Imagem e Contra-imagem do Império Português · de Portugal, alguns dos autores mais importantes...

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa Imagem e Contra-imagem do Império Português: “Os Trabalhos e os Dias” de Jorge de Sena e de Rui Knopfli Márcia de Oliveira Alfama Buser Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de Doutora em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas). Orientador: Prof. Dr. Jorge Fernandes da Silveira Coorientadora: Prof a . Dr a . Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco Rio de Janeiro Fevereiro de 2015

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

Imagem e Contra-imagem do Império Português:

“Os Trabalhos e os Dias” de Jorge de Sena e de Rui Knopfli

Márcia de Oliveira Alfama Buser

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de Doutora em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas). Orientador: Prof. Dr. Jorge Fernandes da Silveira Coorientadora: Profa. Dra. Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2015

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Buser, Márcia de Oliveira Alfama

Imagem e Contra-imagem do Império Português: “Os Trabalhos e os Dias” de Jorge de Sena e de Rui Knopfli/ Márcia de Oliveira Alfama Buser. – Rio de Janeiro: UFRJ/Faculdade de Letras, 2015.

ix, 197f; 7 cm. Orientador: Jorge Fernandes da Silveira e Coorientadora: Carmen Lucia Tindó Ribeiro

Secco Tese (Doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ PPGLEV - Programa de Pós-Graduação

em Letras (Letras Vernáculas), 2015. Referências Bibliográficas: f. 182-197. 1. Portugal. 2. África. 3. Moçambique. 4. Jorge de Sena. 5. Rui Knopfli. 6. Poesia. 7.

Parresia. 8. Cinismo. 9. Imagem. 10. Contra-imagem. I. Silveira, Jorge Fernandes da; Secco, Carmen Lucia Tindó Ribeiro. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, PPGLEV - Programa de Pós-Graduação em Letras (Letras Vernáculas). III. Imagem e Contra-imagem do Império Português: “Os Trabalhos e os Dias” de Jorge de Sena e de Rui Knopfli.

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

Imagem e Contra-imagem do Império Português: “Os Trabalhos e os Dias” de Jorge de Sena e de Rui Knopfli

Márcia de Oliveira Alfama Buser

Orientador: Prof. Dr. Jorge Fernandes da Silveira

Coorientadora: Profa. Dra. Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas). Examinada por:

___________________________________________________________________ Prof. Doutor Jorge Fernandes da Silveira – UFRJ (Orientador, Presidente da Banca)

___________________________________________________________________ Profa. Doutora Gilda da Conceição Santos - UFRJ

___________________________________________________________________ Profa. Doutora Ida Ferreira Alves - UFF

___________________________________________________________________ Profa. Doutora Rita de Cássia Natal Chaves - USP

___________________________________________________________________ Prof. Doutor Jorge Vicente Valentim - UFSCAR

___________________________________________________________________ Profa. Doutora Terezinha de Jesus da Costa Val - UFRJ, Suplente

___________________________________________________________________ Profa. Doutora Gumercinda Nascimento Gonda - UFRJ, Suplente

Rio de Janeiro Fevereiro de 2015

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Dedicatória À memória de Jorge de Sena. À memória de Rui Knopfli. À D. Mécia de Sena. A todos que, direta ou indiretamente, lutaram contra o colonialismo europeu.

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Agradecimentos Ao Criador e aos meus Guias. Aos meus ancestrais africanos e portugueses. Às minhas filhas Lara e Luísa. Ao meu marido e aliado, Tobias. À minha família e a todos os outros filhos que o mundo me deu. Aos meus grandes mestres:

Prof. Doutor Jorge Fernandes da Silveira e Profa. Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco. À Profa. Doutora Terezinha de Jesus da Costa Val. À Profa. Doutora Gilda da Conceição Santos. À Profa. Doutora Gumercinda Nascimento Gonda. À Profa. Doutora Ida Ferreira Alves. À Profa. Doutora Rita de Cássia Natal Chaves. Ao Prof. Doutor Jorge Vicente Valentim. Aos colegas e funcionários da Faculdade de Letras da UFRJ. A todos os meus professores. A todos os meus alunos. Aos moradores do Complexo da Maré. À UFRJ. Ao CNPq. Aos meus amigos, deste e de outros mundos, que me auxiliaram na realização desta pesquisa.

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O Auto da Lusitânia Entra Todo o Mundo, homem rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que se lhe perdeu; e logo após ele um homem, vestido como pobre, este se chama Ninguém, e diz: Que andas tu aí buscando? Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar: delas não posso achar, porém ando perfiando. por quão bom é perfiar. Ninguém: como hás o nome, cavaleiro? Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo, e meu tempo todo inteiro sempre é buscar dinheiro, e sempre nisto me fundo. Ninguém: Eu hei Ninguém, e busco a consciência. Belzebu: Esta é boa experiência: Dinato, escreve isto bem. Dinato: Que escreverei, companheiro? Belzebu: Que Ninguém busca consciência, e Todo o Mundo dinheiro. Ninguém: E agora que buscas lá? Todo o Mundo: Busco honra muito grande. Ninguém: E eu virtude, que Deus mande que tope com ele já.

Belzebu: Outra adição nos acude: escreve logo aí, a fundo, que busca honra Todo o Mundo, e Ninguém busca virtude. Ninguém: Buscas outro mor bem qu'esse? Todo o Mundo: Busco mais quem me louvasse tudo quanto eu fizesse. Ninguém: E eu quem me repreendesse em cada cousa que errasse. Belzebu: Escreve mais. Dinato: Que tens sabido? Belzebu: Que quer um extremo grado Todo o Mundo ser louvado, e Ninguém ser repreendido. [...] Todo o Mundo Folgo muito d'enganar, e mentir nasceu comigo. Ninguém: Eu sempre verdade digo, sem nunca me desviar. Belzebu: Ora escreve lá, compadre, não sejas tu preguiçoso. Dinato: Quê? Belzebu: Que Todo o Mundo é mentiroso, e Ninguém diz a verdade. (negrito meu) [...] (VICENTE, 1984: 369-71)

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RESUMO

IMAGEM E CONTRA-IMAGEM DO IMPÉRIO PORTUGUÊS: “OS TRABALHOS E OS DIAS” DE JORGE DE SENA E DE RUI KNOPFLI

Márcia de Oliveira Alfama Buser

Orientador: Prof. Dr. Jorge Fernandes da Silveira

Coorientadora: Profa. Dra. Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Letras Vernáculas

(Literaturas Portuguesa e Africanas).

A Tese parte do pressuposto de que a ficção d’Os Lusíadas dá início à imagem do português

como um povo conquistador e missionário, cuja identidade social e cultural foi definida por

um projeto de expansão histórica calcado no modelo greco-latino de conquista do outro (o

bárbaro ou o pagão). Baseio-me na proposta de reescrever Portugal a partir da obra de Jorge

de Sena e de Rui Knopfli, poetas que trabalham tanto para desconstruir a imagem de

superioridade do colonizador, quanto para resgatar a verdadeira identidade dos povos

subjugados pelo Império Português. Considerando o conceito de parresia, defendido por

Michel Foucault em A Coragem da Verdade, ressalto o cinismo de Sena e de Knopfli, na

construção de uma contra-imagem de Portugal. Definir o conceito de “imagem idílica” e de

“contra-imagem”, na concepção de Eduardo Lourenço, analisar o conflituoso relacionamento

dos referidos poetas com suas respectivas pátrias e rastrear o sentimento anticolonialista na

escrita seniana e na poesia de Rui Knopfli integram as etapas desta pesquisa.

Palavras-chave: Portugal, África, Moçambique, Jorge de Sena, Rui Knopfli, poesia, parresia, imagem, contra-imagem.

Rio de Janeiro Fevereiro de 2015

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ABSTRACT

IMAGE AND COUNTER-IMAGE OF THE PORTUGUESE EMPIRE: “OS TRABALHOS E OS DIAS” OF JORGE DE SENA AND RUI KNOPFLI

Márcia de Oliveira Alfama Buser

Orientador: Prof. Dr. Jorge Fernandes da Silveira

Coorientadora: Profa. Dra. Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Letras Vernáculas

(Literaturas Portuguesa e Africanas).

The Thesis departs from the assumption that the fiction of Os Lusíadas initiates the image of

the Portuguese as a people of conquerors and missionaries, whose social and cultural identity

was defined by a project of historic expansion, moulded in the Greco-Latin model of conquest

of the other (the barbarian or the pagan). The basis of this Thesis is the proposition to

(re)write Portugal as found in the oeuvre of Jorge de Sena and Rui Knopfli. In their writing,

Sena and Knopfli work both for the deconstruction of the colonizers image of superiority and

for the recuperation of the true identity of the people subjugated by the Portuguese empire.

Making use of the concept of parrhesia, which Michel Foucault defends in The Courage of

Truth, I highlight the endeavour of Sena and Knopfli in the creation of a counter-image of

Portugal. Further main points of this Study are the definition of the concepts of an “idyllic

image” and a “counter-image”, as by the conception of Eduardo Lourenço, the analysis of the

conflictive relationship between the two poets and their respective home countries and the

identification of anti-colonialist sentiments in the writings of Jorge de Sena and Rui Knopfli.

Key-words: Portugal, Africa, Mozambique, Jorge de Sena, Rui Knopfli, poetry, parrhesia, image, counter-image

Rio de Janeiro Fevereiro de 2015

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Sumário

1 Introdução.............................................................................................................. 10 2 A rota e a derrota do Império: imagem e contra-imagem de Portugal................. 14

2.1 A imagem de Portugal..................................................................................... 14 2.1.1 Do primeiro ao segundo traumatismo.................................................. 15 2.1.2 Do segundo ao terceiro traumatismo................................................... 23 2.1.3 Do terceiro ao possível quarto traumatismo........................................ 34 2.1.4 Os “Paraísos Artificiais” de Salazar.................................................... 54

2.2 A contra-imagem de Portugal.......................................................................... 58 3 A Coragem da Verdade......................................................................................... 64

3.1 A parresia...................................................................................................... 65 3.2 O cinismo....................................................................................................... 69

3.2.1 O cinismo como construção da verdade............................................. 71 3.2.2 O cinismo e a construção da vida verdadeira: a outra vida................ 72

3.3 Baco: o falso deus fala a verdade.................................................................. 73 4 Sinais de Fogo na Literatura Portuguesa............................................................... 81

4.1 Jorge de Sena e Luís de Camões................................................................... 94 4.2 Jorge de Sena e África................................................................................... 101 5 A rota e a derrota do Império: imagem e contra-imagem de Moçambique........... 118

5.1 Colonização e formação do Estado............................................................... 118 5.2 A construção do “outro” e a configuração social.......................................... 123 5.3 Independência e liberdade de Moçambique.................................................. 128 6 Rui Knopfli, uma polêmica literária...................................................................... 134

6.1 A Ilha de Moçambique, o espaço da identidade............................................ 146 6.2 Caliban: o outro lado da moeda..................................................................... 154 7 Os “Trabalhos e os Dias” de Jorge de Sena e de Rui Knopfli.......................... 161 8 Conclusão............................................................................................................... 178 9 Bibliografia........................................................................................................... 182

9.1 Autores.......................................................................................................... 182 9.2 Crítica............................................................................................................. 184 9.3 Teoria.............................................................................................................. 191 9.4 História........................................................................................................... 192

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1 Introdução

A ideia inicial desta Tese foi concebida a partir da minha Dissertação de Mestrado,

Algumas andanças do demónio na obra de Jorge de Sena (ALFAMA, 1995a), orientada pela

Professora Doutora Gilda da Conceição Santos. Retomo, na atual pesquisa, especificamente, a

segunda parte da dissertação, na qual evidencio o trabalho de exorcizar a imagem imperialista

de Portugal realizado pelo escritor Jorge de Sena.

Partindo d’Os Lusíadas, há uma linhagem de poetas críticos da imagem imperial

portuguesa. Na epopeia camoniana, Baco alerta os africanos sobre as reais intenções da

chegada dos portugueses ao continente, opondo a contra-imagem de bárbaros sanguinolentos

à imagem de conquistadores heroicos que os portugueses tinham de si mesmos. Nas palavras

de Jorge de Sena “Poderiamos dizer que sempre em Portugal houve duas tendências opostas,

e que a ideia imperial, se atraia muitos, repelia muitos mais. Ironicamente, é como se isso

fosse culpa do próprio imperialismo” (SENA, 2011a: 268).

Na presente Tese, defendo a ideia de que, preocupados com os rumos expansionistas

de Portugal, alguns dos autores mais importantes do século XX (tanto na metrópole, quanto

nas antigas colônias) apresentam em suas obras propostas e tentativas de criar uma contra-

imagem à imagem expansionista e imperial que reconhecesse a condição autêntica e realista

da nação portuguesa.

Da linhagem de poetas críticos à imagem saudosista de Portugal, dois são os eleitos:

Jorge de Sena, português, opositor do regime salazarista, exilado no Brasil e nos Estados

Unidos, e Rui Knopfli, moçambicano de ascendência portuguesa, mas que reivindica, de

forma decisiva, a sua africanidade e o pertencimento à literatura moçambicana. O trabalho de

desmonumentalizar o Império Português une os poetas selecionados neste estudo, devido à

particular dedicação de cada um às suas respectivas pátrias. Os dois poetas, cada um ao seu

modo, criam uma forte contra-imagem de Portugal. Sena, exilado da metrópole do Império,

por assim dizer, e Knopfli, de um ponto de vista da colônia, que apresentou grande resistência

à conquista lusitana: Moçambique.

No segundo capítulo, “A rota e a derrota do Império: imagem e contra-imagem de

Portugal”, apresento os mecanismos de construção de imagens do Império Português,

apontando os fatos históricos que julgo fundamentais. No longo processo histórico que ergueu

a imagem imperialista de Portugal, destacam-se algumas figuras emblemáticas, como, por

exemplo, o infante D. Henrique, D. Sebastião, o Marquês de Pombal e o ditador António de

Oliveira Salazar.

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Não somente por ter regido a sociedade portuguesa por quatro décadas, mas por ter

levado o Império Português às últimas consequências, Salazar tem importância nessa

pesquisa. O ditador cultivou o seu “paraíso artificial”, impondo ao povo português e ao

mundo a ideia de perfeita harmonia entre Portugal e suas colônias, via o lusotropicalismo.

Para o desenvolvimento dessas considerações, são fundamentais as reflexões de Eduardo

Lourenço sobre “A Psicanálise Mítica do Destino Português”.

Para Eduardo Lourenço, filósofo de Literatura e o mais importante pensador nos

rumos desta Tese, é urgente reformular o discurso histórico e cultural português. Em suas

palavras – “a nossa mitologia cultural, miticamente épica, parada na idade de ouro a que

Vasco da Gama e Camões conferiram os seus títulos de nobreza” (LOURENÇO, 2013: 11) –,

subverter o “paraíso artificial”, cultuado, sobretudo, pelo regime do Estado Novo (1926 –

1974) e devolver a Portugal o seu genuíno retrato tornou-se uma necessidade inadiável.

No seu célebre livro, O Labirinto da Saudade (2013), publicado em 1978, quatro

anos após a Revolução dos Cravos, ocorrida em 25 de Abril de 1974, Lourenço defende a tese

de que é a hora de Portugal erguer-se dos escombros da sua história colonizadora e imperial,

iniciada na épocas das Descobertas no século XV. Argumenta que a maioria dos portugueses

nunca conviveu com uma imagem realista de Portugal. A política europeia de expansão

marítima, levando o país para além de seu pequeno espaço continental, resulta, ao fim e ao

cabo, na construção de três impérios: na Ásia, nas Américas e na África. Impérios “irreais”,

segundo Lourenço, como veremos no decorrer desta Tese.

Em O Labirinto da Saudade (2013), Eduardo Lourenço analisa os três traumatismos

causados por mitos históricos fundadores da cultura portuguesa: (1) o nascimento do Estado

português com a prisão de D. Tareja; (2) a perda da autonomia nacional durante a União

Ibérica de 1580 – 1640 e o surgimento do sebastianismo; (3) o Ultimatum inglês, que termina

com a ilusão portuguesa de ser uma grande nação imperial. A proposta de Lourenço baseia-se

numa autognose coletiva como via indispensável para um Portugal autêntico que

modestamente aceite suas limitações e parta para uma nova cruzada, só que, desta vez, de

retorno para casa. Sem aniquilar a esperança, deve-se rever lucidamente o processo histórico,

detectar os traumas sofridos e, a partir daí, promover uma imagem realista da nacionalidade.

No terceiro capítulo, “A Coragem da Verdade”, o conceito de parresia

desenvolvido por Michel Foucault, nos cursos ministrados no Collège de France em 1984, é

apresentado e discutido, uma vez que também norteia os pressupostos teóricos dos capítulos

seguintes. Michel Foucault defende o desenvolvimento da parresia cínica. O cínico é uma

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testemunha da verdade, aquele que busca a verdade e a traz de volta para a humanidade. O

princípio mais importante do cinismo é “mudar o valor da moeda”.

A contra-imagem de Portugal tão reivindicada por Eduardo Lourenço, necessária

para a autognose coletiva reveladora das reais dimensões políticas e geográficas da pátria

lusa, requer a coragem de dizer a verdade. Para se dizer a verdade, para a prática da parresia,

a figura do outro é essencial. Tento mostrar, pelas mãos de Foucault, como uma contra-

imagem à imagem heroica, propagada sobretudo pela historiografia oficial do Estado Novo,

foi sendo construída paralelamente na poesia de Jorge de Sena e de Rui Knopfli.

No quarto capítulo, “Sinais de Fogo na Literatura Portuguesa”, analiso a construção

da contra-imagem de Portugal na obra de Jorge de Sena, com destaque para a poética “do

testemunho”, interpretada por ele como um “ato revolucionário”, capaz de transformar o

mundo. Como prova da capacidade heroica dos lusitanos, a epopeia de Luís de Camões é

largamente propagada pelo sistema fascista numa leitura rasa. Sena se apropria da imagem de

Camões para revelar um “outro” Camões, em uma versão mais humanizada, próxima à

realidade, a exemplo do poema “Camões na Ilha de Moçambique”. Sena investe na palavra

como reformadora dos desconcertos do mundo e por isso escreve e reescreve Luís de

Camões, além de combater o que chamava de “indústria camoniana”.

No quinto capítulo, “A rota e a derrota do Império: imagem e contra-imagem de

Moçambique”, revelo os mecanismos de construção de imagens artificiais de um Império

colonial, numa das antigas colônias: Moçambique. A importância das colônias correspondia a

fatores meramente econômicos e seus habitantes nativos vistos como seres inferiores e

preguiçosos. Imagem nefasta que se eternizou na história dos povos colonizados, por muitas

vezes chamados de selvagens ou comparados a animais.

A História é também protagonista nesta Tese e, por esta razão, ocupa um espaço

relevante no texto. É, através da análise crítica de algumas versões, que fatos históricos

apresentados como verdade única podem ser julgados. O enfoque dado será na política

colonial aplicada pelo colonizador português em seus domínios ultramarinos. Bem distante do

discurso de miscigenação e redenção do outro, a realidade era de total negação dos valores

culturais africanos, de privação da liberdade, de violência e de trabalhos forçados.

Uma fonte importante para este capítulo é a Tese de Doutorado em Antropologia

Social, Moçambique: Identidades, Colonialismo e Libertação de José Luís Cabaço (2007). O

autor nasceu em Moçambique e foi participante ativo das mobilizações pela independência de

seu país. Cabaço mostra o processo de construção de uma identidade nacional moçambicana

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em oposição à autoridade de Portugal. Um argumento central de toda a sua tese é “a essência

dualista da sociedade colonial” (CABAÇO, 2007: 27).

Concentrando-se na História moçambicana posterior à chamada “ocupação efetiva”,

a partir dos anos 1890, Cabaço expõe com clareza as dicotomias do regime colonial:

“civilizados” x “indígenas”; “portugueses” x “africanos”; “brancos” x “negros” (ALMEIDA-

SANTOS, 2010: 779). Desta forma, o antropólogo revela ser enganosa a imagem do modelo

colonial de uma missão civilizadora, cultuada pelos portugueses e vivendo um último auge

com a promoção das teorias lusotropicalistas pelo regime do Estado Novo.

O poeta Rui Knopfli, em torno da polêmica literária que envolve sua escrita, é o

protagonista do sexto capítulo, “Rui Knopfli: uma polêmica literária”. Além de alguns

poemas de O País dos Outros, Reino Submarino, A Ilha de Próspero e de O Escriba

Acocorado, os demais poemas aqui selecionados encontram-se em Mangas Verdes com Sal. A

coletânea reúne versos escritos entre 1967 e 1969, ou seja, durante a fase da guerra de

libertação, sob forte censura e, por esta razão, eleitos para interpretação. Nesse capítulo,

analiso como o poeta moçambicano constrói uma contra-imagem de Portugal, seguindo o seu

compromisso com a verdade e colaborando para a construção de uma memória coletiva de

Moçambique e, por extensão, da África.

A Ilha de Moçambique como um lugar à parte na poética knopfliana; a divergência

da crítica literária acerca do lugar de Rui Knopfli nas letras moçambicanas; a reflexão sobre o

labor poético como atitude revolucionária contra a opressão e ao silêncio; a intertextualidade

com a malha áspera da poesia seniana; e, sobretudo, o cinismo no combate ao colonialismo

representam alguns dos aspectos que pretendo analisar na poesia de Knopfli.

Analiso ”Os Trabalhos e os Dias” de Jorge de Sena e de Rui Knopfli no sétimo

capítulo, apresentando as devidas conclusões da Tese no oitavo e último capítulo. Cabe

ainda ressaltar, em primeiro lugar, que a proposta de analisar o diálogo entre a poesia de Jorge

de Sena e a poesia de Rui Knopfli surgiu durante as aulas ministradas pela Professora Doutora

Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco, em parceria com a Professora Doutora Ana Mafalda

Leite, no Curso de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa e Africanas, no decorrer do

primeiro semestre de 2010, na Faculdade de Letras da UFRJ; em segundo lugar, que boa parte

das ideias desenvolvidas nesta pesquisa encontraram suas rotas no curso de Pós-graduação O

Retorno do Épico II, ministrado pelo Professor Doutor Jorge Fernandes da Silveira, no

segundo semestre de 2009. Nau/Nave que, diga-se de passagem, navegou de vento em popa

até um “porto sempre por achar” (PESSOA, 2008: 131).

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2 A rota e a derrota do Império: imagem e contra-imagem de Portugal

2.1 A imagem de Portugal

Segundo Eduardo Lourenço, em O Labirinto da Saudade (2013), o povo português

acolhe em sua memória coletiva e cultural imagens tanto positivas quanto negativas a respeito

de si mesmo. Recheadas de exaltações e descrenças nacionais, essas imagens se voltam para

um passado ou um futuro, hospedando seus respectivos mitos e contra-mitos. Por esta razão, a

verdadeira expressão do país permanece desfocada. Comenta o ensaísta:

Se a História, no sentido restrito de «conhecimento do historiável», é o horizonte onde melhor se apercebe o que é ou não é a realidade nacional, a mais sumária autópsia da nossa historiografia revela o irrealismo prodigioso da imagem que os portugueses fizeram de si mesmos (LOURENÇO, 2013: 2).

A herança de uma imagem portuguesa irreal é bastante antiga. Eduardo Lourenço

defende que não existe, no país, uma imagem realista do que é Portugal e de quem são os

portugueses. Toda a historiografia, segundo o ensaísta, com raras exceções, cria uma imagem

irracional de Portugal, o que dificulta o autorrecohecimento do povo português. Esse

irrealismo é comum à maioria dos portugueses. Os historiadores fabricaram modelos heroicos

que contribuíram para a ampliação e generalização do comportamento prodigioso nacional.

Nas palavras de Lourenço: “O que visamos é mais largo e profundo, pois afecta na raiz a

possibilidade mesma de nos compreendermos enquanto realidade histórica” (LOURENÇO,

2013: 24).

“A exaltação culturalista da imagem de Portugal” (LOURENÇO, 2013: 42) só faz

sentido perante a realidade e a vocação imperialista do povo lusitano. Esta imagem, fixada na

época das Descobertas, constitui, segundo Lourenço, nas décadas de 1930 e 40 o “núcleo da

imagem de Portugal que interiormente nos definiu” (LOURENÇO, 2013: 42), fixação não

apenas defendida por historiadores da direita, mas também da esquerda. Esses, historiadores

de esquerda, empreenderam pesquisas inovadoras, mostrando a fusão entre as duas imagens

nacional e imperial, desde os tempos da primeira expansão.

Eduardo Lourenço guia-nos por um labirinto essencialmente português em sua

expressão, até o ponto chave de sua abordagem: “os três mitos traumáticos formadores da

cultura nacional” (2013: 20). Segundo seu ponto de vista, Portugal precisa de uma psicanálise,

a fim de se reconhecer a si mesmo, ao seu profundo ser e “arrancar-nos as máscaras que nós

confundimos com o rosto verdadeiro” (2013: 24). O enfoque psicanalítico é justificado pela

introdução de três traumatismos históricos, sendo o primeiro o próprio nascimento do Estado

português. Eduardo Lourenço compreende o primeiro traumatismo como um “acto sem

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história, da ordem do injustificável, do incrível, do milagroso, ou, num resumo de tudo isso,

do providencial” (2013: 25) e que desta forma determina profundamente a relação histórica

que a nação portuguesa mantém consigo mesmo, no que diz respeito à sua configuração

nacional.

Trata-se de uma longa trajetória iniciada no ventre materno da História com as lutas

travadas entre o primeiro rei lusitano, D. Afonso Henriques, e sua mãe, D. Tareja; percorre a

época do domínio espanhol (Dinastia dos Felipes) e atinge o golpe do Ultimatum inglês em

1890. A análise do ensaísta estende-se até a derrocada da ditadura salazarista e suas

consequências, muito embora este último episódio não possua, surpreendentemente, a mesma

significação traumática dos anteriores. Respeitando a cronologia destes fatos históricos e seus

respectivos efeitos traumáticos, passarei agora a uma breve reflexão sobre cada um deles para

melhor prospectar o solo da análise em questão.

2.1.1 Do primeiro ao segundo traumatismo

Nos últimos anos dos século XI, nasce, desmembrado da Galiza o Condado

Portucalense, obedecendo meramente a motivos políticos (sem considerar os geográficos e

etnológicos, como era comum à formação dos Estados medievais). Afonso VI de Castela

concede a mão de sua filha bastarda, D. Tareja, e o Condado ao conde de Borgonha, D.

Henrique, por ter colaborado nas Cruzadas contra os mouros.

Após dilatar seus domínios, morre D. Henrique, deixando ao seu filho Afonso

Henriques, ainda criança, o encargo de dar continuidade a seus feitos. A viúva, que mantinha

publicamente um relacionamento amoroso com o conde galego Fernando Peres, começa a

causar um forte incômodo na Corte. Os fidalgos, contando com a participação de Afonso

Henriques, iniciam uma revolta contra D. Tareja que, derrotada e presa, acaba fugindo.

Segundo Eduardo Lourenço, os sacrilégios maternos revelam um “perfil freudiano dos mitos

historiográficos” (LOURENÇO, 2013: 20).

Para Jorge de Sena, numa leitura mítica da História de Portugal, D. Tareja

representa um papel trágico: “O comportamento dela justificara a revolução que colocara seu

filho no trono e Portugal no seu destino histórico, mas a origem de Portugal ficara manchada

por este «pecado original» contra o poder matriarcal” (SENA, 1978: 463).

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Misturam-se neste primeiro traumatismo “fanfarronice e humildade” (LOURENÇO,

2013: 24) e “a consciência de uma congenital fraqueza e a convicção mágica de uma

protecção absoluta” (LOURENÇO, 2013: 25) de um poder mais alto, divino. O povo

português vive “uma conjunção de um complexo de inferioridade e superioridade”

(LOURENÇO, 2013: 25) que ao longo da História portuguesa nunca foi abordada ou tratada e

que, por isso, é o motivo de uma relação irrealista que os portugueses mantêm consigo

mesmo.

Essa conjunção de complexos serve aos portugueses para se esconderem do

reconhecimento da sua autêntica condição histórica de “intrínseca fragilidade” (LOURENÇO,

2013: 25). Portugal é uma nação pequena que, entretanto, desde o começo não quis sê-la e

alcançou uma incontestável grandeza histórica que porém sempre se fundou numa “ficção que

se sabe desmedida mas precisa de ser clamada à face o mundo menos para que a oiçam do que

para acreditar em si mesma” (LOURENÇO, 2013: 26). Portugal, simplesmente, não tinha

estatura para tocar no concerto das grandes nações.

Para a superação do primeiro traumatismo, Os Lusíadas constituem, segundo

Lourenço, um elemento central: “Antes da noite o poema recolhe a nossa primeira e eterna

figura que acaso, sem ele, houvesse perdido a chave e a vontade da sua ressurreição”

(LOURENÇO, 2013: 26). O primeiro traumatismo começa a desaguar em novos rumos e

formas: o mar. Uma inebriante visão que vai cada vez mais tomando conta, entorpecendo e

viciando o espírito português. Virginal e tenebroso, ele se apresenta como uma artéria capaz

de oxigenar o ideal venoso de ambição lusitana.

A expansão portuguesa

O Infante Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. Deus quis que a terra fosse toma uma, Que o mar unisse, já não separasse. Sagrou-te, e foste desvendando a espuma, E a orla branca foi de ilha em continente, Clareou, correndo até ao fim do mundo, E viu-se a terra inteira, de repente, Surgir, redonda, do azul profundo. Quem te sagrou criou-te português.

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Do mar e nós em ti nos deu sinal. Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. Senhor, falta cumprir-se Portugal! (PESSOA, 2008: 127)

A expansão portuguesa rumo ao continente africano baseou-se em três grandes

motivações: (1) a guerra contra os muçulmanos, travada primeiro na Península Ibérica e

depois na África do Norte, território outrora cristão, perdido para o Islã; (2) a exploração do

mar ao oeste de Portugal e a descoberta das ilhas atlânticas e (3) a procura do mítico Preste

João, soberano cristão da Etiópia, no intuito de criar alianças cristãs pelas costas dos reinos

islâmicos e assim cercar o Islã.

Fortalecida pelo circuito comercial europeu, a burguesia mercantil portuguesa apoiou

a Revolução do Mestre de Avis que entronizou D. João I (1383 – 1385). Além de reafirmar a

independência do reino lusitano, afastando o antigo fantasma da subordinação a Castela, a

Dinastia de Avis promoveu a expansão mercantil e territorial portuguesa inaugurada com a

conquista de Ceuta em 1415. Em 1420, D. Henrique se tornou governador da Ordem de

Cristo, posição que lhe conferiu uma força militar permanente e amplas receitas. O infante D.

Henrique, conhecido como O Navegador, fomentou a primeira fase da expansão portuguesa

até a sua morte em 1460.

As viagens de descobrimento iniciaram-se com o objetivo de aumentar o patrimônio

e as finanças. Como governador do Algarve e de Ceuta, cujas economias estavam

estreitamente ligadas à pesca e à navegação, D. Henrique gradualmente foi se voltando para

os assuntos relacionados ao mar. Grande parte dos seus súditos possuía navios e estava

envolvida no comércio marítimo. D. Henrique, como senhor feudal e comandante-em-chefe,

estava numa posição ideal para lançar-se na aventura dos descobrimentos. A partir da década

de 1420, expedições portuguesas começavam a seguir a rota em busca do lendário rio do

ouro, já que a Europa estava em falta do metal precioso desde o século XIV. Um dos motivos

das viagens de descobrimento era a tentativa dos portugueses de chegar ao sul do Islã e fazer

contato direto como os produtores de ouro.

Gil Eanes, a envio de D. Henrique, finalmente conseguiu, em 1434, a proeza de

ultrapassar o cabo Bojador. Os portugueses tinham descoberto o sistema de ventos entre a

costa africana, as ilhas atlânticas e o continente europeu para poder velejar ao longo da costa

africana, e, mais importante ainda, poder voltar a Portugal. Depois de passado o cabo

Bojador, a exploração da costa africana se deu mais rapidamente. Entre 1441 e 1446, Nuno

Tristão explorou a costa mais ao sul, chegando provavelmente até o Senegal e ao rio Gâmbia.

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O ouro chegou a Portugal pela primeira vez em 1442 e desempenhou um papel importante no

comércio com a costa africana já naquela época.

Já no final da década de 1440, os portugueses começavam a estabelecer feitorias ao

longo do litoral africano e fortalezas para protegê-las. Na mesma época, a Coroa começava a

desempenhar um papel mais protagonista, tentando organizar de forma rudimentar o comércio

com a África. Para tal objetivo, criava repartições públicas como a Casa de Ceuta que

supervisionava as transações econômicas, sobretudo em Marrocos e outra casa em Lagos, que

se ocupava do comércio com a costa africana no oceano Atlântico.

Desde o início da expansão, o tráfico de escravos era um dos comércios mais

lucrativos. As ilhas Canárias serviram como o primeiro celeiro para a caça de cativos. Em

1441 chegaram os primeiros negros da costa da Mauritânia e o comércio de escravos

começou. Entre 1441 e 1448, foram raptados no mínimo 1000 escravos, na década de 1450 já

eram 700 a 800 por ano que chegaram ao Algarve e a Lisboa. Os escravos foram vendidos

para outros países de Europa ou usados nas plantações de cana-de-açúcar e outras

agriculturas na ilha da Madeira e em Portugal. O açúcar era o produto com maior margem de

lucro ao lado do tráfico de escravos.

Na década de 1450, Diogo Gomes chegou à Guiné e à Serra Leoa. Em 1456, os

portugueses alcançaram Cabo Verde.

Assi fomos abrindo aqueles mares, Que gèração algũa não abriu, As novas Ilhas vendo e os novos ares Que o generoso Henrique descobriu; (Lus. V, 4, 1-4) Passámos a grande Ilha da Madeira, Que do muito arvoredo assi se chama; Das que nós povoámos a primeira, Mais célebre pro nome que por fama; (Lus. V, 5, 1-4)

Com a bula Dum Diversas de 1452, o papa Nicolau V concedeu ao rei de Portugal

Afonso V “poder para combater e subjugar os inimigos de Cristo e até escravizá-los” (ROTH,

2013: 75). Outra bula do pontífice expandiu os direitos outorgados a D. Afonso V, conhecido

como o Africano. Com a bula Romanus Pontifex de 1455, o papa Nicolau V concedeu a

Portugal o direito exclusivo de descobrimento e conquista e em 1456, o papa Calixto III

outorgou, mediante a bula Inter Caetera, à Ordem de Cristo o padroado, a jurisdição

espiritual, sobre as terras já descobertas e a serem descobertas futuramente. Com isso, a

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Ordem de Cristo exercia os poderes de um bispo nas terras novas. Com estas bulas, Portugal

obteve a completa liberdade de conquistar e governar todos os territórios africanos, desde que

não fossem habitados por cristãos (reino do Preste João).

Com a morte de D. Henrique em 1460 terminou esta primeira fase de expansão. Até

1480 segue-se uma fase de relativa estagnação. O rei Afonso V estava mais interessado em

Marrocos e em 1468 concedeu ao comerciante de Lisboa Fernão Gomes o monopólio, por

seis anos, de descobrir novas terras e de fazer comércio na costa africana.

Em 1474, o infante D. João (futuro rei D. João II) assumiu a liderança da expansão

ultramarina e, pela primeira vez, planejou coerentemente a empreitada e traçou um plano de

chegar à Índia (MARQUES, 2012: 201). Devido à Guerra de Sucessão à Coroa castelhana

entre Castela e Portugal (1474 – 1479), não foi possível avançar com a exploração da costa

africana até 1480. A rainha Isabel de Castela usou a guerra de pretexto para contestar a

hegemonia portuguesa na África, concedida em 1455 com a bula papal Romanus Pontifex.

Para manter a primazia dos descobrimentos, Portugal abriu mão de seus interesses nas as ilhas

Canárias, sustentadas desde a primeira expedição de mercadores italianos, financiada pelo rei

português D. Afonso IV em 1341.

Com a chegada ao poder de D. João II em 1481 inicia-se a terceira fase de

exploração da costa africana, desta vez com maior protagonismo da Coroa. Em 1482, D. João

enviou a primeira expedição exploratória da Coroa à costa africana, com a missão de

encontrar o caminho marítimo à Etiópia e ao reino do Preste João, que se pensava muito perto

do Benin, no golfo da Guiné. Mas estas expectativas foram frustradas com a descoberta de

que a costa africana virava para o Sul na altura dos Camarões.

Diogo Cão fez contato com o reino do Congo e mais uma vez achou que tinha

chegado perto do reino do Preste João, quando os nativos lhe falaram de um soberano

poderoso rio acima. Cão enviou mandatários para procurar o reino etíope e prosseguiu a

viagem chegando até Angola. Numa segunda empreitada (1485-86), foi até a atual Namíbia.

Nestas viagens inaugurou a tradição de firmar nas terras descobertas os chamados “padrões”,

pilares de pedra com uma cruz e as armas da coroa gravadas.

Em 1487, D. João II enviou Bartolomeu Dias para encontrar a rota para a Índia,

objetivo principal das viagens de exploração. Dias viajou além do ponto mais ao sul que

Diogo Cão tinha chegado e descobriu o Cabo da Boa Esperança em 1488, abrindo assim a

possibilidade de circum-navegação da África e o caminho marítimo à Índia. Entre 1488 e o

final do século XV, a expansão exploratória desacelerou-se um pouco. Os portugueses

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lançaram-se em empreitadas com menos riscos como a iniciante colonização de São Tomé e o

comércio emergente com o reino do Congo e a bacia da Guiné, sendo o principal ramo das

negociações o tráfico de escravos. Realizadas as primeiras alianças com soberanos africanos,

os portugueses também passaram a lucrar oferecendo seus serviços bélicos como mercenários.

A circum-navegação da África e a exploração do Oceano Índico pelos portugueses só

foram possíveis a partir de 1488 com a ultrapassagem do Cabo da Boa Esperança, também

conhecido como Cabo das Tormentas. Portugal dispunha de tecnologia bélica e náutica para a

empreitada, como o navio à vela, que, além de ser mais veloz e mais fácil de manobrar,

transportava canhões em posição privilegiada de combate, podendo atingir o inimigo à

distância, com poder de fogo abaixo do convés. O navio armado conferiu aos europeus a

superioridade naval, enquanto os árabes eram derrotados em suas galés movidas a remo.

Em 1491, na bacia do rio Congo, o manicongo Nzinga Nkuwu, batizado como

cristão, adotou o nome de D. João I. O seu sucessor, seu filho Myemba-a-Nzinga, conhecido

por Afonso I, enviava jovens a Portugal para serem cristianizados, além de proibir o “culto

dos fetiches”. Houve, entretanto, o Ngola Kiluanje que resistiu á colonização portuguesa. Já

Afonso I, considerado um forte aliado dos portugueses, foi responsável pela implantação e

difusão do cristianismo no Congo.

Ali o mui grande reino está de Congo, Por nós já convertido à fé de Cristo, Por onde o Zaire passa, claro e longo, Rio pelos antigos nunca visto. Por este largo mar, enfim, me alongo Do conhecido polo de Calisto, Tendo o término ardente já passado Onde o meio do Mundo é limitado. (Lus. V, 13)

Inspirado no modelo da Corte portuguesa, o Monarca congolês criou novas regras

administrativas, jurídicas e políticas, alternando significativamente a estrutura social do

Congo. Afonso I rompeu com a tradição religiosa do culto aos ancestrais divinizados e com a

tradição matrilinear ao indicar um dos seus filhos para a sucessão do trono. Estas duas últimas

medidas despertaram a oposição ao seu governo “liderada pelos chefes das linhagens mais

importantes e pelos defensores do culto aos fetiches, dando origem ao movimento de

contestação denominado Revolta da Casa dos Ídolos” (MACEDO, 2013: 86).

Simultaneamente à procura do reino do Preste João e do caminho direto à Índia, se

explorava também o Atlântico ao oeste de Portugal, tentando achar novas ilhas e

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eventualmente a ponta oriental da Ásia. Os Reis Católicos, tentando evitar o conflito,

solicitaram a intervenção do papa Alexandre VI. Este propôs a divisão do mundo ao longo de

um meridiano a oeste de Cabo Verde. Em negociações diretas entre Castela e Portugal este

meridiano foi fixado, no Tratado de Tordesilhas em 1494, a 370 léguas (1184 milhas) a oeste

de Cabo Verde. Os territórios a oeste desta linha caberiam a Castela a explorar, os a leste a

Portugal.

Em 1497, parte a expedição sob o comando de Vasco da Gama para finalmente

explorar o caminho marítimo à Índia, aberto por Diogo Cão e Bartolomeu Dias nove anos

antes. Vasco da Gama ultrapassou o ponto extremo da viagem de Dias passando a descobrir

Natal em 25 de dezembro de 1497, o rio Zambeze em janeiro de 1498, a ilha de Moçambique

em março e Mombaça e Melinde em abril do mesmo ano.

Em Mombaça e Melinde, Vasco da Gama conseguiu pilotos árabes que levaram os

barcos portugueses até a Índia, onde chegaram em maio de 1498 e partiram de volta a

Portugal em agosto do mesmo ano, carregados de especiarias e mercadorias, chegando no

final do verão de 1499. Os resultados econômicos desta primeira viagem eram tão

“espectaculares e promissores” que imediatamente foi organizada uma nova expedição, com

13 barcos, que partiu de Lisboa sob o comando de Pedro Álvares Cabral em março de 1500 e

que viria a encontrar a costa brasileira em 22 de abril de 1500.

Os primeiros contatos dos portugueses no oceano Índico entre 1498 e 1505 eram

marcados por conflitos. Os motivos eram tanto religiosos quanto econômicos. Francisco de

Almeida e, a partir de 1509, o seu sucessor Afonso de Albuquerque seguiram a costa do

oceano Índico construindo o império comercial do Estado da Índia, baseando-se na

“superioridade estratégica das naus, canhões e homens de armas” (PINTO, 2013: 64) e

usando a diplomacia para forjar alianças estratégicas com os muitos reinos locais. No ano de

1509, os portugueses derrotaram facilmente a frota muçulmana em Diu, mostrando que

vieram para conquistar o monopólio comercial.

Em 1510, Afonso de Albuquerque conquistou Goa, melhor lugar estratégico para

dominar o oceano Índico, tornando-se consequentemente a capital do Estado da Índia e

competindo com Lisboa em tamanho e riqueza. Em 1511 foi a vez de Malaca, lugar

geoestrategicamente importante por ser o ponto de encontro dos mercadores vindo da China,

da Tailândia, das Filipinas e de Ceylon. Quem dominava Malaca, dominava o comércio vindo

do oceano Pacífico. Em 1513, os portugueses chegaram à China. Em 1518, Colombo na ilha

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de Ceilão foi conquistado. Em 1542 chegaram ao Japão. Em 1557 finalmente, os portugueses

obtiveram Macau na China e arredondaram assim seu império oriental.

Na costa oriental africana, a perspectiva do comércio do ouro levou ao fundamento

de feitorias em Sena e em Tete rio Zambeze acima (expedição Barreto/Homem 1570-75,

Thornton, 2007: 153) e depois em Quelimane e Inhambane. Ao mesmo tempo, Lourenço

Marques explorou a baía que levava o seu nome até 1975. Estabeleceu postos de comércio e

criou os “fundamentos para uma colónia permanente de portugueses” (MARQUES, 2012:

226).

Até meados do século XVI, os portugueses tinham se estabelecido ao longo de toda a

costa africana, ocidental e oriental, dominavam o oceano Índico e o comércio oriental

mediante fortalezas em pontos estratégicos como a Ilha de Moçambique, Sofala, Ilha de

Socotorá, Ormuz no Golfo Pérsico, Goa e Cochim na costa ocidental do subcontinente

indiano e Malaca na península malaia.

A fase dos grandes descobrimentos encerrou-se a partir de 1512. Portugal tinha o

controle do Atlântico Sul e o domínio de uma grande extensão territorial.

Entretanto, tal império trazia consigo grandes obrigações. Os vantajosos retornos financeiros obtidos na conquista passaram a ser obliterados pelos gastos decorrentes da manutenção das feitorias, cuja segurança era encargo da Coroa (ROTH, 2013: 82).

À medida que o império se expandia, cresciam as despesas da Coroa para manter o

monopólio das especiarias. O preço das embarcações, o despovoamento do campo para o

recrutamento militar, a manutenção das fortalezas, dentre outros fatores, desequilibraram a

balança comercial portuguesa.

Para Eduardo Lourenço, a partir da aventura imperial, entrou a loucura na casa

portuguesa, com potencial nocivo para a identidade nacional. Comenta o ensaísta em O

Labirinto da Saudade:

loucura certa com os poderes do tempo e nossa enquanto colonizadora e conquistadora, mas insidiosamente corruptora (como já Gil Vicente o pressentiu) dessa primitiva imagem lusitana de que cada português conhecia com o olhar e os pés a força e a extensão (LOURENÇO, 2013: 43).

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2.1.2 Do segundo ao terceiro traumatismo

União Ibérica e Restauração

Sob a educação jesuítica, o jovem D. Sebastião arma-se da ideologia cavalheiresca

contra o protestante e maometano. O desfecho desta cruzada dá-se em 4 de agosto de 1578 em

Alcácer-Quibir. Com o desaparecimento do Monarca abre-se a cortina histórica para o

segundo momento traumático de “consequências mais trágicas que o primeiro”

(LOURENÇO, 2013: 27): a era dos Felipes faz cair o pano.

Com 66 anos, sobe ao trono o cardeal D. Henrique, tio de D. Sebastião. Surgem

vários pretendentes à Coroa portuguesa, dentre eles D. António (que chega a ser proclamado

rei em Santarém), o duque de Bragança e Felipe II de Castela. Morre o rei-cardeal sem

resolver a problemática de sua sucessão. Felipe II de Castela manda ocupar Portugal e a

artilharia castelhana sai vencedora na tentativa frustrada de resistência por D. António, o prior

do Crato, que foge para a França, derrotado. Em agosto de 1580, Felipe II é proclamado rei e

jura respeitar a autonomia portuguesa. Entra em vigor uma monarquia dupla.

A morte do rei D. Sebastião abriu o caminho para a União Ibérica, considerada por

Oliveira Marques “econômica, social e culturalmente viável” (MARQUES, 2012: 281). A

União Ibérica foi instaurada em 1581 pelo Tratado de Tomar. Sob domínio espanhol, Portugal

e suas colônias foram atacados pelos inimigos da Espanha, como a Holanda, por exemplo,

que invadiu a Bahia e Pernambuco ou os franceses que se fixaram na Paraíba e no Maranhão,

onde fundaram São Luís em 1594. Com a hegemonia portuguesa abalada, outras potências

europeias disputaram o tráfico escravista e outras negociações lucrativas com a África.

Os sessenta anos de União Ibérica mostraram aos portugueses na realidade que eram

“(também) um povo naturalmente destinado à subalternidade” (LOURENÇO, 2013: 27).

Contudo, as classes dirigentes, escritores e poetas não tinham problemas, durante estes

sessenta anos de dominação pela Espanha, em se vincular organicamente, no plano cultural, à

pátria “que não é ainda nação, mas terra comum, gente comum que a vicissitude política não

altera” (LOURENÇO, 2013: 27).

Subalternizado durante sessenta anos pelo poder filipino, Portugal passa à condição

de província, empobrecida culturalmente. O bilinguismo acentua-se, favorecendo o castelhano

que chega a ser adotado por alguns escritores portugueses. Deixa de haver Corte em Lisboa e

grande parte dos intelectuais emigra para a capital das Espanhas.

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Um outro modo de se relacionar com a racionalidade foi desenvolvido no mesmo

tempo pelas camadas populares, acostumadas ao “desamparo”. As camadas populares

resistiram à coexistência aparentemente pacífica e racional entre espanhóis e portugueses,

desenvolvendo, baixo a impressão do desamparo pelo rei “uma relação diferente com a

totalidade do ser racional” (LOURENÇO, 2013: 28). As camadas populares passam a

manifestar sua angústia esperando um milagre redentor. O sebastianismo representa para

Eduardo Lourenço “a consciência delirada” (LOURENÇO, 2013: 27) de uma carência

nacional.

Com os sessenta anos de reinado dos Felipes, Portugal experimenta o paladar avesso

do poder. Amargamente se encontra e se descobre locado no antigo ventre peninsular. Dono

de terras e mares, sente agora o gosto que tem sofrer uma dominação estrangeira. Cresce um

antigo rancor que se alastrará pelos séculos entre as duas nações. Comenta Eduardo Lourenço:

“Descontentes com o presente, mortos como existência nacional imediata, nós começamos a

sonhar simultaneamente com o futuro e o passado” (LOURENÇO, 2013: 28).

Lourenço identifica duas componentes marcantes da existência histórica portuguesa

como sendo o “desafio triunfante e [a] dificuldade de assumir tranquilamente esse triunfo”.

Afirma, que Portugal nunca conseguiu alcançar a subsistência política plena. Na época da

União Ibérica, a consciência política, o sentimento nacional, “a razão de ser, a raiz de toda a

esperança” começa a se aglutinar no passado, no “termos sido”. Com o sebastianismo,

nascido da frustração com a situação real de súdita, Portugal, cuja vida política sempre foi

agitada, mas que nem por isso deixou de confiar no seu destino, começa a construir uma

imagem escapista, orientando-se “nessa época para um futuro de antemão utópico pela

mediação primordial, obsessiva, do passado” (LOURENÇO, 2013: 28).

Para Portugal, a Guerra dos Trinta Anos serviu para enfraquecer a União Ibérica,

facilitando a retomada dos anseios de independência. A restauração nacional foi garantida

pelo enfraquecimento da Espanha, derrotada nos Países Baixos e obrigada a assinar o Tratado

de Westfália. A revolta conhecida como Restauração Portuguesa desfez a União Ibérica em

1640, iniciando a Guerra da Restauração, um longo conflito entre portugueses e espanhóis. O

Duque de Bragança foi proclamado rei de Portugal como D. João IV numa sublevação contra

a dinastia espanhola, iniciando assim a Dinastia de Bragança.

A capacidade de Portugal vencer militarmente os espanhóis, preservando a

autonomia nacional, deveu-se, também, ao apoio dos inimigos da Espanha (em especial a

Inglaterra e os Países Baixos) “que sustentaram o esforço da independência portuguesa,

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finalmente reconhecida pela Espanha no tratado de paz assinado em 1668” (CARNEIRO,

2013: 186). Essa ajuda custou caro a Portugal. Desde o início do século XVII, ficou notória a

decadência do Império Português na Ásia. As potências rivais europeias tinham ultrapassado

Portugal em questões de tecnologia e navegação, além de infraestrutura bélicas melhores e

uma liderança mais eficaz. Em 1642, D. João IV estabeleceu o Conselho Ultramarino que se

ocuparia dos assuntos de além-mar.

Atribuindo ao Divino a organização do caos nacional e não a esforços físicos e

intelectuais dos humanos, Portugal não percebe que o sonho se tornara o senhor da realidade.

Escapando pelo imaginário, os portugueses passam de humilhados da História, a eleitos,

denotados. Invertendo na sua imaginação a sua real situação de derrotados e humilhados,

sonhando-se os senhores do mundo, o inconsciente português superou o segundo

traumatismo. Expressão dessa ansiedade é o dinamismo reformador do Marques de Pombal

que “pensou libertar-nos por um europeísmo à Pedro da Rússia” (LOURENÇO, 2013: 29),

mas que não conseguiu alcançar a consciência portuguesa.

Despotismo esclarecido

O século XVII viveu na Europa uma série de crises: Guerra dos Trinta Anos de 1618

- 1648, a Guerra Civil Inglesa, as revoltas da Fronda na França, rebeliões na Espanha, a

revolução restauradora em Portugal e outros conflitos. O tratado de Westfália de 1648 fixou

uma nova ideia do estado, instalou um sistema de estados soberanos, todos com os mesmos

direitos, e implantou o direito internacional. A ação do Estado é racionalizada e a política

laicizada. Os limites não mais são postos pela religião e pelas leis de Deus, o Estado e o

Monarca passam a representar a hegemonia político-jurídica.

No século seguinte, na filosofia e no pensamento, o Iluminismo visava interpretar o

mundo na base da racionalidade. Segundo A. H. de Oliveira Marques:

É costume fazer-se o paralelo entre esse vasto corpo de princípios e de actos conhecido como Luzes ou Iluminismo e a doutrina política do Despotismo Iluminado ou Esclarecido, interpretando-se muitas vezes o segundo como consequência do primeiro. Contudo, o Despotismo Esclarecido pode bem melhor explicar-se como uma fase tardia do absolutismo régio, muito mais em conexão com as grandes mudanças que a Europa sofreu no século XVIII do que como a única influência de uma atitude filosófica (MARQUES, 2012: 374).

Em 1720, D. João V fundou a Academia Real de História Portuguesa. As

circunstâncias geopolíticas estimularam a formação de um discurso em defesa da

nacionalidade com bases historiográficas. “Neste sentido, a Academia Real não se limitava

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apenas à exaltação da Monarquia, mas deveria emular a elaboração de um discurso de

glorificação do espaço imperial” (KANTOR, 2005: 259). Cronistas régios faziam uma

releitura das crônicas quinhentistas e seiscentistas no intuito de reforçar os fundamentos

teológico-políticos que garantissem os direitos históricos portugueses. A Academia inaugurou

os estudos sobre História ultramarina.

Os espaços mais importantes para a discussão das novas ideias iluministas eram as

academias. Politicamente, iniciou-se em Portugal o “Despotismo Esclarecido” a partir de

1750, com o reinado de D. José I. O seu idealizador, o Marquês de Pombal, exerceu o cargo

de ministro soberano durante todo o reinado de Dom José I entre 1750 e 1777. Segundo

Nogueira Pinto, Pombal assume o poder em meio a uma crise grave do Estado português no

final do reinado de Dom João V. O Marquês de Pombal se aproveita desta fragilidade política

para de instalar o Estado absolutista em Portugal.

Em 1755, um terremoto devastou metade de Lisboa e boa parte do sul de Portugal. O

maremoto que se seguiu, destruiu o Arsenal de Marinha da Ribeira das Naus, responsável por

construir e restaurar os navios. Reconstituído a partir de 1759, com novas tecnologias, o

estaleiro voltou a funcionar mais modernizado. Entre os séculos XVI e XVII, houve um

grande desenvolvimento da engenharia náutica, com maior relevância para os navios de

guerra.

O terremoto de 1755 e o atentado de 1758 contra o rei D. José I fortalecem a política

pombalina. A aristocracia, insatisfeita com a sua sucessiva debilitação e marginalização desde

1750, tramou contra a vida do Monarca que concedeu plenos poderes a Pombal. O ministro

ganhou prestígio pelas rápidas medidas que tomou para controlar a situação e iniciar a

reconstrução de Lisboa. O estado de necessidade, causado pela catástrofe e pela revolta da

aristocracia em 1758, tornou Pombal um homem cada vez mais poderoso, providencial, capaz

de se desfazer dos seus mais importantes inimigos: a aristocracia e a Companhia de Jesus.

Pombal usou o suposto envolvimento dos Jesuítas no atentado contra o rei para expulsar a

Companhia de Jesus de Portugal em 1759 (do Brasil já tinha sido expulsa em 1754).

Mesmo involuntariamente, o regime de Pombal preparou o terreno para a revolução

liberal no século XIX. Pombal acabou com os privilégios tanto da Igreja como da nobreza

feudal. Deu à burguesia, aos homens de negócio e aos membros da burocracia o poder para

tomar conta da administração e das rédeas econômicas do país. Para alcançar os seus

objetivos, Pombal fortaleceu o poder coercitivo do Estado, levando no futuro a propagação

dos ideais de liberdade: “ reforçando a máquina repressiva estatal e rejeitando toda e qualquer

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interferência da Igreja, estimulou a rebelião contra a opressão laica e, portanto, a revolução da

liberdade” (MARQUES, 2012: 391). Nogueira Pinto defende que,

impondo uma governação baseada no imperativo da salvação pública, Pombal encarnava no seu tempo e a seu modo a figura do homem forte e providencial. Estas figuras surgem sempre das grandes crises, alterando as regras do poder estabelecido e actuando com uma urgência de ditadura comissarial (PINTO, 2013: 121).

Nogueira Pinto compara Pombal em sua característica de homem salvador e

providencial, a D. João I, Mestre de Avis, a D. João IV, o Restaurador e a Sidónio Pais e

Oliveira Salazar no século XX, além do eterno D. Sebastião, como mito de salvador desejado

pelo povo português.

Após a morte de D. José I, sobe ao trono sua filha Dona Maria I em 1777, católica

devota e temerosa com as perseguições do governo de seu pai à Igreja. A rainha baniu o

Marquês de Pombal (um decreto proibiu Pombal em 1781 de se aproximar da Corte) e afastou

muitos dos seus partidários do poder. De acordo com Oliveira Marques, os grandes avanços

da política pombalina vieram para ficar:

O despotismo era um facto, a burguesia, aliada à nova aristocracia, governava o País, os Jesuítas estavam extintos e a Inquisição amordaçada. Assim, os governos de D. Maria I e de D. João limitaram-se a continuar a nova ordem e, em certos aspectos, ajudaram até a fortalecê-la (MARQUES, 2012: 395).

No final de 1791, Dona Maria I enlouqueceu e, incapaz de governar, passou a

regência para o seu filho, o príncipe D. João, uma vez que o seu irmão mais velho, D. José,

havia morrido em 1788.

“De finais do século XVII a 1822, o Brasil constituiu a essência do Império

Português” (MARQUES, 2012: 402). Com a concentração no desenvolvimento da colônia no

Brasil e o auge do mais importante comércio, o tráfico de escravos, principalmente na costa

ocidental africana, não surpreende o fato, de que a História do império africano e asiático

tenha sido, com exceção de curtos períodos, uma história de estagnação e declínio entre o

final do século XVII e o século XIX – embora a coroa tentasse reverter este quadro com

reformas econômicas, políticas e administrativas.

A principal tentativa de reformas ocorreu durante o governo do Marquês de Pombal.

Moçambique foi desmembrado do Estado da Índia e passou a constituir uma capitania

separada sob o nome oficial de “Governo e Capitania Geral de Moçambique, Sofala e Rios de

Sena” em 1752. O comércio foi liberado para qualquer cidadão português. Lourenço Marques

foi reconquistada e Tete e Inhambane e Mossuril fortificadas.

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Eduardo Lourenço defende a ideia de que na História portuguesa “cada período de

forçado dinamismo tem sido seguido sempre do que, em linguagem freudiana, se chamaria o

regresso do recalcado” (2013: 29). O exemplo maior dessa verdade psicanalítica é para

Lourenço o século XIX, primeiro com a fuga da Corte para o Brasil, acontecimento que

transformou o movimento escapismo/regresso do recalcado em estrutura que se repete desde

então e até os tempos da redação dos ensaios no Labirinto da Saudade, quatro anos depois da

Revolução dos Cravos.

Em 1789 começou a Revolução Francesa, atravessando até 1792 uma fase de

sucessiva radicalização que terminou no ataque às Tulherias, na prisão da Família Real e na

execução na guilhotina do rei Luís XVI e da rainha Maria Antonieta em janeiro de 1793.

Em 1806, Napoleão Bonaparte, que tinha chegado ao poder na França como cônsul

em 1799 e se proclamado imperador em 1804, decretou o Bloqueio Continental (fechamento

dos portos para os navios britânicos), para impedir todas as relações comerciais dos estados

europeus com a Inglaterra. Napoleão enviou uma nota diplomática a Portugal com as

seguintes exigências: aderir ao Bloqueio Continental retirar o Embaixador de Londres e

expulsar o Embaixador inglês de Lisboa, além de prender todos os ingleses em Portugal e

confiscar seus bens. Portugal aceitou as exigências com exceção das duas últimas.

Diogo Inácio de Pina Manique, intendente geral da polícia, combatia os efeitos da

Revolução Francesa em Portugal. Além de perseguir a Maçonaria, acusada de promover

ideias revolucionárias, Manique censurava livros, prendia e deportava escritores e intelectuais

simpatizantes dos ideais franceses, como no caso do poeta Bocage. A perseguição de

Manique aos “iluminados” ou aos maçons (pedreiros livres) foi “tão implacável que, por

pressão de Napoleão Bonaparte, acabou demitido pelo príncipe regente D. João” (GOMES,

2007: 77).

Em agosto de 1807, Napoleão apresentou a Portugal um Ultimatum para declarar

guerra à Inglaterra. Antes de poder cumprir ou rejeitar a determinação francesa, os ingleses

também apresentaram um Ultimatum à Regência de D. João, exigindo que Portugal ou

renovasse as suas obrigações contratuais perante a Inglaterra, deixando Lisboa rumo ao Rio

de Janeiro, ou ficasse abandonado, tendo a sua marinha queimada para evitar o confisco por

parte de Napoleão. D. João não tinha muita escolha: se firmasse o acordo com Napoleão,

corria o risco de ser bombardeado pelos ingleses, além de perder a frota e as colônias

ultramarinas. O Monarca aceitou a oferta inglesa de ser escoltado até o Brasil.

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A ideia de mudança para o Brasil não era novidade para a Corte Portuguesa, desde a

Dinastia dos Felipes em 1580, a transferência da Família Real para o Brasil fazia parte dos

planos da Monarquia portuguesa, quando surgia uma ameaça geopolítica. Em 29 de novembro

de 1807 parte a Família Real portuguesa para o Brasil. Dois dias depois, chegou a Lisboa o

exército invasor francês liderado pelo general Junot. Vigorava ainda em Portugal o regime da

Monarquia absoluta. O rei tinha o poder supremo e a sensação de abandono aumentou em

Portugal onde o povo se sentia desamparado.

Três séculos depois de ter inaugurado a era das grandes navegações e descobertas, Portugal nem de longe lembrava a metrópole vibrante dos tempos de Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral. Os sinais de decadência estavam por todo lado. Lisboa, a capital do Império, havia muito tinha sido ultrapassada por suas vizinhas europeias como centro irradiador de ideias e inovações. A chama do empreendimento, da curiosidade e da busca pelo desconhecido havia-se apagado no espírito português (GOMES, 2007: 51).

A marinha de guerra portuguesa estava reduzida a trinta navios, com a maioria sem

condições de navegar, enquanto nesta época, a marinha britânica dominava os mares com

cerca de 880 navios de combate. Para piorar este quadro, os franceses capturaram mais de 200

navios mercantes portugueses entre os anos de 1793 e 1796. Além disso, Portugal enfrentava

problemas demográficos “com uma população relativamente pequena, de 3 milhões de

habitantes, Portugal não tinha gente nem recursos para proteger, manter e desenvolver seu

imenso Império colonial” (GOMES, 2007: 51).

A regência instalada por D. João antes da sua partida para o Rio de Janeiro foi

dissolvida por Junot e o país sofreu uma ocupação militar, como uma terra violada,

conquistada à força. Tropas francesas e espanholas cometeram vários tipos de arbitrariedade

em território português. Sob o comando do general inglês Beresford, que praticamente

governaria Portugal até 1820, organizou-se a defesa contra a segunda invasão francesa a

Portugal, ocorrida em 1809. Na terceira tentativa de dominar Portugal, finalmente as tropas

francesas foram derrotadas em março de 1811 quando, desmoralizadas, se retiraram até a

fronteira espanhola. O exército inglês, com a ajuda de contingentes portugueses e espanhóis,

perseguiu o exército invasor até Toulouse, na primavera de 1814.

Com os portos bloqueados, o desemprego e a fome cresciam gradativamente em

Portugal. No acordo entre França e Inglaterra, conhecido como Convenção de Cintra,

Portugal foi simplesmente negligenciado, o que causou uma grande revolta popular. Mais

tarde, foi parcialmente revogado pelo parlamento britânico que julgou o acordo injusto para

Portugal. “Entre 1807 e 1814, Portugal perdeu meio milhão de habitantes. Um sexto da

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população padeceu de fome ou nos campos de batalha ou simplesmente fugiu do país”

(GOMES, 2007: 269).

Após a queda de Napoleão em 1814, o Congresso de Viena (1814-15) restaurou

plenamente a independência de Portugal além de restituir aos portugueses a cidade de

Olivença, concedida à Espanha por ocasião da Guerra das Laranjas em 1801. O preço da

vitória, no entanto, foi bastante alto. Quatro anos de guerras devastaram a economia

portuguesa. As exportações portuguesas para o Brasil caíram a um quarto do volume antes da

guerra. Portugal também tinha sofrido materialmente com as ocupações tanto dos franceses

como dos ingleses, visto que as tropas das duas potências saqueavam “bom número de

mosteiros, igrejas, palácios e casas humildes, levando consigo toda a casta de objectos

preciosos, incluindo quadros, esculturas, móveis, jóias, livros e manuscritos” (MARQUES,

2012: 400). A fragilização econômica deixou Portugal à mercê da ajuda financeira britânica,

que chegou a quase quatro milhões de libras em 1813-14.

No plano político-filosófico, apesar da derrota militar, os franceses espalharam em

toda a Europa, inclusive em Portugal, as novas ideias constitucionais e liberais sobre o poder.

Também os ingleses propagaram estes princípios, principalmente através das Lojas

Maçônicas. D. João VI mostrou pouca vontade de voltar a Portugal e a regência em Portugal

se manteve intransigente às novas ideias políticas, mantendo os antigos métodos de governar

e perseguindo ferozmente todos que defendiam as novas ideias liberais.

A revolta liberal e a guerra civil

Em 1807, Portugal e Inglaterra assinaram um convênio no qual esta garantiu que não

reconheceria nenhum príncipe que não fosse da Dinastia de Bragança no trono português.

Portugal tinha que conceder contrapartidas pesadas: abriria os portos brasileiros aos navios

ingleses, perdendo assim o monopólio colonial e aceitaria a ocupação inglesa de Madeira e

Goa. As Cortes exigiram a volta de D. João VI a Portugal, o que só ocorreu em julho de

1821.

O conflito ideológico desta época teve as suas figuras emblemáticas dentro da

própria Família Real, personificadas pelos dois filhos de D. João VI e de D. Carlota Joaquina

– D. Pedro e D. Miguel de Bragança. Nestas facções, representantes das contradições da

Europa pós-napoleónica, “opõem-se uma coligação de forças liberais e progressistas e outra

de forças contrarrevolucionárias, animada por uma ideologia aparentemente anti-ideológica”

(PINTO, 2013: 129).

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Com a morte de D. João VI em março de 1826, apresentou-se uma situação política

bem complicada para o processo de sucessão. D. Pedro, filho primogênito, era Imperador do

Brasil. Visto a recente independência da ex-colônia, a unificação das duas coroas não era uma

opção viável. D. Pedro I do Brasil, que foi aclamado D. Pedro IV em Portugal, abdicou do

trono de Portugal em seguida a favor da sua filha Maria da Glória, sob a condição de que esta

se casasse com o seu tio D. Miguel, exilado em Viena, o qual foi nomeado regente do Reino

de Portugal.

D. Maria da Glória foi aclamada rainha D. Maria II. D. Miguel voltou a Portugal em

1828, jurando fidelidade a D. Pedro e à rainha D. Maria II como também à Carta

Constitucional. Contudo, os absolutistas derrotados pressionaram D. Miguel a quebrar os

juramentos de fidelidade e se autoproclamar rei absoluto. D. Miguel dissolveu as Cortes e as

reconvocou à maneira antiga segundo as três ordens, clero, nobreza e povo. Em julho de

1828, D. Miguel foi proclamado rei pelas novas Cortes. A oposição liberal reagiu com uma

rebelião militar no Porto e outros levantamentos, todos fracassados. Instaurou-se nos

próximos seis anos um regime de repressão violenta com as perseguições atingindo todos os

aspectos da vida nacional e ultrapassando deste jeito o despotismo do Marquês de Pombal.

D. Miguel arruinou Portugal ainda mais com o seu governo absolutista, tornando a

situação financeira e econômica do Reino cada vez mais precária. Em 1831, D. Pedro abdicou

da coroa de Imperador do Brasil a favor do seu filho D. Pedro II e voltou à Europa com a sua

família, a fim de recuperar a coroa de Portugal. D. Pedro assumiu a liderança das forças

liberais com o apoio da França e da Inglaterra e organizou uma expedição para reconquistar

Portugal, onde desembarcou com as suas tropas, em julho de 1832. Seguiram-se dois anos de

guerra civil, cuja virada decisiva foi a destruição da frota absolutista miguelista pela esquadra

liberal. Com a concessão de Évora-Monte em 26 de maio de 1834, os absolutistas depuseram

as armas e D. Miguel deixou Portugal para sempre.

O período liberal de 1834 a 1851 foi marcado por uma grande instabilidade política e

um endividamento público cada vez mais crescente, o que intensificou a dependência

portuguesa de credores externos e limitou a soberania da política portuguesa. Em 1834

morreu o regente D. Pedro e a rainha D. Maria II foi decretada pelas Cortes e pelo governo

maior de idade aos 15 anos. Entre 1846 e 1847 aconteceu o que pode ser chamado de guerras

civis dentro das próprias forças liberais. A chamada Revolução Maria da Fonte se sublevou

contra o governo repressivo de Costa Cabral e, pouco depois, aconteceu a chamada Patuleia

contra o governo do duque de Saldanha.

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As ideologias radicais e concorrentes da época da guerra civil foram deixadas de

lado em prol de um constitucionalismo estável que possibilitou o desenvolvimento do

capitalismo. A razão econômica começava a ganhar a primazia sobre a razão política. A

racionalização da economia e da política possibilitou a Portugal a retomada da perspectiva

nacional e do projeto imperial:

Estando o papel dos interesses nacionais ou das ideologias exclusivas reduzido pelo constitucionalismo liberal e pelo consequente Estado de Direito, era na defesa e consolidação do império ultramarino, sobretudo nas suas áreas africanas, que iriam afirmar-se as ideias e as estratégias nacionais (PINTO, 2013: 134).

Durante o século XIX, Portugal se religava à Europa por força, inclusive militar, mas

também pela difusão das novas ideias e conceitos de uma Europa dinamizada pelas

revoluções industrial e cultural. Nesta época, os intelectuais e literatos portugueses “puseram

em causa, sob todos os planos, a sua imagem de povo com vocação autónoma, tanto no ponto

de vista político como cultural” (LOURENÇO, 2013: 30). Comparavam-se às nações

europeias, perguntando-se diante da sentida decadência, se Portugal ainda era viável. Essa

comparação era desvantajosa para Portugal, o que causou desconforto com a real existência

portuguesa, percebida como atrasada e diminuída frente às nações europeias.

Regeneração

O período entre 1851 e 1890 caracterizou-se pelo desenvolvimento e modernização

política e pela construção de uma nova base econômica de Portugal, necessária após a

abertura dos portos brasileiros a todas as nações, a perda do monopólio colonial e a

independência do Brasil em 1822. Portugal vivenciou uma época de políticas de obras

públicas, conhecida por Fontismo que se esforçou “por conceder a Portugal um lugar

aceitável dentro do mundo civilizado, por europeizar o País arrancá-lo da condição da atraso

em que vivia” (MARQUES, 2012: 490).

Neste contexto, a questão colonial desempenhou um papel importante. As três

décadas entre a perda do Brasil e a Regeneração são tidas como um “hiato imperial”

(PAQUETTE, 2013: 334), devido principalmente às convulsões políticas dos conflitos entre

absolutistas e liberais neste período. Isto, porém, não significa que não se tenha pensado a

questão colonial, já que muitos políticos eram da opinião que a única chance de Portugal sair

da depressão econômica pós-perda do Brasil, era através de novos esforços coloniais, para

substituir as receitas do Brasil e levantar o capital necessário para o desenvolvimento de

Portugal.

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A partir do século XIX, as potências europeias ocuparam toda a África do Norte,

árabe e berbere, e o interesse começou a se voltar para a África subsaariana. Os motivos eram

curiosidade científica, a procura crescente de produtos tropicais, a necessidade de matérias-

primas e o interesse de criar novos mercados para os produtos das crescentes indústrias

europeias. Além disso, o progresso tecnológico passou a possibilitar a exploração em grande

escala. A descoberta do quinino para combater a malária,

a máquina a vapor (para proporcionar a navegação de jusante para montante dos seus grandes a caudalosos rios) e as armas de repetição, sobretudo a metralhadora, que iriam permitir um equilíbrio táctico viável entre as pequenas forças expedicionárias e as massas de guerreiros locais (PINTO, 2013: 137).

Aos portugueses coube um papel pioneiro na exploração do interior da África,

ficando, por exemplo, entre os primeiros a atravessarem o continente africano de costa a

costa. Um dos resultados das expedições, cujos motivos principais eram a afirmação da

soberania lusitana sobre territórios considerados portugueses por direitos históricos (quinas),

era uma vasta produção cartográfica, necessária para resolver disputas territoriais travadas

com potências europeias que invadiam os territórios sob tradicional influência portuguesa a

partir do início do século XIX.

O questionamento da escravidão desenvolveu um papel importante nas ameaças ao

Império Português. Desde que a Revolução Francesa tinha declarado a igualdade e liberdade

universais, crescia em parte da opinião pública a rejeição à escravidão e ao tráfico de

escravos. Rejeição esta fomentada, sobretudo, pela Maçonaria. A Inglaterra, mais avançada

no processo da revolução industrial e, portanto, menos dependente da mão-de-obra

escravagista, liderou este movimento internacionalmente. No século XIX, os ingleses

tentavam ativamente pôr fim ao tráfico de escravos, patrulhando com os seus navios nos

mares da África, da América e da Ásia. Muitas vezes, este patrulhamento era usado de

pretexto para políticas imperialistas, fixando protetorados sobre territórios alheios

reivindicados pelos ingleses. Esta prática foi usada nomeadamente ao norte da costa angolana.

Após o tratado de Viena de 1815, no qual a Inglaterra impôs a proibição do tráfico de

escravos, Portugal assinou um acordo com a Inglaterra, no qual se comprometia a acabar com

o tráfico de escravos ao norte do Equador. Na sequência cresceu a pressão de parte da opinião

pública para dar os passos seguintes e libertar todos os escravos. Ou seja, eliminar

completamente a escravidão. Este passo foi concretizado com a lei de 1869 que aboliu o

trabalho escravo em todo o Império Português.

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Porém, ainda que teoricamente tivesse terminado o regime da escravidão, na prática,

a demanda pela mão-de-obra continuava. A lei de 1869 obrigava os ex-escravos a

continuarem prestando serviços aos seus ex-senhores na condição de “libertos” por

determinado tempo após a libertação. Depois de extinto o estatuto de “liberto”, introduziu-se

o estatuto de “serviçal”. Na prática, mantinha-se o trabalho forçado ou formas disfarçadas de

escravização dos povos africanos. Retomando o conceito europeu, considerando os africanos

como sendo preguiçosos, acreditava-se que para tornar os africanos civilizados e cidadãos

europeus, tinha que acostumá-los primeiro a trabalhar. Prosseguiu, desta forma, o trabalho

forçado nas colônias portuguesas.

Em 1899 foi criado o Código de Trabalho Indígena, que fundamentou o

Regulamento do Trabalho Indígena, criado em 1911 pelos republicanos e revogado em 1914,

quando passou a vigorar o Regulamento Geral do Trabalho dos Indígenas das Colônias

Portuguesas. Em 1928, o código aboliu o trabalho forçado. Foi acrescentado, porém, um

decreto determinando que a partir de 1930, os “indígenas” seriam governados por um estatuto

especial: O Estatuto do Indígena, abolido em 1961. Os baixos salários dos africanos

contratados e as péssimas condições de trabalho elevaram os índices de mortalidade e de

migração para outros países da África.

2.1.3 Do terceiro ao possível quarto traumatismo

A condição deplorável dos trabalhadores africanos ficou notória internacionalmente

quando chamados “serviçais” angolanos – que, entre 1885 e 1903, iam a São Tomé e Príncipe

trabalhar com contratos de trabalho que lhes garantiram a volta à sua terra depois de alguns

anos – foram crescentemente aprisionados nas roças de São Tomé e Príncipe. O caso desses

angolanos em regime de trabalho forçado foi denunciado e deu origem a campanhas

internacionais contra Portugal até o século XX. Outras potências coloniais, que também

cobiçavam os território lusitanos, reforçaram os ataques ao colonialismo português.

Para resolver este problema, dentre outros, o Chanceler alemão Bismarck convocou

uma conferência internacional em Berlim (1884-85) para definir as fronteiras e áreas de

influência na África Central, cujo resultado principal era o princípio de que a ocupação

efetiva dos territórios substituiria os direitos históricos. Este novo conceito ameaçou os

interesses de Portugal, já que “se viu compelido a definir as fronteiras dos seus territórios com

os das novas potências e a impor o seu domínio nas regiões que reclamava por direito

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histórico” (SILVA, 1998: 212). A partir deste momento, o governo português, diante dos

riscos e das ameaças às suas pretensões coloniais, se viu forçado a desenvolver uma “razão de

Estado ultramarina” (PINTO, 2013: 140), visando a conservação e a colonização efetiva dos

territórios africanos, que até então haviam sido largamente negligenciados e se encontravam

em estado deplorável.

Com o intuito de fugir da sua imagem negativa diante das nações europeias, Portugal

voltou-se à África, com o propósito de ali recriar uma imagem análoga às glórias de século

XVI, elaborando o Mapa Cor-de-Rosa que delineava os domínios entre o litoral angolano e o

moçambicano. Não chegou longe, a tentativa foi brutalmente abortada pelo Ultimatum inglês,

gerando um incômodo diplomático. Temendo uma represália militar inglesa, a frágil e

decadente Monarquia lusa cedeu, sem maior resistência, o que deixou aos olhos do mundo

inteiro e principalmente dos portugueses “a prova absoluta da nossa absoluta subalternidade”

(LOURENÇO, 2013: 30).

O Ultimatum causou o terceiro traumatismo, nas palavras de Eduardo Lourenço, “o

traumatismo-resumo de um século de existência nacional traumatizada” (2013: 30). O

traumatismo causado pelo Ultimatum inglês em 1890 abalou bastante o brio da nação lusitana

acostumada às conquistas. Portugal sentia-se humilhado e o povo chorava nas ruas, observa

Eduardo Lourenço em sua Psicanálise Mítica do Destino Português (LOURENÇO, 1985:

20). Afirma o ensaísta que o golpe sofrido com a perda de colônias em África abalou

profundamente as estruturas da casa portuguesa com todas as suas janelas ficcionalmente

voltadas para o mar, para além-mar.

As expedições e as forças militares portuguesas que se encontravam no território de

conflito foram retiradas, revelando a absoluta subalternidade portuguesa à Inglaterra. Portugal

conservou ainda Angola, Moçambique, o Arquipélago de Cabo Verde e a Guiné. Longe de

reconsiderar a atitude de abatimento e fuga evidenciada e tornada em absurdo pela dura lição

do Ultimatum, Portugal continua vendo-se como uma “nação idílica sem igual”. Como reação

à humilhação do Ultimatum, nasceu

a mais nefasta flor do amor pátrio, a do misticismo nacionalista, fuga estelar a um encontro com a nossa autêntica realidade, mas, ao mesmo tempo expressão profunda sob a sua forma invertida de uma carência absoluta que é necessário compensar desse modo (LOURENÇO, 2013: 31).

O famigerado “ultranacionalismo da impotência” é cuidadosamente nutrido pela

ideologia republicana, que traz de volta o espectro do heroísmo pátrio e seu preço: uma outra

máscara colada à cara por Salazar. A ideologia republicana se nutria do ultranacionalismo

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impotente gerado pelo Ultimatum. O patriotismo foi o melhor argumento dos republicanos

entre 1890 e 1910 e depois de assumido o poder, servia para justificar a sua permanência, no

sentido da “exaltação da entidade nacional regenerada pela supressão dos seus maus pastores

e restituída ao «povo»” (LOURENÇO, 2013: 31). O patriotismo também encobria a

consciência de um país atrasado, inferior perante a Europa, construindo mais uma vez uma

imagem fantasiosa de si mesmo. “A cobertura ideológica de «vanguarda» escondia mal o

mesmo país «cauda da Europa»” (LOURENÇO, 2013: 32).

A grande lição do Ultimatum era a urgência da ocupação efetiva dos territórios

ultramarinos,

a fim de os conservar, isto é, de, além de os defender juridicamente, fazê-lo também militarmente e por antecipação. Para isso, havia que impor a lei e a ordem e dissuadir a cobiça das outras potências através da quadrícula administrativa e da pacificação político-militar dos territórios das populações (PINTO, 2013: 142).

A época entre o Ultimatum e a queda da Monarquia foi caracterizada por uma

política de ocupação efetiva nos territórios ultramarinos, marcada por expedições militares, o

controle administrativo e o incentivo as missões de exploração civil e comercial. Esta política

era mais do que necessária, tendo em vista o interesse comercial das grandes potências. Em

1898, Inglaterra e Alemanha firmaram um tratado secreto para dividir as colônias portuguesas

na África entre os dois credores, caso Portugal tivesse que requisitar novos empréstimos

externos.

O Ultimatum inglês viria a contribuir para a queda da Monarquia, uma vez que a

opinião pública atribuía a responsabilidade por esta humilhação nacional ao governo e ao

próprio rei (PINTO, 2013: 141) e culpava-os pela falta de atenção dada aos territórios

ultramarinos, prejudicando desta forma os interesses nacionais. Neste clima de revolta contra

a Monarquia, a propaganda republicana caiu em solo fértil (sobretudo entre a nova “classe

média de pequenos e médios burgueses” desenvolvida ao longo dos últimos quarenta anos e

que se sentia oprimida pela grande burguesia dominante) e começou a ganhar apoio entre a

classe média e os militares. A primeira revolta armada republicana, eclodida em janeiro de

1891 no Porto, foi sufocada e a Monarquia conseguiu vencer a crise por um tempo e continuar

com o sistema político de alternância partidária no poder.

Em 1906, o sistema partidário da Monarquia constitucional tinha chegado perto do

colapso. Em 1907, o rei dissolveu as Cortes, sem marcar uma data para novas eleições. Surgiu

a “questão dos adiantamentos”, descobrindo-se que a Família Real tinha grandes dívidas com

o Estado. Tudo isso levou a campanhas cada vez mais violentas contra a Monarquia e a

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greves e tentativas de revoluções. Em 1908, o rei D. Carlos e o príncipe herdeiro D. Luís

Filipe foram assassinados. No mesmo ano, os republicanos triunfaram nas eleições em

Lisboa, elegendo uma Câmara Municipal 100% republicana. O período de 1908 a 1910 foi

marcado por seis governos diferentes. Nas eleições para as Cortes de 1910, os republicanos

ganharam em Lisboa e em outras cidades e em 4 de outubro uma revolução militar e civil,

apoiados pelas massas populares, triunfou e proclamou, em 5 de outubro, a República em

Portugal.

A Primeira República

Na opinião de Nogueira Pinto, não houve uma mudança politicamente significativa

na transição da Monarquia para a República. Diferenciado pelo cunho antirreligioso, o novo

regime não alterou o aspecto constitucional partidário e liberal do governo. “E se houve área

em que o regime republicano, proclamado em 1910, foi marcado pela continuidade, foi na

política ultramarina ou colonial” (PINTO, 2013: 145).

A continuidade na concepção ultramarina expressava-se principalmente na política

de ocupação, desenvolvimento e povoamento dos territórios africanos. Com a nova

Constituição de 1911, o governo republicano criou o Ministério das Colónias. Também, a

República fez mudanças essenciais na administração dos territórios do Ultramar, visando

tornar a África portuguesa mais progressiva e desenvolvida. Em 1914, o Congresso aprovou

as Leis Orgânicas, uma espécie de constituição para as colônias, que estabeleciam as novas

regras básicas para a administração dos territórios ultramarinos.

Em 1912, a Inglaterra e a Alemanha novamente conspiravam para dividir as colônias

portuguesas entre si. Desta vez foi a Primeira Guerra Mundial que salvou os interesses

coloniais portugueses. Portugal ficava longe dos cenários da guerra na Europa, porém, na

África, tinha fronteiras comuns tanto com a Inglaterra, como com a Alemanha. Declarando-se

neutro inicialmente, Portugal entra na guerra em 1916, após o pedido de confiscação dos

navios alemães e austríacos e a subsequente declaração de guerra por parte da Alemanha.

Portugal participou da guerra tanto na África, como nas Batalhas em Flandres com o Corpo

Expedicionário Português (CEP). Ficando do lado dos vencedores, Portugal lucrou com o

reconhecimento internacional da República e com a garantia das colônias ultramarinas.

Os esforços bélicos na Europa e na África levaram a uma situação de necessidade

generalizada entre a população portuguesa. Em 1917, a vitória dos Aliados, motivo pelo qual

se tinha entrado na guerra, não parecia tão clara. A impopularidade crescia, porém o governo,

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mais preocupado com a posição de Portugal e o seu Império no concerto das nações do que

com a situação interna, não dava atenção suficiente às agitações sociais. Em dezembro de

1917, unidades militares sob o comando do major Sidónio Pais se revoltaram em Lisboa.

Sidónio Pais instalou uma ditadura militar, dissolvendo o Congresso, destituindo o Presidente,

alterando a Constituição e elegendo-se assim Presidente da República por eleições diretas em

1918.

O regime, chamado de “República Nova” centrava-se na figura de Sidónio Pais que,

muito popular, incorporou o mito d’O Desejado numa época de revitalização do

Sebastianismo desde a humilhação do Ultimatum inglês. Em 1918, ocorre o assassinato de

Sidónio Pais. Em janeiro do ano seguinte, as Juntas Militares proclamaram a Monarquia no

Porto e em Lisboa. Com a maioria das guarnições da capital fiel à República, os republicanos

venceram a rebelião no Sul do país. No norte, no entanto, somente no mês de fevereiro de

1919 a ordem constitucional e a “República Velha” foram restituídas.

Durante a ditadura de Sidónio Pais, as Cartas Orgânicas das colônias não chegavam a

ser executadas, sendo ao contrário revogadas em 1918. Com a restituição da “República

Velha”, também as Cartas Orgânicas voltaram a vigorar e a política ultramarina continuou na

mesma linha de 1914 a 1917. Fiscalizadas pela Metrópole, as colônias teriam autonomia

financeira e descentralização “compatíveis com o desenvolvimento de cada uma”

(MARQUES, 2001: 23). Introduzia-se como elemento novo na legislação de 1920 o fato de o

poder central nomear altos-comissários para as colônias, aos quais foram delegados os

poderes da Metrópole, regime que duraria até 1930.

Se os anos de 1919 a 1923 foram marcados em toda a Europa por “anarquia,

instabilidade de conturbações generalizadas” (MARQUES, 2012: 573), em Portugal não foi

diferente. Surgiram movimentos comunistas e fascistas, ameaçando a ordem pública com

terrorismo. Nesta situação de crise, muitos oficiais de alta patente sentiam-se capazes e

obrigados a intervir na política para salvar o futuro de Portugal. Encontraram apoio crescente

desta ideia no povo.

A queda do governo de Álvaro de Castro, em junho de 1924, iniciou uma séria crise

política que se arrastaria até o fim da Primeira República. Em 28 de maio de 1926 revoltou-se

em Braga o general Gomes da Costa, herói da Primeira Guerra Mundial, começando uma

marcha sobre Lisboa. Dentro de pouco tempo, a maioria do exército aderiu à revolta ou pelo

menos se manteve neutra, o que pôs fim à Primeira República. O Presidente da República

renunciou e o Parlamento foi dissolvido.

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Instalação do Estado Novo

Seguindo o 28 de maio de 1926, o poder ficou com os militares, consolidado por

vários golpes de estado. Instalou-se um ditadura militar, cujos ministérios, em vez de

melhorarem a administração, como era o objetivo inicial da revolução, mostraram uma

incompetência administrativa ainda maior do que os ministérios anteriores. Entre 1926 e

1931, os presos políticos dentro do governo moveram-se cada vez mais em direção à direita.

Todas as tentativas de revoluções e golpes em 1927, 1928 e 1931 foram combatidas pela

ditadura militar, que neste período aperfeiçoou o seu aparato de repressão.

Em abril de 1928, o general Carmona foi eleito Presidente da República e António de

Oliveira Salazar foi chamado para formar parte do governo português, assumindo a pasta das

Finanças sob a condição de que teria o direito de veto na supervisão dos orçamentos de todos

os ministérios do governo. Salazar conseguiu estabilizar as finanças e apresentar orçamentos

equilibrados, a partir do primeiro ano de sua atuação, o que lhe concedeu grande prestígio e

um status de “salvador da Nação” (MARQUES, 2012: 626).

Em 1930 e 1931 definiram-se o chamado Estado Novo e a União Nacional, única

força política relevante no regime do Estado Novo. Os outros partidos, junto com sociedades

secretas e sindicatos, ou se dissolveram ou foram proibidos pela repressão cada vez mais

intensificada. Em julho de 1932, Salazar assumiu o posto de chefe de governo e até 1933

foram concretizados os últimos passos na construção do estado autoritário e corporativo,

resumidos na nova Constituição de 1933. Em 1934, as primeiras eleições legislativas do

Estado Novo trouxeram à Assembleia Nacional 90 deputados, todos pertencentes à União

Nacional. Em 1935, Carmona foi reeleito Presidente da República e em 1936 surgiram duas

organizações de cunho fascista, a Legião Portuguesa, organização de voluntários em defesa da

Pátria, e a Mocidade Portuguesa, organização paramilitar obrigatória para a juventude. A

partir deste momento, o Estado Novo estava instalado e Salazar tinha as rédeas do poder

firmemente em suas mãos.

No início, o novo regime ainda fez uma tentativa de adaptar a imagem de Portugal à

sua real e modesta realidade, mas depois de pouco tempo, o regime salazarista implantou uma

imagem de “uma lusitanidade exemplar, uma ficção ideológica, sociológica e cultural mais

irrealista ainda do que a proposta pela ideologia republicana” (LOURENÇO, 2013: 33).

Segundo esta imagem, Portugal era um país que acionava o seu desenvolvimento em

harmonia entre o capital e o trabalho, a sociedade e as autoridades. Afirma Eduardo

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Lourenço: “Não vivíamos num país real, mas numa «Disneylandia» qualquer, sem

escândalos, nem suicídios, nem verdadeiros problemas” (2013: 33-4).

Bases ideológicas do Estado Novo

O Estado Novo português apoiava-se largamente no exército, na Igreja e nas forças

políticas católicas, monárquicas e republicanas conservadoras. Salazar nunca foi um pensador

original, desenvolvendo novas teorias políticas. Fazia mais bem uma leitura nacionalista do

passado de Portugal e tinha igualmente ideias nacionalistas para o seu futuro. Para tais se

baseava principalmente em doutrinas católicas e contrarrevolucionárias retiradas de encíclicas

papais e dos pensadores do movimento direitista Action Française como Gustave Le Bon,

Charles Maurras, Henri Massis ou Jacques Bainville.

Bem ao exemplo da sociedade medieval, o poder de decisão concentrava-se em

pouquíssimas mãos e contrariando a retórica de uma Revolução Nacional, na prática quase

nada foi feito para atingir tal objetivo. Todos os setores da vida nacional foram subordinados

ao entendimento que o Estado e mais precisamente uns poucos homens poderosos tinham do

que seria o bem nacional.

O corporativismo e o nacionalismo eram, na prática, meras concessões aos tempos,

uma moda – “mas o sucesso da sua implementação não era o cerne da política” (MENESES,

2011: 125). A força tinha um papel moderador e o Estado aplicava-a preventivamente. A

violência era usada em defesa do interesse nacional “definido por uma adesão a determinados

valores e conceitos e também a uma prática e pragmática histórico-social, que apurara os seus

melhores caminhos e estratégias.” (PINTO, 2013: 177)

Parte fundamental da Nação é o Império ultramarino que constitui a base “territorial,

demográfica, econômica e diplomática da sustentação nacional e do peso de Portugal na

balança mundial e peninsular” (PINTO, 2013: 173). Na política externa do governo de

Salazar coincidem quase que completamente a ideologia do Estado (caracterizada por um

nacionalismo conservador e pragmático) e a razão de Estado que origina a prática dessa

ideologia. Nas palavras de Nogueira Pinto:

Esta razão de Estado continuou a considerar como grandes objectivos nacionais a identidade e a independência na Península, e a continuidade do domínio ultramarino. Um e outro surgiam sempre a par. O conjunto metrópole-colónias ou metrópole-territórios ultramarinos era considerado indissociável, formando um todo, não só territorial e económico, mas também moral e político, condição sine qua non da existência independente de Portugal (PINTO, 2013: 180).

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Em Portugal, o Estado Novo fez do Império e do Ultramar a essência da Nação,

conceito já trabalhado na Primeira República e aceito tanto no regime como na oposição, com

exceção do Partido Comunista. Patrícia Vieira explica a ênfase do discurso imperial como

recurso para suprir uma “falta ontológica” de Portugal:

O império é o suplemento que encobre, tal qual lenço feiticeiro, o sentimento de inferioridade português, uma percepção do país com raízes profundas na psique nacional e cuja genealogia remonta, pelo menos, aos estrangeirados setecentistas, culminando no campo das ideias no opúsculo anteriano Causas da Decadência dos Povos Peninsulares e, no domínio político, no Ultimato inglês de finais dos oitocentos (2010: 131).

O Império confere a Portugal a possibilidade de competir com as grandes nações

europeias. Com as colônias, um pequeno e periférico país se transforma numa potência com

uma posição geoestratégica central, concepção expressada no lema salazarista “Portugal não é

um país pequeno”. Estes valores nacionalistas também justificam o caráter autoritário do

regime do Estado Novo, dado que a repressão das liberdades individuais só se podem

justificar em relação a uma pátria grandiosa, cujo salvador apresenta-se na figura de Salazar e

o seu regime

que desenvolve uma retórica do progresso na qual instrumentaliza as colónias como forma de suprir as deficiências do país, mascarando simultaneamente este papel do além-mar com um discurso de igualdade, de forma a ocultar a lógica do suplemento que o império patenteia (VIEIRA, 2010: 131).

Desde os anos de 1930, as ideias lusotropicalistas do sociólogo brasileiro Gilberto

Freyre tinham chamado a atenção entre setores da oposição portuguesa ao regime salazarista.

Estas ideias, entretanto, exaltavam “o mundo que o português criara” nas suas colônias, e

conciliavam o nacionalismo português conservador com ideais humanistas no sentido de que

mantinham a suposta grandeza da obra colonial de Portugal; condenavam as doutrinas

racistas, naquela época no auge, na Europa, “resolvendo” – mas, na verdade, encobrindo os

conflitos étnicos – a contradição racial no colonialismo na síntese das raças, na mestiçagem1.

O Estado Novo português

reclamava a herança cultural do cristianismo e do humanismo. Herança presente nas memórias culturais da Expansão, de Camões a Diogo do Couto. Recorria também a outros fundamentos contemporâneos, como o lusotropicalismo de Gilberto Freyre [...]. Para todos eles, a legitimidade do Império e da obra de Portugal estava na tolerância étnica, cultural e religiosa e no respeito pela dignidade das pessoas e das culturas (PINTO, 2013: 219).

1 O regime fascista no entanto, por muito tempo ignorou, até mesmo repudiou as ideias do lusotropicalismo, especialmente da miscigenação.

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Ultramar a partir de 1926

Em meados da década de 1920, deflagra-se em Portugal uma verdadeira crise em

torno da questão colonial. As razões fundamentais para tal crise encontravam-se no contexto

internacional. A Sociedade das Nações promovia a ideia da “missão civilizadora”, que

obrigava as nações colonizadoras a desenvolverem as suas colônias. Implementado com o

Tratado de Paz de Versalhes em 1919, este princípio era em primeiro lugar aplicado às ex-

colônias alemãs, territórios repartidos entre as nações vencedoras da Primeira Guerra Mundial

sob mandato. Dentro de pouco, porém, tais princípios estendiam-se a todos os territórios

colonizados, sendo vigiados de forma crescente pela Sociedade das Nações. Exemplo desta

vigilância internacional é o relatório de 1925 entregue à Comissão Temporária sobre a

Escravatura da Sociedade das Nações, no qual Portugal é acusado de práticas de trabalho

forçado, análogas à escravatura, em Angola e Moçambique.

Diante da ameaça exterior, criou-se em Portugal uma sensação de insegurança.

Reviveram-se as ameaças externas às colônias ocorridas em 1898 e 1912-13, vindas da

Alemanha e da Itália. Temeu-se o interesse sul-africano sobre Moçambique, de onde a colônia

britânica recebia a mão-de-obra para as minas. Junto com a sensação de incompetência e

desorganização do Estado português, tornando as autoridades da Primeira República

incapazes de responder decididamente às ameaças externas, a situação provocou o

ressurgimento da questão colonial nos debates públicos da metrópole. Criou-se uma

“Comissão de Defesa das Colónias” que foi apoiada por vastos segmentos da sociedade

portuguesa (ALEXANDRE, 1993: 1120).

A “vocação colonial” era um pensamento comum a quase todas as correntes políticas

da sociedade portuguesa naquela época: “[...] as perspectivas sobre o futuro do império não

eram homogéneas, sendo todos eles, à direita e à esquerda, com raras exceções, marcados por

um nacionalismo envolvente que contribuía para confundir as linhas de clivagem”

(ALEXANDRE, 1993: 1127).

Porém, houve fundamentalmente duas concepções muito diferentes do Império. A

primeira concepção, personificada principalmente por Norton de Matos, alto-comissário de

Angola, entre 1921 e 1924, caracterizava-se pela forte descentralização do Império,

defendendo a autonomia dos governos coloniais em relação ao governo da metrópole. O

segundo elemento era a prioridade do fomento da economia das colônias, em detrimento, se

fosse necessário, do equilíbrio financeiro. O fomento se concentraria principalmente na

construção da infraestrutura nas colônias e no incentivo da economia, baseada na produção

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agrícola e no setor extrativo, mas também visando a implantar a industrialização. A

metrópole seria o centro do Império Português não por imposição, mas como resultado do seu

desenvolvimento natural. A presença de Portugal na África seria assegurada por uma forte

colonização. Esta era a política da Primeira República, codificada na Lei e nas Cartas

Orgânicas de 1914/17 e na de 1920.

Após o afastamento de Norton de Matos do alto-comissariado de Angola em 1924,

como consequência da crise da colônia de Angola, ganhou força um modelo alternativo de

Império, quase que diametralmente oposto. A ideia de base nesta concepção era a necessidade

de “nacionalizar o império” (ALEXANDRE, 1993: 1127). Este conceito foi se desenvolvendo

nos anos entre 1926 e 1930, período hoje visto como transitório e indefinido até a implantação

do Estado Novo.

A concepção centralizadora ganhou contornos durante a gestão do ministro das

colônias, João Belo, entre agosto de 1926 e janeiro de 1928. A nacionalização do Império

significava para ele reforçar a unidade política do território colonial, limitando a autonomia

administrativa e financeira das colônias a favor de uma forte fiscalização por parte da

metrópole. No campo econômico, a nacionalização significava criar condições favoráveis nas

colônias para o investimento do capital português (não descartando o capital estrangeiro).

Em 1926, as novas normas foram codificadas no decreto Bases Orgânicas da

Administração Colonial. No mesmo ano publica-se o Estatuto Político Civil e Criminal dos

Indígenas de Angola e Moçambique, estendido à Guiné em 1927 e a São Tomé e Príncipe em

1946, que codificava os usos e costumes locais em cada colônia. Apesar de codificar os

costumes e hábitos próprios de cada província, mantinha o regime de trabalho forçado,

divergindo a prática do discurso.

A política de João Belo, entretanto, não representava uma ruptura completa com o

modelo de descentralização. Após a sua morte houve nos quadros da ditadura militar quem

defendesse a volta ao modo de governar republicano. A decisão pelo modelo centralizador de

Império apenas seria tomada definitivamente quando o governo de extrema-direita do general

Domingos de Oliveira assumisse o poder em 1930, com Oliveira Salazar no comando das

Finanças, assumindo simultaneamente o posto de ministro das colônias. A ocupação do

ministério das colônias se justificava pela natureza técnica de aplicação dos princípios de

equilíbrio financeiro às colônias.

A promulgação do Acto Colonial em 1930 se justificou por duas razões principais: a

defesa da nação contra as influências externas que ameaçavam a soberania colonial da

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metrópole e a política de descentralização da República. Esta última, vista como contrária aos

interesses da metrópole e responsável pela desorganização da administração pública, seria

substituída por um sistema puramente colonial: a metrópole se servia da matéria-prima das

colônias enquanto estas lhe asseguravam os mercados para os seus produtos.

No campo ideológico, a política determinada de preservação do Império servia como

fator aglutinador para o regime do Estado Novo. Resume Valentim Alexandre:

Deste modo, esta intervenção do ministro das Finanças no âmbito do império – a primeira, a nível governamental, que vai além da função meramente técnica que lhe era atribuída – revela-se um dos momentos decisivos da sua estratégia de poder (uma estratégia que alia a força das convicções nacionalistas a uma forte dose de pragmatismo no alargamento e reforço das bases pessoais de apoio) (ALEXANDRE, 1993: 1135).

Instala-se o que Cláudia Castelo chama de “mística imperial” (2011: 45). Idealizado

pelo ministro das Colônias entre 1931 e 1935, Armindo Monteiro, o Império passa a ser

concebido de uma forma mística. O Império passa a ser uma questão de identidade nacional,

uma realidade “a um tempo naturalista/organicista e ontológico” (CASTELO, 2011: 47). A

imagem do Império é exaltada e sacralizada e fundida, de forma deliberada, à identidade

nacional e ao regime salazarista.

A legislação com respeito aos povos colonizados seguia princípios tradicionais na

história da expansão colonizadora e não foi alterada significativamente. Como mostra

Oliveira Marques, a Constituição de 1822 introduziu a definição da Nação Portuguesa como

“a união de todos os portugueses de ambos os hemisférios” (art. 20.o), abrangendo Portugal

metrópole, Brasil e as possessões africanas e asiáticas, introduzindo o conceito de uma Nação

indivisível entre a metrópole e os territórios ultramarinos. Estes princípios básicos foram

mantidos em todas as legislações posteriores, notadamente na Carta Constitucional de 1826,

na Constituição de 1838 e nas Constituições republicanas de 1911 e 1933.

Para os indivíduos, isso significava que não se fazia qualquer diferença entre

portugueses nascidos na metrópole e portugueses nascidos no além-mar. As populações

africanas e timorenses, porém, precisavam “evoluir” gradativamente até alcançarem o estágio

de civilização europeia. Os “nativos” ficariam sobre tutela portuguesa o que legitimava o uso

da força, a desigualdade entre portugueses e africanos. A ideia de inferioridade dos povos

colonizados pauta-se num modelo ocidental que se julga plenamente desenvolvido, superior.

Uma das condições para os africanos serem considerados “assimilados” era abandonar seus

usos e costumes tribais e provar que assumiram os elementos próprios da cultura lusitana.

Atingido este estágio da civilização ocidental, os africanos poderiam usufruir os mesmos

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direitos civis e políticos conferidos aos cidadãos portugueses. Para tal, exigia-se a autonomia

financeira, atestado de bom comportamento, a recusa de sua cultura de origem, além de saber

ler e escrever a língua portuguesa como condições básicas. O estatuto de “indígena”, aliás,

nunca foi aplicado às colônias indianas, chinesas e a Cabo Verde.

Nas décadas de 1930 e 1940 aumentou o número de “assimilados”, apesar do claro

desrespeito ao pluralismo cultural e da discriminação sofrida pelos ex-“indígenas”. A política

colonial adotada pelo Estado Novo reativa os ideais de nação pluricontinental semeada no

antigo império. Em 1558, um mapa elaborado por Diogo Homem já retratava um Portugal

pluricontinental. O Salazarismo herdou a crença na predestinação portuguesa e elevou o

etnocentrismo lusitano. Considerava as diferenças africanas como desigualdades em

detrimento dos africanos, vistos como incapazes, indolentes ou incapacitados, atrasados em

virtude de fatores históricos, porém com capacidade de um dia se tornarem cidadãos

integrantes da Nação portuguesa.

Ao assumir interinamente a pasta das colônias em 1930, Salazar pretende aumentar o

controle sobre as finanças em além-mar. Debatia-se muito, na época, sobre os métodos para

uma colonização ideal que equilibrassem as finanças da metrópole.

Sob o verniz da ordem, que era tudo o que era dado a ver àqueles que se encontravam em Portugal, as condições nas colônias eram muito diferentes. Mas a censura sobre este assunto era total; tanto quanto os portugueses sabiam, nada de mal se passava no Ultramar (MENESES, 2011:140).

Os gastos com as Forças Armadas superam os investimentos em obras públicas tão

esperadas pela população. Em 1935, a Lei de Reconstituição Econômica enumera as

prioridades nacionais, com destaque para a infraestrutura do país. O projeto de modernização

da metrópole incluía a reforma das estradas, ferrovias e portos; a valorização do setor

agrícola, bem como a melhoria de escolas e do patrimônio público. Contudo, a Lei da

Reconstituição na prática, priorizava a defesa nacional e o compromisso com o Império. “O

governo tinha de equipar o Exército com armas mais modernas para que ele pudesse cumprir

o seu dever” (MENESES, 2011: 160).

Para combater a crescente oposição, Salazar, através de um Decreto, em 1936,

estipula a criação de uma colônia penal na Ilha de Santiago. O Tarrafal, em Cabo Verde,

tornou-se um símbolo da repressão salazarista. Doenças tropicais, castigos excessivos,

trabalho forçado, o confinamento em celas com pouca ventilação e o forte calor provocavam a

morte de vários prisioneiros, como no caso do comunista Bento Gonçalves em 1942. Em

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1945, o Tarrafal foi desativado, sendo “rebatizado e reaberto durante a Guerra Colonial, desta

vez para receber presos políticos e africanos” (MENESES, 2011: 195).

Em setembro de 1937, Salazar anuncia reformas do Exército, criando o corpo de

Estado Maior. Forma-se um pequeno contingente, com cerca de 30’000 homens para defender

Portugal das ameaças vindas do outro lado da fronteira: a Guerra Civil Espanhola. O governo

decide proteger a juventude das ideias revolucionárias vindas da Espanha. A organização

juvenil conhecida como Mocidade Portuguesa surge para auxiliar o país em suas

responsabilidades militares. O grupo pré-militar possuía uniforme e hino, com membros

“oriundos de diversos setores, incluindo crianças que não frequentavam a escola”

(MENESES, 2011: 176). Dentre os juramentos feitos no compromisso solene de obediência

aos regulamentos, estavam “consagrar a vossa vida à consolidação e ao engrandecimento do

Império Português, aquém e além-mar”.

O papel delegado às Forças Armadas, de manutenção da ordem interna, vai

gradualmente diminuindo no decorrer dos anos 30. Em agosto de 1933, forma-se a Polícia de

Vigilância e Defesa do Estado, (PVDE), que assume diversas funções como o ataque a

opositores políticos, investigação criminal, fiscalização das fronteiras, controle de imigração e

emigração e outros serviços ligados à segurança nacional.

Apesar da forte vigilância, houve importantes greves de trabalhadores, lideradas por

comunistas e anarquistas em 1934. Salazar, através do Conselho de Ministros, ordena aos

patrões que demitam os grevistas e ameaça encerrar em campo prisional de Angola os líderes

revoltosos. Em 1937, Salazar sofre um atentado, possivelmente por conta de seu

envolvimento na Guerra Civil Espanhola. Um grupo de anarquistas preparou uma bomba para

explodir o carro do ditador português. Contudo, não houve nenhum prejuízo à integridade

física de Salazar.

A Segunda Guerra Mundial veio mudar radicalmente o antigo dogma colonizador,

que justificava a expansão europeia com base em uma missão civilizadora, supondo que as

culturas europeias e cristãs eram superiores e como tais tinham o dever de tutelar as culturas

asiáticas, ameríndias e africanas, tidas inferiores. Na Segunda Guerra Mundial, os

movimentos independentistas negociaram futuros direitos em troca do apoio e da lealdade

durante o conflito. Na Ásia, as derrotas europeias para os japoneses mostraram aos povos

colonizados a vencibilidade dos europeus. As colônias também disponibilizaram tropas para a

guerra. Negros foram, pela primeira vez, autorizados a matar brancos:

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Além disso, ao conviverem com os brancos no front, os negros descobriram suas fraquezas, seus defeitos, enfim reconheceram sua humanidade; que eram homens como quaisquer outros. Ao regressarem às suas terras, levaram consigo essas experiências e contribuíram para a organização da luta anti-colonial (MACEDO, 2013: 156).

O enfraquecimento econômico das potências colonialistas europeias após a Segunda Guerra

Mundial, de certo modo, também facilitou o crescimento dos movimentos pró-independência

nas colônias africanas.

Após a Segunda Guerra Mundial, a conjuntura internacional anunciou o início do fim

do colonialismo. Com a fundação da ONU, entendeu-se que a luta contra o domínio nazista e

pela independência, assim como também a erradicação das ideologias racistas, não apenas

dizia respeito aos países europeus. O princípio de autodeterminação era estendido também aos

povos colonizados, com a integração do artigo 73 que estipulava o dever da nações

colonizadoras de desenvolver o autogoverno de seus territórios não autônomos e de assistir os

povos desses territórios a instalar suas próprias instituições políticas. Os países membros da

ONU eram obrigados a regularmente entregarem relatórios sobre o avanço do processo de

independência nos seus territórios não autônomos.

Na nova conjuntura política internacional, o Estado Novo precisava mudar o discurso

para a manutenção do Império. Este discurso continha vários pontos: (1) A união entre

metrópole e Ultramar era declarada como fato consumado, histórico e existencial para o poder

nacional português; (2) Investiu-se na colonização e no desenvolvimento econômico-social

maciço, mostrando assim os benefícios da colonização portuguesa para os territórios

colonizados; (3) Realçou-se o fortalecimento do argumento da missão civilizatória e

missionária e o caráter não segregacionista da colonização portuguesa.

Em 1953 foi revisado o Acto Colonial que passou a integrar a Constituição sob o

título “Do Ultramar Português” complementado pela Lei Orgânica do Ultramar Português e

pelo Estatuto dos Indígenas das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique de 1954. Com o

intuito de melhor proteger o seu Império frente às pressões internacionais crescentes, o Estado

Novo alterou a sua terminologia: no lugar de colônias e de Império se falava agora em

províncias do Ultramar. Mas essa mudança era apenas cosmética e ficou no plano discursivo.

Não foi acompanhada por reformas sociais ou nos âmbitos jurídico e político.

Portugal seguiu sua política colonial driblando o artigo 73.o da Carta da ONU, que

determinava os deveres na administração de territórios não autônomos, sobretudo o dever de

relatar regularmente ao Secretário-Geral da ONU o estado do território não autônomo e de

suas populações. A ditadura salazarista reeditou e fomentou a visão imperial de Portugal e os

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territórios ultramarinos como sendo um Estado unitário, espalhado entre vários continentes.

Nesta perspectiva, não havia territórios não autônomos sob jurisdição portuguesa, portanto, o

artigo 73.o da Carta da ONU não seria aplicável a Portugal.

Em 1958, realiza-se a Primeira Conferência dos Estados Independentes em Gana,

onde os líderes africanos plantaram os alicerces para a criação da Organização dos Estados

Africanos em 1963. No estatuto, além do reconhecimento dos direitos dos cidadãos e de

propriedade das riquezas naturais, determina-se o combate a todas as formas de colonialismo.

Durante a administração Kennedy, os EUA tentaram várias vezes convencer Portugal

a aceitar um plano de descolonização para as suas colônias. Salazar, entretanto, se mostrou

intransigente e “renitente a qualquer negociação [...], repetindo a sua determinação em lutar

eternamente pelas suas «províncias ultramarinas»” (PINTO, 2001: 26).

Em 4 de fevereiro de 1961 estourou a guerra de independência de Angola. Os

Estados Unidos, nas discussões sobre Angola no Conselho de Segurança da ONU, votaram

pela primeira vez contra Portugal. A moção foi reprova da graças à abstenção da Inglaterra,

da França e de mais quatro membros do Conselho de Segurança. Na Assembleia Geral,

porém, a moção foi aprovada, levando à primeira condenação do colonialismo português na

ONU. No mesmo ano de 1961, os territórios portugueses no continente indiano (Goa, Damão

e Diu) foram anexados pela União Indiana.

A partir da segunda metade dos anos 60 do século XX, a situação internacional se

tornou mais favorável para Portugal. O conflito do Vietnã desviou a atenção dos Estados

Unidos das colônias portuguesas. Além do mais, no mundo bipolar da Guerra Fria, o bloco

ocidental preferia aceitar regimes autoritários como o Estado Novo pela sua postura

anticomunista do que forçar regimes democráticos que poderiam abrir as portas para os

comunistas. O fato de as guerrilhas africanas serem majoritariamente filiadas à ideologia

marxista-leninista, também ajudou a Portugal: a saída dos portugueses do Império ultramarino

continha o perigo de que estes territórios aderissem ao bloco soviético. Por esta razão, a partir

de 1963, os Estados Unidos e as grandes potências da NATO, França, Grã-Bretanha e

República Federal da Alemanha passaram a apoiar a posição de Portugal discreta mais

substancialmente.

Decisivo para esta posição era a percepção de que Portugal tinha “capacidade

financeira, económica, militar e demográfica” e vontade política para continuar a guerra

colonial por tempo indeterminado.

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O bloco ocidental temia pelo destino dos territórios ultramarinos na balança Leste-Oeste, caso Portugal fosse forçado a abandoná-los, e a natureza comunista dos movimentos de libertação obstava a que os governos dos países ocidentais apoiassem directamente. Por tudo isto, a hostilidade a Lisboa seria mais formal e verbal do que real (PINTO, 2013: 217).

A partir dos anos 60 e até o final das guerras coloniais, Portugal viu o maior esforço

militar da sua história, mobilizando cerca de 1% da sua população para a guerra, porcentagem

apenas abaixo das cifras de Israel. Para António Costa Pinto, o “congelamento” do regime é a

explicação mais importante da longa duração da guerra colonial:

Falhada a tentativa de derrube de Salazar por uma parte da hierarquia das Forças Armadas, o ditador e a sua elite política conseguiram reequilibrar e “congelar” o sistema político que, sem derrota militar previsível, se limitou a resistir, rejeitando qualquer procura de solução negociada. O futuro do regime transformou-se assim no futuro da guerra (PINTO, 2001: 45).

No final dos anos 60, Portugal não conseguiu mais mobilizar os efetivos necessários,

o que levou como consequência ao alargamento do serviço militar obrigatório em Portugal e

ao alistamento de porcentagens maiores de recrutas africanos nas próprias colônias. Na

década de 70, as Forças Armadas portuguesas tinham um total de cerca de 160’000

combatentes fortemente armados e equipados com aviões e os mais sofisticados

equipamentos bélicos, deslocados para África. Destes efetivos, a porcentagem de recrutados

africanos abrangia cerca de 53% em Moçambique, 42% em Angola e 21% na Guiné.

Internamente, isso levou a um cotidiano de horrores,

a guerra entrara numa espécie de rotina e as baixas em campanha eram modestas para os efectivos envolvidos. [...] A opinião pública e as famílias tinham-se adaptado, talvez sem entusiasmo, mas também sem tragédia, a uma ideia de conflito de longa duração, que tinha como contrapartida manter o Ultramar (PINTO, 2013: 229).

Com a chegada ao poder de Marcelo Caetano em 1968, uma liberalização controlada

passou a ser considerada possível. A chamada “primavera marcelista” (PINTO, 2001: 47)

permitiu uma certa revitalização da oposição, excluindo porém os comunistas. Em relação à

política ultramarina, para a qual Caetano tinha inclinações descentralizadoras, o regime

adotou um novo discurso, menos mítico e metapolítico, defendendo a integridade do Império,

passando em vez disso a justificar a manutenção da guerra com a sorte e os interesses das

populações locais das colônias no caso de abandono pela metrópole. Optando pela

continuação da guerra colonial em detrimento da abertura do regime, Marcelo Caetano estava

na origem da queda descontrolada da ditadura do Estado Novo em 1974.

Na sua reta final, a guerra colonial na África foi causando um desgosto popular,

ficando obsoleta por várias razões. Portugal viveu nos anos 60 uma fase de rápido

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crescimento financeiro, ao expandir suas relações econômicas com a Europa (sobretudo a

partir do acordo com a Associação Europeia de Livre Comércio – EFTA). Os esforços de

guerra subtraíram fundos consideráveis do orçamento público para o desenvolvimento da

infraestrutura, do transporte e da educação em Portugal.

A ditadura do Estado Novo, após a morte do seu idealizador e pedra angular em

1970, acabaria por despertar na sua elite a consciência de que o exotismo de um regime

autoritário com um Império ultramarino se tornara um fardo insustentável. As próprias Forças

Armadas se rebelaram em 25 de abril de 1974 contra o regime, lideradas por um movimento

de capitães, conhecido como o Movimento das Forças Armadas (MFA). Por um lado, o MFA

marcou profundamente a transição para a democracia, orientando-se sucessivamente para a

esquerda. Por outro lado, a mobilização do povo e das forças políticas da oposição foi

imediata e maciça. A questão da guerra colonial estava no centro das preocupações do novo

governo militar:

[...] a Revolução de 25 de Abril de 1974 foi, sobretudo, uma revolta contra a chamada guerra colonial, feita pelas próprias forças armadas mas, sem sombra de dúvida, com o apoio tácito do povo português. [...] A preocupação suprema, após o 25 de Abril, foi pôr ponto final à luta, e repatriar as dezenas de milhar de militares que se achavam em África (MARQUES, 2012: 716).

Nesta primeira fase, os comunistas, por representarem a única força de oposição bem

organizada, desempenharam um papel central no novo governo. Só foram afastados das

esferas do poder após as eleições para a Assembleia Constituinte um ano após a revolução,

com a aprovação da nova Constituição e as primeiras eleições legislativas em 25 de abril de

1976. Ambas as eleições terminaram com larga vitória dos partidos não comunistas, dando

início assim a orientação europeísta, descartando alternativas socialistas e terceiro-mundistas.

O processo da descolonização2 realizou-se num período curto de pouco mais de um

ano. O primeiro Estado que teve a sua independência formalmente reconhecida por Portugal

foi a Guiné em 10 de setembro de 19743. A seguir foi a vez de Moçambique (25 de junho de

1975), Cabo Verde (5 de julho de 1975) e São Tomé e Príncipe (12 de julho de 1975). Em

Angola, havia três movimentos, o que prolongou as negociações pela independência e levou a

um último ano de presença portuguesa bastante tumultuado com milhares de mortos e feridos.

Portugal retirou-se e anunciou a independência formalmente em 11 de novembro de 1975

2 A noção “descolonização“ reflete o ponto de vista português, valorizando o protagonismo lusitano, em detrimento dos povos africanos. Utilizo o termo “descolonizado“, apenas no intuito de comprovar a imagem imperialista de portugal. 3 O Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) tinha declarado a independência da Guiné-Bissau unilateralmente já em 24 de setembro de 1973.

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para logo em seguida da via a uma longa e sangrenta guerra civil entre os três movimentos de

guerrilha.

O Timor foi invadido pela Indonésia no final de novembro de 1975 e assim o terceiro

Império Português tinha chegado a um rápido e abrupto fim. Apenas Macau ficou como

colônia até a sua devolução à China em 1999. Segundo António Costa Pinto, a descolonização

e a opção europeísta geraram uma considerável produção ideológica por parte dos intelectuais

portugueses, indagando sobre o seu impacto na identidade portuguesa. Embora sustente que

com o Império, um dos elementos centrais do discurso nacionalista tenha desaparecido,

constata que isso não causou uma “crise de identidade” no povo português. Ao contrário,

confiante na União Europeia, a sociedade portuguesa dos anos 80 aposta na reafirmação de

sua identidade europeia. “Os portugueses, tanto quanto os estudos de opinião pública

permitem avaliar, não passaram por sérios problemas de identidade com o fim do império

colonial, em 1975, ou com a sua nova inserção internacional no espaço europeu, em 1986”

(PINTO, 2001: 83).

Eduardo Lourenço defende que os quinhentos anos de imperialismo estranhamente

pouco mudaram na alma e na identidade portuguesas. Parte da explicação, reside no fato de

que o imperialismo português era menos conquistador e muito mais comerciante:

Mas marcas duradouras na alma de quem “teve” quinhentos anos de império nada, ou só a ficção encarecente que n’Os Lusíadas ecoa, não como mudadora da sua alma, mas como simples nomenclatura extasiada de terras e lugares que na verdade, salvo Goa, nunca habitámos como senhores delas (LOURENÇO, 2013: 45).

Talvez com os versos do último poema de Mensagem, se compreenda melhor o que,

em Camões, segundo Eduardo Lourenço, é já “ficção encarecente n´Os Lusíadas”.

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra, Define com perfil e ser Este fulgor baço da terra Que é Portugal a entristecer – [...] (PESSOA, 2008: 191)

A existência do Império era para a identidade e a imagem portuguesas, sobretudo,

uma “dimensão mágica”, acrescentando ao pequeno país espaços que tinham funções

compensatórias para o complexo de inferioridade. O Império só entrou no consciente

metropolitano quando foi disputado pelas outras potencias colonialistas no século XIX. No

episódio do Ultimatum, Portugal se deu conta de uma forma brutal que não era reconhecida e

respeitada pelos outros países europeus como nação imperial à mesma altura. Apenas no

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século XIX foi que Portugal assumiu a sua “grandeza de ficção”, mediante a ocupação efetiva

das colónias africanas. E foi só aí que Portugal assumiu uma “consciência imperial”, cultivada

pela República e afirmada intransigentemente pelo regime salazarista. Esta nova consciência

imperial pôs fim à

imagem hiperbólica de antigos senhores da “Conquista, Navegação, Etiopía”, etc., quer dizer, a quinhentos anos de imperialismo sem império que foram também quinhentos anos de império sem autêntico imperialismo. Ao menos no que diz respeito à “consciência dos portugueses” e aos mitos, fastos ou nefastos, que pôde engendrar (LOURENÇO, 2013: 46).

Neste contexto Eduardo Lourenço, alerta para o fato “assombroso” da passividade e

da indiferença dos portugueses diante da perda abrupta do Império após a Revolução de Abril

de 1974, reflexo do que considera a “capacidade fantástica que em nós se tornou uma segunda

natureza, de integrar sem problemas de consciência o que em geral provoca noutros povos

dramas e tragédias implacáveis” (2013: 47). O que parecia um acontecimento propício para

criar um hipotético quarto traumatismo no povo português ou uma oportunidade única para

“um repensamento em profundidade da totalidade da nossa imagem perante nós mesmos e no

espelho do mundo” (LOURENÇO, 2013: 46), passou sem que o traumatismo se efetuasse e

nem se aproveitasse a oportunidade para a revisão da própria imagem.

Um possível quarto traumatismo seria o desmoronamento do Império Colonial, após

anos de guerrilha. Portugal perdeu-se numa longa “guerra absurda, politicamente anacrónica e

eticamente contrária à mitologia mesma do nosso colonialismo «exemplar», com seu famoso

humanismo cristão a servir-lhe de referencia e de caução” (LOURENÇO, 2013: 11)

culminando na Revolução de 25 de Abril e na rápida e repentina descolonização portuguesa

em pouco mais de um ano entre 1974 e 1975.

Estranhamente, constata Eduardo Lourenço, em seu último livro, Do Colonialismo

como nosso Impensado (2014), que este quarto traumatismo parece não ter se realizado:

“Portugal viveu com singular tranquilidade, como se fosse/estivesse consciente da

consistência só imaginária ou onírica daquele império [...]” (LOURENÇO, 2014: 10). O

abrupto fim de uma imagem idealizante, uma estreita ligação entre a imagem nacional e o

Império, impossibilitou que se aproveitasse a oportunidade para uma profunda discussão das

imagens que Portugal fazia de si mesmo durante a época colonialista e de criar uma nova

imagem, a fim de, finalmente, reconhecer-se a si mesmo: gesto fundamental para que o país

pudesse caminhar em direção ao futuro, segundo Eduardo Lourenço.

A certeza de que um ciclo histórico fechava-se com a descolonização, foi

impressionantemente aceita na antiga metrópole. É como se a presença dos milhares de

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retornados da África, subitamente devolvesse ao país o seu limitado litoral atlântico. “Rei

morto, rei posto, mitologia colonial e colonialista defunta, nova mitologia nacionalista se

começa a formular” (LOURENÇO, 2013: 49).

A mitologia imperial deu lugar à formulação de uma nova mitologia nacionalista: a

imagem mítica imperialista é substituída por uma nova imagem revolucionária. A primeira

fase da revolução foi caracterizada pela “tentativa frenética de deslocar a imagem fascista da

realidade nacional presente e passada” (LOURENÇO, 2013: 50), que os representantes do

novo regime socialista julgaram ser um mero verniz superficial. Porém, ainda segundo

Lourenço, o “progressismo nacional não compreendeu que o salazarismo foi a versão

coerente de uma impotência económico-social colectiva” (LOURENÇO, 2013: 50).

A fusão da imagem nacional com a imperial inicia-se a partir do delírio

expansionista. A corrupção, o desmazelo e a vaidade abusiva – inerentes aos encargos de

conquistadores e colonizadores – extrapolaram a faixa do luso senso, debilitando interna e

externamente os seus reflexos. Em seu último livro, já referido, Lourenço defende que o

colonialismo português revela “a identidade de um país que pela maior parte de sua história se

construiu por fora, evitando assumir o olhar interior, o que ele era por dentro” (LOURENÇO,

2014:10)

Após o desmoronamento do Império Português, Jorge de Sena escreve, no ano de

1976, um longo poema virando mais este capítulo da História.

Os Poetas se Publicam Todavia... [...] Mais é que alguns de nós – e os outros sem pensá-lo já que poetas se enganam, a poesia não – neste amor-ódio a um Portugal tão triste- mente, amargamente secular mentira que era preciso desfazer inteira [...] Chatins, ladrões e miseráveis fomos – mas fomos também grandes. Sê-lo-emos, ainda outra vez, na casa lusitana, [...] E que ninguém venha cuspir-nos, muito menos nós. E que poetas escrevam disto tudo, Mergulhando no fundo de si mesmos (lá onde encontraram sombras de séculos Como as de um povo que resiste a tudo), e erguendo a fronte altiva em frente ao mundo urgentemente, sem pensar-se em mais que dizer que somos e queremos ser. (SENA, 1989b: 176-179)

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Citado como epígrafe deste capítulo, o poema “O Infante” de Fernando Pessoa

constata o fim do Império Português após realizada a conquista do mar. O poema de

Mensagem (re)clama a Deus pelo destino de Portugal no último verso. Segundo o poeta, a

vontade divina foi contrariada pelos “feros lusos” quando decidiram usar a via marítima para

dominar e subjugar outros povos. Eleitos pelos céus para desvendarem os mistérios da

natureza, os portugueses criaram ainda mais inimigos em terras distantes, desafiando o projeto

divino de unir o planeta.

2.1.4. “Os Paraísos Artificiais” de Salazar

Os Paraísos Artificiais Na minha terra, não há terra, há ruas; mesmo as colinas são de prédios altos com renda muito mais alta. [...] Na minha terra, porém, não há pardieiros, que são todos na Pérsia ou na China, ou em países inefáveis. A minha terra não é inefável. A vida da minha terra é que é inefável. Inefável é o que não pode ser dito. (SENA, 2013: 147)

Mafalda Soares da Cunha analisa o perfil dos governantes do Império Português do

Atlântico nos séculos XVI e XVIII, revelando estratégias e meios de ação política da Coroa

portuguesa.

O Império português era constituído por territórios de desigual valor para a Monarquia e que podemos hierarquizar a partir do seu peso econômico, militar e simbólico, elementos estes que estão patentes em indicadores como a titulatura dos cargos de governo, os ordenados dos governantes e a atração social que suscitavam (CUNHA, 2005: 72).

Os territórios eram hierarquizados de acordo com a necessidade econômica e a lógica

política da Coroa. O posto do Rio de Janeiro era mais procurado do que Cabo Verde e São

Tomé, por exemplo. O recrutamento dos governantes era menos seleto nessas últimas regiões.

A importância econômica da colônia determinava qual seria o seu governante.

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São Tomé, com a produção açucareira no século XVI, sua posição geográfica e,

posteriormente, o tráfico negreiro, mereceu mais atenção da Corte do que Cabo Verde. Posto

de atividade comercial e de resgate de escravos, a partir de 1647, a situação econômica de

Cabo Verde se agrava, com parte da população branca mudando para a Guiné. Mais tarde, o

centro econômico se transfere para Angola que conta com fidalgos compondo o governo. “Há

uma clara elitização no recrutamento – todos fidalgos inequívocos, podendo cinco deles ser

mesmo considerados da primeira nobreza da Corte” (CUNHA, 2005: 79).

A política régia de nomeações obedece a critérios meramente comerciais. No caso do

Estado da Índia, os titulares dos governos eram selecionados da primeira nobreza do reino. A

hierarquia política e econômica dos espaços ultramarinos corresponde à hierarquia das

qualidades sociais dos nomeados. A nomeação dos governantes dependia de critérios sociais e

de mérito pessoal predefinidos pela Monarquia. Contavam o estatuo social dos pais e o local

de nascimento. De acordo com Mafalda Soares da Cunha,

as categorias consideradas foram: (1) filhos de titulares e filhos da primeira nobreza da Corte, (2) filhos de fidalgos inequívocos, (3) filhos de pessoas que gozavam claramente de nobreza pessoal, (4) indivíduos, cujos pais podiam ou não gozar de nobreza pessoal, (5) filhos de pessoas inequivocadamente mecânicas, (6) naturais dos próprios territórios (no século XVII, majoritariamente elementos das oligarquias locais), (7) naturais da Madeira e dos Açores, (8) estrangeiros ou eclesiásticos (2005: 76).

Essa política de hierarquização das colônias de acordo com a sua importância

econômica é uma prática antiga do governo português, continuada no Estado Novo, apesar do

discurso lusotropicalista:

Até a década de Sessenta [do século XX], Portugal seguiu uma típica política colonialista, de fomento da produção de matérias-primas mas de desencorajamento de quaisquer actividades industriais nos territórios do ultramar. Assim, só as indústrias da borracha e têxtil assumiam algum significado nos finais dos anos de Cinquenta. O começo das guerrilhas veio modificar todo o panorama, trazendo consigo um rápido desenvolvimento da indústria (MARQUES, 2012: 694).

Com o início da guerrilha pela independência em Angola no ano de 1961, todos os

colonizados passaram a ser vistos com desconfiança generalizada. Os negros eram nivelados

numa única categoria, o que significou para os “assimilados” a perda dos seus privilégios.

Simplesmente manter a população das colônias mais pobres torna-se tarefa difícil para o

governo português.

A situação de Cabo Verde, sujeito a secas, agrava-se com o tempo de abandono. O

alto índice de mortalidade, em virtude da fome galopante, era uma realidade de vida no

arquipélago e “há muito que assim era, ainda que muitos em Portugal parecesse ignorá-lo”

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(MENESES, 2011: 134). Analisando “O Império Português no pensamento de Salazar”,

comenta Filipe Ribeiro de Meneses:

A defesa do direito de Portugal às suas colônias e a identificação dessas colônias como uma chave para um futuro próspero eram áreas, nas quais o Estado Novo não precisava de inovar. Todos os grupos das elites portuguesas estavam, a esse respeito, de acordo (MENESES, 2011: 133).

Representando os valores de uma classe social à qual não pertencia, António de

Oliveira Salazar conseguiu, como ninguém, utilizar seus conhecimentos das raízes populares

lusitanas para se manter no comando do país. “O pobre filho de pobres” reunia em si os

ingredientes necessários para convencer a maioria (analfabeta e despolitizada) de que o

mundo artificial que criara era adequado às exigências da nação. Salazar soube como mais

ninguém aproveitar os sentimentos do povo:

Jamais dirigente algum soubera encontrar uma tão genial fórmula de identificação mítica com uma sensibilidade nacional filha e herdeira de séculos de pobreza verdadeira, cristãmente vivida como regenerante espiritualmente (LOURENÇO, 2013: 58).

Salazar formou-se cultural e politicamente no Centro Católico Português, fundado

em 1917. Citando um comentarista da época, Filipe Ribeiro de Meneses deixa claro, que para

Salazar o importante não eram as ideias em si, senão o seu potencial para poder com elas agir

sobre a sociedade portuguesa. Para Salazar, a política não traria a salvação e o bem-estar para

os portugueses. Na sua concepção, a população não devia pensar demais sobre a política, pois

ela devia ocupar nas palavras de Filipe Ribeiro de Meneses “o seu lugar próprio,

relativamente menor, na vida da nação” (MENESES, 2011: 122). O ditador português

rejeitava a prepotência da política na ação do Estado. A consciência individual era para ele

um força importante de moderação moral e espiritual, impedindo a radicalização extrema-

direita da ação do Estado no sentido xenófobo e antissemita, defendida pela facção mais

radical da Action Française.

O nacionalismo salazarista se resumia melhor na imagem (seletiva e construída) de

uma sociedade medieval bem organizada e hierárquica, mantida por considerações espirituais

compartidas entre governadores e governados, expressas na reconquista cristã. No período da

ditadura salazarista criava-se um forte elo com a era medieval, que para Salazar tinha muitas

lições a oferecer à sociedade moderna do século XX. O nacionalismo português era neste

sentido teórico e não ideológico, servindo mais como instrumento pragmático de governação,

já que o mundo político estava composto por nações e “por meio delas [...] um indivíduo

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podia levar uma vida profícua. Proteger a sua nação era, pois, o primeiro dever de um

estadista” (MENESES, 2011: 123).

Para Salazar, o nacionalismo “era necessário como meio que permitiria manter a

sociedade portuguesa unida em face das dificuldades” (MENESES, 2011: 123). A imagem do

povo português na visão de Salazar mantinha dois lados: embora “bondoso, inteligente,

sofredor, dócil, hospitaleiro, trabalhador, facilmente educável, culto”, os seus defeitos

pesavam:

Excessivamente sentimental, com horror à disciplina, individualista sem dar por isso, falho no espírito de continuidade e de tenacidade na ação. A própria facilidade de compreensão, diminuindo-lhe a necessidade de esforço, leva-o a estudar todos os assuntos pela rama, a confiar demasiado na espontaneidade e brilho da sua inteligência (MENESES, 2011: 123).

O nacionalismo não apenas uniria um povo “individualista, com horror à disciplina”,

também viria a suprimir a luta de classes. Dirigindo-se a uma manifestação de trabalhadores

em 1939, Salazar reforça o elo com a época da Idade Média, dizendo aos manifestantes que

um dia poderiam olhar as imagens dos fundadores de Portugal e lhes dizer: “Nós somos bem

os filhos do vosso sangue e os legítimos continuadores da vossa História!” (MENESES, 2011:

123). É na época gloriosa da expansão e do Império que o nacionalismo salazarista do Estado

novo encontra as suas referências históricas:

Salazar vai reconstruir e afirmar, como mito e valor exemplar, um Portugal glorioso, simbolizado em heróis como Nuno Álvares, o infante D. Henrique, Vasco da Gama e Afonso de Albuquerque – ou seja, o defensor da Independência, o iniciador da Expansão e os seus artífices máximos, o Navegador e o Conquistador (PINTO, 2013: 173)4.

Estrategicamente, Salazar modernizou a administração das colônias e deu passos em

direção a uma maior descentralização administrativa e econômica. Em 1961, o Estatuto do

Indígena expirou e com ele desapareceu o conceito de “assimilado”, tornando daí em diante

todos os habitantes da Guiné, de Angola e de Moçambique cidadãos portugueses. Portugal

inclusive chegou a contratar uma empresa de lobbying nos Estados Unidos para influenciar a

opinião pública norte-americana a favor da posição portuguesa em relação a suas colônias.

A imagem de Portugal gerada pelo Estado Novo era de natureza mais irreal que a

precedente republicana. Em 1926, a época liberal iniciada no começo do século XIX chegou

ao fim. Nas palavras de Eduardo Lourenço, volta a “autoridade majestática do Estado, mas

4 Comparar FERREIRA, Manuel (1989). O Discurso no percurso afriano I: contribuição para uma estética africana. Lisboa: Plátano. Manuel Ferreira se refere à ofensiva propagandística, propagandística e ideológica como uma „pirotecnia colonial“ (p. 9).

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sob a forma violenta do totalitarismo” para aniquilar a herança de um pouco mais de um

século, que teria levado Portugal ao “fundo do abismo”. O patriotismo republicano se

transforma em nacionalismo não com referência no povo, mas ao serviço de “a Nação como

totalidade orgânica, pessoa histórica, dotada de direitos e deveres enquanto tal”

(LOURENÇO, 2013: 32).

2.2 A contra-imagem de Portugal

No vazio ideológico e político, incapaz de traçar uma outra imagem para Portugal e

para os portugueses, o Estado Novo podia ter perdurado quase que eternamente5, não fosse o

surgimento do marxismo, que em Portugal

por confinado ou claro destino deslocou, como até então ideologia alguma o conseguira, o eixo sobre o qual repousaram até aí todas as figuras da relação entre os Portugueses e Portugal (LOURENÇO, 2013: 34).

O sentimento patriótico foi questionado como matriz principal de análise da situação

histórica portuguesa, substituindo-o pelo conceito da luta de classes e atribuindo a ela o

dinamismo histórico. Desta forma, a relação do indivíduo com a sociedade foi estratificado,

possibilitando o ajustamento dos indivíduos (sobretudo os oprimidos, é claro) à camada ou

5 Comparar ROSAS, Fernando (2013). Salazar e o Poder. A arte de saber durar. (2a ed.). Lisboa: Tinta-da-China. Fernando Rosas analisa os mecanismos da longevidade do regime salazarista e pretende “saber porque é que as oposições ao salazarismo, mesmo quando nos episódios de crise o isolaram e ameaçaram, nunca conseguiram derrubá-lo. E quando falo de oposições refiro-me tanto às que se reclamavam do antifascismo e estavam empurradas para a clandestinidade ou para uma semilegalidade, avaramente consentida no pós-guerra, nos períodos ditos eleitorais para a Assembleia Nacional, como às dissidências internas do regime, os seus tímidos sectores reformistas eventualmente empenhados num processo endógeno e pacífico de transição” (p. 16). Os dois momentos de maior crise política e de maior ameaça ao regime salazarista foram por um lado os anos após a Segunda Guerra Mundial, com o surgimento do Movimento Unidade Democrática (MUD). Em 1945, sob pressão internacional, o regime salazarista mudou as leis eleitorais, possibilitando o melhor acesso das forças oposicionistas às eleições legislativas. Em 1948, o antigo Alto Comissário em Angola, Norton de Matos se candidatou a presidência, apoiado pelo ministro das colônias entre 1931 e 1935, Armindo Monteiro. Entre 1958 e 1961 aconteceu a segunda grande crise política do regime salazarista, personificada na candidatura do General Humberto Delgado à presidência em 1958. Delgado foi apoiado pelo capitão Henrique Galvão, salazarista ferrenho na sua juventude e “apaixonado propagandista” do regime. Foi idealizador da Exposição Colonial no Porto em 1934 e do famoso mapa “Portugal não é um país pequeno”, no qual sobrepõe os territórios das colônias portuguesas sobre o mapa da Europa para demostrar a grandeza do Império Português. Contribuiu neste sentido decisivamente para a construção da imagem do Estado Novo. A partir dos anos 40 começou a mostrar dissidências ao regime salazarista e em 1947 criticou a política colonial do regime num relatório sobre Angola. Foi preso e em 1959 fugiu para a Venezuela onde participou na fundação do Diretório Revolucionário Ibérico de Libertação (DRIL), uma organização de dissidentes portugueses e espanhóis que buscavam organizar ações conjuntas contra os regimes ditatoriais ibéricos de Salazar e Franco. Em 1961, o DRIL protagonizou o famoso sequestro do transatlântico Santa Maria, pertencente à Companhia Colonial Portuguesa, causando um dano irreparável à imagem do regime salazarista. Galvão exilou-se no Brasil no mesmo ano de 1961 onde ficou até a sua morte em 1970.

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classe social à que pertencia e quebrando a imagem corporativa da sociedade portuguesa, que

velava as estratificações sociais, levando os dominados a se identificarem com os interesses

dos dominadores.

O marxismo, internacionalista por excelência e por isso impossibilitando a

identificação sentimental com o nacionalismo, foi pouco a pouco nacionalizado e

transformado em populismo, não sem cumplicidade de obras do movimento neorrealista. O

Neorrealismo português cria nas suas obras poéticas e nos seus romances

uma imagem mais convincente do povo português, [...] em relação à clássica imagem de Portugal como país cristão, harmonioso, paternal e salazarista, suave, guarda-avançada da civilização ocidental anti-marxista, uma outra-imagem que não é exatamente uma contra-imagem, mas uma complexa distorção desse protótipo que nalguns aspectos se apresenta como o pólo oposto dela [...] (LOURENÇO, 2013: 36).

Todavia, Eduardo Lourenço defende que a oposição ideológica-cultural nunca foi

expressamente marxista e mesmo que tenha conseguido minar “um certo conformismo

ideológico e político” do regime salazarista, “a hegemonia espiritual que foi a do

Neorrealismo durante quase trinta anos não subverteu tanto como se podia imaginar a imagem

idealizante de Portugal” (LOURENÇO, 2013: 36). O Neorrealismo reforçou em certo sentido

esta imagem idealizante, enaltecendo o povo, oprimido e pobre que passou a ser visto pelos

neorrealistas como agente futuro de uma reinvenção de um Portugal mais justo, igualitário e

livre.

É evidente para Eduardo Lourenço que, na construção de uma outra imagem, o

Neorrealismo é menos motivado pelo dinamismo das teorias marxistas revolucionárias, do

que pela tradição romântica de caráter reivindicatório. De acordo com Lourenço, cabia ao

neorrealismo o papel de desmascarar o “sentimento patriótico” do regime salazarista, mas

pouco revolucionou. O neorrealismo criou uma outra imagem que não chegou a ser uma

verdadeira contra-imagem da imposta pelo regime fascista: “A imagem de Portugal não é

subvertida pelo «neo-realismo» mas readaptada à sua função reestruturante e futuramente

harmoniosa de um país que um dia se libertará de males e taras passageiros” (LOURENÇO,

2013: 37).

As verdadeiras contra-imagens se criavam simultaneamente às margens e

parcialmente em oposição à hegemonia cultural do neorrealismo. O maior exemplo da

construção de uma contra-imagem é o Surrealismo, que data em Portugal de 1947 e que

introduziu novos “gestos, as imagens, picturais ou poéticas” que tanto se opuseram aos

códigos “lusitanistas” tradicionais do século XIX, como também aos cânones “clericais-

fascistas” do regime salazarista. “O surrealismo, com os caracteres bem próprios que foram os

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seus entre nós, redimensionava a imagem da nossa relação com a realidade portuguesa”

(LOURENÇO, 2013: 37).

Neste empreendimento, o surrealismo opôs-se tanto “ao conformismo secular

reformulado pelo fascismo” e a ordem moral do salazarismo como também ao conformismo

marxista, “não só ideológico, como cultural, totalmente alheio às potencialidades subversivas

da linguagem”. O Surrealismo, neste sentido, contribuiu para estabelecer, frente à onipotência

neorrealista, outras formas de percepção cultural

[...] a sensibilidade que nas atitudes e gestos surrealistas se encarnou trouxe à superfície um Portugal-outro, anómalo, eficaz justamente até por não propor desta vez “reforma ideológica, cultural ou ética” de nacional recorte ou aplicação, mas apenas por tornar inactual, arcaico, fóssil, um mundo de formas que era a forma mesma do inteiro viver nacional (LOURENÇO, 2013: 39).

Entre os “ismos” do século XX, outra tentativa de criar uma contra-imagem para

Portugal encontra-se no Movimento da Filosofia Portuguesa que, segundo Eduardo Lourenço,

representa “talvez a primeira tentativa de uma contra-imagem cultural da realidade

portuguesa” (2013: 39) Porém, essa experiência malogra, ao apresentar uma “contra-imagem

cultural do tipo místico-nacionalista” (LOURENÇO, 2013: 139).

Para o ensaísta, o movimento gerou uma “apoteose cultural mais nacionalista de que

há memória nos nossos anais” (LOURENÇO, 2013: 39). A Filosofia Portuguesa opôs-se e

tentou inverter a mitologia cultural hegemônica influenciada pelo liberalismo e iluminismo.

Em particular, a Filosofia Portuguesa voltou-se contra o movimento literário que “confessada

ou inconfessadamente, tentou refazer nessa linha a imagem nacional” (LOURENÇO, 2013:

40), referindo-se à Geração de 70.

A Filosofia Portuguesa concebe uma contra-imagem cultural altamente místico-

nacionalista, sendo a marca mais óbvia o “apologetismo intrínseco da excelência ímpar do ser

português, não apenas na sua configuração ético-ontológica, mas cultural” (LOURENÇO,

2013: 40). A contra-imagem que a Filosofia Portuguesa cria é a de um “Portugal-Super-Man,

portador secreto de uma mensagem ou possuidor virtual de um Graal futuro” (LOURENÇO,

2013: 40), a de um “Portugal-menino-jesus-das-nações, «éon» histórico predestinado à

regeneração espiritual do universo” (LOURENÇO, 2013: 41), uma imagem messiânica, uma

“mitificação assombrosa” que apesar da forma patológica, segundo Eduardo Lourenço,

encontra certos ecos na grande maioria dos portugueses e portanto não pode ser descartada

como uma simples aberração da esquizofrenia portuguesa.

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A Filosofia Portuguesa era uma reação às imagens inspiradas no realismo (“imagens-

realidades” em LOURENÇO, 2013: 41). Para os representantes da Filosofia Portuguesa, isso

era o caso sobretudo do neorrealismo, mas também da ideologia salazarista, que por muitos

representantes da Filosofia Portuguesa era vista como uma forma de positivismo. Nem por

isso, eles deixavam de exaltar a “o culto patológico da «lusitanidade»” (LOURENÇO, 2013:

42) do regime salazarista.

Em O Labirinto da Saudade, publicado quatro anos após a Revolução de Abril,

afirma Eduardo Lourenço que a contra-imagem de Portugal criada neste contexto ainda não

havia amadurecido o suficiente para se arriscar uma denominação. A construção de uma nova

imagem é um trabalho e um esforço árduo e passa pela introspecção e pela promoção coletiva

do povo português, dentro das modestas possibilidade que representa Portugal reduzido a si

mesmo. “Essa promoção passa por uma conversão cultural de fundo, susceptível de nos dotar

de um olhar crítico sobre o que somos e fazemos, sem por isso destruir a confiança nas nossas

naturais capacidades de criação autonomizada” (LOURENÇO, 2013: 52).

Eduardo Lourenço situa o caráter nacional português no irracional, na crença em

Deus e no destino como verdades. Estas características para Lourenço não estão associadas ao

pensamento estruturado, mas ao “impulso da vontade, do desejo, do inconsciente”.

Consequentemente, quando “nos aproximamos da linha tórrida do racional tornamo-nos

tímidos, ficamos paralisados, perdemos a imaginação.” (LOURENÇO, 2013: 55)

A essa “imagem ideológica do povo português como idílico, passivo, amorfo,

humilde e respeitador da ordem estabelecida” (LOURENÇO, 2013: 61), a Revolução de

Abril, até o momento da redação de O Labirinto da Saudade, não tinha conseguido opor uma

verdadeira contra-imagem, ou melhor, uma contra-imagem ideal. Os revolucionários,

preocupados apenas com o político e o ideológico, descuidaram do poder do mítico na

formação do imaginário lusitano. Não conseguiram construir uma nova imagem porque não

julgavam necessário fazer “uma readaptação bem sucedida ao último e acaso mais brutal

traumatismo da história portuguesa” (LOURENÇO, 2013: 61): a perda do império colonial.

A contra-imagem de Portugal de que necessitamos para nos vermos tais quais somos sofreu, desde as primeiras semanas eufóricas e naturais após a revolução, uma distorção interna de que possivelmente nunca mais se curará. [...] A distorção consistiu em tentar impor uma nova imagem de Portugal, logo após o 25 de Abril, na aparência oposta à do antigo regime, mas cuja estrutura e função eram exatamente as mesmas: instalar o país no lisonjeiro papel de país revolucionário exemplar (LOURENÇO, 2013: 61).

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Não houve uma desmontagem do regime antigo. A Revolução de Abril mudou

apenas o cenário, de totalitário para revolucionário, mas não alterou a imagem que o

português tinha de si mesmo. Mais uma vez fica evidente o desinteresse e a indiferença diante

da abrupta amputação do Império colonial, que formava parte essencial da imagem mítica

ultramarina. Neste contexto, Eduardo Lourenço chama a atenção para o fato que a Revolução

de Abril, apesar de ter as suas razões explicáveis, “descolonizou exatamente nos mesmos

termos em que o antigo regime levara a cabo a sua cruzada colonialista” (LOURENÇO, 2013:

63). Quer dizer que apresentou ao povo fatos consumados. A revolução perdeu a

oportunidade de iniciar o debate sobre a perda do Império não ser uma fatalidade, mas a

consequência “da política absoluta e criminosa levada a cabo pelo regime de Salazar e de

Marcelo Caetano” (LOURENÇO, 2013: 64).

Sem o devido debate sobre o seu passado colonizador, sem a autognose, Eduardo

Lourenço teme a volta dos “fantasmas maléficos da nossa história que periodicamente nos

visitam” (2013: 65). A revolução restituiu aos cidadãos os plenos direitos cívicos e atenuou as

relações de força entre as classes dirigente e trabalhadora, mas não conseguiu abordar e

transformar a necessidade de dignidade e autonomia nacionais. Argumentou apenas

ideologicamente sem alcançar o sentimento nacional do povo português. Para Eduardo

Lourenço, a revolução deveria ter investido no debate para criar um novo “sentido à altura de

uma nação carregada de recordações grandiosas e cicatrizes cruéis”. Mas: “Faltou-nos

imaginação” (LOURENÇO, 2013: 66).

A deformação da pacata Lisboa após a guerra colonial, com os retornados de África

que tanto surpreendeu a sociedade lusa e rendeu páginas à Literatura contemporânea, há

muito já tinha sido denunciada por Sena que demonstrou a coragem de dizer a verdade:

L’Été au Portugal [...] Que Portugal se espera em Portugal? Que gente ainda há-de erguer-se desta gente? Pagam-se impérios como o bem e o mal – mas com que há-de pagar-se quem se agacha e mente? [...] Soldados, prostitutas, tanto rapaz sem braços ou sem as pernas – e como cães sem faro os pilhas poetas se versejam trúfias. Velhos e novos, moribundos mortos, se arrastam todos para o nada nulo. [...] (SENA, 2013: 639-40)

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Rui Knopfli é outro poeta que demonstra a coragem de denunciar as consequências

de séculos de colonialismo na sociedade moçambicana. No poema “Não Obstante” o cenário

decadente descrito pelo sujeito poético se assemelha ao que Jorge de Sena desenha de Lisboa,

no poema acima citado. Tanto na metrópole como nas colônias, o Império Português mostra

sinais de ruína. Vive-se uma atmosfera tão reacionária que até a capacidade de sonhar fica

prejudicada. Vigilante, o poeta trabalha com amor seus versos que retratam uma “vida mal

vivida”, sem grandes expectativas. Ao contrário da imagem de harmonia e de progresso social

das colônias propagada pelo salazarismo, o poema trata de um triste e obscuro cotidiano:

Não Obstante... [...] Não obstante as pessoas caminhando tristes, as pessoas tristes sentadas, as pessoas que sonham sonhos impossíveis, ou não chegam sequer a sonhá-los os velhos de conjuntivite purulenta, as meninas olheirentas de regras dolorosas e todo este ar de náusea reacionária, nunca escrevi versos que não fossem de amor. Só amando, a vida, a vida mal vivida, a vida feia e estúpida de todos os dias, é que eu trabalho, dura e dificilmente, a madeira rija dos meus versos, sílaba a sílaba, palavra a palavra. [...] (KNOPFLI, 1982: 185)

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3 A Coragem da Verdade

I Criaremos uma pequena história maligna e sombria, quando, por sinónimos, dissermos a verdade lôbrega com barba de três dias [...] V Ó lôbrega verdade tão transida! aquece-te nos olhos secamente, secamente só com esta gente [...] (SENA, 2013: 121-22)

As últimas aulas dadas por Michel Foucault em 1984 foram publicadas sob o título

Le Courage de la Vérité (FOUCAULT, 2009). O filósofo vinha analisando o conceito da

parresia desde 1982 (GROS, 2009: 315). Frédéric Gros, que situa as aulas de Michel

Foucault no contexto acadêmico, defende que ele desenvolveu um conceito de verdade,

“résolument original” (GROS, 2009: 315), e que o enxergou como enraizado na filosofia

antiga grega mas ofuscado pelos regimes modernos de discursos e saberes.

A originalidade do enfoque de Foucault, segundo Gros, reside no fato de que ele não

analisa o conceito da parresia dentro dos quadros da epistemologia ou da história das

ciências. Foucault analisava os discursos da verdade com um enfoque nas suas condições

histórico-culturais de existência (GROS, 2009: 314).

No contexto teórico, Foucault enquadra a análise dos discursos da verdade no que

denominou de “ontologia dos discursos verdadeiros”. Não lhe interessam as formas

intrínsecas pelos quais os discursos verdadeiros ganham validez, mas sim os modos de ser que

eles implicam para os indivíduos que se servem deles. Foucault não analisa as estruturas

epistemológicas do dizer-verdadeiro, o que lhe interessa são as formas “aletúrgicas”, as

transformações éticas do sujeito, na medida em que faça depender de uma determinada forma

de dizer-verdadeiro o seu relacionamento consigo mesmo e com os outros (GROS, 2009:

315). Desta forma, Foucault propõe uma tipologia singular de estilos de veridição na cultura

antiga, cujo critério central de distinção é o tipo de relacionamento consigo mesmo e com os

outros implicado pela afirmação da verdade. Foucault distingue entre quatro estilos de

veridição: a veridição do ensino, da profecia, da sabedoria e a parresia (GROS, 2009: 316).

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3.1 A parresia

Foucault define o ponto de partida da sua análise da parresia como modalidade de

veridição da seguinte forma: o objetivo não é analisar as estruturas dos diversos discursos da

veridição. Não se trata de analisar as características específicas que façam com que um

discurso seja percebido como sendo verdadeiro. Não se trata de uma análise epistemológica.

O que interessa a Foucault é a análise das condições e das formas do tipo de ação pelo qual

um indivíduo se manifesta e é percebido pelos outros como alguém que fala a verdade:

Não se trataria de analisar, de forma alguma, quais são as formas do discurso, pelas quais este é reconhecido como sendo verdadeiro. Pelo contrário, teria que se analisar sob qual forma o indivíduo, no ato de dizer a verdade, se constitui ele mesmo e é constituído pelos outros como sujeito com um discurso da verdade. Sob qual forma se apresenta, aos seus próprios olhos e aos olhos dos demais, aquele que diz a verdade, qual é a forma do sujeito que diz a verdade (tradução minha) (FOUCAULT, 2009: 4)6.

Foucault chama isso de formas “aletúrgicas”, sendo que a aleturgia,

etimologicamente, é a criação da verdade, o ato pelo qual a verdade se manifesta

(FOUCAULT, 2009: 5). Portanto, o objeto de análise é a constituição social da verdade, as

formas de interação social que definem a construção da verdade e não as estruturas de

conteúdo que determinam se uma fala é verdadeira ou não.

Michel Foucault chega ao tema da parresia partindo da análise do problema da

relação entre o sujeito e a verdade, segundo ele uma questão tradicional da filosofia ocidental.

Foucault passou a analisar as relações entre sujeito e verdade de uma outra forma: não como

formas de falar a verdade sobre o sujeito, mas em função do discurso verdadeiro que o sujeito

é capaz de proferir sobre si mesmo dentro de formas culturalmente definidas e consagradas.

Este enfoque o levou a estudar a história das práticas do falar-verdadeiro sobre si mesmo.

O falar-verdadeiro sobre si mesmo é um princípio muito importante na moral e na

cultura antigas. Existe uma tendência de analisar as muitas formas do falar-verdadeiro

associando-as ao princípio socrático do gnôthi seauton (reconhece-se a si mesmo). Para

Foucault, no entanto, o gnôthi seauton é apenas uma parte de um princípio mais abrangente,

melhor dito, é a consequência de um princípio mais arcaico que é o princípio da epimeleia

heautou (cuidado de si, aplicação a si mesmo).

6 Il s’agirait d’analyser, non pas du tout quelles sont les formes du discours telles qu’il est reconnu comme vrai, mais: sous quelle forme, dans son acte de dire vrai, l’individu se constitue lui-même et est constitué par les autres comme sujet tenant un discours de vérité, sous quelle forme se présente, à ses propres yeux e aux yeux des autres, celui que dit vrai, [quelle est] la forme du sujet disant la vérité (FOUCAULT, 2009: 4).

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Partindo deste princípio da epimeleia heautou, desenvolveu-se uma “culture de soi”

(FOUCAULT, 2009: 6), caracterizada por uma variedade de práticas de si. Estas práticas de si

funcionaram como quadro histórico, dentro do qual se desenvolveu o imperativo do dizer a

verdade sobre si mesmo.

O dizer a verdade sobre si mesmo, na cultura da antiguidade (bem antes do cristianismo então), tem sido um atividade de vários indivíduos, uma atividade junto com os outros e, mais precisamente, uma atividade com um outro, uma prática a dois (tradução minha) (FOUCAULT, 2009: 7)7.

Enquanto no cristianismo e na sociedade ocidental, este outro é bem

institucionalizado, por exemplo na figura do confessor, e na cultura moderna no médico ou

psiquiatra, na cultura antiga o estatuto do outro não era fixo, era muito mais variável, menos

contornado e institucionalizado. Pode ser um filósofo ou professor, quer dizer um

profissional, mas também pode ser um amigo pessoal ou um amante, desde que seja alguém

maduro e sério. O papel deste outro também não é tão facilmente descritível, mas associa-se

em certo sentido à pedagogia e também à direção da alma. Pode manifestar-se como

aconselhamento político ou como prática médica.

Esta noção da parresia, da fala franca, que é uma característica fundamental da

personalidade do outro que o indivíduo precisa para falar a verdade sobre si, aparece em

muitos textos gregos e latinos. A noção da parresia refere-se sobretudo à direção da

consciência, à orientação espiritual e ao aconselhamento da alma. Apesar disso, a sua origem

é política e refere-se à análise da parresia no âmbito das práticas políticas, problematizando a

democracia e só mais tarde foi derivado para a ética individual e a constituição do sujeito

moral.

Etimologicamente, a palavra parresia significa dizer tudo. O parresiasta é aquele

que diz tudo, sem esconder nada. Numa conotação negativa, isso pode significar dizer

qualquer coisa. O que interessa a Foucault, obviamente, é a parresia no sentido positivo, o

que significa dizer a verdade toda sem dissimular nada, nem enfeitar com técnicas retóricas a

fala. Na opinião de Foucault, as duas características do dizer tudo e do dizer a verdade não

são suficientes para caracterizar a parresia.

Além disso, para estarmos diante de um caso de parresia, é necessário que o sujeito

que expressa a verdade como sendo a sua opinião, o seu pensamento e a sua convicção, corra

7 Le dire-vrai sur soi-même, et ceci dans la culture antique (donc bien avant le christianisme), a été une activité à plusieurs, une activité avec les autres, et plus précisément encore une activité avec un autre, une pratique à deux (FOUCAULT, 2009: 7).

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um risco ao fazê-lo. O risco de magoar o outro, ao qual a parresia está direcionada, de irritá-

lo e de provocar reações nele que podem levar até a violência física.

Resumindo, para que haja parresia, é necessário no ato da verdade: primeiramente a manifestação de uma ligação fundamental entre a verdade dita e a pensada por aquele que a disse; [em segundo lugar] pôr em questionamento a ligação entre os dois interlocutores (aquele que diz a verdade e aquele ao que a verdade está sendo dirigida). Dai surge esta nova característica da parresia: ela implica uma certa forma de coragem, cuja forma mínima consiste no fato de que o parresiasta arrisca de desfazer, de dissolver aquela relação com o outro que precisamente fez possível o seu discurso. De uma forma geral, o parresiasta sempre arrisca minar a relação que é a condição para o seu discurso ser possível (tradução minha) (FOUCAULT, 2009: 13)8.

Como consequência do risco que o parresiasta corre ao dizer a verdade ao seu

interlocutor, Foucault deduz a coragem como outra característica fundamental da parresia.

Isto se vê claramente na parresia como direção da consciência onde o parresiasta só pode

exercer o papel de guia quando existe amizade e confiança e onde o uso da verdade pelo guia

pode, justamente, levar ao risco de romper esta amizade. Esta é a forma mínima de coragem

que um parresiasta tem que ter. A forma máxima de coragem, porém, coloca em risco a

própria vida do parresiasta, quando este diz a verdade a um tirano, por exemplo.

Para que o jogo da parresia se desenvolva e se complete, é preciso uma última

característica: a coragem do interlocutor, ao que a parresia está direcionada, de aceitar a

verdade, por mais que ela lhe doa. Quando o parresiasta tem a coragem de dizer toda a

verdade e o interlocutor tem a coragem de ouvir e aceitar esta verdade, instala-se o pacto da

parresia.

A parresia é por consequência, por um lado, a coragem da verdade naquele que fala e corre o risco de dizer, a despeito de tudo, toda a verdade que ele pensa, mas a parresia é também a coragem do destinatário que aceita receber como verdadeira a verdade que machuca (tradução minha) (FOUCAULT, 2009: 14)9.

A parresia é o exato oposto da retórica, visto que a relação entre o locutor e o dito é

fundamental, já que o parresiasta diz o que ele pensa, no que ele acredita. Em contraposição,

a relação entre o locutor e o destinatário, o ouvinte é menos forte. Através do risco sempre

virulento de o destinatário não aceitar a verdade expressada pelo locutor, esta relação entre 8 En somme, pour qu’il y ait parrêsia, il faut que, dans l’acte de vérité, il y ait: premièrement, manifestation d’un lien fondamental entre la vérité dite et la pensée de celui qui l’a dite; [deuxièmement], mise en question du lien entre les deux interlocuteurs (celui qui dit la vérité et celui auquel cette vérité est adressée). D’où ce nouveau trait de la parrêsia: elle implique une certaine forme de courage, courage dont la forme minimale consiste en ceci que le parrèsiaste risque de défaire, de dénouer cette relation à l’autre qui a rendu possible précisément son discours. En quelque sorte, le parrèsiaste risque toujours de saper cette relation qui est la condition de possibilité de son discours (FOUCAULT, 2009: 13). 9 La parrêsia est donc, en deux mots, le courage de la vérité chez celui qui parle et prend le risque de dire, en dépit de tout, toute la vérité qu’il pense, mais c’est aussi le courage de l’interlocuteur qui accepte de recevoir comme vraie la vérité blessante qu’il entend (FOUCAULT, 2009: 14).

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locutor e destinatário se torna frágil. Para Foucault, o locutor retórico pode ser um mentiroso

que obriga o destinatário a ter uma certa opinião, enquanto o parresiasta corajosamente diz a

verdade, pondo em risco assim a sua vida e a relação com o destinatário10. Com a palavra,

Jorge de Sena:

Da Vida... não Fales Nela Da vida... não fales nela, quando o ritmo pressentes. Não fales nela que a mentes. Se os teus olhos se demoram em coisas que nada são, se os pensamentos se enfloram em torno delas e não em torno de não saber da vida... Não fales nela. Quanto saibas de viver nesse olhar se te congela. E só a dança é que dança, quando o ritmo pressentes. Se, firme, o ritmo avança, é dócil a vida, e mansa... Não fales nela, que a mentes. (SENA, 2013: 177)

Enquanto a retórica é uma técnica e o locutor retórico é um profissional, a parresia

não é uma profissão, senão uma atitude, uma postura, uma maneira de ser ligada à virtude.

Em vez de ser caracterizada como uma imagem da retórica, como uma técnica, a parresia

deve, segundo Foucault, ser caracterizada como uma das quatro modalidades do falar-

verdadeiro na antiguidade, sendo as outras três: (1) o falar-verdadeiro da profecia, (2) o falar-

verdadeiro da sabedoria e (3) o falar-verdadeiro do professor, do técnico, do mestre.

Observando o exemplo de Sócrates, que recebeu a sua função de parresiasta do

oráculo de Delfos, quando este foi perguntado quem seria o ser humano mais sábio da Grécia

(FOUCAULT, 2009: 26), Foucault analisa a deslocação da parresia do campo político para o

campo ético. Sócrates prefere o risco da morte à renúncia de dizer a verdade. Analisando dois

textos de Platão, Apologia (os discursos de defesa de Sócrates no processo pelo qual ele seria

10 De acordo com Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco, Rui Knopfli se declara um cínico, um fingidor (não só no sentido de Pessoa); é um poeta que assume a dicção dos “poetas malditos” e, intencional e descaradamente, engana o leitor com afirmações confessadamente mentirosas. Ele tem a coragem de dizer as verdades por meio de mentiras. Neste sentido, a parresia se dá por meio de inverdades, ironicamente, insinuadas e confidenciadas.

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condenado à morte) e o diálogo de Phaidon (cujo conteúdo é o último dia da vida de

Sócrates), Foucault mostra a diferença da parresia no plano político e no plano ético.

Sócrates não se envolve na parresia política, não porque ele não teria a coragem de

dizer a verdade, mas porque no palco político, ele ia correr o risco de morte e não conseguiria

cumprir a missão que ele recebeu do deus através do oráculo de Delfos. O objetivo desta

missão é velar sobre os outros como um pai ou um irmão mais velho, para cuidarem de si

mesmos, da sua razão, da verdade e da sua alma (phronêsis, alêtheia, psukhê). O si-próprio

(soi-même) em relação ao cuidar de si mesmo é constituído pela phronêsis, pela razão que

permite a tomada de boas decisões e o afastamento de opiniões falsas.

3.2 O cinismo

Ginástica Aplicada Meu verso cínico é minha terapêutica e minha ginástica. Nele me penduro e ergo, em sua precisão de barra fixa. Nele me exercito em pino flexível, sílaba a sílaba, movimento controlado de pulso, e me volteio aparatoso na pirueta lograda, no lance bem ritmado [...] (KNOFPLI, 1982: 186)

A coragem da verdade cínica consiste em dar uma imagem às pessoas daquilo que

elas valorizam no nível dos princípios, mas menosprezam ao mesmo tempo na sua própria

vida. O escândalo cínico consegue levar as pessoas a menosprezarem e rejeitarem a

manifestação do que elas valorizam no nível de princípios o que, mais uma vez, suscita a

cólera das pessoas.

Foucault pesquisa o cinismo como terceira etapa na história da coragem da verdade,

porque o cinismo, um modo de vida estritamente formalizado, se baseia fortemente no

princípio da veridição/da parresia. No cinismo, a conexão entre o modo de vida e a parresia é

direta, sem muita intermediação através de um corpo teórico elaborado. Foucault defende que

o cinismo não é apenas uma figura da filosofia antiga, senão uma categoria moral histórica

que atravessa em diferentes formas e com diferentes objetivos toda a História da humanidade

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ocidental. A parresia é diretamente associada ao cinismo, pois o cínico é um emissário que

está à frente da humanidade para ver a verdade e voltar para dizê-la, sem nunca se intimidar.

O cínico é alguém sem pátria. O modo de vida cínico tem funções precisas: (a)

função instrumental para a parresia: para ser emissário e descobrir e dizer a verdade, não se

pode ter ligações; (b) função redutora para a parresia: é preciso desfazer-se de todas as

convenções e convicções supérfluas, limpar a existência e as convicções para deixar aparecer

a verdade; (c) função de prova para a verdade: descobrir as necessidades básicas para viver e

desta forma descobrir o ser elementar e original da vida.

Pode-se dizer que o cinismo não se contenta com a fabricação de uma concordância

entre a vida e os princípios do discurso: o cinismo transforma a vida (bios) numa

manifestação direta da verdade (aleturgia). O cínico é uma testemunha da verdade: na sua

vida e através da sua vida ele escandaliza a verdade, realiza o escândalo da verdade ao fazer a

exposição dos fatos da vida verdadeira.

Independência Recuso-me a aceitar o que me derem. Recuso-me às verdades acabadas; recuso-me, também, às que tiverem pousadas no sem-fim as sete espadas. [...] Recuso-me à inocência e ao pecado como a ser livre ou ser predestinado. Recuso tudo, ó Terra dividida! (SENA, 2013: 127-8)

Atitude semelhante, observa-se nos seguintes versos de Knopfli, assim como Sena,

um poeta que rejeita os padrões e se empenha na busca da verdade:

[...] Dispo de mim os falsos amplexos, os liames de inibitórias obrigações os tumores fictícios que devoram o movimento e peiam de lampejos enganadores os rumos verdadeiros. [...] Reajo às antigas e estipuladas fronteiras, junto o meu sangue às mil pulsações do inquieto momento. [...] (KNOFPLI, 1982: 93)

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3.2.1. O cinismo como construção da verdade

Foucault defende que existem no mínimo três elementos que conseguiram transportar

o modo de existência cínica em formas diferentes através da História ocidental, primeiro na

antiguidade cristã e depois na modernidade: (1) herança religiosa: ascese cristã; (2) herança

política: revolução como estilo de vida; (3) herança estética: a arte moderna.

Outra continuação da forma de existência cínica na modernidade é o cinismo

entendido como forma de vida no escândalo da verdade, visto nas práticas políticas. A ideia

deste modo de vida é a manifestação repentina, violenta e escandalosa da verdade na

revolução. Além de um projeto político, a revolução era também um estilo de vida que se

manifestava no ativismo durante os séculos XIX e XX.

O terceiro vetor do cinismo ou do estilo de vida como escândalo da verdade na

filosofia ocidental, segundo Foucault, é a arte. Na Europa medieval e cristã, a comédia e a

sátira eram lugares privilegiados para a expressão de temáticas cínicas. Toda a literatura

ligada às festas e ao carnaval também seriam lugares prediletos para a expressão de temáticas

cínicas.

A arte é capaz de dar à existência a forma da vida verdadeira. Por consequência, a

vida do artista, como vida verdadeira, é uma garantia de que toda obra que nela se

fundamenta, pertence à esfera da arte. De acordo com Foucault, a vida do artista é a condição

primordial para a obra de arte, certifica a criação artística e, em certo sentido, é ela própria

uma obra de arte. De tal forma, a vida do artista reproduz o princípio cínico da vida como

manifestação de uma ruptura escandalosa.

A ideia de que a arte constitui uma relação com a realidade, na qual ela não é mera

imitação ou beleza, é outra razão pela qual a arte dá continuidade ao cinismo na modernidade.

A arte é o lugar, onde o baixo de uma cultura, que não tem o direito ou a possibilidade de

expressão, se manifesta. A produção artística é uma manifestação do elementar, a revelação

da existência elementar e a sua reconstituição violenta. Na modernidade, a arte é uma das

formas mais intensivas de veridição, de parresia, defende Foucault.

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3.2.2 O cinismo e a construção da vida verdadeira: a outra vida

O cinismo é uma forma de parresia que se manifesta num determinado estilo de

vida. O modo de se levar a vida como testemunha da verdade. O cinismo é a prática da

aleturgia e daí surge a temática da vida verdadeira, importante tanto na filosofia antiga, como

na espiritualidade cristã e na ética política. “O que é a vida verdadeira”(?), é uma pergunta

absolutamente central na história do pensamento filosófico e espiritual ocidental.

A verdade (aletheia) e o verdadeiro (alethes) se definem, segundo Michel Foucault,

por quatro componentes centrais: (1) o a-lethes, o não ocultado e não dissimulado; (2) aquilo

que não contém nenhum acrescimento, nenhum complemento, nenhuma mistura; (3) aquilo

que é reto; (4) aquilo que continua existindo além de qualquer mudança, que se mantém na

sua identidade, na sua invariabilidade e na sua imortalidade. Esta verdade com quatro

dimensões se aplica as formas de ser, as atitudes, modos de comportamento, e também ao

logos, entendido como modo de falar.

A ideia da vida verdadeira no cinismo está estreitamente associada ao conceito de

“mudar o valor da moeda” (FOUCAULT, 2009: 208). O que significa? Por um lado existe

uma paralelidade entre as noções gregas moeda (nomisma) e lei (nomos). Mudar o valor da

moeda implica, portanto, ao mesmo tempo, uma certa atitude frente à lei, às convenções e às

regras. Por outro lado, mudar o valor não significa desvalorizar a moeda, senão implica a

mudança da imagem da moeda por uma outra imagem que lhe permite circular com o seu

verdadeiro valor. O valor intrínseco da moeda é restituído, enquanto se lhe cunha uma

imagem mais adequada e diferente da vida. No cinismo, com vista à vida verdadeira, isso

significa que a moeda da vida verdadeira é recunhada de forma mais similar possível ao valor

original da moeda.

O cinismo não altera o metal da moeda da vida verdadeira, mas cunha uma imagem

nova, levando ao extremo os princípios da vida verdadeira. Com isso, aparece uma vida

oposta à que tradicionalmente era reconhecida como vida verdadeira. O cinismo neste sentido

funciona como outra face da vida verdadeira. “Mudar o valor da moeda” para restabelecer o

seu verdadeiro valor. “Mude o valor da moeda” e “reconhece-se a si mesmo” são os valores

fundamentais do cinismo.

O princípio do “mudar o valor da moeda” só é possível através do

autorreconhecimento, que substitui o dinheiro falso da opinião que o indivíduo tem sobre si e

que os outros têm sobre o indivíduo, pela moeda verdadeira do autoconhecimento. As

interpretações da fórmula da moeda sempre giram em torno da noção grega nomisma como

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moeda/dinheiro, mas também em torno da noção nomos como lei e costume. Mudar o valor

da moeda neste sentido significa mudar o costume, romper com as convenções e as leis,

quebrar as regras e os hábitos.

De acordo com Foucault, o cínico tem a missão de dizer a verdade, ele é o anjo da

verdade. A prática da verdade assume várias formas. Primeiramente, a relação com a verdade

é uma relação direta, uma relação de concordância no comportamento e até no corpo. A vida

cínica também deveria incorporar um exato autoconhecimento. O autorreconhecimento, a

autognose adota dois aspectos: o cínico sempre deve ser capaz de avaliar corretamente as suas

capacidades para que possa passar nas provas que lhe esperam e evitar que seja derrotado e a

autognose não deve só ser um autoconhecimento, senão também uma vigilância sobre si

mesmo.

O cínico vigia a si mesmo e aos outros: essa é mais uma função, uma modalidade da

prática da verdade. Porém, o cínico não é alguém que se intromete na vida dos outros, ele se

preocupa com os outros na medida que se preocupa com aquilo nos outros que são traços da

humanidade e assim, o cínico também se preocupa consigo mesmo. Fazendo a analogia com o

general que inspeciona a sua tropa, o que lhe interessa não é a vida individual do soldado,

senão o seu comportamento no que tange a sua característica enquanto membro do exército.

Em nome da batalha cultural que “ainda está longe de ter sido ganha” em Portugal, o

cínico Jorge Sena pede aos demais escritores portugueses que não se esqueçam do espírito

vanguardista da geração do ORPHEU e que “trabalhem por um Portugal novo — mas chame-

se a essa tarefa todo um passado que longamente foi impedido de nos transmitir a sua

mensagem” (SENA, 1988: 274).

3.3 Baco: o falso deus fala a verdade

Como epígrafe desta Tese, cito O Auto da Lusitânia de Gil Vicente (1465?-1537).

Selecionei o trecho no qual Belzebu, após observar o diálogo entre dois tipos vicentinos,

ordena a seu auxiliar, Dinato, que anote em um livro as conclusões extraídas sobre “Todo o

Mundo” e “Ninguém”.

“Todo o Mundo” é representado por um rico mercador que busca cada vez mais

dinheiro, sem a consciência de o quanto essa riqueza se deve ao trabalho e à miséria dos

outros. A honra sem virtude, o gosto pelo engano e o talento inato para mentir são falhas de

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caráter confessadas por “Todo o Mundo” a “Ninguém”. Entretanto, Belzebu é testemunha de

tudo, não deixa nada passar sem o seu devido registro. Por esta razão, o diabo vicentino lança

mão da escrita para que possa, futuramente, chegar a um justo veredicto sobre os rumos de

cada alma. Pelo visto, “Todo o Mundo” do Auto da Lusitânia corria o risco de seguir a rota da

Barca do Inferno e “Ninguém” conseguiu ingressar na Barca da Glória11.

Apesar de sua natureza subversiva, Belzebu registra cada palavra, sem inverter o

sentido original do que foi dito. No papel de analista da sociedade portuguesa de sua época, o

diabo vicentino é fiel às circunstâncias que geraram sua escrita. Não distorce o sentido das

palavras para se favorecer, em detrimento da verdade. Pelo contrário, no cenário apresentado

por Gil Vicente, Belzebu faz a veridição da verdade no Auto da Lusitânia. Processo

semelhante, o de se dizer a verdade pela voz de um falso deus, ocorre na epopeia camoniana

na vigorosa atuação de Baco contra o projeto expansionista lusitano. Acerca deste artifício

utilizado por Camões, comenta Jorge de Sena:

muito apenas a obra poder ter sido escrita, por exemplo, em tempos conturbados, quando seria perigoso afirmar declaradamente certas ideias, ou torná-las demasiado evidentes numa estrutura, e também porque seria da vera essência de tais ideias a exigência de que fossem “ocultadas” (SENA, 1978: 449).

As imagens escolhidas por Luís de Camões para a abertura do seu poema épico

sinalizam bem as reais intenções do povo português. Logo no primeiro verso, os substantivos

“armas” e “barões” apontam para uma violenta investida contra outras civilizações, na

conquista de novas riquezas para alimentar a fome de glória do império lusitano. Como a

tomada de outras terras deveria ocorrer por um caminho marítimo, coube aos portugueses a

tarefa de desvendar as rotas marítimas para o Oriente, até o mar se tornar um vício n’alma, a

incessante busca dos argonautas lusitanos de um “porto sempre por achar” (PESSOA, 2008:

131). Desta forma, antes de os portugueses conquistarem novas terras, tornaram-se os “donos

do mar”.

As Armas e os barões assinalados Que, da Ocidental praia Lusitana, Por mares nunca de antes navegados, Passaram ainda além da Taprobana [...] (Lus. I, 1, 1-4)

Em seu estudo sobre o vocabulário do poema épico de Camões, Sena comenta:

11 Refiro-me ao Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, que retrata com vivacidade e ironia a viagem post mortem de diversos tipos da sociedade portuguesa, do início do século XVI. A maioria (do fidalgo ao sapateiro), sem o devido ingresso celestial, singra a rota em direção ao Inferno.

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as palavras não poderão significar mais do que significariam no seu tempo (ainda que devamos não esquecer a vastidão e a profundidade da cultura que foi a dele), e foram escolhidas para significarem exatamente o que ele desejava que elas significassem (mesmo quando ele joga com a ingenuidade do leitor comum, fazendo-o crer que as palavras não declaram mais do que, na aparência, se esperaria que declarassem) (SENA, 1978: 450).

Primeiro as armas, seguidas dos que vão manuseá-las: os barões, por esta razão

também, assinalados. Escolhidos por manejarem bem as armas, um enorme arsenal bélico

como mostra o poema logo no primeiro canto (I, 66-68). Vasco da Gama revela parte do seu

poder de fogo para um mouro, em Moçambique, onde o contato travado era ainda amigável.

A rota lusitana seguia já mar alto, bem avançada em direção ao Oriente, quando Baco decide

entrar em cena disfarçado, primeiramente, de mouro.

Temendo cair no esquecimento, com a chegada dos “cristãos sanguinolentos” no

Oriente, Baco reage contra as ordens soberanas de Júpiter que, seduzido por Vênus, ordena

passagem livre e proteção aos lusitanos, gente querida de sua filha.

Enquanto isto, se passa na fermosa Casa etérea do Olimpo o(m)nipotente, Cortava o mar a gente belicosa Já lá da banda do Austro e do Oriente Entre a costa Etiópica e a famosa Ilha de São Lourenço [...] (Lus. I, 42, 1-6)

O que interessa especialmente nesta passagem d’Os Lusíadas é o discurso de Baco,

descrito por Camões, no primeiro lugar de confronto armado entre portugueses e africanos, na

rota de Vasco da Gama. A passagem lusitana pela Ilha de Moçambique denuncia a extrema

violência e covardia utilizadas pelos invasores europeus contra a indefesa população local. A

escravidão assume outro significado com a chegada dos europeus à África. Não mais cativo

por dívida ou por guerra, mas o negro era considerado uma “peça”, uma mercadoria. Vários

grupos portugueses dominaram com exclusividade o tráfico de escravos nos dois lados do

continente africano durante o século XVI. O primeiro contato dos portugueses com os

africanos é assinado pelas armas dos “barões assinalados”:

Não se contenta a gente Portuguesa, Mas, seguindo a vitória, estrui e mata; A povoação sem muro e sem defesa Esbombardeia, acende e desbarata. (Lus. I, 90, 1-4)

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Enquanto Vênus zela pelo bem da gente lusitana, Baco entra em desespero, chegando

a transformar o seu eterno rosto jovem em um “velho sábio”. O deus da metamorfose

incorpora formas humanas na sua missão divina de alertar e preparar os africanos para a

chegada dos exploradores. Assumindo a forma “Dum mouro, em Moçambique conhecido, /

Velho sábio, e co Xeque mui valido” (Lus. I, 77), Baco denuncia as verdadeiras intenções do

fero lusitano. Muito embora Camões use adjetivos como falso, odioso, ou ainda enganoso ao

referir-se ao deus Baco, este também acusa a gente lusitana de falsidade. Um jogo de

espelhos:

E sabe mais (lhe diz), como entendido Tenho destes cristãos sanguinolentos, Que quase todo o mar têm destruído Com roubos, com incêndios violentos; E trazem já de longe engano urdido Contra nós; e que todos seus intentos São pera nos matarem e roubarem, E mulheres e filhos cativarem. (Lus. I, 79)

Mesmo que movido por razões particulares, Baco surge como uma voz divina a favor

do povo conquistado, no caso os africanos. Ciente da determinação do Fado soprando a favor

dos argonautas, Baco se torna um africano em seu discurso anticolonialista. Um “velho sábio”

discursando contra a “vã cobiça” lusitana, não se manifesta somente na voz de Baco. O Velho

do Restelo, cidadão português, referenda as palavras de Baco sobre as verdadeiras intenções

dos portugueses, disfarçadas sob a capa do desejo de fama e de glória: “Já que nesta gostosa

vaïdade / Tanto enlevas a leve fantasia, / Já que à bruta crueza e feridade / Puseste nome

«esforço e valentia»” (Lus. IV, 99, 1-4).

Seguindo a rota lusitana, na próxima parada em Mombaça, Baco se transforma em

um cristão, com direito a altar, no intuito de atrair o Gama e toda a sua armada para uma

cilada fatal. Não fosse a interferência de Vênus, que convoca as “alvas filhas de Nereu / [...]

com todos juntamente se partia / Pera estorvar que a armada não chegasse / Aonde pera

sempre se acabasse” (Lus. II, 18). Baco novamente não obtém êxito em sua perseguição aos

“cristãos sanguinolentos”.

O prejuízo causado pela dos violência invasores europeus em África é reclamado

pela Natureza. Em seu estudo sobre as alusões a personagens mitológicas ou históricas

cantadas por Camões, Sena chega às seguintes conclusões acerca da ocorrência da palavra

mãe no poema épico:

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A primeira a ser mencionada é Agar de judaica memória (I, 52), e a segunda é a que protesta contra a retaliação que Vasco da Gama infligiu aos indígenas de Moçambique (I, 90). A terceira é dupla, a mãe de Baco (II, 10), quando Camões diz que Baco, detentor de eterna juventude, havia nascido de duas mães (Sémele e a coxa de Zeus). A seguinte é a aurora como mãe de Mémnon (II, 92), e como tal outra vez referida em IX, 51. Repare-se em como as mães aparecem: a primeira é bíblica, a segunda é uma mãe genérica que clama contra os desastres da guerra, a terceira é uma estranha combinação de sexo originário, e a quarta mãe, na verdade, só a Aurora (SENA, 1978: 462).

Segundo Jorge de Sena, em seu poema épico, Camões utiliza a palavra “santo” para

designar “qualquer homem bom, cuja santidade e senso de justiça não funcionam neste nosso

mundo [...] e o próprio Baco assume a forma de um santo homem [...]” (SENA, 1978: 455-6).

O “falso deus” é quem demonstra verdadeira amizade pelos africanos, chegando a chorar

quando confessa o seu amor. Qual um cínico, na definição de Foucault, o Baco da epopéia

camoniana mostra interesse com o outro, zela pelo bem do outro.

Na viagem pessoal camoniana, no final do poema épico, Camões encontra-se com o

espírito abatido, cansado de tão dura viagem e reclama, qual Baco, do abandono. Acerca dos

“Trabalhos e os Dias” de Camões, escreve Knopfli:

O Regresso dos Lusíadas Vela parda, barca sem leme ao leme da aventura desventurada, à praia original regressamos: granito e basalto, livor de estátuas perfiladas, friagem do sono sem sonhos As chagas do tempo e da febre, as cicatrizes da ausência e do olvido, emprestam à madeira ardida dos rostos a pintura de estrangeiros. Incómoda memória sangrada em silêncio, ao longo da noite perplexa, à praça original regressamos: surda e endurecida no gosto da cobiça, não concede a pátria o favor que havia de acender o engenho. E a magra tença, se mal resguarda o corpo enfermo, menos guarda o inverno da alma. Em cinzas e sombras no abismo baixaremos: esconjuros e autos-de-fé não logram corromper a árdua incomburência do testemunho que somos; mais que a fria

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laje da hipocrisia, durará o remorso desta voz enrouquecida. (KNOPFLI, Disponível em <http://petromax-x.blogspot.in/2011/09/o-regresso-dos-lusiadas.html>. Acesso em 26 abr. 2015.)

Sobre a ocorrência da palavra demónio e suas variações em Os Lusíadas, Sena

destaca a passagem na qual os magos da Índia

haviam reconhecido «por sinais diabólicos e indícios» que eram obra do Demo verdadeiro, o que para a Índia significava a chegada dos portugueses. [...] O grande problema é evidentemente que o Demo é verdadeiro não só por, no caso, ser real, mas porque os magos haviam visto o que seria a verdade histórica (SENA, 1978: 475).

Uma das possíveis denominações, ou configurações de Baco, é um dáimon, uma

espécie de guia inspirador dos poetas. Jorge de Sena e Rui Knopfli navegam por rotas

camonianas, guiados e inspirados pela coragem da verdade de Baco: o deus da metamorfosis.

O Camões gênio inspirador dos escritores que lutaram contra o sistema colonial., revelado por

Sena:

Tem sido uma continua campanha para dar a Portugal um Camões autêntico e inteiramente diferente do que tinham feito dele: um Camões profundo, um Camões dramático e divido, um Camões subversivo e revolucionário, em tudo o homem do nosso tempo, que poderia juntar-se ao espírito da revolução de Abril de 1974, e ao mesmo tempo sofrer em si mesmo as angústias e as dúvidas do homem moderno que não obedece a nada nem a ninguém senão à sua própria consciência (SENA, 2011b: 327) (Discurso da Guarda)

Sena e Knopfli são poetas da falange dos “malditos” que resistiram em tudo, como

ordenou Baco ao povo africano. O poeta moçambicano escreve em

Hereditariedade Por trazer os olhos, a risca do cabelo e a gravata, Onde os demais os usam habitualmente, Não se descortina logo em mim o anjo caído, O anjo só traído por certa fixidez quase imperceptível do olhar, o anjo que, em mim, perigosamente se dissimula Esse que faz de mim um descendente em linha sinuosa de François Villon poeta maldito, ladrão e assassino, [...] do Shakespeare, pederasta e agiota de Charles Baudelaire, corruptor e perverso [...] do Genet ratoneiro, desleal, corrécio [...] o meu lenitivo procuro-o no lazer, no tépido e moreno recolhimento que se acha entre as pernas de uma rapariga,

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[...] o álcool, a coca e certas taras são outras tantas razões plausíveis de sermos o tal anjo caído e maldito que em mim se dissimula no trazer, onde o trazem os demais, os olhos, a risca do cabelo e a gravata. (KNOPFLI, 1982: 238-9)

O deus do entusiasmo não desiste da luta contra a expansão portuguesa. Baco surge

para “um devoto / Sacerdote da Lei de Mafamede” (Lus. VIII, 47, 2) em forma de sonho no

Canto VIII e, referindo-se à ameaça lusitana, “ordena como em tudo se resista” (Lus. VIII, 50,

2). Resistir à dominação, não se submeter às determinações do Fado e manter o compromisso

com a verdade: eis as lições do Baco de Camões.

[...] Baco odioso em sonhos lhe aparece, [...] E diz-lhe assi: “Guardai-vos, gente minha, Do mal que se aparelha pelo immigo, [...] Isto dizendo, acorda o Mouro asinha, [...] Cuida que não é mais que sonho usado. Torna a dormir, quieto e sossegado. Torna Baco, dizendo: [...] [...]

Enquanto é fraca a força dessa gente, Ordena como em tudo se resista, [...] (Lus. VIII, 47-50)

Baco, o deus dos camponeses, assume a voz dos excluídos, e usa os seus poderes

contra as “gentes roubadoras” (Lus. I, 78, 3) vindas do Ocidente. Ideia similar defende Jorge

de Sena no poema “A Portugal” e em outros poemas, em que ataca o ideal expansionista que

transformou Portugal numa “terra de ladrões e prostitutas”. Vasco da Gama jamais usaria tais

termos para descrever a gente de Portugal.

A figura de Baco é convenientemente emblemática nesta prática mito-poética-política, da qual Camões estava cônscio, e com a qual se alinhou, escolhendo Baco por anti-herói d’Os Lusíadas porque com ele se identificava; e porque pretendia, transformando-o em signo poético, veicular não só a revolta provocada pelo seu próprio banimento, como ainda a heterodoxia postulada por seus pares, respondendo assim a um duplo desafio (NÓBREGA, 2012: 48).

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O “falso deus” fala a verdade acusando os nautas portugueses de um comportamento

insidioso, comprovado pela História. “Fama” e “glória” são adjetivos bastante utilizados no

poema épico, da mesma forma que “fero” é largamente usado para caracterizar a natureza dos

colonizadores. Os sentimentos e as pretensões dos lusitanos são falsamente mostrados ao

povo africano. Realmente, os portugueses mataram, exploraram e cativaram novos inimigos

em África, como Baco havia afirmado. As palavras de Knopfli confirmam esta verdade

secular. No poema que segue, o colonizador é retratado como um “monstro” uma besta que

“sobressalta cidade”, espalhando “um pânico atônito”. Durante a luta pela independência de

Moçambique, registra o poeta:

OUTUBRO 1969 [...] Mergulharemos na noite inospita e pejada de gemidos: só terá coordenadas e, características e cheiro, o nosso medo, [...] A paisagem é a mesma, O monstro todavia desencadeia já a sua ofensiva. Não o vêem, não o vêem os demais, só o nosso medo lhe conhece o santo e a senha, o rosto sem nome, os olhos em cor, os dentes sem boca. [...] (KNOPFLI, 1982: 311)

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4 Sinais de Fogo na Literatura Portuguesa

Nascido em Lisboa, no dia 2 de novembro de 1919, Jorge de Sena ingressa na Escola

Naval no ano de 1937 e, como cadete da Marinha, viaja para a Ilha das Canárias, Brasil,

Cabo-Verde, São Tomé e Angola. Dispensado pela Marinha de Guerra, Sena se forma em

Engenharia Civil pela Universidade do Porto, em 1944. Entretanto, o jovem Sena já escrevia

desde 1936 e publicava “poesia, mas em jornais de pouca ou nenhuma repercussão nos meios

literários” (LISBOA, 1984: 36).

Fernando Pessoa escreve os últimos poemas de Mensagem em 1934 e logo em

seguida surgem novos Sinais de Fogo na poesia portuguesa. Sob o pseudônimo Teles de

Abreu, Jorge de Sena desponta no contexto literário português. Em 1940 publica seus poemas

nos Cadernos de Poesia, lançando o livro Perseguição dois anos mais tarde.

A poesia torna-se um “hábito”. Daí por diante, Sena produz uma vasta obra, expressa

tanto em prosa quanto em poesia, além de atuar como dramaturgo, ensaísta e crítico literário.

“De 1938 a 1978, dando testemunho de si, do Outro, do Mundo, sob as coordenadas

circunstanciais de um tempo (de que o espaço é correlato), Jorge de Sena cumpriu seus 40

anos de servidão ao literário” (SANTOS, 1996: 160).

Para Sena, a poesia representa “[...] um desejo de exprimir o que entendo ser a

dignidade humana: uma fidelidade integral à responsabilidade de estarmos no mundo”

(SENA, 1984a: 171). Jorge de Sena assume o leme da literatura portuguesa, traçando uma

rota no sentido contrário à do fingimento pessoano: “[...] sou apenas um balão cheio dessa

verdade do mundo” (SENA, 2013: 83). A poética defendida por Sena é a do testemunho,

entendido como

[...] a mais alta forma de transformação do mundo, porque nele, com ele e através dele, que é antes de mais linguagem, se processa a remodelação dos esquemas feitos, das ideias aceites, dos hábitos sociais inconscientemente vividos, dos sentimentos convencionalmente aferidos. [...]. Testemunhar [...] – eis o que foi, e é, para mim, a poesia (SENA, 2013: 726).

O personagem autobiográfico Jorge, no romance Sinais de Fogo, viaja para a

Figueira da Foz, onde toma conhecimento da Guerra Civil Espanhola e da interferência do

conflito vizinho na política de Portugal. Segundo Jorge fazenda Lourenço, Sinais de Fogo “é

um romance de aprendizagem ou de formação, que nos dá a ler o nascimento de Jorge, o

protagonista, para a poesia” (LOURENÇO, 2012: 81)

A tomada de consciência crítica de Jorge ocorre ao mesmo tempo em que se envolve

num triângulo amoroso com Mercedes. O êxtase sexual fecunda de poesia a alma do jovem

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que se realiza como homem. A iniciação poética consagra-se pela via erótica. As

circunstâncias políticas e a descoberta do amor concorrem igualmente para o despertar do

poeta. Assinalado pela poesia, Jorge encontra-se preparado, munido de versos, para iniciar sua

guerra:

As coisas que tinham acontecido – arrastando toda a gente para uma realidade crua e imediata – impediam que todos continuassem calmamente a ser, com inocência ou sem ela, o que tinham sido até ali. A Guerra Civil Espanhola fizera isso. [...] A minha guerra [...] começava agora (negritos meus) (SENA, 1984b: 295).

Como já havia observado em minha Dissertação de Mestrado (ALFAMA, 1995a), o

potencial subversivo da escrita seniana já podia ser detectado desde o livro de contos Génesis,

escrito na juventude. Na segunda parte da narrativa, ocorre o confronto entre Caim e Deus.

Este, ciente da morte de Abel, inquire Caim, que se revolta com Deus por não ter interferido a

fim de evitar o fratricídio, apesar de deter o poder da onisciência. Caim prefere traçar o seu

próprio rumo, desprezando o caminho oferecido por Deus através da ponte construída pelos

anjos sobre o abismo. Assim como sua mãe Eva, Caim optou pela independência, pela

liberdade, pela expulsão do Paraíso.

Caim atira fora suas vestes, reinaugurando, através de seu corpo, a experiência

iniciada por Eva que, após experimentar o fruto proibido e deparar-se com Deus, tapa o corpo

“com um braçado de folhas de parra” (SENA, 2014: 34). Ao invés de cobrir-se, envergonhado

da presença divina, o fratricida expõe-se para envergonhar seu criador. Faz de seu corpo ao

mesmo tempo arma de defesa e de acusação contra Deus: Caim afronta a Deus com a nudez

de seu corpo e de suas palavras.

[...] Eu nunca teria matado o meu irmão se não tivesses provocado... [...]. Se somos maus a culpa é tua! [...]. Irei por esse mundo fora gritar o meu crime que é a tua baixeza até cair exausto seja onde for, aqui ou além, agora ou daqui a tempo... E morrerei então... Mas morrerei contente! Saciado! Porque todos os que passarem pelos meus ossos dirão – Este é Caim, a vítima de Deus... (SENA, 2014: 42-3).

Caim torna-se o proscrito, a “vítima de Deus”. Pelo seu caráter questionador,

rebelde, dá seguimento à revolução iniciada por Eva. Caim reage contra a tirania divina e

trilha o seu próprio caminho, seguido pelo cordeiro. O animal sacrificial, a oferenda preferida

de Jeová, segue os passos de Caim que não imolava animais para agradar a Deus. A morte de

Abel restabelece o equilíbrio, desfaz o esquema divino de desigualdade entre os irmãos. O

cordeiro, outra vítima de Deus pelas mãos de Abel, prefere a companhia de Caim que

eliminou o seu algoz. É a natureza que acompanha o homem.

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Interpreto a atitude de Caim, diante do questionamento de Deus, como uma forma

socrática de dizer a verdade. Acerca da atitude de Sócrates, diante da profecia do oráculo de

Delfos do deus Apolo, considera Michel Foucault:

Sócrates realiza uma investigação para saber se o oráculo falou a verdade. Ele quer pôr à prova o que o oráculo disse. Ele insiste em submeter esse oráculo à verificação e usa, para designar a modalidade desta investigação, uma palavra característica. Esta palavra, que é importante, é a palavra elegkhein, que significa: fazer repreensões e objeções, questionar, submeter alguém a um interrogatório, opor-se ao que alguém disse para descobrir se o dito está certo ou não (tradução minha) (Foucault, 2009: 75-6)12.

Outro aspecto da atitude socrática diz respeito à coragem para falar a verdade. A

exetasis, o questionamento e interrogatório dos outros mediante elegkhein (questionamento,

contestação). O gesto irreverente de Sócrates rendeu-lhe muitas reações hostis. Mesmo assim,

ele não se deixou frear pelos perigos, pelos riscos inerentes à sua ação. O objetivo desta

missão é velar sobre os outros como um pai, um irmão mais velho, ou mesmo um cão de

guarda. “Sócrates é alguém que tem uma missão, quase uma profissão, em todo caso ele tem

um mandato” (tradução minha) (FOUCAULT, 2009: 79)13.

Caim, no conto de Génesis, demonstra um comportamento em relação a Deus,

comparável à veridição socrática: o personagem de Sena já não aceita passivamente os

veredictos de Jeová, (como Sócrates não aceita o oráculo de Delfos) e passa a questioná-lo.

Tal como Sócrates cogita a possibilidade de refutar o oráculo, o fratricida rejeita o julgamento

de Deus sobre a morte de Abel e se rebela. Caim serve-se de elegkhein: questiona e repreende

o discurso divino, chegando à conclusão de que não está certo o que Deus fala.

Caim assume a coragem de falar a verdade a Deus, liberta-se do domínio de um

tirano e traça o seu próprio destino, baseado no questionamento e na razão, tal como o propõe

Sócrates: O si-próprio também é determinado pela verdade, pela alêtheia, na medida em que

ela é a referência para a ação da razão. A razão procura pela verdade e a alcança no final. A

verdade, ao mesmo tempo, é o ser fundamentado na alma, na psukhê. A consequência da

libertação e da coragem da verdade significa, para Caim, o exílio:

12 La recherche que Socrate entreprend est une recherche [visant] à savoir si l’oracle a dit vrai. Socrate veut faire l’épreuve de ce qu’a dit l’oracle. Il tient à soumettre cet oracle à la vérification. Et il emploie, pour désigner la modalité de cette recherche (zêtêsis), un mot caractéristique, qui est important. C’est le mot elegkhein, qui veut dire: faire de reproches, faire des objections, questionner, soumettre quelqu’un à un interrogatoire, s’opposer à ce que quelqu’un a dit pour savoir si ce qui a été dit tient bien ou ne tient pas (Foucault, 2009: 75-6). 13 Socrate, lui, est quelqu’un qui a une mission, on pourrait presque dire un métier, il a en tout cas une charge (Foucault, 2009: 79).

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Vou para onde a minha vontade me levar! Ofereces-me um mundo novo! Tudo quanto quiser conquistarei! Vou com a minha vontade! Ela é mais forte do que tu! (SENA, 2014: 43).

Não menos conflituoso é o diálogo travado entre Jorge de Sena e o Portugal do

regime fascista de António de Oliveira Salazar. A revolta de Sena contra os valores impostos

pela ditadura portuguesa permanece nas publicações após sua saída de Portugal, até mais

agudamente reavaliada pela distância. De acordo com Edward Said, “obstinação, exagero,

tintas carregadas são características de um exilado, métodos para obrigar o mundo a aceitar

sua visão (SAID, 2003: 55).O exílio não se configura como o estado plácido ou seguro.

Contudo, Said admite que há um certo prazer no exílio: “Ver «o mundo inteiro como uma

terra estrangeira» possibilita a originalidade da visão” (SAID, 2003: 55).

Sobre o aumento da produção literária de Sena no período em que esteve exilado no

Brasil (1959 – 1965), observa Gilda Santos que “uma inaugural experiência de liberdade [...]

se traduz em espantosa explosão criativa” (SANTOS, 2009: 8). Amargando um sentimento de

rejeição e abandono, Sena questiona: “ao que chega, aos cinquenta anos, um poeta ou

dramaturgo ou ainda ambas as coisas, se nasceu português?” (SENA, 1985b: 14) Jorge de

Sena sai do “País dos Sacanas”, porém sem nunca abandonar Portugal.

No País dos Sacanas Que adianta dizer-se que é um país de sacanas? Todos o são, mesmo os melhores, às suas horas, e todos estão contentes de se saberem sacanas. Não há mesmo melhor do que uma sacanice para fazer funcionar fraternamente a humidade da próstata ou das glândulas lacrimais, para além das rivalidades, invejas e mesquinharias em que tanto se dividem e afinal se irmanam. Dizer-se que é de heróis e santos o país, a ver se se convencem e puxam para cima as calças? Para quê, se toda a gente sabe que só asnos, ingênuos e sacaneados é que foram disso? Não, o melhor seria aguentar, fazendo que se ignora. Mas claro que logo todos pensam que isto é o cúmulo da sacanice, porque no país dos sacanas, ninguém pode entender que a nobreza, a dignidade, a independência, a justiça, a bondade, etc., etc., sejam outra coisa que não patifaria de sacanas refinados a um ponto que os mais não são capazes de atingir. No país dos sacanas, ser sacana e meio? Não, que toda a gente já é pelo menos dois. Como ser-se então nesse país? Não ser-se? Ser ou não ser, eis a questão, dir-se-ia.

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Mas isso foi no teatro, e o gajo morreu na mesma. (SENA, 1989b: 16)

Na lógica pessoana, “os deuses vendem quando dão” (PESSOA, 2008: 79). Vênus e

outros deuses do Olimpo venderam a glória aos lusitanos em troca da desgraça. Em Portugal

restam mães, filhos e “noivas por casar” (PESSOA, 2008: 147), ou seja, sem grandes

perspectivas de futuro, a não ser em além-mar. A gente lusitana conquistou terras “além da

Taprobana” (Lus. I, 1, 4), dominou o tenebroso mar; não obstante, perdeu “o que faz a alma

poder ser de herói” (PESSOA, 2008: 183).

Jorge de Sena canta um império desfeito após a conquista do mar que conduziu os

portugueses a novas terras na missão de expandir a Fé e o Império. Contudo, a imagem de

Portugal anunciada em Mensagem retrata uma terra apagada, habitada por um povo a quem “a

alma falta” (PESSOA, 2008: 149). Falta brilho e unidade como num pesadelo sonhado por

séculos, pois “tudo é disperso, nada inteiro” (PESSOA, 2008: 191).

No final da viagem, o retorno de Vasco da Gama em Os Lusíadas, a pátria

portuguesa já se encontra “[...] metida / no gosto da cobiça e na rudeza / dhũa austera,

apagada e vil tristeza” (Lus. X, 145, 6-8). A imagem de um Portugal mergulhado em

nevoeiro, triste e apagado é recorrente na Literatura Portuguesa. Fernando Pessoa, no poema

que encerra Mensagem, confirma esta ideia: “Brilho sem luz e sem arder, / como o que o

fogo-fátuo encerra” (PESSOA, 2008: 191). Se há um brilho, este é ilusório e passageiro como

“o fogo-fátuo” de um cadáver em decomposição.

A contra-imagem síntese do Império Português criada por Jorge de Sena encontra-se

no poema dedicado “A Portugal”:

A Portugal Esta é a ditosa pátria minha amada. Não. Nem é ditosa, porque não o merece. Nem minha amada, porque é só madrasta. Nem pátria minha porque eu não mereço A pouca sorte de nascido dela. Nada me prende ou me liga a uma baixeza tanta quanto esse arroto de passadas glórias. [...] Torpe dejeto de romano império babugem de invasões, salsugem porca de esgoto atlântico; irrisória face de lama, de cobiça, e de vileza, de mesquinhez, de fátua ignorância,

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terras de escravos, cu pro ar ouvindo ranger no nevoeiro a nau do Encoberto; [...] terras de heróis a peso de ouro e sangue [...] terra de pedras expurgadas, secas como esses sentimentos de oito séculos de roubos e patrões, barões ou condes; ó terra de ninguém, ninguém, ninguém: eu te pertenço, és cabra, és badalhoca, és mais que cachorra pelo cio, és pestes e fome e guerra e dor de coração. Eu te pertenço mas ser’s minha não. (SENA, 1989b: 85-6)

O poema denuncia a realidade de Portugal, buscando sua textura na articulação com

o passado que já não mais se impõe tão gloriosamente. Desvenda o céu enganoso que aos

poucos emerge para as ruínas da consciência coletiva. A que se deve esse quadro? A todo um

acúmulo de fatos que foram se atropelando pela tela histórica como uma espécie de lesão

(“visgo d’alma”) intencionalmente não diagnosticada pelo poder, que, ao contrário, visava a

manter, a todo custo, uma herança de predestinação.

“Uma grandeza que não há em nada” afirma Jorge de Sena acerca do passado

histórico da sua “não ditosa pátria”. A ficcional grandeza de Portugal incomodava a Jorge de

Sena. A Europa moderniza-se e Portugal não acompanha seus passos: “terra-museu em que se

vive ainda, / com porcos pela rua, em casas celtiberas” (SENA, 1989b: 85). Sepultados e

eternizados pela epopeia camoniana, encontram-se os heróis de uma gente que, como raros,

de tão pouco partiu para tanto.

No poema “A Portugal” Sena retoma a fala de Vasco da Gama, interrompendo a

gloriosa narrativa com uma clara negativa: “esta é a minha ditosa pátria. Não”. O poeta nega e

em seguida explica suas razões. Sena toma a fala do Gama para melhor dizer, reeditar o texto.

O longo discurso do capitão português ao rei africano concentra-se em um cortante poema. A

imagem delineada no poema “A Portugal” representa na poesia de Sena a arte final da contra-

imagem do Império Português. A quem o poeta dirige a sua nova versão do texto? Aos seus

contemporâneos, aos de Sena. Ou seja, é uma resposta explosiva ao rebaixamento da arte de

Camões, dirigido por Salazar de maneira oportunista. “Cabe mais do que nunca aos poetas

reagir”. Sena reage trabalhando para desconstruir a ideologia fascista e aposta na derrota do

eterno sonho de expansão dos portugueses. Sena deseja ver seu povo retornar à casa

portuguesa, como bem desejava o deus Baco da epopeia de Camões.

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Estando Sena no papel do Gama, o poeta “dirige-se aos seus contemporâneos” e não

ao rei de Melinde, que, na epopeia camoniana, abre as portas da África cordialmente para os

navegantes estrangeiros. Óbvio que as palavras de Sena são de combate e parecem querer

esclarecer algo maldito, mal interpretado ou interpretado de acordo com os interesses

políticos de cada época. O “capitão” Jorge de Sena volta à armada poética contra a sua “não

ditosa pátria” no poema “A Portugal” como em vários outros momentos da sua poesia. Sena

registra uma outra realidade bem distante daquela fantasiada por Salazar.

Democrata como sou, eu não falo em nome de ninguém, sem ter recebido um expresso mandato para tal. Eu fui convidado por Lisboa e de Lisboa, o que é uma honra, mas Lisboa não tem o direito de nomear representantes de nada ou de ninguém. Esse vício centralista da nossa tradição administrativa – um dos vícios que Camões denunciou e castigou nos seus Lusíadas – deve ser eliminado e banido dos costumes portugueses, sem perda da autoridade central que deve manter unido um dos povos mais anárquicos do mundo e menos realistas quando de política se trata (SENA, 2011b: 329).

Logo no primeiro canto d’Os Lusíadas, o poema descreve uma derrota dos

navegantes portugueses a caminho das Índias. A armada de Vasco da Gama desfere seu poder

bélico contra o povo de uma pequena ilha chamada Moçambique. A partir deste episódio, os

portugueses começaram a criar novos inimigos. Cumprindo uma das profecias do Velho do

Restelo, paga-se a primeira parcela da glória “comprada com a desgraça”.

Jorge de Sena trabalha para exorcizar os mitos históricos lusitanos e suas funções

alienadoras. O poeta é testemunha ocular da realidade portuguesa: um momento histórico que

já não mais se impõe tão gloriosamente. As impressionantes batalhas – algumas milagrosas,

como a Batalha de Ourique, “Quando na Cruz o Filho de Maria, / Amostrando-se a Afonso, o

animava” (Lus. III, 45, 3-4) contra os mouros – as fascinantes ilhas, o retorno de um rei

salvador, a destacada posição de rosto da Europa, nenhuma destas ocorrências encontramos

na obra de Sena.

[...] Que Portugal se espera em Portugal? Que gente ainda há-de erguer-se desta gente? Pagam-se impérios como o bem e o mal – mas com que há-de pagar-se quem se agacha e mente? [...] (SENA, 2013: 639)

A imperiosa imagem ressuscitada pelo regime fascista de Salazar é forte ao ponto de

parecer irrealizável a tentativa de contrapor uma “imagem-outra” sem que isso soe como

sacrilégio. Ora, não é exatamente o que faz o nosso demoníaco poeta? De herdeiros

orgulhosos de Roma, protegidos por Vênus, a “torpe dejeto de romano império”. De

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privilegiada posição de rosto da Europa a “cu pro ar, à face de lama, de cobiça, e de vileza; ou

ainda terra triste / à luz do sol caiada, arrebicada, pulha”. Estas inversões das imagens de

Portugal não seriam suficientes para constatar a “contra-imagem,” tão necessária à

consciência crítica? A autognose coletiva? O que, à primeira vista, possa parecer um desafeto

do poeta, paradoxalmente não passa de uma profunda e irada manifestação de Amor.

Ironicamente, Sena descreve os episódios e os personagens ilustres da História

portuguesa, apresentando ao leitor um “Grande Circo Imperial Luso”, com direito a “Mártires

e Heróis, todos os dias”. Sena arremata sua sátira, criticando a tradicional disponibilidade

lusitana para aventuras e conquistas: “Uma pátria em Armas expostas aos olhos do Futuro”

(SENA, 2014: 191).

D. Henrique reuniu na sua Corte em Lagos uma “equipe de colaboradores que incluía

cartógrafos, geógrafos, cosmógrafos, pilotos e navegadores de muitas origens e diversos

talentos” (PINTO, 2013: 51). Esta característica e a sua residência perto de Sagres podem ter

originado o mito da escola de Sagres, onde o infante navegador teria treinado os seus capitães

para as viagens de descobrimento, mas para a qual não existem provas científicas. Sobre o

símbolo maior da expansão portuguesa, escreve Sena: “Queiramo-lo ou não, estimemo-lo ou

não, o Infante D. Henrique é uma das figuras significativas da História de Portugal; e é

mesmo mais: o «Navegador» (que não parece que tenha jamais navegado senão por

procuração)” (SENA, 1988: 137).

O Afonso Henriques, vencedor da batalha de Ourique, não merece o louvor de Sena.

Ao contrário da estátua de Belém que “representa um homem de grande estatura, forte e

vigoroso, de armadura, com a cabeça descoberta e amplamente provida de cabelos, bigodes e

barba” (SENA, 1988: 138), em Monte Cativo, Sena retrata um rei velho que amarga as

consequências do desastre em Badajós. Moribundo e atado à cama, o primeiro rei de Portugal

não inspira nenhuma grandeza, ou glórias passadas. Em “Camões na Ilha de Moçambique”,

Sena, referindo-se à epopeia camoniana, aponta para “uma grandeza que não há em nada”

(SENA, 2013: 651). No poema “Origem da Poesia Épica” escreve: “[...] senhora da grandeza

que não temos / senão ... eis senão quando... era uma vez... contai...” (SENA, 2013: 276).

O patrimônio mitológico português deve ser considerado para uma melhor apreensão

do comportamento de um povo que tem a seu dispor um arsenal mítico, manipulado pelos

interesses diversos das classes dominantes. Sena nutria uma grande preocupação com os

rumos de Portugal. Por essa razão, arrisca uma orientação para o futuro, um alerta a um país

decadente, restrito ao seu limite geográfico, que nunca lhe foi suficiente, à espera da “Nau do

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Encoberto”. Sobre sua peça O Indesejado (1944), Sena declara: “Com efeito, quis o autor que

a peça fosse uma tragédia, [...]. E que fosse histórica, não só no desenvolver-se da ação,

como na relevância dela para o Portugal contemporâneo” (SENA, 1985a: 14).

A contra-imagem do Desejado é delineada por Sena em O Indesejado, tragédia

histórica em versos, escrita em 1944. O autor deseja que sua obra ocupe dois panoramas

portugueses: “o panorama dramático e o dramático panorama” (negrito meu) (SENA,

1985a: 152). Sena também condena o Sebastianismo. A figura do Prior do Crato simboliza,

acima de tudo, o anti-sebastianismo, ou tudo o que Portugal renegou ser. Na abertura da peça,

os fidalgos amaldiçoam a figura do Cardeal D. Henrique pelas consequências advindas de sua

morte:

– Viva el-rei D. Henrique, no inferno muitos anos, que deixou em testamento Portugal aos castelhanos! (SENA, 1985a: 19)

Tendo sido entronizado D. António após a morte do Cardeal-rei, possivelmente a

nação não alimentaria o mito do regresso de um rei salvador na figura de D. Sebastião, que

não passaria de um jovem inconsequente. Desabafa a personagem dramática de Jorge de

Sena:

Estou vivo e apareço. Mas esp’rança, a maior, a mais pura, a mais preciosa of’rece-a o povo ao rei que se acovarda e se esconde na morte o não sei onde... (SENA, 1985a: 24)

Com intenções claramente desmitificadoras de uma época dramática da consciência

coletiva portuguesa, Sena elege a figura “infeliz, estranha e maltratada, do Prior do Crato”

(SENA, 1985a: 153), ou seja, uma contra-imagem dos heróis lusitanos, um anti-herói mais

próximo da realidade de “cidadãos à margem ou nas margens do mundo” (SENA, 1985a:

156). A escolha do texto dramático ratifica a ideia de desmitificação, pois como afirma o

próprio autor: “É que o teatro, a realidade teatral, como imagem humana universal que

pretende ser, justapõe à vida a convenção. A convenção possibilita e complementa não só a

expressão da vida como a própria vida” (SENA, 1985a: 156).

No seio do fascismo, a tragédia de Sena se impõe como voz de alerta, apontando o

verdadeiro indesejado da História. Desejado deveria ter sido D. António, homem consciente

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da realidade nacional que, a respeito da ação de Espírito Divino aliado aos portugueses,

garante com lucidez:

[...] Não se defendem hoje essas conquistas. De meus avós, não sei que me deixassem mais do que um reino a defender conosco. [...] São dor’s de parto desse Quinto Império que vos não trago. Eu vos trago os factos, o desembarque e a decisão suprema, pedida aos céus nestes rebates. Fossem eles festivos, e eu vos sorriria; mas vós, de coração cheio de esp’rança, ouves só festa onde há desordem. (SENA, 1985a: 20-21)

Na peça de Sena, Desejado é o Prior do Crato que, provavelmente, geraria uma

imagem mais realística e, por extensão, menos traumática de Portugal. “Não morre quem não

foi, e eu nunca fui” (SENA, 1985a: 141) D. António morre no exílio, velho e amargurado,

sem nunca ter reinado. Nessa lógica, o Indesejado passa a ser o Encoberto D. Sebastião por

ter simbolizado, talvez, o maior “fantasma maléfico” (LOURENÇO, 2013: 66) que

periodicamente visita o imaginário luso, às vezes sob outras capas, em outras eras, às vezes

com o nome trocado para António de Oliveira Salazar.

Jorge de Sena não esperou a literal queda do ditador português para mostrar o quanto

era ele indesejável. Seu olhar arguto já orbitava pela memória coletiva, trazendo à luz temas

vedados pelo fascismo. Ousadamente, Sena lança mão da linguagem teatral para despertar a

consciência crítica de uma nação submetida à inibição de uma real avaliação das razões de

sua existência.

A palavra “drama”, em sua origem grega, significa ação. A ação dramática encerra

um conflito de forças. O texto teatral caracteriza-se pela dupla enunciação. Na encenação de

uma peça, as palavras das personagens se corporificam na fala do ator. Os recursos cênicos

tornam viva, latente, “visível” a matéria puramente textual. O texto em cena apela diretamente

para os sentidos, para o impacto imediato. A peça O Indesejado que, aparentemente, pode ser

interpretada apenas como uma retomada do teatro português e da memória histórica é, antes

de tudo, uma estratégia de guerra.

Jorge de Sena, ao modo cínico, transforma a verdade em escândalo, para que os

portugueses possam perceber que estão num caminho errado. A vida cínica é uma vida

vigilante, característica que se aplica à obra seniana. Na peça O Indesejado, o dramaturgo

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cunha um outro valor à moeda portuguesa, mais adequado e comparável ao valor original.

Sena, através da linguagem teatral, pretende revelar ao povo português, como o mito do

Desejado, na verdade encobre uma atuação, no mínimo duvidosa, se não desastrosa de D.

Sebastião na guerra, que resultou na sua morte e na consequente entrega de Portugal ao

domínio espanhol.

Sena se preocupa com o seu povo, tentando abrir-lhe os olhos sobre verdades e

mentiras históricas e, principalmente, sobre os mecanismos de manipulação da imagem

nacional por parte dos poderosos, com consequências danosas para Portugal. Através d’O

Indesejado, assinala que a atitude de esconder e encobrir a atuação malograda de D.

Sebastião, dificulta o autorreconhecimento e, por consequência, o desenvolvimento pleno da

Nação Portuguesa. Sena muda o valor da moeda, cunha-lhe uma nova imagem, transformando

o Desejado, D. Sebastião – e por analogia também António de Oliveira Salazar – em

Indesejado. Para Sena, o Indesejado pela História, D. António, Prior do Crato, é o verdadeiro

Desejado.

O conto anticolonialista “Duas Medalhas Imperiais com o Atlântico”, é classificado

por Alexandre Pinheiro Torres como uma narrativa “de desmitificação luso-imperial” (1982:

29). O fim da segunda parte da narrativa desenvolve-se num “almoço longo, plúmbeo de

atmosfera pesada (negrito meu)” (SENA, 1981: 107), oferecido pelo administrador da roça

ao seu muito estimado amigo Artur Pimenta e ao grupo de jovens marujos por ele comandado.

Os termos em negrito carregam o valor semântico da esfera do negativo que funciona como

preâmbulo das recordações de atos funestos cometidos pelos anfitriões e pelo comandante

num “passado próximo que continuava sendo o dia a dia” (SENA, 1981: 107).

Pimenta recorda saudoso dos “bons tempos de ele ser o capitão do porto, para quem

se mandavam trabalhar os pretos rebeldes no trabalho, de castigo” (SENA, 1981: 108). Além

de seu nome Pimenta que, em sentido figurado, significa pessoa má, seu tipo infausto é

reforçado por traços como “um sinistro arreganhar de dentes amarelados” (SENA, 1981: 107),

associados ao “verde sujo” de seus olhos. Elogiado pelos companheiros antigos por sua

genialidade, o ex-capitão orgulha-se de sua malévola criação: um quebra-mar que facilitava a

sua tarefa, tornando os negros vítimas dos tubarões. As caçadas também são relembradas

festivamente. Se Jorge de Sena denunciou a tirania dos homens que se comportam como

“cães servis” à sua natureza destruidora, o fez especialmente aos portugueses:

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[...] Entrávamos logo no mato, e não se ouvia nada... Depois, um chapinar muito cuidadoso... Metera-se no charco. Chegámo-nos, lembra-se? E no escuro os olhos dele brilhavam. Apontar e... Pás! Pás! Logo a seguir... glu... glu... e pronto! Na gargalhada sentimental e comovente — ah que bons tempos! [...] (SENA, 1981: 108)

Séculos de feroz colonialismo lusitano não geram nenhum orgulho no poeta que, ao

contrário, responde manifestando um profundo sentimento anticolonialista. Contudo, Jorge de

Sena sempre fez imensa questão de se declarar escritor português. O poema “A Portugal”

numa leitura isolada pode sugerir o oposto. O poeta ansiava ver a sua “não ditosa pátria”

ocupando o seu devido lugar no mundo. Um ano antes de seu falecimento escreve:

E por agora basta, quanto Portugal – a quem a minha obra primordialmente pertence – tem de aprender a praticar as ironias democráticas, para sobreviver e ocupar no mundo, o lugar que lhe cabe de antiquíssima nação gloriosa: por uma vez, nesse país, que haja, na garantia da liberdade e da justiça, lugar para todos como tão raras vezes houve (SENA, 2013: 745).

Em “«Quem a tem...»”, o poeta expressa a preocupação de não morrer sem saber

qual “a cor da liberdade” (SENA, 2013: 254). Dois dias após a Revolução dos Cravos, em

1974, confessa: “Nunca pensei viver para ver isto: a liberdade” (SENA, 1989b: 159). Crédulo

de ter assistido ao dia do despertador, não se cansa de repetir que a cor da liberdade é “verde,

verde e vermelha” (SENA, 1989b: 160).

Como prova de que nem todos se calaram durante a ditadura salazarista, Sena lança

a série de contos de Os Grão-Capitães, revelando que suas gavetas não estavam vazias,

apesar da censura. Acerca da liberdade de, enfim, publicar o livro escreve:

E com efeito agora o momento – que eu imaginei, com longo desespero, que não veria nunca, de lançá-los [os contos], nesta hora em que, nas alegrias e nas aflições de uma liberdade restituída, Portugal desperta de um pesadelo de quase meio-século (SENA, 2006: 12).

A Revolução de Abril de 1974 e o fim do sonho imperial, trazido pela perda das

colônias em África, possuem um arsenal necessário para, definitivamente, se reajustar a

imagem portuguesa. Jorge de Sena sabia muito bem que a vida “não é só correrias e gritos de

entusiasmo” (SENA, 1989b: 162). Consciente do delicado momento que atravessa a política

de seu país, adverte ainda o poeta: “Há que caminhar com cuidado / [...] uma pátria que

renasce é como uma criança dormindo!” (SENA, 1989b: 162). Mostras de carinho e de

preocupação com os novos rumos nacionais.

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[...] há que aprender, re-aprender a falar política e a ouvir política [...] … para o trabalho mais duro e mais difícil de – parece incrível – refazer Portugal sem que se dissipe ou se perca uma parcela só da energia represa há tanto tempo. [...] (SENA, 1989b: 162)

Os primeiros raios do 25 de Abril não iluminaram devidamente a sombria morada da

consciência crítica. A casa portuguesa ficou subitamente lotada, “o espaço é tão pouco para os

que lá se acotovelam e pisam, e agora ainda mais, com os seus partidos atrás” (SENA, 1989a:

14). Sena regressa a Portugal logo após o 25 de Abril, entusiasmado com a ideia de poder,

finalmente, respirar ares de liberdade em sua pátria. Porém, volta para Santa Bárbara, EUA,

ainda decepcionado com Portugal. A Cantiga de Junho Quem te amar, ó liberdade, tem de amar com paciência Sonhou-se tanto contigo sem saber como saber-te, que é muito grande o perigo de não ver o sonho antigo nos braços em que hão-de-ter-te Quem te amar, ó liberdade tem que amar com paciência [...] (SENA, 1989b: 166)

“Que Portugal se espera em Portugal?” Jorge de Sena morre no exílio, “sem pátrias”,

sem conhecer a verdadeira cor da liberdade tantas vezes evocada por sua obra. Tragicamente

o poeta já imaginava este fim, como profetiza na voz do Indesejado D. António:

Mas Portugal um dia será livre, Sem vós, sem muitos que virão depois, Porque ser livre é mais que a liberdade, Porque é impossível que não venha a ser! Sem mim, porém, sem mim Tenho a certeza E eu soube-o sempre! (SENA, 1985a: 128)

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4.1 Jorge de Sena e Luís de Camões

Camões dirige-se aos seus Contemporâneos Podereis roubar-me tudo: as ideias, as palavras, as imagens, e também as metáforas, os temas, os motivos, os símbolos, e a primazia nas dores sofridas de uma língua nova, no entendimento de outros, na coragem de combater, julgar, de penetrar em recessos de amor para que sois castrados. E podereis depois não me citar, suprimir-me, ignorar-me, aclamar até outros ladrões mais felizes. Não importa nada: que o castigo será terrível. Não só quando vossos netos não souberem já quem sois terão de me saber melhor ainda do que fingis que não sabeis, como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais, reverterá para o meu nome. E, mesmo será meu, tido por meu, contado como meu, até mesmo aquele pouco e miserável que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito. Nada tereis, mas nada: nem os ossos, que um vosso esqueleto há-de ser buscado, para passar por meu. E para outros ladrões, iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo. (negritos meus) (SENA, 2013: 329-31)

Embora já tivesse esboçado alguns versos durante a sua estada na Figueira, é, no

regresso de sua “descida ao inferno”, que Jorge, personagem de Sinais de Fogo, se revela

poeta. Sua visão de mundo sofre um profundo abalo:

entre o inferno que eu visitava e a terra que eu voltava [...] o mundo que eu visitava estalara. Ou estalara a fachada dele. O tumulto de Espanha abria fundas ravinas nas nossas vidas (negrito meu) (SENA, 1984b: 375).

Jorge, não se sentindo bem, pede que a mãe e o amigo Luís se retirem do quarto.

Sozinho, sofre uma espécie de transe que, por vezes, provoca-lhe uma insuportável dor. O

sofrimento, ao que nos parece, integra o ritual que compõe o fenômeno da criação poética.

Em “Super Flumina Babylonis”, também Camões, antes de escrever seus versos, amarga

dores físicas e experimenta estranhas sensações:

Levantou-se impelido por uma ânsia que lhe cortava a respiração, uma tontura que multiplicava a pequena luz da candeia. [...] Sentia um suor frio escorrer-lhe pela testa [...]. Uma onde de alegria o inundou, em sacões ansiosos. Os olhos ardiam-lhe e era de lágrimas. [...]. Tremendo todo, mas, com a mão muito firme, começou a escrever. [...]. E ficou escrevendo pela noite adiante (SENA, 1981: 166).

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Certo dia, quando visitava a praia, Jorge se entrega às lembranças e delírios eróticos

que culminam no êxtase. Envergonhado de ter-se masturbado em área pública, levanta-se para

partir e é arrebatado por uma “onda asfixiante de bem-estar” (SENA, 1984b: 495). O que

anteriormente era sentido como enjoo, dor e tontura, após o transe sexual revela-se

diferentemente:

um bem-estar irónico, sardónico, casquinante, estourou dentro de mim num silencioso grito que retiniu nos tímpanos, nos muros, na atmosfera já sombria da azinhaga [...] febrilmente, e ao mesmo tempo com muita serenidade de quem está seguro de que as vozes lhe falam e não vão calar-se [...] (negritos meus) (SENA, 1984b: 498).

Gilda Santos atenta para a utilização do verbo casquinar, como “rubrica sonora” do

Diabo em sua análise da novela O Físico Prodigioso (SANTOS, 1989: 171). No poema “O

Dáimon” Jorge de Sena refere-se a vozes que ditam versos, igualmente como ocorre com o

personagem de Sinais de Fogo.

O Dáimon Mandelstamm, Akhmatova e Rilke ouviam vozes a ditar-lhes versos. Mesmo o Valéry falava de um primeiro verso de que se deduziam os seguintes. Em tempos mais antigos, os demónios (pessoais espíritos assim como os anjos menos da guarda que do ouvido bichos) assim segredos assopravam sem dizerem mais que enigmas. Felizes poetas esses (como ainda os há) capazes de se crerem nunca sós nem mesmo às horas mais terríveis da terrível solidão. Por trás dos ombros, lá estava o espiritinho a acompanhá-los nos seus calvários de exilados ou de assassinados, ou moradores de Duínos principescos, ou de prefaciadores sacrificando-se por uns milhares de francos a compor ensaios sur l’idée de dictature. Os Sócrates e os Goethes todos tiveram disto, como outros depois a escrita automática. E o triste é não dizerem francamente (senão quando a si mesmos se mentissem) que na solidão total, na noite escura – aquela em que S. João da Cruz e os santos mais dados à poesia se pensavam tendo não é segura e certo por que lado uma Visita do Alto pelo corpo adentro –, ninguém o nada lhes falava: nada. Apenas se falavam no silêncio humano

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à dupla imagem que do ser se nega (negritos meus). (SENA, 2013: 684-5)

Saliento a lição dada por Sena, em seus Estudos sobre o Vocabulário de Os

Lusíadas, acerca do conceito de demônio que particularmente interessa:

Para os gregos, “dáimon” era a divindade geral, no sentido de “espírito divino”. Mas muito cedo, relativamente, eram já espíritos intermediários, servidores e auxiliares dos deuses, às vezes supostos os dos homens que haviam vivido na Idade do Ouro, e que cumpriam a missão de guiar os vivos (SENA, 1970: 405).

Sena recorre à origem pagã grega do conceito de demônio, ou seja, um espírito

intermediário entre os deuses e os homens, responsável por guiar estes últimos. Uma espécie

de anjo da guarda, gênio tutelar, voz íntima, inspiração poética. Como podemos notar, esta

concepção de demônio afasta-se bastante do entendimento cristão que amalgama demônio e

diabo como entidade única, provedora de todo o mal.

Jorge experimenta sensações bastante semelhantes às do protagonista de “Super

Flumina Babylonis” no que diz respeito à experiência do fenômeno poético. Da prática erótica

à percepção de o quanto o “mundo era um desconcerto” (SENA, 1981: 116), o jovem também

irá se descobrir “grávido de um poema” (SENA, 1981: 159). Vejamos alguns fragmentos da

narrativa de Jorge durante um dos transes que precediam o nascimento de seus versos:

Nessas ocasiões, a agonia aumentava, num vago tremor que se tornava ansioso, expectante, como que suplicando que aquilo não parasse. [...] Foi quando li palavras que não sentia ter escrito, num papel que não sabia ter procurado. [...] Aquilo eram versos [...] e isso me enchia de terror [...] despertava-me uma sensação de perplexidade, como se uma nova responsabilidade, que eu não solicitara a mim mesmo, estivesse a formar-se na minha consciência (SENA, 1984b: 425).

Muito embora Sena insinue a influência de uma entidade reveladora, um dáimon,

nunca a confessa diretamente. Nas palavras de seu personagem autobiográfico: “Ali estava eu,

para todos os efeitos transformado em poeta, por obra e graça [...] Ora bolas” (SENA, 1984b:

498). O nome Baco não possui uma origem etimológica segura. Um de seus vários derivados

é bakkhüein, em grego: “ser tomado de um delírio sagrado” (BRANDÃO, 2011: 117). A

partir do êxtase, ocorre a transformação do sujeito, a metamorfose.

Para Sena, a poesia é uma atividade revolucionária e a ela cabe “mais que

compreender o mundo, transformá-lo” (SENA, 2013: 726). Metamorfosear a merda da vida

em palavras, em arte: eis a missão do poeta. Este dom alquímico possui igualmente o Camões

do conto de Sena, pois era capaz de transformar a miséria, a solidão, o abandono a que foi

confinado, tudo o que tocasse em poesia.

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«Aos cinquenta anos...» [...] [...] O corpo doi-me, que envelhece. O espírito doi-me de um cansaço físico. As belezas da alma, seja de quem forem, deixaram de interessar-me. Resta a poesia que me enoja nos outros a não ser antigos, limpos agora do esterco de terem vivido. E eu vivi tanto que me parece tão pouco. E hei-de morrer desesperado por não ter vivido. [...] [...] (SENA, 1989b: 107)

O empenho e a dedicação de Jorge de Sena aos estudos camonianos levam a crítica a

considerá-lo uma espécie de alter ego de Camões. Nas palavras de José Augusto Seabra:

É esta encarnação que se sente ser visionada, através de Camões, pelo próprio Jorge de Sena. Os acentos mais repassados da sua poesia mostram-nos essa busca de uma identidade, na alteridade, com o poeta, que as relações intertextuais vão dando a ler, num processo citacional em que o Camões-Sena e o Sena-Camões se entrecruzam (SEABRA, 1984: 150).

Tanto Camões quanto Jorge de Sena foram exilados e dedicaram suas obras à pátria

que os rejeitou.

Ninguém como Camões nos representa a todos, repito, e em particular os emigrantes, um dos quais ele foi por muitos anos, ou os exilados, outro dos quais ele foi a vida inteira, mesmo na própria pátria, sonhando sempre com um mundo melhor, menos para si mesmo que para todos os outros (SENA, 2011a: 337).

Do poema “Camões dirige-se aos seus Contemporâneos”, boa parte também se aplica

ao próprio Jorge de Sena.

Contrição Que importa que todos me esqueçam mesmo sem querer? Que importa que a humanidade não exista e apenas haja homens embora vivendo, nascendo, morrendo, semelhantemente? Se os homens são tantos que, procurando bem, sempre se encontram mais alguns; se são tão frágeis que mal podem cair; e se eu sou tão desgraçado, tão ímpar, tão mental, que tenho de voluntariamente desejar amá-los. (SENA, 2013: 43)

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Através da persona de Baco, Camões destila sua mágoa e seu rancor. O deus da

metamorfose e do entusiasmo auxilia o poeta épico a transpor a dor da exclusão. Acerca da

duplicidade discursiva n’Os Lusíadas comenta Luiza Nóbrega:

O segundo discurso que contradiz o primeiro, constitui-se de uma carga pulsional de caráter afetivo (raiva, tristeza, revolta, indignação), e de uma dissidência de ordem filosófica e político-ideológica; esta última ainda mais que a primeira, forçosamente dissimulada (NÓBREGA, 2012: 37).

“Português das Sete Partidas” (KNOPFLI, 1982: 327), Jorge de Sena singra uma rota

literária afinada com o discurso de Baco em Os Lusíadas, ou seja, em prol da derrota do

Império Português. Tendo em vista que o fascismo se apropria do poema épico ao seu bel-

prazer, Jorge de Sena reage, provando em sua crítica o que realmente Camões desejava

expressar em sua obra-prima. “Ignorar ou renegar Camões não é só renegar o Portugal a que

pertencemos, tal como ele foi, gostemos ou não da história dele [...]. É esquecermos que

Portugal, como Camões, é a vida pelo mundo em pedaços repartida” (SENA, 2011a: 339).

Ler a arte de Luís de Camões com lentes fascistas significa reduzir sobremaneira “o

engenho e a arte” da epopeia e, consequentemente, a grandeza da Literatura Portuguesa. A

verdadeira grandeza encontra-se no engenho e na arte de contar a História e não nos feitos

históricos em si. Como bem defende o épico, quando manda cessar o “canto grego e o

troiano” para levantar a sua voz.

Jorge de Sena escreve o poema “Camões na Ilha de Moçambique”, onde o poeta tem

uma estátua de bronze, um marco do colonialismo português, considerando que Camões se

transformou num símbolo do heroísmo e da glória do povo lusitano, o “orgulho da raça” ao

eternizar as conquistas do império em seu poema épico. Camões não é descrito por Sena

criando versos, mas em um momento íntimo, ao mesmo tempo erótico e escatológico, um

homem comum, sem nenhuma grandeza:

Camões na Ilha de Moçambique [...] Não é de bronze, louros na cabeça, nem no escrever parnasos, que te vejo aqui. Mas num recanto em cócoras marinhas, soltando às ninfas que lambiam rochas o quanto a fome e glória de epopeia em ti se digeriam. Pendendo para as pedras teu membro se lembrava e estremecia de recordar na brisa as croias mais as damas, e versos de soneto perpassavam junto de um cheiro a merda lá na sombra, de onde n’alma fervia quanto nem pensavas.

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Depois, aliviado, tu subias aos baluartes e fitando as águas sonhavas de outra Ilha, a Ilha única, enquanto a mão de te pousava lusa, em franca distração, no que te era a pátria por ser a ponta da semente dela. E de zarolho não podias ver distâncias separadas: tudo te era uma e nada mais: o Paraíso e as Ilhas, heróis, mulheres, o amor que mais se inventa, e uma grandeza que não há em nada. [...] (SENA, 2013: 650-1)

Acerca da imagem de Camões em Moçambique apresentada por Sena, considera

Jorge Fernandes da Silveira:

Real ou imaginário, o [...] Camões seniano, «em cócoras», surpreende o nosso primeiro olhar ao ser visto numa imagem, mesmo que realmente desarranjada, desconcertante, pois imobilizada tanto no aspecto cultural como no multicultural, já que o colonialismo mantém a todos na mesma «merda» (SILVEIRA, 2002: 23).

Sena cria uma forte contra-imagem do poeta épico com o uso de um “Não”, uma

negativa que humaniza Luís de Camões. “Não é de bronze, louros na cabeça / nem no

escrever parnasos, que te vejo aqui”. Sena vê Camões na Ilha de Moçambique como o homem

comum, integrado ao meio, com hábitos locais, não Camões o herói da pátria, enaltecido para

fins anestésicos da massa popular.

Pensarão alguns, acreditando no que se fez do pobre Camões durante séculos, que celebrá-lo, ou meditá-lo e lê-lo, é prestar homenagem a um reaccionário horrível, um cantor de imperialismos nefandos, a um espírito preso à estreiteza mais tradicionalista da religião católica. Camões não tem culpa de ter vivido quando a Inquisição e a censura se instituíam todas poderosas. [...] Camões não tem também culpa de ter sido transformado em símbolo dos orgulhos nacionais, em diversos momentos da nossa história em que esse orgulho se viu deprimido e abatido. Claro que esse aproveitamento não teria sido possível se ele não tivesse escrito Os Lusíadas (SENA, 2011b: 335).

Mais do que nunca, “navegar é preciso e criar, necessário”. Com escala certa na Ilha

de Moçambique, relata Jorge de Sena:

[...] e, para mais, tinha piada que eu visitasse a Ilha de Moçambique, no ano do centenário d’Os Lusíadas que ali terão polidos [...], por esse homem terrível que tanta gente profissionalmente celebra como seu e não era de ninguém, nem de si mesmo, qual se fartou de dizer e não lhe serviu de nada (SENA, 2000: 232).

Em “Camões na Ilha de Moçambique”, Sena retrata Camões, acocorado, bem longe

da imagem soberana cultuada pelos portugueses. O Escriba Acocorado de Rui Knopfli

encontra-se em semelhante posição enquanto escreve “palavras terríveis / de ignomínia e de

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acusação. De pouca ternura / também”. Remetendo à tradição egípcia dos escribas, Knopfli

preocupa-se com o “fabrico da História” comprometido com a busca da verdade.

Sena reitera: “uma grandeza que não há em nada”, uma grandeza ficcional que

embaça a genuína grandeza de uma nação secular. A cultura portuguesa Sena sempre fez

questão de preservar, defender e a ela se declarar pertencente como que ligado por uma

corrente à mesa “dos trabalhos e dos dias”. Passo a voz a Jorge de Sena, no Discurso da

Guarda, por ocasião das comemorações do Dia de Camões e das Comunidades Portuguesas,

em 1977:

Deste modo, celebrar as Comunidades Portuguesas no dia do santo nacional que celebrou a expansão imperial do país é, ao mesmo tempo, um belo ideal e um cálculo muito prático. Há quem diga e quem pense que celebrações como esta – de Camões ou das comunidades – são uma compensação para a perda ou derrocada do Império oferecida ao sentimento popular, e que isso das comunidades é mesmo ainda pior: uma ideia do fascismo. Antes de mais, neste país há que pôr um basta não só ao fascismo ele mesmo, mas à mania de atribuir tudo ao fascismo, até as ideias (SENA, 2011b: 336)

Na Ilha de Moçambique, o viajante agasalha o velho amigo Camões “num poema

que não é para ele este lugar” (SENA, 2000: 235). Sena reconhece a dificuldade que reside no

trabalho de “separar Camões e a sua epopeia, do que o homens fizeram dela por séculos,

usando-a para os seus pessoais propósitos” (SENA, 1978: 446). Por ocasião da celebração do

quarto centenário d’Os Lusíadas, escreve Jorge de Sena:

Nenhuma comemoração será digna se continuarmos a limitar o escopo e o sentido da obra de Camões, recusando a tremenda e terrífica mensagem que ele pôs nela. Os Lusíadas não são, na sua estrutura, só uma glorificação dos feitos portugueses: são também uma trágica penitência pelas malfeitorias que os acompanharam (SENA, 1978: 487).

Se Jorge de Sena denunciou a tirania dos homens que se comportam como “cães

servis” à sua natureza destruidora, o fez especialmente aos portugueses, porque “não há

demónio que possa competir com os que andam à solta num lugar público ainda conhecido

pelo nome de Portugal, de origem mais ou menos desconhecida” (SENA, 1981: 12). Na luta

pela palavra, o poeta eleva a voz e exorciza o silêncio:

Ó cães da morte, que uivais, mordeis! Humanos-infra, que sois morte e cães! Vade retro, Satana, requiem aeternam terei sem vos ouvir, nem mesmo ao chiar de mijo nos meus ossos, quando alçardes perna. Cães cães de cães e vossos filhos cães que filhos cães de cães gerarão cães: haveis de ouvir-me até depois de mortos e cisco e lama num ranger de dentes:

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e os cães de cães de vossos filhos cães por mais que me uivem hão-de ouvir também a voz humana que vos foi negada, vade retro, Satana, abracadabra. (SENA, 1989b: 112)

4.2 Jorge de Sena e África

O crítico Jorge de Sena desponta em 1942. Logo no início da nova carreira, escreve

sobre dois livros das Literaturas Africanas, às quais, até então, ninguém dedicava muita

atenção. Calenga de Castro Soromenho e Ambiente de Jorge Barbosa mereceram a crítica

justa e ética de Jorge de Sena que sempre alimentou uma certa familiaridade com as culturas

africanas.

Em sua crítica sobre Calenga de Castro Soromenho, Jorge de Sena define um

conceito de literatura colonial diferente do ponto de vista da maioria dos portugueses, que, de

maneira vaga e geral, consideravam literatura colonial “a que trata de temas coloniais”

(SENA, 1988: 97). Do mesmo modo que se desenvolveram as literaturas americanas, para

Sena, a literatura colonial se caracterizava por analisar e descrever “a adaptação mais ou

menos dramática e mútua do europeu e da região ocupada” (SENA, 1988: 98).

Em seu trabalho pioneiro de revelar o valor literário dos textos produzidos nas

colônias africanas, declara Sena:

Acontece, porém, que, se há actualmente um exemplo de literatura africana moderna (e autóctone, digamos), esse exemplo existe e frutifica em Cabo Verde. Cabe Verde e Angola são, assim, dois pólos da literatura genericamente chamada colonial. Desenvolvesse-se em Angola, real e não só tematicamente, uma literatura e teríamos ao vivo, no contraste com a insularidade cabo-verdiana, a imagem da dupla face do espírito português tal como a história (literária, económica ou política) nos leva a intuí-lo. De um lado a centrifugação trágica provocada por uma terra limitada e pobre; do outro, a atração centrípeta de uma terra praticamente ilimitada e rica (SENA, 1988: 98).

Sena destaca a escrita colonial de Castro Soromenho por libertar-se do exotismo

fácil, pela sua capacidade de realizar o “difícil e delicado” trabalho de “equilibrar os

elementos etnográficos e os elementos romanescos, mas Soromenho tem-no conseguido, por

vezes com raro brilho” (SENA, 1988: 100).

Jorge de Sena também faz uma resenha do livro Ambiente do autor cabo-verdiano

Jorge Barbosa. O título do livro é significativo, “justo” na palavra de Sena, porque, ao

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contrário de outros exemplos, o livro Ambiente, na opinião de Sena, apresenta tanto um

ambiente como, na sua poesia, uma identificação com o ambiente.

Sena ressalta que a identificação com um ambiente pode ser tanto real como também

poético. Esclarece o crítico que “por identificação poética se deve entender vivência profunda,

indissociável, e igualmente profunda nos casos reais de inadaptação” (SENA, 1988: 89). A

inadaptação real ao ambiente não impede a identificação poética com o ambiente. Já o mesmo

não é verdade com o desenraizado. O desenraizado, segundo Sena, nunca será capaz de

extrair uma poesia do ambiente que o cerca. O inadaptado pode “extrair, por oposição, e do

que o cerca, uma grande poesia” (SENA, 1988: 89).

A inadaptação muitas vezes não impede “[n]um protesto de solidariedade, [n]uma

comovida narrativa de uma condição humana, [n]uma, como diz o poeta, «silenciosa revolta

melancólica»”. É o caso da solidariedade que Jorge Barbosa expressa no seu livro Ambiente,

onde ele atinge, na opinião do crítico Jorge de Sena, o “mistério da coexistência” com o povo

sofrido de Cabo Verde nos versos da sua poesia, retratando o forte impacto que o ambiente

das ilhas cabo-verdianas, “uma terra seca, uma terra pobre e áspera” exerce sobre os seus

habitantes. Condições ambientais que a eles “lhes domina[m] os gestos” e que “encadeia[m]

os olhos das crianças numa «expressão precoce de renúncia», mais tarde, até a morte,

«tristeza infantil» «no olhar pasmado...»” (SENA, 1988: 89).

Jorge de Sena chama a atenção para o fato de que nos anos 40 do século XX tenha-se

introduzido (fazendo alusão ao movimento neorrealista) “na poesia a linguagem vulgar – o

que foi a abolição de um forte preconceito”. Logo em seguida, os setores acadêmicos

preocupados com a formalização dos padrões poéticos, estabeleceram “um vocabulário vulgar

adequado a produções poéticas”, de tal forma que não ameaçassem os antigos padrões da

academia (SENA, 1988: 90).

Jorge Barbosa usa a linguagem “vulgar” no seu livro de poesia, mais precisamente

no poema “Clarim”, apontado pelo crítico Sena como “pouco feliz, embora cheio de

sinceridade verbal”. Barbosa, então, utiliza a verdadeira linguagem “vulgar”, que significa

para Jorge de Sena:

[...] coragem de falar com verdadeira naturalidade. A humildade formal vem, então, dessa coragem; e, por sua vez, a coragem vem da confiança da pura exactidão do drama transmitido (SENA, 1988: 90).

A nova linguagem da sinceridade, a descrição com exatidão deixam fora do

panorama “as grandes preocupações interiores, que diz-se geram a grande poesia” (SENA,

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1988: 90). Sena defende que a dita “grande poesia” é um jogo com elementos de compreensão

do mundo formalizados sobre um fundo emocional, interior. Para Sena, este tipo de poesia,

perfeitamente enquadrada nos padrões acadêmicos da época, é altamente impura.

Impura no sentido de que a poesia tradicional carrega uma “inteligibilidade falsa”

que é o resultado do uso de “formas que lhe são estranhas”. Na visão de Sena, a poesia tem

que se preocupar com a realidade da vida humana num sentido amplo, incluindo entre outras

coisas também “a aplicação das dúvidas gerais”. Assim, ganharia, na opinião do crítico, a

poesia “em profundidade e em pureza intrínsecas”. A poesia pura é para Jorge de Sena

poesia liberta de ideias feitas, é a virtualidade poética procurando, na expressão, a sua própria inteligibilidade, ou então, fixando-se, singelamente, na dignificação da vida colectiva (SENA, 1988: 91).

Jorge Barbosa é, na opinião do crítico Sena, essencialmente um poeta puro, pois

consegue realizar na sua poesia o que tantos outros poetas não foram capazes de alcançar: “a

dignificação das tragédias vulgares, monótonas e contínuas, com ironia serena e terna,

demolidora e renovadora de facto” (SENA, 1988: 91).

Na década de 60, Jorge de Sena defende o escritor angolano José Luandino Vieira,

membro do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), que ficou preso no

Tarrafal entre 1961 e 1972, por causa de suas atividades políticas contra a dominação

colonialista. No cárcere escreveu Luuanda, que registra o bilingüismo português/kimbundu da

capital angolana, além dos conflitos de gerações, etnias, e ideologias, dentre outras

características da verdadeira vida colonial. O livro garantiu a Luandino Vieira o prêmio

literário angolano Mota Veiga, em 1964, e o Grande Prêmio de Novelística da Sociedade

Portuguesa de Escritores, em 1965.

Como o livro premiado era obra de um prisioneiro político, as autoridades

portuguesas tentaram impedir a entrega do prêmio e começaram uma tentativa

propagandística, com o intuito de degradar o valor literário da obra. Em 1972, a edição de

Luuanda da editora Edições 70 teve a sua apreensão decretada pelo regime, sob o governo de

Marcelo Caetano. A Edições 70 não aceitou esse veredito, como relata Deize Pereira Bebiano:

Em recurso jurídico, a editora solicitou a avaliação literária de eminentes críticos e estudiosos de literatura africana, no que foi atendida por Jorge de Sena, escritor, crítico e professor livre-docente em literatura portuguesa no Brasil e na Universidade da Califórnia, e Ferreira de Castro, intelectual português. Tratava-se de apontar que as qualidades literárias da obra superavam em muito qualquer leitura política sectária, e esses dois críticos foram os únicos a ter coragem de manifestar sua solidariedade, naquele tempo de opressão também em Portugal. (Disponível em: <http://www.ueangola.com/criticas-e-ensaios/item/291-l%C3%

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ADngua-portuguesa-e-identidade-nacional-em-josé-luandino-vieira>. Acesso em: 21 abr. 2015.).

Quando o poeta Agostinho Neto parte para a Inglaterra, após anos de perseguição e

vigilância, Sena comemora a conquista dessa liberdade e aproveita a ocasião para criticar a

política de Salazar:

O governo de Lisboa apresenta internacionalmente, como óbice a independência de Angola, falta de líderes que possam governar. Presos é que eles nunca governarão. E soltos, podendo falar ao mundo, serão sempre um passo decisivo para a queda da oligarquia sinistra que governa Portugal (SENA, 2011a: 159).

A ligação de Jorge de Sena com África vem desde a infância através das viagens

feitas pelo pai, capitão da marinha mercante portuguesa. A avó materna de Sena emigrou para

Angola aumentando, assim, os laços entre o poeta e o além-mar. Sena retorna a Luanda em

1972, quando também conhece Moçambique e exalta a paisagem local. “Aquela Ilha, na sua

modéstia monumental, mas no seu fascínio de todas as esquinas de rua [...], é um milagre

incrível e de uma comovedora beleza que nem as velhas cidades do Brasil podem disputar-lhe

[...]” (SENA, 2000: 233).

A visita feita a Angola e Moçambique rendeu páginas publicadas no Diário Popular

Lisboeta como “Crônicas de Viagem”, em 20 de agosto de 1972. Neste mesmo ano, escreve

um artigo “Sobre a Poesia de José Craveirinha” publicado em Poesia de Moçambique I. Sena

registra imagens, paisagens sempre com destaque para as obras de arte e para o ser humano. O

poema “Na Igreja dos Jesuítas em Luanda”, o eu seniano retrata a cena de uma senhora negra

de braços abertos, em silêncio, sentada diante da imagem do Cristo crucificado:

Conversa a negra no reconto em sombra da igreja tão de limpa restaurada. No chão sentada e velha, se abre os braços em frases de silêncio para o Cristo que pende morto acima dela, imóvel e silencioso. Que dirão os dois? Qual a confusa indecisão que passa angústia intimidade de sem línguas nessa cabeça antiga de outra raça e sobretudo de outros deuses que falavam por sinais mas claras frases como as sibilas feiticeiros sabem? [...] (SENA, 2013: 667)

A velha, no chão, sentada em silêncio, conversa com um deus morto, um deus

desconhecido de seus antepassados. Porém, eles se comunicam em silêncio, um diálogo sem

línguas. Pertencem a etnias e épocas diferentes, contudo a devota senhora africana reconhece

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no homem crucificado a linguagem extralinguística e universal da miséria humana. A velha,

assim como seus antepassados, “fala por sinais” com uma entidade divina. Todavia, o

Cristianismo foi implantado pela colonização europeia durante a expansão da Fé, trata-se de

um deus imposto e não cultivado.

A velha em silêncio e na posição rebaixada, de braços abertos, lembra uma vítima

sacrificial, como a figura central da tela Os Fuzilamentos de Goya, por exemplo. Comenta

Vanessa Ribeiro acerca do poema:

Se Cristo encontra-se tão silencioso quanto a velha, esta última, em resposta simbólica, poderá também estar condicionada pela imobilidade e vitimada pelo sacrifício, até a morte (RIBEIRO, 2006: 158).

A própria arquitetura da Igreja jesuíta remete ao trabalho dos padres da Companhia

de Inácio de Loyola, que pretendiam exterminar, dentre outras manifestações culturais, os

cultos religiosos dos povos colonizados: a catequese católica. “Epígrafe para a Arte de Furtar”

dedica Jorge de Sena aos portugueses. Com as mesmas palavras devia rezar a velha angolana:

Roubam-me Deus, outros o Diabo – quem cantarei? roubam-me a Pátria; e a Humanidade outros ma roubam – quem cantarei? sempre há quem roube quem eu deseje; e de mim mesmo todos me roubam – quem cantarei? roubam-me a voz quando me calo, ou o silêncio mesmo se falo – aqui-d’el-rei! (SENA, 2013: 223)

Ao ler o poema acima poderíamos substituir a ação de cantar pelo ato de orar no caso

da velha angolana, uma “confusa indecisão que passa”: quem rezarei? A Arte de Furtar dos

colonizadores deixa provas reais do total desrespeito às suas vítimas. Justamente, no altar-mor

da “Igreja dos Jesuítas em Luanda” podem estar os restos mortais de Paulo Dias de Novais,

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que a partir de 1560, juntamente com os Jesuítas, trabalhou para garantir a soberania lusitana

em Angola. Ironicamente questiona o poeta:

[...] Será que em frente do altar-mor não tremem dentro da simples laje os ossos de um Paulo Dias de Novais? Que de imbondeiros os frutos como ratos suspendidos ainda lhe roem um tutano seco no fogo de queimadas e de incêndios em que de povos só as cinzas ficam? (SENA, 2013: 668)

O espaço angolano é caracterizado pela natureza, pelos imbondeiros, cujos frutos

devoram os ossos do invasor. Queimadas e incêndios eram técnicas de ocupação e

expropriação das riquezas africanas. Metaforicamente, os autóctones também são reduzidos a

cinzas, quando rebaixados moral e historicamente pelo colonizador, no poema representado

pela figura de Paulo Dias de Novais. Jorge de Sena faz questão de registrar, testemunhar o

martírio da velha angolana, comungado com o Cristo, em silêncio. O poeta denuncia,

inclusive, o papel da Igreja Católica no processo de colonização.

Lembrando as palavras de Ida Ferreira Alves,

a poética do testemunho [...], a força do não-esquecimento, o orgulho de não se submeter. Essa trilha aponta a relação crítica entre poesia e História, envolvendo o poético com um compromisso ético com o outro e com o mundo (ALVES, 2006: 35).

Mundo este que segundo o pensamento seniano deve pertencer a quem trabalha por

ele, “a quem o faz, e não a quem vive nele como um parasita” (SENA, 2000: 232). Entre a

figura da velha negra e a de Paulo Dias de Novais, certamente o europeu fica no papel de

parasita, explorador. A mulher velha de Angola merece a recompensa por ter trabalhado toda

uma vida na construção do mundo e possivelmente reclama de suas perdas e infortúnios com

o Cristo, o deus-morto com o qual ela reparte o peso de uma cruz imposta.

O crítico Jorge de Sena faz imensa questão de não misturar política com crítica

literária e chama a atenção para o tratamento dispensado às Literaturas Africanas,

distinguindo a chamada Literatura colonial portuguesa, ou ainda Literatura ultramarina, das

autênticas Literaturas Africanas. De acordo com Salvato Trigo, tal procedimento de Sena

ocorre

não só pela intuição crítica da africanidade que ele situava fora de compromissos ideológico-políticos, mas também pelo conhecimento direto que travou com os ambientes que as obras por ele criticadas recriavam poeticamente (TRIGO, 1984: 432).

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Ao revisitar a África nos anos 70, Jorge de Sena reafirma o amor que sempre

declarou às terras de além-mar. Amor que também Baco declara aos povos africanos em Os

Lusíadas. Sena escreve uma crítica séria, sem paternalismo, “sem as macaquices europeias” e

disfarces político-ideológicos. Orgulhoso de seu pioneirismo, Sena declara o seu antigo amor

pela África:

Um dia virá – e creio que, como uma das primeiras pessoas a defender a autonomia das colônias, tenho autoridade moral para dizê-lo, e que o meu amor pela África ajuda alguma coisa – em que tudo isto deverá ser revisto como uma justiça e uma compreensão que negramente ainda faltam no país [...], quando tanto fascista de outros tempos hoje participa sobre a democracia e o socialismo em Portugal (TRIGO, 1984: 435).

No ensaio The Impact of Africa on Portugal Sena, dialogando com a História, revela

vários efeitos da colonização em África na política portuguesa, como, por exemplo, o

Ultimatum da Inglaterra.

Os republicanos aproveitaram a oportunidade acusando a Monarquia de ter traído os interesses portugueses e iniciaram uma agitação que culminou em 1910 na caída da Monarquia e na proclamação da República (tradução minha), (SENA, The Impact of Africa on Portugal. Disponível em: <http://www.lerjorgedesena.letras.ufrj.br/antologias/ensaio/the-impact-of-africa-on-portugal/>. Acesso em: 3 abr. 2012)14.

A perda de contingente masculino em Portugal acentua-se com a guerra colonial, não

só por aqueles que partem para o combate na África como os que, para fugir do serviço

militar, escaparam para outros países europeus, principalmente França e Alemanha.

Obviamente ninguém desejava o mesmo final trágico nos campos de batalha em África. Sobre

o impacto da guerra colonial em Portugal comenta Sena (no Discurso da Guarda):

Ainda mais gradualmente e até certo ponto, as guerras coloniais começam a radicalizar as próprias Forças Armadas que ficaram com medo de ser responsabilizadas com o impasse na África ou com um desastre (SENA, 2011b: 330).

Segundo Jorge de Sena a África foi responsável por moldar Portugal por mais de

cinco séculos, influenciando no destino e na História do país. A Revolução dos Cravos em

Abril de 1974 acelera o processo de descolonização das colônias africanas:

É talvez uma ironia da História que a expansão militarista desencadeada em 1415 chegou ao seu fim sob a direção de um governo que foi criado e mais ou menos dirigido pelos mesmos militares (SENA, 2011b: 331).

14 The Republicans seized the opportunity to accuse the monarchy of having betrayed the Portuguese interests and started an agitation which culminated in the downfall of the monarchy and the proclamation of the republic in 1910. (SENA, The Impact of Africa on Portugal. Disponível em: <http://www.lerjorgedesena.letras.ufrj.br/antologias/ ensaio/the-impact-of-africa-on-portugal/>. Acesso em: 3 abr. 2012.).

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As colônias africanas, nos séculos XVI a XIX, não eram muito importantes para

Portugal pela sua reduzida importância econômica, sendo o tráfico de escravos o maior

negócio. Geralmente, os povos africanos combatiam ferozmente qualquer tentativa de

exploração do interior. Até meados do século XIX, em todo o Império Português, não havia

mais do que 10.000 europeus, dos quais a maioria pertencia às guarnições militares. Em 1885,

dos 9000 integrantes do exército colonial, 8500 eram africanos.

Começando a partir de finais do século XVIII e mais significativamente nos anos 40

e 50 do século XIX, expedições organizadas, sobretudo por comerciantes locais, exploraram

pela primeira vez o interior dos territórios das atuais Zâmbia, Malawi, Zimbabwe e República

Democrático do Congo. Não havia praticamente colonos europeus até a metade do século

XIX, quadro que só começou a mudar entre 1850 e 1910. Neste ínterim, a população branca

portuguesa nas colônias aumentou quase nove vezes.

Depois de uma pausa de aproximadamente 20 anos, começou a época verdadeira de

exploração, agora com expedições científicas e militarmente bem preparadas. O colonialismo

científico aderido em Portugal incentivava os estudos sobre usos e costumes dos povos

indígenas. A partir de 1851, o governo incentivava estudos sobre flora e fauna e em 1875 foi

fundada a Sociedade de Geografia de Lisboa que influenciou de forma decisiva no

desenvolvimento das ciências tropicais. Ajudou a organizar expedições à África, fundou

museus e bibliotecas e influenciou a opinião pública com a edição de revistas e a impressão

de livros.

A curiosidade dos europeus não se restringia à flora e à fauna, senão estendia-se aos

seres humanos, com efeitos negativos para a população africana. Elementos de caráter

científico justificavam as bases ideológicas do colonialismo. “Data de 1875 a fundação da

Sociedade de Geografia de Lisboa, que permitiu uma reflexão sistemática sobre a questão

colonial, seus objetivos e suas políticas” (MACEDO, 2013: 148). Neste contexto

sociopolítico, chega em Angola a avó de Jorge de Sena. O poeta registra a seguinte relação

entre colonizador e colonizado:

Foi há cem anos, em Angola Minha avó subia de tipóia de Mossâmedes para o planalto. Dias e dias pela serra acima, de acampamento a outro acampamento, o esposo e os filhos dela noutras tipóias pelos negros carregadas.

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Ao lado dela, o chefe caminhava de lança em punho. Conversavam ambos. Uma figura estranha perpassou (quadrúpede?) no mato poeirento e verdejante. O que era aquilo? E o chefe respondeu sorrindo levemente: – Aquilo é o diabo, mas eu não tenho medo que não sou cristão – . Enfim chegaram, professora régia Como rainha se instalou. E o chefe, tão agradado dela, não voltou a comandar comboios de tipóias, ficou vivendo co’a “senhora grande”, Padre José da régia cardinal. Caía a tarde um dia em rubros sóis redondos no céu pardo. Minha avó, sentada na varanda, conversava com o chefe cachimbando acocorado. Porque tão preguiçosos eram todos os negros por ali? E o chefe disse: - Senhora sabe que diferença que há entre macaco e negro? Não? No tempo em que chegou aqui pela primeiro branco, macaco não falou, ficou calado. Por isso não trabalha. Entende agora? Sorriram-se entendidos um e outro. (Disponível em: <http://www.lerjorgedesena.letras.ufrj.br/antologias/poesia/poemas-angolanos/#cem>. Acesso em 3/8/2014).

Observa-se nesse poema que toda a família de colonos chega em Angola, em tipóias

carregadas pelos negros, que subiram a serra, por vários dias, até o planalto. Apesar do

trabalho árduo e pesado dos africanos, são vistos como preguiçosos pela senhora portuguesa

que está sendo conduzida como rainha, sem realizar esforço algum. O chefe da expedição,

“tão agradado dela”, dá uma verdadeira lição de vida à professora régia. Ele fala português,

mas não se converteu ao cristianismo, não assimilou completamente os valores europeus, não

tem medo do diabo.

O trabalhador africano e a professora régia lusitana convivem em aparente harmonia,

apesar das diferenças culturais. A visão eurocêntrica da senhora portuguesa sobre os negros é

ironicamente tratada pelo chefe. Segundo ele, a indisposição dos africanos para o trabalho

está associada ao início da colonização, pois ficaram calados após a chegada do “primeiro

branco”. O chefe usa o termo “macaco” para designar os que não falam com os brancos e, por

esta razão, não trabalham para eles. “Macaco” é aquele que não se assimilou, que não quer

comunicação para não se tornar uma presa fácil do colonialismo

Um animal não usaria uma estratégia tão elaborada para escapar do cativeiro. Se o

negro é comparado ao macaco, não deve falar nem trabalhar, assim como o macaco. Pelo fato

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de ser irracional e livre, um animal e não é chamado de preguiçoso. Vistos como inferiores

pelos administradores coloniais, os africanos passaram a ser matéria de conceituação e

teorização científica pelos eruditos metropolitanos. Uma das mais difundidas ideias era a de

sua preguiça inata, reproduzida à exaustão na obra de sociólogos e geógrafos. Ao contrário de

incapazes intelectualmente, os negros mostraram sagacidade e ironia, revertendo a ideologia

do inimigo em benefício próprio. O “macaco”, então, é aquele que percebe a dissimulação do

inimigo e não cai na cilada do discurso europeu. O poema toca em uma ferida ainda aberta até

os dias de hoje. Sena, mais uma vez, tem a coragem de escandalizar a verdade, nos termos de

Foucault e, como um cínico, nos apresenta “o outro lado da moeda.” No registro do poeta, o

africano ensina à professora que ouve a lição.

Esta incapacidade para a civilização defendida pela Europa tornava os hábitos dos

africanos estranhos, exóticos e motivaram a organização de verdadeiros “zoológicos

humanos”. Na França e na Inglaterra, as feiras e exposições coloniais ou científicas exibiam

publicamente famílias inteiras de nativos, vestidos em trajes estereotipados, junto com os

produtos naturais explorados nos territórios de Ultramar e com os animais exóticos

encontrados naqueles lugares. Esse traço de atitude se repetiu até pelo menos a década de

1930 (MACEDO, 2013: 146).

Em “O Fim do Império” escreve Sena: “Deve, todavia, ser dito que Salazar e seu

regime não inventaram o orgulho imperial: apenas o desviaram para servir de suporte a uma

política autoritária, tanto no continente europeu, como no ultramar” (SENA, 2011a: 267). O

regime salazarista dedicou mais atenção às colônias durante o período de guerra. O Ultramar

recebeu uma injeção de capital inédita na História de Portugal. A ditadura salazarista

empenha-se no projeto lusotropicalista para ludibriar as críticas internacionais. Antigas

reclamações foram, finalmente, ouvidas:

Prestou-se atenção a reclamações e pedidos velhos de décadas. Garantiram-se aos negros, pelo menos em teoria, todos os direitos, ao lado de melhores ocupações e de salários mais elevados. Beneficiaram-se a instrução e os serviços sanitários. Intensificaram-se as obras públicas. Em menos de dez anos, fez-se mais para promover o desenvolvimento do Ultramar de que nas três décadas anteriores (MARQUES, 2012: 706).

Jorge de Sena, ao desembarcar em Angola, repara e critica as mudanças locais. São

obras de fachada, maquiagem do Estado Novo para emprestar um ar de modernidade às

colônias e ocultar a realidade de miséria. Observando as aves que sobrevoam a baía de

Luanda, escreve:

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Aves na Baía de Luanda [...] uma cidade agora boçalmente nova onde não há lugar para cegonhas. Cegonhas que não sejam – como podem ficar nesta poeira de bancárias e militares empresas que se espetam em doze andares na névoa, em vez das casas baixas e velhas, ao chão presas por portas iguais de armazenar negócios do patrão que por cima co’a família tinha andar de sacadas em que recostar-se? Cegonhas? São marinhas, e se pousam. (SENA, 2013: 663)

Gilda Santos aponta para a seguinte inversão de planos: o humano domina os lugares

altos, enquanto o “baixo acolhe as aves”. Desenvolvendo essa ideia, acrescenta:

mas se as aves são o emblema da natureza neste espaço citadino, não poderiam ser lidas ainda como o emblema de tudo que aí é nativo? Não estaria também uma outra, verdadeira, Luanda, nesse tempo em que é revisitada, restrita aos espaços «baixos», submissos, a que a obriga o poderio das empresas e instituições – «bancárias e militares» – que se instalam nos doze andares? (Disponível em: <http://www.lerjorgedesena.letras.ufrj.br/ressonancias/pesquisa/ufrj/6-versos-que-revisitam-angola/>. Acesso em 3/8/2014).

Abordo na sequência um conto sobre a guerra, que se articula entre a narrativa e o

diálogo teatral, em pleno campo de batalha: “Capangala não Responde”. Três soldados

anônimos, identificados apenas por números, expressão da sua coisificação, caídos nas

“malhas que o império tece” (PESSOA, 2006: 80), se encontram isolados em território

inimigo e tentam, em vão, contato através do rádio com Capangala.

Os três soldados representam tipos sociais diferentes: o 401, “menino imberbe”

(SENA, 2006: 195), não lia jornais, era alienado em relação à situação política e social

portuguesa, trabalhava em uma oficina e pretendia se casar, quando foi para a guerra. O

soldado 54 se alistou na guerra por motivos econômicos, como antes já havia se envolvido no

aparato repressivo do regime salazarista, entregando os “ditos” comunistas, também por

motivos econômicos. O 54 é um colaborador do regime, sem, porém, ser um agente da

ditadura por convicção política:

Quando eu tinha estado na tropa, não precisava de pensar no que havia de fazer no dia seguinte. A gente, com arte, safa-se, e a cama e mesa não prestam, mas não faltam (SENA, 2006: 198).

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O 37 é filho de um ex-ministro que foi para a guerra, porque não gostava dos estudos

e queria lutar honradamente por sua pátria. Salazarista convicto, o 37 representa uma elite

social, que acredita nos ideais do nacionalismo e da defesa da pátria. Todos os três soldados,

porém, desconhecem o motivo real da guerra colonial e o verdadeiro inimigo. Alienados

politicamente, vítimas da propaganda da ditadura salazarista, não percebem a dimensão das

grades que os tornam prisioneiros. Vão para o campo de batalha por motivos diversos e, na

situação de isolamento do conto, um huis-clos clássico, os soldados portugueses percebem as

discrepâncias e diferenças entre eles, até se tornarem inimigos mortais, quando, na verdade,

estavam na guerra para combater o inimigo comum, os guerrilheiros africanos.

O soldado 54, que antes do seu alistamento cooperava com o aparato repressivo,

entregando supostos comunistas aos carrascos, se apercebe do quanto era parte das manobras

escusas dos agentes do regime, que também a ele vitimavam. O 54 compreende que a sua

situação de miserável era necessária e utilizada pelo regime para perpetuar os valores que ele

mesmo, na verdade, desprezava. Mas, como acima mencionado, desempregado, o 54

dependia economicamente da colaboração com o regime e provavelmente só na extrema

situação de isolamento e ameaça externa conseguiria despertar para a consciência da sua real

situação: “Ora! Tanto faz a gente perder-se por aqui como lá. Matam-nos de qualquer

maneira” (SENA, 2006: 201).

No diálogo travado entre os soldados 54 e 37, o primeiro percebe que o segundo,

vindo de uma classe social mais abastada e financiado pelo pai, incorpora os valores

salazaristas que levaram os três solados e, por extensão, todo o país àquela situação extrema

de vida e morte. O jovem soldado 401, por sua vez, é uma figura neutra, nem sabia que a

África existia. O antagonismo entre o 54 e o 37 simboliza no plano geral da guerra colonial

um outro conflito: a luta de classes. O soldado 54 se revolta a tal ponto que descarrega a sua

pistola-metralhadora no companheiro de guerra, identificado agora como seu real inimigo.

Com este ato fratricida (Caim), o 54 realiza a sua própria justiça e se torna

independente e superior ao Estado fascista (o grande Pai) que favorece e protege os seus

eleitos e negligencia os demais, triturados pelo sistema repressor. Entretanto, a revolta do 54

não é o único ato fratricida no conto. A própria guerra é um grande fratricídio entre

comunistas e fascistas, negros e brancos, como também constitui um ato fratricida entregar

seus semelhantes à repressão por razões ideológicas.

O soldado 401 fica perplexo diante do assassinato do 37. O soldado 54 lhe retruca:

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— E tu? Ainda ontem, eu contei, mataste três pretos, aqueles que iam correr, e tu mataste-os como se fossem bonecos de pimpampum. O 401 fitou-o: — Não é a mesma coisa (SENA, 2006: 206).

Como o cerco da guerrilha se fecha sobre os dois soldados restantes e os

guerrilheiros eram conhecidos pela castração dos inimigos antes de matá-los, o 401,

apavorado, obedece à ordem do 54 de fugir correndo. É morto em fuga pelo companheiro que

lhe faz a pergunta final: “Vês que não é a mesma coisa?” (SENA, 2006: 207). Ao final, o

conto fica suspenso como uma grande interrogação. Pelo soldado 54 perpassa uma violenta e

repentina tomada de consciência. Ele, que até aquela altura colaborava com a repressão por

motivos financeiros, mata o soldado 37 por uma questão de diferenças ideológicas e sociais,

aquele soldado que mais representa os valores do regime salazarista. O 54 acorda para as

implicações e consequências dos seus atos, motivados até este momento economicamente e

não ideologicamente. A tomada de consciência ideológica o faz explodir contra os valores que

ele mesmo ajudara a manter: “Isso de dar vivas ao Salazar é que é uma maneira de levar no cu

como outra qualquer” (SENA, 2006: 202).

Após o despertar da consciência para a sua real situação, ao soldado 54, que

provavelmente seria morto logo pelos guerrilheiros africanos, só restava livrar-se da culpa

que, direta ou indiretamente, carregava pela guerra, já que foi um elemento de sustentação do

regime durante toda a sua vida. Entregar supostos comunistas às forças da repressão e alistar-

se na guerra colonial, mesmo por motivos meramente econômicos, era também uma forma de

“dar vivas a Salazar”.

O 54 se livra desta culpa no ato catártico de assassinar o companheiro 37, ação por

meio da qual se deu conta de que ele não era seu verdadeiro companheiro e, sim, o seu

opositor. Matar o soldado 37 era, também, uma forma de matar Salazar, símbolo de um

Portugal decrépito, que se vinha acabando nas guerras coloniais. A verdadeira guerra não

estava acontecendo na África, mas sim em casa, onde os frontes da guerra não eram definidos

pela cor da pele, senão pelo poder acumulado de manipulação dos próprios cidadãos.

Mas, por que o soldado 54 mata também o jovem 401, proletário como ele, vindo de

uma posição social semelhante à dele, caracterizada pela situação financeira e pela pouca

escolaridade (expressa pela linguagem de ambos)? Este segundo assassinato cometido pelo 54

pode ser interpretado como um ato de amor, mais do que de simples e pura barbárie. Por um

lado, por motivos práticos: os dois soldados dificilmente escapariam do cerco dos

guerrilheiros africanos e a morte do 401 pode ser interpretada como um ato de misericórdia

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do 54, já que o 401 estava apavorado pela ideia de cair nas mãos dos guerrilheiros, nas quais,

muito provavelmente, sofreria torturas antes de morrer.

No plano mais simbólico, o assassinato do 401 também pode ser interpretado como

um ato de rebeldia contra o regime salazarista e a ideologia fascista que tentavam conservar, a

todo custo, uma situação colonial. No controle social do regime fascista, a morte e o poder

formam uma constante aliança, mantendo os seus cidadãos alinhados à ideologia do regime

ditatorial. A atitude do 54, ao matar o soldado 401, é um gesto radical de libertação, como nos

sugere José Carlos Rodrigues:

[...] o próprio poder (qualquer um) necessita de que seus súditos sejam soldados, quer dizer, de que tenham um certo grau e uma certa qualidade de destemor diante da morte e de que morram para permitir a vida ao poder e a continuidade do modo de vida social que ele resguarda. Este é talvez o pecado fundamental [...] pois, ao ver a relação soberano-súdito de modo unidimensional, procura fazer-nos crer que o dominante, capaz de levar o dominado à morte, não necessite da vida do súdito, quer que acredite que seu poder independa dela. E, mais ainda, quer que o próprio súdito desvalorize a importância que sua vida tem para o soberano (RODRIGUES, 1992: 41).

O conto “escandaliza a verdade” denunciando o grau de insanidade da política

colonialista de Salazar, que elimina os seus cidadãos dentro e fora de Portugal, sustentando

uma guerra colonial na segunda metade do século XX. A narrativa também revela a que grau

tinha chegado a identificação do regime salazarista com a imagem do Império Português. O

Estado Novo dependia irremediavelmente da imagem de grandeza que proporcionava a ilusão

imperial, a fim de que os muitos soldados 54 e 401 não despertassem para a sua real situação

de massa de manobra e base da ditadura salazarista.

Jorge de Sena em “Capangala Não Responde” desvenda o funcionamento da

manipulação ideológica praticada pelo fascismo de Salazar e mostra o que está por detrás do

discurso lusotropicalista. O “outro lado da moeda”: o antagonismo racial e inclusive racista,

expresso pela ideia do jovem 401 de que não é a mesma coisa matar um preto ou matar um

português. Também na fala do soldado 54 nota-se a ideologia racista por debaixo do pano da

imagem imperialista: “Toda esta pretalhada é contra nós” (SENA, 2006: 201):

Entretanto, justamente o soldado 37, que mais representa os valores salazaristas,

contesta: “Não é verdade! São fiéis [...]. Só esses bandidos que vieram do Congo é que

querem matar-nos. São pagos para isso” (SENA, 2006: 201). Com a ideia de que fossem

“fiéis”, o soldado 37 alude à imagem construída e mantida de que todos os súditos do Império

Português, fossem europeus, asiáticos ou africanos, eram cidadãos portugueses. Sabemos, por

um lado, que essa ideologia na prática não funcionou assim, sendo que os africanos, antes de

se tornarem cidadãos (de segunda classe), tinham que se assimilar.

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Jorge de Sena não só combate Salazar e o regime fascista, mas também tem a

coragem de falar a verdade sobre a sociedade portuguesa que tira os seus pequenos proveitos

da política salazarista. Muito embora Sena reconheça a alienação política de grande parte do

povo português, por ter ficado “abandonado à sua solidão / silenciosa” (SENA 1989b: 162),

não deixa de criticar sua omissão e até um certo orgulho e contentamento de alguns com as

migalhas deixadas pelo império. Testemunha o poeta:

Uma vez eu, chegando a Portugal Após muitos anos de ausência minha e alguns de guerras africanas, eu encontrei uma vizinha muito estimável que era casada com um operário categorizado e antigo republicano. O filho dela estava nas Áfricas, arriscando a vida dele e a dos outros em defesa do património da pátria de alguns (muito mais que das gerações brancas que vivem nas Áfricas). Eu condoí-me, todo embebido de noções políticas E ela com um sorriso resignado, respondeu-me: – Pois é, ma ele está a ganhar tão bem! (SENA, 1989b: 157)

Assim como o jovem do poema de Sena foi lutar em África “arriscando a vida dele e

a dos outros”, vários outros meninos portugueses perderam seus braços e pernas, a vida ou até

mesmo o prazer de viver “em defesa do patrimônio da pátria de alguns”. Grave a denúncia de

Jorge de Sena que, de certo modo, se sintetiza no soldado 401 de “Capangala não Responde”.

O “menino imberbe” simboliza a juventude portuguesa sacrificada pelo delírio colonialista. O

Estado Novo manipula e encaminha para a morte os seus próprios cidadãos para continuar a

alimentar a imagem construída por Salazar.

Exilado no Brasil, Sena vive o momento histórico do Golpe Militar de 1964 que

instalou a ditadura militar no país. Os novos governantes registram a ação ocorrida no dia 31

de março. Todavia, os opositores da ditadura militar contestam a data, afirmando que a

tomada do Forte de Copacabana só se realizou no dia 1 de abril, o “dia da mentira”.

Comprometido com a verdade e sempre vigilante, denuncia Jorge de Sena:

Hino de 1.o de Abril Os milicos milicazes nunca foram maus rapazes. Quando matam, quando esfolam, quando capam, quando amolam, quando todos se rebolam prós ianques que os engrolam, ou quando cantam de galo,

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ou relincham de cavalo, ou vão puxando o badalo mais o saco do gargalo, ou quando vendem a terra e as riquezas que ela encerra, ou quando rolham quem berra ou mesmo quem embezerra, ou quando as serras napalmam, e com fogo tudo acalmam, ou quando bancos empalmam e corruptos se desalmam é tudo sempre por bem. De Pelotas a Belém não duvide nunca alguém seja fortudo o pelém, que os milicos milicazes nunca foram maus rapazes. (SENA, 1989b: 106)

No prefácio da novela O Físico Prodigioso, Gilda Santos chama a atenção do leitor

para o fato de o texto ter sido redigido por Sena em maio de 1964, logo um mês após a data

oficial do Golpe Militar no Brasil. Levando em consideração a importância do circunstancial

na escrita seniana, podemos concluir que O Físico Prodigioso foi gerado “no calor da hora,

sob o impacto das notícias, medidas e sanções que instituíram o novo regime ditatorial no

Brasil” (SANTOS, 2009: 10).

Apesar da atmosfera medieval, a novela de Sena denuncia as circunstâncias políticas

tanto no Brasil, quanto em Portugal ou “a qualquer tempo ou lugar onde impera o desmando e

a desrazão” (SANTOS, 2009: 10). Acerca do trabalho criativo de Sena na elaboração de sua

novela, comenta ainda Gilda Santos que “entremeando alegoria e ironia, constrói Sena uma

ácida imagem do despotismo disfarçado sob o manto da verdade e da justiça” (2009: 11).

A revolta e o inconformismo de Sena não se restringem às questões pátrias, ou

pessoais, são de natureza universal. Seu testemunho contra tudo o que há de malsão e

incômodo à liberdade humana percorre toda a sua obra, onde Portugal ocupa um lugar de

destaque. Uma de suas mais belas composições não poderia deixar de ser aqui evocada, “um

poema em que ecoam todas as guerras, mesmo daquelas guerras futuras, para as quais

precisamos de um poema como este” (LOURENÇO, 2012: 88).

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Carta aos meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya Não sei meus filhos, que mundo será o vosso. É possível, porque tudo é possível, que ele seja aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo, onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém de nada haver que não seja simples e natural. [...] (SENA, 2013: 347)

O poema elegíaco, de espessa melancolia, sintetiza preocupações de Sena com os

rumos da humanidade. Os heróis cantados não figuram nos livros escolares com seus feitos

grandiosos. Ao contrário, são esquecidos, como requer a ideologia dominante:

[...] Um dia sabereis que mais que a humanidade não tem conta o número dos que pensaram assim, amaram o seu semelhante no que ele tinha de único, de insólito, de livre, de diferente, e foram sacrificados, torturados, espancados, e entregues hipocritamente à secular justiça, para que os liquidasse “com suma piedade e sem efusão de sangue” Por serem fiéis a um deus, a um pensamento, a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas à fome irrespondível que lhes roía as entranhas, foram estripados, esfolados, queimados, gaseados, e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória. [...] (SENA, 2013: 348)

O anseio e o desespero do poeta em não viver num mundo livre, “conforme o gosto”

de cada um, manifestam-se por uma preocupação que vai além do motivo expresso na pintura,

evocando outras conflituosas épocas da História. O quadro de Goya motiva o poeta a

questionar a natureza humana e a responsabilidade de se estar no mundo. Em todas as suas

andanças, Jorge de Sena, por onde passou, testemunhou Os desconcertos do Mundo, buscou a

verdade dos fatos e clamou por justiça. Onde haja um crime contra a humanidade, o poeta

cínico levanta a voz para:

Espiral [...] Que os homens entendam, que os homens lutem, que os homens esmaguem os sinais inventados. (SENA, 2013: 89)

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5 A rota e a derrota do Império: imagem e contra-imagem de Moçambique

5.1 Colonização e formação do Estado

Até o século XVIII, o que hoje é Moçambique serviu aos portugueses,

principalmente, de escala nas suas viagens à Índia. O único comércio de interesse era o do

ouro no vale do Zambeze. O tráfico de escravos só ganhou destaque em Moçambique, quando

os holandeses conquistaram Angola em 1641 e os navios negreiros portugueses buscaram

outras fontes para a sua mercadoria humana. Quando, na década de 1720, os franceses

começaram a transferir grandes números de escravos para as suas possessões no oceano

Índico, a comercialização de humanos ganhou importância também em Moçambique. Entre o

final do século XVIII e o século XIX, o tráfico de pessoas cativas cresceu constantemente.

O crescimento do comércio internacional de escravos superava os lucros obtidos com

a exploração do ouro e do marfim. Os “feros lusos” chegaram a desativar algumas minas e

passaram a caçar seres humanos para o ideal do plantation. Não sem resposta bélica local,

como, por exemplo, dos tsongas, uma das etnias do sul de Moçambique.

O território mais disputado em Moçambique era Lourenço Marques, devido à

importância estratégica da baía para se chegar ao interior do Transvaal, região rica em minas.

Em 1869, a República bôer do Transvaal reconheceu a soberania portuguesa sobre a baía de

Lourenço Marques, em troca do acesso privilegiado ao mar, pelos portos moçambicanos. Este

acordo colidiu com a tentativa inglesa de controlar as repúblicas dos colonos bôeres,

principalmente após a descoberta de jazidas de diamantes na República do Transvaal. A

Inglaterra reagiu, reclamando a baía para si e as querelas sobre a posse do espaço só

terminaram, em 1875, mediante uma arbitragem internacional pelo presidente francês Mac-

Mahon, que reconheceu os direitos históricos e a soberania definitiva de Portugal sobre a baía

de Lourenço Marques.

Com o tratado entre Portugal e Alemanha, assinado em 1886, definiram-se as

fronteiras entre o território português em Moçambique e o território alemão na fronteira norte.

Pelo mesmo tratado, a Alemanha reconhecia os planos portugueses de ligar as suas colônias

Angola e Moçambique por terra. Estes planos foram rotundamente rechaçados pela Inglaterra

no Ultimatum de 1890. As fronteiras da colônia portuguesa no sul de Moçambique foram

delimitadas entre Portugal e Inglaterra no tratado de 1891.

Com o início da ocupação efetiva, acabou uma época de presença portuguesa em

Moçambique, que se caracterizava pelas feitorias, fortalezas e postos oficiais ao longo da

costa. Mas para tal era necessária a força militar. Moçambique foi a colônia portuguesa que

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mais resistência oferecia à conquista e onde ações militares de subjugação ganharam mais

destaque. As quatro décadas entre 1890 e 1930 foram marcadas por consecutivas campanhas

de “pacificação” ou ainda “domesticação” para ocupar o território.

A revolta dos régulos (líderes tradicionais) Vátua no verão de 1894 iniciou uma fase

de três anos de combates entre os Vátua e as forças portuguesas que terminou com o soberano

vátua Gungunhana, depois de muita luta e resistência, preso e exposto nas ruas de Lisboa

como um troféu conquistado pelos “Barões Assinalados” (SANTOS, 2011: 4). Os lusitanos

fizeram do rebaixamento de um outro ser humano um símbolo de glória e de patriotismo. As

vitórias contribuíram para que o direito português de ocupar a sua colônia Moçambique fosse

aceito pelas outras potências coloniais europeias.

Na época da ocupação efetiva, o conceito liberal de 1820, de que a nação portuguesa

é composta por partes iguais nos vários continentes, se transformou de conceito teórico em

sentimento vivido por largas camadas sociais portuguesas. Nas palavras de José Luís Cabaço:

Neste momento histórico se enraizou a sinonímia entre “Pátria” e “Império” que o salazarismo, três décadas e meia mais tarde, exaltaria e faria coincidir com a noção de “missão civilizadora”, conseguindo que essa associação se interiorizasse como traço marcante da identidade nacional portuguesa (CABAÇO, 2007: 81).

Além da estratégia bélica, a necessidade de ocupação e desenvolvimento do território

foi favorecida e fomentou ao mesmo tempo estratégias de caráter econômico. Desde antes da

chegada dos portugueses no oceano Índico, comerciantes indianos, hindus e islâmicos já

mantinham redes de comércio com a costa moçambicana, das quais os portugueses se

apoderaram em seguida.

Companhias majestáticas privilegiadas, financiadas por capital estrangeiro, foram

criadas na década de 1890 e no início do século XX, estimulando principalmente a agricultura

e a exploração mineira. Todas elas contribuíram para um rápido crescimento econômico de

Moçambique. Apenas em 1895/96 Moçambique começou a apresentar orçamentos

equilibrados e cresceu economicamente, dobrando as suas receitas entre 1880 e 1910,

ultrapassando Angola. Mesmo assim, a importância econômica das colônias para Portugal não

era decisiva, representando 16% das receitas públicas da metrópole em 1910. Quanto à

industrialização, Portugal, até os anos 60 do século XX, realizou uma política tipicamente

colonial. Moçambique era produtor de matérias-primas e mercado para os produtos

industrializados vindos da metrópole. A industrialização das colônias não fazia parte dos

planos até o começo das guerrilhas libertadoras.

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No século XIX, os esforços oficiais de promover a colonização nos territórios

portugueses africanos não surtiram muito efeito. Emigrantes se interessavam em geral pelo

Brasil ou pelos Estados Unidos e não pela África. Até meados do século XIX, não mais que

10.000 europeus se espalhavam em todo o Império Português. A maior parte se compunha de

degredados e militares das guarnições. Estas, por sua vez, eram compostas na sua maioria por

soldados indígenas, africanos e asiáticos, e só os oficiais eram portugueses.

Entre 1850 e 1910, a população portuguesa nas colônias africanas aumentou entre

oito e nove vezes. Mesmo assim, não havia em Moçambique mais que entre 5000 e 6000

europeus e a sua capital e maior cidade, Lourenço Marques, não concentrava mais que 20.000

habitantes em 1910. O império, demograficamente, não tinha grande importância para

Portugal, nem mesmo na resolução de problemas de emigração.

A crescente colonização portuguesa associava-se ao urbanismo acentuado não só em

Moçambique, mas em todas as colônias africanas. Os colonos brancos viviam na sua maioria

nas cidades. A população urbana era complementada por africanos “assimilados”,

dependentes dos colonos brancos, enquanto a população africana no campo tinha escassas

ligações com o meio urbano. Tal como na metrópole, também as colônias africanas passaram

a ser dominadas por uma cidade-capital. Substituindo a Ilha de Moçambique como capital em

1898, Lourenço Marques tinha uns 14.000 habitantes em 1910, cifra que passou para 37.000

em 1928, 78.000 em 1960 e 350.000 em 1970, com a porcentagem de habitantes portugueses

sempre aumentando.

O primeiro modelo de um Estado colonial em Moçambique se manifestou através do

sistema dos prazos, que foi inspirado no sistema feudal da metrópole e pelo qual a Coroa

arrendava as terras da colônia, sobretudo no vale do Zambeze, a colonos portugueses que

tinham a obrigação de assegurar a submissão das populações africanas à Coroa portuguesa.

Para isso, tinham o direito de manter forças militares, de fazer justiça, de determinar a

economia dos seus territórios e de cobrar impostos (chamados de mussoco e mais tarde

imposto de palhota). Os prazeiros, que recebiam os seus direitos por um prazo de três

gerações (daí o nome), interagiram com as estruturas locais de poder, aliando-se aos

soberanos africanos por casamento e adquirindo desta forma legitimidade. Com o passar do

tempo, os senhores dos prazos se misturavam com a população africana e passaram a

constituir uma classe dominante mestiça, que controlava o tráfico de escravos no interior da

colônia.

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Com o gradual desenvolvimento da agricultura, o lento aumento das cifras dos

colonos portugueses e a incipiente colonização efetiva de Moçambique, aumentaram os casos

de conflitos entre colonizados e colonizadores nos seguintes níveis: (a) o nível militar entre o

exército português e os chefes dos povoados africanos que sofreram campanhas de

“pacificação”, sendo ocupados como os reinos de Gaza ou Barué; (b) administrativamente

produziram-se conflitos com as autoridades tradicionais africanas, cooptadas pela

administração colonial para apoiar na imposição das suas determinações, variando desde o

despejo de africanos das suas terras até a cobrança de impostos e o recrutamento de mão-de-

obra; (c) no contexto social, cresceram as tensões entre colonizados e colonizadores, tanto no

campo entre proprietários de terras e trabalhadores rurais, quanto nas cidades, onde o

operariado emergente tentava fazer valer os seus direitos com greves; (d) um conflito político-

econômico se produzia na própria burguesia portuguesa, os colonos portugueses em

Moçambique e a metrópole discordavam sobre a melhor via de desenvolvimento econômico

da colônia.

Conflitos e protestos também foram gerados pela acentuação das discrepâncias entre

teoria e prática do domínio colonial. A colonização fez necessária uma definição jurídica e

social das relações entre colonizadores e colonizados. O colonialismo português sempre

buscava converter os africanos em portugueses. Em 1820, com a vitória da revolução liberal,

todos os africanos das colônias portuguesas tinham sido declarados cidadãos portugueses.

Embora esta declaração de intenção tenha permanecido teórica, gerava efeitos concretos nas

colônias: a cultura e as línguas africanas eram consideradas empecilhos para o projeto de

“aportuguesar” os “indígenas” e só foram toleradas como estado passageiro para que

portugueses e africanos pudessem se comunicar.

O padrão social no que diz respeito ao ensino, à língua oficial, à religião, à moral e

aos costumes era estritamente português e cristão. O colonialismo português bebia na sua

concepção, sobretudo, em fontes francesas, defendendo a política de trazer aos povos

africanos, preconceituosamente considerados atrasados no sentido evolucionista, os valores da

civilização europeia superior. O modelo português do colonialismo pretendia a assimilação do

indivíduo colonizado.

Este conceito foi fixado em nível constitucional. Segundo o artigo 20 da constituição

de 1822, a Nação Portuguesa era formada pela “união de todos os portugueses de ambos os

hemisférios” (MARQUES, 2012: 533). O texto da constituição não fazia qualquer distinção

entre portugueses nascidos na metrópole ou no além-mar, nem entre várias origens étnicas.

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Esta ideia, em teoria, foi mantida em todas as constituições subsequentes (1826, 1838, 1911,

1933), embora a composição social e étnica do Império Português fosse se transformando

consideravelmente desde 1822, quando o império constituía pouco mais do que pequenas

faixas costeiras das respectivas colônias, habitadas na sua grande maioria por portugueses e

africanos europeizados.

A legislação e os códigos administrativo, civil e penal, representavam uma lógica de

estrita centralização. Eram aplicados nas colônias asiáticas e africanas, basicamente, sem

ajustá-los aos costumes e às tradições locais. Uma reforma em 1869 concedeu maiores

poderes aos governadores das colônias. Contudo, a administração colonial foi marcada,

durante toda a Monarquia constitucional, por uma grande instabilidade dos governadores, que

raras vezes permaneceram nos seus postos por mais de dois anos. A instabilidade

governamental teve consequências desastrosas para a administração e o desenvolvimento das

colônias portuguesas.

A crescente colonização teve os seus reflexos na organização administrativa das

colônias. Até 1911, estas eram administradas militarmente. Em Moçambique, o comissário

régio, António Enes, começou, a partir de 1895, a instalar as chamadas “circunscrições

indígenas” nos territórios ocupados. Para a sua administração foram criados três importantes

marcos jurídicos: o Código de Trabalho Rural de 1899, que determinava a obrigatoriedade do

trabalho “indígena”; a Regulamentação da Posse da Terra em 1901 que transferiu para a

propriedade do Estado todas as terras não ocupadas; e em 1902 a “Curadoria dos Negócios

Indígenas e Emigração” que visava implementar uma legislação especial voltada aos

“indígenas”.

Em 1907 foi publicada a Reforma Administrativa de Moçambique, com a qual “a

concepção colonial tutelar começava a prevalecer no espírito dos governantes portugueses”

(CABAÇO, 2007: 101). Instalava-se um sistema administrativo de governo indireto, no qual

os régulos ou regedores, lideranças africanas tradicionais, cuja base de poder tradicional tinha

sido esvaziada e dotada de novas funções e competências, servindo às necessidades da

administração colonial, “representavam, contemporaneamente, o último escalão do aparelho

administrativo e o primeiro escalão da sociedade indígena” (CABAÇO, 2007: 106).

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5.2 A construção do “outro” e a configuração social

Com a ocupação efetiva das colônias, de repente, o Império Português estava

formado por uma população africana de considerável tamanho. Apesar da concepção teórica

igualitária do Império Português, os africanos não foram considerados automaticamente como

cidadãos portugueses. Eram, a priori, considerados “indígenas”, e “do ponto de vista social, o

foco do discurso centrava-se no «outro», diferente, o «indígena» [...]” (MARQUES, 2001:

527).

Depois dos primeiros contatos com os povos africanos, marcados por surpresa e

espanto frente às realidades exóticas e diferentes, “a incompreensão do Outro” (CABAÇO,

2007: 136) passou por um processo lógico de estruturação, ligado à construção de relações de

dominação entre os portugueses e os povos africanos. A descrição do outro enfatizou a

ausência de características europeias das sociedades africanas, o que levou prontamente à

desqualificação das sociedades africanas como deficitárias e à consequente percepção da

cultura portuguesa, europeia como superior.

A colonização efetiva reforçou o dualismo entre colonizador e colonizado, em razão

dos interesses econômicos e políticos dos colonizadores. Estes interesses dependiam do

dualismo entre dominador e dominado, para que as colônias pudessem ser exploradas a

serviço da metrópole, necessidades, todavia, que não coincidiam com o ideal igualitário de

todos os habitantes do Império Português, introduzido com a revolução liberal de 1820. A

contradição foi resolvida mediante a visão evolucionista, que sistematizava a História e a

cultura humana, e afirmava a unidade do gênero humano. As diferenças culturais passaram a

ser entendidas como diferentes estágios na evolução da cultura humana, sendo a sociedade

europeia definida como apogeu do processo evolutivo progressivo. Deste jeito, as potências

coloniais justificaram a sua visão de superioridade e a dita inferioridade das sociedades

colonizadas.

A justificativa do dualismo entre colonizador e colonizado na construção do Estado

colonial se baseava em interesses concretos econômicos. Segundo Oliveira Marques, a

relação entre o Estado colonial e os nativos africanos era principalmente regida pela

necessidade de mão-de-obra barata, quer dizer coerciva. Entre 1890 e 1930, o Estado

português, basicamente, assumiu a função de fornecedor de mão-de-obra barata, seja para as

necessidades do Estado colonialista português, seja para cobrir a demanda insaciável das

minas dos territórios da África do Sul.

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A visão colonial do africano como “uma criança grande”, que devia ser “europeizado

e civilizado” mediante o trabalho, justificava moralmente a necessidade capitalista do

emprego da mão-de-obra forçada, regulamentada através dos “diplomas legais de 1878, 1899,

1911, 1914 e 1928” (MARQUES, 2001: 526). A mão-de-obra forçada era necessária para

realizar o objetivo principal da colonização, que era, na visão de António Enes, a

“modernização da economia e a melhoria das condições de vida em Portugal” (CABAÇO,

2007: 145). Para tal, as colônias tinham que se tornar independentes economicamente. Para

alcançar a autossuficiência, elas precisavam do trabalho “indígena” forçado. O uso da mão-

de-obra forçada foi justificado por Enes e os seus seguidores como missão civilizadora. Essa,

porém, não podia realizar-se rapidamente, haja vista a necessidade de manter os africanos

como trabalhadores forçados. À assimilação foi-lhe atribuído um caráter mais “tendencial”:

Os colonizados deixavam de ser “iguais” para serem “tendencialmente” passíveis de se tornarem iguais. Para o capitalismo era preciso que os homens fossem “diferentes” para se justificar a diferente atribuição de seus direitos (CABAÇO, 2007: 146).

A legislação trabalhista voltada para os nativos africanos era uma das principais

preocupações na política colonial. Para formular o código de trabalho indígena de 1899,

António Enes se baseou no regulamento de 1878 que substituiu “o trabalho dos «libertos»

pelo trabalho «contratado»” (CABAÇO, 2007: 147), introduzindo a categoria jurídica do

“vadio”. Pela legislação vigente, ninguém podia ser forçado a ser contratado, com exceção

dos “vadios”. Como a maioria da população africana vivia da subsistência, não exercendo um

trabalho assalariado, os nativos podiam ser facilmente enquadrados na categoria de “vadios” e

ser obrigados a trabalhar segundo as necessidades do Estado colonial.

O sistema colonial dual, baseado na hierarquização da sociedade colonial, na

dominação dos colonos sobre os colonizados e no trabalho forçado não mudaria

essencialmente e foi mantido também durante o período da República. Embora a legislação

republicana tenha abolido teoricamente qualquer diferença entre colonos e africanos e

abandonado o trabalho forçado, na prática, não mudou grande coisa. Por um lado, os governos

coloniais simplesmente não acatavam a legislação vinda da metrópole, por outro lado esta não

se empenhava muito em impor as leis igualitárias. Em respeito à legislação trabalhista, foi

publicado, em 1914, um novo “Regulamento Geral do Trabalho dos Indígenas das Colônias

Portuguesas”, que, embora o limitasse às obras estatais e municipais, não abandonou o

trabalho forçado.

Durante a Primeira República, em 1917, piorou a situação legal dos africanos de

Moçambique, com a concretização da política da assimilação que criou e impôs a distinção

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jurídica entre “indígena” e “não-indígena”. Uma portaria do governo colonial de Moçambique

dividiu pela primeira vez, juridicamente, os habitantes da colônia em cidadãos portugueses e

“indígenas”, que se transformariam em cidadãos portugueses no futuro. Esta portaria era

chamada de “portaria do assimilado” por introduzir o estatuto de “assimilado” (MARQUES,

2012: 528). O objetivo da política de assimilação era a transformação dos “indígenas” em

“assimilados” à cultura, aos costumes e aos valores sociais e morais europeus. O estatuto de

“assimilado” era concedido pelas autoridades portuguesas aos “indígenas” que provassem ter

adotado “um comportamento social e cívico de índole europeia” (MARQUES, 2001: 528). As

provas consistiam na educação, no abandono da cultura autóctone, num casamento

monogâmico, no uso de roupa europeia, numa fonte de renda e no domínio da língua

portuguesa.

O Acto Colonial de 1930, transformado em Lei Fundamental pela sua incorporação

na Constituição de 1933, definiu a nova política colonial do Estado Novo. Manteve o trabalho

compulsório não remunerado, porém limitando-o a “obras públicas de interesse geral da

colectividade, em execução das decisões judiciárias de carácter penal, ou para cumprimento

de obrigações fiscais” (art. 20o, CASTELO, 2011: 46).

Após a Segunda Guerra Mundial, Portugal ficou cada vez mais na defensiva com o

seu modelo de colonialismo. A política de assimilação não tinha produzido resultados

suficientemente rápidos, no sentido de transformar os africanos em portugueses, para poder

contestar a conjuntura internacional de revisionismo da ordem colonial. Começavam a surgir

modelos diferentes de enxergar a nação e o império. Propuseram-se abordagens alternativas

da questão “indígena”, que levariam em conta os tempos e espaços dos povos “indígenas”,

permitindo que elas construíssem identidades específicas para cada povo, porém todas

moldadas pela matriz cultural portuguesa.

Estas propostas não ganharam espaço, porque, na visão predominante, os

“indígenas” só deixavam de ser “indígenas” com a assimilação total dos valores portugueses.

A ideia freyriana da mestiçagem desafiava a superioridade e a pureza da raça portuguesa, na

qual a mística nacional-imperial se baseava. Os setores conservadores da sociedade

portuguesa também não aceitavam o protagonismo dos “indígenas” em conjunto com o

colonizador na construção de uma nova identidade, estipulada pelas ideias de Freyre.

Só a partir dos anos 1950, o regime salazarista, pressionado pela conjuntura política

nacional e sobretudo internacional, começou a incorporar ideias lusotropicalistas, para

reestruturar a política de assimilação. A última atualização e uniformização da política de

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assimilação ocorreu em 1953, com a publicação do “Estatuto dos Indígenas Portugueses da

Guiné, Angola e Moçambique”, que estava em vigor até 1961, quando o indigenato foi

abandonado.

Em 1961, nasceu a política de integração, que adotou das ideais freyrianas,

sobretudo, aquelas que “reforçavam, e davam novo vulto, a ideias-força que já faziam parte

da ideologia colonial”: a transcendência e intemporalidade do “modo português de estar no

mundo” que se caracterizaria por uma especial vocação do povo português para os trópicos e

um “gênio português”, justificando, assim, a interpretação do Império Português como uma

“civilização” e dos portugueses como uma “raça”; a “tolerância” e “plasticidade” da

colonização portuguesa servem para encobrir a violência colonial; a “unidade de sentimentos

e de cultura” sob hegemonia da língua portuguesa estabelece uma “área de cultura

portuguesa” unida; a afirmação de que o interesse econômico tenha sido secundário na

colonização portuguesa encobre a avidez da colonização (CABAÇO, 2007: 279-80).

A nova política de integração do regime salazarista não punha em discussão a ordem

social e a hierarquização do sistema dualista colonial português. O Estado Novo se

concentrava num enfoque jurídico institucional preocupado com a forma, não com a essência

e muito menos com a mudança das relações entre colonizados e colonizadores no império. O

regime queria mostrar, frente à pressão internacional, que os territórios portugueses

geograficamente separados formavam uma única nação, e que todos os habitantes eram

cidadãos portugueses.

Os intelectuais africanos se posicionavam contra o aval que a reputação internacional

do sociólogo Gilberto Freyre dava ao regime colonial salazarista. Fora isso, o

lusotropicalismo não mereceu debate no movimento de libertação. Só era combatido enquanto

instrumento de propaganda do regime para construir a imagem de Portugal para a visão

internacional.

A pequena burguesia africana se desenvolveu por um lado com base na elite mestiça

dos “filhos da terra”, descendentes dos aventureiros e comerciantes portugueses que tinham se

estabelecido em Moçambique entre os séculos XVI e XIX e que se tinham misturado e

integrado à população africana. Esta camada social dos “filhos da terra” ou “brancos da terra”

perdeu constantemente espaço com o desenvolvimento da economia capitalista colonial. Por

outro lado, a política de assimilação criou, nos centros urbanos, uma pequena elite letrada

negra. Para tentar defender os seus interesses, tal elite começou a se organizar nas primeiras

décadas do século XX, fundando, em 1906, o meio de comunicação O Africano, em cujo

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primeiro número delineava o programa para uma associação exclusivamente de africanos, o

Grêmio Africano de Lourenço Marques (GALM), que defendia os interesses dos

trabalhadores africanos no contexto urbano.

A portaria provincial do governo colonial de 1917 integrou esta elite na categoria de

“assimilados”. Assim, juridicamente, a tradicional elite moçambicana passou a ser constituída

por indivíduos de raça negra. Era uma estratégia do divide et impera, já que com a

classificação como “assimilados”, os “filhos da terra”, civilizados, eram separados das massas

“indígenas”, consideradas incivilizadas. Para evitar a concorrência dos “filhos da terra” na

disputa por empregos, a elite tradicional foi distinguida dos colonos recém-chegados,

cidadãos portugueses. A oficialização da raça como critério social afastou de vez a elite

tradicional do poder econômico e político e, ao mesmo tempo, preveniu a identificação com a

população “indígena”.

O estatuto de “assimilado” foi prontamente rechaçado e combatido pelas

agremiações africanas em Moçambique por considerá-lo discriminatório e humilhante.

Embora teoricamente qualificados por direito à cidadania portuguesa, dificilmente os

“assimilados” sairiam da condição de cidadãos de segunda classe. Exercia-se uma

discriminação social e econômica sobre eles que contrastava com a igualdade teórica de todos

os portugueses no império multicontinental.

A crítica mais articulada por parte de integrantes da pequena burguesia africana

expressou-se no famoso artigo de 1919: «Deus e o meu Direito», no jornal O Brado Africano,

sucessor de O Africano, publicado pelo Grêmio Africano em Moçambique. O discurso

contestatório era orientado tanto pela indignação sobre a discriminação, como também pela

crescente concorrência laboral no meio urbano entre trabalhadores portugueses migrados para

Moçambique, cada vez maior em números, e os trabalhadores negros considerados

“assimilados”. Estes lutavam tanto pelo direito à cidadania quanto pelo direito ao trabalho. A

luta contra as leis de exceção formariam, a partir deste momento, o eixo norteador da luta

africana.

A política de assimilação em Moçambique não teve grandes sucessos e os colonos

portugueses, que deveriam ajudar na assimilação da população africana, só estavam

interessados em fazer lucro rápido e fácil nas colônias. A assimilação não era para eles um

objetivo válido. Os africanos, na sua visão, precisavam apenas ser treinados suficientemente

para poderem servir às necessidades dos colonos.

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O processo de formação de uma nova identidade moçambicana deixou o Estado

colonial confuso, já que a assimilação nunca viu o africano como sujeito atuante. Os atores

eram sempre as autoridades portuguesas, a igreja ou os colonos, cujo objetivo era transformar

o “indígena” passivo em português. Moçambique será o palco do encontro de vários grupos

políticos que formarão a base da luta pela libertação do domínio lusitano. Aumentando o

clima revolucionário, “se juntarão quadros assimilados da chamada «pequena burguesia

africana» e intelectuais que conduzirão a colônia moçambicana à independência” (CABAÇO,

2007: 207).

5.3 Independência e liberdade de Moçambique

Desde o início do período de ocupação efetiva, existiam tentativas e esforços

contestatórios das práticas coloniais do Estado português. Porém, faltaram organização,

unidade e objetivos estratégicos às tentativas de resistência, consequência do desequilíbrio de

forças entre o aparato colonial e a população autóctone. A base intelectual para a reconstrução

da resistência africana após a queda dos impérios e reinos tradicionais em Moçambique, veio

da leitura das ideias de intelectuais e ativistas da diáspora africana na América do Norte e no

Caribe, que desenvolveram a importância da raça, defendendo a unidade racial e a

identificação com as raízes africanas como fundamento da luta contra a sua opressão.

A partir de 1900 construiu-se o conceito do Pan-africanismo, cujas reivindicações

giraram em torno da emancipação dos africanos, dos mesmos direitos para negros e brancos e

do direito a formas de autogoverno para os povos africanos. A exigência de independência

das colônias africanas surgiu após a Segunda Guerra Mundial no Congresso Pan-africano, em

Manchester, em 1945.

A formação da resistência africana internacional ao colonialismo teve repercussões

no Império Português. Com apenas três volumes publicados, em 1911 foi lançado o jornal O

Negro em Lisboa, reivindicando a emancipação das colônias e a igualdade entre as raças.

Soprando os ventos do Pan-africanismo em Portugal, estudantes vindos de São Tomé

fundaram a Junta de Defesa dos Direitos d’África (JDDA) em 1912. Em 1920, é criada em

Portugal a Liga Africana, reunindo estudantes e trabalhadores de origem africana.

Estas organizações e publicações viriam a ser a base teórica e intelectual dos

movimentos independentistas dos anos 60, mas não constituíam perigo para o Estado colonial

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na época da sua fundação. Eram movimentos de elite sem grande impacto na população

africana e não eram favorecidos pela conjuntura política mundial. Em 1926, o Estado colonial

português implantou a censura, o que reduziu a importância das publicações africanas mais

ainda.

Só após a Segunda Guerra Mundial, com o despertar geral de movimentos

independentistas nas colônias europeias, formou-se também o movimento de independência

moçambicano. Os primeiros independentistas surgiram no reduzido meio social dos

“assimilados” e os movimentos anti-salazaristas na metrópole do pós-guerra parecem ter sido

parte das origens políticas de alguns líderes independentistas moçambicanos. Outros fatores

influentes na formação e no percurso dos futuros nacionalistas das colônias eram as igrejas

missionárias protestantes, o redespertar étnico entre os africanos, a emigração para países

vizinhos e a onda de declarações de independência na África a partir da década de 50 do

século XX.

Foi entre os escassos estudantes africanos que foram estudar a Lisboa que se

formaram alguns dos mais importantes líderes das lutas coloniais pela independência. A Casa

dos Estudantes do Império (CEI), fundada em 1944, “com o apoio do governo português, com

o intuito de ajudar e, em boa medida, também controlar os originários das colônias/províncias

portuguesas que vinham dar continuidade a suas formações escolares na metrópole”

(ANDRADE DE MELO, 2012: 195), representava um dos maiores núcleos de resistência ao

imperialismo lusitano.

No seio da CEI se formaram os futuros líderes como Vasco Cabral, Amílcar Cabral,

Luís Motta, Marcelino dos Santos, Agostinho Neto, dentre outros nomes importantes na luta

pela independência das, então, colônias africanas. Todavia, a instituição enfrentava diversos

limites “porque o governo metropolitano estava sempre atento às ações de seus membros”

(ANDRADE DE MELO, 2012: 106). Em 1954 foi fundado o Clube Marítimo Africano

(CMA) formado por marinheiros africanos que trabalhavam na marinha mercante portuguesa

e por integrantes da CEI. O Clube oferecia uma estrutura mais protegida para a ação

revolucionária, pois “lá não haveria filhos de colonos e de funcionários da administração

colonial dispostos a vigiar suas ações e defender o regime” (ANDRADE DE MELO, 2012:

197).

A ação política dos futuros quadros dos movimentos de independência muitas vezes

começou em contato com as forças de oposição ao regime salazarista. A partir de meados dos

anos 50, os líderes das lutas independentistas começaram a se apresentar como representantes

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autônomos das colônias. Em 1957, o Partido Comunista lhes outorgou o seu apoio para a luta

autônoma pela independência das colônias. Começou, então, uma onda de fundação de

movimentos unitários e nacionais de luta pela independência.

A base social do movimento pela independência em Moçambique difere dos

exemplos da Guiné, de Angola e de São Tomé e Príncipe. Enquanto nestas colônias, os

movimentos revolucionários foram dirigidos por quadros de formação portuguesa e tinham

sua base social entre os “assimilados”, no caso de Moçambique, muitas lideranças que

trilharam o caminho rumo à independência não tinham uma ligação estreita com a cultura e a

língua portuguesas.

Juntaram-se na gênese do movimento de libertação nacional moçambicano ativistas e

militantes de diferentes bases sociais: por um lado, trabalhadores emigrados e refugiados dos

países vizinhos, cuja base social era predominantemente rural e, por outro lado, africanos das

periferias urbanas, familiares com a vida moderna citadina. Os dois polos da luta nacionalista,

a revolta rural e o protesto urbano se estimularam mutuamente, mas também representaram

fontes de conflitos. Enquanto na organização e construção da luta armada pela independência

predominava

a agitação de base nas áreas rurais, as experiências dos jovens estudantes, que prosseguiram seus estudos em Portugal ou em outros lugares, foram importantes para a formação da consciência nacional em Moçambique (CABAÇO, 2007: 392-3).

Diversas organizações que contestavam a presença dos portugueses na África foram

se consolidando em países vizinhos da colônia portuguesa, recrutando os seus membros entre

os trabalhadores moçambicanos emigrados. Em 1962 foi fundada a Frente de Libertação de

Moçambique (FRELIMO) em Dar es Salaam, na Tanzânia, fruto da fusão de três movimentos

anteriores.

A FRELIMO a princípio tentou evitar o confronto armado com o colonizador.

Porém, em 25 de setembro de 1964, o porto de Chai é atacado por rebeldes, dando início à

luta pela libertação de Moçambique que durou cerca de uma década. Os primeiros anos de

combate até 1968 se limitaram ao norte de Moçambique, onde a população europeia era

escassa. Os primeiros combatentes foram recrutados entre os refugiados moçambicanos na

Tanzânia e no grupo étnico dos macondes. Habitando o norte de Moçambique, constituiu a

base de apoio à FRELIMO e de recrutamento de novos combatentes.

Estes primeiros anos de luta viveram bastante agitação dentro da FRELIMO, com

várias cisões que, entretanto, não prejudicaram a ação no campo de batalha e nem ameaçaram

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a representação exclusiva da causa moçambicana pela FRELIMO no plano internacional. Em

1970, Samora Machel, chefe das forças militares da FRELIMO, assumiu a presidência da

FRELIMO e consolidou a linha revolucionária e de guerra popular dentro da organização,

conferindo-lhe maior nitidez programática.

Para a construção de uma identidade nacional moçambicana foi decisiva a definição

do inimigo, o colonialismo, como alvo da luta armada. A linha de separação não passava só

entre colonizador e colonizado, senão também entre explorador e explorado. Combatia-se o

colonialismo como “um sistema: não se podia definir pela cor da pele, mas pela posição de

cada um perante a luta de libertação nacional” (CABAÇO, 2007: 408-9).

Expressão das diversas concepções são os conflitos da FRELIMO com os régulos, as

autoridades tradicionais, cooptadas pelo sistema colonial português, no início da luta armada.

A FRELIMO queria apresentar-se como herdeira natural da História moçambicana pré-

colonial e da resistência histórica dos diferentes grupos étnicos. Para isso, a FRELIMO

integrava os régulos que se opunham ao colonialismo português, conferindo-lhes

responsabilidades administrativas nas primeiras zonas libertadas, investindo-os como

“chairmen”, no início da luta armada no norte do país. As visões das lideranças tradicionais e

dos guerrilheiros divergiam em quase tudo:

os «chairmen» acusavam a direção da FRELIMO de não respeitar as tradições; os dirigentes acusavam-nos de pretenderem recriar uma estrutura de exploração igual à dos portugueses, substituindo-se simplesmente aos colonos (CABAÇO, 2007: 398).

Os régulos queriam manter a ordem tradicional étnica e viam a luta anticolonial

como confronto entre as raças, enquanto os guerrilheiros da FRELIMO defendiam a

construção de uma nova modernidade em Moçambique.

A história de resistência contra o colonialismo português tinha mostrado que as

frequentes revoltas sempre foram vencidas “pela desunião e descoordenação entre os povos

locais” (CABAÇO, 2007: 402). A construção da unidade para o combate pela independência

era, portanto, de suma importância para a FRELIMO que via na persistência das velhas

estruturas um empecilho para a luta anticolonial unitária. O combate anticolonial implicava,

na concepção da FRELIMO, um ato de construção de uma nova identidade nacional por meio

de que “se elaborasse a síntese na qual a tradição seria reinterpretada pela incorporação de

elementos da modernidade” (CABAÇO, 2007: 401). Para formar esta nova sociedade

nacional, tinha que se cortar, no plano cultural, todas as ligações com a sociedade colonial

dominante, o que incluía, para a FRELIMO, o poder tradicional dos régulos, cooptados pelo

regime colonial.

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O fracasso da operação “Nó Górdio”, a maior ofensiva de contra-ataque das Forças

Armadas portuguesas que visava à aniquilação da FRELIMO no norte de Moçambique, e a

denúncia internacional da construção da barragem de Cabora Bassa significaram um ponto de

virada na luta pela independência. Embora nunca tenha conseguido ameaçar militarmente as

tropas portuguesas, a partir de 1972, a FRELIMO alcançou maior penetração ao sul,

chegando, assim, pela primeira vez, às áreas de maior colonização portuguesa.

Ao mesmo tempo, a relação entre colonos portugueses e as forças armadas

deteriorou cada vez mais. A guerra em Moçambique quase não afetou a comunidade dos

colonos brancos, concentrados principalmente nos centros urbanos, enquanto a guerrilha da

FRELIMO atuou, pelo menos no início da guerra, em áreas de escassa população portuguesa.

Os colonos viviam a mentalidade de superioridade racial no sistema dual colonial. As tropas

portuguesas vieram da metrópole e não faziam parte deste sistema. Os colonos brancos não se

interessavam pela guerra e continuavam beneficiando-se da situação exploratória do

colonialismo, que era defendido pelas tropas. Assim:

Difundia-se, entre muitos [militares], e de forma crescente, a sensação de que a causa de seus sacrifícios residia no comportamento de uma comunidade branca abastada e prepotente, alheia a seu esforço, displicente perante seus sacrifícios, e de governantes incompetentes, corruptos e acomodados aos privilégios (CABAÇO, 2007: 372).

Os militares no terreno moçambicano começaram a pressionar a partir do 25 de abril

de 1974 para que se começassem a desenvolver os contatos diretos e as negociações com a

FRELIMO. Em 7 de setembro de 1974, com a assinatura do tratado de cessar-fogo em

Lusaka, pelo qual a FRELIMO foi reconhecida como única representação legítima do povo

moçambicano, os combates acabaram em Moçambique. Instalou-se um governo provisório

sob a liderança de Joaquim Chissano, com ministros nomeados tanto por Portugal, quanto

pela FRELIMO. Com a independência de Moçambique em 25 de junho de 1975, assumiu o

poder Samora Machel que tentou organizar o Estado político do novo país e restituir ao povo

os direitos de cidadania, pilhados por séculos de dominação.

Os primeiros anos de independência caracterizavam-se por um idealismo

revolucionário, que resultou na instalação de um Estado unipartidário e na nacionalização de

certos setores da economia, da posse da terra e dos serviços sociais e legais. O acordo de

Lusaka provocou a reação violenta de colonos brancos de Moçambique, mas a maioria deles,

visto o rumo político que a FRELIMO seguiu após a independência, já estava abandonando o

novo Estado independente. Entre 1974 e 1977, aproximadamente 160.000 colonos

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portugueses voltaram para Portugal, restando em Moçambique em 1977 pouco mais de

30.000 colonos portugueses.

Paralelamente à implantação do socialismo científico em casa, na esfera

internacional, o novo governo moçambicano se engajou numa série de iniciativas políticas. As

sanções impostas à Rodésia em 1976, instigaram, como reação por parte do regime branco, o

estabelecimento de uma guerrilha armada recrutada entre dissidentes na sociedade

moçambicana, a RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana). O governo sul-africano

começou a apoiar a RENAMO, que desencadeou uma campanha feroz de intimidação e

violência no campo moçambicano. Os frequentes ataques, a implantação de minas terrestres e

outras técnicas de combate obrigaram o governo moçambicano a reagir, investindo recursos

em materiais bélicos. Desestabilizou-se a economia, aumentou o êxodo rural e,

consequentemente, diminuiu a produção agrícola no país.

No quarto congresso do partido em 1983, a FRELIMO reforma sua política

doméstica e internacional, reconhecendo o fracasso de muitas de suas medidas econômicas.

Propôs-se uma série de reformas políticas e econômicas. O novo presidente moçambicano,

Joaquim Chissano, afastou a política da FRELIMO ainda mais do socialismo científico, visto

que a economia, mesmo com a abertura gradual depois do quarto congresso da FRELIMO,

não evoluiu suficientemente e Moçambique se viu diante da ameaça de uma crise de fome.

Em 1987, o governo moçambicano firmou um acordo com o Fundo Monetário

Internacional (FMI) e o Banco Mundial, criando um Programa de Reabilitação Econômica

(PRE) que simbolizava a desistência dos planos de implantar uma política de natureza

socialista no país. Como segundo passo, em 1989, o presidente Chissano autorizou

negociações preliminares com a RENAMO, passo que até este momento tinha sido rechaçado

categoricamente pelo governo da FRELIMO e que levaria ultimamente à assinatura, em

Roma, do “Acordo Geral de Paz” que anunciou o fim da guerra civil em 1992.

Paralelamente ao início das conversas de paz com a RENAMO, no quinto congresso

do Partido em 1989, encerrou-se oficialmente o experimento político com o socialismo

científico. A FRELIMO renunciou ao seu estatuto de partido de vanguarda marxista-leninista

e abriu as suas fileiras para o ingresso de novos membros. Um nova constituição, instituída

em novembro de 1990, introduziu a separação dos poderes, a eleição presidencial direta, um

sistema pluripartidário e garantiu o direito jurídico a habeas corpus e a liberdade de mídia.

Instalou-se um Estado liberal e democrático com uma economia de mercado.

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6 Rui Knopfli, uma polêmica literária

Ars Poética 66 Os meus versos nem sempre são aquilo que parecem e nunca dizem o que parece estarem a dizer. [...] São mal equilibrados, numa economia exígua de palavras, estes versos, porque escorrem e se plasmam ao longo de um vasto e duro panorama de fome. [...] No essencial, porém, os meus versos não têm ambição maior do que esta: A de serem versos de um menino da cidade, Vértice minúsculo no polígono do betão, do gin & tonic, do volante Nardi e do asfalto. Realmente pouco importa que para lá do polígono, da malha apertada das palavras e do meu perfil agudo de pássaro curioso haja paisagem só perceptíveis aos olhos de quem quiser olhar-me bem nos olhos que só são duros por pudor da ternura (KNOPFLI, 1982: 230)

Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa de Pires Laranjeira (1995) divide a

literatura moçambicana, grosso modo, em cinco momentos: o primeiro período, a

“Incipiência”, e o segundo período, o “Prelúdio”, situam-se antes da Segunda Guerra

Mundial. O terceiro período “Formação”, o quarto “Desenvolvimento” e o quinto

“Consolidação” se localizam depois da Segunda Guerra Mundial, sendo que o terceiro

período vai do fim da Segunda Guerra Mundial até 1963, o quarto de 1964 até 1975 e o

quinto de 1975 até 1992.

O período de “Formação”, que durou de 1945 até 1963, caracterizou-se, segundo

Oliveira, pelo neorrealismo e pelo movimento filosófico-literário da Négritude, fundada pelo

escritores Léopold Senghor (mais tarde primeiro presidente do Senegal livre) e Aimé Césaire.

Este movimento buscava reconstruir os referenciais genuinamente africanos na identidade e

na cultura, negadas pela dominação colonial que impusera, durante séculos, valores culturais

europeus, alienando os africanos colonizados das suas culturas e de seus valores. A Negritude

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pretendia resgatar, neste sentido, a africanidade, os valores africanos, identificados com o

povo negro e oprimido.

A partir de 1964, com a eclosão das lutas armadas pela independência das colônias

portuguesas, a literatura não mais trata da identidade africana global, mas da construção de

uma identidade nacional moçambicana. Este empreendimento se mostrou particularmente

difícil em Moçambique, com sua grande diversidade étnica, o que significava que conviviam,

ali, lado a lado, diferentes religiosidades e tradições culturais. Além disso, Moçambique, em

termos linguísticos, tampouco foi homogêneo, com a presença de portugueses, árabes,

indianos, ingleses, além dos povos africanos autóctones.

A construção da identidade moçambicana pouco incluiu a acentuação de tradições

comuns. Funcionava muito mais através do “apelo ao sofrimento partilhado, ao racismo

português, aos ancestrais que foram levados contra a vontade para o outro continente”

(FERNANDES, 2012: 10). A ênfase na experiência comum do povo negro como oprimido e

sofredor levou à construção de um inimigo comum, os colonizadores portugueses. Na opinião

de Knopfli:

[...] Aquilo era muito engraçado, porque, do ponto de vista associativo, havia o Centro Associativo dos Negros de Moçambique, havia depois a Associação Africana, que era dos mulatos, [...]. Havia a Associação dos Naturais de Moçambique que tinha um cariz separatista branco, da parte dos colonos, dos filhos de brancos... Bom, havia essa compartimentação, e houve um movimento a seguir a esses eventos todos, que foi quando nós fundámos a Voz de Moçambique, que procurou abrir as portas da associação dos naturais de Moçambique, subentendido naturais brancos... No sentido de abrir isso a outras cores. De modo que nós trouxemos os Craveirinhas e gente assim para junto de nós, a colaborarem na Voz de Moçambique, a participarem nas reuniões. [...] (KNOPFLI, 1996: 56).

A identidade moçambicana não surgiu, inteiramente, fundada em traços comuns de

afinidade entre os diversos povos locais, mas, em grande parte, incitada por um inimigo em

comum, o colonizador. A força aglutinadora era então exógena, não endógena, o que depois

da independência geraria sérias dificuldades. A nova identidade nacional, associada à

modernidade, funcionava bem na guerrilha, na luta do movimento revolucionário, mas nem

tanto na vida civil da população comum, ainda regida pelas estruturas das sociedades

tradicionais que, lidando com a administração colonial, tinham, por um lado, desenvolvido

estratégias de defesa e resistência cultural ao colonialismo e, por outro lado, já iniciaram

processos de adequação de seus valores e conceitos à modernidade.

Uma vez terminada a luta armada e alcançada a independência, o movimento

revolucionário, com o seu modelo de uma identidade nacional moderna, se deparava com as

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identidades culturais tradicionais que não se diluíam na identidade nacional, como tinha

calculado o movimento revolucionário. A identidade nacional, como uma construção

artificial, entrava em choque com as identidades tradicionais, transformadas e adaptadas à

modernidade, já que o movimento revolucionário as considerava como contaminação

colonial:

A cultura da situação de guerra coexistia com a formação do Estado e este, por sua essência autoritária de comando, sugeria, em muitos, a analogia subconsciente com o modelo anterior (o Estado colonial, única entidade abstrata de comando que fazia parte do patrimônio de experiências dos ex-colonizados), permitindo que se desencadeassem em cada indivíduo (objeto da “transformação”) respostas ancoradas nas diferentes experiências de resistência à tutela estatal, reforçando, assim, referências da identidade de origem (CABAÇO, 2007: 417).

Tradutor, crítico de Literatura, desenhista, fotógrafo, dramaturgo e poeta, Rui

Knopfli nasceu em Inhambane, Moçambique, em 10 de agosto de 1932. Knopfli não se

encaixava em nenhuma das categorias, naturalmente excludentes, num contexto de conflito

armado. Não pertencia a nenhuma das etnias moçambicanas, era branco, descendente de

colonos europeus, pied noir, e por isso se sentia diferente no seu país, sentia-se no País dos

Outros

[...] eu conheci a minha terra já era adulto. O meu pai estava colocado na administração colonial em Vilanculos, não nasci lá porque o médico lá da terra achou que a minha situação no ventre da minha mãe era complicada e mandou-a para o hospital de Inhambane, foi puro acaso ter nascido em Inhambane; [...] (KNOPFLI, 1996: 54).

Culturalmente, Knopfli se reconhece muito mais influenciado pelas metrópoles

portuguesa e inglesa do que pela pátria moçambicana. Apesar disso, ele sempre se declarou

mais africano que europeu. O poeta moçambicano, juntamente com Grabato Dias, editou os

Cadernos Caliban que, “em pleno período de luta armada, abriram-se a ambicioso projeto de

mediações poéticas com outras culturas literárias” (LISBOA, 1984: 37). Rui Knopfli foi

diretor do Caderno Letras & Artes, da revista Tempo e escreveu críticas severas ao sistema

colonial nos jornais e revistas mais importantes do país.

Knopfli não admite que seu interesse pela cultura lusitana seja confundido com

simpatia ao colonialismo. Em A Ilha de Próspero escreve o seguinte poema em homenagem a

Camões, conjecturando sobre os possíveis dissabores experimentados no exílio pelo poeta

considerado o “orgulho da raça” lusitana:

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Esclarecimento a certo passo obscuro de uma biografia E tu Poeta? Dois anos, duas vezes trezentos e sessenta e cinco dias, é tempo. Duro o pão e morno o espesso vinho, iguais ao mormaço e ao vagar das horas que nestas partes o fogo eterno acrescentam. Fugias, por certo, ao brasido de S. Sebastião até ao outro extremo, na Ponta da Ilha. Que de conjecturas, de mágoas, de projectos encetados e desfeitos, de incidentes, sonhos breves, esperanças vãs ou dilatadas te curtiram e dilaceraram o peito, jamais o saberemos. Apenas se regista que, resgatado pela amizade, partiste enfim, ao cabo de duas vezes trezentos e sessenta e cinco dias bem contados. (KNOPFLI, 1982: 349)

Knopfli não nega a herança portuguesa como “o prazer saboroso e enternecido da má

língua” (KNOPFLI, 1982: 249), expresso no poema “Auto-Retrato”, além de características

físicas como “a costela macabra” ou ainda “o olhinho malandro” de português. O poema é fiel

ao título, assim como um pintor transfere para a tela o que vê diante do espelho. As vivências

são africanas, mas a bagagem cultural de Knopfli é de caráter universal;

[...] Eu sei que sou da Língua Portuguesa, sei que, tirando a circunstância do sítio onde nasci, a minha cultura é portuguesa, e os meus mestres são o Camões, o Pessoa, alguns contemporâneos, são as leituras do Herberto, do Alexandre O’Neill, do Sena e, depois, aquilo que a gente vai roubando das outras culturas. [...] (KNOPFLI, 1996: 54).

No ano de 1975, Rui Knopfli, no cargo de diretor do vespertino A Tribuna, lançou

um editorial no qual criticava a FRELIMO. Incomodado pelo governo de transição, deixou o

país em 1975, mas o exílio voluntário não afastou o poeta do imaginário moçambicano.

Espírito dinâmico e irreverente, Rui Knopfli se destaca nas letras moçambicanas ao lado de

José Craveirinha e Virgílio de Lemos, formando um dos pilares da literatura moçambicana,

inaugurando a sua modernidade.

Cântico Negro Cago na juventude e na contestação e também me cago em Jean-Luc Godard. Minha alma é um gabinete secreto e murado à prova de som e de Mao-Tsé-Tung. [...] [...]

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Porque eu teimo, recuso e não alinho. Sou só. Não parcialmente, mas rigorosamente só, anomalia desértica em plena leiva. Não entro na forma, não acerto o passo, não submeto a dureza agreste do que escrevo ao sabor da maioria. Prefiro as minorias. De alguns. De poucos. De um só se necessário for. Tenho esperança porém; um dia compreendereis o significado profundo da minha originalidade: I am really the Underground. (KNOFPLI, 1982: 259)

Sobre o trabalho de Knopfli em pluralizar e potencializar as letras moçambicanas

com sua escrita transgressora de fronteiras Francisco Noa comenta:

A poesia de Knopfli, no que ela apresenta de conflitual, ambíguo, inovador, contraditório, aglutinador, sedicioso, autocrítico e antecipatório, assume-se inequivocamente como metáfora da modernidade literária em Moçambique. [...] Nas suas múltiplas e diversificadas vertentes, Knopfli terá africanizado essa modernidade, subvertendo-a, dilatando-a, reequacionando-a em função das especificidades temáticas e estruturais da sua escrita (NOA, 1997: 118).

Knopfli produziu uma significativa obra literária, tendo publicado O País dos

Outros, em 1959, e seu último livro, O Monhé das Cobras, no ano de 1997. Em seu primeiro

livro, o poeta já expressa o seu amor à terra onde nasceu. Mesmo com a possibilidade de fugir

para Pasárgada, a utópica terra de Manuel Bandeira, o sujeito poético nega a sedução da

aventura, pois estabeleceu laços afetivos profundos com a sua pátria moçambicana:

Terra de Manuel Bandeira Também eu quisera ir-me embora pra Pasárgada, também eu quisera libertar-me e viver essa vida gostosa que se vive lá em Pasárgada (E como seria bom, Manuel Bandeira, fugir duma vez pra Pasárgada!) [...] Entanto, tudo me prende aqui a este lugar desta cidade provinciana. [...] (KNOPFLI, 1982: 44)

No plano literário, Rui Knopfli não se enquadra na literatura engajada, ideológica, de

construção da identidade nacional durante a época de luta armada. Esta literatura foi em

grande parte uma literatura ideológica, de construção de uma identidade nacional

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moçambicana e, como tal, reducionista frente às muitas diversidades étnicas, linguísticas,

literárias e culturais existentes em Moçambique.

[...]–, aqueles especialistas na cartilha marxistas africana, andaram a promover um tipo de literatura do partido, de maneira que apareceu toda aquela merda daquela poesia, que não é poesia, aquela poesia estalinista, [...]. É evidente que não estamos aqui a falar do Craveirinha, que é um grande poeta e que não precisou de se empoleirar na Revolução. [...] (KNOPFLI, 1996: 55).

A literatura engajada da época da luta armada com seu tom épico tinha raízes nos

padrões culturais africanos, caracterizados pela ancestralidade e pelo senso de coletividade. A

poesia engajada não é meramente política e ideológica; tem um forte enraizamento cultural, o

que Rui Knopfli não conseguia identificar, pelo motivo de suas vivências culturais não serem

inteiramente locais.

[...]Não sou mulato, não sofri na carne as humilhações, o preconceito, a discriminação... O que é que se pretendia, quando vinham lá com essa história das influências, a falar deste e daquele como fontes, geralmente moçambicanas, onde eu ia beber inspiração? Que eu viesse fingir isso. Como é que eu posso fingir em verso o negro humilhado que não sou? (KNOFPLI, 1996: 63-4).

Para Gabriel Madeira Fernandes, obra de Rui Knopfli não se alinha na luta

ideológica, na construção de uma identidade nova, moçambicana, “não adota o sujeito

coletivo, seja ele o da cultura africana [...], seja ele o do movimento ideológico socialista que

se vivia fortemente à época” (FERNANDES, 2012: 17). Gabriel Fernandes afirma ainda que

Knopfli não tomava o componente cultural da literatura engajada, ideológica suficientemente

em conta, o que o leva a se distanciar decididamente dela, sem que isso tivesse significado

que se opusesse ou menosprezasse esta literatura.

Numa linha semelhante, argumenta Flávia Tebaldi Henriques de Queiroz, na sua

comunicação, no XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP, intitulada “Paisagens do

exílio nas poéticas de Jorge de Sena e Rui Knopfli” (2009). Segundo a autora, o quadro

referencial para a poética de Rui Knopfli, na época, eram principalmente José Craveirinha e

Noémia de Souza, cuja poesia fazia surgir o eu coletivo negro, oprimido e silenciado até então

pelo regime colonialista. Esta nova poesia, bem à la Negritude, se distanciava claramente da

cultura europeia, das influências da literatura portuguesa, religando-se à tradição oral africana,

marcada por elementos como a escassez no uso de adjetivos e a proeminência no uso de

verbos de ação. Elementos todos que desembocaram numa poética denunciadora e ideológica,

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que, segundo Queiroz, muitas vezes, foi contraposta como “poesia negra” à “poesia branca”

de um Rui Knopfli e outros15.

Sobretudo a componente ideológica da poesia, vista como necessária pela crítica

literária moçambicana entre as décadas de 1950 e 70, não era uma marca da poesia de Rui

Knopfli. Um obra literária naquela época se media pelo grau de ausência de ligação com a

cultura europeia, representante da sociedade colonialista. Rui Knopfli era consciente da sua

incapacidade de representar, na sua poesia, a voz do negro moçambicano oprimido:

Eu não posso assumir dores que não sinto. Eu posso reconhecer uma injustiça social larguíssima ou uma injustiça mais que social, que é a injustiça da situação colonial, que não direi que era criminosa, mas que era anómala – que é uma coisa de que eu me apercebi muito cedo, na adolescência, como é que é possível a existência das colónias, como é que há povos que têm dependências e que governam outros povos – mas eu não posso vir falar do ponto de vista dos injustiçados. Só do meu ponto de vista (MONTEIRO, 2003: 27).

Desde seus primeiros textos, já se faz sentir a preocupação com temas sociais,

quando aos 16 anos publica o conto “A Seca” no Jornal da Mocidade Portuguesa, em 1948.

A escrita knopfliana sempre buscou denunciar as injustiças sofridas pelas camadas menos

favorecidas da sociedade. Logo a seguir, Knopfli publica o conto “Lumina”, onde, segundo

Francisco Noa, o autor “faz uma incursão no imaginário negro-africano com o devido

aproveitamento linguístico” (NOA, 1997: 54). Rui Knopfli não pretende abrir mão de sua

identidade africana e afirmou esta africanidade em sua poesia aproveitando seus

conhecimentos do cânone literário europeu. A africanidade, para Knopfli , não estava ligada à

etnia, ou à cor da pele, mas às experiências, às lembranças do lugar onde ele nasceu e se fez

poeta.

Além do seu confessado fascínio pela cultura anglo-americana (a Literatura Inglesa,

o Jazz, o cinema norte-americano, etc.), Rui Knopfli também declara suas fontes de

inspiração literária, a saber: Shakespeare, Eliot e Pessoa. Este último, afirma Knopfli, ensina

os caminhos para o ingresso na Modernidade, através da liberdade do discurso poético.

[...] Eu costumo dizer que somos todos netos do Camões e filhos do Fernando Pessoa. Por mim, não seria o que sou hoje se não fosse a leitura de Álvaro de Campos ou Alberto Caeiro. O que não exclui o Pessoa mais castigado, mais clássico... [...] (KNOFPLI, 1996: 60).

15 Outros estudiosos falam simplesmente de diferentes linhas de enfoque nas propostas poéticas. José Craveirinha por exemplo nunca rejeitou a herança cultural de seu pai português branco. Para estes estudiosos, Rui Knopfli representa apenas uma outra vertente da literatura moçambicana, sem que isso tenha gerado antagonismos entre os próprios poetas.

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Para Ana Mafalda Leite, Knopfli representa um dos pilares da literatura

moçambicana. A ensaísta aponta duas vertentes na poesia produzida em Moçambique neste

mesmo período e defende a ideia de que Rui Knopfli se encaixa na segunda categoria

analisada:

Por um lado, uma poética de cariz social, ligada à realidade moçambicana e às correntes neo-realistas; por outro lado, uma poética de feição mais universalizante e relacionada com o movimento presencista (LEITE, 2006: 135).

Gabriel Madeira Fernandes (2012) interpreta como característica central da obra de

Knopfli a descrição da experiência de um homem fora do lugar. De um lado, Knopfli nutre

um sentimento muito forte de pertença ao espaço moçambicano. Nascido e criado em

Moçambique, ele se sente um escritor moçambicano. De outro lado, não vivenciou

profundamente as culturas locais; os seus referenciais culturais são muito mais ocidentais do

que africanos. Por isso, o meio moçambicano engajado e revolucionário na época da luta

armada pela independência não o aceitou como pertencendo a ele. Como o próprio Rui

Knopfli declarou: “Eu sou das poucas pessoas que nunca andei a fazer a estratégia da glória,

nunca pertenci a nenhum lobby no poder, fui sempre uma espécie de voz discordante... Não

entro no coro” (KNOFPLI, 1996: 61).

Esse “paradoxo do sujeito” (FERNANDES, 2012: 18) é particular da vida de Rui

Knopfli e ele assimila este paradoxo na sua obra poética, o que o afasta da literatura engajada.

Gabriel Fernandes defende que a poesia de Knopfli é uma obra individualista, num contexto

político que favorecia a poesia coletiva. Knopfli não delimitava a sua poesia “às mesmas

linhas imaginárias coincidentes às fronteiras políticas de Moçambique” (FERNANDES, 2012:

18), como o fazia a poesia de cunho ideológico-partidário que tinha como objetivo a

construção de uma identidade moçambicana monológica e que considerava as etnias de

Moçambique um todo homogêneo formador do povo moçambicano.

Flávia Tebaldi Henriques de Queiroz já apresenta uma visão mais “engajada” da

poética de Rui Knopfli. Para ela, o poeta, apesar de optar por

representar, em sua obra, um Eu poético particular, como contraponto à voz coletiva de José Craveirinha e Noémia de Souza, que representavam tão completamente os princípios defendidos pelo movimento da Negritude [...], não deixa de reclamar a sua inclusão e de sua obra no hall de uma experiência colonial. (QUEIROZ, 2009: 1628)

Esse eu poético particular de Rui Knopfli está ligado à presença do espaço e da

paisagem na sua obra. Porém, para Queiroz, não é apenas uma poética individualista e

particular. Por um lado, a visão da paisagem moçambicana na obra de Rui Knopfli é

subjetiva. Por outro lado, o ponto de vista particular, individual para a concepção da paisagem

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é sempre marcado pelas vivências e “pela assimilação cultural previamente apreendida por

esse sujeito. O ponto de vista particular é, também, um ponto de vista coletivo, social”

(QUEIROZ, 2009: 1629).

Nunca Mais é Sábado!... – conjecturamos à segunda-feira, início de uma longa ressaca, [...] Nós os humildes e os humilhados, os que não temos rosto próprio porque somos o rosto da multidão. Nós, o branco-branco, o preto-preto e o branco-preto. . [...] E os que esperam para lá da penumbra dos balcões, no silêncio húmido dos armazéns, no bafio burocrático e gris das repartições com funcionários de vida atribulada funcionários de vida empenhada, funcionários de vida sempre estragada. [...] Os que alimentam de miséria a sua miséria E outros que, estando melhor, a nutrem na miséria de pequenas e grandes indústrias. E os que nem sequer a alimentam no lôbrego ventre das oficinas e fábricas, [...] Da escada de serviço e do elevador para o prédio, do prédio para a rua, da rua para a praça, da praça para a cidade, da cidade para o subúrbio, onde crescem a doença, o medo, a fome e o futuro, – nunca, nunca mais é sábado. (KNOPFLI, 1982: 205)

Apenas mais tarde, o valor artístico de Rui Knopfli e a sua posição importante como

precursor da literatura moçambicana moderna começaram a ser reconhecidos. Fátima

Monteiro (2003) vê a obra de Rui Knopfli como uma obra única dentro da literatura de língua

portuguesa. Como descrito acima, Rui Knopfli, na sua poética, parte de dois quadros de

referências: “Ao nível da representação ou expressão emotiva, em particular, o espaço

africano, e ao nível da representação intelectual, a tradição literária (...) portuguesa e

ocidental” (MONTEIRO, 2003: 107). Isso torna a poesia de Rui Knopfli essencialmente

híbrida no seu caráter. Monteiro mostra, ao exemplo do poema “Naturalidade” (O País dos

Outros), os elementos constitutivos da identidade do sujeito poético híbrido de Knopfli:

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Naturalidade Europeu, me dizem. Eivam-me de literatura e doutrina europeias e europeu me chamam. Não sei se o que escrevo tem a raiz de algum pensamento europeu. É provável... Não. É certo, mas africano sou. Pulsa-me o coração ao ritmo dolente desta luz e deste quebranto. Trago no sangue uma amplidão de coordenadas geográficas e mar Índico. Rosas não me dizem nada, caso-me mais à agrura das micaias e ao silêncio longo e roxo das tardes com gritos de aves estranhas. Chamais-me europeu? Pronto, calo-me. Mas dentro de mim há savanas de aridez e planuras sem fim com longos rios langues e sinuosos, uma fita de fumo vertical, um negro e uma viola estalando. (KNOPFLI, 1982: 59)

O poema estabelece uma relação entre o espaço externo (a visão dos outros) e o

espaço interno, sentido pelo sujeito poético que se cala diante da crítica acerca de sua

influência europeia. Cala, mas não consente a crítica que é rebatida com a descrição das

paisagens internas acalentadas, típicas do cenário africano. Através da descrição e da

atribuição de valores da paisagem, Rui Knopfli estabelece uma identificação entre si e o

espaço moçambicano, africano, o seu povo e a sua cultura, reivindicando, assim, a sua

nacionalidade africana.

No poema, a distância crítica do sujeito poético exprime a sua rejeição a uma

identidade que não considera natural: “Europeu me dizem / [...] europeu me chamam [...]”. O

sujeito poético recusa uma identidade imposta pelos outros, embora não negue a influência da

cultura europeia em sua formação intelectual. No caminhar do poema, o sujeito poético se

distancia dessa “superimposta identidade”; reivindica para si e afirma a sua identidade

africana: “mas africano sou”. Sobre este aspecto, afirma Fátima Monteiro:

A relação que proporciona a emergência da identidade profunda do sujeito poético é aquela que existe entre o sujeito de escrita, a sua escrita e o espaço delimitador da emocionalidade, África, reconhecendo-se numa europeidade forjada sobretudo ao nível do intelecto, pelo convívio opcional com uma tradição de escrita e com uma cultura transmitida por “hereditariedade” (MONTEIRO, 2003: 109).

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Interessante, neste contexto, é a afirmação de Monteiro de que tanto a literatura

europeia como, paradoxalmente, também a negritudinista, geralmente, fazem uma associação

direta da emocionalidade à África e da racionalidade à Europa, com forte tendência a uma

hierarquização dos dois polos, em que a África, de um modo geral, leva a desvantagem. Não é

o caso de Rui Knopfli, que inverte esta hierarquização. Segundo Monteiro, o poeta

moçambicano nunca via Portugal como pátria, senão como mera referência histórica e

linguístico-literária. Sua pátria também era, segundo ele, a língua portuguesa.

Ancorado no sentimento de deslocamento, de um homem fora do lugar, Rui Knopfli

propõe, uma literatura pós-colonial, pois, com um olhar cético e uma dicção irônica, critica o

colonialismo. Combina um discurso híbrido na sua poesia, associando-o ao novo

nacionalismo africano, com a recusa da ideia da africanidade como essência, defendendo que

ela seja produto de uma vivência, uma experiência de vida. Desta forma, Knopfli, com a sua

ligação à paisagem africana e, ao mesmo tempo, “apropriando-se e revisando os cânones

literários europeus” (QUEIROZ, 2009: 1631), estabelece um discurso de reconfiguração da

identidade cultural de Moçambique que se apresenta como poética alternativa à da Negritude

presente na poesia de Noémia de Sousa e em parte da obra poética de José Craveirinha.

Queiroz apresenta na sequência uma análise do poema “Hidrografia,” em que mostra

como Knopfli, através da atribuição de valores positivos à paisagem moçambicana e de

valores negativos à paisagem europeia, mira a “própria autoridade moral do europeu, de modo

a deslegitimizar o empreendimento colonial“ (QUEIROZ, 2009: 1632). Ao mesmo tempo,

associando a paisagem moçambicana a valores positivos e contrapondo-a aos colonizadores

portugueses, Knopfli

promove uma reelaboração do espaço e da paisagem pelo seu imaginário e pela sua escritura. Assim, ao mesmo tempo em que o poeta reconstrói uma imagem do mundo, constrói uma imagem do próprio eu, evidenciando seu ponto de vista particular (QUEIROZ, 2009: 1633).

“Rosas não me dizem nada”, declara o sujeito poético para reafirmar a ideia de que,

apesar de sua ascendência europeia, o clássico símbolo de inspiração dos poetas ocidentais

não toca o coração do poeta moçambicano que afirma trazer no sangue o “mar Índico”, não o

Atlântico de que os portugueses tanto se orgulhavam por desvendar e dominar. O discurso

alheio acerca da identidade do sujeito poético não espelha o que se revela por dentro: um

patriotismo ditado por um coração que pulsa no ritmo africano, estalando na “viola de um

negro”.

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O topos da rosa, renegada no primeiro período da obra de Knopfli, é retomada mais

tarde. Como mostra Monteiro, o poema “A descoberta da Rosa” de Mangas Verdes com Sal

representa um momento de viragem no processo de construção identitária de Rui Knopfli,

“um rito de passagem duma fase da maior polaridade de identidade do sujeito knopfliano,

para outra de aceitação da sua valência híbrida” (MONTEIRO, 2003: 111).

Knopfli nunca se engajou num “espírito de lusitanidade”, nem durante, nem depois

do Império colonial; ao contrário, colaborou com sua escrita para uma literatura nova,

moderna, para a construção de um país novo, com uma identidade nacional múltipla e

multifacetada, reconhecida e valorizada. Nas palavras de Eugénio Lisboa: “A contenda

identitária e nacional acaba por passar pela linguagem, pelo trabalho com a madeira rija de

seus versos” (KNOPFLI, 1982: 196).

Como vimos com José Luís Cabaço no capítulo 5, a literatura engajada tinha a

tendência de reproduzir os mesmos modelos utilizados pelo poder colonial português, no que

tange às formas autoritárias de construção de identidades e imagens. O poeta trabalha para

renovar a poesia, rejuvenescer as ideias:

Ofício Novo Uma poesia exausta de pássaros e folhagem abre os olhos descarnados para a paisagem de amarelos lívidos. No desconforto modorrento da tarde pulam insectos pardos ao voo sonolento. O olhar cauterizado perde-se no árido desencanto da planície morta estendida inutilmente à fome dos homens. Uma poesia cansada de aves de sonho e do brilho rútilo das imagens, esgarça e seca e refaz-se na magoada realidade de um céu ardendo em ferida. Do verso se rompe a arquitectura íntima e se ausenta a melódica sonoridade. Em silêncio, na paisagem tosca de gente magra e escura e triste, lentamente,

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aprendemos um novo ofício. (KNOFPLI, 1982: 110)

Segundo Fernandes, Rui Knopfli em contraposição não queria alcançar nenhum

objetivo na sua poesia, ele apenas “cantava a sua própria experiência naquele espaço. Uma

experiência marcada pelo seu ocidentalismo, pela sua subjetividade exacerbada e por um tom

crepuscular” (FERNANDES, 2012: 18). Por também assumir, ao lado da sua forte herança

ocidental, alguns dos saberes locais, poder-se-ia dizer que Knopfli criava a sua imagem

particular de Moçambique, uma imagem híbrida e, talvez, mais realista do que aquela

construída pela literatura engajada da época.

6.1 A Ilha de Moçambique, o espaço da identidade

Poesia Ilustrada ou Divertimento para duas Flores e um Poeta O poeta tenta laboriosamente desenhar uma flor. Primeiro uma rosa esguia e copada, desdobrando seu ritmo circular. Mas a rosa é difícil e arisca. a rosa tem espinhos e voltas que escapam à inépcia do poeta. Desiste o poeta da rosa, [...] Humilhado o poeta recorre ao malmequer mais imediato. Aplicado, logo a corola redonda, depois as pétalas simétricas, hesitante e longo o risco, esboça o poeta, enfim, um malmequer. Mas, pobre simetria e que feio traço, tosco e mal logrado, convém judicioso o poeta. Se a rosa falhou e o malmequer é tosco e feio, ao poeta sobra um recurso: fazer o seu poema. Não o faz a rosa, não o faz o malmequer. (KNOFPLI, 1982: 191)

Dada a sua importância nas literaturas de língua portuguesa, a Revista Metamorfoses

dedica o seu terceiro número à Ilha de Moçambique. Na nota de abertura, Carmen Lucia

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Tindó Ribeiro Secco (2008: 187) disserta sobre as particularidades da Ilha que não foge ao

arquétipo dos espaços insulares, muito pelo contrário.

Lembrada pela voz de poetas e pelas telas de pintores, a Ilha de Moçambique, embora ameaçada de desaparecimento pelo abandono que durante tantos anos lhe foi imputado, se revela, entretanto, um lugar privilegiado de sonhos e culturas, cujos fios entrecruzados resistem sob os destroços do tempo (SECCO, 2002: 17).

Presente no imaginário de variados poetas, a Ilha de Moçambique surge como um

sítio de ambiguidades. Ora representa um espaço mítico, utópico, misturado, sem fronteiras,

paraíso, proteção, memória e refúgio, um convite às aventuras com seus “caminhos sempre

abertos para o / mar” (KNOPFLI, 1982: 326). Ora, como símbolo de decadência,

despojamento, de exílio, prisões, torturas, de ciladas e perigos, do sobrenatural e de seres

monstruosos. Acerca da Ilha de Moçambique enquanto inspiração poética, considera Rita

Chaves:

A relevância de seu papel na trajetória das literaturas em língua portuguesa e, em especial, no itinerário da poesia moçambicana, está refletida na quantidade e na qualidade dos poetas que sobre ela lançaram sua sensibilidade e seu talento (CHAVES, 2002: 94).

Quando chegaram no século XV, com a passagem de Vasco da Gama em 1498, os

lusitanos já encontraram a ilha habitada por islâmicos que ali aportaram por volta do século

VII. Em vão, tentaram extirpar completamente a presença islâmica da Ilha de Moçambique.

Porém, segregação mais violenta se dá com a ocupação militar portuguesa, a partir da segunda

metade do século XIX, com a partilha da África gerada pela Corrida Colonialista.

Relacionada ao comércio de ouro, de marfim ou especiarias, depósito de escravos que

seguiam para as Américas, Ilha dos poetas, corpo amado, espaço do êxtase, múltiplas são as

características da Ilha.

Patrimônio Cultural da Humanidade, tombada pela UNESCO, a Ilha de Moçambique

guarda a memória mais remota da relação da África com o Oriente e com Portugal. Cantada

por vários poetas, ponto de interseção entre várias etnias. Passagem de navegadores da

Europa, do Oriente e do mundo árabe que deixam suas marcas, formando uma espécie de

mosaico de etnias, ou uma “tapeçaria cultural”, segundo Ana Mafalda Leite (2006: 57).

No poema “Camões Na Ilha de Moçambique”, dedicado a Amílcar Fernandes e a Rui

Knopfli, Jorge de Sena passeia pelo privilegiado espaço insular16, como quem visita um

santuário da memória:

16 Espaço este que Jorge de Sena visitou em companhia de Mécia de Sena e de Rui Knopfli.

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Camões na Ilha de Moçambique É pobre e já foi rica. Era mais pobre quando Camões aqui passou primeiro, cheia de livros a cabeça e lendas e muita estúrdia de Lisboa reles. [...] Mas antes dele, como depois dele, aqui passaram todos: almirantes, ladrões e vice-reis, poetas e cobardes, os santos e os heróis, mais a canalha sem nome e sem memória, que serviu de lastro, marujagem, e de carne para os canhões e os peixes, como os outros. Tudo passou aqui – Almeidas e Gonzagas, Bocages e Albuquerques, desde o Gama. [...] (SENA, 2013: 649)

Para Fátima Monteiro, Rui Knopfli estabelece uma relação de “mátria” (2003: 110)

com a Ilha de Moçambique, através do seu livro A Ilha de Próspero, por ser o espaço “onde a

hibridização mais intensa e complexa do espaço colonial português ocorre” (MONTEIRO,

2003: 110). Monteiro defende que, neste livro, o conceito da colonização se acerca muito ao

conceito de hibridização, tanto que a estudiosa faz uma analogia entre Knopfli e a teoria

antropofágica de construção de identidades, defendida pelos modernistas brasileiros. O sujeito

colonial híbrido se constitui através da “deglutição da cultura do colonizador pelo colonizado

e vice-versa” (MONTEIRO, 2003: 110).

Nos seus três primeiros livros, o sujeito poético knopfliano, segundo Monteiro, não

aparece nos poemas do mesmo jeito como posteriormente. A própria identidade não é

tematizada e muito menos assume o sujeito poético um papel de ser porta-voz dos

colonizados, embora haja, nos três primeiros livros de Knopfli (O País dos Outros de 1959, o

Reino Submarino de 1962 e Máquina de Areia de 1964), “uma forte exposição e denúncia da

colonização” (MONTEIRO, 2003: 112).

Rui Knopfli nem sempre assumiu para si esta identidade híbrida. No início da sua

trajetória poética sentia uma resistência frente à parte europeia da sua identidade, fato que só

se transformou após Mangas Verdes com Sal de 1969. Desde então, defende Fátima Monteiro

que Rui Knopfli envereda “por um processo que não é de renúncia ou sequer

predominantemente de denúncia do colonial” (2003: 112). A partir desse momento, Rui

Knopfli assumiu a sua identidade híbrida.

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Muipíti Ilha, velha ilha, metal remanchado, minha paixão adolescente, que doloridas lembranças do tempo em que, do alto do minarete, Alá – o grande sacana! – sorria aos tímidos versos bem comportados que eu te fazia. Eis-te, cartaz, convertida em puta histórica, minha pachacha pseudo-oriental a rescender a canela e açafrão, maquilhada de espesso m’siro e a mimar, pró turismo labrego, trejeitos torpes de cortesã decrépita [...] (KNOPFLI, 1982, 334)

Segundo Monteiro, um dos poemas que mais evidenciam a identidade híbrida de

Knopfli é o poema “Muipíti”, do livro A Ilha de Próspero. O livro trata da pluralidade e

diversidade cultural que é a base da construção de identidade dos indivíduos nascidos no

contexto colonial, salientado pela dedicatória “A Jorge de Sena – Português das Sete

Partidas”. Ao mesmo tempo, a epígrafe do livro da autoria de Jorge de Sena reforça o

fundamento plural para a construção da identidade, revisando a frase de Fernando

Pessoa/Bernardo Soares: “A minha pátria é a língua portuguesa” (MONTEIRO, 2003: 115).

Sena torna esta frase mais exclusiva e individualista, dizendo que “Eu sou eu mesmo

a minha pátria. A pátria de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações nasci.” Na

análise de Fátima Monteiro, a combinação entre “a pluralidade ou dispersão” encontrada na

dedicatória a Sena, “Português das Sete Partidas”, e o individualismo acentuado da epígrafe

ao livro deste último, permitem ao sujeito poético knopfliano “existir como entidade

verdadeiramente híbrida e distinta e, ao ser distinta, com direito a ser autónoma”

(MONTEIRO, 2003: 16). A identidade do indivíduo colonial é composta por uma pluralidade

subjetiva e cultural, mas o indivíduo ao mesmo tempo é uno e único.

A língua enquanto espaço, matéria-prima do poeta, é o instrumento capaz de

subverter a ideologia do colonizador. A mesma língua herdada pelo colonizador transforma-se

em arma nas mãos do outro. A própria tradição ensina os artifícios que um homem simples,

um humilde pode utilizar para sorrateiramente penetrar nos domínios do senhor e subverter a

ordem, como nos relembra Knopfli no seguinte poema:

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A Dama e o Jogral Proscrito na pátria, saborosa ironia!, a mim coube o destino de cantar-te na toada monótona deste áspero bordão. Vários foram os que, por elaborados contratos ou vantajosas conveniências de família, te esposaram em uniões burocraticamente consumadas e te expuseram a seu lado na pompa solene dos cerimonais para os três Estados. [...] Ensina-o uma velha sabedoria: enquanto dorme o castelão, penetra o jogral humilde na alcova da princesa. (KNOPFLI, 1982: 336)

O espaço propício por excelência desta pluralidade e hibridização subjetivas e

culturais é a Ilha de Moçambique. É um espaço “onde as fronteiras entre o Ocidente e o

Oriente se diluem, onde Norte (Europa) e Sul (África) se fundem, onde a fronteira entre

hinduísmo, cristianismo, islamismo ou animismo se confunde” (MONTEIRO, 2003: 116). A

Ilha de Moçambique representa um dos maiores exemplos de hibridização histórica, cultural e

religiosa num processo colonizador em qualquer lugar e época17.

O poema “Muipíti” evoca através de uma voz múltipla, que pouco a pouco vem-se

revelando e “desvendando nas suas diferentes faces, até atingir a condição sincrética

«essencial» da Ilha”, manifestando, assim, a sua herança euro-afro-asiática e, num processo

desconstrutivista poético, “a identidade múltipla da metonímica Ilha” (MONTEIRO, 2003:

117).

Porém, estes elementos culturais e identitários são regidos pela “dominação e

subserviência” da situação colonial. A hibridização do ponto de vista do sujeito subserviente

não é um conceito desejável em si. Pelo contrário, o poema “Muipíti” traz, ao mesmo tempo

que canta a hibridização, uma defesa e uma saudade da “«pureza» perdida por cada um dos

elementos constitutivos da mesma entidade híbrida, particularmente a nativa africana”

(MONTEIRO, 2003: 117). É o elemento africano neste amálgama de identidades que mais

violentamente sofreu a perda da condição original, pré-colonial e é da lacuna deixada por um

passado “roubado” que na poesia de Knopfli emerge a crítica à dominação colonial.

17 Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco discorda da análise de Fátima Monteiro. As fronteiras não se diluem; há uma tensão conflituosa entre Oriente e Ocidente, Europa e Africa, entre as religiões. O olhar arguto de Knopfli denuncia essa falsa harmonia decantada por alguns estudiosos. Rita Chaves (2002), no seu artigo na Revista Metamorfoses 3, mostra ser falsa essa harmonia que tentaram imputar ao hibridismo existente na Ilha.

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Ponta da Ilha Nem o solo em que assenta o estuque de nossos casebres foi poupado. Olhai em redor e podeis vê-lo convertido na sólida pedra de vossos bastiões, nos opulentos muros da máquina de guerra que, pacientemente, fostes erguendo por nosso trabalho, suor e amargura. Daqui mal lobrigamos o mar. Sentimo-lo apenas no odor e na viração que tremula ao topo das palmeiras. Perfazem o horizonte raso deste microcosmos em que a fome, apesar de tudo, sorri, telhados de macute que se repetem sempre iguais, ruelas de terra batida entrelaçadas em labirinto rústico o peixe, sobre a teia de lacalaca, curtindo ao sol de um longo meio-dia, as crianças que brincam seminuas na poeira cinza o cão esquelético preguiçando à sombra e a galinha tonta que cisca na distância. À nossa volta sobram o templos e os deuses. (KNOPFLI, 1982: 348)

Segundo Jacques Le Goff, as concepções recentes do conceito de memória põem a

ênfase nos aspectos de estruturação e auto-organização da memória. Neste sentido, a memória

é resultado de sistemas organizativos dinâmicos e, como tais, dependem para a sua existência

da manutenção e reprodução pelo próprio sistema. A partir desta premissa, uma linha de

pesquisa associa a construção da memória a “fenômenos diretamente ligados à esfera das

ciências humanas e sociais” (LE GOFF, 2013: 388). Segundo esta vertente da pesquisa

acadêmica, o ato principal de construção da memória é a narrativa, caracterizada pela sua

função social. O meio da construção narrativa da memória é a linguagem que possibilita o

armazenamento da memória fora do corpo humano.

O caráter social da memória fica ainda mais evidente nas suas perturbações, seja em

forma de amnésia, seja em forma de afasia, afetando a linguagem.

Por outro lado, num nível metafórico, mais significativo, a amnésia é não só uma perturbação no indivíduo, que envolve perturbações mais ou menos graves da presença da personalidade, mas também a falta ou a perda, voluntária ou involuntária, da memória coletiva nos povos e nas nações, que pode determinar perturbações graves da identidade coletiva (LE GOFF, 2013: 389).

No campo psicológico e psicanalítico, evidenciou-se a importância das

“manipulações conscientes ou inconscientes que o interesse, a afetividade, o desejo, a inibição

a censura exercem sobre a memória individual” (LE GOFF, 2013: 390). A manipulação da

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memória coletiva também é fundamental na luta de grupos sociais pelo poder. A dominação

da memória e do esquecimento coletivos significa a dominação deste coletivo.

O poema “Pátria” de Rui Knopfli, publicado no ano de 1978 em O Escriba

Acocorado, prima pela memória, tendo mesmo um único verso dedicado a ela:

Pátria Um caminho de areia solta conduzindo a parte nenhuma. As árvores chamavam-se casuarina, eucalipto, chanfuta. Plácidos os rios também tinham nome por que era costume designá-los. Tal como as aves que sobrevoavam rente o matagal e a floresta rumo ao azul ou ao verde mais denso e misterioso, habitado por deuses e duendes de uma mitologia que não vem nos tomos e tratados que a tais coisas é costume consagrar-se. Depois, com valados, elevações e planuras, e mais rios entrecortando a savana, e árvores e caminhos, aldeias, vilas e cidades com homens dentro, a paisagem estendia-se a perder de vista até ao capricho de uma linha imaginária. A isso chamávamos pátria. Por vezes, de algum recesso obscuro, erguia-se um canto bárbaro e dolente, o cristal súbito de uma gargalhada, um soluço indizível, a lasciva surdina de corpos enlaçados. Ou tambores de paz simulando guerra. Esta não se terá feito anunciar por tal forma remota e convencional. Mas o sangue adubou a terra, estremeceu o coração das árvores e, meus irmãos, meus inimigos morriam. Uma só e várias línguas eram faladas e a isso, por estranho que pareça, também chamávamos pátria. [...] (KNOPFLI, 1982: 363)

Os primeiros versos remetem a uma era pré-colonial, quando o que se entendia por

pátria era somente “Um caminho de areia solta conduzindo a parte / nenhuma.” Logo em

seguida surgem sinais de civilização com “aldeias, vilas e cidades com homens dentro”. Não

tarda para que a guerra se anuncie, não pela forma tradicional com o soar dos tambores, mas

com o bombardeio que estremece o “coração das árvores”, derramando o sangue que adubou

a terra: “e, meus irmãos, meus inimigos morriam. Uma / só e várias línguas eram faladas e a

isso, / por estranho que pareça, também chamávamos pátria.”

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De acordo com Le Goff: “O estudo da memória social é um dos meios fundamentais

de abordar os problemas do tempo e da história, relativamente aos quais a memória está ora

atrasada, ora adiantada“ (2013: 390). Seguindo a sua rota, o poema “Pátria” lamenta as

práticas de dominação exercidas pelos portugueses durante o período colonial, como uma

“secreta e pertinaz enfermidade” que mina a liberdade e debilita o organismo social: “um

arrepio estrangeiro, uma premonição de gelos / e inverno”. Ao fim do poema, uma volta

cíclica à paisagem do início. Porém, com nova expectativa e o simples caminho de areia “que

se dizia conduzir a parte alguma, abria / para o mundo. [...]” (KNOFPLI, 1982: 364).

Apesar de toda a exploração praticada pelos europeus no território africano, a

natureza manteve o seu poder de sedução, uma “beleza secreta e virgem” ainda resta

preservada nos rios. Belezas registradas por Knopfli em diversos poemas. A água, sempre

outra que corre nos rios, “veias e artérias”, irriga a vida, trazendo a esperança de libertação do

passado opressor: uma “África nova”. Mais uma vez, o poeta exaltar as belezas naturais da

sua terra e o valor da gente sofredora que vive à margem:

Hidrografia Toda a beleza secreta e virgem que resta está nos rios da minha terra. Toda a poesia oculta é a dos rios da minha terra. [...] Vinde escutar a música latejante as ignoradas veias que mergulham no vasto, coleante corpo do Incomáti, o nome melodioso da minha terra a estranha beleza das suas histórias e das suas gentes altivas sofrendo e lutando na margem do pão e da fome. [...] Ah, ouvidos e olhos cansados de desolação e de europas sem mistério, provai a incógnita saborosa deste fruto verde, destes espaços frondosos ou abertos, destes rios diferentes de nomes diferentes, rios antigos de África nova, correndo em seu ventre ubérrimo e luxuriante. Rios, seiva, sangue ebuliente, veias, artérias vivificadas dessa virgem morena e impaciente,

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minha terra, nossa Mãe! (KNOPFLI, 1982: 114)

6.2 Caliban: o outro lado da moeda

Canção de Ariel Esquálidos vultos aracnídeos, escorre-lhes a condoída mágoa ao longo dos magros ombros. Assim imóveis e mudos, cravados nos muros, nas pedras na paisagem, dão costas à Terra Firme, cujo rumor surdo ignoram. [...] O tumulto que sobe do continente não os inquieta ou contagia, em seus rostos não há sinal, centelha ou fulgor do incêndio que, no horizonte próximo, lavra. Imóveis e antigos, fitam o mar. Não são estes os filhos de Caliban. (KNOFPLI, 1982: 347)

O Estado Novo explorou ao máximo o patriotismo e o nacionalismo dos quais o

povo português precisava para superar a enorme discrepância entre a imagem mítica de

passadas glórias e a modesta realidade contemporânea do país. A ideologia fascista lança mão

da epopeia camoniana como uma cartilha moralizante para exaltar/exumar seus heróis do

grandioso passado histórico português, o que gerou uma distorção da real imagem de

Portugal. Ao enfatizar os feitos heroicos d´Os Lusíadas, o Estado Novo português construiu

uma imagem idílica, ou seja, um “paraíso artificial”18. A imagem criada por Rui Knopfli no

poema a seguir, destoa completamente do discurso português. O poeta moçambicano revela

uma outra vida, a verdadeira vida no Ultramar de “sangue, dor e silêncio”.

18 Para explicações mais detalhadas e as matizes do processo histórico, que extrapolam a moldura deste trabalho, confere por exemplo: SANTOS, Boaventura de Sousa (1993). Portugal: Um retrato singular. Porto: Afrontamento. E outras obras do mesmo autor; ROSAS, Fernando (2012). Salazar e o Poder: A Arte de Saber Durar. Lisboa: Tinta-da-China. E outras obras do mesmo autor.

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Tédio Estamos chateados e não temos ilusões. As nossas árvores não frutificam fantasias, dão flores de sangue e frutos abortivos de dor. Atiramos pedras pr’além do muro e escutamos o som opaco da queda. O muro é de silêncio mas as pedras têm arestas e levantam nuvens de caliça que pairam no ar. [...] Não atiramos pedras em vão. [...] (KNOFPLI, 1982: 88)

Em 1972, vaticina Rui Knopfli: “a ilha do próspero colonizador é o retrato de

desmantelamento do Império Português que se anuncia” (KNOFPLI, 1982: 34). No diálogo

com A Tempestade de Shakespeare, A Ilha de Próspero reestabelece a relação conflituosa

entre colonizador e colonizado, através dos personagens Próspero e Caliban, respectivamente.

Trata-se de um texto repleto de ambiguidades, que divide opiniões. Para Francisco Noa, a Ilha

de Próspero interpreta a Ilha de Moçambique como “um microcosmo onde a História, os

mitos e as lendas se diluem na memória coletiva e se consubstanciam nos templos, nos

monumentos e na escrita arqueológica de Rui Knopfli” (NOA, 1997: 55)

Luís de Sousa Rebelo argumenta que as reflexões do sujeito poético em A Ilha do

Próspero “pertencem a uma prática poética que tem muito em comum com a tradição literária

anglo-americana e se integra no gênero que entre nós Jorge de Sena definitivamente consagra

nas Metamorfoses” (1982: 13). Nas palavras de Knopfli:

[...] no que se refere ao livro sobre a Ilha de Moçambique, o que eu pensava que estava a fazer, com o devido respeito pelas hierarquias literárias, era um exame, para usar uma expressão da química, da Mensagem do Pessoa. A Mensagem é um livro de exaltação patriótica, do mito do V Império e não sei que mais... Eu falei era do «regresso dos Lusíadas», do regresso das caravelas. [...] (KNOFPLI, 1996: 55).

No poema “Lenda” de A Ilha de Próspero (1972), Rui Knopfli “aproxima-se da

cultura africana ao retomar a tradição pré-colonial do conto popular oral africano-

moçambicano“, recontando o lendário desaparecimento da Ilha de Moçambique. No contexto

do complexo temático Próspero/Caliban, Queiroz alerta para a importância, na compreensão

do poema, do fato de ao “conferir voz a Caliban, através do retorno à narrativa fantástica

africana, Knopfli nega a Próspero uma autoridade que é dada a ele sobre a ilha“ (2009: 1633).

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Porém, o sujeito poético de Rui Knopfli, ao contrário da maioria de seus

contemporâneos, não transmite e recupera códigos culturais negro-moçambicanos e africanos.

Com a sua identidade híbrida, Rui Knopfli se engaja numa proposta de “rever de modo crítico

e lucidamente distanciado o discurso histórico e cultural do colonizador, subvertendo esse

discurso no processo” (MONTEIRO, 2003: 78). Rui Knopfli combina a herança literária

europeia com a “marca da africanidade” através da emoção. Essa combinação gera uma

“condição «dilacerante» de insider-outsider que coloca Knopfli por vezes na pele de

Próspero, por vezes na de Caliban” (MONTEIRO, 2003: 78), condição esta comum a muitos

escritores brancos nascidos em territórios coloniais.

Este processo é ilustrado por Fátima Monteiro no poema “Ilha Dourada”, incluído

originalmente em O País dos Outros de 1959 e posteriormente na segundo edição de A Ilha

de Próspero de 1989.

Ilha Dourada A fortaleza mergulha no mar os cansados flancos e sonha com impossíveis naves moiras. Tudo mais são ruas prisioneiras e casas velhas a mirar o tédio. As gentes calam na voz uma vontade antiga de lágrimas e um riquexó de sono desce a Travessa da Amizade. Em pleno dia claro vejo-te adormecer na distância, Ilha de Moçambique, e faço-te estes versos de sal e esquecimento. (KNOFPLI, 1982: 75)

O poema é uma despedida antevista, projetada no futuro e, ao mesmo tempo,

também uma apresentação de “imagens que descobrem os traços dum passado de glorificação

épica, conquista e dominação colonial, num presente marcado pelo declínio” (MONTEIRO,

2003: 62). O poema, segundo Monteiro, faz uma identificação “entre o sujeito poético e um

sujeito de colonização virtual, em momento de constatação e confronto por este último da

inevitabilidade da separação do objecto de posse colonial” (2003: 62). O sujeito poético, neste

ponto de vista, é associado à personagem de Próspero que por sua vez é identificado

diretamente com o colonizador.

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Mas Monteiro mostra que, no mesmo poema, o sujeito poético pode ser identificado

com a figura de Caliban. A identificação explícita inexistente entre o sujeito poético e os

colonizados pode ser encontrada implicitamente na descrição de uma situação de dominação

no poema, onde “As gentes calam na / voz / uma vontade antiga de lágrimas” (MONTEIRO,

2003: 63).

Fátima Monteiro vê no poema “um lamento mútuo, compartilhado se quisermos

entre sujeito poético (faço-te estes versos / de sal e esquecimento) e o sujeito colonizado nele

representado por «as gentes»” (2003: 63). Este lamento, do lado do sujeito poético, não deve

ser entendido tanto como uma postura anticolonialista do sujeito poético descendente de

Próspero, mas antes como “entendimento pelo mesmo sujeito da sua condição trágica dum

Caliban exilado na pátria” (2003: 63).

Esta mudança do ângulo de vista transforma o sujeito poético em produto híbrido da

história. O sujeito poético herda “de Próspero, ou do colonizador, um legado de expropriação

que o converte, por ironia da mesma história, num sujeito, também ele, expropriado de

naturalidade, melhor dizendo, de nacionalidade” (MONTEIRO, 2003: 63).

Característica marcante da poética de Knopfli, no poema “O Preto no Branco”, o

autor, incorporando a figura do colonizado, dialoga com o colonizador, este, obviamente, no

papel de algoz. Todavia, o título remete para uma expressão na língua que, dentre outras

coisas, significa uma “prova da verdade, a realidade crua dos fatos”. Considerando a vasta

simbologia do título, o poema “O Preto no Branco”, mais do que um ataque ao colonialismo,

guarda tristes expectativas em relação ao futuro dos colonizados. Escrito no período entre

1967 e 69, o último verso soa como uma profecia, um alerta sobre os perigos que rondam a

sonhada liberdade das colônias:

O Preto no Branco Da granada deflagrada no meio de nós, do fosso aberto, da vala intransponível, não nos cabe a culpa, embora a tua mão, armada pelo meu silêncio, lhe tenha retirado a espoleta. De um lado o teu dedo indicador de outro a minha assumida neutralidade. Entre os dois, ocupando o espaço que vai do teu dedo acusador à minha nudez feita de medo e simpatia, tudo quanto não quisemos nem urdimos, tudo quanto a medonha zombaria

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de ódios estranhos escreve a sangue e, irredutivelmente, nos separa e distancia. Tudo quanto há-de gravar o meu nome numa das balas da tua cartucheira. Nessa bala hipotética, nessa bala possível que se vier, quando vier (ela há-de vir) melhor dirá o que aqui fica por dizer. (negritos meus) (KNOFPLI, 1982: 260)

O tema da memória como espaço de refúgio e de resistência ao eurocentrismo, que

desenvolvemos a partir de Le Goff, surge como um mar abissal a ser explorado pelo poeta, o

mar que reflete a identidade moçambicana em sua real dimensão. O poeta navega em suas

lembranças até atingir o fluxo das correntes mais subterrâneas do inconsciente coletivo

moçambicano, a exemplo do poema “Padrão”. Uma interseção entre memória e realidade

histórica.

Padrão Uma humidade escura e pegajosa alastrará de novo sobre o teu dorso de brancos e amarelos, desenhando nele estranhos, esquálidos arquipélagos fantásticos. A gangrena e a lepra do tempo minarão encarniçadamente o teu arcaboiço atarracado, modelando-te à imagem e semelhança do bizarro solo osteoporoso em que – memória cristalizada – repousas entorpecida de mar e ausência, esmerilado e exacto monumento à vã cobiça, aos erros graves e à grandeza desmedida que os gerou. Sob a metálica indiferença de um céu anil, porto de olvido na rota perdida das Índias, volverás assim um ressentimento de areia, soluço de pedra ao sabor da monção. (KNOPFLI, 1982: 354)

O tradicional símbolo português usado para demarcar os novos territórios

conquistados, o padrão, é retratado por Knopfli como uma estrutura decadente, prestes a ruir.

Os substantivos “humidade”, “gangrena” e “lepra” transmitem um sentimento de repulsa,

reforçado por adjetivos como “escura” e “pegajosa”. O monumento à “vã cobiça”,

representado pelo padrão, atravessou os séculos, resistindo à ação corrosiva do tempo. Ao

citar a epopeia camoniana, Knopfli anuncia que está próximo o cumprimento da profecia do

Velho do Restelo: os novos desastres da guerra colonial.

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“Sob a metálica indiferença de um céu anil”, o padrão apresentado por Knopfli serve

de prova verídica contra os graves delitos cometidos pelos colonizadores portugueses. A

“grandeza desmedida” dos lusitanos pode ser comprovada pela existência dos padrões que

permaneceram demarcando os domínios do Império Português e cerceando a liberdade dos

povos colonizados. Apesar de sua sólida estrutura, o tempo se encarregará de minar o padrão

de pedra.

O “Padrão” de Knopfli representa uma metonímia do poder colonial. O poeta

colabora com a ação corrosiva do tempo, empregando a força da palavra na luta contra

séculos de dominação estrangeira. Knopfli demarca o território moçambicano com palavras,

ergue um padrão em versos. O poeta reconhece o poder ambíguo de criar e de destruir da

palavra/pedra: derruba o antigo e ergue um novo marco, símbolo de uma nova era. Assim

como Jorge de Sena em “Os Trabalhos e os Dias”, o poeta moçambicano apreende no papel o

que escreve, desenha uma ideia para “caçar melhor” aquilo que deseja: a derrota do Império

Português.

[...] Muitas vezes, o poema funciona como uma espécie de ajuste de contas. O poeta ajusta as contas com a realidade, com o mundo. A sua vingança é essa. [...] (KNOFPLI, 1996: 63).

Entretanto, para “ajustar as contas” com o mundo em total desconcerto com a guerra

colonial é preciso ter coragem de escandalizar a verdade, como um “tiro certeiro no coração

dos homens” para que despertem para a vida verdadeira, sem dissimulações como ficção:

Novela Policial Na treva o enigma adensa: tiros e passadas no silêncio, o grito cortando cerse a noite, o sangue que alastra soube a pólvora. [...] Hoje impera o mistério. Amanhã far-se-á luz. O poeta cabeceia. O verso engendra-se lentamente na tristeza insone das horas: um tiro certeiro apontado ao coração dos homens. Far-se-á luz. Só o mistério ficará por solver. (KNOFPLI, 1982: 213)

O estilo cínico caracteriza-se pela ousadia de “mudar o valor da moeda”, assim como

Sena e Knopfli trabalharam pelo desmantelamento do Império português, pela liberdade que

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revele a vida verdadeira, “a vida não dissimulada, a vida que não esconde nenhuma parte de

si” (FOUCAULT, 2009: 223) sem “Paraísos Artificiais”. A vida cínica é uma vida de cão

porque é indiferente a tudo, no sentido de não se prender a nada e, de certo modo, uma vida

que late, uma vida diacrítica, capaz de brigar e distinguir os verdadeiros inimigos. Vigiar é um

trabalho silencioso e sacrificante:

O Cão da Angústia Tem eriçado e ralo o pêlo como se de animal morto, dos beiços gomosa baba lhe escorre em grandes fios de reluzente espuma. No olhar sangrento e fosco dura-lhe uma mágoa antiga e resignada. Mágoa, já não o sonho, lacerado à sanha das alcateias. Caminha trôpego e hesitante sob o triângulo agoniado do focinho, numa dança lenta e grotesca. Todo o tempo lhe pertence e não lhe sobra nenhum, cão insonoro e furtivo, cão de sombra, cão tardio e nocturno, ó cão da nossa esperança lazarenta, cão durável, cão indestrutível. (KNOFPLI, 1982: 247)

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7 “Os Trabalhos e os Dias” de Jorge de Sena e de Rui Knopfli

Os Trabalhos e os Dias Sento-me à mesa como se a mesa fosse o mundo inteiro e principio a escrever como se escrever fosse respirar o amor que não se esvai enquanto os corpos sabem de um caminho sem nada para o regresso da vida. À medida que escrevo, vou ficando espantado com a convicção que a mínima coisa põe em não ser nada. Na mínima coisa que sou, pôde a poesia ser hábito. Vem, teimosa, com a alegria de eu ficar alegre, quando fico triste por serem palavras já ditas estas que vêm, lembradas, doutros poemas velhos. Uma corrente me prende à mesa em que os homens comem. e os convivas que chegam intencionalmente sorriem e só eu sei porque principiei a escrever no princípio do mundo e desenhei uma rena para a caçar melhor e falo da verdade, essa iguaria rara: este papel, esta mesa, eu apreendendo o que escrevo. (Negritos meus) (SENA, 2013: 88)

Estima-se que a poesia épica tenha surgido na Grécia por volta do século XII a. C.

Contudo, a poesia já era uma prática anterior à escrita, utilizada contra o esquecimento. A

métrica e o ritmo colaboram para uma maior memorização das mensagens veiculadas pela

poesia: “Um grande acervo que funcionava como uma espécie de enciclopédia”

(MANTOVANELI, 2011: 20). O poema “Os Trabalhos e os Dias” de Hesíodo, já na Grécia

arcaica, formulava uma Filosofia da Justiça.

“Tu! Eu a Perses verdades quero contar” (MANTOVANELI, 2011: 47). Hesíodo

inova ao escrever em primeira pessoa e, ao reclamar seus direitos, estabelece o diálogo entre o

“Eu” e um “Tu”. Distancia-se de Homero ao tratar de questões cotidianas, desloca sua visão

do herói para o homem comum. No lugar da glória, a justiça e o trabalho ganham maior

importância. A disputa judicial de Hesíodo com o seu irmão Perses sobre a partilha da

herança paterna não apresenta um desfecho, não se trata de uma crônica, “sua grandeza de

espírito o fez perceber que estava perante algo que transcendia a si próprio e deu ao mundo

uma das primeiras e mais profundas discussões sobre a natureza da justiça de que temos

notícia até hoje” (MANTOVANELI, 2011: 37-8).

Ciente de fazer parte de uma linhagem de poetas, Jorge de Sena evoca “Os Trabalhos

e os Dias”, título do célebre poema de Hesíodo, o mais antigo do qual se tem conhecimento

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no Ocidente. O poeta grego se apropria das palavras para reclamar por justiça e valorizar o

trabalho, dentre outras reflexões acerca dos valores sociais de sua época.

Os Trabalhos e os Dias Pois se alguém quiser as coisas justas proclamar sabiamente, prosperidade lhe dá o longevidente Zeus; mas quem deliberadamente jurar com perjúrios e, mentindo, ofender a Justiça, comete irreparável crime; desde, a estirpe no futuro se torna obscura, mas do homem fiel ao juramento a estirpe será melhor. (MANTOVANELI, 2011: 41)

Certo de que a ideia de Hesíodo se eternizou, como num ritual, que o homem repete

desde os primórdios, de gravar um desejo a fim de realizá-lo, o poeta investe no poder da

escrita que apreende uma ideia a fim de concretizá-la através do trabalho, no decorrer do

tempo. Nas palavras de Gilda Santos: “Inalienáveis vínculos entre o pessoal e o social, que se

estreitam sob a cumplicidade da história, compõem uma arte poética seniana que Os

trabalhos e os dias exemplarmente traduzem” (SANTOS, 1998: 10).

“Palavras que lutam / instáveis, monocórdicas, / ou insonoras / e que opressas / e

submersas / anseiam a calma das superfícies [...]” (KNOPFLI, 1982: 107). Palavras que soam

e ecoam no espaço, no tempo e na eternidade: “nenhum eco haverá de outras canções / não

ditas guardadas no coração / alheios, ecoando abscônditas ao sopro do poeta. Não por mim”

(SENA, 2013: 172-3). Também diria Rui Knopfli, repartindo com Jorge de Sena a

incompreensão: “Os Trabalhos e os Dias”. A poesia contamina e une os poetas na dor:

Lepra A poesia tão igual a uma lepra! .................................................. E os poetas na leprosaria vão vivendo uns com os outros, inspeccionando as chagas uns dos outros. (SENA, 2013: 46)

Jorge de Sena não foi o único que amargou o desprezo de seus contemporâneos

como uma porrada confessa, “nos termos próprios de Álvaro de Campos” (SILVEIRA, 2009:

1); Rui Knopfli também. Suas mensagens cifradas em pautas poéticas geram uma linguagem

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capaz de transitar na escuridão: “a poesia aprende a dizer, soletra, diz, ensina a dizer, escreve

o sentido de falar de liberdade em tempos de opressão” (SILVEIRA, 2009: 2).

Em depoimento à Objectiva 60, declara Knopfli: “Não concebo atitude mais e mais

profundamente significativa do que a duma Arte que se bate pela dignificação do homem”

(KNOFPLI, 1982: 17). “Sem Nada de Meu”, a escrita é a pátria do poeta solitário, ilha

encantada, refúgio, o espaço de afirmação. Confessa o poeta moçambicano:

Sem Nada de Meu Dei-me inteiro. Os outros fazem o mundo (ou crêem que fazem). Eu sento-me na cancela, sem nada de meu e tenho um sorriso triste e uma gota de ternura branda no olhar. Dei-me inteiro. Sobram-me coração, vísceras e um corpo. Com isso vou vivendo (KNOFPLI, 1982: 305)

Comparável à de Jorge de Sena, a poesia de Rui Knopfli é comprometida com a

verdade e denuncia as injustiças sociais, com a secura e a dureza de seus versos. Destarte, os

dois poetas podem ser enquadrados no conceito de parresia. Como vimos no capítulo 4,

Michel Foucault resume a parresia, contrapondo-a à retórica, destacando, assim, as

características centrais da parresia. Segundo Foucault, a retórica é um instrumento, uma

técnica que diz respeito à maneira como as coisas são ditas. ”[...] Que, transformando-as em

fim, o amor das palavras / não corrompa e destrua o amor da verdade [...]” (KNOPFLI, 1982:

430-1). Seguindo o pensamento do poeta moçambicano, destaco os seguintes versos de Sena:

“[...] Por todas as verdades à verdade vai / quem sem má-fé sobre ela se debruce” (SENA,

2013: 261) Mesmo ciente dos riscos que corre, um poeta deve seguir firme no caminho da

verdade:

Carta ao poeta Eugénio Evtushenko a propósito de uma suposta autocrítica [...] Não te arrependas de nada. Um verso está sempre certo mesmo quando errado. A verdade também, mesmo quando dói ou fere ou parece inoportuna. A verdade nunca é inoportuna. O teu inconformismo é o preço

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da nossa libertação e teus versos florescem no coração do povo. Não. Não te arrependas de nada. Não torças o verso, não obrigues a palavra: um poeta está sempre certo. Não permitas que o óxido dos políticos entre na lâmina dos teus versos. Um poeta não se vende, não se compra, não se emenda. A um poeta corta-se-lhe a cabeça. E uma cabeça cortada não dói, mas tem uma importância danada. (KNOPFLI, 1982: 194)

A retórica não determina as relações entre o locutor e o dito, senão entre o dito e os

ouvintes. Na retórica não existe nenhuma relação de crença entre o locutor e o que ele diz. O

locutor retórico pode dizer algo em que ele não acredita, do qual ele não está convencido e

que ele nem pensa. O que importa na retórica é a relação de crença entre o dito e os ouvintes,

os destinatários, na medida em que a retórica visa a originar certas convicções nos

destinatários.

A retórica estabelece uma relação de poder entre o dito e aqueles aos que o dito é

direcionado, enquanto não existe uma relação entre o locutor e o dito. Acerca dos poetas que

usam a poesia para fins meramente retóricos, escreve Jorge de Sena:

Ode à Beira-Nada (Tudo lido num poeta lírico armado em poeta heroico) Eu leio estes poetas com imensa amargura. É tão verdade que todos desejamos (todos, menos quem deseja o sossego dos outros) a liberdade mais perdida a cada sonho com ela como flor tranquila vicejando algures onde contemplá-la é só o chilreio vago do campo antigo! [...] Não, não, toda esta gente é ignóbil, miserável, não posso deixar de os ler com imensa amargura. Passam cantando inúmeros disfarces contra a morte dos deuses e das leis, das classes, de tudo o que, por séculos, inventou palavras com que eles cantam; e, no calor do canto, há um consolo atroz, gramatical, de sobrevida, relento a vida viúva e mal lavada. Não! Tudo isto é falso! Acudam, que é traição! Ainda é tudo o mesmo, a mesma teatrada, à margem da verdade que nem é verdade, se não há razões, se nós, os que sabemos,

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é que andamos cá por ver andar os outros? [...] Confessai, por uma vez, cobardes, que até por cobardia praticais heroísmos! Confessai, por uma vez, que não tendes coragem para lutar alegremente e sem motivos! Confessai que não sabeis amar a vida, que a não amais senão na dor dos outros! Confessai, confessai, apenas uma vez! [...] Sereis só líricos sem máscara. Repipilareis na doçura da tarde (ai como é doce!), no silêncio da noite (ai como é escura!), no estalido róseo da madrugada próxima... ............................................................................... Alto! Alto aí! Não vos inspireis! Deixai nascer o Sol!... Deixai que ele nasça, que, sem todos vós – el’ nasce. (SENA, 1989b: 59-60)

Palavra ácida, faca amolada, palavra cortante em suas “arestas vivas”. Inegável

artifício corrosivo, a ironia, é um reforço a mais nesta sua missão clandestina com as palavras.

Passo a palavra ao poeta moçambicano ao apresentar dois tipos divergentes de poeta:

Poesia Sem Mais Nada De pequenos materiais, carinho e minúcia, algo de subtil humildade, o poeta-sem-mais-nada compõe seu verso silencioso. Enquanto isso o poeta demagógico distribui o granel das rimas em ão, em dade, em aço. Assim, o irmão estende o braço da fraternidade no abraço que vai do coração à humanidade. Rola e estraleja farto o trovão no verso chocalhante do poeta demagógico e o público aplaude comovido. Passada a borrasca tonitroante do verso, o céu aparece limpo e o sol sorri antigo. Na oficina obscura do poeta -sem-mais-nada o verso cumpre-se lenta e dolorosamente, mas suas arestas vivas, sua dureza de diamante insinuam-se teimosamente e vão, sempre com ar discreto, minando os poderes constituídos. (KNOPFLI, 1982: 203)

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Claramente irônico neste poema, Knopfli faz a distinção entre dois tipos de poeta: o

“sem-mais-nada” e o “demagógico”. Por meio deste recurso estilístico, o poeta realiza um

jogo cênico, de espelhos, onde as imagens se intercalam. Ora o “poeta sem mais nada”

trabalha em silêncio, solitariamente, em sua “oficina escura”. Seu verso, composto com

“minúcia e carinho”, brota “teimosamente” na alma do poeta comprometido com a verdade,

“essa iguaria rara!” (SENA, 2013: 88). Dividindo a cena, o “poeta demagógico” é aplaudido

por uma plateia comovida com suas rimas fáceis, criadas para forjar a “fraternidade no abraço

do irmão que estende o braço”. Segundo Jorge Fazenda Lourenço

A instrumentalização da literatura, a sua utilização com fins políticos imediatos, de propaganda, mais ou menos dissimulada, não era apenas apanágio do totalitarismo estalinista dos «engenheiros de almas». O mesmo se passava, nos anos 30 e 40, com o nazismo alemão e com os diversos fascismos, encontrando expressão, em Portugal, na «política do espírito» do Estado Novo (LOURENÇO, 2012: 15).

O “poeta demagógico”, nada silencioso nem discreto, “rola e estraleja farto o trovão”

em versos “chocalhantes”, trata-se de uma figura pública, que trabalha para a alienação,

fabrica ilusões, como num passe de mágica “o céu / aparece limpo e o sol sorri”. Do lado

oposto, com “humildade”, o “poeta-sem-mais-nada” secretamente compõe seus versos que

“vão, sempre com ar discreto, / minando os poderes constituídos” (negritos meus). Knopfli

apresenta a seguinte lição sobre o fazer poético:

Aprendiz na Oficina da Poesia Não rimes. Ou rima, se quiseres, mas não violentes a palavra. [...] Música e rima são assessórios dispensáveis: O poema é outra coisa. [...] Espera as palavras. Elas viajam misteriosas, desconhecidas ainda, elas germinam em ti. [...] Juntas transcendem-se, há algo de íntimo, coeso e secreto nelas. O poema está aí. (KNOFPLI, 1982: 108-9)

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Jorge de Sena questiona a capacidade poética daqueles que escrevem mais

preocupados com os efeitos estéticos e os recursos estilísticos do que com a correção dos

“desconcertos do mundo”. Irado com os poetas retóricos, Sena explode em versos sua revolta:

«Rimam e desrimam» Rimam e desrimam – que sabem da vida? Que aprendem dela – no que escrevem? Ah filhos da puta! Que sentem ou não sentem – viveram ou sonharam? Que ensinam do que viram – ou nunca imaginaram? Ah filhos da puta! (SENA, 1989b: 98)

O Grande Prêmio Internacional de Poesia Etna-Taormina (1977) e a publicação de

numerosas páginas na Revista O Tempo e o Modo, em 1968, são reconhecidos, mas pouco

amenizam as queixas do “urso mal lambido” (LISBOA, 1984: 150) das letras portuguesas.

Sena derrama o ácido de suas palavras sobre os desentendidos de seu talento. O

inconformismo, dada a incompreensão de seus versos embalam muitos dos seus textos. O

rancor, a amargura, diante do descaso da crítica de sua época se transforma numa espécie de

guerra particular pelo reconhecimento de seu valor artístico e, sobretudo, da cultura à qual

pertence. No áspero combate que trava junto à crítica portuguesa pelo reconhecimento de seu

valor artístico-literário, escreve o poeta:

Ode à Incompreensão De todas estas palavras não ficará, bem sei, um eco para depois da morte [...] Não por mim. Por tudo o que, para ecoar-se, não encontrou eco. Por tudo o que, para ecoar ficou silencioso, imóvel – – isso me dói como de ausência a música não tocada, não ouvida, o ritmo suspenso, [...] (SENA, 2013: 172-3)

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Utilizando como sua principal arma a ironia, Sena satiriza e despreza os conceitos da

crítica portuguesa de sua época que fecha os olhos para a importância de sua produção

literária. A esta crítica, Sena ironicamente denomina “impressionismo abusivo e

irresponsável”. Não poupa ofensas nem usa de meias palavras para atacar a crítica que julga

incapaz de conceber a dimensão de seu talento.

A diferença que há entre o impressionista e o dotado de escolaridade não é a que vai de um inspirado a um burro de carga. [...] Como é sabido, e aplicável a uns e outros, um burro nasce burro e ao fim de vinte anos não é cavalo. Com uma nota importante: o burro com escolaridade corre menos risco do que o inspirado impressionista mesmo se inteligente. Na verdade, ele sabe que não sabe, e o outro nem pára a pensar que não sabe. Aliás, nenhum deles corre riscos nenhuns, sobretudo em Portugal, aonde a asneira não só nunca matou alguém, como tem rendido muitas condecorações e prêmios, talvez porque muita gente sente prazer mórbido em refocilar na asneira, e um bode expiatório é uma grande consolação (SENA, 1984a: 59).

Knopfli escreve a sua receita de fazer versos e aproveita a oportunidade para criticar

os poetas oportunistas, descomprometidos com a missão poética do testemunho em prol da

liberdade. Em busca de popularidade, esses poetas fabricam uma poesia leviana, de rápida

compreensão, em detrimento do valor artístico da obra. A utilização da primeira pessoa do

plural (nós) sugere uma aproximação do leitor, mas também mascara o sujeito poético.

Knopfli aconselha o uso do tradicional eu-lírico que, apesar de modesto, guarda poderes

infinitos, podendo alcançar a voz da humanidade.

Ars Poética 63 Como fazer versos? Sentar numa cadeira à secretária, papel à frente, caneta em punho. Esperar. Esperar em vão. Esperar. Esperar mais ainda. Esperar sempre. [...] Há quem comece com irmãos, o que tem vantagens inúmeras, desde as garantias de escolas às conveniências e conivências do correlegionarismo fiel que assegura um público bastante certo, embora pouco amante da poesia e, de ordinário, pouco esperto. [...] O melhor ainda, o mais velhinho e garantido é começar pela palavra eu. Será umbilicalista, egoísta, eu sei cá, mas é pequenina e humilde e não diz mais do que diz, não tem mais responsabilidades do que as que convém seu minúsculo e modesto universo. Será

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pouco, mas é um mundo. [...] [...] (KNOFPLI, 1982: 183)

Contestando o tradicional conceito de lirismo, Theodor Adorno afirma que a

“grandeza da obra de arte consiste unicamente em revelar o que a ideologia oculta”

(ADORNO, 1975: 347). Neste caminhar, a língua é o instrumento mediador entre o eu-lírico e

o meio social, ultrapassando o universo intimista para alcançar a igualdade de sentimentos

vividos por quem lê. De solitário, Rui Knopfli revela-se solidário em sua compaixão com os

desprotegidos, abandonados a um cotidiano de ruínas.

Verso e Anverso Diria palavras altas como amor, palavras lentas como ternura, ou duráveis como amizade, Desceu um véu de luto sobre o amarelo esmaecido da savana, lá onde dormem os corpos mutilados e onde cresta, rente à terra, o sangue derramado. Baixou sobre a serenidade das coisas um sono obscuro e terrível, Poluiu o teu sorriso, o meu desejo; intercala os gestos e as vozes ciciadas. Cerramos os olhos para a penumbra donde brotam, nítidas, as imagens: Há uma criança no fogo, o pavor de um soluço estrangulado, fulgurantes, rápidas as chamas. Direi palavras insuportáveis como morte. (KNOFPLI, 1982: 256)

De acordo com Luís de Sousa Rebelo, os “desconcertos do mundo” constituem um

dos grandes temas expressos nos poemas do livro O Escriba Acocorado (1982: 21). Observo

que a posição do escriba é semelhante à de Camões recriado por Jorge de Sena na Ilha de

Moçambique. A poesia fabrica a História, uma versão que não mais ficará oculta pelo

colonizador, as palavras são de acusação, ou seja, a escrita pretende revelar os seculares

mecanismos de opressão do sistema colonialista.

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I. Proposição Servidor incorruptível da verdade e da memória, escrevo sentado e obscuro palavras terríveis de ignomínia e acusação. De pouca ternura também. Na penumbra deste recanto anónimo, a aranha sombria entretece na quebradiça baba lucilante o fabrico da História que há-de ler-se. Animal cauteloso, retraçando um velho ritual, seus gestos assumem, ainda assim, a gravidade hesitante do risco calculado. Séculos de aprendizagem me ensinaram uma humildade serena. Escrevendo, escrevo-me, reconciliado com os agravos suportados e as ofensas infligidas. Os olhos que mal vêem, viram e não querem esquecer. E o que não vêem agora, descortina-o a exercitada sabedoria de quatro sentidos despertos. [...] [...] Em cada reflexo cintila a verdade e todos reenviam ao mais espesso negrume. Sorriam pois, falsos deuses, ao meu penoso e árduo linguajar; que as glórias efémeras cumpram o seu destino meteórico e, no azul, a esfera retenha o escorreito traçado da sua curvatura. A História que há-de ler-se é por mim escrita. Anonimato igual nos cobrirá. A estas palavras não. (KNOPFLI, 1982: 361-2)

Qual um cínico, nos termos de Foucault, o escriba, ao escrever a História que deve

ser lida, sabe que corre risco de vida por falar a verdade ao tirano. Por esta razão, o sujeito

poético deve calcular cada passo, cada palavra dada e tecer o seu texto cautelosamente, como

a teia de uma aranha. A História contada pelo poeta cínico deseja cunhar outro valor para a

moeda ao escrever a sua versão de sua pátria, diferente da História oficial que favorece a

Europa, em detrimento da África.

Ars Poética 66 [...] Descreve, por vezes, o verso, uma linha sinuosa operada com mil cautelas por entre a desordem ordeira dos corpos dispostos assimetricamente, olhando e vendo o verso coisas que os olhos ignoram e não olham. [...] (KNOFPLI, 1982: 231)

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A Coragem da Verdade em Knopfli evidencia-se em outro poema também intitulado

“Proposição”. A necessidade de inventar “um país outro” denuncia a espécie de amnésia

coletiva aplicada pelos colonizadores, uma forma de violência silenciosa, todavia com

altíssimo poder de aniquilar a memória coletiva. A linguagem poética, além de iludir, como

quem muda de assunto, recorre às imagens como um transeunte distraído que não fala coisa

com coisa para driblar a forte censura salazarista:

Proposição Falo de outro país singular, do perfume aloirado e desse sabor a pão matinal. [...] Falo de um céu onde estrelas serenas navegam presságios e do refúgio em uma outra dimensão inusitada. [...] Falo da beleza das coisas simples e elementares: a água, o pão e o vinho iludindo o espanto de viver falo de estar vivo e deste outro inventado país, singularmente habitado, fora da possibilidade de habitação (KNOPFLI, 1982: 255)

Devido ao silêncio imposto pela censura da época, o panorama sociocultural

obscurece sobremaneira. Temidos os ouvidos da PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do

Estado), violento instrumento de repressão no controle social. O silêncio é um convite sedutor

à transgressão. Nos versos de “Proposição”, uma única estrofe não se inicia com o verbo

falar, na primeira pessoa do singular. Porém, o poeta se afirma um porta-voz de “notícias de

outro clima”, e segue versejando contra a imposição do silêncio: “[...] Falo de outras vozes

estranhas, / de murmúrios e ruídos indescritíveis, / dos pequenos ardis do silêncio. / [...]”

(KNOPFLI, 1982: 255).

O poeta português também defende a liberdade de expressão e concorda com a ideia

de que é necessário reagir e combater os mecanismos de repressão do regime fascista. Sena

pretende combater a ideologia salazarista em qualquer circunstância e faz a seguinte

convocação aos demais poetas :

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Panfleto [...] Vamos rasgar, ó poetas, esta mentira da alma, vamos gritar aos homens que os enganaram, que não é a força, que não é a glória, [...] E se é verdade a fome, se é verdade o abismo, se é verdade o pensamento húmido que pestaneja ansioso nos cortejos públicos, se são verdades as redenções que mentem: Matem essa gente para salvar a Vida! E matem-me com elas para que as queime ainda! (SENA, 2013: 125-6)

São recorrentes na poesia de Rui Knopfli as metáforas que transbordam nos poemas,

mais uma ferramenta na arte de fingir. Descreve imagens externas, como paisagens,

banalidades cotidianas; ou internas, como a solidão, a tristeza, a contrição da “alma numa

renda miúda / e apertada de ponto incerto / e complicado” (KNOPFLI, 1982: 212). Noite e

silêncio correspondem às duas mortes respectivamente: à morte do Estado com a implantação

do fascismo; à morte social através da alienação do homem, amordaçado pela censura. O

poeta denuncia os crimes cometidos pelo fascismo, testemunha o quanto a morte se tornou

banal num cotidiano que se arrasta pelos campos de guerra:

Lírica para uma Ave Num céu de chumbo e baionetas caladas, sobre uma floresta de sono e demência, tonta, esvoaça perdida uma ave sangrenta. Na turva e opressa manhã se anuncia a cólera do tempo. Na hora da aurora, gemem ventos, fluem surdos rios. Cerra os olhos, cala na garganta a voz, acorda audível o pensamento: No escuro cerne da floresta,

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com sorrisos dependurados à entrada, degola-se uma ave. Por enquanto mais nada, senão o torvo tinir dos talheres no banquete da morte impossível. (KNOPFLI, 1982: 37)

No poema de Maxila Triste, intitulado “O Poeta é um Fingidor”, além da evidente

referência ao poema “Autopsicografia”, Knopfli realiza um jogo fonético e semântico a partir

dos versos de Pessoa, onde o coração funciona como um trenzinho de corda que “gira, a

entreter a razão” (PESSOA, 2006: 82). A onomatopeia gerada no poema pela repetição dos

sons “ tri, tre, tra” tanto pode representar a movimentação do triste e constrangido

coração/comboio, quanto o som produzido pelos dentes trincados de uma maxila trancada

pela impossibilidade de falar, ou ainda o barulho produzido pelas armas de fogo. Assim

como Sena, Knopfli testemunha o quanto a vida na sua terra também é inefável. Com a

palavra, o poeta moçambicano

O Poeta é um Fingidor Entreteço palavras na malha áspera destes versos e a tessitura triste que faço mais esmorece no azul baço do papel. Entristeço então a alma numa renda miúda e apertada de ponto incerto e complicado. Estabeleço assim dois mundos convergentes: A textura entristecida dos versos e a tristeza entretecida da alma. E logo esqueço onde tudo isto teve começo: Se de entristecer palavras, se de entretecer sentimentos, se de constranger a alma, se de contristar palavras: se me contristei constrangendo, se me constrangi contristando. Sei que me contristo entretecendo e me entreteço de tristeza. (KNOPFLI, 1982: 212)

Com as colônias, um pequeno e periférico país se transforma numa potência com

uma posição geoestratégica central, concepção expressada no lema salazarista “Portugal não é

um país pequeno”. Estes valores nacionalistas também justificam o caráter autoritário do

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regime do Estado Novo, dado que a repressão das liberdades individuais só se podem

justificar em relação a uma pátria grandiosa, cujo salvador apresenta-se na figura de Salazar e

o seu regime

que desenvolve uma retórica do progresso na qual instrumentaliza as colónias como forma de suprir as deficiências do país, mascarando simultaneamente este papel do além-mar com um discurso de igualdade, de forma a ocultar a lógica do suplemento que o império patenteia (VIEIRA, 2010: 131).

Knopfli cria uma contra-imagem de Portugal, ao criar uma imagem-outra para a

África. O poeta se empenha no resgate do seu semelhante, assim como ele, esmagado por

forças políticas nefastas. Uma das formas de resistência é a manutenção da memória histórica,

fazendo de sua escrita um ato de insurreição contra o regime fascista. Nesta lógica, a poesia

de Knopfli trabalha para desconstruir a imagem imperialista de Portugal que integrava suas

colônias em África ao mapa da metrópole, propagando a falsa ideia de nação integrada, regida

harmoniosamente pelos valores lusotropicalistas. O poeta descreve um cenário desolador que

desmente a ideologia do Estado Novo:

Se Te Disserem [...] O círculo aperta, fecha-se, em nosso redor, inexorável e manso como as coisas sem memória e sem remorso. O silêncio no jardim, o banco de pedra, o sol que não aquece, os amigos ausentes, os amigos calcorreando duramente os velhos caminhos da lembrança: a nossa morte. (KNOPFLI, 1982: 274)

Salazar utilizava a História e as tradições do país para desenvolver um projeto

nacional de longa duração. Objetivos como o equilíbrio orçamentário, a criação de uma nova

elite nacional e a reconstrução do “espírito nacional”, segundo afirma Filipe Ribeiro de

Meneses, eram projetos de anos de duração. Ao mesmo tempo, o nacionalismo do Estado

Novo abandonou o máximo possível ideologias políticas e limitava-se pragmaticamente à sua

própria manutenção, confundindo-a “com o interesse nacional e com a preservação da ordem

e da obediência” (MENESES, 2011: 124). Solidário com as vítimas do colonialismo, Sena

dispara seus versos contra a repressão:

Crisma [...] Hei de guiar tão longe os homens enganados Hei de atraí-los para o fim do mundo e lá, em face da multidão das vítimas,

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na solidão que elas encarnaram, hei de rasgar-lhes o último farrapo de honra, para que entrem na morte igual aos que esmagaram. (SENA, 2013:111)

A partir de 1961, a questão colonial entrou no centro das atenções políticas em

Portugal. Em dezembro de 1960, a ONU aprovou uma resolução, originária do bloco afro-

asiático, aumentado consideravelmente com as novas nações independentes, que pedia o

término imediato do colonialismo em todas as suas formas. Portugal representa o passado,

como a imagem de um velho colono sentado em um banco, alheio à vida e ao mundo em

redor:

Velho Colono Sentado no banco cinzento entre as alamedas sombreadas do parque. Ali sentado só, àquela hora da tardinha, ele e o tempo. O passado certamente, que o futuro causa arrepios de inquietação. Pois se tem o ar de ser já tão curto, o futuro. Sós, ele e o passado, os dois ali sentados no banco de cimento. Há pássaros chilreando no arvoredo, certamente. E, nas sombras mais densas e frescas, namorados que se beijam e se acariciam febrilmente. E crianças rolando na relva e rindo tontamente. Em redor há todo o mundo e a vida. Ali, está ele, ele e o passado, sentados os dois no banco de frio cimento. Ele a sombra e a névoa do olhar. Ele, a bronquite e o latejar cansado das artérias. Em volta os beijos húmidos, as frescas gargalhadas, tintas de outono próximo na folhagem e o tempo. O tempo que cada qual, a seu modo, vai aproveitando. (KNOFPLI, 1982: 145)

Jorge de Sena não esperou a queda do ditador português para mostrar o quanto este

era indesejável. Seu olhar crítico já trazia à luz temas vedados pela censura salazarista. “Da

minha terra exala-se perfume de terra reprimida [...]” (SENA, 2013: 288). Habitualmente, o

poeta trabalha para despertar a consciência crítica de uma nação submetida à inibição de uma

real avaliação das razões de sua existência.

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Borras de Império [...] III Pergunto-me a mim mesmo como foi possível: ou os impérios gastam seu povo até que ele seja uma raça agachada, mesquinha e traiçoeira, ou é com gente dessa que os impérios se fazem, já que nada glorioso se constrói humanamente sem 10% de heróis de 90% de assassinos. Que coisa fedorenta a glória, sobretudo enquanto passam séculos e só ruínas fiquem — onde nem o pó dos mortos ainda cheire mal. [...] (SENA, 2013: 633)

Justamente por sua capacidade de resistência, a poesia representa uma poderosa arma

contra a tentativa do Estado de fazer calar, ou seja, contra a censura. Sorrateiramente, o poeta

trabalha para desativar o esquema psicológico da dominação pela alienação, largamente

utilizado pelos regimes ditatoriais. A maior e única arma: a palavra. Dura, resistente,

cristalina como um diamante, ou simplesmente intimidadora como qualquer granito bruto

encontrado no “meio do caminho”:

A Pedra no Caminho

Toma essa pedra em tua mão Toma esse poliedro imperfeito, Duro e poeirento. Aperta em tua mão esse objecto frio, redondo aqui, acolá acerado. Segura com força esse granito bruto. Uma pedra, uma arma em tua mão. Uma coisa inócua, todavia poderosa, tensa, em sua coesão molecular, em suas linhas irregulares. Ao meio-dia em ponto, na avenida ensolarada, tu és um homem um pouco diferente. Ao meio-dia na avenida tu és um homem segurando uma pedra. Segurando-a com amor e raiva. (Knopfli, 1982: 148)

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O poema faz clara referência ao poema “No Meio do Caminho” de Carlos

Drummond de Andrade, que, de acordo com os versos de Sena no poema “Drummond

quando fizer Setenta Anos”, o poeta brasileiro “continuará fabricando claros enigmas de

alguma poesia” (SENA, 1989b: 120). O poema de Knopfli concretiza a pedra do poema de

Drummond, incitando o leitor, o homem comum que se identifica com a opressão, a reagir. A

repetição do verbo “tomar”, ter para si, é reiterada com os verbos “segurar” e “apertar”. Esta

sequência de ações verbais transmitem uma atitude rebelde tomada com firmeza e coragem,

características refletidas na composição do minério adjetivado pelo poeta como duro, frio,

bruto.

“Ainda há ruas para a revolta do mundo” (SENA, 2013: 103) O homem, movido por

sentimentos antagônicos, amor e raiva, torna-se “um pouco diferente”, segurando fortemente

a pedra encontrada no meio do caminho da poesia. Armado com a palavra, no centro da cena,

na “avenida ensolarada”, o homem está pronto para reagir contra o seu velho inimigo. “Meio-

dia em ponto” será o ajuste de contas, ou como na expressão popular: “a hora de acertar os

ponteiros” com a História.

A Moral da História Entretanto a vida constrói-se, é um facto. O edifício ainda se não vê, mas os alicerces ocultos estão sólidos e profundos e operários silenciosos, de rosto obscuro, deslizam neles com uma eficiência anónima e implacável. Gente ainda ignorada, sem importância aparente, move com precisão a pá e o tijolo. Gente que ignora certamente estes versos mas sabe de toda a poesia que há neles, porque a poesia está implícita nos movimentos que traça. Gente ainda sem nome aqui e com que ninguém se importa, mas que importa a toda a gente. (KNOFPLI, 1982: 206)

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8 Conclusão

A convicção de ser povo missionário, predestinado por forças superiores a converter

ao redentor Cristianismo todo o mundo dito primitivo, oculta a verdade histórica do que

representaram os feitos dos colonizadores portugueses em terras alheias. São heróis

construídos não a peso de suas mirabolantes façanhas, mas “a peso de ouro e sangue”, como

escreve Sena no poema “A Portugal”, no qual o poeta realiza uma brutal inversão da histórica

imagem do Império Português. Inicialmente apropriando-se da fala do capitão Vasco da

Gama em Melinde, Jorge de Sena desconstrói o discurso do herói camoniano no decorrer do

poema.

Para uma nação habituada a expansões, olhar para dentro de casa tornou-se a única

conquista a se realizar nos tempos depois da Revolução dos Cravos. Para tanto, faz-se

necessário exorcizar o irrealismo a que se confinou para que reflita a imagem do verdadeiro

rosto lusitano nos “espelhos em que as culturas privilegiadas se podem rever de um só golpe

de vista e em corpo inteiro” (LOURENÇO, 2013: 136). A resistência em aceitar uma visão

que não seja milagrosa, irrealista, da condição histórica nacional é interpretada pelo autor de

O Labirinto da Saudade como um grave obstáculo à evolução da consciência crítica.

Parcialmente em resposta ao Ultimatum inglês, surge no Estado Novo uma ideologia

baseada na exaltação das conquistas da época da expansão. A metrópole e as colônias eram

consideradas inseparáveis e a imagem do Império, transformada em “mística imperial”, serviu

ao regime salazarista para a manutenção da ilusão de que um pequeno país periférico pudesse

tocar no concerto das grandes nações colonialistas. Os Lusíadas foram largamente usados na

construção e na manutenção da imagem heroica do Império Português. A partir dos anos 50

de século XX, a imagem imperial é substituída, com a pressão internacional, pela teoria do

lusotropicalismo do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, dando continuação a uma imagem

irreal dos portugueses.

O Estado Novo reclamava a herança cultural, presente nas memórias culturais da

expansão portuguesa, ao mesmo tempo que recorria a fundamentos contemporâneos, como o

lusotropicalismo. O fascismo não reconhece a morte de Portugal e oculta o seu cadáver entre

brumas, enquanto aplica na sociedade a “[...] velha lei mental pastilhas de mentol” (BELO,

2014: 499) para tentar disfarçar o forte mal-cheiro que se alastra pelos paraísos sonhados por

Salazar. A morte do Estado gera a morte social, a censura, a vigilância dos hábitos, a garantia

de manipular toda uma nação. Com a guerra, a morte prolifera e contamina a vida. A terra se

mancha de sangue, o homem perde seu natural habitat.

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De Ulisses à Virgem de Fátima, a crença numa predileção divina é tradição na

cultura portuguesa. Comenta Eduardo Lourenço: “a nossa história é uma série de fábulas para

o uso das sucessivas classes dominantes” (LOURENÇO, 1999: 132). A sacralização da

origem, comum a vários povos, em Portugal, é levada às últimas consequências, pois o

“singular no povo português é viver enquanto existência miraculosa” (LOURENÇO, 1999:

92). Absorta em sonhos eternos, a nação portuguesa nega a sua realidade decadente, de olhos

vendados para a verdadeira dimensão geográfica de um país rústico e pobre.

Seguindo a rota camoniana, a primeira parada da armada lusitana ocorre na Ilha de

Moçambique, onde há um violento confronto. Alertados pelo deus Baco sobre as reais

intenções dos visitantes que chegariam pelo mar, os moradores da ilha enfrentam e expulsam

os invasores europeus. O poeta épico revela o “outro lado da moeda”, através da persona de

Baco. De acordo com a mitologia, Baco é o deus dos camponeses, do entusiasmo, da

metamorfose e inspirador de todos os que “bebem a água do parnaso”, dentre outras

atribuições. Baco de Camões é aquele que fala a verdade e anima os africanos a resistirem na

luta contra a dominação.

Em suas andanças, Sena retorna, no ano de 1972, à África, onde realiza várias

entrevistas e palestras, além de escrever crônicas e poemas dedicados a Angola e

Moçambique. Sena cativa grandes amigos e reencontra outros como Rui Knopfli que bem

poderia ser um dos convivas que chegam à mesa de Sena. O poeta moçambicano, assim como

Sena, trabalha em prol da “verdade, esta iguaria rara”. No poema “Proposição”, na abertura

do livro O Escriba Acocorado, Knopfli se declara “servidor incorruptível da verdade e da

memória.”

A obra de Rui Knopfli gera bastante polêmica acerca de sua moçambicanidade. Para

uns, a temática de seus versos possui pouca cor local; para outros, o poeta recusa a “poesia de

combate” como a única manifestação de amor à pátria; a ideia de moçambicanidade

contaminada por políticas ideológicas não cabe na universalidade da poesia de Rui Knopfli.

Cria-se uma lacuna na identidade do poeta que responde com uma poesia múltipla,

diversificada, conflituosa, moderna.

Rui Knopfli, assumindo para si uma identidade africana, não apenas moçambicana,

afastou-se das componentes ideológicas e políticas da construção de identidades e imagens,

assumindo uma amplitude identitária. Cantando a sua experiência particular e individual,

abriu a literatura além das limitações ideológicas e coletivistas e foi, com estas características,

um precursor da modernidade na literatura moçambicana. Porém, na época da luta armada,

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não foi visto assim. Era visto como reprodutor de modelos culturais ocidentais em solo

africano, como poeta pequeno burguês, contrário aos interesses da nascente nação. Como foi

visto, isso não é sustentável diante da forte ligação com o espaço, a terra moçambicana,

evidente na obra de Knopfli, e diante do fato de que ele sempre se via como africano.

Jorge de Sena e Rui Knopfli compreendem na arte poética não só a manutenção do

status cultural de seus respectivos países, mas, sobretudo, um meio de resistência às

diversificadas formas de opressão exercidas pelo Império português, como, por exemplo, o

exílio e a censura. A língua portuguesa, semeada pelo mundo é a luz que desvenda “um

caminho sem nada para o regresso da vida” (SENA, 2013: 88).

O trabalho árduo de “minar os poderes constituídos” com “versos silenciosos”,

entretecidos “lenta e dolorosamente na oficina obscura do poeta” (KNOPFLI, 1982: 203), fez

da poesia de Jorge de Sena e da poesia de Rui Knopfli marcos da resistência ao regime

fascista. Sena e Knopfli lutaram contra o antigo hábito lusitano de viver no delírio

expansionista, em franca censura imposta pela ditadura portuguesa. A única arma do poeta,

contudo, poderosa: a palavra. Palavra aprendida e apreendida em outros versos, transportada

no tempo e no espaço pela eternidade.

Rui Knopfli deseja resgatar os valores de Caliban, a fim de colaborar com o seu

canto para a instauração de uma nova era em Moçambique, na África. Jorge de Sena, por

detrás de um aparente sentimento de lusofobia, faz de sua poesia “um cântico da terra e do seu

povo”. Sena e Knopfli anseiam por ver suas respectivas pátrias livres, todavia, uma coisa

depende da outra na História da Humanidade. Portugal transformou-se um pouco em África e

vice-versa. No trabalho de combate ao colonialismo, os poetas prestidigitam seus versos,

investem na magia das palavras, burlam a censura portuguesa, se irmanam na Coragem da

Verdade.

Enquanto na parresia ética socrática, há mera concordância entre o discurso e a

prática, o cinismo possui códigos bem definidos do estilo de vida que expressa a verdade. O

cínico é uma testemunha da verdade, um emissário da humanidade que busca a verdade e a

traz de volta para a humanidade. O cínico transforma a verdade em escândalo, para que a

humanidade possa perceber que está num caminho errado. A existência verdadeira para o

cinismo sempre implica uma outra existência. O cínico tem, assim, a função de guardião e

vigilante da humanidade.

Consequentemente, o princípio mais importante do cinismo é “mudar o valor da

moeda”. Significa que à moeda da vida, dos costumes e hábitos se lhe cunha uma imagem

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nova, mais adequada e similar ao valor original da moeda que significa a vida verdadeira.. Ao

contrário do que ocorre na epopeia camoniana, na qual o rei de Melinde facilita a realização

do sonho expansionista dos lusitanos, Sena e Knopfli desejam a liberdade dos africanos. Sena

e Knopfli revelam-se herdeiros de Baco, seguidores de Luís de Camões que fala a verdade

através de Baco. Jorge de Sena e Rui Knopfli usam de cinismo para falar a verdade sobre o

imperialismo português, cunhando, assim, uma contra-imagem à moeda lusa, destituindo-lhe

o seu valor original.

Esta coragem de dizer a verdade, de construir outro valor para a moeda, foi se

delineando nos versos de diversos poetas que resistiram à opressão salazarista, como Jorge de

Sena, Rui Knopfli e outros que poderiam engrandecer este trabalho. A missão de

desmonumentalizar um Império é grandiosa, arriscada e deve ser coletiva, pois, mergulhada

uma nação por séculos numa espécie de apatia, na noite profunda, a aurora não despontará de

um dia para o outro e nem apenas um único galo conseguirá “tecer outra manhã” clara e

evidente (NETO, 1986: 21).

Tanto Sena, quanto Knopfli qualificam-se poetas cínicos, na concepção filosófica do

termo, principalmente, pela forma destemida de combater a ditadura salazarista, apesar da

forte censura. Outras características comuns, como o exílio, a incompreensão por parte da

crítica, a independência ideológica e partidária, a denúncia das barbáries, o testemunho da dor

e da miséria das vítimas do colonialismo, o verso rasgado, diacrítico ou mesmo “latido” a

favor da liberdade dos homens comprovam o cinismo desses dois grandes poetas da língua

portuguesa.

Na boca, palavras interditas; no coração, palavras entreditas, ditas por poetas, em

silêncio transportadas para toda a gente. Palavra testemunha, clandestina, sussurrando uma

ideia martelada. Palavra foice afiada que corrói a pedra feito água. Eis a grandeza da

língua/pátria portuguesa! O artista lapida a palavra, matéria-prima da arte de versejar.

“Engenho e arte” de poeta em prol da verdade. Sena e Knopfli cantam “o desconcerto do

mundo”, acelerado pela barbárie em seu estágio máximo: a guerra colonial, a total

desumanização de um povo. Resiste o artista na manutenção de seu ofício, o canto é o

enfrentamento da Morte. Os trabalhos em versos atravessam os dias, emitindo “Sinais de

Fogo”, de luta e de liberdade, pois “só os poetas têm lembranças do futuro” (KNOPFLI,

1982: 292) porque estão sempre “ de olhos abertos para a espiral dos tempos” (SENA, 2013:

89).

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