Imersão visual e corporal: paradigmas da percepção em...
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Imersão visual e corporal: paradigmas da percepção em simuladores Eduardo Zilles Borba, Ph.D. (Universidade Fernando Pessoa - UFP)
1. Sensação, percepção e consciência
Se outrora a ideia de habitarmos um espaço tecnológico não passava de enredo para
contos da ficção científica, a relação atual que temos com os conteúdos digitais sugere
uma nova abordagem. Embora os computadores estejam distantes de proporcionar o
conceito fantástico de tele-transporte do átomo, da carne e do osso para mundos
virtuais, a partir de um ponto de vista semiótico parece ser cada vez mais evidente a
existência de um conflito interpretativo no modo que compreendemos o próprio corpo,
o espaço e, até mesmo, a realidade que é projetada nos monitores. Hoje, nos sentimos
híbridos, meio que dentro e meio que fora do cenário sintético ao mesmo tempo. E, em
grande parte, a explicação para este fenômeno – de ideia de presença noutra realidade –
estaria nos mecanismos de imersão visual, sonora e motora aplicados na realidade
virtual, no sentido de serem responsáveis por construir narrativas que estimulam-nos a
ilusão de deslocamento para universos paralelos, estabelecendo, por consequência, uma
espécie de estatuto híbrido para a percepção que temos destas “tecno-experiências”
(ZUFFO et al., 2001; ACCIOLY, 2006).
Antes de avançarmos com o debate sobre a percepção em simuladores, falemos um
pouco sobre o termo percepção no contexto da comunicação. A psicologia lhe introduz
como um processo cognitivo que nos permite reconhecer o mundo e compreender a
realidade em que vivemos (DAVIDOFF, 2001). Porém, é importante ter em conta que a
imagem que criamos desta realidade não surge, necessariamente, como uma reprodução
exata do mundo físico e, muito menos, como uma cópia da imagem que as outras
pessoas têm desta mesma realidade. Ou seja, a percepção é um produto subjetivo,
concebido a partir das relações que temos com as pessoas e os ambientes que nos
circundam. Nas palavras de Ballone (2005):
“No ato perceptivo se distinguem duas componentes fundamentais: a captação sensorial e a integração significativa, a qual nos permite o conhecimento
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consciente do objeto captado. Portanto, as percepções serão subjetivas por existirem em nossa consciência, e objetivas pelo conteúdo que estimula a sensação... embora as sensações não nos ofereçam, em si mesmas, o conhecimento do mundo, elas representam os elementos necessários ao conhecimento sem os quais não existiriam percepções”, (2005, p.3-5).
A citação anterior indica que o físico (captação sensorial) e o psíquico (integração
significativa), apesar de complementarem-se na organização do processo perceptivo,
são aspectos diferentes da mesma realidade. Unidos eles formam a teoria operatória,
justificando que “todo comportamento humano resulta da interação entre o organismo e
o meio ambiente, atendendo a uma função agregada de fatores hereditários e de fatores
apreendidos”, (DAVIDOFF, 2001, p.20). Isto significa que, para chegar a um desfecho
emocional acerca do que percebemos, estamos condicionados à capacidade de detectar
fluídos físicos (sensação). Noutras palavras, o entendimento da realidade somente tem
início quando algum estímulo é devidamente recebido pelos nossos órgãos sensoriais:
tato, audição, visão, olfato, paladar.
Aprofundemos a captação sensorial no processo perceptivo. Antes de mais, é preciso ter
em conta que um estímulo é qualquer forma de energia que podemos responder (ondas
sonoras, pressão sobre a pele), enquanto um sentido é a via fisiológica pela qual
respondemos a esta energia. No campo da neurociência, Ballone (2005) lembra que, a
Lei de Weber-Fechner provou que a captação de um estímulo está sempre orientada em
quatro pilares: modalidade, intensidade, duração e localização (Figura 1). Esta captação
é realizada com maior ou menor ênfase, devido ao nosso real interesse afetivo ou,
simplesmente, porque o estímulo se sobressai aos demais. Por exemplo, a intensidade
de um ruído sonoro pode ser superior aos outros e, desta forma, favorecer a sua
captação através do nosso sistema auditivo; mas, também, um ruído menos intenso pode
ser captado devido ao interesse que depositamos nele. Para Chaplin (1981) este
fenômeno, responsável pela nossa seletividade durante as relações com o mundo, é
conhecido como a atenção. Kendler (1985), por sua vez, explica que ela surge como a
ênfase que damos a um estímulo em relação aos demais, independente do motivo
(intensidade, duração, etc.), sendo um ponto de partida para sentir algo e, em seguida,
perceber este algo.
Compreendida a importância do estímulo e da sensação no reconhecimento da realidade
em que estamos inseridos, falemos da segunda etapa no ato perceptivo: a integração
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significativa. Krantz (2009) recorda que, mesmo sendo a realidade envolvente absorvida
pelo corpo (sinto, logo existo), ela não penetra diretamente em nossa consciência, pois
os estímulos recebidos pelos órgãos sensitivos ainda vão ser processados e interpretados
pelo cérebro (penso, logo existo) – do impulso sensorial à resolução emocional. Neste
contexto, fica delimitado que a sensação envolve o ato de receber um estímulo externo,
enquanto a percepção ocorre a um nível interno, em nosso sistema nervoso, sendo o
processo de interpretação das coisas sentidas. Na percepção, “acrescentamos aos
estímulos elementos da memória, do raciocínio, do juízo e do afeto, portanto,
acoplamos às qualidades objetivas dos sentidos outros elementos subjetivos e próprios
de cada indivíduo”, (BALLONE, 2005, p.3).
Figura 1: o sistema sensorial absorve quatro atributos básicos de um estímulo
Fonte: adaptado de Ballone (2005)
Ora, se a imagem que criamos da realidade é formatada a partir da soma da captação
sensorial (objetividade) e do conhecimento prévio que temos do mundo (subjetividade),
no campo da simulação digital, devido a facilidade com que se manipulam os estímulos
enviados pela máquina, torna-se possível configurar uma experiência com elevado grau
de atenção. Mesmo que de modo artificial, a modalidade, a intensidade, a duração ou a
localização de um impulso sensorial podem ser controladas pelo sistema informático
(previamente programado pelo humano), sendo variáveis aplicadas no palco interativo
conforme a necessidade de cada situação. Por exemplo, o fotorrealismo, a iluminação
do cenário, a modelagem tridimensional ou o contraste de cores entre os objetos que
visualizamos numa tela são agentes responsáveis por aumentarem (ou não) nosso grau
de imersão na simulação e, com isso, acentuarem (ou não) o conflito perceptivo no
reconhecimento do que é verdadeiro ou falso quando habitamos o espaço digital
Modalidade Intensidade
Duração Localização
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(BAUDRILLARD, 1994). Neste sentido, mesmo que seja copiada a estética dos objetos
físicos, a simulação tecnológica sempre contém “alguma dose de engano; e ainda que
este engano se restrinja aos sentidos, como no caso de um simulador de voo, é
inevitavelmente problemático tentar demarcar uma fronteira entre a razão e os
sentidos”, (ACCIOLY, 2006, p.5).
Buscando referências no universo dos games e do cinema, Zagalo (2010) destaca que o
ato de manipular estímulos pode ocorrer tanto em espaços concretos como em
ciberespaços. Segundo ele, toda manobra que procura anular a noção da tela como
mediadora dos conteúdos deve ser chamada de mecanismo de transparência, pois
incentiva nosso mergulho na realidade da imagem. O cinema, por exemplo, é um espaço
físico que estimula a envolvência com a imagem projetada. Nossa atenção visual está
focada na grande tela, enquanto a auditiva concentra-se nas sonoridades ao redor da sala
(audiovisual). O uso do óculos 3D seria, assim, um dos expoentes máximos dos
mecanismos de transparência aplicados nas sessões cinematográficas, afinal criam
ilusões óticas que nos aproximam do mundo das imagens (ou vice-versa). Por sua vez,
as simulações em videojogos unem ao realismo gráfico algumas funcionalidades
motoras, permitindo a nossa participação no contexto virtual e, consequentemente,
aflorando uma relação de envolvimento, navegação, diálogo e, obviamente, imersão.
2. Simulação virtual: quase-objeto, quase-lugar, quase-corpo
Se outrora a ideia de simulação estava enraizada na dicotomia do verdadeiro e falso, no
sentido de que sempre a consideramos cópia ou farsa evidente (de algo original, físico,
concreto); Accioly (2006) alerta que, hoje, ela adquire um patamar híbrido nesta escala
dicotômica. Isto porque, a verossimilhança da imagem gerada por máquinas binárias
produz um conflito ao nível da nossa interpretação, alterando o “estatuto da experiência
e da realidade”, (2006, p.1).
De fato, os modelos digitais abrem caminhos para novas formas de visualizar, interagir
e manipular conteúdos, permitindo aos desenvolvedores a elaboração de um complexo
sistema de navegação em hipermídia (metáfora do real) ou a representação de objetos,
espaços e atividades que espelham a lógica estética e funcional do mundo físico
(analogia do real) (LEITE, 2005). Neste segundo caso, através de narrativas
tridimensionais, somos estimulados a visualizar a realidade virtual com base nas
características óticas da realidade física – formas, escalas, proporções, perspectivas,
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texturas, iluminações, cores (Figura 2). Tal manobra incentiva a envolvência com o
palco interativo e, consequentemente, reforça o conflito perceptivo de estarmos
inseridos num ponto de entroncamento entre o verdadeiro (real) e o falso (virtual)
(MILGRAM & KISHINO, 1994; KERCKHOVE 1995).
Figura 2: reprodução de objetos, espaços e atividades físicas no cenário virtual
Fonte: www.digitaltrends.com
Com base num estudo realizado com cartazes publicitários inseridos em ciber-
urbanidades – espaços virtuais que imitam aspectos estético-espaciais e semântico-
funcionais dos espaços urbanos1 – Zilles Borba et al. (2012) identificaram que, quanto
mais próximo seja o efeito de transposição do real para o virtual produzido ao nível das
interfaces gráficas, mais atenção damos as mensagens das marcas no espaço simulador.
Mas, esta premissa pode ser aplicada em demais objetos e/ou atividades, afinal, um dos
fatores que colabora para a formatação da noção híbrida da realidade é a sofisticação
mimética da imagem binária, no sentido da experiência de observação se aproximar do
modo que olhamos e reconhecemos os objetos no mundo real. Assim, também é natural
que a passagem de demais sentidos do corpo para o virtual – além do olhar – nos levaria
a configurar uma ideia ainda mais profunda de exploração a quase-objetos, em quase-
lugares, com o nosso quase-corpo (PICON, 2004).
Dentro do campo das simulações digitais, não devemos esquecer que o monitor surge
como principal (e popular) mediador de imagens. Funciona como janela, através da qual
visualizamos os conteúdos e, munidos de dispositivos de comandos, como o teclado, o
mouse ou o joystick, navegamos entre eles. Porém, Coelho (2010) enfatiza que, a
mesma janela atua como moldura, gerando tensão semiótica entre o feeling de estar
dentro e fora do monitor ao mesmo tempo. Ou seja, a realidade virtual mediada pelo
monitor doméstico não proporciona uma experiência imersiva na totalidade, pois suas
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competências tecnológicas estão limitadas à reprodução de sensações audiovisuais (ver
e ouvir). Por exemplo, o corpo virtual de um personagem pegando fogo não gera dores
em nosso corpo orgânico, pois não existem outputs da máquina para tal; mas, através da
narrativa visual, somos capazes de interpretar os impactos que nosso corpo sintético
sofre dentro da simulação (a percepção visual através dos olhos do avatar) (ZILLES
BORBA, 2011).
Em contraponto aos monitores de computadores, tablets ou celulares, na cauda da
vanguarda das projeções gráficas surgem sistemas avançados de realidade virtual em
salas ou espaços físicos de grande proporção. As cavernas digitais (CAVE – Cavern
Automatic Virtual Environment) são exemplos de sistemas de projeção, em que a
“qualidade de imersão é melhor que em qualquer outra forma de sistema de realidade
virtual” (ZUFFO et al., 2001). Trata-se de um sistema de multiprojeção estereoscópico
“montado na forma de um cubo, onde imagens de alta resolução são projetadas em cada
uma das faces do mesmo, permitindo que usuários sejam totalmente inseridos (imersos)
em uma simulação gerada por computador”, (ZUFFO et al., 2006). Para suportar a
estereoscopia são incorporados recursos de óculos 3D (imersão ocular) e para
transportar os movimentos do corpo físico ao cenário tridimensional são aplicados
dispositivos de rastreamento na estrutura do cubo (imersão corporal). Em CAVE, a
mente e o corpo são estimulados ao mergulho virtual, especialmente por impulsos
audiovisuais e motores, configurando uma elevada noção de imersão na experiência e
anulando a noção do espaço físico envolvente (Figura 3).
Figura 3: corpo do sujeito inserido no sistema em CAVE
Fonte: www.worldviz.com
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3. Realidade virtual de 1ª geração: imersão do olhar
O surgimento da realidade virtual remonta o antigo esforço da arte renascentista em
continuar o espaço físico no pictórico, transportando-nos para dentro do mundo da
imagem. Porém, os cientistas da realidade virtual propunham algo a mais: “a
possibilidade de navegação por estas imagens, como se fosse possível adentrar, de fato,
noutra realidade que existisse para além da realidade física ao redor do sujeito”
(FERREIRA, 2010, p.159).
Os primeiros experimentos com a realidade virtual estiveram diretamente ligados às
forças bélicas, especialmente aos militares norte-americanos. No decorrer do século
XX, precisamente na década de 60, a capacidade gráfica para a representação de
espaços físicos transformou-a num instrumento simulador de campos de guerra,
permitindo a execução de uma série de testes táticos antes da sua aplicação no terreno.
Nesta fase inicial de desenvolvimento, a aproximação com a imagética do mundo real
foi notável. “A realidade virtual buscaria oferecer um efeito real às imagens por ela
construídas, e uma sensação de presença em seus ambientes”, (FERREIRA, 2010,
p.159).
De fato, a problemática visual impulsionou o desenvolvimento desta 1ª geração de
realidade virtual. Segundo Grau (2003), grande parte destas experiências preocuparam-
se em bloquear a noção visual de existência de um espaço físico circundante, deixando
o som e o tato para segundo plano. “Deve-se olhar para um display como janela pela
qual se contempla o mundo virtual. O desafio para a computação gráfica é fazer com
que as imagens vistas pela janela pareçam reais, soem reais e que seus objetos ajam de
maneira real”, (2003, p.162). Ou seja, nosso corpo foi pouco requisitado para interagir
com o ambiente, caracterizando, assim, as simulações tecnológicas pela capacidade em
estimular a percepção visual através de recursos gráficos.
“O que se vê é um usuário praticamente estático face às imagens virtuais exibidas em seu monitor ou TV. Assim, como o espectador do cinema, quanto maior o seu estatismo, mais concentrado e imerso ele estará naquele ambiente, evitando ser trazido de volta à realidade por alguma interferência externa (BROWN & CAIRNS, 2004 cit. in FERREIRA, 2010, p.162).
Durante este período, Sutherland (1963) já alertava para o excesso em pesquisa sobre a
visualização de imagens e para a ausência de pesquisa sobre a interatividade com elas:
“o computador pode facilmente sentir as posições de quase todos músculos do corpo.
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Até agora, apenas os músculos da mão e do braço foram utilizados para controlar o
computador. Não há razão para que estes sejam os únicos”, (1963, p.507). Para ele, os
dispositivos de movimento utilizados na realidade virtual de 1ª geração investiam pouco
na união do físico com o virtual, pois vesti-los (luva, óculos, etc.) já era assumir a
entrada numa realidade separada do espaço natural que habitamos.
Em suma, a realidade virtual de 1ª geração, aquela suportada pelo paradigma
ocularcêntrico, proporcionou o mergulho visual na simulação. Entretanto, além de viajar
no mundo digital através de ilusões óticas, a percepção de experiência também nos
orientou para uma imersão psicológica, resultando em nossa (des)corporificação quando
habitamos o virtual (FERREIRA, 2010). Isto porque, mesmo sendo capazes de
compreender o personagem representativo do nosso corpo, não existe uma relação de
controle natural de seus movimentos. Nos jogos eletrônicos, por exemplo, os
dispositivos de controlo foram concebidos para auxiliar a coordenação deste corpo,
através dos dedos que primam botões (com exceção do Nintendo Wii2, PlayStation
Move3 ou Xbox Kinect4). Porém, a noção de envolvimento com o enredo digital é
despertada através da atenção que dedicamos à captação e interpretação da imagem
projetada no monitor (Figura 4).
Figura 4: dispositivo para controlar as ações no monitor
Fonte: www.prokatpristavok.by
4. Realidade virtual de 2ª geração: imersão do corpo
Se a realidade virtual de 1ª geração teve seu foco na produção de imagens que copiam a
realidade física, num segundo momento ela passou a se concentrar na relação do corpo
com o espaço digital. Hansen (2006) sugere que, esta é a principal característica da
realidade virtual de 2ª geração, pois ações motoras passaram a complementar a
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experiência audiovisual, transportando o paradigma da imersão do olhar, para a imersão
do corpo.
Tecnicamente, a integração dos movimentos do corpo orgânico num palco sintético
tornou-se possível devido ao emprego de sensores digitais endereçados não somente aos
olhos e ouvidos, mas, também, ao tato. Desse modo, foi criada uma sintonia motora (de
controle) entre nossos membros e os membros do avatar que nos representa na cena
virtual (Figura 5). Além da unificação dos movimentos entre corpos, a realidade virtual
passou a contemplar outros importantes sentidos perceptivos, como a propriocepção ou
a cinestesia. Ambos se referem a nossa capacidade em perceber o próprio corpo,
incluindo sua posição no espaço, coordenação dos membros, velocidade de movimento,
força ou equilíbrio aplicado pelos músculos. O lançamento do Nintendo Wii, por
exemplo, trouxe esta nova abordagem para o entretenimento eletrônico, através do
desenvolvimento de jogos que possuem “um modo diferente de interagir com os
conteúdos, que apela à participação de todo o corpo” (FERREIRA, 2010, p.158).
Figura 5: gestos do corpo orgânico integrados com o corpo sintético Fonte: www.newbreview.com
Ao transportar demais sensações para a experiência simuladora, a realidade virtual de 2ª
geração também colaborou com o aumento no grau de transparência da máquina na
mediação dos conteúdos. Ao agregar estímulos motores na interação com o sistema
informático, foi criada uma ideia paradoxal de fusão entre os corpos orgânico e
sintético, auxiliando a anular a noção do monitor ser uma moldura que separa o real do
virtual. “Como se ambos habitassem o mesmo loco” (FERREIRA, 2010, p.158),
abrindo portas para uma percepção híbrida da realidade, num fenômeno de “extensão do
espaço virtual no espaço físico e, ainda, um sujeito corporificado em sua interação com
o espaço tecnológico”, (FERREIRA, 2010, p.159).
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Para Hansen (2006), o foco na atividade motora, em contraponto à verossimilhança
representativa, veio tornar ainda mais conflituoso o entendimento que temos das
simulações. Passamos a sentir com maior ênfase a presença do corpo num espaço
híbrido, no sentido de atuarmos numa zona mista, que evidencia a existência de um
ponto de intersecção entre o binário e o atômico. Dentro de um sistema de realidade
virtual em CAVE, por exemplo, a noção de propriocepção parece ser ainda mais
estimulada, pois todas ações assemelham-se às relações do nosso habitat natural
(caminhar, correr, pular, deitar, etc.). Isto significa que, em sistemas realidade virtual de
vanguarda, devido ao elevado grau de imersão dos sentidos do corpo humano, a noção
de penetrarmos no cibernético é aumentada, alavancando a ilusão de sermos híbridos.
Conforme ilustrado na Figura 6, no cenário sintético torna-se possível caminhar com as
próprias pernas, tocar e pegar objetos virtuais com as próprias mãos.
Figura 6: cavernas digitais combinam o paradigma da imersão visual, sonora e corporal
Fonte: www.eonreality.com
Friedberg (2006 cit. in FERREIRA, 2010) defende que, no paradigma da imersão
corporal, deixamos de lado a necessidade de aprender a dialogar com a máquina (modus
operandi), pois ela passa a funcionar através das regras do mundo físico (gravidade,
navegação, etc.). “Ao interagir, ele (o utilizador)5 deve apenas agir naturalmente,
movimentando o seu corpo de forma intuitiva... é a máquina quem deverá entender os
movimentos do usuário e traduzi-los em ações coerentes dentro do sistema”,
(FERREIRA, 2010, 164). Num raciocínio interessante, o mesmo autor reflete que a
padronização do uso de interfaces por intermédio da metáfora (botões, links, ícones),
durante a chegada das tecnologias digitais em nossa sociedade (websites, portais),
acabou por nos conduzir para um mecanismo de aprisionamento do corpo; contudo,
curiosamente, a evolução da realidade virtual indica para um caminho oposto, de
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retorno ao analógico, ou melhor, de representação do analógico no digital: gestos ao
invés de cliques, membros do corpo ao invés de dispositivos de comando.
5. Considerações finais sobre a percepção em simuladores virtuais
Independente do modelo de realidade virtual, a formatação de uma ideia de presença no
espaço híbrido, em que habitamos um ponto de entroncamento entre o real e o virtual,
está condicionada à percepção que temos da experiência. Neste sentido, obviamente,
quanto mais sensações do corpo humano forem mediadas pela máquina informática,
maior será o conflito interpretativo da realidade que nos é projetada (do falso ≠
verdadeiro, para o falso ≈ verdadeiro).
De fato, uma imersão multisensorial, que transporta todo o corpo para o contexto
virtual, e não somente a visão e a audição, tende a gerar uma série de alterações no
modo que entendemos a realidade dentro da simulação, principalmente, porque ela
anula o conceito da superfície plana das telas para oportunizar a exploração de cenários
tridimensionais. Agora, por ser tratarem de relações individuais que temos com os
sistemas informáticos, também é preciso ter em conta que a noção de imersão varia de
pessoa para pessoa. Isto porque, apesar dos impulsos sensoriais emitidos pelo
computador serem os mesmos para todos nós, a integração significativa que temos deles
é puramente subjetiva. Ou seja, a resolução emocional está condicionada, também, ao
afeto, juízo ou atenção que damos aos estímulos presenciados na simulação.
Conforme visto no decorrer desta reflexão, os passos no desenvolvimento da realidade
virtual indicam para uma tendência de reconstrução do físico no digital. Isto vem a
proporcionar uma relação muito mais intuitiva com as simulações, uma vez que
passamos a agir naturalmente no espaço artificial. Significa, também, que a construção
de modelos em realidade virtual está intrinsecamente ligada à compreensão das versões
originais a serrem representadas, no sentido de ser necessário coletar dados que
permitam a elaboração de narrativas que conduzem para uma experiência similar com
os objetos, os personagens e os espaços.
Por fim, não podemos deixar de ter em mente que os limites técnicos e tecnológicos na
reprodução dos cinco sentidos através dos computadores ainda são grandes. O olfato,
por exemplo, não surge como um aspecto corriqueiro nestes cenários (apesar de já
existirem experimentos para tal). Numa perspectiva tecnoliberal6, é considerável que no
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futuro a realidade virtual imersiva torne-se algo rotineiro, seja para o entretenimento,
para os relacionamentos ou para os negócios. E, com esta evolução tecnológica, tornar-
se cada vez mais imersiva, no sentido de nos transportar para um ponto “quase”, no qual
já não sabermos o que é real ou virtual, o que é verdadeiro ou falso.
1 Metaversos, videojogos, cibercidades, etc. 2 https://www.nintendo.com/wii 3 http://br.playstation.com/ps3/playstation-move 4 http://www.xbox.com/pt-br/kinect/home-new?xr=shellnav 5 Parênteses do autor. 6 Dentro do pensamento sobre os impactos da tecnologia digital em nossas vidas predominam duas correntes: tecnoliberais (http://technoliberal.org) e tecnorealistas (http://www.technorealism.org).
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