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RIO DE JANEIRO, V.9, N.1 E 2, P.45-52, 2002 ETHICA

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RESUMO

A filosofia de Clément Rosset pode ser definida como umpensamento da imanência uma vez que recusa toda instância metafísicacapaz de fundar o mundo. Esta visão coloca em questão o próprioestatuto da filosofia, que deve renunciar a toda pretensão de verdadee a toda ontologia. Procuramos mostrar que a função da filosofia surgecomo fundamentalmente negativa, na medida em que se propõe menosa dizer o que o mundo é do que destituir a ilusão metafísica de ummundo dotado de sentido. Para cumprir adequadamente esta função, opensamento deve retirar, mais do que postular; silenciar, mais do queenunciar; apagar, mais do que revelar. É o que ocorre com os termosacaso, matéria, artifício. Finalmente, procuramos mostrar que essavirtude negativa se opõe à idéia de positividade (isto é, a uma ontologiado Ser ou da substância), mas não à idéia de afirmação.Palavras-chave: Rosset, imanência, real, virtude.

ABSTRACT

Clément Rosset’s philosophy can be seen as immanent since itrefuses the idea of a metaphysical support for the existence. This conceptionimplies that philosophy cannot be the quest of a transcendent truth, andit must abandon every pretension to constitute an ontology. We thusintended to show that philosophy’s task appears to be essentially negative,since it does not intend to enunciate what the world is, but to dismiss themetaphysical illusion of a sensible world. To attain this goal, conceptsmust remove, rather than postulate; silence, rather than enunciate; depose,rather than establish. This is the purpose of concepts as matter, chance

C L É M E N T R O S S E TO PE N S A M E N T O D A IM A N Ê N C I A

E S U A VI R T U D E NE G AT I VA

SILVIA PIMENTE VELLOSO DA ROCHAUERJ

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and artifice. We intended moreover to show that this negativity does notexcludes the idea of affirmation, but rather the idea of positivity (that is, anontology of the Being or the substance).Key-words: Rosset, immanence, real, virtue

A filosofia de Clément Rosset pode ser definida como umpensamento da imanência, na medida em que recusa a existência deuma instância metafísica capaz de fundar o mundo e assinala aimpossibilidade de ultrapassar a vida para instaurar a busca de umaverdade transcendente. A obra de Rosset retoma uma tradição anti-metafísica que inscreve o homem na esfera das aparências (como nocaso dos Sofistas) e da matéria (como no epicurismo), no mundo davida ou da vontade de potência (caso da filosofia de Nietzsche) ou nointerior da linguagem (como em Wittgenstein).

A crítica à ilusão metafísica se dirige em primeiro lugar à idéia deNatureza. De fato, desde Platão e Aristóteles, a tradição filosófica concebea natureza como um princípio racional que preside a constituição do mundoe determina suas leis. O conceito de Natureza, nesta acepção, designa umaesfera da ordem e da necessidade, em contraposição simultaneamente aoreino do artifício - definido como aquilo que resulta da intervenção humana- e ao reino do acaso, constituído por aquilo que independe de toda lei.

A esta concepção, Rosset contrapõe a interpretação materialistaque afirma o acaso como princípio suficiente para dar conta do queexiste. O acaso é entendido não como o encontro fortuito de duasséries causais, nem como uma exceção do princípio de causalidade,mas como a ausência mesma de um tal princípio. A existência de umuniverso ordenado e de uma natureza submetida a leis não contradizuma tal hipótese: sendo capaz de produzir infinitas combinações, oacaso é por definição capaz de produzir também seu aparente contrárioque é a ordem - como ilustra o célebre argumento epicurista segundo oqual um número infinito de combinações aleatórias das letras doalfabeto irá produzir o texto integral da Ilíada e da Odisséia.1 Assim, aordem natural é ela mesma um produto do acaso, e não a expressão dealguma lei ou racionalidade, muito menos de uma intenção.

Se a própria natureza deve sua existência ao acaso, segue-seque os fenômenos naturais são contingentes, isto é, tão “artificiais”quanto quaisquer outros: a possibilidade de distinguir natureza eartifício segundo o critério da necessidade torna-se assim impossível.Nesse sentido, natureza e artifício não mais designam dois aspectos

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complementares da existência, mas duas formas de interpretar o mundo:a primeira, característica da metafísica, busca um fundamento para darconta do que existe; a segunda, característica de um pensamentomaterialista, prescinde de um tal fundamento2 .

Esta concepção do acaso não exclui a noção de necessidade,mas antes a recobre inteiramente. A necessidade é simultânea econtemporânea do próprio fato, se confunde em última análise com ofato e não pode ser invocada para explicá-lo. Porque ocorreu, o eventose revela necessário. Assim, a oposição metafísica entre acaso enecessidade dá lugar à noção de uma necessidade trágica: o que existeé necessário, mas esta necessidade não deriva de qualquer lei e nãotem, por sua vez, nenhuma racionalidade.

Assim, contra a ontologia do Ser que caracteriza o pensamentometafísico, Clément Rosset propõe uma ontologia do real. Estaontologia retoma a concepção sofística de que a realidade não passade aparência, no sentido em que não oculta qualquer essência por trásde seu aparecer. O real se confunde com o conjunto das coisasexistentes, sem deixar nenhum “resto” metafísico.

Encontramos aqui outro aspecto marcante do pensamento deRosset: a singularidade do real, isto é: seu caráter simples, único,imanente. Afirmar o real como estrita singularidade implica em que eleé ontologicamente insignificante, já que privado de qualquer instânciacapaz de lhe conferir razão ou fundamento; mas implica também em queele está condenado a permanecer alheio a toda significação, resistindoa toda tentativa de conhecimento: “Se o real é o simples, ele falharásempre em ser reconhecido, já que um tal reconhecimento implica, pelainsistência de seu ‘re’, o complemento de um Outro que sua própriadefinição exclui.” 3

Assim apresentado, o pensamento de Clément Rosset parececolocar-nos diante de uma aporia: se a definição do real é não terdefinição,4 se toda existência é insignificante, refratária ao sentido e à

1 Lógica do Pior. Rio de Janeiro: Espaço & Tempo, s/d. p.1262 Ibid., p. 663 O Real e seu Duplo. Porto Alegre, L&PM, 1988. p. 174 Le Démon de la Tautologie. Paris, Minuit. p. 35

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interpretação, qual pode ser a tarefa da filosofia? Qual pode ser o seu“conteúdo”? De que modo ela pode dizer seu objeto? Em últimainstância, a forma que esse pensamento deveria assumir é a datautologia: limitar-se a repetir o real em sua identidade, numa insistênciada linguagem que, impossibilitada de dizer seu objeto, volta-se sobresi mesma. Assim, “o discurso sobre o real será tautológico ou nãoserá”.5 Rosset esclarece no entanto que é preciso distinguir o enunciadotautológico enquanto tal (que a rigor não acrescenta qualquerconhecimento sobre seu objeto) de um pensamento de inspiraçãotautológica, que pode encontrar diferentes formulações. 6

De fato, para falar da ausência de sentido, qualquer discurso énecessariamente impotente e toda palavra seria, por definição, excessiva.Mas a questão que se coloca é: excessiva em quanto?7 Se todo discursoproduz sentido e instaura por si só uma ilusão de transcendência, issonão implica que todos o façam da mesma forma ou na mesma medida. EmLógica do Pior, Rosset afirma que para fazer falar o silêncio seria precisodispor de uma palavra mágica, que soubesse falar sem nada dizer. 8 Estapalavra, no contexto da obra em questão, é o termo acaso. Mas podemoslevantar a hipótese de que esta propriedade silenciosa se apliqueigualmente aos demais conceitos que marcam o pensamento de Rosset- como é o caso dos termos aparência, materialismo, artifício. Trata-seaqui de conceitos fundamentalmente negativos, cuja função prioritária éa de esvaziar o pensamento de sua carga metafísica, destituindo a ilusãode transcendência que caracteriza nossa percepção habitual epossibilitando a afirmação do mundo em sua imanência. Para evocar anoção de anti-princípio, proposta por Rosset em Lógica do Pior,poderíamos sugerir que termos como acaso, materialismo e artifício sãoanti-conceitos, que se propõem menos a dizer o que o mundo é do queesvaziar a pretensão filosófica de obter um conhecimento teórico domundo, destituindo a ilusão metafísica de um mundo dotado de sentido.

Assim entendida, a função teórica da filosofia revela-sefundamentalmente negativa: segundo a tradição metafísica, a tarefa dofilósofo consiste em dizer o que é (ou seja, dizer o Ser); concebida

5 Ibid., p.126 Ibid., p.497 Lógica do Pior, p.818 Ibid., p.79

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como pensamento da imanência, trata-se de dizer o que não é, ouantes, que o Ser não é. De fato, o conceito de ser não designa apenasaquilo que é, mas aquilo que é necessariamente, em oposição ao queexiste de forma apenas contingente; aquilo que permanece idêntico asi mesmo, e que portanto pode suportar a mudança, ser seu sujeito eseu substrato; finalmente, o ser é aquilo que é em si mesmo e para simesmo, independentemente de seu aparecer. Em todo pensamentometafísico, a aparência só “é” na medida em que é expressão de umaessência, da qual ela retira seu ser e que lhe dá consistência ontológica.Esse mecanismo de duplicação, segundo Rosset, constitui a própriaessência da metafísica, que superpõe ao mundo sensível, do devir e dacontingência, um mundo inteligível, de necessidade e permanência.

É precisamente esta duplicação que se encontra aqui recusada: oacaso não supõe um princípio de causalidade constituído do qual ele seriaa exceção, mas indica a inexistência mesma de um tal princípio: ele “ sódesigna o ato mesmo da negação, sem referência precisa ao que nega”.9 Oartifício não consiste em uma esfera segunda, derivada de uma naturezaconstituída ou originária, mas designa a “natureza” mesma de tudo o queexiste. O materialismo não consiste em explicar a realidade a partir de causasmateriais, mas em “explicá-la sem o recurso à idéia de causa.”10 A aparêncianão consiste na manifestação de uma essência, mas em uma puraaparência, que não remete a nada fora de si mesma - “como um avesso aoqual não corresponde nenhum direito”. Trata-se em cada caso de conceitosinteiramente imanentes que não retiram seu sentido de uma oposiçãometafísica não se inscrevem em nenhuma dicotomia. Nesse sentido, opensamento de Rosset constitui um desdobramento do projeto nietzschianode pensar para além das dicotomias metafísicas.

Esta virtude negativa, embora incapaz de instituir uma ontologiaou de fornecer conhecimento teórico do mundo, tem no entanto umafunção prática, que seria de ordem depurativa ou higiênica. É o quesugere uma passagem de O Princípio de Crueldade: “Em outraspalavras, uma verdade filosófica é de ordem essencialmente higiênica:ela não fornece nenhuma certeza, mas protege o organismo mentalcontra o conjunto de germes portadores da ilusão e da loucura.” 11 A

9 Ibid., p.8910 Anti-Natureza, p.6911 Princípio de Crueldade. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. p. 34

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analogia entre filosofia e medicina remonta aos sofistas, aos céticos eepicuristas, que associam a saúde, entendida como bem-estar do corpo,à sabedoria, definida como bem estar da alma. Mas contrariamente àmedicina - que é uma intervenção ativa - a higiene é uma práticaestritamente preventiva, que visa a retirar o excesso, purgar e depurar.A higiene atua ali onde não há nada a curar, mas apenas um excessoque impede as funções fisiológicas de atuarem adequadamente.

Ora, esse “excesso” é precisamente a busca da transcendência,que se manifesta no discurso da metafísica e da moral, mas que estáigualmente presente na visão do senso comum, que acredita em umarealidade dotada de sentido. O homem não sofre de uma falta - comosustenta a tradição metafísica - mas de um excesso, que consiste embuscar uma instância capaz de conferir sentido e fundamento àexistência. A função terapêutica da filosofia - e a “cura trágica” que elapossibilita 12 - consiste em destituir esse referencial metafísico.

Em função disso, Clément Rosset distingue entre os filósofoscurandeiros e os filósofos médicos: os primeiros, representados pelatradição metafísica, “não têm nada de sólido para opor à angústiahumana, mas dispõem de uma gama de falsos remédios capazes deadormecê-la por um certo tempo”; os segundos (aqueles que sustentamum pensamento da imanência) “dispõem do verdadeiro remédio e daúnica vacina (...), mas este é de tal força que, se eventualmentereconforta as naturezas saudáveis, tem como outro e principal efeito ode fazer perecer imediatamente as naturezas fracas”. 13 Esse riscoinerente ao saber trágico nos remete à ambivalência do termo gregopharmakon, que pode significar tanto remédio quanto veneno.

Trata-se nos dois casos de trazer um alívio: no primeiro caso, oconforto é trazido pela certeza de que há o objeto de sua busca: o Ser,a verdade, a finalidade, a Natureza; no segundo, o conforto decorre daafirmação de que não há um tal objeto, de modo que é a própria idéia debusca que se torna sem sentido. Rosset acrescenta ainda que, domesmo modo que a medicina só pode curar aqueles que têm uma reservade saúde, a filosofia - entendida aqui como filosofia trágica oupensamento da imanência - só pode auxiliar a quem de certo modo jádetém o saber que ela pode lhe transmitir.

12 Lógica do Pior, p. 3113 Princípio de Crueldade, p. 29

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Esta mesma ambivalência nos remete à distinção entre a posiçãopessimista e a posição trágica. De fato, o mundo que o pessimista vê éo mesmo que vê o trágico: um mundo sem sentido e sem finalidade,sem transcendência e sem qualquer valor senão aquele que o própriohomem pode lhe atribuir. O que distingue ambas as posições é acapacidade de afirmar este mundo. Lamentando a ausência de umainstância supra-sensível, o pessimista permanece preso ao referencialcuja inexistência pretende denunciar. O trágico, por sua vez, recusaque uma tal instância possa constituir um referencial para julgar omundo. Assim, a expressão lógica do pior tem um sentido bem diferenteconforme se aplique ao primeiro ou ao segundo: “o pior pessimistadesigna uma lógica do mundo, o pior trágico, uma lógica do pensamento(descobrindo-se incapaz de pensar um mundo).”14

Esta função higiênica surge assim como uma virtude negativa,que se propõe menos a dizer seu objeto do que a destituir asinterpretações metafísicas que concebem um mundo dotado de sentidoe finalidade. É o que sugere Rosset em O Princípio de Crueldade: “Ointeresse principal de uma verdade filosófica consiste em sua virtudenegativa, quero dizer, em seu poder de dissipar idéias muito mais falsasdo que a verdade que ela enuncia a contrário.”15 Para cumpriradequadamente esta função, tais conceitos devem retirar, mais do quepostular; silenciar, mais do que enunciar; apagar, mais do que revelar. Éo que ocorre com os termos acaso, matéria, artifício.

Esta concepção evoca a reflexão de Roland Barthes, segundo aqual a literatura não deve fazer falar o inefável, mas calar aquilo que jáestá excessivamente dito: entre o escritor e a realidade que ele pretendefalar está toda uma rede de lugares comuns e de representaçõescristalizadas, de modo que sua tarefa consiste menos em “arrancar umverbo ao silêncio” do que em limpar o excesso que a recobre. 16 Sendoa experiência cotidiana do mundo mediada pelo sentido e atravessadapela ilusão de transcendência, para restituirmos a imanência do mundoé preciso criar um novo olhar, tal como afirma Nietzsche em GaiaCiência: “Bem louco quem acreditasse que basta recordar essa origeme mostrar esse véu nebuloso da ilusão para destruir o mundo que

14 Lógica do Pior, p. 2015 Le Démon de la Tautologie, p. 4916 Crítica e Verdade. São Paulo: Perspectiva, 1970, p. 22

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passa por essencial, a que se chama realidade’. Só criando o podemosaniquilar”.17

Pode parecer contraditório enfatizar o aspecto negativo de umafilosofia que se pretende eminentemente afirmativa. Mas ocorre que anegação incide sobre as pretensões teóricas da razão e sua busca detranscendência; a afirmação remete a uma conseqüência prática que édecorrente desta mesma negação - ou antes simultânea a ela. Esteaparente paradoxo está igualmente presente no pensamento deNietzsche, que o formula em uma passagem de Ecce Homo: “O aspectopsicológico do problema de Zaratustra é atinar como aquele queresponde negativamente e age negativamente diante de tudo aquiloque até agora se afirmou possa ser no entanto o contrário de um espíritonegativo.”18 Em outras palavras, o termo negativo se opõe aqui à idéiade positividade (isto é, a uma ontologia do Ser ou da substância), masnão à idéia de afirmação. Ao contrário, se a duplicação metafísica domundo tem como conseqüência uma recusa do real, é a recusa de todatranscendência que possibilita a afirmação do real em sua imanência.

17 Gaia Ciência, § 58.18 Ecce Homo, “Assim Falava Zaratustra”, § VII