IMAGENS DO SERTÃO - uefs. · PDF fileRubens Alves Pereira* ... os quatro pontos do...
Click here to load reader
Transcript of IMAGENS DO SERTÃO - uefs. · PDF fileRubens Alves Pereira* ... os quatro pontos do...
IMAGENS DO SERTÃO
Juraci Dórea e Guimarães Rosa
Rubens Alves Pereira*
Espaço e tempo são duas dimensões que, na base da percepção fenomenológica,
compõem o lastro de uma antiga discussão em torno da relação entre as artes.
Inicialmente buscava-se distinguir aquelas que se caracterizariam pelos signos
articulados no tempo (os sons das “artes temporais”, como música e poesia) das que
eram formadas pelos signos justapostos no espaço (massas, figuras e cores das “artes
espaciais”, como pintura e escultura). Umas melhor representariam objetos que se
seguem no tempo (ações), enquanto as outras fixariam melhor objetos justapostos no
espaço (corpos).
Da Antiguidade Clássica vêm as primeiras importantes reflexões sobre esta
fecunda relação entre as artes: Simônides de Ceos (556-469 a.C.), há cerca de 500 anos
a.C., criou a famosa frase que viria a ser divulgada por Plutarco (46-120 a.C.) – “A
pintura é uma poesia muda, a poesia é uma pintura que fala”. Quase 500 anos depois de
Simônides, Horácio (65-8 a.C.), em sua Arte poética, professa o não menos famoso
aforismo: Ut pictura poesis (“poesia é como pintura”). Aceitas ou contestadas, estas
frases balizaram por muito tempo a discussão entre as “artes espaciais” e as “artes
temporais”. A reflexão contemporânea se abre em inesperadas facetas, seja por conta da
explosão de signos intersemióticos, seja pelos descentramentos que os referenciais
humanos e científicos vêm sofrendo de forma incisiva na percepção do tempo e do
espaço vitais e, em especial, no que diz respeito às imbricadas relações espácio-
temporais no universo sígnico e expressivo das artes.
É preciso observar que, como diz Jean-Louis Schefer, “a imagem é o nome de
uma unidade perceptiva e semântica sem componentes sêmicos próprios, ou ainda:
cujos componentes são inteiramente retirados de outros sistemas”1. Ler imagens,
portanto, é por natureza uma operação intersemiótica, com as suas inerentes defasagens
entre as linguagens. Não menos problemático é traduzir em imagem o que se apresenta
originalmente como texto. A imagem, no texto, tem suas especificidades e, por isso, não
se reduz a um duplo da imagem visual. Na ilustração de textos literários, o signo
1 Schefer, Jean-Louis (1970). “L’image: les sens ‘investi’”. Comunicatons, Paris: Chahiers, n. 15, p.
210-221. Apud César Guimarães, 1997.
pictórico tende a um sistema específico de codificação e de significação, nunca se
rendendo inteiramente ao texto que ilustra.
No contexto dessas relações diretas, mas também transversas, entre texto e
imagem, pretendo discutir o regime poético e estético-filosófico de dois autores ligados
à cultura sertaneja e às vanguardas artísticas: o escritor João Guimarães Rosa e o artista
plástico Juraci Dórea. Investigamos a maneira como cada um articula suas produções
num cruzamento de signos expressivos e intersemióticos, envolvendo, respectivamente,
dimensões icônicas no texto e projeções narrativas na linguagem plástico-pictórica.
Verifica-se, em ambos, processos discursivos que buscam modular sentidos, posicionar
desejos e dar intensidade existencial (poética, dramática, sócio-cultural, histórica etc.)
ao mundo-sertão, ao tempo em que incorporam e redimensionam conquistas formais e
expressivas da modernidade artística.
Podemos dizer que o Sertão se projeta num espaço/tempo cujas potencialidades
humanas e os contextos ambientais têm sido realçados por várias formas de expressão
artística e por inúmeras representações míticas e históricas. Entrechoque de ficção e
realidade, de narrativas e imagens proféticas ou poéticas, de lutas e alucinações, o
Sertão aparece para Guimarães Rosa e para Juraci Dórea como um topos específico que
nos propõe imprevistas travessias no mar imenso dos seres e na geografia da vida.
As trajetórias desses dois artistas são marcadas por uma experiência intrínseca
ao Sertão. Eles trazem em seus gestos forte investimento pessoal, traduzido em
presenças prolongadas, recorrentes viagens e pesquisas de campo. Tem-se, em ambos,
cumplicidade e experimentos estético-filosóficos. A empatia para com as coisas do
Sertão, em suas diversas configurações, manifesta-se claramente nas obras e também
nas biografias existenciais e intelectuais de Guimarães Rosa e Juraci Dórea.
JURACI DÓREA
Artes e arquiteturas, vivências do sertão
Juraci Dórea nasceu em Feira de Santana (15/10/1944), onde reside, cidade
limite entre o litoral e o agreste ou, como é intitulada, Portal do Sertão. Caracterizado
por uma multiplicidade de interesses no campo das artes, além da arquitetura, Juraci tem
importantes trabalhos envolvendo pintura, escultura, fotografia, desenho, programação
visual e ensaio literário.
Enfocaremos trabalhos ligados ao Projeto Terra, uma iniciativa premiada em
concurso da Fundação Cultural do Estado, através do Museu de Arte Moderna da Bahia,
em 1982, e que se desdobra ainda hoje.
Fruto de longa experiência existencial e artística de Juraci Dórea no universo
sertanejo, o “Projeto Terra”, em sua primeira etapa e que dimensiona a filosofia básica
da proposta, levou a várias localidades do sertão baiano esculturas feitas com couros e
estacas, quadros em carvão e tinta sobre tela ou sobre placa de madeira, e pinturas de
murais em paredes de casas. Tudo isso foi registrado em fotos e em fitas cassete, com
gravações de pronunciamentos dos sertanejos do local em reação aos inusitados objetos
de “arte” ali construídos e/ou expostos. Como diz o jornalista José Carlos Teixeira,
Juraci Dórea busca “penetrar os mistérios do mítico universo sertanejo”, e prova disto
são
os quatro pontos do sertão baiano por ele escolhidos para desenvolver a proposta do „Projeto
Terra‟: Feira de Santana, a porta do sertão; Monte Santo, com seu referencial místico;
Canudos, palco da tragédia do Conselheiro; e o Raso da Catarina, inexpugnável refúgio dos
cangaceiros. Todos eles concentradores dos mais fortes referenciais da formação da cultura
sertaneja (Teixeira, in Dórea: 1985).
Numa segunda etapa, Juraci Dórea compôs uma espécie de memorial do Projeto
Terra, o qual passou a ser exposto em galerias e divulgado em livros, tanto no Brasil
como no exterior: participou das bienais internacionais de São Paulo (1987); de Veneza,
Itália, para a qual foi escolhido como um dos dois únicos representantes do Brasil em
1988, e de Havana (1989). Merece destaque ainda a exposição de fotografias do Projeto
Terra, no Hall de la Presidence de la Université Paris 8, France, em outubro de 1999,
evento que aconteceu paralelamente a um Seminário acadêmico para discutir o Projeto
Terra, contando com a participação de estudiosos do Brasil e da França. Nesse mesmo
ano, foi realizada em Paris uma exposição de pinturas das séries Fantasia Sertaneja e
Histórias do Sertão, nos meses de outubro e novembro.
Documento, força e monumento
Característica fundamental do Projeto Terra é a proliferação de perspectivas
teóricas e expressivas, a profusão de espaços e tempos propícios à interpenetração de
redes e enredos: Terra subverte os espaços tradicionais de arte, movendo-se em direção
às entranhas inóspitas do sertão e daí, às galerias, museus e espaços públicos
privilegiados; Terra transgride estratos sociais, articulando-se com o erudito e com o
popular, multiplicando os sujeitos envolvidos no processo criativo, cruzando leitura e
produção em níveis diferenciados; Terra desloca valores simbólicos e culturais,
admitindo a crítica especializada, a opinião balizada, cosmopolita; antes, porém,
internalizando o olhar rude, direto e certeiro do povo simples, sertanejo, vivente das
plagas interioranas.
Como disse o jornalista José Carlos Capinan, comentando o símbolo maior do
Projeto Terra (as armações em estaca e couro), trata-se da escultura que não entra em
salão, embora lá já estejam similares da vanguarda experimental. Expor ou expor-se
ao sertão, às consultas diretas da natureza... (Capinan, in Sertão Sertão, 1987,
“orelha”). Ainda nas palavras de Capinan, vemos um afirmativo e paradoxal movimento
poético do Terra: Juraci tira sua pele, estende em varas e fica esticado ao sol e à
chuva, a suportar sobre o conceito da arte os ferrões, os venenos, o pó, o fogo, e a
necessidade humana de se reproduzir em beleza (id., ibid.).
Juraci percorreu, com esse trabalho, caminho inverso ao das obras de arte,
primordialmente destinadas a galerias ou a espaços públicos privilegiados. Ele opta
inicialmente por dispor suas esculturas nos ermos sertões e expor seus quadros no
ambiente popular das feiras livres, sobretudo nas pequenas cidades do interior baiano.
Nesse empreendimento poético radical, levou esculturas em couro, quadros e murais a
várias localidades do sertão baiano, registrando em fitas e em fotos as instalações e a
imprevista reação do público local. Assim, a obra incorpora o seu público e motivo
primeiros, fazendo com que documento e monumento conformem-se num mesmo
campo representativo e simbólico.
Já na década de 70, Juraci começa a trabalhar com couro, quando surgem os
“Estandartes do Jacuípe” e as “Cancelas” (figuras 1 e 2). Também por essa época sua
pintura explora, com um certo maneirismo, a temática do vaqueiro inscrita entre duas
forças que se apresentam antagônicas em Feira de Santana: a tradição boiadeira e o
desenvolvimento industrial e comercial da cidade, tensão esta claramente exposta nos
dois murais do Mercado Municipal da cidade. Num dos murais gravados em azulejos,
vê-se uma cena no mínimo ambígua, que tanto poderia ser lida como uma representação
da tradicional feira livre da cidade, com jacas, mulheres segurando panelas de barro e
animais trazendo mercadorias em suas pesadas cangalhas, como poderia ser vista
enquanto representação simbólica de um ciclo de vida rural agonizante: figuras de
animais com pescoços retorcidos, ao fundo da cena, à maneira de seres maculados pelos
ventos do “progresso” (em Guernica, de Picasso, animais semelhantes evocavam os
horrores da guerra), ventos que também agitam as cabeleiras de terríveis damas que
estariam sustentando fábricas no colo (figura 3). No outro painel, laureado por um
imenso sol, o cosmo do universo do couro eleva-se na figura de um vaqueiro
paramentado, em seu cavalo, no típico gesto de luta com uma rês desgarrada que,
invisível, contracena com ele, enquanto no campo visível o boi que aparece já é um ente
na sua plenitude simbólica – o Boi-Bumbá do folclore nordestino brasileiro, presente
nos folguedos populares com sua dança, seu canto, suas máscaras e marcações de cenas
(figura 4).
Os aspectos narrativos e alegóricos que marcam essa fase, sobretudo na pintura,
vão sofrer um profundo corte epistemológico com o Projeto Terra. Neste, Juraci Dórea
radicaliza ao extremo sua linguagem e sua visão poética do Sertão. Com suas formas
rústicas, compostas de elementos primários como madeirite, carvão, couro cru e estacas,
ele tanto traduz e tensiona cenas do cotidiano sertanejo, como abre espaços para um
tempo mítico, imemorial. Tais processos podem ser objetivados na seguinte seqüência
de obras ou eventos inerentes ao Projeto Terra:
1 – Quadros expostos no meio da feira do povoado da Pedra Vermelha, a 25
quilômetros de Monte Santo, na Bahia; e na Rua dos Romeiros, escadarias do santuário
da Santa Cruz, em Monte Santo; fotos que registram esses eventos e gravações com
posterior publicação de depoimentos de populares a respeito das “obras de arte”: no
contexto das fotos e depoimentos, que extrapolam a condição de meros registros para se
transformarem em peças do Projeto Terra, observa-se claramente que os quadros
propõem uma narrativa que procura inserir-se no contexto do mundo narrado,
simultaneamente texto e contexto de uma história presente, processando-se por atos
reflexos em que obra e público se reconheceriam, se nomeariam mutuamente. Num
primeiro plano dos quadros, apresentam-se figuras sertanejas proeminentes, com gestos
estáticos, como se o fluxo ordinário da vida fosse suspenso no momento exato de um
estado de espírito elevado ou da singularidade de um ato, que vai do tonus enérgico da
ira, ao enlevo fruitivo do namoro. Ao fundo, um mundo em ebulição, num jogo de
formas e símbolos que se afirmam pela diversidade de referências históricas, míticas e
expressivas. A dinâmica de forma e fundo é bastante peculiar e aparentemente
paradoxal, pois afirma simultaneamente dimensões distintas da vida sertaneja, como o
gesto individual e as referências coletivas, o plano psicológico e o contexto
antropológico (figura 5). Permutam-se, nesse movimento performático, corpo e espírito,
o pontual e suas virtualidades. O que num momento é estático, o abismar-se do gesto
definitivo, que se ilumina ao se congelar numa fração irredutível de tempo e de vida,
noutro instante, deixa-se vazar pelos enredos e credos socioculturais que fervilham ao
fundo e emergem ao centro simbólico do quadro.
2 – Foto da “Escultura da Lagoa das Bestas”, produzida no povoado de Saco
Fundo, a 30 quilômetros de Monte Santo. Juraci Dórea, 8 de setembro de 1984 (figura
6, in Dórea, Projet Terre, 1999). Tomo a foto não como mero registro da escultura,
antes como peça artística que é, integrante do Projeto Terra, com sua radicalidade
expressiva e sua identidade simbólica próprias. A foto interage com a escultura,
registrando-a em situação: sugestivamente ladeada por uma criança e uma velha, num
cenário de caatinga seca cortada por um pequeno espelho d‟água da “Lagoa das Bestas”,
tendo ao fundo um casebre típico da pobreza que assola a região.
A narrativa inerente a esta fotografia, se há, pode ser situada numa dimensão
simbólica que transcende o valor anedótico da referência circunstancial (pessoas em
torno de uma determinada obra). Atualiza-se nesta imagem a percepção de um espaço
concêntrico em torno da armação em couro e estaca; e de um tempo forte que conjuga
história e mito, tempo inscrito na imemorial paisagem rústica e em nosso próprio ciclo
existencial configurado no movimento circular da velha e da criança. O espaço físico,
com sua vegetação rústica, seca e rasteira da caatinga, com a água barrenta e o casebre
ao fundo, conjuga-se na composição da escultura, tosca e remendada em couro e estaca,
remetendo a um tempo que a tudo gera e devora, num inexorável ciclo que acolhe a
criança empurrando a roda e a vida em volta do monumento, como se fosse ao encontro
de uma velha, no lado oposto.
Em direção à criança, do centro da armação em couro cru, projeta-se uma
madeira preta que mais parece um braço estendido com uma mão fazendo sinal de
positivo para a criança que gira na inocência do seu momento lúdico. Por sua vez, a
velha senhora, com a mão direita, equilibra uma lata d‟água na cabeça, como a suportar
no alto da idade, a escassez de recursos e o peso do mundo. Com a mão esquerda,
sustenta suas vestes, tentando concertar o desarranjo dos panos, da pessoa e da própria
paisagem. Se o rosto da velha traz a expressão grave da idade na contemplação da
escultura, cobrando-nos uma atenção direcionada simultaneamente para si e para o
objeto contemplado, é na sua mão esquerda que sou ferido por aquilo que Roland
Barthes designa como “ponto sensível” de uma foto e que “salta da cena, como uma
seta, e vem trespassar-me”, ou seja, o “punctum”, palavra que tanto pode designar
“pontuação”, como “picada, pequeno orifício, pequena mancha, pequeno corte – e
também lance de dados. O punctum de uma fotografia é esse acaso que nela me fere
(mas também me mortifica, me apunhala)” (Barthes, 1989: 46-7). Para além das
“intenções do fotógrafo”, que podem ser mapeadas pelo que Barthes chama de studium,
olhar dirigido por uma vontade narrativa, cintila o punctum, a aleatória e cortante
presença de algo que rouba a cena da nossa subjetividade. Na foto de Juraci Dórea em
destaque, a mão esquerda da velha salta ou assalta nossos olhos num gesto imprevisto,
que recompõe os panos da saia ao tempo em que busca apreender a compostura de um
mundo em farrapos.
Se a criança inscreve-se no quadro como puro movimento, cuja energia vital
precede ao rosto ou à expressão, que permanecem ocultos, a figura da velha em andrajos
traz as marcas profundas da escassez e, ao mesmo tempo, a espessura de uma vida que
se plenifica no próprio desamparo, corpo-memória encarnado e disperso num tempo
imemorial.
O crítico Alberto Manguel, em seu livro Lendo imagens, observa que as raízes
latinas de Memorial e Monumento remontam à deusa grega da memória, Mnemosine,
por isso, “todos os monumentos trazem tacitamente a inscrição: „lembre-se e pense‟”
(Manguel, 2001: 273). Para além do aspecto documental e narrativo, esta obra de Juraci
inscreve-se como monumento de um tempo e lugar do sertão que gesta seus mistérios,
que renova a vida nos círculos do desamparo. Todo monumento, diz ainda Manguel, é
um ponto de partida para uma pergunta. Nessa composição do Projeto Terra, resume-se
uma memória sem data a nos perguntar pelo sentido da existência.
3 – Tomemos as citações:
Parece assim, uma coisa assim, assim mais ou meno um sinal, num é? Assim pur ixemplo,
assim uma coisa qui as veiz vem pelo ar, pelo alto. Assim, mais ou meno assim, dano
alguma visão.
(Depoimento de Manuel Ferreira, 31 anos, ante a Escultura N. 07, às
margens do rio Vaza-Barris, próximo à antiga Canudos. Dia 13 de outubro
de 1984. In Juraci DÓREA, 1987: 27).
Parece muita coisa. Parece um morro. Parece uma armação duma coisa assim. Mais eu num
tô sabeno memo o significado direito.
(Genival, Raso da Catarina, em 16/09/1984. . In Juraci DÓREA, 1987: 24).
No depoimento acima, vê-se que Manuel Ferreira tateia a linguagem em busca
de uma narrativa para o imponderável objeto conceitual que se oferece ao seu olhar. Por
sua vez, Genival busca no seu horizonte de referências modelos de leitura e acaba por
admiti-los insuficientes. Claro está que os sertanejos não detêm os códigos que orientam
aquele objeto de arte, embora ele seja feito de material elementar no seu cotidiano.
Contudo, os dois depoentes procuram superar esta espécie de “vácuo semiótico” que,
segundo Alberto Manguel, se instaura perante um monumento descontextualizado,
desprovido de referência, memória ou autoridade.
“Parece assim...”, “Parece muita coisa...” Manuel e Genival parecem situar-se
num espaço discursivo de encontro-confronto com o inusitado evento produzido pelos
artistas de fora, ali investidos da autoridade intelectual que os caracteriza, sobretudo
perante gente simples do interior. Dá-se o encontro, marcado pela sedução do objeto
que, em sua estranheza, traz as marcas da região, e pela presença amistosa dos artistas
da cidade grande. Segue-se o confronto, marcado pelo desconcerto de uma situação
desafiadora, à maneira de um enigma que se quer decifrado: um evento sócio-cultural,
uma armação em couro e estaca, uma escultura, um monumento referendado por
códigos estranhos e diferenciadores das práticas locais. Desse encontro-confronto,
modulam-se os seduzidos olhares: de admiração, de espanto, embevecimento, de
inquirição e, no limite, de desconstrução:
É... ali tá... tá bunito. Tá pariceno uma minina muderna.
(Elias Rodrigues dos Santos, 55 anos, localidade de Tapera. Dia 9 de agosto
de 1987. In Juraci DÓREA, 1987: 36).
Bom... passô um lá na istrada... Se desservá de lá, pára e ispia... o q‟é aquilo?
(Bisão, 55 anos, localidade de Tapera. Dia 9 de agosto de 1987. In Juraci
DÓREA, 1987: 36).
Eu to achano decente, bunito, num é? Acridito qui seje um mei‟ de vivê. Qué dizê, qualqué
uma coisa é arte, num é? Se eu nom tenho profissão nenhuma, trabalho na inxada, qué dizê
q‟é minha arte.
(José Evaristo, 49 anos, São Pedro, a 26 km de Monte Santo. Dia 10 de
fevereiro de 1985. In Juraci DÓREA, 1987: 32).
Acho qui parece cum vaquêro incorado. Num faiz medo. A gente vê uma coisa dessa aí,
num faiz medo. No sertão a gente tá custumado a vê muitas coisas.
(Evaldo Pereira, 14 anos, Canudos. Dia 13 de outubro de 1984. In Juraci
DÓREA, 1987: 27).
Isso aí, fazen‟ mer‟ q‟istóra... boto aí pra, as veiz, pra quem vê, perguntá: pra qui é, pra qui
num é? Agora, fazen‟ mer‟ q‟istóra, eu tô falano, mais num é de minha conta.
(Um vaqueiro, Bonfim de Feira. In Juraci DÓREA, 1987: 26).
Registrados e publicados, os depoimentos criam um particularíssimo espaço de
configuração da obra de Juraci Dórea, dimensionando a sua inserção na radicalidade do
universo sertanejo. A obra de Juraci enovela-se na fala viva e cortante daquela gente
simples. Com isso, mais uma dobra se impõe no corpo-sertão do Projeto Terra,
auferindo-lhe uma imprevista aura de autenticidade e impondo-se como um dos seus
materiais básicos.
A explicação pontual e muitas vezes aparentemente truncada, por parte dos
sertanejos, ganha uma dimensão complexa e sofisticada quando aferida no contexto de
culturas e códigos diferenciados. O sertanejo, que não se dá por vencido ante as
solicitações do inusitado evento artístico, aciona seus códigos e valores para o diálogo,
o qual é marcado por um esforço de recontextualização filosófica e existencial:
Isso aí é arte, é arte e nom é dos mais disvalorizado. Ave-maria, tudo qui nóis trabaia é arte.
Oi, eu trabaio de artista, agora meu arte é cavá chão: ói as unha cumo tão intirtuchada de
chão!
(João Cardoso, 70 anos, ante a pintura do mural na parede da casa de
Edwirges, próximo ao povoado de Saco Fundo, Monte Santo. Dia 25 de
novembro de 1984).
Bom, eu não tenho leitura, tá intendeno? Eu num tenho leitura ninhuma, não leio. Agora,
aquilo ali eu acho qui tem uma grande tioria.
(Manuel Alves, 44 anos, em Canudos, em 13/10/1984).
Se João Cardoso reconhece no seu trabalho de lavrador a mesma dignidade do
trabalho do artista é, em parte, porque ele se reconhece nas narrativas fixadas no mural
pintado na parede da casa de Edwirges. Já Manuel Alves, ante uma das esculturas de
couro e estaca, busca no mais íntimo do seu ser uma justificativa, uma intenção humana
altamente significativa. Que “tioria” seria essa intuída por Manuel? Poderíamos
“tiorizar” como ele sobre a necessidade ancestral que o hemem apresenta de inscrever
sua marca nas paredes do tempo, de registrar sua presença (sonhos, angústias,
necessidades, idéias, valores etc.) na terra, para o olhar de outros homens, no indefinido
das eras.
4 – “Escultura de Utinga”, vilarejo da região do São Francisco, município de
Xiquexique. Juraci Dórea, em 10 de março de 1989 (figura 7, in Dórea, Projet Terre,
1999).
Quando se vem vindo sertão a dentro, a gente pensa que não vai encontrar coisa alguma (...)
(Guimarães Rosa, “Buriti”).
(...) o sertão está em movimento todo-tempo – salvo que o senhor não vê; é que nem braços
de balança, para enormes efeitos de leves pesos.
(G. Rosa, Grande sertão: Veredas).
Só uma verticalização do olhar, conforme sugere o pensamento de Guimarães
Rosa ao falar do Sertão, poderia dar conta de uma leitura dessa escultura plantada no
corredor dos casebres que compõem o vilarejo de Utinga. Se algumas composições
permitem melhor articular sentidos num tempo narrativo, à maneira como Gilles
Deleuze caracteriza, em relação ao cinema, a imagem-movimento, por outro lado,
teríamos nessa obra de Juraci uma espécie de enfraquecimento das situações sensório-
motoras da imagem-ação, projetando uma situação de imagem puramente ótica, ou seja,
algo semelhante ao que o filósofo francês chama de imagem-tempo, a qual torna
sensíveis o tempo e o pensamento.
O monumento composto por Juraci Dórea, também aqui em sua específica
configuração fotográfica, parece solicitar a imersão dos nossos sentidos imediatos na
espessura do tempo e na carnadura da solidão humana ali situadas, no descampado da
rua de Utinga. O bestial sentinela desse abismo de tempo e lugar – um cachorro branco
no cinza da paisagem – parece eternizado na paisagem, tranqüilo e impassível a velar
por este imenso sertão. A escultura de couro e estaca, na sua imponente ancestralidade,
parece ter estado ali desde sempre, fazendo contraponto à árvore solitária do meio do
arraial. Ao fundo, umas poucas figuras humanas anunciam timidamente a vida que
habita aquelas casas simples como o chão batido da rua ou a vegetação rasteira da
caatinga que, mesmo ausente do campo da visão do fotógrafo, em tudo se anuncia,
sobretudo do vazio que a foto materializa. Na quietude da cena, move-se o tempo em
sua concretude, dobra-se a vida sobre si mesma – enquanto o cão não ladra.
Terra é fruto de uma longa vivência do Sertão e de um projeto artístico múltiplo
e continuado. Esse trabalho, em sua face mais específica, vem se realizando desde o
início da década de 1980 e tem como característica marcante um cruzamento de
linguagens e de fatores referenciados pelo universo sertanejo. Fazem parte das
estruturas de criação e circulação do Projeto Terra procedimentos os mais variados:
instalações em couro e madeira pelos sertões; pinturas expostas em diversos espaços
interioranos, como mercados e feiras livres; murais em paredes de adobos; esculturas de
aço em espaços urbanos; fotos e quadros em galerias e museus; vídeos; livros; pôsteres;
catálogos; palestras; seminários etc. Por todos esses deslocamentos, podemos dizer que
o Projeto Terra se articula num não-lugar entre Cidade e Sertão, ou antes: entre padrões
estéticos intelectuais e gestos expressivos informais.
Em 1985 surgiu o primeiro livro, Terra, com registros (fotografias, depoimentos,
ensaios e artigos) do trabalho desenvolvido até então, ao mesmo tempo em que tal
publicação integrava o próprio corpo do Projeto. Em 1987, nova publicação, intitulada
Sertão Sertão, desta vez como material integrante da participação do Projeto na 19ª
Bienal Internacional de São Paulo. Algumas outras publicações têm se sucedido desde
então, incluindo livros, catálogos e folhetos.
Podemos dizer, por fim, que o sertão se faz presente, na obra de Juraci Dórea,
com todas as suas cores, preto no branco, para outras grandes estórias.
GUIMARÃES ROSA
Sertão sertões, entre corpo e linguagem
João Guimarães Rosa (1908-1967), por sua vez, é um dos mais importantes
escritores brasileiros, com obras traduzidas em várias línguas, como inglês, francês,
espanhol, italiano e alemão. Rosa causou grande impacto nos meios literários desde a
sua estréia em livro, com a coletânea de contos Sagarana (1946), tendo se consagrado
com o monumental romance Grande Sertão: Veredas, em 1956, ano também da
publicação de Corpo de baile, conjunto de novelas que depois seriam distribuídas em
dois volumes. Ainda em vida, o escritor mineiro publicaria mais dois livros de contos:
Primeiras estórias (1962) e Tutaméia (1967). Outros livros seriam publicados após a
sua morte.
Os livros definem-se, como bem observa Alberto Manguel, por uma “corrente de
palavras que os encerra, a qual flui do início até o fim, da capa até a quarta capa, no
tempo que concedemos à leitura desses livros” (Manguel, p. 25). Mais do que para
qualquer outro escritor brasileiro, esta afirmativa vale para a obra de Guimarães Rosa,
entendendo o início citado pelo crítico como a própria capa do livro. Rosa acompanhava
o processo de ilustração das capas e de outros espaços (orelha, folha de rosto, índice
etc.), interferindo de forma direta no processo criativo e simbólico de tais ilustrações,
tendo em vista as articulações destas com os textos. Assim, compõe a obra de
Guimarães Rosa um conjunto de marcas textuais, símbolos, sinais gráficos e desenhos
que determinam uma percepção do mundo e da obra como um movimento infinito,
numa impressionante dinâmica de recorrências e transposições de elementos formais,
conceituais e expressivos. Vejamos, primeiramente, as ilustrações.
Sagarana (1946), seu primeiro livro, a partir da quarta edição foi ilustrado por
Luís Jardim, sob o olhar atento do autor (figura 8). Chama a atenção os três círculos da
capa, como a indicar universos holísticos, nos quais unidade e diversidade se
encontram, o uno e o infinito não se excluem.
Em Grande sertão: veredas (1956), além da ilustração de capa, Luís Jardim
elabora com o romancista, para as orelhas do livro, um mapa que, de certa forma,
orienta e propõe leituras para a geografia humana articulada no romance figura 9). Os
itinerários de Riobaldo Tatarana, jagunço narrador e protagonista da obra, já são
delineados pelas orelhas do livro. É interessante ressaltar que o texto do romance se
inicia com a imprecisa palavra-frase (ou palavra-cosmo) “Nonada”, como um som, em
si, pleno, a reverberar sobre tudo que a partir de então compõe o livro. Fechando o texto
de Grande sertão: veredas, mas abrindo o livro, o autor colocou o símbolo do infinito
( ), o qual se repetirá obsessivamente em ilustrações de outros livros seus. Se nada tem
começo preciso, tudo não tem fim, e a Vida se apresenta como travessias.
Enquanto em Corpo de baile (1956) as ilustrações limitaram-se à capa, na
mesma caracterização plástico-simbólica das anteriores, em seu livro seguinte,
Primeiras estórias (1962), o escritor acrescenta uma novidade: além das ilustrações da
capa, que trazem referências a personagens, ambientes, motivos e simbologias da obra
(figura 10), Rosa solicita a Luís Jardim que faça, para cada estória, desenhos-miniaturas
para ilustrar o índice, ou melhor, um segundo índice que seria acrescentado ao final do
livro (figura 11). Com isso, o autor acrescenta uma outra dobra sobre o texto, além das
imagens – um novo índice, como a indicar releituras, infinitamente se espelhando,
sempre em diferença, em devir permanente. O símbolo do infinito está presente não só
na capa, como no título de todas as estórias, exceto em uma, sugestivamente intitulada
“Nenhum, nenhuma”, no qual o personagem-narrador, perdido em suas imprecisas
lembranças, conclui, em determinado momento: “A gente cresce sempre, sem saber para
onde”. O infinito, aqui, é matéria básica da narrativa.
Num último exemplo de intervenção gráfica ou formal no corpo do livro,
vejamos Tutaméia (1967). Aqui, além de duplicar o índice no final, Guimarães Rosa o
modifica significativamente, propondo nova estruturação e novo estatuto discursivo
para quatro textos que, se tidos como contos na ordem do primeiro índice, passam a
figurar como “Prefácios”, neste índice final (figura 12).
É opinião corrente que Tutaméia representa uma espécie de corrida de
obstáculos para a crítica que sobre o livro se debruça buscando respostas. Um conjunto
de dados curiosos faz desse livro, que foi publicado no ano da morte de seu autor, uma
verdadeira proposição enigmática, um quebra-cabeça literário cujas peças não se
submetem à nossa lógica textual, aos nossos segmentados padrões de gênero, às nossas
expectativas quanto aos textos de ficção, teoria e crítica.
Acreditamos que foi imbuído de um espírito lúdico e movido pela força da ironia
e do humor que Guimarães Rosa construiu o assimétrico jogo de espelhos com os
índices de Tutaméia / Terceiras estórias. Assim, no índice do início do livro, escreve
ele:
TUTAMÉIA
(TERCEIRAS ESTÓRIAS)
e logo abaixo, antes de uma relação de 44 títulos de contos em ordem alfabética,
excetuando-se a seqüência JGR (acróstico de João Guimarães Rosa), transcreve um
pensamento de Schopenhauer: “Daí, pois, como já se disse, exigir a primeira leitura
paciência, fundada em certeza de que, na segunda, muita coisa, ou tudo, se entenderá
sob luz inteiramente nova”. No final do livro, provoca Guimarães Rosa com o índice de
um novo livro:
TERCEIRAS ESTÓRIAS
(TUTAMÉIA)
Índice de releitura
Abaixo, uma nova epígrafe com a assinatura de Schopenhauer: “Já a construção,
orgânica e não emendada, do conjunto, terá feito necessário por vezes ler-se duas vezes
a mesma passagem”. Guimarães não fica apenas na mudança de nome do livro, altera-
lhe também o estatuto de seus textos, conferindo a quatro deles a natureza de
“Prefácios” e aos demais, nomeando-os “Contos”, enquanto que no primeiro índice a
falta de classificação lançava-os em indistinto espaço, livres de classificações –
“Tutaméia: nonada, baga, ninha, inânias, ossos-de-borboleta... mea omnia”.
Observamos ainda que as epígrafes não aparecem na página de rosto do livro,
como é comum, mas sim encravadas nos dois diferentes índices, que assim se
apresentam simultaneamente como mapa e território de uma escrita que, ao dobrar-se
sobre si, instaura-se no intervalo significativo do que não pode ser nomeado, posto que
situado no radical processo de recorrência e diferenciação no interior mesmo do corpo
fragmentado. A expressão “Terceiras estórias”, com efeito, não é subtítulo a Tutaméia,
como a crítica em geral costuma designar. Antes, podemos dizer que Tutaméia anuncia
e germina as Terceiras estórias, as quais irão se configurar no final do volume, no
índice de releitura. Tutaméia seria, portanto, as Segundas estórias que o autor nunca
escreveu e também nunca explicou porque saltou das primeiras para as terceiras
estórias, atitude que tem gerado curiosidades e controvérsias.
Em sua aula inaugural no Colège de France (editado no Brasil com o título
Aula), Roland Barthes atenta para o fato de que não existe paralelismo entre o real e a
linguagem, já que a ordem pluridimensional do real não pode ser apreendida pela ordem
unidimensional da linguagem. Essa falta radical, diz ainda Barthes, é que impulsionaria
a literatura, numa busca incessante de superá-la. Esta busca de apreensão do real em sua
diversidade é que, segundo o crítico, caracteriza a verdadeira “função utópica” da
literatura (Barthes, 1978: 22-3).
Na obra de Guimarães Rosa vamos encontrar um amplo regime de imagens e
leituras do mundo que incidem sobre planos do visível e das invisibilidades. Imagens e
leituras, ainda, que recortam espaços mensuráveis do legível e se aventuram pelos
movimentos inesperados de signos múltiplos, em si mesmos abertos e fechados (para
lembramos um verso de Drummond). Citando um pintor chinês, Gilles Deleuze teoriza
que algo só é uma obra de arte se guarda vazios suficientes para permitir que neles
saltem cavalos – quando mais não seja, pela variedade de planos (Deleuze, 1992: 215).
A obra de Rosa caracteriza-se sobretudo por essa liberdade com que o mundo atualiza
seus variados aspectos, liberdade conquistada por um intenso processo de criação
textual.
À margem das cronologias do real com seus territórios e identidades catalogados
pela razão empirista, Guimarães Rosa propõe e dispõe em sua obra percepções
diferenciais, olhares reflexivos, pontos de conversão e inesperadas solicitações
perceptivas e conceituais. Com desconcertante domínio das dimensões narrativas (épica
e dramática) e líricas, o texto de Rosa é marcado por um bem distribuído senso de
humor e por uma ironia própria da modernidade.
O destino se apresenta para Rosa na sua inteira pujança em devir, com seus
liames irredutíveis a uma lógica linear. Nessa perspectiva, podemos dizer com Deleuze
que a arte luta com o caos, mas para torná-lo sensível (id. p. 263). Rosa busca a dicção
singular de cada acontecimento, tensiona a sedução e o perigo do desconhecido,
aventura-se no ilimitado, despe a instabilidade do real em que nos locomovemos,
também instáveis, mutantes – tudo é imantado por uma linguagem em abismo,
multidirecional, que se prima pela confiança na beleza da fala que nomeia e, ao nomear,
cria ou transforma o mundo, escavando virtualidades. Talvez por isso Antonio Candido
tenha visto na obra de Guimarães, desde o primeiro momento (Sagarana), a
emancipação de uma "região da arte" mais do que uma “região do Brasil”2. Ali está a
regeneração, a potência da vida; ali emerge o quem-das-coisas (seu devir artístico), os
vários silêncios que laboram o acontecer do mundo. Neste sentido, podemos dizer, com
Nietzsche, que a arte tem mais valor do que a verdade.
Guimarães, sobretudo, propõe aos seus leitores uma visão de mundo que
contraria a lógica do bom senso (como sentido único) e do senso comum (como
designação de identidades fixas): “Decido? Divulgo: que as coisas começam deveras é
por detrás, do que há, recurso; quando no remate acontecem, estão já desaparecidas”,
diz o protagonista do conto “Antiperipléia” (Tutaméia, 1967), narrador de um enredo
que se desdobra em equívocos, como numa peripécia aos avessos, uma antiperipléia.
Ainda em Tutaméia, escreve Guimarães o conto “Desenredo” que, como o título já
indica, o enredo da vida é aberto e ambíguo, podendo assim sofrer reversões que, para
uma lógica plana, contraria o que se chama comumente de realidade: “Chamando-se
Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu”, nos conta o
narrador com seus espelhos difusores de imagens.
Avulta na obra de Guimarães Rosa uma dinâmica configuração de tempos e
espaços diversos, que facultam, na disposição textual de seres e enredos, variados
processos de mutações, espelhamentos, homologias, simulacros, conversões,
duplicações, dobras, virtualidades etc. Um momento exemplar desse regime de
2 Antônio Candido, “Sagarana”. In: Guimarães Rosa - Fortuna crítica, Rio de Janeiro: Aguilar, p. 244.
imagens-conceituais do escritor pode ser visto no conto “O espelho”, de Primeiras
estórias (1962). “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”, diz o
narrador logo ao final do primeiro parágrafo, colocando em xeque todo um regime de
mundo centrado no visível, nas relações empíricas de causa e efeito.
O narrador nos conta “não uma aventura, mas experiência” levada a cabo por
raciocínios e intuições incomuns acerca da própria imagem e da identidade como forças
mutantes, combinações de diversos vetores, agenciamentos múltiplos. Alertando tratar-
se de “fenômenos sutis”, o narrador reflete sobre o “elemento animal” que se inscreve
na fisionomia de cada homem, e experimenta a desmaterialização progressiva, até o
total desaparecimento da sua imagem no gume do espelho. Em decorrência desse
processo radical de desarticulação dos próprios referenciais físicos, o narrador chega às
questões cruciais daquela narrativa: “[...] despojara-me, ao termo, até à total desfigura.
E a terrível conclusão: não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma?”
(Rosa, 1994, p. 441). E ainda, no desterro do ser, se questiona: “Será este nosso
desengonço e mundo o plano – intersecção de planos – onde se completam de fazer as
almas?” (id., p. 442). Pode-se dizer que “O espelho”, considerado em sua totalidade
expressiva, seria, a exemplo de “A terceira margem do rio”, uma poderosa imagem
conceitual para se discutir a obra rosiana.
Podemos identificar nesse processo de problematização das identidades dos
seres e das coordenadas do mundo uma das mais impressionantes faces do escritor, ou
seja, a sua capacidade de captar as forças ativas e reativas dos acontecimentos.
Guimarães Rosa prima por uma maneira muito original de flagrar a vida nos seus
variados e complexos movimentos, nos seus devires: sertão, jagunço, criança, louco,
burrinho, boi, onça, árvore, poesia, amor, enredo, estória, passarinho ou outra coisa
qualquer que, num relance, se projeta no fulcro da matéria vertente da vida. Neste
sentido, Guimarães Rosa não molda, antes modula o seu universo, pois, como define
Gilbert Simondon, “moldar é modular de maneira definitiva; modular é moldar de
maneira contínua e perpetuamente variável” (Simondon, apud Deleuze, 1991, p. 36).
Em Grande sertão: veredas, obra maior de Guimarães Rosa, flagramos um
mundo em ebulição, com infinitas interfaces movendo os seres, as coisas e o próprio
texto narrativo. Como exemplo, apenas um rápido olhar sobre o locus daquele universo,
o Sertão, conforme aparece nessa e em outras obras do autor.
Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores
perguntas. Tomo este pensamento do jagunço-filósofo-narrador Riobaldo Tatarana,
pensamento certamente forjado em suas incontáveis travessias ao lado de João
Guimarães Rosa, como mote para tratar das imagens, ou miragens, do Sertão – nessa
pequena travessia de leitores.
Ainda com Riobaldo, tentamos nos situar nesta improvável geografia.
O sertão aceita todos os nomes: aqui é o gerais, lá é chapadão, lá acolá é a caatinga (GSV).
Se ainda não podemos dizer que o sertão está em toda parte (GSV), ou além dos
limites da geografia romanesca que ambienta a aventura jagunça no Grande sertão, em
outros momentos afloram novos sertões, ou, dizendo com o narrador rosiano, o sertão é
quando menos se espera. Brusco, o Sertão. Logo, os Sertões. O sertão é sem lugar,
desterritorializa ainda Riobaldo, depois de já ter observado que sertão: é dentro da
gente.
Sabemos da aventura expressiva de Guimarães Rosa, marcada por uma
percepção incomum e amparada numa espantosa concepção de linguagem que o habilita
a nomear o mundo em sua radicalidade, a registrar as vibrações mínimas que definem e
distinguem as coisas e os seres. Quando perguntado sobre as dificuldades de leitura das
suas obras, em grande parte fruto da sua meticulosidade, Guimarães Rosa usava um
argumento que, se o afastava de um possível virtuosismo técnico da escrita, projetava-o
numa espécie de visão vitalista do mundo, num consórcio íntimo com o quem das
coisas, com as virtualidades do real: Eu não escrevo difícil, diz Guimarães Rosa, eu sei
o nome das coisas.
Quando se vem vindo sertão a dentro, a gente pensa que não vai encontrar coisa
alguma, observa o narrador da novela “Buriti”, como a advertir para os assombros do
vazio aparente nos ermos daquele mundo. O que aqui se entrevê, ganha forma na
reflexão de Riobaldo: ...o sertão está em movimento todo-tempo – salvo que o senhor
não vê; é que nem braços de balança, para enormes efeitos de leves pesos (GSV). Rosa,
poderíamos dizer, extrai do acontecimento-sertão as forças moventes de um mundo
primevo, das origens, um mundo dinâmico, ao mesmo tempo múltiplo e singular,
presença virtual e corpo vital.
A radicalidade do vasto sertão rosiano, com suas imagens conceituais e seus
infinitos enredos, torna-se expressão no corpo a corpo do mundo com a linguagem.
Vemos um milagre que faz eclodir falas e fatos até então submersos nas coisas, no
Sertão e nos códigos da língua.
As capas mais recentes dos livros de Guimarães Rosa têm uma forte simbologia
poética. Editados pela editora Nova Fronteira, livros como Tutaméia (6ª ed., 1985) e
Noites do Sertão (8ª ed., 1988), trazem nas capas fortes figuras coloridas em primeiro
plano, que com seus traços rústicos evocam representações primárias e encenam
epifanias míticas e lúdicas num contexto sertanejo marcado pela paisagem em preto e
branco (figura 13). As capas sugerem a magia da vida e a emergência da poesia na
aparentemente monótona realidade do vasto Sertão. Mas esta já é uma outra história
rosiana...
Diz o filósofo que “não há universalidade, mas ubiqüidade do vivente” (Deleuze,
1991: 23). Lembremos uma irônica advertência de Guimarães Rosa que figura, como
uma frase na negativa, em “Hipotrélico”, um dos prefácios de Tutaméia: critica o
escritor que “nem nos faz falta capturar verbalmente a cinematografia divididíssima dos
fatos ou traduzir aos milésimos os movimentos da alma e do espírito. A coisa pode ir
indo assim mesmo à grossa.”
Éticas do sertão, estéticas da vida
Juraci Dórea e João Guimarães Rosa promovem, em suas obras, um profundo
mergulho no Sertão com os aparatos conceituais e as conquistas formais da arte
moderna. As narrativas pessoais, as imagens míticas e as contingências históricas do
mundo-sertão atualizam-se no circuito das linguagens e nas formulações filosóficas da
vida contemporânea. Nesse movimento, orientam-se forças éticas do sertão e cintilam
percepções estéticas da vida. Mais que objetos artísticos à contemplação, as obras de
Juraci e de Guimarães são eventos, performances que solicitam do espectador e do leitor
cumplicidade com a arte de ver e de ouvir, de falar e de viver o que somos e o
incessante vir a ser.
Bibliografia
BARTHES, Roland (1989). A câmara clara. Portugal, Lisboa: Edições 70 (Arte e Comunicação).
BARTHES, Roland (1978). Aula. São Paulo: Cultrix.
BIZZARRI, Edoardo (1980). João Guimarães Rosa: correspondência com seu tradutor italiano. 2. ed.;
São Paulo: T. A. Queiroz: Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro.
DÓREA, Juraci (1985). Terra. Salvador-Ba: Edições Cordel.
DÓREA, Juraci (s/d). Terra 2. Salvador-Ba: Edições Cordel (edição bilíngüe: Português-Inglês).
DÓREA, Juraci (1987). Sertão Sertão. Salvador-Ba (edição do autor, como parte integrante da sua
participação na 19ª Bienal Internacional de São Paulo).
DÓREA, Juraci (1999). Projet Terre. Paris – França: Université Paris 8 (edição bilíngüe: Francês-
Português).
COUTINHO, Eduardo F. (Org.) (1991). Guimarães Rosa: Fortuna crítica. 2 ed.; Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira.
COVIZZI, Lenira Marques (1978). O insólito em Guimarães Rosa e Borges: crise da mimese / mimese
da crise. São Paulo: Ática.
DELEUZE, Gilles (1992). O que é a filosofia? São Paulo: 34 Letras.
DELEUZE, Gilles (1991). A dobra: Leibniz e o barroco. Trad. de Luiz Orlandi. Campinas, SP: Papirus.
DELEUZE, Gilles (1974). Lógica do sentido. Trad. de Luiz Roberto S. Fontes. São Paulo: Perspectiva.
DUARTE, Lélia Parreira (2000). “A ironia na obra de Guimarães Rosa”. In FONSECA, A. e PEREIRA,
Rubens Alves (Orgs.), Rotas e imagens: literatura e outras viagens. Feira de Santana-Ba.: UEFS.
GUIMARÃES, César (1997). Imagens da memória: entre o legível e o visível. Belo Horizonte: Editora
UFMG.
HUTCHEON, Linda (2000). Teoria e política da ironia. Trad. de Julio Jeha. Belo Horizonte: Ed.
UFMG.
LACAN, Jacques (1998). “O seminário sobre „A carta roubada‟”, in Escritos. Trad. de Vera Ribeiro. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar.
MANGUEL, Alberto (2001). Lendo imagens. Trad. de Rubens Figueiredo et al. São Paulo: Companhia
das Letras.
MORAIS, Frederico (1987). A arte popular e sertaneja de Juraci Dórea: uma utopia? Salvador-Ba:
Edições Cordel.
NOVIS, Vera (1989). Tutaméia: engenho e arte. São Paulo: Perspectiva.
PEREIRA, Rubens E. Alves. In: Veredas do Rosa. Belo Horizonte: PUC-Minas, CESPUC, 2000. “De
Magma, Tutaméia e outros poemas: voz e alteridade em Guimarães Rosa”, p. 619-623.
PEREIRA, Rubens E. Alves. In: Outras margens: estudos da obra de Guimarães Rosa. Belo Horizonte:
Autêntica / Ed. PUC-Minas, 2001. “Segundas estórias e outros enigmas”, p. 251-265.
POE, Edgar Allan (1997). Ficção completa, poesia & ensaios. Trad. de Oscar Mendes. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar.
RÓNAI, Paulo (1990). "Os prefácios de Tutaméia" e "As estórias de Tutaméia". In ROSA, João
Guimarães (1985). Tutaméia (Terceiras estórias). 6. ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
ROSA, João Guimarães (1994). Ficção completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, v. I e II.
ROSA, João Guimarães (1997). Magma. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
ROSA, João Guimarães (1985). Tutaméia (Terceiras estórias). 6. ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
ROSA, João Guimarães (1983). Rosiana: uma coletânea de conceitos, máximas e brocardos de João
Guimarães Rosa. Seleção e prefácio de Paulo Rónai. Rio de Janeiro: Salamandra.
ROSA, João Guimarães (1972). Primeiras estórias. 6. ed.; Rio de Janeiro: José Olympio.
SIMÕES, Irene Gilberto (s/d). Guimarães Rosa: as paragens mágicas. São Paulo: Perspectiva.
* Rubens Alves Pereira é Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC-Rio/
Pós-doutor em Literatura, Arte e Cultura pela Université de Rennes II, França.