IMAGEM FEMININA NO CONTO “A MOÇA TECELÔ, DE MARINA COLASANTI

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Revista Discente do CELL – nº 0 – 1º sem. 2010 69 A IMAGEM FEMININA NO CONTO “A MOÇA TECELÔ, DE MARINA COLASANTI Fernando de Moraes Gebra, Doutorando em Estudos Literários UFPR O presente artigo surge como pequena contri- buição para a fortuna crítica de Marina Colasanti, au- tora que recria o universo feminino, muitas vezes por meio de contos de fadas marcados por várias configu- rações simbólicas. Em muitos dos contos da autora, a mulher é descrita com o poder de fazer e desfazer seu destino. Esse fazer e desfazer, ou ainda tecer e destecer destinos, é o tema de “A moça tecelã”, inse- rido na coletânea de contos intitulada Doze reais e a moça no labirinto do vento. Essa tecelã, com a ajuda de seu tear, traça todo seu universo natural, inclusive seu destino, mas, vendo-se sufocada pelo ambicioso e materialista marido que foi “tecido”, chega a desfazer todos os bens materiais que traçara, inclusive o pró- prio marido. Antes de estabelecermos a análise da repre- sentação da personagem feminina no conto, convém delimitar os pressupostos teóricos que nos auxilia- ram no processo analítico. Trata-se de elementos da semiótica greimasiana, particularmente a técnica de desmontagem do texto para a construção dos campos lexicais, responsáveis pela estruturação discursiva do texto. No entender de Georges Maurand, os campos lexicais são definidos como um primeiro modo de acesso à significação do texto, um conjunto de unida- des lexicais (lexemas) com traços comuns de signifi- cação (MAURAND, 1984, p. 56). Para Greimas, essas investigações científicas sobre os campos lexicais evidenciam a carga potencial das figuras lexemáticas, isto é, as possibilidades de elas adquirirem determinados sentidos em percursos figurativos. Os estudos semióticos ressaltam que uma figura isolada não tem significado em si mesma: cada figura pode estar virtualmente relacionada a vários te- mas: “Todo discurso, no momento em que coloca sua própria isotopia semântica, não passa de uma explora- ção muito parcial das virtualidades consideráveis que lhe oferece o tesouro lexemático.” (GREIMAS, 1977, p. 188) Para o autor, as figuras lexemáticas formam uma rede figurativa relacional, isto é, elas se relacio- nam com outras figuras, assim formando constelações discursivas, ou percursos figurativos. Para o semio- ticista, “Constatamos imediatamente que tais figuras não são objetos fechados sobre si mesmos, mas que prolongam a todo instante seus percursos semêmicos, encontrando e incorporando outras figuras semelhan-

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IMAGEM FEMININA NO CONTO “A MOÇA TECELÔ,DE MARINA COLASANTI

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  • Revista Discente do CELL n 0 1 sem. 2010

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    A IMAGEM FEMININA NO CONTO A MOA TECEL,DE MARINA COLASANTI

    Fernando de Moraes Gebra, Doutorando em Estudos LiterriosUFPR

    O presente artigo surge como pequena contri-

    buio para a fortuna crtica de Marina Colasanti, au-

    tora que recria o universo feminino, muitas vezes por

    meio de contos de fadas marcados por vrias confi gu-

    raes simblicas. Em muitos dos contos da autora,

    a mulher descrita com o poder de fazer e desfazer

    seu destino. Esse fazer e desfazer, ou ainda tecer e

    destecer destinos, o tema de A moa tecel, inse-

    rido na coletnea de contos intitulada Doze reais e a

    moa no labirinto do vento. Essa tecel, com a ajuda

    de seu tear, traa todo seu universo natural, inclusive

    seu destino, mas, vendo-se sufocada pelo ambicioso e

    materialista marido que foi tecido, chega a desfazer

    todos os bens materiais que traara, inclusive o pr-

    prio marido.

    Antes de estabelecermos a anlise da repre-

    sentao da personagem feminina no conto, convm

    delimitar os pressupostos tericos que nos auxilia-

    ram no processo analtico. Trata-se de elementos da

    semitica greimasiana, particularmente a tcnica de

    desmontagem do texto para a construo dos campos

    lexicais, responsveis pela estruturao discursiva do

    texto. No entender de Georges Maurand, os campos

    lexicais so defi nidos como um primeiro modo de

    acesso signifi cao do texto, um conjunto de unida-

    des lexicais (lexemas) com traos comuns de signifi -

    cao (MAURAND, 1984, p. 56).

    Para Greimas, essas investigaes cientfi cas

    sobre os campos lexicais evidenciam a carga potencial

    das fi guras lexemticas, isto , as possibilidades de

    elas adquirirem determinados sentidos em percursos

    fi gurativos. Os estudos semiticos ressaltam que uma

    fi gura isolada no tem signifi cado em si mesma: cada

    fi gura pode estar virtualmente relacionada a vrios te-

    mas: Todo discurso, no momento em que coloca sua

    prpria isotopia semntica, no passa de uma explora-

    o muito parcial das virtualidades considerveis que

    lhe oferece o tesouro lexemtico. (GREIMAS, 1977,

    p. 188) Para o autor, as fi guras lexemticas formam

    uma rede fi gurativa relacional, isto , elas se relacio-

    nam com outras fi guras, assim formando constelaes

    discursivas, ou percursos fi gurativos. Para o semio-

    ticista, Constatamos imediatamente que tais fi guras

    no so objetos fechados sobre si mesmos, mas que

    prolongam a todo instante seus percursos semmicos,

    encontrando e incorporando outras fi guras semelhan-

  • Revista Discente do CELL n 0 1 sem. 2010

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    tes e constituindo como que constelaes discursivas

    dotadas de organizao prpria. (GREIMAS, 1977,

    p. 189)

    Aps o estabelecimento dos campos lexicais e

    dos percursos fi gurativos, vamos nos valer de elemen-

    tos tericos de todo o percurso gerativo, entendido

    como uma sucesso de patamares que mostra como

    se produz e se interpreta o sentido, em um processo

    que vai do mais complexo e concreto ao mais sim-

    ples e abstrato (FIORIN, 2001, p. 17). Como se sabe,

    so trs os patamares: o nvel fundamental, o nvel

    narrativo e o nvel discursivo. Nesse conto, apesar de

    analisarmos os trs nveis, ser dada nfase s oposi-

    es discursivas presentes no texto, ou seja, como as

    aes das personagens revelam seus valores ideolgi-

    cos. Tambm sero utilizados elementos da semntica

    discursiva para analisarmos os percursos fi gurativos

    at chegarmos estrutura profunda para compreender

    os valores que se opem no conto, gerando efeitos de

    sentido em seus leitores.

    Aps a leitura do texto, percebemos quatro

    campos lexicais, dois referentes ao mundo natural e

    dois referentes ao mundo material. Os campos lexi-

    cais estabelecidos podem ser assim representados:

    a) tear natural delicado trao cor de luz,

    fi os estendidos, fi os cinzentos de algodo, fi o

    de prata, belos fi os dourados, grandes pentes do

    tear;

    b) universo natural claridade da manh,

    horizonte, chuva, nuvens, vento, frio, fo-

    lhas, pssaros, peixe, leite, tempo;

    c) tear material belas ls cor de tijolo, fi os

    verdes para os batentes, pressa para a casa aconte-

    cer, sem parar batiam os pentes; e

    d) universo material tetos, portas, p-

    tios, escadas, salas, poos, tantos cmodos,

    alta torre, luxos, moedas, criados, carrua-

    gens, estrebarias isso tudo dentre outras riquezas

    contidas no palcio.

    Como podemos justifi car o agrupamento dessas

    fi guras em cada um desses campos lexicais? Ao passar

    para a anlise dos programas narrativos dos sujeitos

    (mulher e homem), podemos, alm de justifi car as es-

    colhas lexicais, avanar na anlise e perceber os uni-

    versos axiolgicos de cada sujeito da narrativa. Ainda

    na estrutura discursiva, reconhecemos dois tempos

    no texto: um anterior construo do homem e

    um posterior sua existncia concreta. No primeiro

    tempo, encontramos todas as fi guras que fazem parte

    dos campos lexicais que denominamos tear natural e

    universo natural, enquanto no segundo esto todas as

    fi guras dos campos lexicais tear material e universo

    material o que nos leva a pensar em uma passagem

    da categoria semntica / natural/ para / material /.

    Com relao aos programas narrativos (PNs)

    dos sujeitos da narrativa, podemos dizer que a mu-

    lher, mesmo tendo autonomia para tecer seu universo

    natural, encontrava-se em um estado inicial de falta:

    Mas tecendo e tecendo, ela prpria trouxe o tempo

    em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou

    como seria bom ter um marido ao lado. (COLASAN-

    TI, 2001, p. 12) Como possua os elementos modais

    da competncia (querer, dever, saber e poder), a mu-

    lher pde entremear no tapete as ls e as cores que

    lhe dariam companhia. (COLASANTI, 2001, p. 12)

    Houve a realizao da ao principal ou performan-

    ce: E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapu

    emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato

    engraxado. Estava justamente acabando de entremear

    o ltimo fi o da ponta dos sapatos, quando bateram

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    porta. (COLASANTI, 2001, p. 12) No entanto, a san-

    o eufrica da mulher foi apenas aparente: E feliz

    foi, por algum tempo. (COLASANTI, 2001, p. 12)

    O homem, interessado apenas nas riquezas materiais

    que o tear poderia lhe proporcionar, passou a exigir

    que sua mulher trabalhasse para que seus ambiciosos

    sonhos fossem concretizados. Assim, incutiu na mu-

    lher um dever-fazer, o que podemos perceber pelo uso

    de verbos ligados ao campo lexical da ordem: exigiu

    e ordenou. Tambm podemos perceber isso em outro

    fragmento: Exigiu que escolhesse as mais belas ls

    cor de tijolo, fi os verdes para os batentes, e pressa

    para a casa acontecer. (COLASANTI, 2001, p. 12)

    Ou ainda no seguinte trecho: Sem querer resposta,

    imediatamente ordenou que fosse de pedra com arre-

    mates de prata. (COLASANTI, 2001, p. 13)

    Manipulada a querer-fazer e a dever-fazer, a

    moa tecel, possuidora dos elementos modais saber

    e poder, realiza a performance: Dias e dias, semanas

    e meses trabalhou a moa tecendo tetos e portas, p-

    tios e escadas, e salas e poos. A neve caa l fora, e

    ela no tinha tempo para chamar o sol. A noite chega-

    va, e ela no tinha tempo para arrematar o dia. (CO-

    LASANTI, 2001, p. 13) Como podemos perceber, os

    campos lexicais tear material e universo material pas-

    sam a abundar nessa segunda parte do conto, em que

    a mulher acaba por se submeter aos caprichos do ho-

    mem que tecera, e tece um grande palcio, cheio de

    cmodos: Sem descanso tecia a mulher os caprichos

    do marido, enchendo o palcio de luxos, os cofres de

    moedas, as salas de criados. (COLASANTI, 2001,

    p. 13)

    No entanto, a mulher volta para seu estado ini-

    cial de falta, o que percebemos pelo paralelismo nas

    estruturas sintticas do conto. Lembremos que, no in-

    cio, ao sentir a falta de um homem, a estruturao sin-

    ttica se manifesta da seguinte forma: Tecer era tudo

    o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer. (CO-

    LASANTI, 2001, p. 12) E, logo em seguida: Mas te-

    cendo e tecendo, ela prpria trouxe o tempo em que se

    sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou como seria

    bom ter um marido ao lado. (COLASANTI, 2001, p.

    12) Comparemos esses fragmentos com os seguintes:

    Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que que-

    ria fazer. E, tecendo, ela prpria trouxe o tempo em

    que a tristeza lhe pareceu maior que o palcio com

    todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou

    como seria bom estar sozinha de novo. (COLASAN-

    TI, 2001, p. 13) Ao compararmos os trechos dos dois

    momentos da narrativa, percebemos dois momentos

    de falta: a falta da fi gura masculina e a falta da li-

    berdade. No conto, a fi gura masculina causa opresso

    personagem feminina, pois, ao fazer-lhe constantes

    exigncias, impede que a tecel se volte para seu uni-

    verso natural.

    Insatisfeita com a falta de liberdade, a tecel

    desfez tudo o que tecera:

    Desta vez no precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lanadeira ao contrrio, e, jogando-a de um lado para o outro, comeou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as es-trebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palcio e todas as maravilhas que continha.

    (COLASANTI, 2001, p. 13-14)

    Ao destecer o mundo material do marido, a

    tecel acaba por sancion-lo negativamente, pois o

    priva das riquezas materiais: A noite acabava quan-

    do o marido, estranhando a cama dura, acordou, e

    espantado olhou em volta. (COLASANTI, 2001, p.

    14). Para se ver livre do universo material e opressivo

    representado pelo marido, a moa acaba por deste-

  • Revista Discente do CELL n 0 1 sem. 2010

    cer esse marido: No teve tempo de se levantar. Ela

    j desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu

    seus ps desaparecendo, sumindo as pernas. Rpido,

    o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado,

    o emplumado chapu. (COLASANTI, 2001, p. 14)

    E novamente a narrativa retorna ao ponto ini-

    cial, descrio semelhante do primeiro pargrafo:

    Ento, como se ouvisse a chegada do sol, a moa

    escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar

    entre os fi os, delicado trao de luz, que a manh re-

    petiu na linha do horizonte. (COLASANTI, 2001,

    p. 14) Percebemos neste fragmento a volta de fi guras

    do campo lexical do universo natural: trao de luz,

    manh, linha do horizonte.

    Aps a anlise do nvel narrativo do conto, po-

    demos agrupar os quatro campos lexicais em duas

    categorias semnticas que esto na base da constru-

    o do texto: o universo natural e o universo material.

    Essas relaes so descritas por meio do quadrado se-

    mitico, cujas operaes, realizadas em seu interior,

    negam um contedo e afi rmam outro, engendrando

    a signifi cao e tornando-a, como vimos, passvel de

    narrativizao (BARROS, 1988, p. 23). Assim, a te-

    cel, sujeito da narrativa, passa do universo natural

    para o no natural ao abandonar seus sonhos em virtu-

    de dos caprichos do marido, para chegar ao universo

    material ao concretizar as ambies de seu compa-

    nheiro. No entanto, no seu segundo percurso narrati-

    vo, passa para o universo do no material ao destecer

    tudo o que fi zera e, fi nalmente, regressa ao universo

    natural ao destecer o marido e tecer novamente a cla-

    ridade de sua vida.

    Conforme pudemos depreender da anlise

    proposta no conto A moa tecel, a mulher enclau-

    surada e confi nada aos afazeres domsticos busca a

    completude em um companheiro por meio da tessi-

    tura de seu destino. No entanto, aps se submeter

    aos caprichos do marido, a moa tecel rompe com

    o universo do patriarcado imposto pela cultura no

    momento em que decide renunciar a essa forma de

    felicidade tradicionalmente veiculada e optar pela

    realizao por meio de sua liberdade. Temos um tex-

    to organizado em dois paradigmas: o do mundo ma-

    terial veiculado pelo marido e o do mundo natural,

    presente no incio e no fi nal do conto. A personagem

    feminina passa do mundo natural para o material,

    para depois regressar ao natural, quando se percebe

    como sujeito autnomo, aps tecer sua sexualida-

    de e se descobrir enquanto mulher, sujeito de seu

    prprio destino.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso:

    fundamentos semiticos. So Paulo: Atual, 1988.

    COLASANTI, Marina. A moa tecel. In: _____.

    Doze reis e a moa no labirinto do vento. 10. ed. So

    Paulo: Global, 2001, p. 9-14.

    FIORIN, Jos Luiz. Elementos de anlise do discur-

    so. So Paulo: Contexto/Edusp, 1989. (Repensando a

    Lngua Portuguesa).

    GREIMAS, Algirdas Julien. Os atuantes, os atores

    e as fi guras. Trad. Jesus Antnio Durigan. In: CHA-

    BROL, Claude (org.). Semitica narrativa e textual.

    So Paulo: Cultrix/Edusp, 1977, p. 179-95.

    MAURAND, Georges. Pratiques smio-linguistiques

    de lcole lmentaire. Langue franaise, 61, 1984.

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