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Imagens sonoras dos deuses que dançam
Jorge Luiz Ribeiro de Vasconcelos
IA/UNICAMP Música, mito e movimento nas religiões de orixás.
RESUMO – Dentre as várias possibilidades de estabelecimento de relações entre
sons (musicais ou não) e outras linguagens, as religiões afro-brasileiras chamam a
atenção pela intrínseca sutura entre seus múltiplos elementos constitutivos. Música,
sons incidentais, cores, vestimentas, adereços, movimento e mesmo paladares
concorrem para a construção imagética daqueles que são os principais “personagens”
desta manifestação cultural: os orixás. Estas divindades trazidas da África no
processo da diáspora negra “materializam-se” no corpo de seus devotos através de
cantos, ritmos, coreografias e outros elementos específicos, recriando as narrativas
míticas que dão suporte às práticas religiosas. A partir de dados obtidos na pesquisa
de campo efetuada para a realização do doutorado em Música, que tem como
principal referencial metodológico a etnomusicologia, a proposta deste artigo é
discutir como a articulação desses elementos se efetua, num processo análogo ao de
outras manifestações e gêneros artísticos. Tem também como objetivo considerar as
especificidades do caso estudado, não só por suas características religiosas e de
ligação com as narrativas míticas como por sua condição de manifestação da esfera
da chamada “cultura popular”. A partir daí, pretende-se sugerir uma “leitura” dos
rituais de candomblé queto e outras religiões similares como a da construção de uma
“partitura” e de um “libreto”, destacando as particularidades de seus elementos
sonoros e daqueles que constituem a base de sua narratividade. Como tal base são os
mitos que atualizam a ancestralidade recriando-a nos rituais, a discussão central aqui
é, reitero, o processo pelo qual aqueles tornam-se vivos através dos elementos destes,
principalmente a música.
INTRODUÇÃO
As religiões afro-brasileiras têm sido objeto de exaustivas pesquisas nas áreas das
Ciências Sociais, principalmente a Antropologia; além de obter destaque dentre os
estudos etnomusicológicos. As primeiras aproximações entre o mundo dos terreiros
(na sua maioria baianos) e o acadêmico ocorreram na virada do século XIX para o
2
XX (Silva, 2005: 55), e desde então têm tido analisados os aspectos rituais (Bastide,
2001), as narrativas míticas (Verger, 2002; Prandi, 2001), os estilos de vida dos
devotos (Amaral, 2002); estudos musicológicos foram realizados e até resenhas de
toda esta produção efetuados com o cunho de “meta-etnografia” (Silva, 2000). Ou
seja, um campo exaustivamente estudado. No entanto, pela própria dinâmica de
atualização e recriação constante deste tipo de manifestação cultural e por sua
riqueza de elementos estruturais constitutivos, há sempre possibilidades de novas
análises e enfoques. A proposta deste artigo justamente é analisar a relação entre os
elementos da performance ritual, com ênfase nos aspectos sonoros e a construção,
atualização e constante recriação de uma narrativa mítica ligada às figuras dos orixás,
as divindades de uma das formas mais difundidas atualmente dessas religiões, o
candomblé queto.
CANDOMBLÉ, RELIGIÃO DE ORIXÁS
O candomblé é uma das mais expressivas entre as múltiplas formas de religiosidade
de origem africana desenvolvidas em território brasileiro. Uma de suas características
marcantes é a congregação de vários cultos originalmente estabelecidos de forma
separada na África, ligadas a divindades e locais específicos, e aqui rearranjadas num
novo amálgama de religiões com suas respectivas “nações” (Prandi, 2005: 21). Ou
seja, o que no território africano era restrito ao culto de uma divindade em uma
determinada cidade ou região, passou a integrar aqui um panteão em que convivem
diversos deuses e deusas de origens similares. No entanto, essa reorganização no
território americano se fez em torno de novas identidades étnicas, agregando grupos
que no Brasil recebem a denominação de “nações” citada acima e que fazem
referência às etnias africanas originárias. Tais identidades étnicas são fundamentais
para a compreensão da dinâmica das expressões culturais afro-brasileiras como a
capoeira, o próprio samba e aquele que nos interessa diretamente neste artigo: o
candomblé queto. O nome dessa religião, uma referência à cidade de Ketu, no atual
Benin, atesta as relações de identidade referidas acima. Essa religião se torna
interessante para a análise em curso por vários motivos. Um deles é pelo fato de que
“foram principalmente os candomblés baianos das nações queto (iorubá) e angola
(banto) que mais se propagaram pelo Brasil, podendo hoje ser encontrados em toda
parte” (Prandi, 2005: 21). Também porque “o primeiro veio a se constituir numa
3
espécie de modelo para o conjunto das religiões de orixás, e seus ritos, panteão e
mitologia são hoje praticamente predominantes”. (Idem).
Portanto, além de ser uma espécie de “paradigma” das religiões de orixás no Brasil
hoje, suas características fortemente estruturadas nas narrativas míticas desses deuses
geram o interesse na análise de sua performance ritual, como desenvolveremos a
seguir.
Todas essas religiões desenvolvidas no território brasileiro têm em comum também o
fato de serem religiões de possessão ou de transe. Ou seja, a experiência religiosa
mais integral do devoto é a de receber as divindades em seu próprio corpo e
incorporar suas atribuições. E o percurso de aprimoramento desse devoto, inclusive
galgando graus em direção ao exercício do sacerdócio, é bastante longo e
dispendioso em termos de tempo, desgaste de energia, aquisição de conhecimento e
investimento financeiro (Amaral, 2002). Sejam os candomblés acima citados, seja a
umbanda e seu panteão de uma “marginália sagrada” (Brumana, 1991) com uma
distribuição expressiva na região sudeste do país; o tambor-de-mina do Maranhão
com seus voduns de nação fom, jeje-daomeanos; o xangô pernambucano de nação
egba ou o batuque do Rio Grande do Sul, identificado com a nação oió-ijexá1, todas
estas religiões têm em comum a personificação, corporificação das divindades
utilizando como suporte o corpo de seus devotos (e a possibilidade do contato direto
com esse deus, em variados graus).
E isto se efetua em rituais próprios de cada uma dessas religiões, dentre o quais as
festas públicas têm uma importância bastante acentuada. No candomblé queto estas
festas são chamadas “toques” e têm um calendário bastante intenso ao longo do ano,
com eventos igualmente baseados nas atribuições dos orixás e seus mitos e
relacionados com o calendário das efemérides católicas devido ao processo de
sincretismo.
O sincretismo é um elemento fundamental para o entendimento das formas religiosas
de que tratamos. Ligado ao próprio caráter híbrido e de multiplicidade de origens e
derivações de tais religiões, sua dinâmica ao longo da história destas desde o final da
escravidão até hoje atesta as conturbadas relações de aceitação e rejeição do negro e
de sua cultura na sociedade brasileira e mesmo a influência das variadas correntes
1 Tal exposição visa ilustrar a diversidade e complexidade das identidades entre nação suas respectivas manifestações religiosas, considerando não ser no âmbito deste artigo que elas serão detalhadamente analisadas. Para mais sobre a relação entre nação e religiões ver Silva, 2005: 65-68.
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acadêmicas nestes processos (Ferretti, 1995). Muitas vezes atribui-se ao sincretismo
um caráter de resistência à dominação (Verger, 2002:25-28). No caso mais específico
do candomblé este sincretismo, além de uma aproximação com o calendário católico,
promoveu correlações entre santos da igreja e orixás dos diversos panteões, através
de analogias entre elementos, características e atribuições de ambos. Correlação nem
sempre feita de forma idêntica no território nacional. Dessa maneira, se no rio de
Janeiro a relação entre o popularíssimo São Jorge (cuja tematização no repertório de
música popular urbana tem sido bastante intensa já há muitos anos) e o igualmente
guerreiro e responsável pela “abertura de caminhos” orixá Ogum se fez de forma
fortemente marcada no imaginário dos devotos de cada uma das vertentes (e mesmo
de uma característica bastante própria da religiosidade local, que é a devoção a
ambas), na Bahia ela se dá com um curioso Santo Antônio guerreiro, que inclusive
chegou a receber patente e soldo do exército colonial português (Verger, 2002: 27;
Silva, 2005: 71-72).
Nesse ponto, relembrando que o que nos interessa no âmbito desta discussão é a
forma como estes elementos característicos das divindades concorrem para recriar as
narrativas míticas nos rituais, vale a pena uma descrição de alguns destes elementos e
mitos. Além do que, destacar também a maneira como estas concepções de mundo,
de pessoa e espiritualidade concorrem para a construção de um sistema de crença no
qual a recriação referida é fundamental.
MITO, RITUAL E PERFORMANCE
Como já frisamos, dentro do sistema de culto das religiões de orixás, mito e
divindades estão em correlação constante. No candomblé queto, estas divindades
compõe um panteão que “...na América é constituído de cerca de uma vintena de
orixás e, tanto no Brasil como em Cuba, cada orixá, com poucas exceções, é
celebrado em todo o país” (Prandi, 2002: 20). Já segundo outra autora, “o panteão do
candomblé paulista é composto, em geral, por 16 orixás...que são cultuados
recebendo oferendas, comidas e, principalmente, festas.” (Amaral,2002 : 30). Cada
um desses orixás é saudado nas festas abertas ao público numa ordem ritual
denominada xirê, uma seqüência que tem relação com as características míticas e
mesmo as relações (parentesco, alianças, conflitos, uniões conjugais, etc.) míticas
entre os orixás. Canta-se e se dança então para Exu, Ogum, Oxóssi, Obaluaiê,
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Ossaim, Oxumarê, Xangô, Oxum, Logun-Edé, Iansã, Obá, Nana, Iemanjá e Oxalá.
Esta ordenação serve para nortear os acontecimentos da festa e para fornecer a base
sobre a qual cada membro da comunidade de culto efetiva sua parte na realização do
evento.
E são muitas as funções desempenhadas. Músicos (os alabês), assistentes (as
equedes) dos devotos em estado de transe, também há os responsáveis pelos
sacrifícios dos animais necessários, cozinheiras, sacerdotes entre outras pessoas da
comunidade de devoção, o chamado “povo-de-santo” que compõem um panorama de
possibilidades de atuação que pode ser comparado com uma peça teatral ou uma
ópera, no sentido de uma performance levada a cabo para o cumprimento das
obrigações religiosas. Dessa forma:
Evidentemente, a construção dos papéis rituais não se faz somente na festa, mas é principalmente nela que se expressam em sua plenitude, pois é quando se encontram reunidos todos os membros do terreiro que podem – no ‘palco’ que é o barracão – contracenar entre si na presença do público assistente, que, em muitos casos, pode também atuar, acompanhando com canto, palmas, louvações os ‘atos’ representados ali. Nesse ‘teatro’, cada papel é construído com base numa série de mitos, movimentos ritualizados, roupas, emblemas próprios, sons, cores, alem, é claro, de tempo, conhecimento, direitos e deveres específicos. (Amaral, 2002:49).
Então, em qualquer uma da muitas festas oferecidas para o agrado dos orixás e
manutenção dos laços entre a comunidade de devoção, observaremos performances
de representação e atualização das narrativas míticas citadas anteriormente. À frente,
veremos alguns exemplos desses processos, para tornar concreta a nossa proposta de
análise.
Antes, vamos partir de alguns elementos sobre os mitos. Os orixás são “deuses que
receberam de Olodumare ou Olorum..., o Ser Supremo, a incumbência de criar e
governar o mundo, ficando cada um deles responsável por alguns aspectos da
natureza e certas dimensões da vida em sociedade e da condição humana” (Prandi,
2001: 20). Daí, cada aspecto, cada conflito, todos os destinos, tudo enfim pode ser
explicado a partir de suas atribuições e seus desígnios, na visão de mundo dos
adeptos desta religião. As doenças e sua cura; os conflitos e sua resolução ou a forma
de evitá-los, a “abertura dos caminhos”, facilitando o desenvolvimento pessoal e de
projetos, as particularidades de cada pessoa, a beleza, a força física, os
temperamentos; tudo é explicado pelas características dos orixás e administrado com
base nestes preceitos. E com base em dois princípios. Primeiramente, a aceitação
desses modos de explicação do mundo por alguma forma de adesão à religião (que
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são muitos – não só os papéis de membro da comunidade, de adepto, já citados, mas
também de “clientes” dos serviços divinatórios e propiciatórios ou de simples
espectadores das cerimônias públicas) e aí, quase concomitantemente a busca das
explicações para suas tendências individuais, pois “cada um tem dentro de si seu
orixá, sua origem essencial, que não é a mesma para todos” (Prandi, 2005:33). E
mais: “o povo-de-santo acredita que quando os orixás escolhem alguém como seu
‘filho’ imprimem nele algo de sua ‘essência divina’”. (Amaral, 2002:69). Portanto, a
necessidade de descobrir qual seria esta verdadeira essência vem logo seguida pela
necessidade de harmonizar estas influências todas, que seria o outro princípio
dinâmico, moto de várias ações da prática religiosa. Essa busca pelo equilíbrio, pela
harmonização está intimamente ligada à noção do axé, a força vital e sagrada,
energia dos deuses e da natureza, justamente a fonte do equilíbrio desejado (idem). O
axé vem do correto cumprimento das obrigações com os orixás. Alimentá-los, limpar
seus assentamentos. Dançar e cantar para eles. Dançar e cantar com eles.
Estamos chegando à performance, acreditem. Pois vemos que uma das formas de
obter o equilíbrio da religião é justamente dar visibilidade ao orixá, agradá-lo,
permitindo que participe das festividades, através da dança, do canto, dos ritmos. É
possibilitar que mostre seu temperamento guerreiro, lânguido, enérgico ou solene,
conforme as características de seu mito de origem.
Os rituais de iniciação dos filho e filhas-de-santo nada mais são do que uma preparação para que o orixá que há em cada um possa aflorar e se manifestar no transe, quando se mostra a todos durante as celebrações. Assim, quando a filha-de-santo entra em transe e o orixá se manifesta em seu corpo, essa devota assume uma nova identidade, marcada pela dança característica que lembra as aventuras míticas dessa divindade; é o passado remoto, coletivo, que aflora no presente para se mostrar vivo, o transe ritual repetindo o passado no presente, numa representação em carne e osso da memória coletiva. (Prandi, 2005:33).
EXEMPLOS DE PERFORMANCE RITUAL.
Cabe agora, uma vez esclarecidos estes pressupostos, propormos alguns exemplos
para análise, de acordo com o que estabelecemos até então.
Minha pesquisa dedica-se especificamente ao estudo e levantamento de
campo realizado numa casa de culto da Baixada Santista, o Ilê Alaketu Omo Oyá Asé
Osun, localizada na cidade de São Vicente, SP; no bairro Cidade Náutica, nos
arredores dessa cidade, próximo à rodovia dos Imigrantes.
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Os líderes desta casa são a ialorixá Sandra d’Eloyá e o babalorixá Marcos d’Ogun,
que realizam periodicamente festas abertas ao público e têm uma dedicação intensa
(principalmente a ialorixá) às atividades necessárias para a manutenção do culto, da
casa e aos cuidados religiosos com os filhos de santo e outros devotos.
Ambos sacerdotes denotam em suas falas uma busca por rigor religioso e
dedicação aos preceitos, num constante aprendizado que não dispensa a leitura de
textos de referência, que fazem parte inclusive da bibliografia de estudos
acadêmicos.
A Festa
Como já se frisou, um dos momentos mais marcantes da rotina ritual de uma
casa de candomblé são justamente os “toques”, as festas públicas de celebração da
religião, possuidoras de características musicais bastante próprias.
Essas festas, bem como todas as atividades cotidianas da casa de culto de
candomblé queto, estão estruturadas numa hierarquia bastante complexa e muito bem
estabelecida, com cargos, funções e normas de comportamento, como também já foi
comentado anteriormente. Esta hierarquia reflete-se na roda dos devotos, que é a base
da prática ritual da festa.
No barracão, posicionam as figuras fundamentais da festa, os alabês, que é
como se denomina cada um dos encarregados de tocar os tambores do trio
característico do candomblé, os atabaques denominados rum (o maior, mais grave e o
solista) rumpi (médio) e lé (ou runlé em alguns registros, o menor de todos),
juntamente com um executante do gã ou agogô, idiófono de campanas de metal (uma
e duas, respectivamente)2. É característica diacrítica do candomblé queto o uso dos
“aguidavis” ou “aquidavis”, varetas de galhos de árvore utilizados para percutir os
atabaques. Quase todos os toques desta modalidade de candomblé são tocados dessa
forma. O único que é tocado com as mãos, sem o uso dos aguidavis é o “jexá” ou
“ijexá”, ritmo bastante conhecido e disseminado por sua utilização e adaptação em
canções populares e durante o carnaval nos blocos de afoxé. Quanto ao uso dos
aguidavis, podemos observar que seu uso é duplo para a execução do rumpi e do lé,
mas que o alabê que toca o rum utiliza apenas um, percutindo a outra mão
2 Sobre o uso desse instrumento, o que se observa na maioria dos candomblés é a
utilização do agogô industrializado, facilmente encontrável em lojas de instrumentos musicais, tocado apenas em uma das campanas.
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diretamente no couro. A esse quarteto instrumental rítmico, executando uma grande
diversidade de toques, somam-se as vozes que entoam igual ou maior diversidade de
cânticos, sempre na forma de cânticos “puxados” por um solista com resposta
coletiva do grupo, para louvação dos orixás.
Figura 1: o trio de tambores do Ilê Alaketu Omo Oyá Asé Osun. Da esquerda para a direita: lé, rumpi e rum.
No entanto, dentro da estrutura do grupo percussivo ainda há uma organização
interna bastante própria que vale a pena destacar:
“E nessa cerimônia que é feita dentro do barracão, do ilê, dentro do barracão, o ogã canta, os alabê vai tocar... aí, pra o orixá chegar, é cantado, é tocado dentro do rum, rumpi e lé. Sendo que o rum é o que comanda a batida, mas... o orixá chegar, aquele que bate, que faz a chamada, que bate forte que é pra... é esse que comanda mais a batida. É o que dobra, é o que corta. Aquele que faz a função de... como fosse assim... dá o sinal que o orixá tem que chegar.” (Marcos d’Ogun)3.
Como podemos concluir, a função do rum é primordial, tanto na estruturação
dos elementos musicais como na própria relação propiciatória que se estabelece entre
música e transe. Quanto a isso, ainda destacamos dois elementos que faltam para
completar essa paisagem sonora: os adjás, espécie de sineta que principalmente os
pais e mães-de-santo e outros ebomis (iniciados com mais de sete anos de iniciação)
agitam num constante efeito sonoro que no preceito da religião propicia a chegada
dos orixás.4 E o paô, as palmas ritmadas que saúdam a chegada destes e sua entrada
no barracão.
3 Marcos D’Ogun, entrevista concedida em 18/01/2006. 4 “Quando o transe custa para se produzir, sacerdote ou sacerdotisas agitam o adjá junto ao ouvido das filhas-de-santo que dançam, e não é raro que, importunada por esse ruído agudo e alucinante, a divindade se decida a montar em seu cavalo.” (Bastide, 2001:35).
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Ainda sobre alguns aspectos não musicais, os atabaques passam por uma
preparação ritual que inclui desde a preparação do couro até a própria sacralização
dos tambores, dentro dos procedimentos da religião: Lody e Sá (1989: 26) comentam
que “a cerimônia de ‘dar de comer aos atabaques’ acontece no interior do terreiro de
candomblé, sendo prática assistida apenas pelos iniciados mais graduados, incluindo-
se o grupo de instrumentistas”.
Tais observações feitas pelos autores a partir de pesquisas realizadas
principalmente na região do Recôncavo Baiano valem para as práticas dos terreiros
de candomblé em geral e para o caso local, cujos instrumentos se podem ver nas
figuras 1,3,4 e 6. Essas observações também atestam a importância da música na
ordem ritual e a posição de seus tocadores, os ogãs alabês, na hierarquia da religião e
na sua estrutura organizacional.
E é quando esse conjunto de múltiplos elementos articulados se manifesta que
a religião atinge um dos seus pontos altos. Pois ela baseia-se na crença no axé, a
energia vital, a força espiritual que reside na natureza, nos objetos sagrados e de que
os orixás são portadores e irradiadores para os devotos e a assistência. Portanto, a
chegada, a “presença” dos orixás é sempre um momento de muito axé, expresso na
forma de que sons, musicais ou não; cores, paladares, coreografia, ornamentos e
vestuário; enfim: todos os elementos que compõem a totalidade percebida pelos fiéis
como sendo a presença do orixá e seu axé. A seguir, alguns desses elementos em sua
representação fotográfica. As fotos constantes neste capítulo foram tiradas na festa de
Ogum, realizada no dia 30/abril/06.
Figura 2: O orixá Ogum.
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Figura 3 O xirê no Ilê Alaketu Omo Oyá Asé Osun. Ao fundo, os alabês.
O XIRÊ COMO PARTITURA.
Como já vimos anteriormente, o xirê é basicamente uma ordem ritual a ser
seguida, uma seqüência de manifestações dos orixás e dos respectivos procedimentos
rituais. Essa seqüência é pré-estabelecida, embora possa haver variações regionais,
de casa para casa e mesmo algumas alterações devidas a imprevistos como, por
exemplo, a chegada de um visitante ilustre ou alguma solicitação do orixá fora do
costumeiro.
“Não significa que na casa de outras pessoas seja a mesma coisa. Pode se cantar o mesmo xirê, mas com finalização diferente. É o costume da casa. Entendeu? Cada reino com seu reinado. Entendeu? Então essa é a diferença, mas geralmente, noventa por cento é igual. O xirê tem que ser igual. Não muda, nesse sentido. É Ogum ajô... Oxalá.” (Marcos, jan./2006).
No caso estudado então, tendo a cantiga “ogum ajô” como abertura e a
celebração ao orixá Oxalá como sua finalização, o xirê faz entre uma e outra a
louvação a todos os orixás cultuados.
Antes do início da festa, realizam-se alguns ajustes no barracão. Limpeza,
colocação de cadeiras e complementação da ornamentação com mais alguns mariôs
(ornamentos de folhas de dendezeiro, num ritmo de trabalho comunitário, liderado
pelas orientações do babalorixá. Aos poucos, as pessoas vão chegando e formando
uma “platéia” bastante heterogênea no que diz respeito à relação com o culto. Desde
meros curiosos com expressão perplexa a parentes e amigos de integrantes da roda-
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de-santo, um pouco mais integrados ao culto, os expectadores vão ocupando os
lugares a eles destinados no barracão.
Figuras 4 e 5: a assistência no barracão. Reparem nos mariôs, separando um espaço do outro.
O xirê se inicia e vai durar bastante tempo, aproximadamente umas três horas
de dança, música e transes, entradas e saídas dos vários orixás e chegadas de
visitantes, etc. até o ajeum, a refeição coroando o final da celebração, já num clima
mais relaxado que permite inclusive o acompanhamento por algumas cervejas e
refrigerantes à deliciosa feijoada, comida de Ogum, para o caso de festas em
homenagem a este orixá. O que se pode acrescentar, a partir da observação desta
festa, é como música e ritual se relacionam durante este roteiro sagrado, esta espécie
de libreto que recria e reconta exaustivamente as narrativas míticas já há muitas
décadas (e séculos) e gerações de povo-de-santo. Mas que não parece esgotar nunca
as possibilidades de interpretação da vida diária, dos desígnios dos orixás e dos
diferentes destinos de cada devoto.
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E parece também não haver um momento sem música, pelo menos desde a hora em
que o primeiro orixá é “convidado” a chegar à festa até quando se “canta para subir”
para o último deles
O xirê é constituído por várias “saídas”, ou seja, momentos específicos assim
denominados em que o orixá sai de dentro da casa para o barracão e que são
importantes por “marcar sua presença” na festa. Vindos de dentro da casa, dos
quartos-de-santo, do ponto de vista da assistência e dos alabês o que se vê é o grupo
entrar no barracão (foto 10), obedecendo a ordem hierárquica do terreiro. Em cada
uma dessas saídas, portanto, a roda forma-se seguindo a mesma lógica: os mais
velhos de santo (os ebomis) vão na frente (sendo que, à frente de todos, a mãe-de-
santo, a ialorixá, agitando o adjá), seguidos pelos “noviços e noviças” da religião,
o(a)s iaôs.
Figura 6: A “saída”. O grupo adentra o barracão, seguindo a hierarquia do terreiro.
Por ser sempre um momento marcante na festa, seus elementos musicais
também são bastante expressivos. Dá-se início ao xirê, com os tambores marcando
lentamente um pulso que termina num espécie de rulo de todo o grupo instrumental,
incluindo adjás e paôs (palmas ritmadas) por algumas repetições5.
O babatebexê (encarregado de puxar as cantigas) ou, como no caso em
questão, um alabê, irá dar a primeira chamada da cantiga para Ogum, “ogum ajô”,
iniciando o xirê. Essa cantiga “ogum ajô”, é entoada, na pausa que se abre logo após
5 Este procedimento, conhecido como “dobrar os couros” é muito comum também para reverenciar convidados ilustres (um pai-de-santo importante, etc.) e pode ocorrer também no meio da cerimônia, no momento da chegada de tal pessoa.
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o último rulo de tambores, palmas, adjás e outros elementos que compõem a massa
sonora no barracão:
Este é o início da cerimônia. A mesma “peça” num outro contexto, ou seja,
uma outra festa do mesmo ilê, em outra ocasião, apresenta um quadro rítmico mais
definido. Suas variações, embora estejam presentes, ainda são bastante homogêneas
em relação ao motivo original. Pode se argumentar que por ser justamente uma
“peça” introdutória, de um momento ritual de início de festa, ainda não se fazem
necessários os “cortes” enérgicos do rum e mesmo variações mais intensas dos outros
tambores.
Este não é certamente o caso da próxima “cena” que vamos descrever. Ela é
um trecho já avançado do xirê e esse salto se justifica para mostrarmos um momento
de muita efusão ritual. É justamente uma das últimas saídas do orixá Ogum, quando
ele já está todo vestido com seus paramentos, a chamada “saída rica”. É executado
com um toque de grande energia, a ramunha e, além de ser um momento de muito
axé é uma etapa do xirê em que muitos filhos “viram” no santo. O orixá já está no
barracão e cumprimenta, abençoa os presentes. Algumas vezes, dirige-se até a porta
de saída, no que é acompanhado por um assistente, que sugere gestualmente evitar
sua ida para a rua. Após voltar para o espaço da roda, emitindo sons guturais como
resmungos e similares (“uhn!; oro!; ih!”) o orixá posiciona-se de frente aos alabês,
que iniciam o toque instrumental da ramunha, para que o grande homenageado da
festa possa dançar. Enquanto ele dança, além dos cortes e variações bastante
acentuados dos tambores, conforme a transcrição a seguir mostra, os gritos com a
saudação “ogunhê” também imprimem energia à celebração. E assim prossegue, até
que o alabê faça uma “chamada” rítmica para a finalização. Este tipo de estrutura é
característica de várias das formas de execução musical afro-brasileiras (as
“chamadas” do samba são exemplos bastante característicos delas) em que algum
instrumento executa, com destaque em relação aos outros, uma frase rítmica que é
reconhecida pelo grupo como indicação da finalização da execução.
“Tem uma chamada que ele bate, quando... geralmente ele bate, o pessoal já sabe que vai finalizar aquele momento daquela cantiga. Pra passar pra outra.” “É automático, quem ‘tá na religião já sabe, quando bate: ‘não; vai terminar’. Pessoa já sabe. Entendeu? Só que é assim: nem sempre tudo... cada casa... pode ser que na minha casa... o pessoal ‘tá acostumado com a minha casa sabe quando: uma batida, o pessoal sabe que vai terminar, uma batida sabe que vai começar. Não significa que na casa de outras pessoas seja a mesma coisa. Pode se cantar o mesmo xirê, mas com finalização diferente. É o costume da casa. Entendeu? Cada reino com seu reinado.” (Marcos, 2006)
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Buscamos, através dessas descrições ilustrar as características mais marcantes
da relação entre música, devoção e ritual, entendidas como uma performance de
recriação das narrativas míticas, com grande importância, como se viu, para a devida
prática religiosa, que, esperamos, seja uma contribuição aos estudos de performance
como um todo.
BIBLIOGRAFIA
AMARAL, Rita. 2002. Xirê! O modo de crer e viver no candomblé. Rio de Janeiro:
Pallas; São Paulo: EDUC.
BASTIDE, Roger.2001. O Candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras.
BRUMANA, Fernando e MARTINEZ, Elda G.1991. Marginália Sagrada.
Campinas: Editora da UNICAMP.
LODY, Raul e SÁ, Leonardo. 1989. O Atabaque no candomblé baiano. Rio de
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PRANDI, Reginaldo. 2001. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras.
PRANDI, Reginaldo. 2005. Segredos Guardados: orixás na alma brasileira. São
Paulo: Companhia das Letras.
SILVA, Vagner Gonçalves da. 2000. O antropólogo e sua magia: trabalho de campo
e texto etnográfico nas pesquisas antropológicas sobre religiões afro-brasileiras.
São Paulo: Edusp.
SILVA, Vagner Gonçalves da. 2005. Candomblé e Umbanda. Caminhos da devoção
brasileira. São Paulo: Selo Negro.
VERGER, Pierre. 2002. Orixás deuses iorubás na África e no Novo Mundo.
Salvador: Corrupio.
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Jorge Luiz Ribeiro de Vasconcelos (Campo Grande, MS, 1961) é graduado em
Música Popular, Mestre em Artes e doutorando em Música, pelo Instituto de Artes da
UNICAMP. Tendo trabalhado no SESC SP (Coordenador do Centro de Música Vila
Mariana, Coordenação do Teatro SESC Santos, etc.) até julho/07, participou por esta
instituição da organização dos I e II Encontros de Música e Mídia, em 2005 e 2006.
Contato: [email protected]