infantil no Brasil. Para embasar este trabalho, buscam-se os conceitos de autoria e de identidade elucidados por teóricos como Michel Foucault, Roland Barthes, Mikhail Bakhtin, Stuart Hall e Sírio Possenti. As noções de indícios de autoria de Possenti contribuem para a construção de uma matriz de avaliação específica cujos critérios servem para investigar marcas autorais e identitárias deixadas no texto pelo candidato. PALAVRAS-CHAVE: Autoria. Identidade. Enem. 1. Introdução O Enem existe há dezesseis anos e tem se consolidado como um dos principais instrumentos de avaliação da educação brasileira. A importância do exame para os jovens aspirantes a uma vaga na universidade é incontestável, tendo em vista que, para muitos, ele é a única forma de obtenção do diploma de curso superior. O exame foi criado em 1998 pelo Ministério da Educação do Brasil (MEC) e é utilizado para avaliar a qualidade do Ensino Médio no país. Seu resultado promove o acesso dos estudantes ao ensino superior em universidades públicas brasileiras, através do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), assim como em algumas universidades públicas portuguesas. Com relação à estrutura, o Enem divide as provas em cinco áreas do conhecimento: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, Matemática e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias, Ciências Humanas e suas Tecnologias e Redação. No ano de 2014, o tema solicitado para a escrita da redação foi A publicidade infantil em questão no Brasil, e o problema extraído desse assunto poderia ser o seguinte: como o Brasil e os brasileiros devem lidar com a veiculação de publicidade voltada a crianças? Ao escrever sobre esse tema, de cunho social e político, o candidato deveria também elaborar uma proposta de intervenção que não ferisse os direitos humanos para solucionar ou minimizar o problema apresentado. Texto completo de trabalho apresentado na Sessão ESTUDOS EM LÍNGUA MATERNA, do Eixo Temático ESTUDOS DE LINGUÍSTICA APLICADA, do 4º Encontro da Rede Sul Letras, promovido pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem, no Campus da Grande Florianópolis, da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL), em Palhoça (SC). Mestre em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Letras da UniRitter Laureate International Universities. E-mail: [email protected]. Docente do Programa de Pós-graduação em Letras da UniRitter Laureate International Universities. Doutora em Letras. E-mail: [email protected].

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INDÍCIOS DE AUTORIA E MARCAS IDENTITÁRIAS EM TEXTOS NOTA MIL DO EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO (ENEM)

Maristela Rabaiolli Valéria Brisolara

RESUMO: Desde 1998, ano de sua primeira versão, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) tem se consolidado como um dos principais instrumentos não só de avaliação da educação básica, como também de ingresso à universidade. Uma dessas avaliações diz respeito ao nível de proficiência dos estudantes em leitura e escrita, habilidades que o Enem também avalia quando solicita a escrita de uma redação. Um dos critérios contemplados na matriz de avaliação do exame refere-se ao investimento autoral do candidato no momento da escritura do texto. Logo, a capacidade do estudante de exercer uma autoria na redação, posicionando-se frente ao tema proposto, é avaliada. Afinal, o texto instancia o lugar de dizer do candidato e reflete suas convicções a respeito do mundo, da cultura e da historicidade, num espaço enunciativo no qual, ainda que pese o caráter artificial do contexto de produção, ele se pretende autor. Diante desse contexto, este trabalho objetiva identificar traços de autoria e marcas identitárias presentes em cinco redações que obtiveram nota mil no concurso 2014, cujo tema foi A publicidade infantil no Brasil. Para embasar este trabalho, buscam-se os conceitos de autoria e de identidade elucidados por teóricos como Michel Foucault, Roland Barthes, Mikhail Bakhtin, Stuart Hall e Sírio Possenti. As noções de indícios de autoria de Possenti contribuem para a construção de uma matriz de avaliação específica cujos critérios servem para investigar marcas autorais e identitárias deixadas no texto pelo candidato. PALAVRAS-CHAVE: Autoria. Identidade. Enem.

1. Introdução

O Enem existe há dezesseis anos e tem se consolidado como um dos principais instrumentos de avaliação da educação brasileira. A importância do exame para os jovens aspirantes a uma vaga na universidade é incontestável, tendo em vista que, para muitos, ele é a única forma de obtenção do diploma de curso superior. O exame foi criado em 1998 pelo Ministério da Educação do Brasil (MEC) e é utilizado para avaliar a qualidade do Ensino Médio no país. Seu resultado promove o acesso dos estudantes ao ensino superior em universidades públicas brasileiras, através do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), assim como em algumas universidades públicas portuguesas.

Com relação à estrutura, o Enem divide as provas em cinco áreas do conhecimento: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, Matemática e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias, Ciências Humanas e suas Tecnologias e Redação. No ano de 2014, o tema solicitado para a escrita da redação foi A publicidade infantil em questão no Brasil, e o problema extraído desse assunto poderia ser o seguinte: como o Brasil e os brasileiros devem lidar com a veiculação de publicidade voltada a crianças? Ao escrever sobre esse tema, de cunho social e político, o candidato deveria também elaborar uma proposta de intervenção que não ferisse os direitos humanos para solucionar ou minimizar o problema apresentado.

Texto completo de trabalho apresentado na Sessão ESTUDOS EM LÍNGUA MATERNA, do Eixo Temático ESTUDOS DE LINGUÍSTICA APLICADA, do 4º Encontro da Rede Sul Letras, promovido pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem, no Campus da Grande Florianópolis, da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL), em Palhoça (SC). Mestre em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Letras da UniRitter Laureate International Universities. E-mail: [email protected]. Docente do Programa de Pós-graduação em Letras da UniRitter Laureate International Universities. Doutora em Letras. E-mail: [email protected].

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Nesse contexto de leitura e escrita, é preciso considerar que, durante o processo de escrita, o autor-candidato deixa, no texto, vestígios referentes à sua individualidade e à sua identidade. De igual maneira, ele faz referência à sociedade, à cultura e ao momento histórico nos quais se insere. Como não existe neutralidade na escrita nem texto sem ideologia, é possível ao investigador seguir as pistas deixadas pelo autor da redação a fim de revelar esses vestígios autorais e identitários. Essas marcas funcionam como uma espécie de impressão digital do autor do texto. Para atingir esse objetivo, contudo, o pesquisador precisa utilizar instrumentos adequados. Tais instrumentos podem ser traduzidos em uma matriz de referência de avaliação contendo critérios específicos para esse fim.

A esse respeito, o desempenho do candidato na redação é avaliado conforme a matriz de referência do Enem por meio das seguintes competências1: a): Demonstrar domínio da modalidade escrita formal da Língua Portuguesa; b): Compreender a proposta de redação e aplicar conceitos das várias áreas de conhecimento para desenvolver o tema, dentro dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo em prosa; c): Selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista; d): Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a construção da argumentação; e): Elaborar proposta de intervenção para o problema abordado, respeitando os direitos humanos.

Cada competência possui níveis de habilidades2 que vão de 0 a 5, com exceção da competência II que não possui o nível 0, pois esse nível caracteriza Fuga ao tema. A competência III da matriz do Enem contempla critérios referentes à autoria, mas não detalha esses critérios. Conforme se verifica na matriz de avaliação do Enem, a competência III, sobretudo nos níveis 4 e 5, contempla aspectos referentes à autoria. Eles estão assim descritos: (4) [o candidato] apresenta informações, fatos e opiniões relacionados ao tema, de forma organizada, com indícios de autoria, em defesa de um ponto de vista e (5) [o candidato] apresenta informações, fatos e opiniões relacionados ao tema, de forma consistente, configurando autoria, em defesa de um ponto de vista. Essa competência está estritamente relacionada à investigação aqui pretendida, qual seja, a de encontrar, nas redações produzidas pelos candidatos, marcas identitárias e autorais deixadas por eles durante a escritura do texto.

Nesse cenário, o objetivo, aqui, é mostrar dados parciais referentes às marcas autorais e identitárias deixadas pelos candidatos em cinco textos nota mil produzidos no Enem 20143. Para a realização desta pesquisa, são primordiais os conceitos de autoria elucidados por pensadores como Michel Foucault (2011), Roland Barthes (2004) e Mikhail Bakhtin (1986). Da mesma forma, são essenciais os conceitos de Stuart Hall (2010) para tratar das questões que envolvem identidade). Também são relevantes os estudos de pesquisadores brasileiros como Maria José Coracini (2010) e Sírio Possenti (2002).

1 As competências gerais que são avaliadas no Enem estão estruturadas com base nas competências descritas nas operações formais da teoria de Piaget, tais como a capacidade de considerar todas as possibilidades para resolver um problema; a capacidade de formular hipóteses; de combinar todas as possibilidades e separar variáveis para testar a influência de diferentes fatores; o uso do raciocínio hipotético-dedutivo, da interpretação, análise, comparação e argumentação, e a generalização dessas operações a diversos conteúdos. (Enem. Relatório Pedagógico, 2007, p. 41). 2 As habilidades decorrem das competências adquiridas e referem-se ao plano imediato do “saber fazer”. Por meio das ações e operações, as habilidades aperfeiçoam-se e articulam-se, possibilitando nova reorganização das competências. (Enem. Documento básico, 2002, p.11). 3 Este trabalho é fruto da dissertação de mestrado de mesmo título defendida em 2016 na UniRitter/Laureate International Universities (RABAIOLLI, 2016).

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Autoria e Identidade

Vivemos em um sistema de autoria bastante complexo, pois ele é social, histórico e culturalmente construído. Se voltarmos no tempo, podemos verificar que da Antiguidade (4000 a.C. a 476 d.C.) até o início da Idade Média (476 d.C. a 1453 d.C.), não havia a preocupação em saber quem era o autor de uma tragédia, de uma epopeia ou de uma comédia, pois o anonimato não era empecilho para fazer com que uma obra circulasse e fosse valorizada. Na Antiguidade, as obras eram consideradas mais “abertas”, pois os prosadores podiam modificá-las à medida que iam contando suas histórias. A garantia de autenticidade de uma obra era a sua antiguidade, não o nome do autor, pois este era considerado secundário.

Na Modernidade, contudo, principalmente a partir da Renascença (1453 d.C. a 1789 d.C.), a exaltação ao indivíduo passou a ter grande relevância devido a fatores sociais, políticos e econômicos. Nas artes, esse sujeito que produzia obras artísticas e literárias passou a ser chamado de autor. No texto “A morte do autor”, publicado por Barthes em 1968, Barthes (1984) afirma que os primeiros movimentos para se responsabilizar um autor pelo que ele havia escrito começaram na Idade Média. Nesse período, as autoridades religiosas buscavam os responsáveis pelos livros “heréticos” com dois objetivos: punir seus autores e queimar as obras que contrariavam a doutrina estabelecida. Isso levou, no final do século XVIII e no início do século XIX, ao estabelecimento de um regime de propriedade dos textos, isto é, criaram-se regras sobre os direitos do autor e sobre os direitos de reprodução das obras. Segundo Foucault (2011), em seu texto “O que é o autor”, de 1969, o objetivo disso era impedir a apropriação, por terceiros, da propriedade intelectual de um determinado autor.

Barthes, embora tenha sido acusado de matar o autor empírico, evidentemente não faz isso – nem poderia fazê-lo – apenas explica que “o texto é um tecido de citações” e que a autoria vai além da mão que o escreveu. O filósofo também considera que a autoria de um texto depende muito mais do leitor do que do autor, pois só o leitor lê cada palavra na sua duplicidade. Ele defende a tese de que a obra deve ser analisada independentemente de quem a escreve. O texto, segundo Barthes, é desvendado na leitura, não na escritura, pois para ele, “o verdadeiro lugar da escritura é a leitura” (BARTHES, 1984, p. 70).

Com relação ao romance, Bakhtin (2011) no ensaio “O autor e a personagem”, defende a tese segundo a qual “o artista nada tem a dizer sobre o processo de sua criação, todo situado no produto criado, restando a ele apenas nos indicar a sua obra; e é de fato, só aí que iremos procurá-lo.” (BAKHTIN, 2011, p. 5). Essa afirmação pode ser estendida para outros gêneros discursivos que não somente os literários, pois ela aponta para as marcas pessoais que aquele que escreve costuma deixar em seu texto. Nesse mesmo ensaio, Bakhtin chama a atenção para a confusão que comumente se faz entre autor-pessoa e autor-criador. Nesse sentido, o autor-criador é uma posição discursiva e faz um exercício de exotopia, ou seja, de distanciamento em relação ao texto. O princípio da exotopia é “o fato de uma consciência estar fora de outra, de uma consciência ver a outra como um todo acabado, o que ela não pode fazer consigo mesma” (TEZZA, 2001, p.282). Tal princípio implica um distanciamento do autor-pessoa em relação àquilo que escreve; esse distanciamento, contudo, pode ser maior ou menor, dependendo do gênero discursivo adotado.

Na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, mais especificamente no capítulo 9, em “O Discurso de outrem”, Bakhtin (1986) trata dessa questão. A esse respeito, o filósofo assim se pronuncia com relação ao discurso citado e ao discurso do outro:

O discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação (...). Mas o discurso de outrem constitui mais do que o tema do discurso; ele pode entrar no discurso e na sua construção sintática, por assim dizer, “em pessoa”, como uma unidade integral da construção. Assim, o discurso citado conserva sua autonomia estrutural e semântica sem nem por isso alterar a trama linguística do contexto que o integrou. (BAKHTIN, 1986, p. 144)

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A incorporação do discurso de outrem ajuda (o narrador) não só na formulação do próprio posicionamento social, como também abre possibilidades para novos posicionamentos, permitindo, assim, ao narrador, abordar os eventos narrados a partir de diferentes perspectivas.

No entanto, por vezes, “o discurso citado é visto pelo falante como a enunciação de uma outra pessoa, completamente independente na origem, dotada de uma construção completa, e situada fora do contexto narrativo” (BAKHTIN, 1986, p. 144). Esta modalidade de utilização do discurso de outrem é a mais próxima do que se entende por citação. E ela normalmente é assinalada por marcas linguísticas como aspas, travessões e recursos gráficos.

Também Ponzio (2008), a respeito da palavra alheia, assim se manifesta:

Falamos sempre através da palavra dos outros, seja por meio de uma simples imitação, como uma pura citação, seja em uma tradução literal ou, ainda, seja através de diferentes formas de transposição, que comportam diferentes níveis de distanciamento da palavra alheia: a palavra entre aspas, o comentário, a crítica, o repúdio, etc. (PONZIO, 2008, p. 101)

As formulações de Bakhtin remetem a Foucault e à função-autor. No texto O que é o autor?, conferência proferida em 1969, que, na verdade, foi escrita como uma resposta ao texto de Barthes, o filósofo diferencia o autor de uma obra do autor de uma discursividade, e também distingue o autor na literatura do autor na ciência. Se, para Foucault, a função-autor está atrelada à obra, e esta, por sua vez, só existe quando publicada ou reconhecida por um grupo de pessoas, para Bakhtin (1986), a função autor está intimamente associada à assinatura do autor em textos que se inserem em um gênero discursivo específico, dentro de uma esfera de circulação também específica. É importante mencionar que o gênero, segundo Bakhtin (2011) contém o tema, o modo composicional e o estilo e, ao elaborá-lo, o autor espera ser lido/questionado/interpelado por alguém. Percebe-se, assim, que cada estudioso oferece uma parcela de contribuição ao assunto aqui discutido.

Indícios de autoria

Embora se refira às duas noções de autor de Foucault, quais sejam a) a de que a noção de autor se constitui a partir de um correlato autor-obra, e b) a noção de autor como “fundador de discursividade”, na acepção Foucaultiana do termo, isto é, alguém que dá origem a regras para formação de novos textos, Possenti (2002) ressalta que estas não costumam se adequar a um escolar, pois este não tem uma obra nem fundou uma discursividade. Logo, o pesquisador propõe que, para se verificar a autoria em textos de estudantes em idade escolar, ou de vestibular, é preciso introduzir uma nova noção de autoria que remeta ao que ele chama de indícios de autoria.

Possenti (2013), no texto “Notas sobre a questão da autoria”, pontua que há uma diferença nítida na concepção de autoria em Foucault e na de alguns estudiosos brasileiros. Para o filósofo francês, a autoria corresponde a uma obra, isto é, não há obra sem autor, assim como não há autor sem obra. Já para alguns estudiosos brasileiros, a autoria é definida por uma certa relação de quem escreve (ou fala) textos que Possenti chama de comuns, como, por exemplo, uma redação escolar. O autor argumenta, também, que a maioria dos pesquisadores brasileiros considera autor aquele que escreve um texto adequado. Ao que parece, para ser autor é preciso possuir tais características, as quais dificilmente são perceptíveis em autores de textos cotidianos que escrevem notícias de jornal, receitas culinárias, artigos de opinião ou redações escolares. O que os autores desses textos revelariam, segundo Possenti (2013) seriam indícios de autoria, e não a autoria a que Foucault se refere, contudo não há dúvida de que ambas estão relacionadas.

Referindo-se a essa questão autoral, Possenti (2001) defende a tese de que autoria é um conceito que não deve ser aplicado apenas a personalidades, isto é, em determinada relação

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autor-obra, nem, tampouco, concebido como uma particularidade de uma pessoa específica. A autoria, para ele, tem forte relação com estilo, isto é, com aquele “traço pessoal” que alguns estudiosos chamam de singularidade.

Identidade, marcas identitárias e escrita

As concepções, quaisquer que sejam, são social e historicamente construídas. A definição

do termo identidade é bastante antiga e divide opiniões. O conceito é, segundo Hall (2004) complexo, ambíguo, pouco desenvolvido e pouco compreendido, pois a comunidade sociológica ainda está profundamente dividida quanto a esse assunto. Sabe-se, no entanto, que até um determinado período da história, o indivíduo era visto como um sujeito inteiro, unificado, isto é, um sujeito cartesiano. Hall (2004) ainda sustenta que as identidades modernas se tornaram “descentradas”, isto é, deslocadas e fragmentadas. Isso ocorre, segundo ele, porque as mudanças estruturais na sociedade contemporânea do século XX passaram a tratar questões de classe, de gênero, de sexualidade, de etnia, de raça e de nacionalidade de outra forma. Essas transformações mudaram nossas identidades pessoais, abalando a ideia que tínhamos de nós próprios como sujeitos integrados.

Existe, contudo, uma relação bastante estreita entre identidade e escrita. Coracini (2003) defende a tese de que o outro é determinante na construção da nossa identidade, seja ela subjetiva, social ou nacional, pois esse outro nos constitui e ao nosso discurso também. A autora evidencia que o que somos, o que vemos e o que pensamos está carregado do dizer alheio. Isso vale tanto para a identidade social ou nacional quanto para a identidade subjetiva. Segundo a autora, “é na medida em que se internaliza um traço que ele se faz corpo no corpo do sujeito.” (CORACINI, 2003, p. 202). Coracini e Eckert-Hoff (2010) e seus colaboradores vêm, há muito tempo, se debruçando sobre a questão da subjetividade e da identidade na escrita, seja esta em papel ou virtual. Para as autoras, não há texto neutro, imparcial, pois toda escrita é inscrição de si. Escrever, segundo elas, “é sempre uma ação que se dá, ao mesmo tempo, em dois sentidos: de fora para dentro e de dentro para fora.” (CORACINI E ECKERT-HOFF, 2010, p. 9-10). Quando escrevemos, dirigimo-nos a um leitor virtual (possível, mas não real), e quando lemos, imaginamos o autor e suas intenções ao percorrermos as pistas por ele deixadas no texto. Isso porque “todo texto carrega em si traços daquele que escreve” e que, portanto, se inscreve naquilo que escreve.

Essas marcas de inscrição, assim como os indícios de autoria, são muitas e existem em todas as composições, até mesmo nas ditas científicas, as quais buscam efeito de objetividade. Enunciados assertivos, modalidades lógicas, o uso da terceira pessoa, as formas passivas, o uso de adjetivos, dentre outros recursos, ainda que pretendam camuflar o envolvimento do pesquisador, fogem ao controle dele, revelando sua subjetividade e construindo uma identidade. Nos textos chamados criativos (contos, romances, poemas, etc.), quem escreve não tem a intenção de se ocultar, ao contrário, busca expor sua subjetividade e seu envolvimento naquilo que escreve. No entanto, não escrevemos apenas quando somos obrigados, mas o fazemos por muitos outros motivos. Escrevemos, segundo Faraco e Tezza (2004) para dar ordens, para avisar alguém, para receitar, para advertir, para pedir, para tirar uma boa nota, para não esquecer, para dizer um pouco do que sentimos, para contar uma história, para resolver problemas e por inúmeras outras razoes. No caso do Enem, o candidato também escreve porque tem um propósito.

A prova de redação do Enem 2014 e suas possíveis abordagens A prova de Redação exige que o candidato escreva um texto dissertativo-argumentativo contendo, no mínimo, 8 linhas, e, no máximo, 30. Essa prova, da forma como é concebida, dá especial importância ao raciocínio, à reflexão e à análise crítica do candidato. Apresentada a situação-problema, pede-se que o candidato reflita, argumente e escreva o texto apresentando

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uma solução para o problema proposto sem ferir os direitos humanos. Daí a importância do posicionamento do candidato frente ao tema abordado. Tal posicionamento é indicado não só através do conhecimento teórico, mas também de um repertório que pode incluir leitura de jornais, livros, revistas, além da escuta de noticiários televisivos, a fim de construir uma argumentação convincente a favor de seu ponto de vista.

O Guia do Participante mostra que a prova de Redação, assim como a de língua portuguesa, visa à avaliação dos conhecimentos na área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias ao fim da escolaridade básica. Quanto ao tema proposto, em 2014 o Enem abordou o tema A publicidade infantil em questão no Brasil, e a relevância social envolvida no tema diz respeito ao fato de que os candidatos, em alguma medida, foram ou são expostos nesse contexto publicitário: na condição de cidadãos; individualmente, na infância; ou socialmente, ao conviver com outras crianças. A discussão que envolve a abordagem diz respeito à veiculação da publicidade infantil no Brasil. Considerando os textos motivadores e as palavras-chave, o candidato precisaria considerar o seguinte problema: como o Brasil deve lidar com a veiculação de publicidade voltada a crianças?

O problema é exposto no texto I da prova de Redação, que trata da resolução do Conanda. O Texto II busca ampliar a reflexão na medida em que evidencia, através de um mapa, como a publicidade infantil é tratada em outros países. Países como a Noruega e a província de Quebec, no Canadá, por exemplo, proíbem totalmente a publicidade voltada às crianças, já no Brasil, é o mercado que a autorregulamenta. O texto III, por sua vez, traz o excerto de um livro que discute a influência do marketing sobre a criança apontando a vulnerabilidade dela. Também salienta o papel da educação para a conscientização do consumo. Apresentadas as informações, esperava-se, segundo o Relatório Pedagógico 2014, que os candidatos pudessem direcionar o texto para os seguintes contextos e abordagens:

a) Contexto de proteção às crianças: com base no pressuposto de que ela é vulnerável e influenciável, uma vez que ainda está em formação. Nesse contexto, o candidato poderia assumir duas posições: (i) a de que o Estado deve regulamentar a publicidade infantil (proibindo-a ou restringindo-a); ou (ii) a de que esse papel caberia à família e à escola.

b) Contexto legal: nessa abordagem, o candidato poderia discutir e comparar a legislação brasileira com a de outros países e propor mudanças na lei.

c) Contexto educacional: adotando essa perspectiva, o candidato poderia fazer a defesa da publicidade institucional ou educativa.

d) Contexto da defesa da liberdade de expressão: nessa perspectiva, o candidato poderia defender a tese de que não caberia ao Estado fazer a autorregulamentação, pois isso caberia ao mercado. Também poderia defender a livre veiculação da publicidade infantil no Brasil.

e) Contexto pragmático: o candidato aqui poderia analisar como ocorre a publicidade infantil no Brasil e, a partir da análise, propor mudanças ou a manutenção do cenário atual.

Metodologia e matriz de avaliação da prova de redação

Quanto à metodologia de avaliação da redação do Enem, os textos são corrigidos eletronicamente por meio de um sistema Web. As redações são avaliadas com base em cinco competências, e seus respectivos níveis de habilidades, expressas na matriz de avaliação abaixo:

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Competência Notas Nível de habilidade

I – Demonstrar domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa.

0 Demonstra desconhecimento da modalidade escrita formal da língua portuguesa.

1 Demonstra domínio precário da modalidade escrita formal da língua portuguesa, de forma sistemática, com diversificados e frequentes desvios gramaticais, de escolha de registro e de convenções da escrita.

2 Demonstra domínio insuficiente da modalidade escrita formal da língua portuguesa, com muitos desvios gramaticais, de escolha de registro e de convenções da escrita.

3 Demonstra domínio mediano da modalidade escrita formal da língua portuguesa e de escolha de registro, com alguns desvios gramaticais e de convenções da escrita.

4 Demonstra bom domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa e de escolha de registro, com poucos desvios gramaticais e de convenções da escrita.

5 Demonstra excelente domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa e de escolha de registros. Desvios gramaticais ou de convenções da escrita serão aceitos como excepcionalidade e quando não caracterizam reincidência.

II – Compreender a proposta de redação e aplicar conceitos das várias áreas de conhecimento para desenvolver o tema, dentro dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo em prosa.

0 Fuga ao tema/não atendimento à estrutura dissertativo-argumentativa

1 Apresenta o assunto, tangenciando o tema, ou demonstra domínio precário do texto dissertativo-argumentativo, com traços constantes de outros tipos textuais.

2 Desenvolve o tema recorrendo à cópia de trechos dos textos motivadores ou apresenta domínio insuficiente do texto dissertativo-argumentativo, não atendendo à estrutura com proposição, argumentação e conclusão.

3 Desenvolve o tema por meio de argumentação previsível e apresenta domínio mediano do texto dissertativo-argumentativo, com proposição, argumentação e conclusão.

4 Desenvolve o tema por meio de argumentação consistente e apresenta bom domínio do texto dissertativo-argumentativo, com proposição, argumentação e conclusão.

5 Desenvolve o tema por meio de argumentação consistente, a partir de um repertório sociocultural produtivo e apresenta excelente domínio do texto dissertativo-argumentativo.

III – Selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos,

0 Apresenta informações, fatos e opiniões não relacionados ao tema e sem defesa de um

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opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista.

ponto de vista. 1 Apresenta informações, fatos e opiniões pouco

relacionados ao tema ou incoerentes e sem defesa de um ponto de vista.

2 Apresenta informações, fatos e opiniões relacionados ao tema, mas desorganizados ou contraditórios e limitados aos argumentos dos textos motivadores em defesa de um ponto de vista.

3 Apresenta informações, fatos e opiniões relacionados ao tema, limitados aos argumentos dos textos motivadores e pouco organizados em defesa de um ponto de vista.

4 Apresenta informações, fatos e opiniões relacionados ao tema, de forma organizada, com indícios de autoria, em defesa de um ponto de vista.

5 Apresenta informações, fatos e opiniões relacionados ao tema, de forma consistente, configurando autoria, em defesa de um ponto de vista.

IV – Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a construção da argumentação

0 Não articula as informações. 1 Articula as partes do texto de forma precária. 2 Articula as partes do texto de forma

insuficiente, com muitas inadequações e apresenta repertório limitado de recursos coesivos.

3 Articula as partes do texto de forma mediana, com inadequações e apresenta repertório pouco diversificado de recursos coesivos.

4 Articula as partes do texto com poucas inadequações e apresenta repertório diversificado de recursos coesivos.

5 Articula bem as partes do texto e apresenta repertório diversificado de recursos coesivos.

V – Elaborar proposta de intervenção para o problema abordado, respeitando os direitos humanos

0 Não apresenta proposta de intervenção ou apresenta proposta não relacionada ao tema ou ao assunto.

1 Apresenta proposta de intervenção vaga, precária ou relacionada apenas ao assunto.

2 Elabora, de forma insuficiente, proposta de intervenção relacionada ao tema ou não articulada com a discussão desenvolvida no texto.

3 Elabora, de forma mediana, proposta de intervenção relacionada ao tema e articulada à discussão desenvolvida no texto.

4 Elabora bem proposta de intervenção relacionada ao tema e articulada à discussão desenvolvida no texto.

5 Elabora muito bem proposta de intervenção, detalhada, relacionada ao tema e articulada à discussão desenvolvida no texto.

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Matriz específica

Conforme se verifica na matriz de avaliação do Enem acima, a competência III, sobretudo nos níveis 4 e 5 (em destaque), contempla aspectos referentes à autoria. Eles estão assim descritos: (4) [o candidato] apresenta informações, fatos e opiniões relacionados ao tema, de forma organizada, com indícios de autoria, em defesa de um ponto de vista e (5) [o candidato] apresenta informações, fatos e opiniões relacionados ao tema, de forma consistente, configurando autoria, em defesa de um ponto de vista.

01 02 03 04 05 06

Item/nível de

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4 E- E- E- E- E- E-

Satisfatório 3 S+ S+ S+ S+ S+ S+

2 S- S- S- S- S- S-

Não satisfatório 1 N+ N+ N+ N+ N+ N+

0 N- N- N- N- N- N-

Escore

Afora essa descrição, não constam, no material pesquisado, explicações detalhadas do que seriam esses indícios de autoria, nem, tampouco, que elementos configurariam a autoria. Essa falta de explicação pode acarretar dificuldades para os avaliadores, pois nem todos têm domínio desses conceitos. Dessa forma, para a análise do corpus aqui estudado, construiu-se uma matriz específica contendo apenas critérios autorais e identitários. Sua construção surgiu da necessidade de se verificar com mais precisão os vestígios autorais e identitários deixados pelo candidato no momento da escritura no texto. Ela, assim como a matriz do Enem, busca avaliar o candidato por meio de competências e habilidades. Essa matriz difere de outras matrizes utilizadas por instituições de ensino superior, públicas e privadas, pois estas não costumam considerar esses aspectos, ou os consideram apenas superficialmente. Os critérios adotados podem, futuramente, caso seja do interesse dos órgãos competentes, compor a matriz de avaliação do Enem, ou podem ser usados por professores em sala de aula, caso queiram valer-se de uma matriz de avaliação que não contemple apenas critérios linguístico-gramaticais de avaliação de textos.

Além da matriz de avaliação do Enem, foram analisadas as planilhas de avaliação utilizadas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pela UniRitter Laureate

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International Universities, ambas de Porto Alegre, e pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). A primeira é da rede federal de ensino, e outras duas são da rede particular. A matriz aqui proposta é pautada por conceitos e está baseada nas diretrizes da prova de Redação do Enem e na planilha da UFRGS, já que as planilhas das outras duas universidades não mencionam o investimento autoral. Como se pode verificar na tabela abaixo, os referidos conceitos perfazem seis possibilidades que permitem ao avaliador diferenciar entre textos excelentes (E+ e E-); satisfatórios (S+ e S-) e não satisfatórios (N+ e N-). É importante salientar que a matriz que serve à análise e discussão dos textos focaliza alguns critérios autorais e identitários, e não todos, pois eles são inúmeros. Na tabela abaixo, são apresentados os critérios, e, em seguida eles são detalhados.

Os critérios abaixo descritos referem-se à matriz de avaliação criada especificamente com o objetivo de investigar mais acuradamente os traços autorais e identitários deixados pelos candidatos nos textos. São eles:

1. Densidade textual – Este critério busca verificar se o candidato caracteriza minimamente objetos e lugares; se o texto faz relação com elementos da cultura e com outros discursos. Verifica, ainda, se há domínio linguístico por parte do candidato, isto é, se a conexão entre as frases é complexa, se há precisão vocabular, fundamentação argumentativa e capacidade lógica de produzir sentido. Pontuação, frases com sentido completo, clareza, objetividade, concisão, vocabulário variado e preciso também colaboram para a densidade textual. O registro formal da língua portuguesa moderna e a obediência às regras gramaticais vigentes também contribuem para tornar o texto mais denso.

2. Tomada de posição do autor – Este quesito refere-se ao grau de aproximação e de afastamento do autor do texto em relação à posição adotada. Espera-se que o candidato dê voz a outros enunciadores e, ao mesmo tempo, mantenha distância em relação ao próprio texto. Trata-se, portanto, de verificar a forma como o autor se presentifica e se distancia no texto. O uso de citações diretas e indiretas empregadas também é verificado nesse quesito. O afastamento do autor e a tentativa de apagamento das suas características individuais são contemplados nesta competência, assim como a forma como o candidato toma a palavra e a concede a outrem.

3. Estilo criatividade/originalidade (capacidade de ressignificar sentidos) – A capacidade de articular de modo diferente a linguagem já empregada por alguém em um texto/discurso anterior, dando coerência a esse novo texto/discurso, é avaliada neste quesito. Da mesma forma, a capacidade de desarranjar as palavras do seu lugar comum dando novos sentidos a elas para surpreender, desestabilizar, encantar, seduzir o leitor são aspectos referentes ao estilo. O jogo entre os já-ditos; o jogo de imagens, o uso de figuras de linguagem e o modo inovador de dizer o que já foi dito antes são também analisados nesta competência. A elegância, a não banalidade e a habilidade de manipular as palavras para projetar os efeitos pretendidos estão, da mesma forma, contemplados neste quesito. Léxico, sintaxe, operadores discursivo-argumentativos, sinônimos, retomadas lexicais e a alternância entre termos também são constitutivos do estilo.

4. Controle da dispersão (coesão e coerência textual) – A ordem das frases no período, as marcas de gênero e de número, as preposições, os pronomes pessoais, os tempos verbais e os conectores textuais funcionam como elos coesivos. Cada um desses elementos estabelece articulações que concatenam ideias e permite a progressão textual em direção à comprovação da tese que o candidato visa a defender. No que diz respeito à coerência, é necessário verificar a relação que o candidato estabelece entre o texto e o conhecimento dos interlocutores, garantindo a construção de sentido de acordo com as expectativas do leitor. Este quesito está ligado ao controle da deriva do texto, uma vez que a coerência está ligada à compreensão e à possibilidade de interpretação dos sentidos. Em sentido amplo, a coerência é um princípio de interpretabilidade e supõe relações sociodiscursivas de produção e de uso, ultrapassando os significados das formas da língua e de suas ligações lógico-semânticas. Para haver coerência é necessário que elementos formais e funcionais atuem para constituírem uma unidade, levando-se em conta o contexto em que o texto é produzido.

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5. Filiação ao tipo dissertativo-argumentativo – O modelo prototípico da dissertação é o que contém introdução, desenvolvimento e conclusão. O texto é considerado argumentativo, grosso modo, porque defende uma tese, e é dissertativo porque se utiliza de explicações para justificá-la. Esse tipo de texto é composto da seguinte tríade: tese, argumentos e estratégias argumentativas. Essas estratégias podem ser apresentadas em forma de exemplos, dados estatísticos, pesquisas, fatos comprováveis, alusões, comparações, etc. Da mesma forma, aspectos como o tema, o modo composicional e o domínio linguístico são contemplados nesta competência.

6. Assunção de responsabilidade – Este quesito relaciona-se à posição foucaultiana de que há alguém que assume a responsabilidade pelo enunciado. Esse alguém (autor), ao escrever, assume uma posição ideológica no discurso, publica o que escreve, é reconhecido/lido pela sociedade, goza de certo status pelo resultado de seu trabalho e tem direitos sobre o seu texto/discurso. A assunção de responsabilidade do candidato ao Enem presume quatro eus distintos segundo Lima (2014): o eu pessoa em sua individualidade, que possui sonhos, desejos, expectativas e frustrações; o eu estudante que precisa demonstrar em um raciocínio de trinta linhas que apreendeu todos os conhecimentos adquiridos ao longo de sua formação escolar de doze anos; o eu candidato que precisa basear-se na coletânea da prova de redação para construir sua argumentação; e, finalmente, o eu cidadão que, especialmente na conclusão, deve apresentar uma proposta clara e inovadora para resolver os problemas que ele criou. Logo, precisar de quem é a voz que escreve torna-se difícil, pois, no texto, pode haver uma diversidade de eus.

Cada critério da matriz contém exigências que devem ser observadas pelo candidato no momento da escrita do texto. A aproximação ou o distanciamento em relação aos critérios o aproximam o afastam das exigências a serem atendidas na matriz de referência, que é pautada também por conceitos. Tais conceitos são assim descritos:

4.3.1. Nível excelente – o conceito E+ equivale ao nível excelente. Os candidatos que satisfizerem plenamente a exigência focalizada receberiam esse conceito. Está no nível excelente o participante que obtiver nota máxima em todos os critérios exigidos, demonstrando total habilidade na manipulação deles. Nesse nível, a redação alcançaria 1000 pontos. O E- também equivale ao nível excelente, porém a habilidade demonstrada pelo candidato, em um ou mais critérios, oscila; por isso, a redação obteria uma nota que alcançaria entre 800 e 900 pontos.

4.3.2. Nível satisfatório – a redação que está no nível S+ é considerada uma redação mediana. A qualidade do texto cai consideravelmente em relação ao nível excelente, mas, ainda assim, é considerada uma boa redação, possibilitando ao candidato conseguir a vaga na universidade, dependendo da pontuação exigida pelo curso no qual o candidato deseja ingressar. Dessa forma, o texto receberia uma nota entre 600 e 700 pontos. O conceito S-, também em nível satisfatório, situa-se numa escala inferior ao S+, pois, neste caso, o candidato tende a se distanciar da exigência solicitada na matriz. A nota obtida giraria em torno dos 500 pontos, pois a exigência é parcialmente satisfeita. Mesmo assim, essa nota possibilitaria ao a conquista da certificação do ensino médio.

4.3.3. Nível não satisfatório – está no nível N+ a redação do candidato que observar apenas minimamente o que é exigido na matriz de referência. Este texto situa-se abaixo dos 500 pontos. No nível N- o candidato se afasta ainda mais das exigências, o que significa que não houve a observância dos critérios exigidos. Em ambos os casos, o candidato seria desclassificado, pois a pontuação obtida ficaria aquém do exigido.

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Procedimentos de Análise e Resultados

Os cinco (5) textos que compõem o corpus da pesquisa foram encaminhados pelos próprios autores-candidatos ao site Globo.com4, mais conhecido como G1, e publicados na Internet em 21 de maio de 2015. Ao acessar o site, é possível verificar que há um recorte do espelho da redação com foto e caligrafia próprias do autor. Também há uma reportagem sobre cada um deles e, nela, os jovens contam seus segredos sobre como escrever um bom texto. Alguns dos candidatos enviaram ao site o boletim de desempenho com as notas obtidas no exame para comprovar que, de fato, a nota atribuída à redação foi aquela. As redações estão identificadas e foram digitadas na íntegra, sem qualquer alteração da ordem do conteúdo, da expressão, ou qualquer outra. Além disso, deve-se ressaltar que todos os candidatos satisfizeram plenamente as exigências expressas na matriz de referência do Enem 2014 inclusive as que correspondem aos critérios de autoria, tendo, assim, atingido os mil (1000) pontos.

Para a análise dos textos, foram utilizados os seguintes procedimentos: a) foram realizadas diversas e atentas leituras com o objetivo de identificar, nos textos, cada uma das competências expressas na matriz específica; b) os textos foram analisados individualmente por diversas vezes; c) após a identificação dos traços autorais e identitários presentes nos textos, a partir das leituras, eles foram anotados na planilha conforme o respectivo nível (E+, E-, S+, S-, N+ e N-); d) identificadas as marcas identitárias e os indícios de autoria que poderiam levar cada texto a atingir a nota máxima, ou seja, o equivalente ao nível 5 da competência III da matriz do Enem, as análises foram descritas. Como os critérios possuem o mesmo valor, isto é, nenhum tem peso maior ou menor que outro, a sua abordagem, durante as análises, não necessariamente seguem a ordem da matriz específica.

O que se percebe nos textos analisados, em relação às regularidades observadas, isto é, em relação àquilo que se mostrou recorrente nos textos, é que todos eles, em alguma medida, apresentam tanto marcas de identidade quanto de autoria. Embora as marcas identitárias apareçam mais sutilmente. Conquanto sejam textos canônicos, isto é, não fogem ao modelo prototípico do tipo dissertativo-argumentativo, com introdução, desenvolvimento e conclusão, há, neles, um nível considerável de investimento autoral. Os candidatos, embora cumpram as regras impostas na prova de redação do Enem, que, por si só, já são limitadoras, o fazem de forma singular, o que também configura autoria.

Parece, por vezes, que os candidatos não têm consciência dos vários eus que os compõem durante o processo de escrita, provavelmente porque esses vários eus vão se constituindo autoral e identitariamente à medida que o candidato escreve. Essa falta de consciência autoral pode ocorrer porque, no dia a dia, a maioria dos alunos não produz textos com o objetivo de usá-los nas mais variadas funções sociocomunicativas. Eles o fazem para tirar nota na escola e passar de ano, para conseguir uma vaga na universidade, para passar num concurso, para ganhar uma bolsa de estudos, etc. Percebe-se, igualmente, que os candidatos tentam se afastar da sua escrita, dando voz aos outros, na tentativa de apagar suas características individuais. Porém, de uma forma ou de outra, o texto sempre pode ser associado a quem o produziu, basta saber localizar os vestígios deixados pelo autor. A autoria é posta em evidência quando, ao escrever um texto do tipo dissertativo-argumentativo, o que é obrigatório a todos, o candidato, para ser bem avaliado, precisa mostrar que, dentre outras habilidades, tem estilo. Ainda que a fôrma (o tipo de texto), os ingredientes (a linguagem verbal escrita) e o tema da redação sejam os mesmos para todos os candidatos, a “mão” que escreve será sempre única, particular, daí porque as abordagens do tema são sempre diversas.

4 Disponível em: <http://g1.globo.com/educacao/ENEM/2015/noticia/2015/05/leia-redacoes-do-ENEM-que-tiraram-nota-maxima-no-exame-de-2014. html>

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Considerações finais

Num texto ou discurso, raramente podemos colocar ponto final, visto que sempre haverá alguém que com ele concorde ou do qual discorde, enfim, que dialogue com ele. Outra questão importante de se colocar aqui é que um discurso nunca é original: ele sempre faz referência a outros discursos/textos. A linguagem, sobretudo na perspectiva bakhtiniana, é (inter)ação e não um mero instrumento de comunicação. Para Bakhtin, a palavra comporta duas faces: ela procede de alguém e se dirige a alguém. Assim, ela constitui o produto da interação entre o locutor e o ouvinte (ou entre o autor e o leitor), pois serve de expressão de um em relação ao outro. Assim é que se instaura o dialogismo, que é um princípio constitutivo da linguagem e condição de sentido do discurso.

Nesse contexto de linguagem, é possível constatar, pelos estudos realizados neste trabalho, que os conceitos de autoria e de identidade não são uniformemente empregados nem, tampouco, objetivamente definidos, logo não são noções óbvias. E nem poderiam ser, devido à heterogeneidade de abordagens que envolvem o tema e às filiações teórico-metodológicas dos estudiosos que se debruçam a estudá-lo. Talvez, por isso, a questão não foi, e, provavelmente, não será resolvida. Entre os teóricos analisados, frequentemente encontram-se traços que se superpõem, porém, mais amiúde, notam-se diferenças, e mesmo divergências que, ao serem contrastadas, não se revelam nem melhores nem piores. Apenas mostram diferentes aportes teóricos com seus limites, propósitos e possibilidades.

As diversas áreas que envolvem os estudos da linguagem não dispõem ainda de todas as respostas para as questões que envolvem os conceitos de autor, de autoria e de identidade. E é justamente essa falta de respostas que faz com que os estudos proliferem no meio acadêmico. Afinal, cada teórico, dependendo de sua filiação teórico-metodológica, abordará o tema sob uma determinada perspectiva, isto é, olhará para o objeto de um ângulo específico.

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