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IMAGEM E SOCIEDADE: A MIDIATIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA E DA
CRIMINALIDADE; SUA INFLUÊNCIA NA CONSTRUÇÃO SOCIAL DA VIDA
COTIDIANA1
ALBINO JOSÉ EUSÉBIO- UFPA/PARÁ
KATIA MARLY LEITE MENDONÇA-UFPA/PARÁ
Resumo: A violência constitui um elemento contumaz na sociedade brasileira, desde ações
criminais comuns até ao crime organizado. A constante disseminação pelas mídias
(televisiva ou imprensa) de ações violentas contribui para o surgimento, no seio da
sociedade, de um sentimento de insegurança e vulnerabilidade. Baseando-se nas narrativas
colhidas em conversas do dia-a-dia que permitiram traçar um panorama sobre a violência e
criminalidade no contexto da cidade de Belém, no presente artigo busca-se fazer uma
reflexão sobre a influência que a midiatização da criminalidade e da violência tem na
construção social da vida cotidiana. Constata-se que a violência e a criminalidade,
associado ao processo de midiatização da violência, um fenômeno que faz com que as
imagens sobre casos de violência e ações criminais ultrapassem os limites temporais e
espaciais, constituem fatores determinantes na construção social da vida cotidiana, desde o
simples fato de não puder usar o aparelho celular na rua à noite até o que se denomina de
arquitetura do medo evidenciado por casas, pontos comerciais e prédios públicos super
guarnecidos.
1 Trabalho apresentado no I Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica,
realizado entre os dias 04 e 06 de Novembro de 2014, Belém/PA
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INTRODUÇÃO
Nas sociedades contemporâneas, as imagens ocupam um lugar preponderante na relação
social, pois vivemos numa sociedade onde as relações sociais são mediadas pelas imagens,
e as mídias são os principais veículos dinamizadores do que Debord (1997) denomina de
sociedade do espetáculo.
Não constitui um equívoco afirmar que, as mídias são instituinte de comportamentos
transformando a cultura e a vida cotidiana dos indivíduos; dominando o tempo de lazer;
modelando opiniões políticas e comportamentos sociais; definindo e redefinindo o que é
bom ou mau, negativo ou positivo e moral ou imoral; e fornecendo símbolos, mitos e
recursos que ajudam a construir uma cultura com tendências homogêneas para pessoas de
várias regiões do mundo (DA COSTA, 2004, p. 181) e por isso mesmo, exercem uma
grande influência na construção do imaginário social sobre uma determinada realidade ou
contexto sociocultural.
Ultimamente, regista-se uma maior apropriação de imagens de violência e da criminalidade
no campo televisivo e da informação, sobretudo por programas televisivos de teor policial
(Cidade Alerta, Barra Pesada, Metendo Bronca, Brasil Urgente, Balanço Geral casos de
Polícia, etc.), o que contribui para um sentimento de insegurança e vulnerabilidade entre as
pessoas baseado num imaginário de uma sociedade do medo.
Apesar de, a violência e a criminalidade constituírem objetos que já vêm sendo bastante
explorados a nível da teoria sociológica, a relação entre a violência, criminalidade, mídia e
a construção social do cotidiano, constitui um objeto que ainda carece de mais discussões e
reflexões sociológicas. Neste sentido, tal como o leitor perceberá, ao longo texto buscamos
fazer uma reflexão sobre a influência que a midiatização da violência e da criminalidade
tem na vida cotidiana dos indivíduos, centrando a nossa pesquisa no contexto da cidade de
Belém.
Desta forma, com o intuito de traçar um panorama sobre a violência e a criminalidade,
trazemos depoimentos de alguns estudantes e moradores de Belém, que embora não possam
ser consideradas representativas do sentimento coletivo, evidenciam o quão o enraizamento
da violência e da criminalidade determina o cotidianos dos indivíduos, depoimentos esses
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que foram colhidos aleatoriamente em conversas do dia a dia. Reconhecemos que, o termo
violência se mostra, logo a priori, como um conceito complexo, pois assume várias
perspectivas de abordagem (violência física ou simbólica, legítima ou não legítima, etc.);
porém tratando-se de uma reflexão sobre a midiatização da violência, buscamos
acompanhar a forma como termo é abordado no campo midiático, onde se centra de um
modo geral na violência física que se manifesta através de ações de fato numa relação
intersubjetiva.
Para facilitar a articulação da abordagem, o artigo está dividido em duas partes: na primeira
parte, discute-se a questão da violência e da criminalidade em Belém enquanto um
fenômeno real na vida cotidiana dos indivíduos e na segunda parte completa-se o debate
fazendo uma relação entre a mídia, violência e o cotidiano, cerne da nossa reflexão, onde se
demonstra que a midiatização acaba sendo um fenômeno catalizador na construção de
imaginário de uma sociedade do medo e um fator determinante na construção social da vida
cotidiana.
CRIME, VIOLÊNCIA E VIDA COTIDIANA
A criminalidade constitui um fenômeno contumaz na sociedade brasileira, desde os crimes
comuns até a violência fatal conectada ao crime organizado (ADORNO, 2000a). Não
constitui um equivoco afirmar que, o Brasil é uma sociedade onde o crime organizado,
concretamente o tráfico de drogas, encontra-se enraizado dentro dos diversos setores da
sociedade.
Se por um lado, a comunidade convive no seu cotidiano com armas e drogas nas “famosas
favelas”, nome que outrora significava casas habitacionais, na sua maioria sem título de
propriedade, resultados de ocupações irregulares, mas com gente humilde, e que hoje é
reflexo duma imagem de violência e insegurança, uma situação que está associada, de certa
forma a uma maior facilidade de obter armas de fogos, com o advento de novas formas de
crime organizado vinculadas ao tráfico de drogas (ZALUAR, 2012, p. 334); por outro lado,
o narcotráfico promove a desorganização das formas tradicionais de sociabilidade entre as
classes populares urbanas, estimula o medo das classes médias e altas e enfraquece de certa
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forma a capacidade do poder público de aplicar a lei e a ordem (ADORNO, 2000a, p. 88).
Qualquer indivíduo pode ser agressor ou vítima de ações criminosas, em qualquer lugar e, a
qualquer momento, tal como destaca Gilberto Velho:
Ninguém mais se sente seguro: nem empresas nem indivíduos. Senadores da
República, ex-governadores, membros da Academia Brasileira de Letras,
diplomatas, empresários e suas famílias engordam as listas de vítimas de roubo,
assalto, sequestro e, eventualmente, assassinato. Elites e classes médias têm suas
casas assaltadas. O que dizer das camadas populares, secularmente vitimizadas?
Nas favelas, nos conjuntos habitacionais, nas periferias, os criminosos fazem
praticamente o que querem, seviciando, estuprando e matando. Não há lugar
protegido. Escolas, igrejas, templos, quartéis, delegacias etc. são frequentemente
invadidos. As pessoas são humilhadas e desrespeitadas de todos os modos (VELHO, 2000a, p. 58).
A urbanização acelerada, o desenfreado crescimento das cidades, as fortes aspirações de
consumo frustradas, (VELHO, 2000a), as desigualdades sociais, a segregação urbana, a
anomia econômica, a exclusão social, a corrupção, a impunidade (MISSE, 1993;
ADORNO, 2002a; ADORNO, 2002b; MARINO, 2002; FERREIRA, 2011; ZALUAR,
2012), bem como o desmantelamento dos mecanismos tradicionais de socialização juvenil,
o distanciamento entre pais e filhos, o avanço da sociedade de consumo, a diminuição das
oportunidades oferecidas pelo mercado formal de trabalho e o avanço do narcotráfico
(ADORNO, BORDINI e LIMA, 1999) destacam-se como alguns dos fatores que
contribuem para o enraizamento da criminalidade e da violência no contexto brasileiro, um
fato que contribui para o surgimento, no seio dos indivíduos ou dos cidadãos, de um
sentimento de insegurança coletivo e generalizado.
Trata-se de fatores que, tal como afirma Eusébio (2014)2, são próprios de uma forma
capitalista de organização social onde o individualismo e a supremacia da relação eu-isso
(BUBER, 2001) caracterizam a construção social da vida cotidiana (BERGER e
LUCKMANN, 2004). Importa frisar que, se por um lado o individualismo está vinculado à
ideia de liberdade e igualdade, rompendo com a opressão e a rigidez dos sistemas
tradicionais de dominação, por outro, adversativamente esta ligado também a situações de
2 Trata-se de um trabalho onde o autor buscou discutir a importância das abordagens ético-filosóficas de Paul
Ricoeur sobre culpa e culpabilidade na análise sociológica sobre a reincidência criminal, o mesmo foi
apresentado no XXIX Encontro Nacional de Estudantes de Ciências Sociais (ENECS), Universidade Estadual
de Maranhão (UEMA), São Luís em Maranhão, Brasil.
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degradação e anomias sociais e ao rompimento de valores e redes de reciprocidade e
atuação pública, fato que contribui, tal como destaca Gilberto Velho, para a indiferença, o
narcisismo e o egoísmo que caracterizam a vida nas metrópoles brasileiras (VELHO,
2000b, p. 21).
Há que destacar também como fatores desencadeadores da violência e da criminalidade no
contexto brasileiro, a quebra de valores éticos e morais, característica própria das
sociedades modernas; sociedades essas que de acordo com Mendonça (2009, p. 46), são
“totalmente voltadas para a tecnologia e mercado e que se olvidam dos mais elementares
laços do inter-humano”, bem como o que Eusébio (2014), num trabalho já acima citado,
denominou de eclipse de outro, uma espécie de cegueira ética (ADORNO e
HORKHEIMER, 1985) em que o indivíduo não enxerga o outro ou não tem a consciência
ou não se importa com a consequência dos seus atos no outro em função dos seus interesses
particulares e individualistas.
É uma situação onde, o indivíduo, um sujeito dotado de humanidade, que na
maioria dos casos também é mais uma vítima de um sistema de organização
social que o coloca numa situação desigual, excluída, anômica, opressora,
individualista e de intolerância, não se importa com outro indivíduo, que
também é um sujeito dotado de humanidade, olhando somente para sua vida,
seus interesses particulares e estratégias de sobrevivência (EUSÉBIO, 2014,
p. 7).
A questão da crise dos valores ético-morais como um fator determinante para a
criminalidade e violência no contexto brasileiro já foi destaca por Gilberto Velho, quando
considera que:
Sem dúvida a pobreza, a miséria e a iniquidade social constituem historicamente
um campo altamente propício para a disseminação da violência. No entanto, creio
que não tem sido dada a devida atenção para a dimensão moral, ética e do sistema
de valores como um todo, para a compreensão desse fenômeno. A perda de
credibilidade e de referências simbólicas significativas destrói expectativas de
convivência social elementares. Filósofos, pensadores e cientistas sociais das
mais variadas orientações mostram como a sociedade só é viável mediante um
mínimo de valores e padrões compartilhados. Por exemplo, o ataque físico a
pessoas idosas já se tornou rotina no cotidiano das grandes cidades brasileiras.
Em outros países com alto índice de pobreza, como a Índia, essas cenas são
inimagináveis. Esse tipo de evento era, também, até pouco tempo atrás, muito
raro no próprio Brasil, motivo de escândalo e indignação. Hoje banalizou-se
assim como outras notícias de crueldade contra mulheres, crianças, pessoas
doentes etc. Trata-se, claramente, de uma crise ético-moral. A família, a escola e
a religião não têm sido capazes, por sua vez, de resistir a essa deteriorização de
valores (VELHO, 2000a, p. 58).
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A criminalidade e a violência são fenômenos presentes em todas as cidades brasileiras com
as devidas particularidades que são inerentes às diferenças socioculturais. O enraizamento
da criminalidade na cidade de Belém, tal como veremos nos depoimentos a seguir que
traçam através de fatos particulares um panorama geral sobre a violência e a criminalidade,
contribui para o surgimento nos moradores, de um sentimento generalizado de insegurança
e vulnerabilidade.
Sair de casa ir para determinado lugar aqui em Belém é sempre arriscar e
depender da sorte, a gente vive uma insegurança, hoje tu não sabes e não
consegue identificar quem pode ser o criminoso, quem pode ser o teu possível
agressor, qualquer pessoa pode ser o um possível agressor, não sabe donde pode
vir o perigo, onde pode ser agredido, estamos vulneráveis. Hoje são “n” pessoas
que podem te fazer mal, alguns tu olha e eram pessoas que aparentemente são
pessoas legais e que num determinado momento cometem atos de violência que a
gente não consegue explicar... (Estudante, Residente no bairro da
Marambaia).
A palavra “sorte” evidenciada nesse depoimento é a expressão usada para justificar o fato
de alguém, no seu cotidiano, não ter sido alvo de uma ação criminal na cidade de Belém,
cidade em que a expressão “arriscar” também presente no mesmo depoimento, caracteriza a
realidade da vida cotidiana dos cidadãos. Está patente no depoimento uma espécie de
desespero, que se fundamenta na constatação da fragilidade da vida diante de fatos
imprevisíveis (VELHO, 2013).
Eu já vi muitas pessoas sendo assaltadas e já sofri tentativas de assaltos na via
pública que não chegaram ser violentas, mas também já me deparei com um
monte situações que se eu estivesse a andar um pouco mais rápido eu acho que
teria sido a vítima. Foi uma questão assim de sorte de Deus. Uma dessas vezes
foi na 1° de Dezembro, eu estava vindo do cursinho desci na parada e uma moça
que também estava no mesmo ônibus desceu comigo e seguimos na mesma
calçada, não era tão tarde era aproximadamente 21 horas, e tinha bastante gente
na rua, de repente dois rapazes que estavam bicicleta se aproximaram dela e o
que na garupa tentou pegar a bolsa da moça, quando vi me assustei eu gritei, a
moça olhou atrás e percebeu que ia ser assaltada, e nesse momento os dois
rapazes talvez porque era tanta gente que estava no local puseram-se em fuga.
Não sei se estivéssemos juntas teríamos sido as duas ou se eu estivesse na frente
seria eu, mas foi muito próximo assim a distância entre mim e ela era mínima,
mínima mesmo. Doutra vez eu estava caminhando na João Paulo II, num horário
também de movimento, eram aproximadamente 19 horas estava acontecendo um
grande evento religioso, então tinha bastante gente, até policiamento próximo, eu
estava vindo de casa para esse evento religioso, de repente um rapaz se
aproximou de mim, muito educado por sinal, não expressou agressividade em
nenhum momento, não gritou, me chamou num tom baixo, como se estivesse
conversando comigo, tentando criar a impressão de que me conhecia para outras
pessoas que passavam no local, e anunciou o assalto, só que eu acabei reagindo
e como tinha muita gente e muito movimento ele desistiu e pôs se em fuga, foi
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sorte que ele não estava armado. A minha irmã não teve a mesma sorte foi algo
até muito traumático para ela, foi um assalto à mão armada mesmo, o cara
apontou uma arma na direção da cabeça dela, isso na rua da minha casa, ela
também estava vindo do cursinho, era uma pessoa assim mais madura, acho que
por ai uns 30 anos talvez, bem vestido social, aparentava estar vindo do
trabalho, eles estavam no mesmo ônibus e desceram na mesma parada e estavam
indo pela mesma rua, quando chegaram próximo dum paredão duma escola que
fica normalmente deserto, apontou a arma na cabeça dela anunciou o assalto
levou bolsa dela. Como minha irmã relatou era uma pessoa que não demostrava
que ia assaltar ou não parecia que era assaltante, estava bem vestido,
aparentava estar vindo do trabalho, um pouco mais para frente havia bastante
movimento de gente tudo mais, mas talvez por causa da arma, ele tenha tido mais
coragem... (Idem).
O longo depoimento, apesar de evidenciar um caso particular, pode constituir o espelho de
uma realidade geral vivida no cotidiano dos moradores e fundamenta-se na vulnerabilidade
que as pessoas se encontram face ao enraizamento da violência e da criminalidade. Há que
destacar no depoimento, primeiro a questão das circunstâncias locais onde as ações
criminais podem ocorrer, a presença de “bastante gente” já não serve como um fator
dissuasor e segundo, a identidade de quem pode ser um potencial assaltante, que se
fundamenta na crença, diga-se coletiva, de que o assaltante é sempre um indivíduo de
posição social desfavorecida, daí o espanto quando quem assalta é um indivíduo “bem
vestido a social”.
Não se pode negar que o cotidiano dos indivíduos é de certa forma, caracterizado por uma
insegurança generalizada, onde qualquer pessoa seja jovem ou adulta, aparentemente de
bom comportamento aos olhos de gente humilde da comunidade ou do bairro, esteja de
bicicleta ou a pé, bem vestido ou o inverso, pode ser o um agente ativo das ações criminais
e de violência, até mesmo integrantes das torcidas organizadas, em clássicos ou não de
futebol paraense, tal como evidencia o depoimento a seguir,
... foi uma situação difícil para mim, um dia para esquecer, eu estava voltando do
Shopping Boulevard onde tinha ido fazer umas compras estava com a minha
namorada, eram aproximadamente 22 horas, eu não sabia que tinha um jogo do
Remo e Paysandu, quando desci na parada para entrar no conjunto de casa vi na
passarela muitos jovens da torcida vindo, subi a passadeira e logo na descida
estavam muitos desses jovens subindo logo a frente, senti naquele momento que
não seria fácil passar sobre todos eles, a minha namorada já estava preocupada,
mas não tinha como voltar atrás porque também doutro lado estava cheio de
jovens da mesma torcida, quando tentei descer a passadeira fui segurando com o
jovens e me arrastaram tudo ate me tiraram tênis e deram-me um soco na cara,
foi uma situação difícil, evito sair de casa nos dias do jogo de Remo e Paysandu. (Estudante, Residente no bairro Sousa).
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Na mesma perspectiva, é possível constatar nos dois depoimentos que as ações criminosas e
de violência vão ao encontro de todos os domínios do espaço cotidiano dos indivíduos, seja
na passarela da avenida, na residência, na calçada, nas escolas e principalmente nas paradas
dos ônibus e nos próprios ônibus, tal como demostram os depoimentos abaixo,
...quando eram umas 6h30 por ai cheguei no primeiro portão fiquei a espera de
ônibus, tinha muita galera, do nada apareceram um 5 moleques,(adolescentes)
acompanhados de cara assim adulto que estava com uma arma, ai ele tirou a
arma e anunciou o assalto e foram recolhendo as mochilas, batendo nas pessoas,
eu fiquei de boa, o cara chegou perto de mim e disse mano passa a mochila, eu
calei e fiquei olhando para ele e do nada ele foi embora, foi muita sorte não
consigo explicar. Na segunda vez foi na parada do segundo portão, também á
noite, apareceram dois caras de bicicleta tiraram a arma e recolheram as
mochilas e celulares das pessoas que estavam ai, eles passaram por mim e foram
embora, entraram no bairro Guamá, graças a Deus não levaram nada meu, mas
é sinistro mano, imagina o cara faz uma manobra com a arma e ela dispara...
(Estudante, Residente no bairro São Brás).
...depois de ter tido aulas na UFPA até às 8 horas da noite, na saída peguei
ônibus cidade nova seis que vai pela perimetral, numa parada depois da UFRA
entraram dois caras um pelo portão de entrada outro pelo de saída, um trazia
uma arma enorme, recolheu o dinheiro do cobrador e o outro começou a
recolher as bolsas, carteiras e celulares, eu peguei meu celular coloquei nas
minhas meias, o cara veio e pediu o celular eu disse que não tinha, e ele
perguntou como não tem porque te vi a falar a pouco tempo, fiquei com medo, eu
insisti que não tinha celular, e disse a ele que tinha dinheiro na carteira, ele
pegou o dinheiro e foram embora ... o que achei estranho ele insiste como se o
objeto fosse dele cara... (Estudante, Residente no bairro Sousa).
Os depoimentos acima apresentados demonstram, na sua totalidade, uma parte das várias
situações que evidenciam que vivemos numa sociedade do medo, ou segundo Beck, (1986)
de risco, caracterizado, neste contexto e tal como afirmamos acima, por uma insegurança e
vulnerabilidade que ocupa todos os domínios da vida das pessoas e que exerce influência na
construção social da sua vida cotidiana (BERGER e LUCKMANN, 2004).
Depois de ter presenciado essas todas tentativas eu sou muito atenta a
movimentos, as pessoas que passam por mim, evito falar ao telefone na rua, ficar
mexendo na bolsa, evito até estar com uma bolsa que chame bastante atenção em
determinados horários, dou preferência por ruas mais claras com mais
movimento isso acaba me dando uma maior segurança, eu sei que isso não
necessariamente evita totalmente o assalto, mas acho que diminui
consideravelmente. Eu até deixo de ir para um determinado lugar por questões
de segurança, por temer voltar muito tarde até prefiro não ir. O conjunto onde
eu moro até não é tão perigoso, mas outra rua ou outro bairro onde eu morei, eu
evitava chegar acima das 10, das 22 em diante eu normalmente já estava em
casa. (Estudante, Residente no bairro Marambaia).
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Como pode se constatar nesse depoimento a vida cotidiana das pessoas acaba sendo
caracterizada, de certa forma, por estratégias e técnicas de sobrevivência diante da
vulnerabilidade eminente, que vão desde o simples fato de não sair de casa acima das 22
horas, não mexer o celular na rua, não ficar na universidade até às 8 horas e se for
imprescindível sair sempre com amigos, optar em ficar em casa no dia de Remo e
Paysandu, evitar pegar ônibus que vai pela Av. Perimetral no período noturno, até o que
Tavares (2014) denomina de arquitetura do medo, caracterizada por uma paisagem de
casas, pontos comerciais e prédios públicos guarnecidos, o tempo inteiro, por elementos
como grades e cercas elétricas.
Trata-se de estratégias e técnicas próprias de uma sociedade onde o medo caracteriza o
cotidiano dos indivíduos, medo esse que, se por um lado, acreditamos ser motivado por
ações concretas e riscos eminentes de violência em que, tal como demostram os
depoimentos acima discutidos, os moradores de Belém estão sujeitos, por outro, não
descartamos a influência que a midiatização da violência e da criminalidade tem, enquanto
um elemento “catalizador”, nesse processo de construção do sentimento coletivo e
generalizado de insegurança e vulnerabilidade fator determinante na construção social da
vida cotidiana, tal como buscamos analisar a seguir.
MÍDIA, IMAGENS DE VIOLÊNCIA E A VIDA COTIDIANA
A relação entre a mídia e a sociedade é uma questão que já vem sendo discutida a nível da
teoria social, com maior destaque para as contribuições de grandes pesquisadores da Escola
de Frankfurt. No livro, “A dialética do esclarecimento”, concretamente no capitulo “A
indústria cultural o esclarecimento como uma mistificação das massas”, Adorno e
Horkheimer (1985) demostram, de um modo geral, que as mídias, ou como eles
denominam a indústria cultural, constituem um instrumento de alienação e dominação
dentro de uma sociedade de consumo. Para os autores,
o cinema e o radio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade e que
não passam de um negocio, eles a utilizam como ideologia destinada a legitimar o
lixo que propositalmente produzem. Eles se definem a si mesmo como indústrias,
e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores gerais suprimem toda
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dúvida quanto a necessidade social de seus produtos (ADORNO e
HORKHEIMER, 1985, p. 100).
Acreditamos que as reflexões dos autores, vão ao encontro da realidade atual no que
concerne a mídia televisiva ou impressa, pois segue os anseios de uma racionalidade
técnica instrumental baseada numa perspectiva capitalista de organização social onde os
indivíduos são reduzidos a meros consumidores impondo de certa forma padrões que “até
mesmo os distraídos vão consumi-los alertamente” (Id. 2004, p. 105). Embora possa se
questionar atualmente a ideia de uma sociedade alienada: Até que ponto as pessoas são
alienadas pelo sistema ou pela mídia? Seriam as pessoas seres indefesas perante as
imposições de uma sociedade de consumo? Trata-se de duas questões complexas que
evidenciam uma diversidade de concepções dentro de um campo democrático de análise.
Contudo, importa em primeiro lugar afirmar que, não se pode negar que a mídia impõe
padrões, sendo assim, não se pode descartar a influência que ela tem na transformação da
cultura e na vida cotidiana dos indivíduos dominando o tempo de lazer; modelando
opiniões políticas e comportamento sociais; definição e redefinição do que é bom ou mau,
negativo ou positivo e moral ou imoral; fornecimentos de símbolos, mitos e recursos que
ajudam a construir uma cultura com tendências homogêneas, apesar das resistências que
existem, para pessoas de várias regiões do mundo (DA COSTA, 2004, p. 181).
Segundo, não se pode negar que a mídia exerce uma influência na construção de um
imaginário social sobre uma determinada realidade sociocultural, em função das imagens
disseminadas em relação a essa realidade sociocultural, importa citar, a partir das
experiências cotidianas, como exemplo a imagem que se tem, de um modo geral, em
Moçambique sobre o Brasil, onde, se por um lado a banalização, isso na nossa percepção,
das imagens do corpo da mulher brasileira fazem com que jovens adolescentes
moçambicanos sonhem em um dia na vida conhecer o “paraíso” Brasil, por outro, a
superexposição das imagens de violência urbana e barbárie, principalmente nas favelas do
Rio de Janeiro, faz com que as mães sintam um “frio na barriga” quando escutam seus
filhos dizerem que vão ao Brasil e as palavras “mas porque logo o Brasil” demonstram a
preocupação por elas sentidas.
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Trata-se nesse caso de imaginários construídos através das informações e imagens
disseminadas por programas que enquanto uns têm a espetacularização e a banalização do
corpo da mulher como “atrativo” principal para a audiência, outros encontram esse
“atrativo” na violência cotidiana e nas ações policiais de combate ao tráfico de drogas, etc.
O mesmo pode-se constatar no cenário local, no que concerne ao imaginário construído,
por exemplo, sobre um determinado bairro (Sacramenta, Terra Firme, Guamá, Telegrafo,
etc.) em função da superexposição das imagens de violência - embora se admita que sejam
bairros que apresentam, de acordo com percepção geral, um histórico criminal elevado -
vezes sem conta destorcidas em relação a esse respetivo bairro.
Terceiro, que através da superexposição midiática dos eventos marcados pela violência
(MENDONÇA, 2013), a mídia contribui para a construção de imaginário de uma sociedade
do medo que se manifesta pelo surgimento e “enraizamento” no seu dos indivíduos de um
sentimento generalizado de insegurança e vulnerabilidade.
Atualmente, a realidade mostra que em Belém os moradores estão reduzidos no seu
cotidiano a meros consumidores de imagens de violência, barbárie e de ações criminosas
disseminadas através de programas televisivos tais como Metendo Bronca, Cidade Alerta,
Barra Pesada, Balanço Geral casos de polícia, Brasil Urgente, pertencentes a grandes redes
de televisão (Rede Record, Rede Bandeirante, Rede Globo, incluindo as suas filiares
regionais, tais como RBA, TV Liberal), e em páginas de jornais impressos e online (Jornal
O Liberal, Jornal Diário, só para citar alguns). Trata-se de programas que se dizem de teor
investigativo, mas,
restringem a sua atuação em grande parte em pequenos delitos ou fatos cotidianos
sem trabalhar conteúdos investigativos (....) até porque as matérias não recebem
tratamento jornalístico mais apurado e interpretativo que permitisse uma análise
mais contextualizada da problemática da sociedade (DA COSTA, 2004,
177).
Não se pode negar que estamos numa situação onde a violência e as ações criminais são
vistas como uma forma de entretenimento, apesar de não ser uma questão nova, pois a
história mostra-nos casos semelhantes na Roma antiga, porém se outrora existia o “coliseu”
e as diversas “arenas” onde as pessoas se deslocavam ao encontro de espetáculos de
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violência, hoje o espetáculo da violência desloca-se ao encontro das pessoas, quase que
permanentemente, através da cotidiana superexposição midiática das ações criminais.
Num estudo, intitulado “Televisão: da profusão de imagens à cegueira ética”, Mendonça
(2013) considera que a superexposição das imagens da violência no campo televisivo, este
visto pela autora como o suporte material e tecnológico da sociedade-espetáculo, constitui
um fator que,
impede a reflexão dos sujeitos mergulhados na cultura choqueiforme. a
velocidade e o choque de imagens estão materialmente na base de nossa cegueira
ética; impede a escuta e a visão éticas do outro na mesma medida em que
regridem os sentidos diante das imagens e dos sons espetaculares; reproduz, na
esteira da ausência de reflexão e da precessão de simulacros, comportamentos
violentos veiculados pelas imagens; afasta o homem do real em favor de uma
vida de substituição daquele pelo imaginário televisivo; banaliza a morte a partir
da sua superexposição; aprofunda o vazio ético, o vazio existencial do homem
contemporâneo; aprofunda os estados de impessoalidade e de
incomunicabilidade... (MENDONÇA 2013, p. 188).
Trata-se de consequências que evidenciam a influência que a midiatização da violência tem
no comportamento ou na maneira de ser e estar dos indivíduos. Seguindo a mesma
perspectiva acreditamos que superexposição midiática da violência, fenômeno que tal como
referimos acima, caracteriza o cotidiano dos moradores de Belém, contribui para a
construção do imaginário de uma sociedade de medo e reforça o sentimento generalizado
de insegurança e vulnerabilidade.
Este fato torna a midiatização da violência - um processo que constitui para que imagens de
violência e de ações criminais ultrapassem o contexto espacial e temporal, fazendo, por
exemplo, com que um caso que ocorre num determinando contexto sócio espacial local
seja, através do que chamaríamos de superespetacularização, sentido num contexto mais
global e universal - um fenômeno determinante na construção social da vida cotidiana.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Importa a partir das palavras de Debord (1997) dizer que as relações sociais nas sociedades
contemporâneas são, acima de tudo, mediadas pelas imagens e o espetáculo (das imagens)
constitui o modelo presente da vida dominante. A ampla apropriação das imagens de
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violência e da criminalidade no campo televisivo e jornalístico, o que denominamos de
midiatização da violência provoca consequências muito bem evidenciadas por Mendonça
(2013), tais como a cegueira ética; o impedimento da escuta e a visão ética do outro; a
reprodução na esteira da ausência de reflexão de comportamentos violentos veiculados
pelas imagens; o afastamento do homem do real em substituição do imaginário televisivo; a
banalização da morte a partir da sua superexposição; o aprofundamento do vazio ético e o
vazio existencial do homem contemporâneo, entre outros.
Ao longo do texto, buscamos demostrar em primeiro lugar que, se por um lado a violência
em Belém é real, por outro ela é midiática, baseada na superexposição ou
supermidiatização das ações reais de violência e da criminalidade. Dito de outro modo, não
se pode negar, tal como evidenciaram os depoimentos de alguns moradores, que a violência
e a criminalidade são fenômenos concretos e eminentes na cidade de Belém, onde se por
um lado, vão encontro de todos os domínios espaciais da vida cotidiana dos indivíduos, seja
na rua, em casa, nas escolas, nas universidades, passarelas, paradas dos transportes
públicos, nos transportes públicos, entre outros, por outro, qualquer pessoa pode ser um
agente ativo de ações violentas, seja jovem ou adulto, bem vestido ou inverso, membro
duma torcida organizada, de bicicleta ou a pé, fato que provoca um sentimento
generalizado de insegurança e de vulnerabilidade.
Contudo o processo de midiatização da violência que, não só, provoca uma banalização do
sofrimento alheio através da exposição permanente, por exemplo, do choro e desespero das
vítimas e dos seus entes queridos; da morte através da exposição dos corpos da vitimas em
casos de homicídios e assassinatos, dentre outras “crueldades”, como também, contribui
para que as imagens de violência ultrapassem o contexto espacial e temporal, reforça,
através da construção de um imaginário de uma sociedade do medo, o sentimento
generalizado de insegurança e de vulnerabilidade.
E em segundo lugar, que o sentimento de insegurança e de vulnerabilidade, seja ele
fundamentado pela violência concreta que caracteriza o cotidiano dos moradores ou pelo
processo de midiatização da violência e da criminalidade através de programas televisivos e
jornalísticos, exerce uma influência na vida cotidiana dos indivíduos que passa a ser
caracterizada por um conjunto de estratégias e técnicas de sobrevivência que vão, tal como
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referimos acima, desde o simples fato de não usar o telefone celular na rua, até a uma
arquitetura do medo caracterizada por residências, lojas comerciais, condomínios fechados
e superguarnecidos por medidas ativas –seguranças armados – e passivas – grades, cercas
elétricas etc. – de segurança.
Com isso queremos, afirmar que a midiatização da violência e da criminalidade, um
fenômeno contumaz nas sociedades contemporâneas, como é o caso do Brasil e
concretamente de Belém, constitui um fator determinante na construção social da vida
cotidiana.
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