Imersão visual e corporal: paradigmas da percepção em...

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Imersão visual e corporal: paradigmas da percepção em simuladores Eduardo Zilles Borba, Ph.D. (Universidade Fernando Pessoa - UFP) 1. Sensação, percepção e consciência Se outrora a ideia de habitarmos um espaço tecnológico não passava de enredo para contos da ficção científica, a relação atual que temos com os conteúdos digitais sugere uma nova abordagem. Embora os computadores estejam distantes de proporcionar o conceito fantástico de tele-transporte do átomo, da carne e do osso para mundos virtuais, a partir de um ponto de vista semiótico parece ser cada vez mais evidente a existência de um conflito interpretativo no modo que compreendemos o próprio corpo, o espaço e, até mesmo, a realidade que é projetada nos monitores. Hoje, nos sentimos híbridos, meio que dentro e meio que fora do cenário sintético ao mesmo tempo. E, em grande parte, a explicação para este fenômeno – de ideia de presença noutra realidade – estaria nos mecanismos de imersão visual, sonora e motora aplicados na realidade virtual, no sentido de serem responsáveis por construir narrativas que estimulam-nos a ilusão de deslocamento para universos paralelos, estabelecendo, por consequência, uma espécie de estatuto híbrido para a percepção que temos destas “tecno-experiências” (ZUFFO et al., 2001; ACCIOLY, 2006). Antes de avançarmos com o debate sobre a percepção em simuladores, falemos um pouco sobre o termo percepção no contexto da comunicação. A psicologia lhe introduz como um processo cognitivo que nos permite reconhecer o mundo e compreender a realidade em que vivemos (DAVIDOFF, 2001). Porém, é importante ter em conta que a imagem que criamos desta realidade não surge, necessariamente, como uma reprodução exata do mundo físico e, muito menos, como uma cópia da imagem que as outras pessoas têm desta mesma realidade. Ou seja, a percepção é um produto subjetivo, concebido a partir das relações que temos com as pessoas e os ambientes que nos circundam. Nas palavras de Ballone (2005): “No ato perceptivo se distinguem duas componentes fundamentais: a captação sensorial e a integração significativa, a qual nos permite o conhecimento

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Imersão visual e corporal: paradigmas da percepção em simuladores Eduardo Zilles Borba, Ph.D. (Universidade Fernando Pessoa - UFP)

1. Sensação, percepção e consciência

Se outrora a ideia de habitarmos um espaço tecnológico não passava de enredo para

contos da ficção científica, a relação atual que temos com os conteúdos digitais sugere

uma nova abordagem. Embora os computadores estejam distantes de proporcionar o

conceito fantástico de tele-transporte do átomo, da carne e do osso para mundos

virtuais, a partir de um ponto de vista semiótico parece ser cada vez mais evidente a

existência de um conflito interpretativo no modo que compreendemos o próprio corpo,

o espaço e, até mesmo, a realidade que é projetada nos monitores. Hoje, nos sentimos

híbridos, meio que dentro e meio que fora do cenário sintético ao mesmo tempo. E, em

grande parte, a explicação para este fenômeno – de ideia de presença noutra realidade –

estaria nos mecanismos de imersão visual, sonora e motora aplicados na realidade

virtual, no sentido de serem responsáveis por construir narrativas que estimulam-nos a

ilusão de deslocamento para universos paralelos, estabelecendo, por consequência, uma

espécie de estatuto híbrido para a percepção que temos destas “tecno-experiências”

(ZUFFO et al., 2001; ACCIOLY, 2006).

Antes de avançarmos com o debate sobre a percepção em simuladores, falemos um

pouco sobre o termo percepção no contexto da comunicação. A psicologia lhe introduz

como um processo cognitivo que nos permite reconhecer o mundo e compreender a

realidade em que vivemos (DAVIDOFF, 2001). Porém, é importante ter em conta que a

imagem que criamos desta realidade não surge, necessariamente, como uma reprodução

exata do mundo físico e, muito menos, como uma cópia da imagem que as outras

pessoas têm desta mesma realidade. Ou seja, a percepção é um produto subjetivo,

concebido a partir das relações que temos com as pessoas e os ambientes que nos

circundam. Nas palavras de Ballone (2005):

“No ato perceptivo se distinguem duas componentes fundamentais: a captação sensorial e a integração significativa, a qual nos permite o conhecimento

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consciente do objeto captado. Portanto, as percepções serão subjetivas por existirem em nossa consciência, e objetivas pelo conteúdo que estimula a sensação... embora as sensações não nos ofereçam, em si mesmas, o conhecimento do mundo, elas representam os elementos necessários ao conhecimento sem os quais não existiriam percepções”, (2005, p.3-5).

A citação anterior indica que o físico (captação sensorial) e o psíquico (integração

significativa), apesar de complementarem-se na organização do processo perceptivo,

são aspectos diferentes da mesma realidade. Unidos eles formam a teoria operatória,

justificando que “todo comportamento humano resulta da interação entre o organismo e

o meio ambiente, atendendo a uma função agregada de fatores hereditários e de fatores

apreendidos”, (DAVIDOFF, 2001, p.20). Isto significa que, para chegar a um desfecho

emocional acerca do que percebemos, estamos condicionados à capacidade de detectar

fluídos físicos (sensação). Noutras palavras, o entendimento da realidade somente tem

início quando algum estímulo é devidamente recebido pelos nossos órgãos sensoriais:

tato, audição, visão, olfato, paladar.

Aprofundemos a captação sensorial no processo perceptivo. Antes de mais, é preciso ter

em conta que um estímulo é qualquer forma de energia que podemos responder (ondas

sonoras, pressão sobre a pele), enquanto um sentido é a via fisiológica pela qual

respondemos a esta energia. No campo da neurociência, Ballone (2005) lembra que, a

Lei de Weber-Fechner provou que a captação de um estímulo está sempre orientada em

quatro pilares: modalidade, intensidade, duração e localização (Figura 1). Esta captação

é realizada com maior ou menor ênfase, devido ao nosso real interesse afetivo ou,

simplesmente, porque o estímulo se sobressai aos demais. Por exemplo, a intensidade

de um ruído sonoro pode ser superior aos outros e, desta forma, favorecer a sua

captação através do nosso sistema auditivo; mas, também, um ruído menos intenso pode

ser captado devido ao interesse que depositamos nele. Para Chaplin (1981) este

fenômeno, responsável pela nossa seletividade durante as relações com o mundo, é

conhecido como a atenção. Kendler (1985), por sua vez, explica que ela surge como a

ênfase que damos a um estímulo em relação aos demais, independente do motivo

(intensidade, duração, etc.), sendo um ponto de partida para sentir algo e, em seguida,

perceber este algo.

Compreendida a importância do estímulo e da sensação no reconhecimento da realidade

em que estamos inseridos, falemos da segunda etapa no ato perceptivo: a integração

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significativa. Krantz (2009) recorda que, mesmo sendo a realidade envolvente absorvida

pelo corpo (sinto, logo existo), ela não penetra diretamente em nossa consciência, pois

os estímulos recebidos pelos órgãos sensitivos ainda vão ser processados e interpretados

pelo cérebro (penso, logo existo) – do impulso sensorial à resolução emocional. Neste

contexto, fica delimitado que a sensação envolve o ato de receber um estímulo externo,

enquanto a percepção ocorre a um nível interno, em nosso sistema nervoso, sendo o

processo de interpretação das coisas sentidas. Na percepção, “acrescentamos aos

estímulos elementos da memória, do raciocínio, do juízo e do afeto, portanto,

acoplamos às qualidades objetivas dos sentidos outros elementos subjetivos e próprios

de cada indivíduo”, (BALLONE, 2005, p.3).

Figura 1: o sistema sensorial absorve quatro atributos básicos de um estímulo

Fonte: adaptado de Ballone (2005)

Ora, se a imagem que criamos da realidade é formatada a partir da soma da captação

sensorial (objetividade) e do conhecimento prévio que temos do mundo (subjetividade),

no campo da simulação digital, devido a facilidade com que se manipulam os estímulos

enviados pela máquina, torna-se possível configurar uma experiência com elevado grau

de atenção. Mesmo que de modo artificial, a modalidade, a intensidade, a duração ou a

localização de um impulso sensorial podem ser controladas pelo sistema informático

(previamente programado pelo humano), sendo variáveis aplicadas no palco interativo

conforme a necessidade de cada situação. Por exemplo, o fotorrealismo, a iluminação

do cenário, a modelagem tridimensional ou o contraste de cores entre os objetos que

visualizamos numa tela são agentes responsáveis por aumentarem (ou não) nosso grau

de imersão na simulação e, com isso, acentuarem (ou não) o conflito perceptivo no

reconhecimento do que é verdadeiro ou falso quando habitamos o espaço digital

Modalidade Intensidade

Duração Localização

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(BAUDRILLARD, 1994). Neste sentido, mesmo que seja copiada a estética dos objetos

físicos, a simulação tecnológica sempre contém “alguma dose de engano; e ainda que

este engano se restrinja aos sentidos, como no caso de um simulador de voo, é

inevitavelmente problemático tentar demarcar uma fronteira entre a razão e os

sentidos”, (ACCIOLY, 2006, p.5).

Buscando referências no universo dos games e do cinema, Zagalo (2010) destaca que o

ato de manipular estímulos pode ocorrer tanto em espaços concretos como em

ciberespaços. Segundo ele, toda manobra que procura anular a noção da tela como

mediadora dos conteúdos deve ser chamada de mecanismo de transparência, pois

incentiva nosso mergulho na realidade da imagem. O cinema, por exemplo, é um espaço

físico que estimula a envolvência com a imagem projetada. Nossa atenção visual está

focada na grande tela, enquanto a auditiva concentra-se nas sonoridades ao redor da sala

(audiovisual). O uso do óculos 3D seria, assim, um dos expoentes máximos dos

mecanismos de transparência aplicados nas sessões cinematográficas, afinal criam

ilusões óticas que nos aproximam do mundo das imagens (ou vice-versa). Por sua vez,

as simulações em videojogos unem ao realismo gráfico algumas funcionalidades

motoras, permitindo a nossa participação no contexto virtual e, consequentemente,

aflorando uma relação de envolvimento, navegação, diálogo e, obviamente, imersão.

2. Simulação virtual: quase-objeto, quase-lugar, quase-corpo

Se outrora a ideia de simulação estava enraizada na dicotomia do verdadeiro e falso, no

sentido de que sempre a consideramos cópia ou farsa evidente (de algo original, físico,

concreto); Accioly (2006) alerta que, hoje, ela adquire um patamar híbrido nesta escala

dicotômica. Isto porque, a verossimilhança da imagem gerada por máquinas binárias

produz um conflito ao nível da nossa interpretação, alterando o “estatuto da experiência

e da realidade”, (2006, p.1).

De fato, os modelos digitais abrem caminhos para novas formas de visualizar, interagir

e manipular conteúdos, permitindo aos desenvolvedores a elaboração de um complexo

sistema de navegação em hipermídia (metáfora do real) ou a representação de objetos,

espaços e atividades que espelham a lógica estética e funcional do mundo físico

(analogia do real) (LEITE, 2005). Neste segundo caso, através de narrativas

tridimensionais, somos estimulados a visualizar a realidade virtual com base nas

características óticas da realidade física – formas, escalas, proporções, perspectivas,

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texturas, iluminações, cores (Figura 2). Tal manobra incentiva a envolvência com o

palco interativo e, consequentemente, reforça o conflito perceptivo de estarmos

inseridos num ponto de entroncamento entre o verdadeiro (real) e o falso (virtual)

(MILGRAM & KISHINO, 1994; KERCKHOVE 1995).

Figura 2: reprodução de objetos, espaços e atividades físicas no cenário virtual

Fonte: www.digitaltrends.com

Com base num estudo realizado com cartazes publicitários inseridos em ciber-

urbanidades – espaços virtuais que imitam aspectos estético-espaciais e semântico-

funcionais dos espaços urbanos1 – Zilles Borba et al. (2012) identificaram que, quanto

mais próximo seja o efeito de transposição do real para o virtual produzido ao nível das

interfaces gráficas, mais atenção damos as mensagens das marcas no espaço simulador.

Mas, esta premissa pode ser aplicada em demais objetos e/ou atividades, afinal, um dos

fatores que colabora para a formatação da noção híbrida da realidade é a sofisticação

mimética da imagem binária, no sentido da experiência de observação se aproximar do

modo que olhamos e reconhecemos os objetos no mundo real. Assim, também é natural

que a passagem de demais sentidos do corpo para o virtual – além do olhar – nos levaria

a configurar uma ideia ainda mais profunda de exploração a quase-objetos, em quase-

lugares, com o nosso quase-corpo (PICON, 2004).

Dentro do campo das simulações digitais, não devemos esquecer que o monitor surge

como principal (e popular) mediador de imagens. Funciona como janela, através da qual

visualizamos os conteúdos e, munidos de dispositivos de comandos, como o teclado, o

mouse ou o joystick, navegamos entre eles. Porém, Coelho (2010) enfatiza que, a

mesma janela atua como moldura, gerando tensão semiótica entre o feeling de estar

dentro e fora do monitor ao mesmo tempo. Ou seja, a realidade virtual mediada pelo

monitor doméstico não proporciona uma experiência imersiva na totalidade, pois suas

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competências tecnológicas estão limitadas à reprodução de sensações audiovisuais (ver

e ouvir). Por exemplo, o corpo virtual de um personagem pegando fogo não gera dores

em nosso corpo orgânico, pois não existem outputs da máquina para tal; mas, através da

narrativa visual, somos capazes de interpretar os impactos que nosso corpo sintético

sofre dentro da simulação (a percepção visual através dos olhos do avatar) (ZILLES

BORBA, 2011).

Em contraponto aos monitores de computadores, tablets ou celulares, na cauda da

vanguarda das projeções gráficas surgem sistemas avançados de realidade virtual em

salas ou espaços físicos de grande proporção. As cavernas digitais (CAVE – Cavern

Automatic Virtual Environment) são exemplos de sistemas de projeção, em que a

“qualidade de imersão é melhor que em qualquer outra forma de sistema de realidade

virtual” (ZUFFO et al., 2001). Trata-se de um sistema de multiprojeção estereoscópico

“montado na forma de um cubo, onde imagens de alta resolução são projetadas em cada

uma das faces do mesmo, permitindo que usuários sejam totalmente inseridos (imersos)

em uma simulação gerada por computador”, (ZUFFO et al., 2006). Para suportar a

estereoscopia são incorporados recursos de óculos 3D (imersão ocular) e para

transportar os movimentos do corpo físico ao cenário tridimensional são aplicados

dispositivos de rastreamento na estrutura do cubo (imersão corporal). Em CAVE, a

mente e o corpo são estimulados ao mergulho virtual, especialmente por impulsos

audiovisuais e motores, configurando uma elevada noção de imersão na experiência e

anulando a noção do espaço físico envolvente (Figura 3).

Figura 3: corpo do sujeito inserido no sistema em CAVE

Fonte: www.worldviz.com

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3. Realidade virtual de 1ª geração: imersão do olhar

O surgimento da realidade virtual remonta o antigo esforço da arte renascentista em

continuar o espaço físico no pictórico, transportando-nos para dentro do mundo da

imagem. Porém, os cientistas da realidade virtual propunham algo a mais: “a

possibilidade de navegação por estas imagens, como se fosse possível adentrar, de fato,

noutra realidade que existisse para além da realidade física ao redor do sujeito”

(FERREIRA, 2010, p.159).

Os primeiros experimentos com a realidade virtual estiveram diretamente ligados às

forças bélicas, especialmente aos militares norte-americanos. No decorrer do século

XX, precisamente na década de 60, a capacidade gráfica para a representação de

espaços físicos transformou-a num instrumento simulador de campos de guerra,

permitindo a execução de uma série de testes táticos antes da sua aplicação no terreno.

Nesta fase inicial de desenvolvimento, a aproximação com a imagética do mundo real

foi notável. “A realidade virtual buscaria oferecer um efeito real às imagens por ela

construídas, e uma sensação de presença em seus ambientes”, (FERREIRA, 2010,

p.159).

De fato, a problemática visual impulsionou o desenvolvimento desta 1ª geração de

realidade virtual. Segundo Grau (2003), grande parte destas experiências preocuparam-

se em bloquear a noção visual de existência de um espaço físico circundante, deixando

o som e o tato para segundo plano. “Deve-se olhar para um display como janela pela

qual se contempla o mundo virtual. O desafio para a computação gráfica é fazer com

que as imagens vistas pela janela pareçam reais, soem reais e que seus objetos ajam de

maneira real”, (2003, p.162). Ou seja, nosso corpo foi pouco requisitado para interagir

com o ambiente, caracterizando, assim, as simulações tecnológicas pela capacidade em

estimular a percepção visual através de recursos gráficos.

“O que se vê é um usuário praticamente estático face às imagens virtuais exibidas em seu monitor ou TV. Assim, como o espectador do cinema, quanto maior o seu estatismo, mais concentrado e imerso ele estará naquele ambiente, evitando ser trazido de volta à realidade por alguma interferência externa (BROWN & CAIRNS, 2004 cit. in FERREIRA, 2010, p.162).

Durante este período, Sutherland (1963) já alertava para o excesso em pesquisa sobre a

visualização de imagens e para a ausência de pesquisa sobre a interatividade com elas:

“o computador pode facilmente sentir as posições de quase todos músculos do corpo.

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Até agora, apenas os músculos da mão e do braço foram utilizados para controlar o

computador. Não há razão para que estes sejam os únicos”, (1963, p.507). Para ele, os

dispositivos de movimento utilizados na realidade virtual de 1ª geração investiam pouco

na união do físico com o virtual, pois vesti-los (luva, óculos, etc.) já era assumir a

entrada numa realidade separada do espaço natural que habitamos.

Em suma, a realidade virtual de 1ª geração, aquela suportada pelo paradigma

ocularcêntrico, proporcionou o mergulho visual na simulação. Entretanto, além de viajar

no mundo digital através de ilusões óticas, a percepção de experiência também nos

orientou para uma imersão psicológica, resultando em nossa (des)corporificação quando

habitamos o virtual (FERREIRA, 2010). Isto porque, mesmo sendo capazes de

compreender o personagem representativo do nosso corpo, não existe uma relação de

controle natural de seus movimentos. Nos jogos eletrônicos, por exemplo, os

dispositivos de controlo foram concebidos para auxiliar a coordenação deste corpo,

através dos dedos que primam botões (com exceção do Nintendo Wii2, PlayStation

Move3 ou Xbox Kinect4). Porém, a noção de envolvimento com o enredo digital é

despertada através da atenção que dedicamos à captação e interpretação da imagem

projetada no monitor (Figura 4).

Figura 4: dispositivo para controlar as ações no monitor

Fonte: www.prokatpristavok.by

4. Realidade virtual de 2ª geração: imersão do corpo

Se a realidade virtual de 1ª geração teve seu foco na produção de imagens que copiam a

realidade física, num segundo momento ela passou a se concentrar na relação do corpo

com o espaço digital. Hansen (2006) sugere que, esta é a principal característica da

realidade virtual de 2ª geração, pois ações motoras passaram a complementar a

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experiência audiovisual, transportando o paradigma da imersão do olhar, para a imersão

do corpo.

Tecnicamente, a integração dos movimentos do corpo orgânico num palco sintético

tornou-se possível devido ao emprego de sensores digitais endereçados não somente aos

olhos e ouvidos, mas, também, ao tato. Desse modo, foi criada uma sintonia motora (de

controle) entre nossos membros e os membros do avatar que nos representa na cena

virtual (Figura 5). Além da unificação dos movimentos entre corpos, a realidade virtual

passou a contemplar outros importantes sentidos perceptivos, como a propriocepção ou

a cinestesia. Ambos se referem a nossa capacidade em perceber o próprio corpo,

incluindo sua posição no espaço, coordenação dos membros, velocidade de movimento,

força ou equilíbrio aplicado pelos músculos. O lançamento do Nintendo Wii, por

exemplo, trouxe esta nova abordagem para o entretenimento eletrônico, através do

desenvolvimento de jogos que possuem “um modo diferente de interagir com os

conteúdos, que apela à participação de todo o corpo” (FERREIRA, 2010, p.158).

Figura 5: gestos do corpo orgânico integrados com o corpo sintético Fonte: www.newbreview.com

Ao transportar demais sensações para a experiência simuladora, a realidade virtual de 2ª

geração também colaborou com o aumento no grau de transparência da máquina na

mediação dos conteúdos. Ao agregar estímulos motores na interação com o sistema

informático, foi criada uma ideia paradoxal de fusão entre os corpos orgânico e

sintético, auxiliando a anular a noção do monitor ser uma moldura que separa o real do

virtual. “Como se ambos habitassem o mesmo loco” (FERREIRA, 2010, p.158),

abrindo portas para uma percepção híbrida da realidade, num fenômeno de “extensão do

espaço virtual no espaço físico e, ainda, um sujeito corporificado em sua interação com

o espaço tecnológico”, (FERREIRA, 2010, p.159).

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Para Hansen (2006), o foco na atividade motora, em contraponto à verossimilhança

representativa, veio tornar ainda mais conflituoso o entendimento que temos das

simulações. Passamos a sentir com maior ênfase a presença do corpo num espaço

híbrido, no sentido de atuarmos numa zona mista, que evidencia a existência de um

ponto de intersecção entre o binário e o atômico. Dentro de um sistema de realidade

virtual em CAVE, por exemplo, a noção de propriocepção parece ser ainda mais

estimulada, pois todas ações assemelham-se às relações do nosso habitat natural

(caminhar, correr, pular, deitar, etc.). Isto significa que, em sistemas realidade virtual de

vanguarda, devido ao elevado grau de imersão dos sentidos do corpo humano, a noção

de penetrarmos no cibernético é aumentada, alavancando a ilusão de sermos híbridos.

Conforme ilustrado na Figura 6, no cenário sintético torna-se possível caminhar com as

próprias pernas, tocar e pegar objetos virtuais com as próprias mãos.

Figura 6: cavernas digitais combinam o paradigma da imersão visual, sonora e corporal

Fonte: www.eonreality.com

Friedberg (2006 cit. in FERREIRA, 2010) defende que, no paradigma da imersão

corporal, deixamos de lado a necessidade de aprender a dialogar com a máquina (modus

operandi), pois ela passa a funcionar através das regras do mundo físico (gravidade,

navegação, etc.). “Ao interagir, ele (o utilizador)5 deve apenas agir naturalmente,

movimentando o seu corpo de forma intuitiva... é a máquina quem deverá entender os

movimentos do usuário e traduzi-los em ações coerentes dentro do sistema”,

(FERREIRA, 2010, 164). Num raciocínio interessante, o mesmo autor reflete que a

padronização do uso de interfaces por intermédio da metáfora (botões, links, ícones),

durante a chegada das tecnologias digitais em nossa sociedade (websites, portais),

acabou por nos conduzir para um mecanismo de aprisionamento do corpo; contudo,

curiosamente, a evolução da realidade virtual indica para um caminho oposto, de

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retorno ao analógico, ou melhor, de representação do analógico no digital: gestos ao

invés de cliques, membros do corpo ao invés de dispositivos de comando.

5. Considerações finais sobre a percepção em simuladores virtuais

Independente do modelo de realidade virtual, a formatação de uma ideia de presença no

espaço híbrido, em que habitamos um ponto de entroncamento entre o real e o virtual,

está condicionada à percepção que temos da experiência. Neste sentido, obviamente,

quanto mais sensações do corpo humano forem mediadas pela máquina informática,

maior será o conflito interpretativo da realidade que nos é projetada (do falso ≠

verdadeiro, para o falso ≈ verdadeiro).

De fato, uma imersão multisensorial, que transporta todo o corpo para o contexto

virtual, e não somente a visão e a audição, tende a gerar uma série de alterações no

modo que entendemos a realidade dentro da simulação, principalmente, porque ela

anula o conceito da superfície plana das telas para oportunizar a exploração de cenários

tridimensionais. Agora, por ser tratarem de relações individuais que temos com os

sistemas informáticos, também é preciso ter em conta que a noção de imersão varia de

pessoa para pessoa. Isto porque, apesar dos impulsos sensoriais emitidos pelo

computador serem os mesmos para todos nós, a integração significativa que temos deles

é puramente subjetiva. Ou seja, a resolução emocional está condicionada, também, ao

afeto, juízo ou atenção que damos aos estímulos presenciados na simulação.

Conforme visto no decorrer desta reflexão, os passos no desenvolvimento da realidade

virtual indicam para uma tendência de reconstrução do físico no digital. Isto vem a

proporcionar uma relação muito mais intuitiva com as simulações, uma vez que

passamos a agir naturalmente no espaço artificial. Significa, também, que a construção

de modelos em realidade virtual está intrinsecamente ligada à compreensão das versões

originais a serrem representadas, no sentido de ser necessário coletar dados que

permitam a elaboração de narrativas que conduzem para uma experiência similar com

os objetos, os personagens e os espaços.

Por fim, não podemos deixar de ter em mente que os limites técnicos e tecnológicos na

reprodução dos cinco sentidos através dos computadores ainda são grandes. O olfato,

por exemplo, não surge como um aspecto corriqueiro nestes cenários (apesar de já

existirem experimentos para tal). Numa perspectiva tecnoliberal6, é considerável que no

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futuro a realidade virtual imersiva torne-se algo rotineiro, seja para o entretenimento,

para os relacionamentos ou para os negócios. E, com esta evolução tecnológica, tornar-

se cada vez mais imersiva, no sentido de nos transportar para um ponto “quase”, no qual

já não sabermos o que é real ou virtual, o que é verdadeiro ou falso.

1 Metaversos, videojogos, cibercidades, etc. 2 https://www.nintendo.com/wii 3 http://br.playstation.com/ps3/playstation-move 4 http://www.xbox.com/pt-br/kinect/home-new?xr=shellnav 5 Parênteses do autor. 6 Dentro do pensamento sobre os impactos da tecnologia digital em nossas vidas predominam duas correntes: tecnoliberais (http://technoliberal.org) e tecnorealistas (http://www.technorealism.org).

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