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REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 Jack Brandão 179 EIKÓN, EIDOLON, IMAGO. IMAGEM: ÉTIMO E EMPREGO DISSUASSÓRIO Prof. Dr. Jack Brandão 1 http://lattes.cnpq.br/0770952659162153 RESUMO – Este artigo pretende discorrer acerca da importância não só de se conhecer a questão etimológica do termo imagem – de modo especial a partir da comparação tanto com os termos gregos correspondentes, eikón e eidolon, quanto do latino imago –, como também demonstrar seu poder intimidatório e coercitivo, empregado há milênios. De posse dessas informações, buscaremos exemplificar como tais termos foram empregados por Homero e Virgílio, coligindo suas peculiaridades, a fim de que possamos conhecer não apenas o conceito em si, mas suas implicações linguísticas. Assim, poderemos compreender a imagem não mais como mera cópia inintencional do mundo exterior, mas como demonstração intencional de força e de poder empregada desde Antiguidade por muitos povos, mas que ainda mantêm a mesma eficácia em nossos dias, conforme exemplificaremos. PALAVRAS-CHAVE Imagem, poder coercitivo, etimologia, fotografia, iconofotologia ABSTRACT – This article aims to discuss about the importance of not only knowing the etymological question of image term – especially from the comparison with the corresponding Greek terms, eikon and eidolon, and with the Latin imago – as well as demonstrate its intimidatory and coercive power, used for millennia. With this information, we will seek to exemplify how these terms were employed by Homer and Virgil, collecting their peculiarities, so that we can know not only the concept itself, but its linguistic implications. Thus, we can understand the image no longer as mere unintentional copy of the outside world, but as a deliberate show of force and power used since ancient times by many people, but still maintain the same efficiency in our day, as shall illustrate. KEYWORDS – Image, coercive power, etymology, photography, Iconophotology 1 Mestre e Doutor em Literatura pela Universidade de São Paulo (USP), Professor Titular do Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade de Santo Amaro (UNISA/SP) e coordenador do Grupo de Pesquisa CONDESIM-FOTÓS/DGP-CAPES.

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VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016

Jack Brandão

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EIKÓN, EIDOLON, IMAGO.

IMAGEM: ÉTIMO E EMPREGO

DISSUASSÓRIO

Prof. Dr. Jack Brandão1

http://lattes.cnpq.br/0770952659162153

RESUMO – Este artigo pretende discorrer acerca da importância não só de se

conhecer a questão etimológica do termo imagem – de modo especial a partir da

comparação tanto com os termos gregos correspondentes, eikón e eidolon, quanto do

latino imago –, como também demonstrar seu poder intimidatório e coercitivo,

empregado há milênios. De posse dessas informações, buscaremos exemplificar como

tais termos foram empregados por Homero e Virgílio, coligindo suas peculiaridades, a

fim de que possamos conhecer não apenas o conceito em si, mas suas implicações

linguísticas. Assim, poderemos compreender a imagem não mais como mera cópia

inintencional do mundo exterior, mas como demonstração intencional de força e de

poder empregada desde Antiguidade por muitos povos, mas que ainda mantêm a

mesma eficácia em nossos dias, conforme exemplificaremos.

PALAVRAS-CHAVE – Imagem, poder coercitivo, etimologia, fotografia,

iconofotologia

ABSTRACT – This article aims to discuss about the importance of not only

knowing the etymological question of image term – especially from the comparison

with the corresponding Greek terms, eikon and eidolon, and with the Latin imago – as

well as demonstrate its intimidatory and coercive power, used for millennia. With

this information, we will seek to exemplify how these terms were employed by

Homer and Virgil, collecting their peculiarities, so that we can know not only the

concept itself, but its linguistic implications. Thus, we can understand the image no

longer as mere unintentional copy of the outside world, but as a deliberate show of

force and power used since ancient times by many people, but still maintain the same

efficiency in our day, as shall illustrate.

KEYWORDS – Image, coercive power, etymology, photography, Iconophotology

1

Mestre e Doutor em Literatura pela Universidade de São Paulo (USP), Professor Titular do Mestrado

Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade de Santo Amaro (UNISA/SP) e coordenador

do Grupo de Pesquisa CONDESIM-FOTÓS/DGP-CAPES.

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Questão etimológica

κῆηερ ἐκή, ηί λύ κ᾽ οὐ κίκλεης ἑιέεηλ κεκαῶηα,

ὄθρα θαὶ εἰλ Ἀίδαο θίιας περὶ τεῖρε βαιόληε

ἀκθοηέρω θρσεροῖο ηεηαρπώκεζζα γόοηο;

ἦ ηί κοη εἴδωλον ηόδ᾽ ἀγασὴ Περζεθόλεηα

ὤηρσλ᾽, ὄθρ᾽ ἔηη κᾶιιολ ὀδσρόκελος ζηελατίδω2

(HOMERO XI, 211-215)

Homero, ao nos fazer acompanhar Odisseu ao Hades à procura de Tirésias,

acaba, de certa maneira, nos proporcionando mais do que a mera fruição de suas

palavras, já que nos remete a um objeto quase ontológico: a questão do ser do

conceito imagem. Isso porque o herói, em seu inesperado encontro com Anticleia,

sua mãe – que se matara por não poder esperar mais pelo retorno do filho amado e

diante das investidas dos pretendentes a sua nora –, sofre por enxergá-la, mas ao

mesmo tempo por não olhá-la claramente, nem por poder tocá-la; afinal, aquilo que

estava diante de seus olhos não era mais a mãe, apenas seu εἴδωιολ (eídolon), um mero

simulacro daquilo que ela fora um dia: “quis abraçar a psique de minha mãe sem vida.

Três vezes me lancei [...], três vezes feito sombra ou sonho, se evolou de minhas

mãos” (ibidem, XI, 205-208).

Não poderia ser diferente: não era mais Anticleia quem enxergava, mas uma

mera ζθηά (skiá – sombra) do que ela foi um dia; e que, de certa maneira, estava

submersa no próprio inconsciente do filho. Era como se aquele tempo, em que ficara

diante das muralhas de Troia, fizesse com que as imagens do herói permanecessem

congeladas e latentes à espera de serem despertadas; mesmo que, aparentemente,

estivessem desaparecidas em meio àquela década perdida. Bastou-lhe, no entanto, um

mero start para que viessem à tona naquele espectral mar imagético em que o herói

estava imerso, em meio a meras sombras.

2

“Mãe, minha mãe, por que rejeitas minhas mãos/ que avançam, se desejo saciar de pranto/ glacial a

nós, aos dois, no enlace pelos ínferos?/ Perséfone sublime acaso envia um ícone,/ para aumentar-me a

dor que verto em pranto?” (tradução de VIEIRA, 2012)

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Não por acaso e segundo o senso comum a seu respeito, Platão, considerado o

filósofo do não às imagens, enxergava-as assim: meras sombras3

. Esquece-se, porém,

de que, na República, o mesmo aponta diversas vezes para as imagens em seu modelo

dialético e maiêutico (AZEVEDO, 2003), daí valer-se delas – sol, linha, caverna –, a

fim de se chegar à verdade, por meio do ιόγος (lógos), ele mesmo imagem.

(BRANDÃO, 2014)

Um fato, porém, que ainda nos chama a atenção na obra em questão, é que, ao

referir-se àquilo que hoje chamamos de imagem, o filósofo pouco emprega, como

seria de se esperar em alguém que rechaça as imagens por serem meras sombras, os

termos ζθηά ou εἴδωιολ – enquanto sinônimas de sombra, esboço, silhueta de um

morto –, mas εἰθὼλ (eikón) – imagem que se assemelha a um objeto, pintura,

pensamento, imagens mentais, comparação, semelhança4

(PAPE, 2005), conforme é

possível aferir no diálogo entre Sócrates e Adimanto5

: “Suscitas uma questão à qual só

posso responder por uma imagem.”6

“Mas não é costume teu expressar-te por

imagens!”7

(Trad. CORIVISIERI, 1997)8

Se para os gregos εἰθὼλ e εἴδωιολ correspondiam aos dois domínios imagéticos

da representação – a) um, o do mundo que temos diante de nós, por meio de

desenhos, gravuras, esculturas, pinturas, fotografias; b) outro, o de nosso mundo

imaterial, formado em nossa mente, como nossas fantasias, visões, sonhos,

3

Retirado do mito da caverna: “πανηάπαζι δή, ἦν δ᾽ ἐγώ, οἱ ηοιοῦηοι οὐκ ἂν ἄλλο ηι νομίζοιεν ηὸ ἀληθὲς

ἢ ηὰς ηῶν ζκεσαζηῶν σκιάς”. (PLATÃO, VII, 515) [Dessa forma, tais homens não atribuirão realidade

senão às sombras dos objetos fabricados. (trad. de CORIVISIERI, 1997)]

4

Não nos cabe emitir juízo do porquê de tal utilização, tampouco as razões que levaram o filósofo a

esse emprego, visto que nossa preocupação é tão-somente o emprego do termo εἰθὼλ em nossos

propósitos. Interessante, porém, é a forma como Pinheiro (2009, p. 25) havia abordado a questão ao

afirmar que “a Sócrates se faz necessário valer-se do recurso imagético dado que não estão preparados

os seus interlocutores à dialética, ao método que prescinde dos sentidos, portanto das imagens (511c). Por

isso, a episteme dialética, nível noético da passagem da Linha, é apresentada na República, por imagens,

isto é, no nível dianoético”.

5

Do qual nos interessa, tão-somente, a figura lexical εἰθὼλ, a título ilustrativo.

6

“ἐρωηᾷς, ἦν δ᾽ ἐγώ, ἐρώηημα δεόμενον ἀποκρίζεως δι᾽ εἰκόνος λεγομένης.”

7

“ζὺ δέ γε, ἔθη, οἶμαι οὐκ εἴωθας δι᾽ εἰκόνων λέγειν.”

8

Note-se que a tradução de Shorey (1969) para o inglês é: “Your question,” I said, “requires an answer

expressed in a comparison or parable.” “And you,” he said, “of course, are not accustomed to speak in

comparisons!”

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pensamentos –; os romanos empregavam um conceito que abarcaria ambos os

domínios: imago.

É possível verificar isso, a partir do excerto da Eneida de Virgílio:

Me patris Anchisae, quotiens umentibus umbris

nox operit terras, quotiens astra ignea surgunt,

admonet in somnis et turbida terret imago9

. (VIRGÍLIO IV, 351)

O poeta emprega, nos versos acima, a acepção de “reminiscência”,

demonstrando-nos o domínio imaterial da imagem (εἴδωιολ) em nossa mente; algo

semelhante se passa nos Campos Elísios, próximo ao vale do Rio Lete, no momento

em que pai e filho se encontram. Este conta àquele o quanto não o tirava de sua

cabeça:

[...] Tua me, genitor, tua tristis imago,

saepius occurrens, haec limina tendere adegit [...].10

(ibidem, VI, 695-

696, grifo nosso)

Tal imagem imaterial, porém, também εἴδωιολ não se difere daquela que

Eneias tem agora diante de si, mesmo podendo vê-la e ouvi-la. Assim, de maneira

semelhante a Odisseu, quando esteve diante de sua mãe no Hades, ou mesmo Aquiles

que vislumbrou Pátroclo antes de seu funeral (HOMERO, 2011, XXIII, 60-107), o

herói de Virgílio também tenta tocar, sentir, ter o pai entre seus braços e mãos:

[...] Da iungere dextram,

da, genitor, teque amplexu ne subtrahe nostro!"

Sic memorans largo fletu simul ora rigabat.

Ter conatus ibi collo dare brachia circum,

ter frustra comprensa manus effugit imago

par levibus ventis volucrique simillima somno11

. (ibidem, VI, 697b-

702, grifo nosso)*

9

“Noites seguidas Anquises, meu pai, quando a úmidas sombras/ à terra baixam, ou quando se elevam

fulgentes os astros,/ sim, sua pálida imagem nos sonhos me admoesta, me aterra” (trad. de NUNES,

2014, IV 351)

10

“Tua imagem, meu pai, dolorida, /que a cada instante me vinha à memória, ao destino me trouxe.”

(trad. de NUNES, 2014, IV 351)

11

“Permite/ que as mãos nos demos; não negues ao filho este amplexo singelo”./ Assim falando, de

lágrimas ternas o rosto banhava./ Três vezes tenta cingi-lo nos braços; três vezes a sombra/ inanemente

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Adiante, e tendo chegado à Itália, Eneias envia emissários ao rei Latino que os

recebe de bom grado e os convida à mesa, no mesmo templo em que se imolava às

divindades. Lá os teucros veem imagens (εἰθὼλ-imago) dos antepassados:

Quin etiam ueterum effigies ex ordine auorum

antiqua e cedro, Italusque paterque Sabinus

uitisator curuam seruans sub imagine falcem,

Saturnusque senex Ianique bifrontis imago

uestibulo astabant, aliique ab origine reges,

Martiaque ob patriam pugnando uulnera passi.12

(ibidem, VII, 177-

182, grifo nosso)*

Verifica-se, portanto, que Virgílio emprega imago como correspondente tanto

para εἴδωιολ, enquanto reminiscência, aparição, sombra, quanto para εἰθὼλ, como

representação do mundo visível: estátuas, figuras, adereços. Não deixando de

empregar, evidentemente, num texto literário como o seu, o metafórico e a

sinonímia: effigies, textum (enquanto figuras urdidas no escudo de Eneias VIII, 626),

simulacrum.

Apesar dessa imiscuição sígnica em torno de imago, não abandonamos, por

completo, as acepções nem a diferenciação grega para os domínios da representação

imagética:

De εἰθὼλ resulta a palavra ícone, que se empregará como todo tipo

de imagem, que pode ser tanto natural – como os reflexos da

natureza –, quanto artificial – as pinturas e a fotografia.

Por outro lado, da palavra εἴδωιολ temos:

a) ídolo – com as acepções de simulacro13

, fantasma; ou objeto de

desejo, de fetiche, à semelhança dos ídolos criados na Antiguidade

para servirem de deuses; e

apertada das mãos se lhe escapa, tal como/aura ligeira ao passar ou roçar ao de leve de um sonho.”

(ibidem)

12

“Mais: no vestíbulo viam-se estátuas de cedro já velho,/ dos descendentes: a de Ítalo, do vinhateiro

Sabino,/ pai venerando, e a seus pés, encurvado, o podão de trabalho,/ Saturno velho e, mais longe, a

figura de Jano bifronte./ Outras seguiam-se, nobres imagens dos chefes primeiros,/ que derramaram

seu sangue em defesa da pátria querida.” (ibidem)

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b) idolatria14

(εἴδωιολ + ιαηρεία), ou seja, culto à imagem.

(BRANDÃO, 2014, p. 178-179)

Pequenas digressões acerca da imagem

Da mesma forma que não é uma tarefa fácil encontrar o étimo da palavra

imagem, mais complicado ainda é tentar defini-la, visto que “falar em imagem seria o

mesmo que falar em homo sapiens, pois ela está de tal forma inserida na humanidade e

com ela que seria pouco provável imaginar esta alijada daquela” (BRANDÃO, 2014,

p. 178).

É evidente que “o mundo e a humanidade poderiam existir sem imagens, mas

seriam um mundo e uma humanidade essencialmente distintos” (DOMÈNICH, 2011,

p. 11). Em outras palavras: não haveria nem homem, nem civilização, isso porque a

“imagem é a expressão da cultura humana desde antes de as pinturas rupestres

aparecerem nas cavernas, milênios antes do aparecimento do registro fonético do

ιόγος pela escrita” (BRANDÃO, 2014, p. 179); é, a partir delas, que apreendemos o

mundo, por meio de uma imagem central: nosso próprio corpo (BERGSON, 1999),

não à toa

the most universal visual graphic feature seems to be self-adornment:

body painting, ritual scarring of the face and torso, elaborate hair

arrangements, and refinements of costume. Costume in particular

took an vital symbolic functions in ritual and religion, probably

13

“A ideia de simulacro remete a Platão e seu conceito de κίκεζης. Segundo o filósofo, há uma oposição

insuperável entre o mundo sensível e o mundo das Ideias e, para ilustrar o tema, empregou o conceito da

caverna: o real, ao projetar-se na parede, traduz-se em irrealidade que as pessoas, em seu interior, creem

ser a realidade, afinal seus sentidos só teriam condições de alcançar simulacros. O real torna-se ideal,

cujas Ideias – universais, imutáveis, eternas –, habitam o exterior e são inatingíveis pelos meros sentidos

corporais; o mundo sensível, o irreal, não passa, portanto, de um teatro de sombras e reflexos. Por isso,

para Platão, o fato de a κίκεζης ser uma mera imitação da irrealidade – da sombra projetada –, toda arte

constitui-se de um desvio em relação à essência, uma falsidade, que aponta para o mero simulacro, do

qual o mundo também faz parte, envolvido que está no mundo de aparências, por isso o ser humano

não consegue atingir sua essência.” (BRANDÃO, 2014, p. 179)

14

A partir do século XVI, com a Reforma, surgiram os embates entre católicos e protestantes acerca

das imagens. Para estes os católicos adoravam imagens, vendo-as, portanto como είδωιολ, enquanto

aqueles ao rechaçar a imagem, buscavam a iconoclastia.

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drawing on the visually creative resources of the society more than

any other medium15

. (DONALD, 1993, p. 277)

Assim, diante da importância do processo imagético, diversas teorias surgiram

e procuraram explicá-lo mítica, linguística, antropológica ou culturalmente. Dessa

maneira, não se tem a pretensão de, num espaço tão curto como este, traçar longas

considerações acerca dessa temática, pelo menos do ponto de vista teórico, mas

levantar algumas considerações, para que possamos, na terceira parte deste texto,

inserir alguns exemplos.

Podemos restringir nossa exposição a dois aspectos:

I. Ao duplo domínio das imagens:

a) como representação material do mundo que se tem ao redor, calcado no

εἰθὼλ: desenhos, gravuras, pinturas, esculturas, fotos, imagens televisivas,

cinematográficas;

b) como representação imaterial, presente em nossa mente, calcado no

εἴδωιολ: sonhos, visões, fantasias, imaginações, representações mentais, pensamentos.

II. À dupla realidade das imagens:

a) sua bidimensionalidade, enquanto objeto visível e tangível;

b) sua tridimensionalidade, cuja percepção é construída dentro de uma

demarcação específica em um determinado tempo e espaço, sujeito a codificações

próprias, não à toa trata-se de um fenômeno psicológico. (AUMONT, 2002)

Ao depararmo-nos com a figuração pós-Renascimento, em que se emprega a

perspectiva artificialis, verificamos que a imagem inserida em uma superfície plana –

seja em um suporte grande, como uma parede (fig. 1); seja em um menor, como uma

tela, delimitada pela moldura –, tem-se a impressão de se enxergar em profundidade,

de ser possível entrar no espaço imagético.

15

[(...) o recurso visuográfico mais universal parece ter sido o auto adorno: a pintura corporal, cicatrizes

rituais na face e torso, arranjos de cabelo elaborados, e refinamentos do traje. Os trajes, de modo

particular, ocuparam funções vitais simbólicas no ritual e na religião, provavelmente com base nos

recursos visuais criativos da sociedade mais do que qualquer outro meio. (tradução nossa)]

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Figura 1

Santíssima Trindade, Massaccio, 1426-1428, Igreja Santa Maria Novella, Italia

Os pressupostos para essa nova maneira de enxergar o mundo foram

estabelecidos por Alberti, em sua obra De pictura, publicada em 1436, quando

divisava diante de um quadro branco uma “janela aberta.” (ALBERTI, 2014, p. 88)

Mas, para que isso fosse factível, precisava enxergá-lo como a secção plana de uma

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pirâmide visual, cujo vértice era no interior do globo ocular. Em seguida ligava esse

ponto, por meio de linhas retas – os raios visuais –, aos contornos de todos os objetos

do campo visual. As linhas deveriam determinar a posição relativa dos objetos no

quadro.

A imagem obtida, por intermédio deste sistema, mostrava uma hierarquia de

proporções, representando a distância em que determinado objeto se encontrava de

outro; obtinha-se, assim, uma impressão de tridimensionalidade. Os raios visuais,

prolongando-se de forma invisível no espaço, convergiam para o ponto de fuga.

Assim, segundo o teórico italiano, a pintura seria a “intersecção da pirâmide visual

representada com arte por linhas e cores numa dada superfície, de acordo com uma

certa distância e posição do centro e o estabelecimento de luzes.” (ibidem, p. 83)

De tal modo, por meio da matemática e empregando um espaço geométrico

abstrato, foi dada ao pintor a oportunidade de realizar, em uma superfície plana (2D),

uma representação onde se emula não só a profundidade (3D) do ambiente e dos seres

nele inseridos, como também a percepção, também abstrata, da realidade.

Não se deve esquecer, entretanto, de que enxergamos com dois olhos, por

meio de uma visão bilocular, enquanto a perspectiva artificialis nos oferece uma visão

unilocular da realidade, ao empregar apenas um olho; restringe-se, portanto, a

totalidade do que se pode contemplar. Desse modo, tal representação revela-se como

mensageira de uma ordem simbólica modulada e intermediada, exatamente, pelas

regras da geometria. (EL-BIZRI, 2014)

Ao discernirmos essa superfície plana (2D), é possível reconhecer o suporte

(tela, papel, parede, por exemplo) empregado pela imagem; a superfície onde ela se

fixou; as distorções sofridas por ela, em relação à realidade que procurou emular.

Apesar desse conhecimento prévio; temos, no entanto, a percepção de enxergá-la em

profundidade (3D), como se nos fosse possível adentrar a cena, como no afresco de

Massaccio (fig. 1). Não à toa, Vasari (2011), em sua Vida dos artistas (publicado

originalmente em 1550), diz acerca do pintor:

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[...] tudo o que foi feito antes dele era realmente pintado e pintura,

ao passo que suas obras, em comparação com as de seus concorrentes

e com as daqueles que quiseram imitá-lo, parecem vivas e

verdadeiras, e não imitações da natureza. (VASARI, 2011, p. 218)

Tal ilusão tridimensional, porém, não é real, mas fenomênica, uma mera

percepção do real, não suas qualidades em si mesmo (DOMÈNECH, 2011), para a

qual é imprescindível a inclusão do sujeito-leitor que decodifica/reconstrói o

perspectivismo criado pelo artista.

Quanto ao duplo domínio das imagens, um aspecto que merece atenção é o

fato de que ambas – a representação material e imaterial – não existem separadas, já

que “estão inextricavelmente ligados já em sua gênese”. (SANTAELLA. NÖTH,

2005, p. 15) Isso quer dizer que não há imagens, enquanto representações visuais e

materiais do mundo, “que não tenham surgido na mente daqueles que as produziram”

(ibidem, p. 15); ou, como diziam os gregos, o ηετσίηες (artista) deve vislumbrar sua

obra, seu είδος (eîdos), anteriormente, em sua mente (BRANDÃO, 2015); afinal, o

corpo, enquanto imagem privilegiada, regula todas as outras (BERGSON, 1999),

mesmo aquelas em que há o emprego de meios técnicos. De um modo semelhante,

“não há imagens mentais que não tenham alguma origem no mundo concreto dos

objetos visuais.” (SANTAELLA. NÖTH, 2005, p. 15)

Em uma perspectiva semiótica, o que une os dois domínios são os conceitos de

signo e representação. Aquele é “tudo quanto possa ser assumido como um

substituto significante de outra coisa qualquer” (ECO, 2003, p. 4) que não precisa,

necessariamente, “subsistir de fato” (ibidem, p. 4), mas existe “toda vez que um grupo

humano decide usar algo como veículo de outra coisa” (ibidem, p. 14); esta se refere,

se nos restringirmos a Peirce, a algo que está em lugar de outro algo de tal forma que é

considerado por alguém como se, realmente, fosse esse outro: um porta-voz

representa um governador, um presidente, ou seja, um governo ou uma empresa; um

agente representa a força policial que representa o Estado; um sintoma representa

uma enfermidade (PEIRCE, 2005, p. 61):

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Uma palavra representa algo para a concepção na mente do ouvinte,

um retrato representa a pessoa para quem ele dirige a concepção de

reconhecimento, um cata-vento representa a direção do vento para a

concepção daquele que o entende, um advogado representa seu

cliente para o juiz! (PEIRCE, apud SANTAELLA. NÖTH, 2005, p.

17, grifo nosso)

Assim, enquanto para Saussure (2006), o signo é “entidade psíquica de duas

faces” (p. 80) – significante e significado – “intimamente unidos e um reclama o

outro” (SAUSSURE, 2006, p.80); para Peirce (2005), o signo16

– representâmen – se

“dá em uma relação triádica genuína [...] com seu objeto, que é capaz de determinar

[...] e seu interpretante” (PEIRCE, 2005, p. 63), representando “algo para alguém.

Dirige-se a alguém, isto é, cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez

um signo mais desenvolvido” (ibidem, p. 46).

O objeto, por sua vez, divide-se em ícone, índice e símbolo17

:

O ícone não tem conexão dinâmica alguma com o objeto que

representa; simplesmente acontece que suas qualidades se

assemelham às do objeto e excitam sensações análogas na mente para

a qual é uma semelhança. Mas, na verdade, não mantém conexão

com elas. O índice está fisicamente conectado com seu objeto;

formam um par orgânico, porém a mente interpretante nada tem a

ver com essa conexão, exceto o fato de registrá-la, depois de

estabelecida. O símbolo está conectado a seu objeto por força da

ideia da mente-que-usa-o-símbolo, sem a qual essa conexão não

existiria. (ibidem, p. 73, grifo nosso)

As imagens tanto podem ser ícones, índices ou símbolos, apesar de esses signos

se manifestarem de maneira distinta em seus diferentes gêneros: a imagem indexical,

por exemplo, manifesta-se na fotografia e na pintura realista; a icônica, na pintura não

16

Peirce diz ainda que, quando se quer distinguir entre “aquilo que representa” e o “ato de

representação”, “pode-se denominar o primeiro de representâmen e o segundo de representação.”

(PEIRCE, 2005, p. 61)

17

Criticado, se certa forma por ECO (2003), como “categorias ‘passepartout’ ou ‘noções guarda-chuva’,

que funcionam exatamente por sua vagueza, como ocorre com a categoria ‘signo’ ou mesmo com a de

‘coisa.’” (p. 157)

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figurativa e na abstrata; a simbólica, naquela que é codificada iconológica e

iconograficamente. (SANTAELLA. NÖTH, 2005)

Apesar das críticas que a classificação peirceiana possa ter suscitado, ela nos

ajuda a tentar compreender a questão da imagem como signo, facilitando nossa

compreensão, fato abordado por Joly (2012):

Se aqui a retomamos é porque ela nos parece útil para a

compreensão das imagens e dos diferentes tipos de imagens, assim

como para a compreensão do seu modo de funcionamento, é certo

que ela exige certas gradações e Peirce foi o primeiro a dedicar-se a

essa tarefa, afirmando que não existe signo puro, mas somente

características dominantes. (p. 36)

Quanto às imagens mentais – enquanto simulacros das do mundo –, convém

salientar que nem todas são decodificadas da mesma maneira por todas as pessoas. Isso

se deve porque cada uma pode criar seu próprio sistema de representação que

depende, dentre outros fatores, de como sua memória estabelece infinitas relações e

associações de maneira livre e aleatória, desde que não se tenha um modelo (muitas

vezes imposto!) a se seguir, como é o caso de gravuras ou imagens nos textos

literários, por exemplo.

Lembro-me, certa vez, de uma aluna que me disse que Capitu, realmente,

havia traído Bentinho, em Dom Casmurro, porque seu filho era a cara de Escobar.

Ao perguntar-lhe como ela havia chegado a essa conclusão, respondeu-me que a capa

do livro mostrava isso. Ao reparar na mesma, percebi que isso acontecia realmente: o

garoto representado era a fotocópia de Escobar18

, cuja imagem estava refletida em um

espelho, sugerindo, de maneira impositiva (não me é possível saber se intencional ou

não), o adultério.

18

Realmente não fica claro saber se a imagem do espelho realmente é a de Escobar, ou do filho do casal

já adulto, tamanha é a semelhança.

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Mitchell (1987) classifica os diversos tipos imagéticos e como se expressam da

seguinte maneira, demonstrando-nos que para cada tipo de imagem há suportes

específicos, bem como meios próprios de percepção:

Figura 2

The Family of Images (MITCHELL, 1987, p. 10)

Assim, devido a essa particularização, os diversos tipos imagéticos serão objeto

de estudo de uma ou mais disciplinas, a partir da delimitação de seu campo de estudo:

mental imagery belongs to psychology and epistemology; optical

imagery to physics; graphic, sculptural, and architectural imagery

to the art historian; verbal imagery to the literary critic; perceptual

images occupy a kind of border region where physiologists,

neurologists, psychologists, art historians, and students of optics

find themselves collaborating with philosophers and literary

critics19

. (MITCHELL, 1987, p. 11)

19

[...] imagens mentais pertencem à psicologia e à epistemologia; imagens ópticas, à física; imagem

gráfica, escultórica e arquitetônica, ao historiador de arte; imagens verbais, ao crítico literário; imagens

perceptivas ocupam uma espécie de região fronteiriça, onde fisiologistas, neurologistas, psicólogos,

historiadores de arte e estudantes de óptica encontram-se a colaborar com filósofos e críticos literários.

(tradução nossa)]

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De posse de suas particularidades, cada uma dessas disciplinas descreverá esse

objeto por meio de “a vast literature on the function of images in its own domain, a

situation that tends to intimidate anyone who tries to take an overview of the problem”.20

(ibidem, p. 10) Mantém-se, dessa forma, um alijamento desnecessário, visto que as

fronteiras entre essas diferentes maneiras de se enxergá-las não se apresentam assim

tão rigidamente estabelecidas como parecem.

Diríamos até que além de uma possível intimidação àqueles que se dedicam a

estudar a questão da imagem, para se buscar uma coerência entre tais particularidades

ou mesmo uma “iconologia coerente” (ibidem, p. 12) – não comum a todas, mas

comunicante entre si –, seria o fato de que se pode deparar com aqueles que, mais que

agregar, unindo esforços interdisciplinares, acabam afastando-se ainda mais desse

campo, ao conceberem que a imagem possa pairar apenas nesse ou naquele.

Imagem: emprego dissuasório

Quando hoje nos vemos cercados por uma infinidade de imagens, não nos

damos conta de seu poder sobre nós; pelo contrário, acreditamos que somos seus

senhores e que impomos nossa vontade e desejos sobre elas. Claro está que, ao

pensarmos assim, agimos de modo pueril, pois não se pode negar o óbvio: somos tão

vulneráveis a elas como eram os povos ditos primitivos, antes mesmo do apogeu das

antigas grandes civilizações humanas.

Talvez uma grande diferença entre nós e nossos predecessores seja não só a

propagação sem limites das imagens que se verifica hoje – em meio a um sem número

de mídias que temos à disposição –, como também ao fato de lutarmos sempre contra

elas, não admitindo nossa sujeição, tampouco nela acreditando. Esquece-se, porém, de

sua capacidade particular de mediação, a qual controla a percepção que temos do

mundo, levando seu leitor a ter, ou não, atenção sobre esse ou aquele objeto.

20

[(...)uma vasta literatura sobre a função das imagens em seu próprio domínio, uma situação que tende

a intimidar quem tenta ter uma visão geral do problema.]

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Ao agir dessa maneira, a imagem emprega, muitas vezes, um expediente

tirânico e implacável, semelhante inclusive ao da Bíblia, em sua coerção e pretensão de

ser e de criar um “único mundo verdadeiro” (AUERBACH, 2004, p. 11), sem precisar

sequer afirmar isso, afinal deixamo-nos possuir e somos induzidos a isso.

É a não aceitação do jugo imagético e de seu poder sobre nós, que nos torna

presas fáceis de seus desmandos, levando a humanidade a aceitar e a compactuar com

aberrações e atrocidades contra seus semelhantes, normalmente sob os auspícios de se

fazer o bem. Os nazistas, por exemplo, por meio de imagens, reconfiguraram o

conceito que os alemães possuíam dos judeus, ao associar-lhes, de maneira constante e

por diversos meios, a figuras horrendas, caricatas e demoníacas.

Isso, simplesmente, acontece porque a lógica da não aceitação do jugo, é apenas

uma:

a massa nunca questionará aquilo que vai receber, mesmo que sejam

inverdades, factoides, ou dados, simplesmente inventados, a partir da

história. Entretanto, para que a propaganda surta o efeito desejado e

seja eficiente, é indispensável que contenha pouca informação, mas

que essa seja empregada à exaustão, de forma persistente, contínua,

constante, inalterável; somente assim logrará êxito [...].

(BRANDÃO. SOUSA, 2015, p. 356)

Mas, apesar da persistência com que tais imagens devem ser empregadas para se

subornar a massa, as imagens apresentadas sobre uma mesma temática devem conter algumas

variações, a fim de não suscitar o tédio e aborrecer seu receptor (HITLER, 1943;

DOMENACH, 1968), perdendo sua eficácia. Assim, para se desconstruir a imagem de

alguém, faz-se necessário apenas mostrar facetas da verdade, de forma intermitente e

continuada, tendo apenas o cuidado de fazer pausas momentâneas, a fim de não enfastiar o

leitor.

Nem seria necessário retroceder tanto no tempo para demonstrar como funciona o

poder da desconstrução imagética e a impassibilidade de a massa lidar com elas. Basta,

para isso, analisarem-se as imagens empregadas, exaustivamente, pelas mídias sociais e

por alguns mass media nas eleições presidenciais brasileiras de 2014, para se verificar

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como, dependendo de seu emprego, podem ser tornar uma forma tirânica de se

induzir o ódio latente de classe e espalhá-lo a toda a sociedade, despertando aquilo que

estava adormecido sob os auspícios do politicamente correto. Reconfigura-se, dessa

maneira, toda uma sociedade que sequer se dá conta disso.

Figura 3

Detalhe do Estandarte de Ur, foto de Steven Zucker, c. 2600/2400 a. C.,

British Museum, London

Nos primórdios da humanidade, por exemplo, tudo possuía uma razão de ser,

e uma explicação plausível, mesmo que não compreensível para nossa ratio. Havia

uma crença, quase universal, no poder das imagens (GOMBRICH, 2013),

independente de qual fosse seu suporte ou formato; já que, ao valer-se de quaisquer

objetos retirados da natureza ou por ele fabricados, o homem os transformava em

símbolos, o que conferia aos mesmos uma enorme carga psicológica (JAFFÉ, 2008),

levando-os não apenas à veneração, à contemplação e ao êxtase, mas ao substituto, a

sua própria encarnação.

Ao valer-se da máscara de um animal, por exemplo, o homem que faria

emprego dela não estava apenas transvestido daquele objeto, nem fazia um mero uso

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de uma imagem, mas tornava-se aquele próprio ser (GOMBRICH, 2013), adquiria sua

força, seu poder, seus atributos; isso porque o que se esvai durante sua utilização era

seu próprio ego, sua própria expressão enquanto indivíduo.

O mesmo acontecia com os animais pintados nas cavernas: não eram uma

mera reprodução, nem buscavam deleite ou fruição, possuíam uma função definida,

utilitária, mágica; pois, mais do que trazê-los do exterior para o interior, um mero

decalque, um símile, aqueles homens buscavam conhecê-los, respeitá-los e sucumbi-los

simbolicamente, antecipando sua morte, conforme é possível verificar nas marcas de

perfurações deixadas em muitas dessas figuras. (JAFFÉ, 2008)

Assim, a ideia de que a imagem sempre foi empregada como mera cópia da

realidade, ou como representação do mundo externo, apenas se efetivou após um

longo processo (VERNANT, 1990), isso porque sua função primeira era feérica,

mítica, metafísica, mesmo que o homem ainda não a compreendesse de maneira

clara.

Figura 4

Detalhe do Estandarte de Ur, foto de Steven Zucker, c. 2600/2400 a. C.,

British Museum, London

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Outro ponto importante que merece ser abordado em relação à imagem é sua

relação indissociável em relação aos pictogramas (CAÑIZAL, 1986), às letras

(GOMBRICH, 2013) e ao ιόγος (lógos) (BRANDÃO, 2009a), ou seja, ela foi o

primeiro passo para que o homem, por seu meio pudesse criar mundos paralelos e não

só “dominar a si mesmo, a seus semelhantes, ao mundo físico, como também ir além

daquilo que a própria natureza lhe forneceu, adentrar no metafísico.” (ibidem, p. 282)

Não por acaso as grandes civilizações da Antiguidade também haviam

descoberto mais uma faceta do poder imagético: a da propaganda. Isso se torna mais

claro, quando nos pomos a ler o Estandarte de Ur (fig. 3-4) que, apesar de sua pequena

dimensão (21,59 cm x 49,53 cm), poderia ter sido modelo ou cópia de outras

configurações maiores.

Figura 5

Biga hitita, foto de Michel Royon, ca. de 1000 a. C.

Ancara Archaeological Museum

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No objeto – que não lembra um estandarte já que é, na realidade, uma caixa de

formato trapezoidal –, as imagens são formadas por meio da técnica musiva (conchas,

cornalina, lápis-lazúli e betume), onde é possível ler, à semelhança de uma história em

quadrinhos, constituída de três faixas narrativas horizontais, as ações do exército

sumério em época de guerra.

Na primeira faixa (a superior), vê-se que, sob a liderança do rei – codificado

com a maior compleição física entre todas as figuras presentes –, a infantaria marcha

com suas lanças e machados de um lado, enquanto de outro, veem-se os soldados

trazendo os prisioneiros nus e amarrados como parte do butim (fig. 4); na sequência

(faixa central), os soldados dirigem-se, brutalmente, contra os inimigos, subjugando-os

e humilhando-os – exatamente no ponto médio da cena, sob o rei, um dos soldados

espezinha um cativo, enquanto o soldado a seguir tem na mão direita um porrete e na

outra, roupas que poderiam ser dos prisioneiros que estão nus e repletos de

ferimentos por todo o corpo –; na faixa inferior, verifica-se a ferocidade da cavalaria

que, em sua marcha, passa sobre os vencidos (fig. 3).

Figura 6

Cerco de Dapur por Ramsés II, Templo de Tebas, c. de 1269 a.C.

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É possível verificar que a ideia de passar sobre os inimigos num carro de

guerra será uma representação imagética usual no período por diversos povos;

empregada, inclusive, por meio do ιόγος poético. Homero (2011) nos mostra isso ao

falar do ódio vingativo de Aquiles que “semelho a um demônio, com a lança/ leva aos

imigos a Morte” (XX, 493-494), tingindo o chão de sangue:

Tal como quando o campônio uma junta de bois põe no jugo

para que o trigo debulhe numa eira espaçosa, pisando

logo as espigas os bois mugidores, que, presto, as separam:

guia, desta arte, o Pelida [Aquiles] os cavalos, que, o carro

[arrastavam

sobre os cadáveres e armas. Em cima, o eixo, logo, se torna

completamente coberto de sangue e, assim, à volta do assento,

o parapeito, dos pingos que os cascos dos brutos e as rodas

em movimento jogavam. (HOMERO XX, 495-502)

Figura 7

Ramsés II em batalha com seus filhos, Templo Beit el-Wali, ca. 1550

British Museum, London

Assim como no Estandarte de Ur, é possível ver a mesma temática em um

mural hitita (fig. 5), em cuja representação se percebe um inimigo, também nu, sob o

cavalo. Tal império, que se estendia do norte da Síria até a Anatólia, rivalizava-se com

o egípcio e, por pouco não levou Ramsés II a ser apagado da história, na Batalha de

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Kadesh. Isso porque, ao serem atacados de surpresa, muitos soldados egípcios da

divisão P’ Ra fugiram, obrigando o faraó a lutar pela própria vida e buscar ajuda em

outra divisão de seu exército, o Ptah.

Ramsés, apesar do quase revés, soube tirar proveito desse acontecimento

imageticamente, pois mandou gravar em diversos monumentos e templos de todo

império seu grande feito: um só homem havia enfrentado um exército de vinte mil

inimigos. Eis, ipso facto, o poder da construção de um novo herói, de um novo mito,

de um novo deus. Não à toa, ele aparece sozinho e em destaque, em diversas cenas de

batalhas: ora comandando a subjugação dos inimigos (fig. 6-7), ora os executando com

as próprias mãos. (fig. 8)

Figura 8

Ramsés II matando seus opositores, Templo de Abu Simbel

Dessa maneira, pouco importa o fato de que, segundo a história, o faraó – por

não ter nenhuma possibilidade de vencer os hititas, mas de ser derrotado por eles –

haja preferido a celebração de um vergonhoso tratado de paz com seus inimigos.

Aquilo que importava para ele, para seu povo e para seus prováveis oponentes, foi

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como se deu a construção imagética do episódio, estampada e difundida por todo seu

império e que se tornou a plena verdade do acontecimento.

Assim, por seu emprego, tanto o faraó quanto o evento construídos por seus

artífices e empregados de forma sistematizada passaram a ser, efetivamente, Ramsés II

e sua grande batalha; mesmo que o homem histórico, cuja frágil múmia é possível ser

vista ainda hoje no Museu Egípcio do Cairo, fosse muito diferente de sua retratação; e

sua grande batalha, não passasse de um embuste.

Ao lermos a figura 7, verifica-se uma relação de submissão diferente daquela

verificada nas figuras 3 e 5. O faraó, em seu carro, não está mais apenas sobre uma

pessoa, mas sobre todo um povo, o núbio; representado, de forma esquemática, por

negros e vermelhos, cujas formas são diminutas, em relação ao tamanho do rei. Isso

busca demonstrar sua submissão e sua inferioridade diante de um poder superior e

divino, representado pelo faraó.

Figura 9

Rei Eduardo envia Haroldo à Normandia, Tapeçaria de Bayeux, 1070 AD,

Musée de la Tapisserie de Bayeux

Não há, é evidente, nenhuma preocupação com a representação mimética, já

que a teoria das proporções egípcia eximia-se dessa obrigação. (PANOFSKY, 2004)

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Mesmo os filhos de Ramsés II, representados atrás em seus carros, mostram-se

diminutos, corroborando a questão da estereotipação dessa construção: destaca-se

apenas a figura proeminente na cena, por meio do aumento de sua estatura na

representação. Tal concepção também fora empregada no Estandarte de Ur e

chegaria, inclusive, a ser utilizada no medievo, quando ainda não havia o predomínio

da mimese, conforme é possível verificar na Tapeçaria de Bayeux (fig. 9), em que se vê

o destaque dado ao Rei Eduardo, o Confessor.

Figura 10

A Batalha de Hastings, Tapeçaria de Bayeux, 1070 AD,

Musée de la Tapisserie de Bayeux

Interessante perceber que na mesma tapeçaria, uma grande peça de linho de 70

m por 0,50 m de altura, há a representação de uma batalha que mudou o destino da

Inglaterra, a Batalha de Hastings (1066). Após a morte do Rei Eduardo, que não

deixou herdeiro, Guilherme, duque da Normandia, tinha certeza de que seria

aclamado rei, já que era parente do rei morto. No entanto, Haroldo – o mesmo

representado na figura 9 – que foi aclamado, destruindo aparentemente suas

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aspirações. O normando, sentindo-se preterido, levanta um grande exército e invade a

ilha, derrotando seu oponente e tornando-se rei dos ingleses, fato conhecido como a

Conquista Normanda.

Pode-se dizer que a Tapeçaria não passe de um poema imagético laudatório

da vitória de Guilherme, mandada executar por Odo, bispo de Bayeux e meio-irmão

do Conquistador. Algo que lembraria, inclusive, os feitos heroicos de Ramsés II na

parede dos Templos erigidos para tal finalidade, mas que empregaria um suporte

totalmente distinto.

Figura 11

Mosaico de Alexandre, provável Batalha de Isso, ca. 150 a.C.

Museu Arqueológico de Nápoles

É possível observar, na fig. 10, de que modo a cavalaria normanda dirige-se

sobre os ingleses, aniquilando-os, conforme se depreende ao se verem os corpos

destroçados dos infantes sob os cavalos. Mais uma vez, verifica-se que não há

nenhuma preocupação mimética na retratação da cena medieval, afinal “quando

finalmente descartaram toda e qualquer pretensão de representar as coisas tais como as

viam” (GOMBRICH, 2013, p. 135), abriram-se imensas possibilidades para os artistas

do período.

O mesmo não pode ser dito dos modelos greco-romanos. Estes ao retratarem a

mesma temática, como a Batalha entre Alexandre Magno e Dario II (fig. 11), não

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fazem a priori distinção entre os soldados comuns e seus líderes, como é possível

verificar na representação dos grandes líderes aqui representados. Havia uma grande

preocupação com a questão do escorço, isso porque os antigos não dominavam a

técnica da pespectiva artificalis, desenvolvida no Renascimento, apesar de

demonstrarem uma grande realidade ilusionista.

Há, porém, uma diferença entre essa e as outras obras vistas: não possuíam um

fim de intimidação – não era pública –, mas de fruição, afinal era privada21

; visando,

provavelmente, não apenas ao deleite de seus proprietários, mas também à

demonstração de seu poder e riqueza, devido à técnica empregada e ao modelo de

onde proveio, provavelmente grego do século II a.C.

Algo semelhante poderíamos dizer acerca dos sarcófagos ricamente adornados

que se tornaram moda em Roma no começo de nossa era, dentre os quais havia os que

retratavam grandes batalhas (fig. 12); mas, que não se prestavam, é evidente, à

observação pública. Apesar disso, pode-se vislumbrar o rigor mimético com que as

figuras foram representadas, mesmo diante da aparente confusão da cena, devido à

exiguidade do espaço disponível de que o artista despunha.

A despeito do aparente destaque de apenas uma figura22

, que é posta em

destaque, demonstrando seu status frente aos outros, há aqui, diferentemente dos

exemplos anteriores, uma paridade entre todas, afinal o que se procura exaltar o

poderia militar romano, cujos soldados – cabelos curtos, barbeados, envergando

armaduras e portando escudos – demonstram-se altivos, enérgicos e resolutos,

impondo uma dura derrota aos germânicos – cabelos longos e desgrenhados, barbas

longas, cada um trajando uma roupa diferente, alguns com o torso descoberto, outros

vestindo calças –, em cujos rostos podem-se ver angústia, sofrimento e desespero com

a provável derrota que se aproxima.

21

Por sinal, a obra era um mosaico romano, ou seja, era um dos pisos da chamada Casa de Fauno,

localizada em Pompeia.

22

Uma das características da arte romana era com que o leitor da imagem reconhecesse a figura

representada. Assim, a figura em destaque no Sarcófago Ludovisi, provavelmente é Hostiliano (230?-

251), filho do imperador Décio (201-251 AD), ou seu irmão Herênio Etrusco (227-251).

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Tal representação mimética mostra-se bem diferente daquele que temos na

figura 8. Diante de seu poder e divindade, o faraó construído imageticamente, poderia

preterir de qualquer auxílio externo; bastaria, para isso, empregar apenas seu próprio

corpo. Isso fica claro, quando ele mesmo, não mais os cavalos, pisa a cabeça e o pé do

inimigo, subjugando-o totalmente (fig. 3-5).

Figura 12

Sarcófago Ludovisi, séc. III d.C.

Museu Nacional de Roma, Itália

Aproveitando a sublevação na Núbia, rica em ouro, cuja população havia se

rebelado contra os aliados egípcios da região, Ramsés II continua suas incursões

bélicas, agora em direção ao sul. Diferentemente dos hititas e de seu poderoso

exército, os núbios eram, militarmente, muito mais fracos; foram, dessa foram,

massacrados pelas forças egípcias. (fig. 7-8)

Assim, diante dessa afronta, mandou erguer estátuas colossais dele mesmo em

um templo, na hoje Abou Simbel, também dedicado a ele, nos limites sul de seu

império. Mais que ostentação ou mera vanglória, tais imagens representariam um

marco intimidatório a todos que ousassem atravessar seus limites.

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Figura 13

Núbios capturados, Templo Abu-Simbel, séc XIII a.C.

De maneira semelhante aos prisioneiros retratados no Estandarte de Ur,

Ramsés II fez questão de que se mostrasse o destino daqueles que iriam contra sua

vontade e que ousassem enfrentá-lo. A imagem da intimidação é clara: prisioneiros

capturados são exibidos com os braços amarrados, ajoelhados e esperando seu destino:

ou sua escravização ou sua provável execução. (fig. 13)

Muitas dessas execuções, por exemplo, poderiam transmitir inclusive um

caráter sacrifical para aqueles que faziam parte do povo dominado, nos moldes do

mito de Busíris, apesar da ausência de dados que corroborem tal afirmação; ou, ainda,

representar certo sadismo desse ou daquele general frente aos prisioneiros. Homero,

por exemplo, ao falar do ódio que se apossou de Aquiles diante da morte de seu amigo

Pátroclo, não apenas capturou doze jovens, mas os imolou em sinal de vingança:

Quais enhos fracos e atônitos, presto os arrasta do rio;

e, pós haver-lhes as mãos para trás amarrado nas fortes

e bem trançadas correias que todos traziam nas túnicas,

para que às naus os levasse, aos sócios, então, os confia.

(HOMERO XXI, 29-32)

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Figura 14

Rei Dario da Pérsia e prisioneiros capturados,

Inscrição de Behistun, séc VI a.C.

Convém perceber que aos egípcios não bastava apenas inserir imagens para que

servissem de alerta e propaganda contra seus possíveis inimigos tanto internos quanto

externos. Isso porque, faziam questão também de exaltar e registrar seus feitos

heroicos, também por meio do ιόγος, como o célebre poema de Pentaur. Reuniam,

portanto, às imagens palavras, formadas pelos hieróglifos, também eles imagens.

Expediente empregado, em Behistun (fig. 14), no Império Aquemênida

(Primeiro Império Persa), quase sete séculos depois, por Dario I que, não se deve

esquecer, também detinha o título de faraó do Egito, herdado de seu sogro, Ciro II,

cujo filho, Cambises II, havia conquistado o Egito em 525 a.C.

Para o homem do século XXI, de modo especial para aqueles que vivem em

um meio urbano, tais imagens intimidatórias e dissuasórias pertencem tão-só a um

passado e territórios longínquos, onde estão encerradas, afinal estão muito distantes

de nossa realidade. Contudo, por mais absurdo que possa parecer, é o contrário que

vemos: elas ainda estão presentes hoje de maneira clara, viva e em cores.

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Figura 15

Prisioneiros do Estado Islâmico são amarrados antes de serem afogados,

de uma gaiola, em uma piscina, junho de 2015

Assim, enquanto lemos a imagem dos prisioneiros do rei sumério presente no

Estandarte de Ur, a dos núbios de Ramsés II, ou mesmo a dos prisioneiros de Dario I,

todas inseridas em suportes diversos – da madeira à rocha –, não nos deixamos tocar

nem amedrontar, afinal tais representações não foram concebidas para nosso tempo

e, por serem anacrônicas, acabam sendo distinguidas como mera arqueologia, quando

são enxergadas: os olhos contemporâneos não fazem questão de enxergar o que não

pertence ao hodierno, isso porque

ao homem do século XXI não interessa mais decodificar o

indecodificável. A mensagem imagética de hoje tem de estar em sua

própria superfície, para que se possa compreendê-la em sua

totalidade em apenas um relance, já não há mais tempo a perder com

manuais [...].

Hoje as imagens têm de vir, praticamente, decodificadas para que os

olhos do homem do século XXI não percam mais tempo [...].

(BRANDÃO, 2009a, s/p)

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Figura 16

Alexandre Magno, foto de Jack Brandão,

American Natural History Museum, New York

Assim, quando são empregadas as proporções, os modelos, a iconologia

próprios daquele lapso espaço-temporal particular, os mesmos – por mais óbvio que

pareça – não surtem efeito no homem contemporâneo; logo, como é de se esperar, o

efeito pretendido por aqueles emissores não nos atingem, como deve ter atingido

aqueles que viviam naquele período e que conheciam e empregam suas chaves sígnicas

em seu dia a dia.

Isso fica claro, quando se observa a relação que os antigos demonstravam

frente a essas imagens, como aquelas em que Alexandre Magno (fig. 16) – para não

citar as religiosas, cuja reverência era evidente – “para se fazer presente em todo seu

vasto Império fez com que se espalhassem estátuas suas por todo seu domínio: a

corporificação de sua ausência, nem por isso elas eram menos respeitadas”

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(BRANDÃO, 2009b, p. 125): respeitava-se, portanto, o simulacro, como se fosse o

real, temendo-o por isso.

Figura 17

Aborígenes presos e acorrentados, a única informação a respeito da foto

é “capturados para execução”, Austrália, início dos séc. XX

No entanto, constatamos que, apesar dos milênios que nos separam, não é

mais necessário supor como se deram as atrocidades do passado, nem tentar

decodificar aquelas imagens extemporâneas, pois é-nos necessário apenas estabelecer

uma relação entre as mesmas com aquelas com as quais nos deparamos, de maneira

constante, nas diversas mídias de que dispomos hoje. Basta, para isso, apenas

assistirmos à TV ou acessarmos a internet.

Nessas mídias encontraremos diversas cenas veiculadas pelo autodenominado

Estado Islâmico que nos reproduzem, de maneira clara, direta e incisiva, o passado:

homens de joelhos, mãos amarradas, corda cingindo seus pescoços (fig. 15), cabeças

que rolam, corpos desfigurados e vilipendiados espalhados por vilas e aldeias.

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No entanto, serão eles os únicos a perpetuar ainda hoje tamanhas atrocidades

extemporâneas? Que dizer da forma como os aborígenes australianos (fig. 17), no

começo do século XX, foram tratados pelo colonizador branco que via nos antigos

donos da terra australiana, muitos dos quais foram presos, mortos ou escravizados nas

Frontier Wars uma ameaça? Que dizer dos milhares de argelinos presos e executados

durante a guerra de independência de seu país (fig. 18) pelos franceses da extrema-

direita que se apossaram da Argélia? Como não esquecer a forma como o Brasil trata e

sempre tratou os negros desde a escravidão; e hoje, de modo especial, aqueles que da

senzala foram moram nas favelas (fig. 19) espalhadas pelo país?

Figura 18

Argelinos sendo presos durante a guerra para independência do país (s/d)

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Tão ruim como comprovar que certas imagens do passado não estão tão

distantes de nós como pode parecer, é o fato de que hoje, ao serem veiculadas de

forma maciça como são, perdem seu efeito duplamente:

a) primeiro por não nos atingir mais, devido a sua banalidade, “fazendo com

que o horrível pareça vulgar, familiar, irremediável, remoto (“é só uma fotografia”).”

(SONTAG, 1986, p. 29) Assim, como o anacronismo nos deixa insensíveis diante das

cenas de brutalidade que se encerram nas paredes da história, o excesso de fotografias

e sua massificação também fazem o mesmo com nossa consciência, tornando-a

indiferente à desventura do outro. Isso porque, diante do acúmulo e da intensidade

imagéticos – ao contrário dos povos da Antiguidade que as viviam intensamente,

respeitando-as e sabendo ser dominados por elas –, não temos sequer tempo de retê-

las, de degluti-las, nem conseguimos retroalimentar o manancial de nossa própria

iconofotologia, afinal seriam delas, das imagens fotográficas, de que nos servimos para

a construção de nosso próprio acervo:

Quando, os mesmo fatos se repetirem, como novos grandes

tsunamis, ou as intermináveis lutas religiosas – seja na Indonésia ou

no Oriente Médio –, provavelmente não terão o mesmo apelo

imagético como o da primeira vez em que os visualizamos via

fotografia. Assim, esses fatos novos e marcantes perdurarão em nosso

acervo iconofotológico ou serão, simplesmente, substituídos por

outros mais recentes. (BRANDÃO, 2010, p. 97)

b) segundo, certas imagens que poderiam tornar-se paradigmáticas – levando-

nos à reflexão e à compaixão –, devido a sua dimensão, novidade e impacto, por não

nos atingirem mais, tornam-se indiferentes, instáveis e passam despercebidas. Perde-se,

portanto, toda a excitação que o novo tende a trazer:

Vê-se, portanto, que a alteração do (no) acervo iconofotológico pode

tanto dar-se como: a) um acréscimo: aquisição de imagem/conceito

realmente novo, como a do tsunami, afinal sabia-se do fato, mas não

havia uma consciência imagética coletiva do mesmo, muito menos

de sua magnitude, fato que ficou claro até mesmo no emprego do

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vocábulo por crianças e adolescentes – durante um período curto

após o incidente – como sinônimo de turbilhamento (numa piscina,

por exemplo) ou de bagunça; b) uma substituição: quando as

imagens vão sendo substituídas por outras mais recentes; pode-se,

por exemplo, incluir aí, o padrão de beleza instituído por uma

sociedade em um determinado período.

Normalmente, tal substituição ocorre quando imagens pretéritas são

postas de lado por outras mais impactantes que insistirão em se

manterem no lugar das mais antigas, as quais vão sendo elididas aos

poucos. (ibidem, p. 97)

Para um olhar mais perscrutador, porém, tais imagens fotográficas, por mais

banais e macabras que possam ser, acabam demonstrando in hoc tempore aquilo que só

se poderia supor do tempo passado, o deve ter sido assim! E, por terem sido

veiculadas via fotografia, temos consciência de que são reflexos do real, ainda mais

quando vinculadas ao ιόγος, como se verifica em nossos meios de comunicação,

mesmo que permanecemos indiferentes a elas. Isso porque, mesmo as negando

continuamente, não podemos descartar seu poder simbólico sobre todos nós: fomos

persuadidos, desde crianças, a acreditar que as fotografias são feitas a nossa “imagem e

semelhança”, são elas a imagem de nosso tempo, afinal muitos ainda a veem como a

mais mimética das representações humanas.

Durante a Grande Guerra, em 1915, teve início o que se convencionou chamar

(infelizmente não reconhecido por todas as nações do mundo!23

) de Genocídio

Armênio, o primeiro do gênero ocorrido no século XX, quando mais de 1,5 de

armênios foram brutalmente deportados, assassinados ou morreram de inanição pelo

Império Turco Otomano. Apesar de não aceitar o termo, o governo turco ainda hoje

afirma que não houve algum genocídio, porém não há como negar as diversas imagens

fotográficas daquele momento (fig. 20), nem se podem apagar as marcas causadas por

aqueles que sobreviveram em meio ao caos.

23 No dia 2 de junho de 2016, o Bundestag alemão reconheceu, formalmente, o Genocídio Armênio

negado com veemência pela Turquia. No entanto, ainda há muitos países que não o reconhecem,

apesar do farto material que prova sua existência, entre eles os EUA.

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Figura 19

Blitz em uma favela no Rio de Janeiro,

foto de Luiz Morier, 1983

Interessante perceber que os métodos empregados pelos turcos em sua limpeza

étnica, no início do século XX, são muito parecidos com os aplicados pelo próprio

Estado Islâmico: execuções sumárias, decapitações, crucificações, deslocamentos de

refugiados, morte por inanição, enfim todo tipo de brutalidade.

A diferença entre seus métodos, no entanto, reside na divulgação imagética:

enquanto para o EI o mais importante é sua difusão para fins dissuasórios e

propagandísticos: é o terror proveniente dos métodos retratados que avança diante de

suas hordas, levando pânico a populações inteiras que se veem obrigadas a abandonar

suas casas, para fugir a um destino semelhante àquele das imagens veiculadas.

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Quanto ao Império Turco, este aproveitando o fato da Guerra estar assolando

a Europa, aproveitou para lançar-se sobre os cristãos armênios. No entanto, à

diferença do EI, sempre procurou velá-la.

Contudo, fotografias foram tiradas! Mas, quem as tirou? Por que motivo? Para

que propósitos? Não é possível saber com plena certeza, isso porque muitas são

desprovidas de legendas e quando elas existem são absurdas, como o fato de dizer que

as pessoas crucificadas na figura 20 são padres!

Há também um detalhe curioso nessas fotos do genocídio, de modo especial

quando se veem soldados ao lado de diversos cadáveres: os turcos mostram-se sérios,

não esboçam nenhum sentimento, seja positivo seja negativo. Será por estarem

fazendo pose? Será porque muitos eram soldados e teriam de cumprir ordens?

Também não é possível afirmar.

Figura 20

Mulheres armênias crucificadas por serem cristãs,

Genocídio armênio, 1915

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Contudo, é bom ressaltar que tais atrocidades não se restringiram ao Oriente

Médio, ao mundo islâmico, como as imagens que vemos hoje podem nos induzir a

acreditar, nem ao Cáucaso no início do século XX, pelo contrário.

Ao depararmo-nos com fotografias da guerra desencadeada em favor da

independência da Argélia que teve início em 1954, por exemplo, são os europeus

(assim como os próprios argelinos) que empregaram os mesmos métodos do EI –

estupros, humilhações, decapitações, cadáveres desmembrados e vilipendiados, enfim

as mesmas brutalidades verificadas hoje. A diferença, porém, está estampada no rosto

dos algozes, daqueles que cometem atrocidades: têm um sorriso estampado em seus

lábios, demonstrando puro sarcasmo e ar de superioridade, de modo especial, pelos

colonizadores franceses frente aos argelinos.

Figura 21

Mulher capturada por soldados franceses na Argélia,

durante a Guerra pela Independência, final dos anos 1950

Assim, enquanto os turcos crucificavam mulheres nuas (fig. 20), deixando-as na

cruz para que servissem de exemplo (para que, se o que se queria era o mero

extermínio desse povo?), como Roma fez com os seguidores de Spartacus na Via Ápia,

os franceses exibiam argelinas como troféus de guerra e faziam questão de se

fotografarem, exibindo-as. Há diversas fotos de mulheres, como a da figura 21 que, ao

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que parece, tenta desvencilhar-se dos soldados que fazem questão de exibi-la como um

objeto, segurando-a pelas mãos para que não se rebele diante da câmera, para a qual

estão posando; querem, entretanto, que ela faça o mesmo. Ela, porém, está nua. Aqui

a mulher está sendo, duplamente, violentada: ao arrancarem-lhe as roupas, dilaceram

todos os preceitos morais estabelecidos por sua religião e por sua sociedade, que

determina que a mulher (assim como o homem) deveria ficar nu apenas diante do

cônjuge e resguardar seu pudor diante de estranhos ou mesmo parentes; além, é claro,

de provavelmente ter sido violentada de maneira física.

Que se pode dizer de alguém que se presta a posar para a posteridade após ter

violado alguém física e moralmente? Fetiche de ter podido ter em suas mãos um

animal que não se quer dominar? Não seria esse o motivo do riso sarcástico – o de se

esconder em sua covardia –, o fato de não poder, simplesmente, domar aquela fera

que tem seus costumes, moral e fé feridos? Que dizer então das cristãs armênias

crucificadas nuas, abandonadas e também estupradas em sua dignidade de mulher?

Figura 22

Escravos congoleses acorrentadas em uma plantação de borracha belga, ca. 1905

Quantas dessas mulheres não teriam sido desonradas após verem seus pais,

irmãos, filhos e maridos serem mortos? Para os algozes, basta a simples certeza de que

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aquilo que estãoá fazendo é correto, que são ordens, para que se iniba toda a imagem

ética, moral e humana que se poderia ter frente ao outro: tudo se torna possível e

justificável.

Figura 23

Crianças exibem seus braços cujas mãos foram amputadas, ca. 1905

A que ponto pode chegar a perversidade humana e o poder proporcionado por

uma falsa imagem criada para ludibriar tanto seus pares, quanto para dizimar etnias

inteiras, visando tão-só ao capricho pessoal e ao lucro descomedido, como a maneira

cruel e execrável como Leopoldo II, rei da Bélgica, administrou o Congo sua

propriedade particular na África? E eis que, na virada do século XIX para o XX, os

lacaios do benemérito e filantropo rei instituíram um estado de terror na região,

lugar que, segundo o monarca, seria destinado a levar ajuda humanitária àqueles

povos esquecidos, além de proteger os habitantes, coibindo o reaparecimento da

escravidão negra. Aquilo que se viu, porém, foi mais um genocídio, cujo fim não era

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uma perseguição étnica, mas de pura exploração da mão-de-obra nativa (fig. 22),

obrigada a cumprir metas irrealizáveis, caso contrário, seriam mortas ou mutiladas

(fig. 23).

Assim como para os otomanos não houve genocídio na Armênia, procurando

esconder da história suas evidências e imagens, Leopoldo II procurou de todas as

maneiras ocultar (e conseguiu durante muito tempo) o que ocorria em sua

propriedade africana: escravidão, brutais assassinatos, estupros, tribos inteiras

queimadas, decapitações, além de mutilações de crianças, de homens, de mulheres e de

velhos, a fim de que os parentes cumprissem as cotas estabelecidas por seus capatazes.

Figura 24

Congoleses posando com mãos decepadas daqueles que não conseguiram extrair

sua cota diária de seiva de borracha, 1904

Quanto às atrozes mutilações, a situação ficou quase sem controle, pois

quando as cotas estabelecidas não eram alcançadas, os soldados da Força Pública

teriam de levar a mão direita de alguém que seria assassinado para servir tanto de

exemplo para os outros escravos, quanto de desculpa, para os administradores, pelo

não cumprimento da obrigação imposta. (fig. 24) Assim, como as cotas eram sempre

maiores do que podiam alcançar e não querendo perder tempo para cumprir com as

cotas, os soldados iam às tribos, escolhiam qualquer um e amputavam-lhe a mão.

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Cestos de mãos acabam se tornando moeda de troca, os soldados levavam cestos

repletos mãos: vidas que eram extirpadas; outros tornavam-se mortos vivos, quando

conseguiam sobreviver.

Fotografias da barbárie foram tiradas por missionários e levadas para a Europa

e Estados Unidos, acabando com a pretensão do rei que foi obrigado a entregar seu

quintal à Bélgica. Dez milhões de vidas, segundo estimativas, foram dizimadas;

restaram, no entanto, as imagens vivas, humanas, disformes, cuja função seria a de

dissuadir os preguiçosos à empenharem-se na produção sem limites. A essas imagens,

juntaram-se outras, as fotográficas, sem as quais o número de vítimas teria sido bem

maior.

De maneira diferente daqueles povos que empregavam a intimidação num

espaço restrito, como os turcos na Armênia ou os belgas no Congo, quando por meio

da coerção buscavam a submissão total dos povos conquistados, o EI faz largo

emprego da tecnologia atual, o que possibilita com que todas suas atrocidades se

espalhem para todo o mundo em questão de segundos. Se não o fazem ao vivo é

porque, simplesmente, a própria tecnologia possibilitaria que também fossem

encontrados segundos após sua veiculação.

Verifica-se, dessa maneira, como o poder imagético é levado às últimas

consequências, já que tais imagens não se restringem ao espaço em que foram geradas,

como nos exemplos anteriores, mas são lançadas no virtual, a fim de que a

intimidação se espalhe por todo o mundo. Não se deve esquecer de que vivemos em

uma sociedade do espetáculo, em que mais que um conjunto de imagens, vivemos

uma relação mediatizada por elas. (DEBORD, 2003)

Não à toa, tais barbáries cometidas hoje têm apenas o fim de entretenimento

macabro, cujo pretexto é a religião e cujos atores-vítimas não são escolhidos à revelia,

mas predeterminados, afinal o que importa é o show, é o espetáculo: jornalistas

estrangeiros, líderes tribais, militares presos, religiosos de facções contrárias, crianças,

mulheres.

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Triste observar que todas as conquistas humanitárias em relação às

atrocidades da guerra oriundas da Convenção de Genebra são totalmente ignoradas;

não à toa, a França nunca afirmou que o ocorrido na Argélia fosse uma guerra, pois se

isso ocorresse, eles seriam criminosos de guerra, e o mesmo poderia ser dito da

Turquia e da Bélgica, se a Convenção, como nós a conhecemos, já estivesse em vigor

naquela época. Que dizer então do EI e de sua banalização imagética?

Esta é empregada de tal maneira e sua propagação tão eficaz que chegamos

mesmo a não acreditar, plenamente, no que eles veiculam: realidade e fantasia se

mesclam a ponto de fazer com que o sujeito-leitor não seja levado a qualquer reflexão.

(AUMONT, 2002)

Pior que a inércia reflexiva observada frente a imagens de desgraças, ou como

chamamos aqui dissuasórias, é o fato de que se num momento são paralisantes, em

outro são catalisadoras. Isso quer dizer que, ao nos depararmos com imagens fortes,

estas podem, seguramente, nos anestesiar, tornar-nos inertes diante delas; mas, após o

choque inicial, não nos importamos de ver mais e mais, pelo contrário, queremos

isso, a ponto de elas não nos atingirem mais.

Nessa compulsão e ação devoradora (como no alemão fressen) da luz imagética,

não percebemos que perdemos o controle e queremos cada vez mais. É, a partir daí,

que perdemos, quase que completamente, a emoção inerte e compassiva que houve

naquele momento primeiro de choque. Isso porque somos seres iconotrópicos

(BRANDÃO, 2014, p. 117), somos atraídos, compulsivamente, às imagens, como as

plantas à luz; e, diante, de sua abundância, tornamo-nos devoradores vorazes.

Por outro lado, se singulares e não recorrentes, tais imagens são absorvidas e

inseridas em nosso acervo iconofotológico; caso contrário, se lidas continua e

maciçamente, esmaecem-se, já que o impacto provocado pelas contínuas visualizações

de atrocidades vão diminuindo à medida que haja sucessivas observações. (SONTAG,

1986)

Assim, quanto mais atrocidade é exibida pelos meios de comunicação, menos

elas nos atingem, eis o poder catalizador dessa continuidade: tais imagens apressam

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seu esquecimento. Por outro lado, isso faz com que seus algozes tenham de se ver

obrigados a aumentar o requinte de sua exibição, como ocorre com a

espetacularização proporcionada pelo EI: se a degola não comove mais, afogam-se as

vítimas; penduram-se as vítimas para que sejam, lentamente, queimadas; explodem-

nas; cometem as mesmas atrocidades com crianças, empregando um ciclo vicioso

tétrico.

Para tentar saciar nossa iconotropia diante dessa banalização e buscar o

máximo de realismo possível, podemos inclusive prescindir das imagens em

movimento: queremos os detalhes, as minúcias, já não é possível acreditar,

simplesmente, no que se vê, é necessário provar que é real:

Realmente a imagem em movimento dá-nos uma impressão maior,

de movimento, de instantaneidade e de continuidade temporal [de

realidade]: não há uma tomada, um recorte tempo-espacial como na

fotografia, mas uma sucessão de recortes. Mas, a estaticidade

imagética tem um poder maior de sedução devido, exatamente, ao

recorte da particularidade: muitos querem ver o exato momento.

Não basta ver só os aviões chocando-se contra as torres e sendo

engolidos por elas, nem mesmo as explosões que se seguiram. Quer-se

congelar o momento, ver, passo a passo, cada detalhe da tétrica

hecatombe que se verificou: agora o que se vê é verdadeiro, é real!

Não há necessidade do detalhe na ficção, afinal ela é entretenimento.

Mas, o fato que se deu em 11 de setembro é verdadeiro: eis a

diferença. (BRANDÃO, 2010, p. 98)

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