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70 I ÉPOCA I 11 de maio de 2015 S Thais Lazzeri imone Cruz visitou quase uma dezena de escolas para matricular os filhos, Manuela, de 11 anos, e Gabriel, de 8. Manuela tem síndrome de Down. Gabriel tem atraso mental – ainda hoje, não fala. “Tudo é motivo de angústia para o pai de uma criança com deficiência”, diz Simone. Na primeira escola particular, a equipe não se prepa- rou para receber Manuela. Sem estímulos adequados, a menina não teve evolução. “Olhavam para minha filha como se ela fosse uma coitada.”Na segunda, um caso de constrangimento de um aluno com Down – o garoto foi entregue aos pais sujo de urina e fezes – fez Simone desis- tir da escola. Na terceira, a filha não se adaptou. Agora, os irmãos estudam no Colégio Fernandes Vidal, uma escola de classe média na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. Por cinco anos, o custo dos profissionais de cada um dos filhos de Simone era bancado pela escola, como prevê a lei. Com o aumento do número de crianças com deficiência, diz Simone, a coordenação repassou a cobrança de um dos profissionais para Simone – além das duas mensalidades, cerca de R$ 500 cada uma. “Como consumidora, enten- do os argumentos da escola. Como mãe, sinto que, ao assumir o custo, é como se a profissional fosse a única responsável pelo desenvolvimento da Manu. Estão dando conteúdo do 1 o ano para ela, sendo que a Manu está no 3 o .” A escola afirmou desconhecer a lei que obriga a contratar o profissional de apoio. Diz que Simone tem desconto nas mensalidades para custear esse pagamento. Obrigar pais a contratar um funcio- nário para acompanhar o filho dentro da escola é contra a lei. Um decreto de 2014 determina aplicação de multa em caso de descumprimento. Das 20 famí- lias ouvidas para a reportagem, todas fo- ram discriminadas por escolas na busca por vagas – “já alcançamos a cota de de- ficientes”, ouviu uma mãe. Poucas qui- seram se identificar e expor o problema, por medo de o filho sofrer preconceito ou algum tipo de retaliação em sala de aula. Metade teve a oferta da matrícula condicionada à contratação, com recur- sos próprios, do profissional de apoio. “Não aceitar a matrícula ou negociar a entrada com pagamentos extras são atos discriminatórios e devem ser punidos”, diz Martinha Clarete, diretora de Políti- cas de Educação Especial do Ministério da Educação (MEC). O senador Romá- rio Faria (PSB-RJ) publicou neste ano um projeto de lei (45/2015) que proíbe a já ilegal cobrança de taxa adicional para matrícula de alunos com deficiência. O Escolas particulares – e públicas – obrigam pais de crianças com deficiência a pagar um profissional para acompanhar os meninos na sala de aula. A cobrança é ilegal e disseminada Inclusão tem preço CENAS BRASILEIRAS

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70 I ÉPOCA I 11 de maio de 2015

SThais Lazzeri

imone Cruz visitou quase umadezena de escolas para matricularos filhos, Manuela, de 11 anos,

e Gabriel, de 8. Manuela tem síndromede Down. Gabriel tem atraso mental –ainda hoje, não fala. “Tudo é motivo deangústia para o pai de uma criança comdeficiência”, diz Simone. Na primeiraescola particular, a equipe não se prepa-rou para receber Manuela. Sem estímulosadequados, a menina não teve evolução.“Olhavam para minha filha como se elafosse uma coitada.”Na segunda, um casode constrangimento de um aluno comDown – o garoto foi entregue aos paissujo de urina e fezes – fez Simone desis-tir da escola. Na terceira, a filha não seadaptou. Agora, os irmãos estudam noColégio Fernandes Vidal, uma escola declasse média na Ilha do Governador, noRio de Janeiro. Por cinco anos, o custodos profissionais de cada um dos filhosde Simone era bancado pela escola, comoprevê a lei. Com o aumento do númerode crianças com deficiência, diz Simone,a coordenação repassou a cobrança deum dos profissionais para Simone – alémdas duas mensalidades, cerca de R$ 500cada uma. “Como consumidora, enten-do os argumentos da escola. Como mãe,sinto que, ao assumir o custo, é como sea profissional fosse a única responsável

pelo desenvolvimento da Manu. Estãodando conteúdo do 1o ano para ela,sendo que a Manu está no 3o.” A escolaafirmou desconhecer a lei que obriga acontratar o profissional de apoio. Diz queSimone tem desconto nas mensalidadespara custear esse pagamento.

Obrigar pais a contratar um funcio-nário para acompanhar o filho dentroda escola é contra a lei. Um decreto de2014 determina aplicação de multa emcaso de descumprimento. Das 20 famí-lias ouvidas para a reportagem, todas fo-ram discriminadas por escolas na buscapor vagas – “já alcançamos a cota de de-ficientes”, ouviu uma mãe. Poucas qui-seram se identificar e expor o problema,por medo de o filho sofrer preconceitoou algum tipo de retaliação em sala deaula. Metade teve a oferta da matrículacondicionada à contratação, com recur-sos próprios, do profissional de apoio.“Não aceitar a matrícula ou negociar aentrada com pagamentos extras são atosdiscriminatórios e devem ser punidos”,diz Martinha Clarete, diretora de Políti-cas de Educação Especial do Ministérioda Educação (MEC). O senador Romá-rio Faria (PSB-RJ) publicou neste anoum projeto de lei (45/2015) que proíbe ajá ilegal cobrança de taxa adicional paramatrícula de alunos com deficiência. O

Escolas particulares – e públicas – obrigampais de crianças com deficiência a pagar umprofissional para acompanhar os meninosna sala de aula. A cobrança é ilegal e disseminada

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CUSTO A MAISA família deSimone Cruz(de cabelosclaros). Ela pagaa profissional deapoio (à esq.)da filha, Manuela(sentada àmesa)

projeto é um indicativo de que a práticaestá disseminada em todo o país. Emnota, Romário afirma: “Quem insistircom a prática de cobrar taxas acima damensalidade deverá ressarcir os valores.O reembolso será o dobro do que foipago em excesso”.

Infelizmente, são poucos os casos quechegam à Justiça. Do total de famíliasentrevistadas, apenas duas acionaramadvogados ou defensores e promotorespúblicos. No Estado de São Paulo, afirmao promotor João Paulo Faustinoni, sãoraras as denúncias contra escolas parti-culares. Há pais que temem que o filhosofra algum tipo de represália. Outros,diante de sucessivos nãos na jornadapenosa por uma instituição, acabamcedendo às exigências descabidas da ins-tituição que aceita. “Essas práticas sãoilegais”, diz.A fiscalização de instituições,admitiu Faustinoni, também é tímida.

Na prática, pais como Simone pa-gam a inclusão dos filhos. Depois denove recusas em instituições de NovaIguaçu, no Rio de Janeiro, Ana Paulados Anjos topou a exigência ilegal doCentro Integrado de Educação Moder-na. Por cinco anos pagou mensalidadeduplicada, em torno de R$ 1.600, paraArthur, de 8 anos. “Foi um golpe”, diz.Metade do valor arcava com o profis-sional de apoio. “Sei que é ilegal, masquanto mais iria expor meu filho?” Oacordo, diz, foi oficializado em um con-trato paralelo. “Meu filho não aprende.Socializar é o grande negócio que estão(a escola) fazendo por você. Até hoje éuma guerra”, diz. Há poucas semanas, aescola desistiu da cobrança. “Imaginoque vão pensar que exigirei menos sobrea parte pedagógica, mas não.”

Na rede pública, o drama tambémexiste. O atendimento escolar é obri-gatório entre 4 e 17 anos ou para osque não tiveram acesso na idade pró-pria. Segundo o MEC, em 2014, foram707.120 matrículas de alunos com de-ficiência na rede pública e 179.695 naprivada. O valor do repasse do governopara o aluno com deficiência é 20% su-perior e varia entre os Estados.

De acordo com as resoluções doMEC de 2009, a escola, em parceriacom a família, deve avaliar as neces-sidades individuais do aluno para s

Foto: Stefano Martini/ÉPOCA

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eliminar qualquer barreira, seja física ounão, que possa prejudicar o aprendizado.É aí que pode surgir a necessidade dacontratação de um profissional de apoio,“visando à acessibilidade às comunica-ções e à atenção aos cuidados pessoais dealimentação, higiene e locomoção”, diz anota técnica do MEC. O profissional nãotem função pedagógica em sala de aulanem substitui o professor.

A política de educação inclusiva noBrasil é baseada no desenvolvimentoindividual do aluno, como parte de umgrupo maior. Aprender é uma necessi-dade de qualquer aluno. Os ganhos edu-cacionais somam-se aos sociais, de quecada pessoa tem habilidades e limitaçõesdistintas – uma lição para toda a vida.Mas incluir não é colocar todos juntosnum mesmo espaço.A inclusão tambémnão depende, apenas, de boa vontade, dizo professor de psicologia e escritor Yvesde La Taille, da Universidade de São Pau-lo. Carece de recursos e de profissionaispreparados, de pais ativos com coragempara dizer não às propostas ilegais dasescolas e levar os casos à Justiça.

Kely Cristina Machado, mãe de Ma-ria Fernanda, de 7 anos, teve duas ex-periências na rede municipal de ensinode Volta Redonda, no Rio. Na primei-ra, acompanhou a filha cadeirante porquatro meses em aula, porque o profis-sional de apoio nunca chegou à escolaSergipe. Maria tem uma escoliose tãosevera que já passou por 11 cirurgias.“Ela tinha medo de ficar com outrascrianças. Dizia que ‘ser especial é ruim’.”Neste ano, Maria retornou para a redemunicipal, na Miguel Couto Filho. Des-ta vez, a recepção da equipe pedagógicafoi melhor. “É outra realidade. Mariaestá feliz.” Mas o profissional de apoiorequisitado pela escola ainda não apare-ceu. Kely acionou a Defensoria Pública.A Secretaria de Educação de Volta Re-donda foi procurada diversas vezes. Naprimeira, informou que o profissionalestava a caminho. Nesse ínterim, Kely foiprocurada pela secretaria e orientada anão dar entrevista – em uma das liga-ções, é possível ouvir alguém da Pastagritando o nome da pessoa que contatouKely. O profissional que acompanhou afilha de Kely por menos de um mês foirecolocado em outra unidade.

Em São Paulo, o profissional deapoio para o filho de Priscila Aparecidade Assis, Nathan, de 8 anos, chegou hápouco mais de um mês à Escola Muni-cipal de Ensino Fundamental ProfessorAbrão de Moraes, na Zona Leste. Atéentão, era Priscila que ajudava o filho.“A escola recebeu meu filho autista commuita disposição.” Procurada, a Secre-taria Estadual de Educação informouque “nem todo espaço estará pronto,mas você precisa estar atento pararemover as barreiras”.

Há ainda pais que, voluntariamente,pagam o mediador por acreditar que odesenvolvimento da criança será melhor.Nesses casos, não é crime. Outros pagampara não ir à Justiça e expor o filho. Háainda os que defendem que a famíliaarque com o custo, mesmo quando setrata de uma exigência da escola.

A precariedade no sistema educacio-nal fez surgir uma demanda por profis-sionais de apoio na rede privada.A auxi-liar terapêutica Junilce Rocha entrou noramo há três anos. Um terapeuta infantilindica o trabalho de Junilce e outras as-sistentes para os pais. Para acompanharum garoto com síndrome de Down pormeio período em uma escola particularem São Paulo, recebe R$ 1.500, sem re-gistro. Junilce ensina o menino a pegaro material escolar, a escrever o próprionome em cima do pontilhado que elafaz na página para ajudá-lo, fica com eleem outras atividades nas aulas de que elenão participa. “Não faz sentido ele ficarem uma aula de leitura se não fala nemescreve”, diz. Não é o que preconiza oMinistério da Educação. O relatório se-manal de Junilce é passado ao terapeutaque atende a criança fora da escola.

Quando o profissional de apoio servecomo meio para alcançar conquistas epossibilitar que os alunos de uma mes-ma classe caminhem juntos, a sociedadeganha. O que não pode é repassar aospais, seja em forma de cobrança finan-ceira ou fazendo deles acompanhantesem sala de aula, a responsabilidade pelodesenvolvimento educacional. Além deser um contrassenso, é crime. u

EXIGÊNCIADESCABIDAAna Paula dos Anjose o filho, Arthur – porcinco anos, ela pagoumensalidadeduplicada

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