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(In-)visibilidade, abjeção e perspectiva: A cidade como hipertexto. Ana Lúcia Marques Camargo Ferraz O presente artigo pretende se acercar de responder a seguinte questão: o que pode a etnografia na linguagem hipermídia? Discuto as formas de apresentar a etnografia das redes de relações das classes trabalhadoras pauperizadas de Niterói, no Rio de Janeiro (Brasil) em linguagem multimídia. A questão norteadora da reflexão aqui desenvolvida é como expressar o conhecimento produzido pela etnografia das relações entre posições de onde se experimenta a cidade. Para dar conta de tal desafio, visamos construir um método cartográfico para apresentar perspectivas sobre a vida urbana, vista a partir da experiência de sujeitos específicos. Aqui, não se trata de pensar o espaço, estudar a praça pública, mas de reconstruir experiências, lances de vista oriundos de posições sociais de onde se vive a cidade de determinada maneira. O objetivo do trabalho é relacionar posições, constituindo seus pontos de vista, mapeando a rede que configura a classe trabalhadora como conjunto heterogêneo. A pesquisa busca desenvolver uma cartografia em hipermídia dos espaços da cidade tal como experimentados por nossos personagens. Parece hoje que os recursos digitais poderiam fornecer novos padrões para abordagens antropológicas, restituindo a experiência, difundindo o conhecimento etnográfico (SCHOENI, 2014, p. 89). Dialogo, na concepção do projeto Cartografias da Margem, com alguns trabalhos recentes que concebem uma forma para apresentar o conhecimento etnográfico produzido em sites ou outras plataformas nas quais se apresentam uma multiplicidade de imagens, textos, sons, sequencias fotográficas, entre outras (GLOWCZEWSKI, 2006; RAMELLA, 2014). Desde Warburg, em seu Atlas Mnemosyne, a espacialização da organização 1 das imagens concebe plataformas como mapas cognitivos. Mas, segundo Didi- Huberman (1998), para além de uma lógica territorial, que visa conter o mundo ali O Atlas Mnemosyne de Aby Warburg é um compendio de imagens que apresenta uma nova forma de 1 se fazer história, por associação, mobilizando o inteligível pelo sensível (SAMAIN, 2011, p. 36). O Atlas propõe reestruturar o pensamento por meio da imagem. O trabalho valorizava a visualidade, construindo painéis-montagem. Neles, a leitura da história valorizava a semelhança e operava por meio de saltos, como vemos também na obra das Passagens, de Walter Benjamin (SELIGMANN-SILVA, 2007, p. 109).

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(In-)visibilidade, abjeção e perspectiva: A cidade como hipertexto.

Ana Lúcia Marques Camargo Ferraz

O presente artigo pretende se acercar de responder a seguinte questão: o que pode a

etnografia na linguagem hipermídia? Discuto as formas de apresentar a etnografia das

redes de relações das classes trabalhadoras pauperizadas de Niterói, no Rio de Janeiro

(Brasil) em linguagem multimídia. A questão norteadora da reflexão aqui

desenvolvida é como expressar o conhecimento produzido pela etnografia das

relações entre posições de onde se experimenta a cidade. Para dar conta de tal desafio,

visamos construir um método cartográfico para apresentar perspectivas sobre a vida

urbana, vista a partir da experiência de sujeitos específicos. Aqui, não se trata de

pensar o espaço, estudar a praça pública, mas de reconstruir experiências, lances de

vista oriundos de posições sociais de onde se vive a cidade de determinada maneira. O

objetivo do trabalho é relacionar posições, constituindo seus pontos de vista,

mapeando a rede que configura a classe trabalhadora como conjunto heterogêneo.

A pesquisa busca desenvolver uma cartografia em hipermídia dos espaços da

cidade tal como experimentados por nossos personagens. Parece hoje que os recursos

digitais poderiam fornecer novos padrões para abordagens antropológicas, restituindo

a experiência, difundindo o conhecimento etnográfico (SCHOENI, 2014, p. 89).

Dialogo, na concepção do projeto Cartografias da Margem, com alguns trabalhos

recentes que concebem uma forma para apresentar o conhecimento etnográfico

produzido em sites ou outras plataformas nas quais se apresentam uma multiplicidade

de imagens, textos, sons, sequencias fotográficas, entre outras (GLOWCZEWSKI,

2006; RAMELLA, 2014).

Desde Warburg, em seu Atlas Mnemosyne, a espacialização da organização 1

das imagens concebe plataformas como mapas cognitivos. Mas, segundo Didi-

Huberman (1998), para além de uma lógica territorial, que visa conter o mundo ali

O Atlas Mnemosyne de Aby Warburg é um compendio de imagens que apresenta uma nova forma de 1

se fazer história, por associação, mobilizando o inteligível pelo sensível (SAMAIN, 2011, p. 36). O Atlas propõe reestruturar o pensamento por meio da imagem. O trabalho valorizava a visualidade, construindo painéis-montagem. Neles, a leitura da história valorizava a semelhança e operava por meio de saltos, como vemos também na obra das Passagens, de Walter Benjamin (SELIGMANN-SILVA, 2007, p. 109).

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representado, portanto organizado, compreendido, capturado; a lógica das cartografias

imagéticas pode permitir ultrapassar fronteiras, atravessar territórios, pensar

criticamente. O autor defende que tomemos a imagem como sintoma (DIDI-

HUBERMAN, 1998), atentando para o fato de que a imagem-memória irrompe; o

sintoma revela diferenças entre imagens, suas relações conflituosas, montagens de

heterogeneidades. Enquanto o símbolo unifica realidades a partir dos códigos

herdados pela sociedade, o sintoma dá a ver o esquecido, subterrâneo, presente (id.,

ibid.). Nossa cartografia deve então, localizar o simbólico e o sintomático que vive às

margens da imagem, o exemplo etnográfico da segunda parte do texto deve

concretizar nossa compreensão.

Aby Warburg constituía mapas cognitivos, Glowczewski (2006) fala em

mapas mentais que se materializam em trilhas esculpidas pelo ato de caminhar o chão,

lugares de sonhar, em bases digitais de dados antropológicos. Entre um e outro, o

refinamento da experimentação em produzir constelações de imagens. Essa

experiência é técnica e política, e demanda que apreendamos as linguagens do mundo.

Em Dream Trackers/Pistes des rêves, um DVD interativo reúne os materiais de sua

pesquisa sobre os caminhos Walpiri no deserto, “a circulação de sistemas culturais de

conhecimento” (2007, p. 183). Em Linhas e entrecruzamentos: Hiperlinks nas

narrativas indígenas australianas, Glowczewski (2007) apresenta o seu foco: “a

percepção da memória como espaço-tempo virtual e a maneira como eles [os

aborígenes] projetam o conhecimento em uma rede geográfica, tanto física quanto

imaginária” (GLOWCZEWSKI, 2007, p. 176). Pensando em redes, a autora localiza

uma teia virtual de narrativas, imagens e performances, na maneira reticular como os

aborígenes Walpiri mapeiam seu conhecimento e experiência de mundo.

Em nosso caso visamos a cidade de Niterói, seus personagens, homens e

mulheres da rua, que vivem nos morros e ocupações, habitam a praça pública. Na rua,

as relações são imediatas, velozes; ao passo que na “Comunidade” o tempo é 2

moroso, acordar, conseguir o de comer, embriagar-se de luz, anoitecer. Sempre

armados, digo, prontos, atentos, habitam seu mundo, as portas cheias de vielas que se

O termo “Comunidade” é o modo que os moradores das favelas do Rio de Janeiro adotaram para 2

referirem-se a seus espaços de moradia, trata-se de uma disputa simbólica para afastar o caráter estigmatizante do segundo termo, como discutem em seus trabalhos Freire (2008) e Birman (2008).

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aprofundam no terreno em direção à mata (onde ela ainda existe). O morador dessa

posição na cidade é um sobrevivente, isto é, tem um repertório de experiências de

risco de vida, tem muitos conhecidos com experiência de cárcere. Vive literalmente na

margem da cidade. Acompanhamos os seus trajetos.

A relação entre forma e conteúdo nesse trabalho é determinante, incorporamos

materiais de vários formatos, captados em distintas situações e por autores vários que

passaram pela equipe do projeto. O material não se pretende belo, embora haja algo

de beleza na vida que resiste. O trabalho caracteriza-se sobretudo por uma estranheza

que não pretende se disfarçar em familiaridade.

Aqui o mapa ganha a fisicalidade da cidade, com ruas, morros, casas,

ocupações, praças, bicicletas e gente. Notando com Telles que “o que antes foi dito e

escrito sobre a cidade e seus problemas, a “questão urbana”, parece ter sido esvaziado

de sua capacidade descritiva e potência crítica em um mundo que fez revirar de alto a

baixo o solo social das questões então em debate” (2010). A autora auxilia a entender

o modo como ilegalismos redefinem as tramas urbanas, as relações sociais e relações

de poder em situações variadas. A asserção “o Estado de exceção é a regra”, de Walter

Benjamin (1994), segue hoje válida, e tem implicações inclusive sobre a forma deste

trabalho.

Diante da indiferença e da banalização da vida das classes trabalhadoras no

Rio de Janeiro, o corpo se torna abjeto (KRISTEVA, 1982), justamente porque não se

pensa esse extrato precarizado da classe como morador da cidade, seu igual, seu

vizinho; o que tem suas relações com a experiência brasileira, marcada pelas formas

de relação com o outro que herda uma formação escravocrata. A publicação na

internet das imagens etnográficas produzidas entre populações que vivem expostas à

violência implica em dar a ver a sua existência. O problema do constituir-se em

imagem visibiliza as parcelas da população que ocupam a experiência precária da

margem, da fronteira do representável, do cognoscível, do imaginável. Visibilizando

certos modos de ocupar a cidade e as relações que os mantém, circulamos a imagem

do “outro social”, o morador da cidade dos trabalhadores, apresentando-o mais que

como “sujeito de direitos”, como agência de afetos.

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Pensar a linguagem do trabalho que estabelece o encontro pesquisador/

pesquisado/receptor. O receptor que interage com o site produz sentido na experiência

de recepção. O interator pode construir “sua própria dramaturgia no contato com o

material da pesquisa”, como entende Anna Lisa Ramella (2014, p. 12). Em seu site La

Vie du Rail, segue a estrutura do mapa e a “busca de conexões translineares de 3

ideias”. Em uma outra experiência, levada a cabo pelo National Film Board do

Canada, o site Out My Window, temos panorâmicas de 360 graus que revelam os 4

espaços habitados das casas em distintas cidades, a vida em apartamentos. Compõem

espaços internos a partir de mosaicos elaborados de fotografias. Montagens

fotográficas com intervenção em desenho constituem o panorama do espaço habitado,

além da reconstrução das paisagens visuais e sonoras. Num segundo nível de acesso,

encontramos depoimentos articulados com fotografias, especial atenção é dedicada à

música. Em ambos os casos, são histórias independentes, articuladas em série, aqui,

ligadas pelo território que é reconstruído a cada lance.

Catarina Alves Costa é autora de uma série de filmes etnográficos e tem

recentemente realizado algumas instalações em vídeo. Em seus trabalhos mais

recentes, tem-se valido dessa linguagem que nomeamos performática. Refiro-me a

duas peças em especial, Caretos e Casas para o povo. Este último, apresentado na

Bienal de Arquitetura de Lisboa, retoma a experiência daqueles que se engajaram na

revolução dos cravos a partir das imagens de sua família, de sua infância. O trabalho

pauta-se na pesquisa de acervos pessoais e composição de trilha sonora, atualizando a

experiência de ter vivido este momento histórico. Destacando o trabalho de arquitetos

que se engajaram nas lutas populares por moradia, o curta-metragem reconstrói o

espírito, restituindo em imagem, som e ritmo, aquele momento. Em seu outro vídeo,

Caretos, a câmera está na festa de rua, caminha entre as pessoas, atenta, mira o

careto que se aproxima. Perigo! Na obra de Catarina Alves Costa temos uma 5

Disponível em: <www.laviedurail.net>. Acesso em jan. 2016.3

Disponível em: <http://www.outmywindow.nfb.ca/#/outmywindow>. Acesso em jan. 2016.4

Os caretos são máscaras carnavalescas da região de Trás-os Montes, em Portugal, figuras rodeadas de 5

mistério, mobilizando o sarcasmo e o patético, utilizando-se do contato corporal com os passantes. A este respeito, ver Raposo (2010).

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concepção que valoriza o instante etnográfico como aquele que constrói a relação

com o outro e a densidade da experiência como produtora de sentidos.

No projeto Cartografias da Margem a disputa pela representação social

legítima, pelo reconhecimento dos “moradores de rua” como sujeitos de direitos, está

em questão. Observamos recentemente o surgimento de comunidades de redes sociais

baseadas nas grandes cidades brasileiras (o FbRioInvisível e o FbInvisibleSãoPaulo , 6 7

por exemplo, são algumas delas) que apresentam seus personagens a partir de um

recorte biográfico. A iniciativa é mais uma que opera no sentido de dar visibilidade às

populações que estão vivendo nas ruas das grandes cidades brasileiras. Sontag (1977),

em seu livro On Photography, afirma que a imagem fotográfica estetiza e ao fazê-lo

banaliza o visto como conhecido à distância. Este seria o caso das imagens que

circulam nos grandes meios, aquelas que reforçam a vitimização de tais populações, o

ponto de vista que torna tais personagens abjetos. A outra possibilidade seria fazer

uma história dos perdedores, mas a imagem do perdedor não mobiliza nem promove

identificação. A etnografia em multimídia, que cartografa a cidade tal como

experimentada desde a sua margem, lida com as possibilidades da imagem na

constituição de pontos de vista outros e se defronta com uma subjetividade da rua, a

experiência sensível de alteração dos sentidos vivida e buscada, suas paisagens

sonoras e seus interiores. O que vemos em nossa cartografia é a constante

metamorfose da cidade, que varia conforme o ponto de vista.

Mas como expressar as dinâmicas sociais em um mapa? Pensamos aqui o

problema da representação dos processos. Florestan Fernandes criticou a pretensão

mapeadora como pretensão estática e estatizante, ciência de Estado. No entanto, seria

importante aqui distinguir cartografia como modo de disponibilizar uma estrutura

para o conhecimento do espaço como algo dado e, por outro lado, modo de construir

pontos de vista a partir dos quais o espaço como objeto se re-figura. Assim, “mapear é

epistemológico, mas também profundamente cosmológico” (KITCHIN & DODGE,

2007). Os debates recentes sobre cartografia apontam outras possibilidades, assim, o

Disponível em: <https://www.facebook.com/rio.invisivel?fref=ts>. Acesso em jan. 2016.6

Disponível em <https://www.facebook.com/InvisibleSaoPaulo?fref=ts>. Acesso em jan. 2016.7

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mapa não fixa o já dado, mas é produtor daquilo que dá a ver (id., ibid.; WOOD,

2012).

Aqui, o espaço é um (des)fazer-se contínuo e frágil da vida nua. A vida se dá

em instantes. O critério adotado baseou-se nas relações estabelecidas com indivíduos

específicos, na experiência etnográfica, encontrando pontos onde posicionar-se para

nomear a experiência da cidade. Apostamos no acompanhamento de casos com os

quais dialogamos ao longo de tempo. Hipermídia, como rede de imagens cruzadas

referenciadas a uma base comum, permite aproximar lances de olhos da experiência

vivida pelas franjas populosas dos pedaços em que uma socialidade outra vai se

territorializando. Uma antropologia das classes trabalhadoras precárias e

criminalizadas exige atentarmos para os processos materiais e simbólicos, antes de

serem modos em que a classe trabalhadora é meramente adjetivada. Todavia, o que

aparece de substantivo, quando a classe se enfrenta com o desafio de constituir-se

como imagem? Relações, modos de vida, intensidades. Porque “o errante não vê a

cidade de cima, a partir da visão de um mapa, mas a experimenta desde dentro; ele

inventa a sua própria cartografia a partir de sua experiência itinerante”, como propõe

Jacques:

As narrativas errantes foram escritas nos desvios da própria história do urbanismo. Elas constituem um outro tipo de historiografia, ou de escrita da história, uma história errante, não linear, que não respeita a cronologia tradicional, uma história do que está na margem, nas brechas, nos desvios e, sobretudo, do que é ambulante, não está fixo, mas sim em movimento constante. (2006, p. 24).

No caso do Rio de Janeiro, temos visto o modo como a intervenção militar se dá nos

espaços de vida e moradia populares, as favelas ou “comunidades”, como preferem se

nomear. Nesses espaços, o Estado implantou as Unidades de Polícia Pacificadora

(UPP’s), impondo um controle militar das áreas onde vivem as classes trabalhadoras.

Com o argumento do combate ao narcotráfico, as forças repressivas estão autorizadas

a invadirem os espaços domésticos, a abordarem quaisquer indivíduos, a revistas

armadas de toda a população. Travestida de política de segurança pública impõe-se a

terrível prática estatal de controle populacional.

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Cartografamos séries de relações, isto é, um mapa da vida em seus

movimentos de afinidade ou evitação. A partir de tais relações vão se constituindo os

pontos de vista sobre a cidade tal como experimentada. Mapeamos espaços de

visibilidade/invisibilidade, em que o primeiro termo implica atuar, tornar-se visível,

constituir-se como imagem que circula socialmente, e o segundo é a relação de

evitação fruto da abjeção social. No outro extremo, estão as posições que não

aparecem no espaço público, imagens que não podem aparecer, imagens veladas, ou

que aparecem carregadas de estereótipo, como na grande mídia, imagens que são

recusadas socialmente. A literatura produzida na área limita-se a lidar com as

representações sociais instituídas opondo trabalhadores a bandidos (ZALUAR, 1994)

ou adjetivando os sujeitos, marcando-os com a categoria lumpemproletariado

(NEVES, 2010). Assumir o ponto de vista dos sujeitos demanda outro tratamento para

sua existência, considerar a sua potência de performance.

Mas, os pontos de vista desde onde se constrói esta cartografia se assumidos

com seriedade nos levam a notar uma ampla rede de relações estabelecidas entre

diversos setores da classe empobrecida: órfãs que cresceram em instituições do

estado, mulheres que engravidaram aos catorze anos e hoje têm quarenta, guardadores

de carros, esquizofrênicos, trabalhadores da construção civil aposentados, soldadores

desempregados, jardineiros idosos, cozinheiras demitidas, mães de muitas crianças,

que habitam casarões que permaneceram fechados e foram ocupados há mais de duas

décadas. Suas relações se mantêm ao compartilharem o mesmo espaço social na

cidade, trocam favores e afetos, compartilham trabalho e cachaça, estabelecem

relações de compadrio, numa noção de familiaridade mais que de família.

O risco é vivido cotidianamente, posto que nessa cidade outros poderes

territorializam o espaço. Nos morros, soldados do tráfico de substâncias cuja

comercialização é considerada crime pelo estado, impõem zonas de circulação

permitida ou proibida, assim se formam as áreas controladas por esta ou aquela

facção, ou pela milícia oriunda das polícias, que cobra por serviços clandestinos como

“gatos” de televisões a cabo, água e luz, e, disputam em tiroteios o controle da área. A

praça é espaço de visibilidade e controle de uma das facções. Algumas imagens ali

são proibidas. Esta etnografia inicia sua tomada de posição a partir do espaço da Praça

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da Cantareira, em Niterói, tal como vivido pelos personagens que a habitam noite e

dia, seus moradores, e, daí, seguimos aos outros espaços de vida e relações

estabelecidas a partir das construções daqueles que fazem dessa posição o seu ponto

de vista: ocupações, favelas, cortiços. 8

No site Cartografias da Margem vislumbramos redes de socialidade que

estruturam relações. Experimentamos modos de desessencializar o outro, sem

pressupor uma “cultura” que prescreve, observar a posição de quem age, como e por

que age e em que contexto. Estudamos suas redes de relações, assim a vida social se

mostra em ação a partir de posições que jogam entre si. Mas o problema da

visibilidade se configura de modo particular na pesquisa etnográfica, trata-se de

assumir o ponto de vista daqueles que vivem as histórias, assumir seus lugares na

cidade.

Tal pesquisa lida com as formas sensíveis com as quais interagimos, que se

experimentam com o corpo, linguagens a apreender. Mas, como incorporar na escrita

a sensação dos becos e vielas da favela (OPIPARI, 2011), como se a arquitetura

prescrevesse a ginga como apontou Oiticica (BERENSTEIN, 2014)? Para lidar com o

desafio de uma cartografia que apreenda o movimento dos processos sociais de

reterritorialização e desterritorialização que estão em curso, de permanente

reinvenção de táticas de ocupação da cidade pelas classes trabalhadoras,

experimentamos linguagens e narrativas, aqui a abordagem etnobiográfica como

dispositivo contrasta com a performance dos corpos que falam por si sós. Discutimos

a criação de uma linguagem etnográfica em multimídia para aprofundar o

experimento de criação de base na rede mundial de computadores, ao passo que

justamente visibilizamos o personagem dos processos sociais imerso em suas

questões.

No texto, o recurso à imagem concretiza, contraria, difere. Aqui, narro casos

constituindo figuras, discuto o paradoxo da imagem enquanto representação, presença

e fantasma. Apresento dípticos e trípticos, sequências fotográficas que dialogam com

o texto por contraste, antecipação ou enviesamento. Mas, os sujeitos eles mesmos

Situo com maiores detalhes o contexto do recorte etnográfico dessa investigação em Ferraz (2012).8

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produzem suas performances, quando encenam a cidade tal como experimentada para

a câmera.

O mosaico como interface

A interface adotada como primeira tela da estrutura composta de hiperlinks é um

mosaico construído pela equipe do projeto. Para dar a ver a fisicalidade do espaço, 9

optamos por uma imagem-base, um plano geral em plongée que visibiliza a Praça da

Cantareira e as vias no seu entorno, espaços de trajetos, de ocupações diversas, por

inúmeros sujeitos. As inserções que foram sobrepostas a essa imagem-base são planos

de detalhe de lugares, objetos ou pessoas, que assumem a função de links para outros

territórios. O dispositivo imagem-base com interferências compõe um plano sobre o

qual se inserem os caminhos seguidos pela pesquisa. Apresento a seguir a imagem em

elaboração para a interface de hiperlinks digitais. A seguir, discuto os dispositivos que

elaborei em cada uma das situações estudadas e as apresento em texto. No site, as

sequências de imagens sucedem-se e convivem lado a lado com os sons captados que

compõem as paisagens sonoras de quem vive uma posição específica. Lugares de vida

e dispositivos de imagem, de narrativas e de performance. Os pontos no mapa como

hiperlinks conduzem a outros vídeos ou sequências fotográficas e sonoras. O ponto já

é um deslocamento no tempo e não há cronologia, somente o tempo retomado pelas

narrativas, quando são biográficas. Na imagem inicial, os links restituem as

experiências que encontramos. A interface localiza trajetos, áreas de ocupação.

Agradeço a todos os jovens pesquisadores que participaram das distintas fases projeto Cartografias da 9

Margem na Universidade Federal Fluminense, entre os anos de 2012 e 2015: Adriana Xerez, Pedro de Andrea Gradella, João Inácio Cardoso Rocha, Jeisse Alvares, Pedro Ivo Mira da Silva, Caroline Gatti, Diogo Campos do Santos, Vinícius Rocha do Nascimento, Giulia de Vito Nunes Rodrigues, Raylane Christian Braz de Oliveira, Renata Carvalho Rodrigues Souza, Ícaro Torres e Josep Juan Segarra.

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!

Cartografias da Margem. Mosaico em esboço para interface clicável.

Trabalho em processo.

A imagem invisível

A única condição de visibilidade é habitar o mapa, sentar nos bancos da praça a ouvir

histórias, ver performances, interagir. A cidade vivida por nossos interlocutores é

voraz. Compartilhar a crítica é o que torna possível assumir a posição de onde se vê a

cidade. Um engajamento algo mais material, alimentá-los era a troca que alguns me

exigiam. Encontrar em mim a atenção à vida necessária para me relacionar com meus

interlocutores. Em campo a restituição da imagem se dá no cotidiano da relação com

os sujeitos. A restituição da pesquisa, na Praça, se deu pelo visionamento das imagens

gravadas, primeiro em telas de notebook, depois em exibições na praça e a devolução

do material bruto em DVD para visionamento doméstico, estas foram práticas que

foram construindo a possibilidade da relação com o grupo. Dialogando com os

sujeitos e acompanhando os seus deslocamentos ao longo de anos, os dispositivos

utilizados foram muitos: coabitar os bancos da praça, ouvindo depoimentos, gravar a

preparação de um almoço na praça, realizar oficinas de stencil na ocupação, oficina de

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fotografia na sede da associação de moradores no morro, oficina de vídeo com jogos

teatrais, realização de entrevistas em casa, colher depoimentos coletivos nas áreas

internas das ocupações. Visitar edifícios e instituições antes habitadas.

A casa (invisível) de Maria

Morando na praça

Aos fins de semana, desde cedo, Maria está na arrecadação de mantimentos, com seus

companheiros para a hora do almoço. Tomando sol nos bancos da Praça, conversa

com os conhecidos, compartilhando a cachaça. Arruma uma fogueira com lascas de

tábuas, gravetos, dois tijolos e uma grelha fazem o fogão, em volta dele se fica

conversando.

Morando no Paço da Pátria

Cláudio [companheiro de Maria]: Um quarto com barata, rato e mofo, não dá pra ficar

lá. Só pagamos pra deixar as coisas. Aqui na Praça é melhor, no domingo fazemos o

almoço na praia.

O Fluminense

Na manhã de domingo, o jornal O Fluminense estampa a fotografia de nossa

interlocutora na capa: a imagem de Maria com o filho no colo, sendo confrontada por

dois policiais. Dentro do jornal, ela aparece algemada e o filho no colo do policial.

Encontro Maria deitada no asfalto amamentando seu filho sob um lençol. Os seus

amigos que me indicaram onde ela estava, disseram que ela mal dormira à noite. Dali

a pouco ela se levanta, pergunto o que houve, ela, transfigurada, range os dentes,

falando uma língua que nem sempre compreendo. O menino não larga de seu seio.

Comem animadamente o feijão preto cozido que eu trouxera, ela tira do carrinho de

supermercado estacionado na calçada uma sacolinha plástica cheia de pães. Mostro o

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jornal, ela não o tinha visto. Transtornada ela acusa o policial de tê-la algemado,

enquanto o outro pegava o seu filho. Os moradores da ocupação e os pequenos

comerciantes da rua intervêm em seu favor. Os policiais perguntam o endereço dela,

os vizinhos dizem que ela mora no 17. Eles a soltam.

Morando no 17

Mais de um ano depois, Maria herda do pai de sua primeira filha uma casa na

ocupação. Antes de engravidar e dar à luz a Silas, filho de Cláudio, ela morava lá.

Assim ela deixa a Praça e o quarto no Paço da Pátria, para voltar a morar no 17.

Início da noite

Praça da Cantareira, sexta-feira. Muito movimento de estudantes, algumas pessoas

vendem cerveja com seus isopores. Maria conversa com sua vizinha. Quando ela me

vê, me puxa para o canto da banca de jornal, sentamos no canteiro da Praça, ela com o

filho no colo. Ela: Eu estava lembrando da minha casa, onde eu cresci, casa do meu

pai. Quartos com camas e travesseiros, uma sala ampla com sofá. Mas tinha ela, a

desgraçada da minha irmã, que ia namorar na rua e falava que os namorados eram

meus. Meu pai me batia. Se eu encontro ela... Na casa dele tinha uma cozinha com

geladeira, cheia de comida. Na casa de meu pai. Foi por causa dela que eu saí de lá.

[nervosa]. Eu: “Lembrar dessa história não está te fazendo bem”. Ela se acalma e o

filho a abraça, entre sonolento e atento.

Direito à maternidade

Caridoso, o professor Augusto tira os documentos de toda a família, a mãe, o pai e o

filho, de cinco anos. Ele apadrinhou o menino, levando-o para morar com a irmã mais

velha, que tinha outros dois filhos. Afinal, “todos sabem, a rua não é lugar pra

criança”. Sem o menino, o casal começa a brigar e vai se distanciando. Com ciúmes

do pai de seu filho, ela o fura com a boca de uma garrafa. Ele se muda. Um tempo

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depois, tem um ataque cardíaco. Professor Augusto interna Carlos no hospital.

Recuperado do problema, vai morar na casa de sua mãe adotiva, em Icaraí. O menino

volta a morar em Niterói, seu padrinho o matriculou na escola pública, Cláudio o leva

e o traz para Maria, diariamente, na ocupação do 17, onde é agora a sua casa.

! ! ! Foto: Ana Lúcia Ferraz

A ruína do casarão antigo se aprofunda no terreno, emendados a ela seguem

barracos de alvenaria e Eternit, escadas e vielas. Pelos fundos da área construída,

pátios integram casas, criando espaços de convivência, um lugar para sentar-se e

trocar ideias entre iguais, por ali se chega à trilha, um caminho distante do asfalto.

Outras vias não mapeadas se fazem a cada dia, nos trajetos e desvios que a vida

experimenta.

Fotos: Vinícius Rocha do Nascimento

Cine 94

A mostra de filmes na sede da Associação de Moradores, realizada durante o segundo

semestre de 2014, foi frequentada por jovens moradores do morro do 94 e da região

que tem entre seis e dezoito anos. A seleção dos filmes, que partiu do gosto dos

jovens, priorizou linhas temáticas que se dividem entre a violência institucionalizada

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em torno do tráfico de drogas e uma outra linha com funk, gravidez; muitas

animações foram exibidas.

No semestre seguinte, iniciaram-se as oficinas de vídeo, com encontros às

sextas-feiras no fim da tarde. O grupo é majoritariamente frequentado por meninos, as

meninas comparecem menos aos encontros. Além dos vários moradores do 94 de

todas as idades, frequentam os encontros os primos Enrico e Roberto, moradores da

Rua Projetada, localizada atrás do muro que separa a Universidade do bairro. Eles

trabalham na barraca de doces e cigarros dos pais de Roberto, localizada na porta da

Universidade; repõem um espaço de contato com a diferença na Oficina, o que repete

suas diferenças construídas no espaço da escola pelo fato de serem migrantes

nordestinos. Espaços de diferenciação entre os jovens se repõem a cada instante: os

que formam grupos que se impõem pela força e aqueles que não se identificam com

esta prática, isolados, divergem. A oficina acolhe todas as diferenças.

O enredo do filme realizado na Oficina de vídeo apresenta três amigos de

infância que crescem juntos, enfrentando os distintos caminhos que se abrem para os

jovens.

A gravação da cena do assalto

Luciano sugere que encenássemos na rua a cena do assalto. Eu seria a assaltada, ele e

Téo, os assaltantes. A cena é simples, os meninos vêm pela rua correndo, na direção

da moça que caminha com a bolsa no ombro. Os meninos sacam a bolsa do ombro da

passante.

A avó do menino persegue Luciano até a rua, toma dele relógio, boné e o

vigia. Ele dirige a performance na cena do assalto. Ela comenta que essa cena não é

boa. João Marcelo comenta que este não pode ser o começo do filme. A câmera passa

de mão em mão para verem o que foi gravado. No dia seguinte cedo, apagam as

sequências do assalto e gravam as sequências do jogo de futebol.

Na porta do morro o grupo de jovens assedia os passantes, estudantes,

moradores do bairro... A avó do menino, furiosa, avança em Luciano e o corrige

imediatamente: “Você não pode provocar as pessoas assim. Quando chegar em casa,

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você sabe que o coro vai comer”. A Comunidade sabe o que pode a imagem e,

exaustos de serem discriminados, velam a cena em que suas crianças repetem a

imagem do “infrator”, enquanto representação social instituída. Podemos afirmar a

existência de um controle social da imagem que se aprofunda. A cena do assalto foi

velada; encontramos novamente o irrepresentável.

! ! Fotos: Ícaro Torres

A cena

O jovem João Marcelo, de onze anos, sugere uma cena como história para um filme.

Um mês depois, encenamos a história:

O Jovem trabalha no MacDonald’s, sob o olhar de seu gerente.

Compadecendo-se de um morador de rua, atende o seu pedido, dando a ele um

sanduíche. O gerente vê e o repreende: Não sei se te demito agora ou se faço você

pagar. [Pensa]. Você está demitido. Um tempo depois, o jovem trabalhador está ao

lado do morador de rua, pedindo ajuda assim como ele.

Pergunto ao grupo, que se constituiu como plateia, se algum deles gostaria de

estar no lugar de algum personagem para tentar dar um outro final a esta história.

Tentamos quatro vezes, mas o fim da história sempre se repete. Roberto (morador da

Rua Projetada) fala para o jovem demitido: “É o meu sustento, não estou aqui fazendo

caridade”. Para ele este é um argumento irrecusável. Surge uma proposta para a cena

seguinte. O gerente, passeando com seu filho é assaltado e fica sem nada, pede

dinheiro àquele que demitira e obtém um não. Cápsulas de moral. A questão das

condições de reprodução da vida colocada às classes trabalhadoras põe a necessidade

de comprometer-se com o bem-estar do outro. A história que se repete tira os meninos

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do jogo. Eles se sabem em um mundo social injusto, e não vacilam ante a

possibilidade de fazer justiça com as próprias mãos.

A encenação, neste caso, opera no sentido de constituir em imagem o tema-

problema do grupo. Como disse Didi-Huberman, o simbólico e o sintomático que

vivem às margens da imagem emergem onde nem se espera. As imagens são

produzidas valendo-se de diversos dispositivos. Os hiperlinks carregam a densidade

da imagem lá onde ela é caminho para encontrarmos novos olhares desde onde mirar

a cidade.

In-conclusões necessárias

O desafio de cartografar a cidade tal como experimentada desde a sua margem nos

levou a adotar o hipertexto como linguagem. Esta solução baseou-se no modo como a

etnografia de variados espaços de vida e moradia pelos quais nos conduziam nossos

interlocutores seus moradores, foi produzindo uma multiplicidade de abordagens

diferenciadas que demandavam suportes, meios e recursos variados.

Da escuta atenta das histórias de vida dos senhores trabalhadores aposentados

que oferecem à handycam suas narrativas, à fisicalidade da performance dos jovens

na atividade da “viração”, todos moradores de rua, à produção de almoços em que se

observa uma socialidade da rua que se constitui em torno do compartilhar comida,

cachaça e pedra, inúmeros foram os recursos adotados. Tantos quantos os pontos de

vista que, ao diferirem uns dos outros, nos apresentam suas múltiplas posições. Este é

o primeiro achado do trabalho: na margem só há diferir.

Em torno do problema da (in)visibilidade das classes trabalhadoras

precarizadas e da concomitante afirmação por parte de um discurso hegemônico de

sua abjeção, temos a reprodução do lugar da margem para as enormes minorias que

vivem a cidade à pé. Na rua velaram as minhas imagens, mostrar o invisível foi

impossível. Um tapa na lente está gravado. Ocultar a centralidade do negócio do

tráfico de drogas consideradas ilícitas para a reprodução da ordem atual é o dado

estruturado em nossa sociedade.

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Subindo o morro, conhecer a casa própria lograda ao longo de décadas de

autoconstrução e, mais uma vez, a “viração” como atividade nômade, ambulante.

Aqui o vídeo é o meio e o depoimento, o registro da fala. A fotografia também é

muito bem-vinda, quase dádiva que funda relações. Os morros se conectam uns aos

outros, são caminhos pedestres que só se conhece se seguimos a trilha dos que

palmilham a cidade.

Depois, a ocupação de mulheres que ofereciam à pesquisa o seu coletivo

constituído ao logo de trajetórias de violência institucional: formar meninas para o

trabalho doméstico, todas mães. Ouvir os seus depoimentos, pintar fachadas e

interiores, atualizar memórias que constituem a despeito de todas as diferenças, um

outro ponto de vista, este o mais frágil, por se afirmar político em terra de controle

armado. Outro universo ainda seria o do coabitar a ocupação em que há proprietário,

imposto e favor obrigatório. Distinta de todas essas posições é a performance juvenil

que encena a potência do constituir-se como bando para enfrentar o olhar hegemônico

que os faz minoritários.

Retomar tais posições e reuni-las como série em uma plataforma de

experiências da cidade invisível assim como vivida pelas grandes minorias, foi o

desafio que enfrentamos.

Alguns problemas se colocam para tal cartografia: a questão da escala. Da

invisibilidade panorâmica que vê a casa e a rua, buscamos a profundidade de campo

que localiza detalhes fora de foco: corredores, vielas, passagens, escadas, caminhos

que conduzem a espaços menores. Quartos-casa de abrigam grupos, além do grupo, a

pessoa, seus modos, suas construções. A abordagem monadológica, aquela que nota

que é sempre possível ver mais de perto, é a que a solução hipermidiática vai

configurando. No rosto, o caminho traçado pelas rugas atualiza a história.

Outro problema colocado pela proposição cartográfica seria a questão da

projeção – adotar um eixo, um centro – aqui seria inviável, posto que cada

experiência difere fortemente das outras, a despeito de qualquer pretensão identitária.

Na margem não há centro, mas cada espaço tem a sua ordem quando se o habita desde

dentro.

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A relação tempo e espaço se reconfigura não linearmente, mas redefinindo o

espaço segundo a sua apropriação, num tempo cíclico do amanhecer, entardecer,

anoitecer e vem a madrugada e assim sucessivamente. O mapa põe também o

problema da simbolização, mas aqui estamos num espaço antes de o código ter seu

sentido fechado; ao contrário, o sentido de faz na sua relação com o ponto que é ponto

de vista.

Cartografias da margem como hipermídia compõem séries de diferentes

caminhos para conhecer a cidade invisível. Como Glowzcewski (2007) sublinha, os

hiperlinks estão nas narrativas aborígenes que a autora produz em seu Yapa. Aqui a

cidade, ela própria se reconfigura como hipertexto que contém retratos e paisagens,

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