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78 VIAJE MAIS 79 VIAJE MAIS VIAJE MAIS VIAJE MAIS “V ocê está indo para um dos lugares mais lindos desse Brasil”, disse o recepcionista do hotel em São Luís (MA) enquanto preparava meu check-out. Depois arregalou os olhos e completou: “É um lugar cheio de lendas e histórias”. Enfim sorriu e apenas desejou boa viagem. O recepcionista era apenas mais um que não passava indiferente ao nome do lugar para onde eu estava prestes a viajar naquele dia: a Ilha dos Lençóis. Várias outras pessoas na cidade já tinham ouvido falar das belezas da tal ilha e relatavam com entusiasmo sobre dunas, manguezais e uma incrível praia deserta de muitos quilômetros escondida no trecho mais selvagem do litoral brasileiro, conhecido como Reentrâncias Maranhenses. POR TALES AZZI, TEXTO E FOTOS As dunas encantadas da Brasil Descobrimos uma ilha de pescadores com dunas e praias desertas escondida no isolado litoral das Reentrâncias Maranhenses, às portas da Floresta Amazônica A paisagem de dunas da ilha faz lembrar a do Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses, daí o nome semelhante, mas são lugares bem diferentes Ilha dos Lençóis Ilha dos Lençóis

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78 VIAJEMAIS 79VIAJEMAISVIAJEMAIS VIAJEMAIS

“Você está indo para um dos lugares mais lindos desse Brasil”,

disse o recepcionista do hotel em São Luís (MA) enquanto

preparava meu check-out. Depois arregalou os olhos e

completou: “É um lugar cheio de lendas e histórias”. Enfim sorriu e

apenas desejou boa viagem. O recepcionista era apenas mais um que não

passava indiferente ao nome do lugar para onde eu estava prestes a viajar

naquele dia: a Ilha dos Lençóis. Várias outras pessoas na cidade já tinham

ouvido falar das belezas da tal ilha e relatavam com entusiasmo sobre

dunas, manguezais e uma incrível praia deserta de muitos quilômetros

escondida no trecho mais selvagem do litoral brasileiro, conhecido como

Reentrâncias Maranhenses.

POR TALES AZZI , TEXTO E FOTOSAs dunas encantadas da

Brasil

Descobrimos uma ilha de pescadores com dunas e praiasdesertas escondida no isolado litoral das ReentrânciasMaranhenses, às portasda Floresta Amazônica

A paisagem de dunas da ilha faz lembrara do Parque Nacional dos Lençóis

Maranhenses, daí o nome semelhante,mas são lugares bem diferentes

Ilha dosLençóisIlha dosLençóis

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Brasil Ilha dos Lençóis

Ainda eram 5h da manhã, o solapenas ameaçava sair, quando jogueias bagagens no carro e iniciei viagem.

Apesar da proximidade de 160 km(em linha reta) desde São Luís, seriamcerca de 12 horas ao todo, incluindoa travessia de ferry boat para Cojupe,

estrada até Apicum-Açu, cidade deonde partem os barcos para mais

quatro horas de navegação para ailha. Sim, é longe, até para os pró -prios maranhenses. Requer uma

boa dose de espírito de aventurapara encarar a jornada.

A ilha ainda não entrou para omapa do turismo e preserva com -

pletamente a rotina pacata de vilade pescadores. É um lugar rústico e

sem frescuras, indicado para quemgosta de descobrir (ou aventurar-seem) lugares que pouca gente co nhece

e vê charme até em certos des con -fortos, como, por exemplo, o trans -porte realizado em barcos de pescaimprovisados para levar pas sageiros.

É bom não confundir a Ilha dosLençóis com os Lençóis Mara -nhenses, o famoso parque nacional

que é a principal atração turísticado Estado. A ilha fica em direçãoao litoral oeste de São Luís, já quasena divisa com o Pará, praticamente

A ilha fica a 160 km (em linhareta) de São Luís, mas a viagem

até lá toma cerca de 12 horase a última parte do trajeto é

feita em barcos de pescadores

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Brasil Ilha dos Lençóis

às bordas da Floresta Amazônica. Éverdade que as paisagens de ambos os

lugares guardam semelhanças, comdunas de areias brancas feito talco eo curioso fenômeno de chuvas (entrefevereiro e maio) que formam lagoas

de águas cristalinas nas depressõesdo areal. Se você observar no mapa,verá que o litoral oeste do Maranhão,a partir de 50 km de São Luís, ganharecortes inusitados, com uma infi -

nidade de arquipélagos tomados pormanguezais. É nesse labirinto verde

de braços de mar que está a Ilha dosLençóis. A navegação até lá desdeApicum-Açu, apesar de demorada,poupa os estômagos mais sensíveis.

“Pelo mar aberto é até mais rápido,porém, as ondas batem demais nessaépo ca do ano (segundo semestre).Deus me livre”, explicava o temerosoMário, o barqueiro.

A monotonia das horas embar -cado era quebrada vez ou outra pelas

revoadas de guarás. No final de tarde,aos últimos raios de sol do dia, sur -gem no horizonte as dunas brancasda Ilha dos Lençóis.

O barco então lança âncora emfrente a um povoado minúsculo,onde vivem apenas 370 moradores,delimitado por mangues e dunasbaixas de um lado (que dão para uma

combina painéis solares, cata-ventos,além do próprio gerador. Nem praça

o povoado tem, só um maltratadocampinho de futebol onde às vezesrola um campeonato entre os timesda ilhas vizinhas.

Todos os moradores são mais oumenos parentes e vivem em casas demadeira ou de palha, já que o terrenoarenoso não é indicado para cons -truções de alvenaria. Só o colégio

praia que se prolonga por toda avolta da ilha) e por um conjunto de

dunas altas do outro, algumas comaté 50 metros de altura.

Não há carros, porque não háruas no vilarejo, só caminhos de areia

fofa. O único motor é o do geradora diesel que fornece energia para ameia centena de casas. A energiaelétrica 24 horas chegou faz apenastrês anos num sistema híbrido que

municipal foi erguido com tijolos ecimento, mas já está com as paredes

rachadas por causa do terreno quecedeu. Além disso, de tempos emtempos, os moradores precisammudar de endereço por causa do

avanço da "morraria", como eleschamam por lá as dunas trazidas pelovento constante. Mudar de endereço,no caso, significa des montar a casae fincar os esteios num local mais

A Ilha dos Lençóis tem doisterços de sua área coberta

por dunas e a pesca é aprincipal atividade por lá

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protegido, afastado do perigo daareia, um trabalho para duassemanas, com a ajuda de algumamigo carpinteiro.

Era justamente a situação vividapelo casal Joel e Benedita naquelaocasião, ao final de setembro. “Nãovai demorar muito. Três ou quatro

meses para essa morraria bater aqui.E cobre tudo”, disse o pescador. Sóde olhar na direção das dunas, Joelprevia que 11 famílias teriam que se mudar também. E apontava com

o beiço as casinhas que já consi -derava con denadas.

Em 1995, foi o avanço da maréque o obrigou a se mudar. Quinze anos

depois de fugir do mar, agora erapreciso driblar a areia. Mas o pescadornão falava em tom de re clamação.Tinha consciência de que não haviacomo lutar contra a na tureza.

Impossível tirar na mão uma dunainteira da porta de casa se o vento podetrazer outra em poucos dias.

Acima, Joel e Benedita às vésperas do trabalho de mudar a casa para outro local por causa do avanço das dunas,que ameaçam o povoado; abaixo, o mercadinho de “seu” Mário, ponto de apoio para tomar uma gelada na praia

A ilha do povo branco

Além das belas paisagens e das

lendas do sebastianismo, há outromotivo que fez a Ilha dos Lençóis ganharfama no Maranhão: a alta incidência dealbinismo entre os moradores. Devidoaos casamentos entre parentes, os genes

de algum membro albino da comuni -dade (que chegou na ilha sabe-se láquando) foi sendo transmitido entre asdiversas famílias. A tal ponto que, uma

década atrás, 10% da população localtinha a característica de pele e cabelostão alvos quanto as areias das dunas.

A porcentagem, porém, já diminuiubastante. Preocupados com o perigo

cancerígeno do sol forte na pele semmelanina, muitos albinos adultos foramembora para o continente. A maioriada “gente branca” da ilha são crianças.

Elas recebem atenção especial dadoutora Germana, que não cansa de

orientar os pais: colocar calça nos filhos,

camisa de manga comprida, chapéu eprotetor solar, assim como evitar sairde casa entre 10h e 16h.

Maria de Fátima, mãe de dois me- ninos albinos – Robert, de 15 anos, e

Ronald, de 12 anos –, sabe que o solé um inimigo mortal. O pai dela sofreucom seis tumores de pele durante asquatro déc adas que viveu na ilha. Então,

ela insiste, proíbe os meninos de saire corre para passar protetor nos garotos.

“Mas eles têm fogo, querem acom- panhar os amigos”, esbraveja. Bastaum descuido e os dois pulam a janela

para se juntar à brincadeira. Quinze ouvinte minutos de exposição sem pro- tetor solar bastam para provocarqueimaduras na pele, bem mais ardidas

do que as palmadas que os irmãos de- pois recebem de dona Maria.

Na escola municipal,única construção dealvenaria da ilha,criança albina recebeatenção da professora

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Brasil Ilha dos Lençóis

As três pousadas da vila não fo -gem à regra e também seguem o es tilo arquitetônico local, em madeirarústica. Não contam com como di -dades básicas como frigobar, ar-con -

dicionado e TV no quarto. O ven -tilador é o luxo máximo. Apenas aPousada do Serafim oferece banheiroprivativo em todas as habitações. Tele -

fone, só público: um ore lhão ao ladodo posto médico. E para ligar docelular é preciso subir até o topo daduna, único ponto onde pega sinal.

O visitante, dessa forma, com -

partilha da simplicidade que faz parteda vida dos moradores. Quem não écomerciante, ganha o sustento no mar,pescando para buscar o almoço e o

jantar do dia. O posto de saúde temremédios e funciona regular mente,com a visita da doutora Germana umasemana por mês. A escola ofereceensino até a oitava série.

A maior carência é a falta de águaencanada em boa parte das casas.Muitos se servem de água carregadadesde um poço cavado ao pé da duna

– o que não deixa de ser umasurpresa, já que não há casa semtelevisão ou aparelho de som, uten -sílios que parecem mais prioritáriosdo que uma torneira com água tra -

tada. As pousadas, nesse ponto, sãoprivilegiadas, pois têm bombas

A ilha é bemrústica, semfrescuras,indicada paraquem gostade ir a lugaresonde poucagente já foi

Dona Maria de Fátima, comos filhos Ronald (à esq.) eRobert (à dir.): herançaalbina é antiga na ilha

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Apróprias para encher as caixas d’água. Se lugares ficam conhecidos pelas

coisas que têm, a Ilha dos Lençóisfaz fama justamente pelo que nãotem. Não tem igreja evangélica (eisso é raro hoje em dia) nem polícia.

nada... e o assunto tomou conta dasconversas em todas as rodinhas.

O animal teve de ser sacrificado.Com isso, os moradores carregaramsacola de carne para casa o dia todo.

Vaca, touro e lendasCerta noite na ilha, pensando

sobre a morte da vaca, comecei a

ponderar se o episódio não teria sidoobra de alguma espécie rara de “chu -pa-cabra” maranhense, o fa moso serextraterrestre que, diz a lenda, feremis teriosamente animais domésticos

para sugar-lhes o sangue.Àquela altura, já estava influen -

ciado pelas histórias fantásticas con -tadas por “seu” Valdeci, como aquela

sobre uma luz azul que muitos pes -cadores juram ter visto na praia. Seriauma luz pequena, do tamanho de umatocha, que passeia a poucos me trosde altura e só pode ser vista à noite.

Os mais velhos contam ainda quea praia seria frequentada nas noites

Mas ninguém se sente inseguro, poisnão acontece crime faz anos. ApenasSebastião Silva bradava pelo auxílioda lei, agitado numa manhã. Tinhamfurado a barriga da vaca dele. Nin -

guém sabia de nada, ninguém viu

Muitos moradores da vila usam para consumo a água retirada aos baldes do poço cavado ao pé da duna

As casas são de madeira e palha, pois o chão de areia não permite alvenaria

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Ade lua cheia por um touro mágico. Então,ganha vida a lenda de dom e Sebastião rei português que passou a governar aos

14 anos, em 1568, e foi dado como desa -parecido durante uma cruzada noMarrocos, em 1578. Ele vi veria, encan -

tado, nos arredores da ilha maranhense.

A lenda dá conta até de castelos, tesourose cidades inteiras enterradas sob as dunas.

A história seguiu inabalável porgerações ao longo dos séculos, contadade pai para filho. Mas depois que a

energia elétrica chegou, seguida dasantenas parabólicas, o hábito de baterpapo à porta de casa se perdeu e a tra -dição oral de repassar as histórias do

folclore aos mais jovens quase acabou. Dona Didi, 94 anos, a mais antiga do

povoado, lembra bem quando o pai con -tava, à luz dos candeeiros, com o devidosuspense, sobre as estripulias do rei

d. Sebastião. Ele dizia a ela, então menina,que o tal touro mágico, soltando fogopelas narinas e com uma estrela na testa,

Os atraentes guarás, presentes aos montes nos manguezais maranhenses, fazem dormitório bem per to da praia da ilha

aparecia na praia à meia-noite do dia 24de junho. Seria o guardião das belezasda ilha, com poderes para manipular o

vento e modelar as areias ao bel prazer.Por pura diversão, ainda tocaria tam -

bor no meio das dunas para saudar a lua,

“ritmado feito gente tocando”, diz dona

Didi. “Mas ninguém nunca teve coragemde subir a duna para ver que barulho eraaquele”, afirma. Ainda hoje, há quem evitea praia na madrugada de 24 de junho.

Ver o touro encantado do rei d. Se -

bastião é quase tão difícil quanto toparcom alguma alma viva nos quilômetrosde praias desertas que circundam a ilha.Com exceção de um ou outro pescador

catando mariscos, o máximo que se podever é uma ou outra cabecinha ao longe,o que já seria sinal de praia lotada.

A rotina do visitante consiste, ba si -camente, em não fazer nada ou, no má -

ximo, muito pouca coisa, além de curtiraquela paz toda. Os dias passam lenta -mente, pois o tempo ali não é medido por

A Ilha dosLençóis vivesobre osencantos dalenda do rei d. Sebastião,o guardiãoda praia edas dunas

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Brasil Ilha de Lençóis relógios, mas pelas marés e pelo sol.O negócio é caminhar na praia, que

é realmente espetacular, e depoisembarcar na canoa do Lailson paraver os guarás chegando em revoadasnos finais de tarde. Ou então atra -

vessar para a Ilha do Bate-Vento e subiraté o alto do farol.

Com o espírito e o coração aber -tos, a Ilha dos Lençóis pode ser umagrande viagem. A vila tem carências,

com certeza, mas há que se ater nãoao que falta, mas ao que sobra nolugar, como a beleza da paisagem ea hospitalidade dos ilhéus. Fui

embora, por exemplo, deixando bonsamigos por lá. E eles me lembraram,na hora da partida, da lenda do reid. Sebastião. Disseram que se alguémsair da ilha levando alguma coisa,

que seja uma simples conchinha, obarco pode afundar. Por via das dú -vidas, preferi não arriscar.

Pescador consertando rede: cena típica da rotina dos moradores do povoadoO repórter Tales Azzi viajou com apoio da Agência

Maramazon, de São Luís (MA)

Programe sua viagem

Quando ir Faz muito calor o ano inteiro

no litoral do Maranhão. Choveapenas entre fevereiro e maio,quando formam-se lagoas de água

doce entre as dunas da ilha. Masa partir de julho, as lagoas come- çam a secar.

Como chegar Passagens aéreas para São

Luís com a GOL – voegol.com.br– e a TAM – tam.com.br – têmpreços a partir de R$ 460, ida e

volta, saindo de São Paulo, comvoo de conexão em Brasília. Nãoinclusas as taxas de embarque.De carro, desde a capital ma-

ranhense, é preciso atravessar deferry boat do Porto de Itaqui paraCojupe e seguir as placas em

direção às cidades de Pinheiro,Mirinzal e Cururupu. O carro ficaestacionado em Apicum-Açu,onde saem os barcos para a Ilha

dos Lençóis. Ao todo são cercade 12 horas de viagem. No en- tanto, depend endo do horário,pode ser neces sário um pernoite

na cidade de Cururupu para es- perar as condições adequadas demaré para a saída dos barcos.

Onde ficar

Pousada Maiaú – )(98)3235-3994 – Pousada familiar,

adaptada na casa de um nativo.Banheiro compartilhado. Émodesta, mas serve boa comidacaseira.

PacotesA Maramazon– marama-

zon.com; ) (98) 3235-3994 –oferece pacotes com três ou quatronoites na Ilha dos Lençóis a partirde R$ 670 e R$ 750, respec ti-

vamente, por pessoa (com saídaem grupo mínimo de quatro pes-

soas). Inclui o transporte desde SãoLuís, hospedagem com pens ãocompleta na Pousada Maiaú e algunspasseios com guia local (caminhada

e de barco para ver os guarás). Oroteiro pode incluir um pernoite emCururupu. E também pode serincrementado com hosp edagem e

city tourem São Luís e Alcântara.

Oceano Atlântico

SÃO LUÍS

BR316

BR135

Ilha dos Lençóis

BacuriTuriaçu

Apicum-Açu

CândidoMendes

MA-209 MA-303

MA-305

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