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IMAGENS DO SERTÃO

Juraci Dórea e Guimarães Rosa

Rubens Alves Pereira*

Espaço e tempo são duas dimensões que, na base da percepção fenomenológica,

compõem o lastro de uma antiga discussão em torno da relação entre as artes.

Inicialmente buscava-se distinguir aquelas que se caracterizariam pelos signos

articulados no tempo (os sons das “artes temporais”, como música e poesia) das que

eram formadas pelos signos justapostos no espaço (massas, figuras e cores das “artes

espaciais”, como pintura e escultura). Umas melhor representariam objetos que se

seguem no tempo (ações), enquanto as outras fixariam melhor objetos justapostos no

espaço (corpos).

Da Antiguidade Clássica vêm as primeiras importantes reflexões sobre esta

fecunda relação entre as artes: Simônides de Ceos (556-469 a.C.), há cerca de 500 anos

a.C., criou a famosa frase que viria a ser divulgada por Plutarco (46-120 a.C.) – “A

pintura é uma poesia muda, a poesia é uma pintura que fala”. Quase 500 anos depois de

Simônides, Horácio (65-8 a.C.), em sua Arte poética, professa o não menos famoso

aforismo: Ut pictura poesis (“poesia é como pintura”). Aceitas ou contestadas, estas

frases balizaram por muito tempo a discussão entre as “artes espaciais” e as “artes

temporais”. A reflexão contemporânea se abre em inesperadas facetas, seja por conta da

explosão de signos intersemióticos, seja pelos descentramentos que os referenciais

humanos e científicos vêm sofrendo de forma incisiva na percepção do tempo e do

espaço vitais e, em especial, no que diz respeito às imbricadas relações espácio-

temporais no universo sígnico e expressivo das artes.

É preciso observar que, como diz Jean-Louis Schefer, “a imagem é o nome de

uma unidade perceptiva e semântica sem componentes sêmicos próprios, ou ainda:

cujos componentes são inteiramente retirados de outros sistemas”1. Ler imagens,

portanto, é por natureza uma operação intersemiótica, com as suas inerentes defasagens

entre as linguagens. Não menos problemático é traduzir em imagem o que se apresenta

originalmente como texto. A imagem, no texto, tem suas especificidades e, por isso, não

se reduz a um duplo da imagem visual. Na ilustração de textos literários, o signo

1 Schefer, Jean-Louis (1970). “L’image: les sens ‘investi’”. Comunicatons, Paris: Chahiers, n. 15, p.

210-221. Apud César Guimarães, 1997.

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pictórico tende a um sistema específico de codificação e de significação, nunca se

rendendo inteiramente ao texto que ilustra.

No contexto dessas relações diretas, mas também transversas, entre texto e

imagem, pretendo discutir o regime poético e estético-filosófico de dois autores ligados

à cultura sertaneja e às vanguardas artísticas: o escritor João Guimarães Rosa e o artista

plástico Juraci Dórea. Investigamos a maneira como cada um articula suas produções

num cruzamento de signos expressivos e intersemióticos, envolvendo, respectivamente,

dimensões icônicas no texto e projeções narrativas na linguagem plástico-pictórica.

Verifica-se, em ambos, processos discursivos que buscam modular sentidos, posicionar

desejos e dar intensidade existencial (poética, dramática, sócio-cultural, histórica etc.)

ao mundo-sertão, ao tempo em que incorporam e redimensionam conquistas formais e

expressivas da modernidade artística.

Podemos dizer que o Sertão se projeta num espaço/tempo cujas potencialidades

humanas e os contextos ambientais têm sido realçados por várias formas de expressão

artística e por inúmeras representações míticas e históricas. Entrechoque de ficção e

realidade, de narrativas e imagens proféticas ou poéticas, de lutas e alucinações, o

Sertão aparece para Guimarães Rosa e para Juraci Dórea como um topos específico que

nos propõe imprevistas travessias no mar imenso dos seres e na geografia da vida.

As trajetórias desses dois artistas são marcadas por uma experiência intrínseca

ao Sertão. Eles trazem em seus gestos forte investimento pessoal, traduzido em

presenças prolongadas, recorrentes viagens e pesquisas de campo. Tem-se, em ambos,

cumplicidade e experimentos estético-filosóficos. A empatia para com as coisas do

Sertão, em suas diversas configurações, manifesta-se claramente nas obras e também

nas biografias existenciais e intelectuais de Guimarães Rosa e Juraci Dórea.

JURACI DÓREA

Artes e arquiteturas, vivências do sertão

Juraci Dórea nasceu em Feira de Santana (15/10/1944), onde reside, cidade

limite entre o litoral e o agreste ou, como é intitulada, Portal do Sertão. Caracterizado

por uma multiplicidade de interesses no campo das artes, além da arquitetura, Juraci tem

importantes trabalhos envolvendo pintura, escultura, fotografia, desenho, programação

visual e ensaio literário.

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Enfocaremos trabalhos ligados ao Projeto Terra, uma iniciativa premiada em

concurso da Fundação Cultural do Estado, através do Museu de Arte Moderna da Bahia,

em 1982, e que se desdobra ainda hoje.

Fruto de longa experiência existencial e artística de Juraci Dórea no universo

sertanejo, o “Projeto Terra”, em sua primeira etapa e que dimensiona a filosofia básica

da proposta, levou a várias localidades do sertão baiano esculturas feitas com couros e

estacas, quadros em carvão e tinta sobre tela ou sobre placa de madeira, e pinturas de

murais em paredes de casas. Tudo isso foi registrado em fotos e em fitas cassete, com

gravações de pronunciamentos dos sertanejos do local em reação aos inusitados objetos

de “arte” ali construídos e/ou expostos. Como diz o jornalista José Carlos Teixeira,

Juraci Dórea busca “penetrar os mistérios do mítico universo sertanejo”, e prova disto

são

os quatro pontos do sertão baiano por ele escolhidos para desenvolver a proposta do „Projeto

Terra‟: Feira de Santana, a porta do sertão; Monte Santo, com seu referencial místico;

Canudos, palco da tragédia do Conselheiro; e o Raso da Catarina, inexpugnável refúgio dos

cangaceiros. Todos eles concentradores dos mais fortes referenciais da formação da cultura

sertaneja (Teixeira, in Dórea: 1985).

Numa segunda etapa, Juraci Dórea compôs uma espécie de memorial do Projeto

Terra, o qual passou a ser exposto em galerias e divulgado em livros, tanto no Brasil

como no exterior: participou das bienais internacionais de São Paulo (1987); de Veneza,

Itália, para a qual foi escolhido como um dos dois únicos representantes do Brasil em

1988, e de Havana (1989). Merece destaque ainda a exposição de fotografias do Projeto

Terra, no Hall de la Presidence de la Université Paris 8, France, em outubro de 1999,

evento que aconteceu paralelamente a um Seminário acadêmico para discutir o Projeto

Terra, contando com a participação de estudiosos do Brasil e da França. Nesse mesmo

ano, foi realizada em Paris uma exposição de pinturas das séries Fantasia Sertaneja e

Histórias do Sertão, nos meses de outubro e novembro.

Documento, força e monumento

Característica fundamental do Projeto Terra é a proliferação de perspectivas

teóricas e expressivas, a profusão de espaços e tempos propícios à interpenetração de

redes e enredos: Terra subverte os espaços tradicionais de arte, movendo-se em direção

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às entranhas inóspitas do sertão e daí, às galerias, museus e espaços públicos

privilegiados; Terra transgride estratos sociais, articulando-se com o erudito e com o

popular, multiplicando os sujeitos envolvidos no processo criativo, cruzando leitura e

produção em níveis diferenciados; Terra desloca valores simbólicos e culturais,

admitindo a crítica especializada, a opinião balizada, cosmopolita; antes, porém,

internalizando o olhar rude, direto e certeiro do povo simples, sertanejo, vivente das

plagas interioranas.

Como disse o jornalista José Carlos Capinan, comentando o símbolo maior do

Projeto Terra (as armações em estaca e couro), trata-se da escultura que não entra em

salão, embora lá já estejam similares da vanguarda experimental. Expor ou expor-se

ao sertão, às consultas diretas da natureza... (Capinan, in Sertão Sertão, 1987,

“orelha”). Ainda nas palavras de Capinan, vemos um afirmativo e paradoxal movimento

poético do Terra: Juraci tira sua pele, estende em varas e fica esticado ao sol e à

chuva, a suportar sobre o conceito da arte os ferrões, os venenos, o pó, o fogo, e a

necessidade humana de se reproduzir em beleza (id., ibid.).

Juraci percorreu, com esse trabalho, caminho inverso ao das obras de arte,

primordialmente destinadas a galerias ou a espaços públicos privilegiados. Ele opta

inicialmente por dispor suas esculturas nos ermos sertões e expor seus quadros no

ambiente popular das feiras livres, sobretudo nas pequenas cidades do interior baiano.

Nesse empreendimento poético radical, levou esculturas em couro, quadros e murais a

várias localidades do sertão baiano, registrando em fitas e em fotos as instalações e a

imprevista reação do público local. Assim, a obra incorpora o seu público e motivo

primeiros, fazendo com que documento e monumento conformem-se num mesmo

campo representativo e simbólico.

Já na década de 70, Juraci começa a trabalhar com couro, quando surgem os

“Estandartes do Jacuípe” e as “Cancelas” (figuras 1 e 2). Também por essa época sua

pintura explora, com um certo maneirismo, a temática do vaqueiro inscrita entre duas

forças que se apresentam antagônicas em Feira de Santana: a tradição boiadeira e o

desenvolvimento industrial e comercial da cidade, tensão esta claramente exposta nos

dois murais do Mercado Municipal da cidade. Num dos murais gravados em azulejos,

vê-se uma cena no mínimo ambígua, que tanto poderia ser lida como uma representação

da tradicional feira livre da cidade, com jacas, mulheres segurando panelas de barro e

animais trazendo mercadorias em suas pesadas cangalhas, como poderia ser vista

enquanto representação simbólica de um ciclo de vida rural agonizante: figuras de

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animais com pescoços retorcidos, ao fundo da cena, à maneira de seres maculados pelos

ventos do “progresso” (em Guernica, de Picasso, animais semelhantes evocavam os

horrores da guerra), ventos que também agitam as cabeleiras de terríveis damas que

estariam sustentando fábricas no colo (figura 3). No outro painel, laureado por um

imenso sol, o cosmo do universo do couro eleva-se na figura de um vaqueiro

paramentado, em seu cavalo, no típico gesto de luta com uma rês desgarrada que,

invisível, contracena com ele, enquanto no campo visível o boi que aparece já é um ente

na sua plenitude simbólica – o Boi-Bumbá do folclore nordestino brasileiro, presente

nos folguedos populares com sua dança, seu canto, suas máscaras e marcações de cenas

(figura 4).

Os aspectos narrativos e alegóricos que marcam essa fase, sobretudo na pintura,

vão sofrer um profundo corte epistemológico com o Projeto Terra. Neste, Juraci Dórea

radicaliza ao extremo sua linguagem e sua visão poética do Sertão. Com suas formas

rústicas, compostas de elementos primários como madeirite, carvão, couro cru e estacas,

ele tanto traduz e tensiona cenas do cotidiano sertanejo, como abre espaços para um

tempo mítico, imemorial. Tais processos podem ser objetivados na seguinte seqüência

de obras ou eventos inerentes ao Projeto Terra:

1 – Quadros expostos no meio da feira do povoado da Pedra Vermelha, a 25

quilômetros de Monte Santo, na Bahia; e na Rua dos Romeiros, escadarias do santuário

da Santa Cruz, em Monte Santo; fotos que registram esses eventos e gravações com

posterior publicação de depoimentos de populares a respeito das “obras de arte”: no

contexto das fotos e depoimentos, que extrapolam a condição de meros registros para se

transformarem em peças do Projeto Terra, observa-se claramente que os quadros

propõem uma narrativa que procura inserir-se no contexto do mundo narrado,

simultaneamente texto e contexto de uma história presente, processando-se por atos

reflexos em que obra e público se reconheceriam, se nomeariam mutuamente. Num

primeiro plano dos quadros, apresentam-se figuras sertanejas proeminentes, com gestos

estáticos, como se o fluxo ordinário da vida fosse suspenso no momento exato de um

estado de espírito elevado ou da singularidade de um ato, que vai do tonus enérgico da

ira, ao enlevo fruitivo do namoro. Ao fundo, um mundo em ebulição, num jogo de

formas e símbolos que se afirmam pela diversidade de referências históricas, míticas e

expressivas. A dinâmica de forma e fundo é bastante peculiar e aparentemente

paradoxal, pois afirma simultaneamente dimensões distintas da vida sertaneja, como o

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gesto individual e as referências coletivas, o plano psicológico e o contexto

antropológico (figura 5). Permutam-se, nesse movimento performático, corpo e espírito,

o pontual e suas virtualidades. O que num momento é estático, o abismar-se do gesto

definitivo, que se ilumina ao se congelar numa fração irredutível de tempo e de vida,

noutro instante, deixa-se vazar pelos enredos e credos socioculturais que fervilham ao

fundo e emergem ao centro simbólico do quadro.

2 – Foto da “Escultura da Lagoa das Bestas”, produzida no povoado de Saco

Fundo, a 30 quilômetros de Monte Santo. Juraci Dórea, 8 de setembro de 1984 (figura

6, in Dórea, Projet Terre, 1999). Tomo a foto não como mero registro da escultura,

antes como peça artística que é, integrante do Projeto Terra, com sua radicalidade

expressiva e sua identidade simbólica próprias. A foto interage com a escultura,

registrando-a em situação: sugestivamente ladeada por uma criança e uma velha, num

cenário de caatinga seca cortada por um pequeno espelho d‟água da “Lagoa das Bestas”,

tendo ao fundo um casebre típico da pobreza que assola a região.

A narrativa inerente a esta fotografia, se há, pode ser situada numa dimensão

simbólica que transcende o valor anedótico da referência circunstancial (pessoas em

torno de uma determinada obra). Atualiza-se nesta imagem a percepção de um espaço

concêntrico em torno da armação em couro e estaca; e de um tempo forte que conjuga

história e mito, tempo inscrito na imemorial paisagem rústica e em nosso próprio ciclo

existencial configurado no movimento circular da velha e da criança. O espaço físico,

com sua vegetação rústica, seca e rasteira da caatinga, com a água barrenta e o casebre

ao fundo, conjuga-se na composição da escultura, tosca e remendada em couro e estaca,

remetendo a um tempo que a tudo gera e devora, num inexorável ciclo que acolhe a

criança empurrando a roda e a vida em volta do monumento, como se fosse ao encontro

de uma velha, no lado oposto.

Em direção à criança, do centro da armação em couro cru, projeta-se uma

madeira preta que mais parece um braço estendido com uma mão fazendo sinal de

positivo para a criança que gira na inocência do seu momento lúdico. Por sua vez, a

velha senhora, com a mão direita, equilibra uma lata d‟água na cabeça, como a suportar

no alto da idade, a escassez de recursos e o peso do mundo. Com a mão esquerda,

sustenta suas vestes, tentando concertar o desarranjo dos panos, da pessoa e da própria

paisagem. Se o rosto da velha traz a expressão grave da idade na contemplação da

escultura, cobrando-nos uma atenção direcionada simultaneamente para si e para o

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objeto contemplado, é na sua mão esquerda que sou ferido por aquilo que Roland

Barthes designa como “ponto sensível” de uma foto e que “salta da cena, como uma

seta, e vem trespassar-me”, ou seja, o “punctum”, palavra que tanto pode designar

“pontuação”, como “picada, pequeno orifício, pequena mancha, pequeno corte – e

também lance de dados. O punctum de uma fotografia é esse acaso que nela me fere

(mas também me mortifica, me apunhala)” (Barthes, 1989: 46-7). Para além das

“intenções do fotógrafo”, que podem ser mapeadas pelo que Barthes chama de studium,

olhar dirigido por uma vontade narrativa, cintila o punctum, a aleatória e cortante

presença de algo que rouba a cena da nossa subjetividade. Na foto de Juraci Dórea em

destaque, a mão esquerda da velha salta ou assalta nossos olhos num gesto imprevisto,

que recompõe os panos da saia ao tempo em que busca apreender a compostura de um

mundo em farrapos.

Se a criança inscreve-se no quadro como puro movimento, cuja energia vital

precede ao rosto ou à expressão, que permanecem ocultos, a figura da velha em andrajos

traz as marcas profundas da escassez e, ao mesmo tempo, a espessura de uma vida que

se plenifica no próprio desamparo, corpo-memória encarnado e disperso num tempo

imemorial.

O crítico Alberto Manguel, em seu livro Lendo imagens, observa que as raízes

latinas de Memorial e Monumento remontam à deusa grega da memória, Mnemosine,

por isso, “todos os monumentos trazem tacitamente a inscrição: „lembre-se e pense‟”

(Manguel, 2001: 273). Para além do aspecto documental e narrativo, esta obra de Juraci

inscreve-se como monumento de um tempo e lugar do sertão que gesta seus mistérios,

que renova a vida nos círculos do desamparo. Todo monumento, diz ainda Manguel, é

um ponto de partida para uma pergunta. Nessa composição do Projeto Terra, resume-se

uma memória sem data a nos perguntar pelo sentido da existência.

3 – Tomemos as citações:

Parece assim, uma coisa assim, assim mais ou meno um sinal, num é? Assim pur ixemplo,

assim uma coisa qui as veiz vem pelo ar, pelo alto. Assim, mais ou meno assim, dano

alguma visão.

(Depoimento de Manuel Ferreira, 31 anos, ante a Escultura N. 07, às

margens do rio Vaza-Barris, próximo à antiga Canudos. Dia 13 de outubro

de 1984. In Juraci DÓREA, 1987: 27).

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Parece muita coisa. Parece um morro. Parece uma armação duma coisa assim. Mais eu num

tô sabeno memo o significado direito.

(Genival, Raso da Catarina, em 16/09/1984. . In Juraci DÓREA, 1987: 24).

No depoimento acima, vê-se que Manuel Ferreira tateia a linguagem em busca

de uma narrativa para o imponderável objeto conceitual que se oferece ao seu olhar. Por

sua vez, Genival busca no seu horizonte de referências modelos de leitura e acaba por

admiti-los insuficientes. Claro está que os sertanejos não detêm os códigos que orientam

aquele objeto de arte, embora ele seja feito de material elementar no seu cotidiano.

Contudo, os dois depoentes procuram superar esta espécie de “vácuo semiótico” que,

segundo Alberto Manguel, se instaura perante um monumento descontextualizado,

desprovido de referência, memória ou autoridade.

“Parece assim...”, “Parece muita coisa...” Manuel e Genival parecem situar-se

num espaço discursivo de encontro-confronto com o inusitado evento produzido pelos

artistas de fora, ali investidos da autoridade intelectual que os caracteriza, sobretudo

perante gente simples do interior. Dá-se o encontro, marcado pela sedução do objeto

que, em sua estranheza, traz as marcas da região, e pela presença amistosa dos artistas

da cidade grande. Segue-se o confronto, marcado pelo desconcerto de uma situação

desafiadora, à maneira de um enigma que se quer decifrado: um evento sócio-cultural,

uma armação em couro e estaca, uma escultura, um monumento referendado por

códigos estranhos e diferenciadores das práticas locais. Desse encontro-confronto,

modulam-se os seduzidos olhares: de admiração, de espanto, embevecimento, de

inquirição e, no limite, de desconstrução:

É... ali tá... tá bunito. Tá pariceno uma minina muderna.

(Elias Rodrigues dos Santos, 55 anos, localidade de Tapera. Dia 9 de agosto

de 1987. In Juraci DÓREA, 1987: 36).

Bom... passô um lá na istrada... Se desservá de lá, pára e ispia... o q‟é aquilo?

(Bisão, 55 anos, localidade de Tapera. Dia 9 de agosto de 1987. In Juraci

DÓREA, 1987: 36).

Eu to achano decente, bunito, num é? Acridito qui seje um mei‟ de vivê. Qué dizê, qualqué

uma coisa é arte, num é? Se eu nom tenho profissão nenhuma, trabalho na inxada, qué dizê

q‟é minha arte.

(José Evaristo, 49 anos, São Pedro, a 26 km de Monte Santo. Dia 10 de

fevereiro de 1985. In Juraci DÓREA, 1987: 32).

Acho qui parece cum vaquêro incorado. Num faiz medo. A gente vê uma coisa dessa aí,

num faiz medo. No sertão a gente tá custumado a vê muitas coisas.

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(Evaldo Pereira, 14 anos, Canudos. Dia 13 de outubro de 1984. In Juraci

DÓREA, 1987: 27).

Isso aí, fazen‟ mer‟ q‟istóra... boto aí pra, as veiz, pra quem vê, perguntá: pra qui é, pra qui

num é? Agora, fazen‟ mer‟ q‟istóra, eu tô falano, mais num é de minha conta.

(Um vaqueiro, Bonfim de Feira. In Juraci DÓREA, 1987: 26).

Registrados e publicados, os depoimentos criam um particularíssimo espaço de

configuração da obra de Juraci Dórea, dimensionando a sua inserção na radicalidade do

universo sertanejo. A obra de Juraci enovela-se na fala viva e cortante daquela gente

simples. Com isso, mais uma dobra se impõe no corpo-sertão do Projeto Terra,

auferindo-lhe uma imprevista aura de autenticidade e impondo-se como um dos seus

materiais básicos.

A explicação pontual e muitas vezes aparentemente truncada, por parte dos

sertanejos, ganha uma dimensão complexa e sofisticada quando aferida no contexto de

culturas e códigos diferenciados. O sertanejo, que não se dá por vencido ante as

solicitações do inusitado evento artístico, aciona seus códigos e valores para o diálogo,

o qual é marcado por um esforço de recontextualização filosófica e existencial:

Isso aí é arte, é arte e nom é dos mais disvalorizado. Ave-maria, tudo qui nóis trabaia é arte.

Oi, eu trabaio de artista, agora meu arte é cavá chão: ói as unha cumo tão intirtuchada de

chão!

(João Cardoso, 70 anos, ante a pintura do mural na parede da casa de

Edwirges, próximo ao povoado de Saco Fundo, Monte Santo. Dia 25 de

novembro de 1984).

Bom, eu não tenho leitura, tá intendeno? Eu num tenho leitura ninhuma, não leio. Agora,

aquilo ali eu acho qui tem uma grande tioria.

(Manuel Alves, 44 anos, em Canudos, em 13/10/1984).

Se João Cardoso reconhece no seu trabalho de lavrador a mesma dignidade do

trabalho do artista é, em parte, porque ele se reconhece nas narrativas fixadas no mural

pintado na parede da casa de Edwirges. Já Manuel Alves, ante uma das esculturas de

couro e estaca, busca no mais íntimo do seu ser uma justificativa, uma intenção humana

altamente significativa. Que “tioria” seria essa intuída por Manuel? Poderíamos

“tiorizar” como ele sobre a necessidade ancestral que o hemem apresenta de inscrever

sua marca nas paredes do tempo, de registrar sua presença (sonhos, angústias,

necessidades, idéias, valores etc.) na terra, para o olhar de outros homens, no indefinido

das eras.

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4 – “Escultura de Utinga”, vilarejo da região do São Francisco, município de

Xiquexique. Juraci Dórea, em 10 de março de 1989 (figura 7, in Dórea, Projet Terre,

1999).

Quando se vem vindo sertão a dentro, a gente pensa que não vai encontrar coisa alguma (...)

(Guimarães Rosa, “Buriti”).

(...) o sertão está em movimento todo-tempo – salvo que o senhor não vê; é que nem braços

de balança, para enormes efeitos de leves pesos.

(G. Rosa, Grande sertão: Veredas).

Só uma verticalização do olhar, conforme sugere o pensamento de Guimarães

Rosa ao falar do Sertão, poderia dar conta de uma leitura dessa escultura plantada no

corredor dos casebres que compõem o vilarejo de Utinga. Se algumas composições

permitem melhor articular sentidos num tempo narrativo, à maneira como Gilles

Deleuze caracteriza, em relação ao cinema, a imagem-movimento, por outro lado,

teríamos nessa obra de Juraci uma espécie de enfraquecimento das situações sensório-

motoras da imagem-ação, projetando uma situação de imagem puramente ótica, ou seja,

algo semelhante ao que o filósofo francês chama de imagem-tempo, a qual torna

sensíveis o tempo e o pensamento.

O monumento composto por Juraci Dórea, também aqui em sua específica

configuração fotográfica, parece solicitar a imersão dos nossos sentidos imediatos na

espessura do tempo e na carnadura da solidão humana ali situadas, no descampado da

rua de Utinga. O bestial sentinela desse abismo de tempo e lugar – um cachorro branco

no cinza da paisagem – parece eternizado na paisagem, tranqüilo e impassível a velar

por este imenso sertão. A escultura de couro e estaca, na sua imponente ancestralidade,

parece ter estado ali desde sempre, fazendo contraponto à árvore solitária do meio do

arraial. Ao fundo, umas poucas figuras humanas anunciam timidamente a vida que

habita aquelas casas simples como o chão batido da rua ou a vegetação rasteira da

caatinga que, mesmo ausente do campo da visão do fotógrafo, em tudo se anuncia,

sobretudo do vazio que a foto materializa. Na quietude da cena, move-se o tempo em

sua concretude, dobra-se a vida sobre si mesma – enquanto o cão não ladra.

Terra é fruto de uma longa vivência do Sertão e de um projeto artístico múltiplo

e continuado. Esse trabalho, em sua face mais específica, vem se realizando desde o

início da década de 1980 e tem como característica marcante um cruzamento de

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linguagens e de fatores referenciados pelo universo sertanejo. Fazem parte das

estruturas de criação e circulação do Projeto Terra procedimentos os mais variados:

instalações em couro e madeira pelos sertões; pinturas expostas em diversos espaços

interioranos, como mercados e feiras livres; murais em paredes de adobos; esculturas de

aço em espaços urbanos; fotos e quadros em galerias e museus; vídeos; livros; pôsteres;

catálogos; palestras; seminários etc. Por todos esses deslocamentos, podemos dizer que

o Projeto Terra se articula num não-lugar entre Cidade e Sertão, ou antes: entre padrões

estéticos intelectuais e gestos expressivos informais.

Em 1985 surgiu o primeiro livro, Terra, com registros (fotografias, depoimentos,

ensaios e artigos) do trabalho desenvolvido até então, ao mesmo tempo em que tal

publicação integrava o próprio corpo do Projeto. Em 1987, nova publicação, intitulada

Sertão Sertão, desta vez como material integrante da participação do Projeto na 19ª

Bienal Internacional de São Paulo. Algumas outras publicações têm se sucedido desde

então, incluindo livros, catálogos e folhetos.

Podemos dizer, por fim, que o sertão se faz presente, na obra de Juraci Dórea,

com todas as suas cores, preto no branco, para outras grandes estórias.

GUIMARÃES ROSA

Sertão sertões, entre corpo e linguagem

João Guimarães Rosa (1908-1967), por sua vez, é um dos mais importantes

escritores brasileiros, com obras traduzidas em várias línguas, como inglês, francês,

espanhol, italiano e alemão. Rosa causou grande impacto nos meios literários desde a

sua estréia em livro, com a coletânea de contos Sagarana (1946), tendo se consagrado

com o monumental romance Grande Sertão: Veredas, em 1956, ano também da

publicação de Corpo de baile, conjunto de novelas que depois seriam distribuídas em

dois volumes. Ainda em vida, o escritor mineiro publicaria mais dois livros de contos:

Primeiras estórias (1962) e Tutaméia (1967). Outros livros seriam publicados após a

sua morte.

Os livros definem-se, como bem observa Alberto Manguel, por uma “corrente de

palavras que os encerra, a qual flui do início até o fim, da capa até a quarta capa, no

tempo que concedemos à leitura desses livros” (Manguel, p. 25). Mais do que para

qualquer outro escritor brasileiro, esta afirmativa vale para a obra de Guimarães Rosa,

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entendendo o início citado pelo crítico como a própria capa do livro. Rosa acompanhava

o processo de ilustração das capas e de outros espaços (orelha, folha de rosto, índice

etc.), interferindo de forma direta no processo criativo e simbólico de tais ilustrações,

tendo em vista as articulações destas com os textos. Assim, compõe a obra de

Guimarães Rosa um conjunto de marcas textuais, símbolos, sinais gráficos e desenhos

que determinam uma percepção do mundo e da obra como um movimento infinito,

numa impressionante dinâmica de recorrências e transposições de elementos formais,

conceituais e expressivos. Vejamos, primeiramente, as ilustrações.

Sagarana (1946), seu primeiro livro, a partir da quarta edição foi ilustrado por

Luís Jardim, sob o olhar atento do autor (figura 8). Chama a atenção os três círculos da

capa, como a indicar universos holísticos, nos quais unidade e diversidade se

encontram, o uno e o infinito não se excluem.

Em Grande sertão: veredas (1956), além da ilustração de capa, Luís Jardim

elabora com o romancista, para as orelhas do livro, um mapa que, de certa forma,

orienta e propõe leituras para a geografia humana articulada no romance figura 9). Os

itinerários de Riobaldo Tatarana, jagunço narrador e protagonista da obra, já são

delineados pelas orelhas do livro. É interessante ressaltar que o texto do romance se

inicia com a imprecisa palavra-frase (ou palavra-cosmo) “Nonada”, como um som, em

si, pleno, a reverberar sobre tudo que a partir de então compõe o livro. Fechando o texto

de Grande sertão: veredas, mas abrindo o livro, o autor colocou o símbolo do infinito

( ), o qual se repetirá obsessivamente em ilustrações de outros livros seus. Se nada tem

começo preciso, tudo não tem fim, e a Vida se apresenta como travessias.

Enquanto em Corpo de baile (1956) as ilustrações limitaram-se à capa, na

mesma caracterização plástico-simbólica das anteriores, em seu livro seguinte,

Primeiras estórias (1962), o escritor acrescenta uma novidade: além das ilustrações da

capa, que trazem referências a personagens, ambientes, motivos e simbologias da obra

(figura 10), Rosa solicita a Luís Jardim que faça, para cada estória, desenhos-miniaturas

para ilustrar o índice, ou melhor, um segundo índice que seria acrescentado ao final do

livro (figura 11). Com isso, o autor acrescenta uma outra dobra sobre o texto, além das

imagens – um novo índice, como a indicar releituras, infinitamente se espelhando,

sempre em diferença, em devir permanente. O símbolo do infinito está presente não só

na capa, como no título de todas as estórias, exceto em uma, sugestivamente intitulada

“Nenhum, nenhuma”, no qual o personagem-narrador, perdido em suas imprecisas

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lembranças, conclui, em determinado momento: “A gente cresce sempre, sem saber para

onde”. O infinito, aqui, é matéria básica da narrativa.

Num último exemplo de intervenção gráfica ou formal no corpo do livro,

vejamos Tutaméia (1967). Aqui, além de duplicar o índice no final, Guimarães Rosa o

modifica significativamente, propondo nova estruturação e novo estatuto discursivo

para quatro textos que, se tidos como contos na ordem do primeiro índice, passam a

figurar como “Prefácios”, neste índice final (figura 12).

É opinião corrente que Tutaméia representa uma espécie de corrida de

obstáculos para a crítica que sobre o livro se debruça buscando respostas. Um conjunto

de dados curiosos faz desse livro, que foi publicado no ano da morte de seu autor, uma

verdadeira proposição enigmática, um quebra-cabeça literário cujas peças não se

submetem à nossa lógica textual, aos nossos segmentados padrões de gênero, às nossas

expectativas quanto aos textos de ficção, teoria e crítica.

Acreditamos que foi imbuído de um espírito lúdico e movido pela força da ironia

e do humor que Guimarães Rosa construiu o assimétrico jogo de espelhos com os

índices de Tutaméia / Terceiras estórias. Assim, no índice do início do livro, escreve

ele:

TUTAMÉIA

(TERCEIRAS ESTÓRIAS)

e logo abaixo, antes de uma relação de 44 títulos de contos em ordem alfabética,

excetuando-se a seqüência JGR (acróstico de João Guimarães Rosa), transcreve um

pensamento de Schopenhauer: “Daí, pois, como já se disse, exigir a primeira leitura

paciência, fundada em certeza de que, na segunda, muita coisa, ou tudo, se entenderá

sob luz inteiramente nova”. No final do livro, provoca Guimarães Rosa com o índice de

um novo livro:

TERCEIRAS ESTÓRIAS

(TUTAMÉIA)

Índice de releitura

Abaixo, uma nova epígrafe com a assinatura de Schopenhauer: “Já a construção,

orgânica e não emendada, do conjunto, terá feito necessário por vezes ler-se duas vezes

a mesma passagem”. Guimarães não fica apenas na mudança de nome do livro, altera-

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lhe também o estatuto de seus textos, conferindo a quatro deles a natureza de

“Prefácios” e aos demais, nomeando-os “Contos”, enquanto que no primeiro índice a

falta de classificação lançava-os em indistinto espaço, livres de classificações –

“Tutaméia: nonada, baga, ninha, inânias, ossos-de-borboleta... mea omnia”.

Observamos ainda que as epígrafes não aparecem na página de rosto do livro,

como é comum, mas sim encravadas nos dois diferentes índices, que assim se

apresentam simultaneamente como mapa e território de uma escrita que, ao dobrar-se

sobre si, instaura-se no intervalo significativo do que não pode ser nomeado, posto que

situado no radical processo de recorrência e diferenciação no interior mesmo do corpo

fragmentado. A expressão “Terceiras estórias”, com efeito, não é subtítulo a Tutaméia,

como a crítica em geral costuma designar. Antes, podemos dizer que Tutaméia anuncia

e germina as Terceiras estórias, as quais irão se configurar no final do volume, no

índice de releitura. Tutaméia seria, portanto, as Segundas estórias que o autor nunca

escreveu e também nunca explicou porque saltou das primeiras para as terceiras

estórias, atitude que tem gerado curiosidades e controvérsias.

Em sua aula inaugural no Colège de France (editado no Brasil com o título

Aula), Roland Barthes atenta para o fato de que não existe paralelismo entre o real e a

linguagem, já que a ordem pluridimensional do real não pode ser apreendida pela ordem

unidimensional da linguagem. Essa falta radical, diz ainda Barthes, é que impulsionaria

a literatura, numa busca incessante de superá-la. Esta busca de apreensão do real em sua

diversidade é que, segundo o crítico, caracteriza a verdadeira “função utópica” da

literatura (Barthes, 1978: 22-3).

Na obra de Guimarães Rosa vamos encontrar um amplo regime de imagens e

leituras do mundo que incidem sobre planos do visível e das invisibilidades. Imagens e

leituras, ainda, que recortam espaços mensuráveis do legível e se aventuram pelos

movimentos inesperados de signos múltiplos, em si mesmos abertos e fechados (para

lembramos um verso de Drummond). Citando um pintor chinês, Gilles Deleuze teoriza

que algo só é uma obra de arte se guarda vazios suficientes para permitir que neles

saltem cavalos – quando mais não seja, pela variedade de planos (Deleuze, 1992: 215).

A obra de Rosa caracteriza-se sobretudo por essa liberdade com que o mundo atualiza

seus variados aspectos, liberdade conquistada por um intenso processo de criação

textual.

À margem das cronologias do real com seus territórios e identidades catalogados

pela razão empirista, Guimarães Rosa propõe e dispõe em sua obra percepções

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diferenciais, olhares reflexivos, pontos de conversão e inesperadas solicitações

perceptivas e conceituais. Com desconcertante domínio das dimensões narrativas (épica

e dramática) e líricas, o texto de Rosa é marcado por um bem distribuído senso de

humor e por uma ironia própria da modernidade.

O destino se apresenta para Rosa na sua inteira pujança em devir, com seus

liames irredutíveis a uma lógica linear. Nessa perspectiva, podemos dizer com Deleuze

que a arte luta com o caos, mas para torná-lo sensível (id. p. 263). Rosa busca a dicção

singular de cada acontecimento, tensiona a sedução e o perigo do desconhecido,

aventura-se no ilimitado, despe a instabilidade do real em que nos locomovemos,

também instáveis, mutantes – tudo é imantado por uma linguagem em abismo,

multidirecional, que se prima pela confiança na beleza da fala que nomeia e, ao nomear,

cria ou transforma o mundo, escavando virtualidades. Talvez por isso Antonio Candido

tenha visto na obra de Guimarães, desde o primeiro momento (Sagarana), a

emancipação de uma "região da arte" mais do que uma “região do Brasil”2. Ali está a

regeneração, a potência da vida; ali emerge o quem-das-coisas (seu devir artístico), os

vários silêncios que laboram o acontecer do mundo. Neste sentido, podemos dizer, com

Nietzsche, que a arte tem mais valor do que a verdade.

Guimarães, sobretudo, propõe aos seus leitores uma visão de mundo que

contraria a lógica do bom senso (como sentido único) e do senso comum (como

designação de identidades fixas): “Decido? Divulgo: que as coisas começam deveras é

por detrás, do que há, recurso; quando no remate acontecem, estão já desaparecidas”,

diz o protagonista do conto “Antiperipléia” (Tutaméia, 1967), narrador de um enredo

que se desdobra em equívocos, como numa peripécia aos avessos, uma antiperipléia.

Ainda em Tutaméia, escreve Guimarães o conto “Desenredo” que, como o título já

indica, o enredo da vida é aberto e ambíguo, podendo assim sofrer reversões que, para

uma lógica plana, contraria o que se chama comumente de realidade: “Chamando-se

Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu”, nos conta o

narrador com seus espelhos difusores de imagens.

Avulta na obra de Guimarães Rosa uma dinâmica configuração de tempos e

espaços diversos, que facultam, na disposição textual de seres e enredos, variados

processos de mutações, espelhamentos, homologias, simulacros, conversões,

duplicações, dobras, virtualidades etc. Um momento exemplar desse regime de

2 Antônio Candido, “Sagarana”. In: Guimarães Rosa - Fortuna crítica, Rio de Janeiro: Aguilar, p. 244.

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imagens-conceituais do escritor pode ser visto no conto “O espelho”, de Primeiras

estórias (1962). “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”, diz o

narrador logo ao final do primeiro parágrafo, colocando em xeque todo um regime de

mundo centrado no visível, nas relações empíricas de causa e efeito.

O narrador nos conta “não uma aventura, mas experiência” levada a cabo por

raciocínios e intuições incomuns acerca da própria imagem e da identidade como forças

mutantes, combinações de diversos vetores, agenciamentos múltiplos. Alertando tratar-

se de “fenômenos sutis”, o narrador reflete sobre o “elemento animal” que se inscreve

na fisionomia de cada homem, e experimenta a desmaterialização progressiva, até o

total desaparecimento da sua imagem no gume do espelho. Em decorrência desse

processo radical de desarticulação dos próprios referenciais físicos, o narrador chega às

questões cruciais daquela narrativa: “[...] despojara-me, ao termo, até à total desfigura.

E a terrível conclusão: não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma?”

(Rosa, 1994, p. 441). E ainda, no desterro do ser, se questiona: “Será este nosso

desengonço e mundo o plano – intersecção de planos – onde se completam de fazer as

almas?” (id., p. 442). Pode-se dizer que “O espelho”, considerado em sua totalidade

expressiva, seria, a exemplo de “A terceira margem do rio”, uma poderosa imagem

conceitual para se discutir a obra rosiana.

Podemos identificar nesse processo de problematização das identidades dos

seres e das coordenadas do mundo uma das mais impressionantes faces do escritor, ou

seja, a sua capacidade de captar as forças ativas e reativas dos acontecimentos.

Guimarães Rosa prima por uma maneira muito original de flagrar a vida nos seus

variados e complexos movimentos, nos seus devires: sertão, jagunço, criança, louco,

burrinho, boi, onça, árvore, poesia, amor, enredo, estória, passarinho ou outra coisa

qualquer que, num relance, se projeta no fulcro da matéria vertente da vida. Neste

sentido, Guimarães Rosa não molda, antes modula o seu universo, pois, como define

Gilbert Simondon, “moldar é modular de maneira definitiva; modular é moldar de

maneira contínua e perpetuamente variável” (Simondon, apud Deleuze, 1991, p. 36).

Em Grande sertão: veredas, obra maior de Guimarães Rosa, flagramos um

mundo em ebulição, com infinitas interfaces movendo os seres, as coisas e o próprio

texto narrativo. Como exemplo, apenas um rápido olhar sobre o locus daquele universo,

o Sertão, conforme aparece nessa e em outras obras do autor.

Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores

perguntas. Tomo este pensamento do jagunço-filósofo-narrador Riobaldo Tatarana,

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pensamento certamente forjado em suas incontáveis travessias ao lado de João

Guimarães Rosa, como mote para tratar das imagens, ou miragens, do Sertão – nessa

pequena travessia de leitores.

Ainda com Riobaldo, tentamos nos situar nesta improvável geografia.

O sertão aceita todos os nomes: aqui é o gerais, lá é chapadão, lá acolá é a caatinga (GSV).

Se ainda não podemos dizer que o sertão está em toda parte (GSV), ou além dos

limites da geografia romanesca que ambienta a aventura jagunça no Grande sertão, em

outros momentos afloram novos sertões, ou, dizendo com o narrador rosiano, o sertão é

quando menos se espera. Brusco, o Sertão. Logo, os Sertões. O sertão é sem lugar,

desterritorializa ainda Riobaldo, depois de já ter observado que sertão: é dentro da

gente.

Sabemos da aventura expressiva de Guimarães Rosa, marcada por uma

percepção incomum e amparada numa espantosa concepção de linguagem que o habilita

a nomear o mundo em sua radicalidade, a registrar as vibrações mínimas que definem e

distinguem as coisas e os seres. Quando perguntado sobre as dificuldades de leitura das

suas obras, em grande parte fruto da sua meticulosidade, Guimarães Rosa usava um

argumento que, se o afastava de um possível virtuosismo técnico da escrita, projetava-o

numa espécie de visão vitalista do mundo, num consórcio íntimo com o quem das

coisas, com as virtualidades do real: Eu não escrevo difícil, diz Guimarães Rosa, eu sei

o nome das coisas.

Quando se vem vindo sertão a dentro, a gente pensa que não vai encontrar coisa

alguma, observa o narrador da novela “Buriti”, como a advertir para os assombros do

vazio aparente nos ermos daquele mundo. O que aqui se entrevê, ganha forma na

reflexão de Riobaldo: ...o sertão está em movimento todo-tempo – salvo que o senhor

não vê; é que nem braços de balança, para enormes efeitos de leves pesos (GSV). Rosa,

poderíamos dizer, extrai do acontecimento-sertão as forças moventes de um mundo

primevo, das origens, um mundo dinâmico, ao mesmo tempo múltiplo e singular,

presença virtual e corpo vital.

A radicalidade do vasto sertão rosiano, com suas imagens conceituais e seus

infinitos enredos, torna-se expressão no corpo a corpo do mundo com a linguagem.

Vemos um milagre que faz eclodir falas e fatos até então submersos nas coisas, no

Sertão e nos códigos da língua.

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As capas mais recentes dos livros de Guimarães Rosa têm uma forte simbologia

poética. Editados pela editora Nova Fronteira, livros como Tutaméia (6ª ed., 1985) e

Noites do Sertão (8ª ed., 1988), trazem nas capas fortes figuras coloridas em primeiro

plano, que com seus traços rústicos evocam representações primárias e encenam

epifanias míticas e lúdicas num contexto sertanejo marcado pela paisagem em preto e

branco (figura 13). As capas sugerem a magia da vida e a emergência da poesia na

aparentemente monótona realidade do vasto Sertão. Mas esta já é uma outra história

rosiana...

Diz o filósofo que “não há universalidade, mas ubiqüidade do vivente” (Deleuze,

1991: 23). Lembremos uma irônica advertência de Guimarães Rosa que figura, como

uma frase na negativa, em “Hipotrélico”, um dos prefácios de Tutaméia: critica o

escritor que “nem nos faz falta capturar verbalmente a cinematografia divididíssima dos

fatos ou traduzir aos milésimos os movimentos da alma e do espírito. A coisa pode ir

indo assim mesmo à grossa.”

Éticas do sertão, estéticas da vida

Juraci Dórea e João Guimarães Rosa promovem, em suas obras, um profundo

mergulho no Sertão com os aparatos conceituais e as conquistas formais da arte

moderna. As narrativas pessoais, as imagens míticas e as contingências históricas do

mundo-sertão atualizam-se no circuito das linguagens e nas formulações filosóficas da

vida contemporânea. Nesse movimento, orientam-se forças éticas do sertão e cintilam

percepções estéticas da vida. Mais que objetos artísticos à contemplação, as obras de

Juraci e de Guimarães são eventos, performances que solicitam do espectador e do leitor

cumplicidade com a arte de ver e de ouvir, de falar e de viver o que somos e o

incessante vir a ser.

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* Rubens Alves Pereira é Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC-Rio/

Pós-doutor em Literatura, Arte e Cultura pela Université de Rennes II, França.