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1. Discussão.

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1. Discussão.

Este trabalho nasceu na confluência de três fontes de informação e formação

pessoal: a psicoterapia de inspiração comportamental e cognitiva e a docência de duas

disciplinas, Psicologia Educacional e Dificuldades de Aprendizagem. No cruzamento

de informações e de questões provenientes destes três domínios e das respectivas áreas

de aplicação (clínica, formação de professores e intervenção psico-educacional)

surgiram contradições e perplexidades, dúvidas e necessidades. A motivação para este

estudo e a formulação das primeiras hipóteses surgiram nesse contexto. Depois, todo o

projecto foi sendo desenvolvido em interligação com o exercício profissional e a

investigação nestes diferentes domínios. Talvez por uma necessidade pessoal de

integração e coerência, procuraram-se pontos de contacto e zonas de intersecção.

Em psicoterapia comportamental e cognitiva, os problemas pessoais, emocionais

ou comportamentais são concebidos no quadro da Psicologia do Desenvolvimento, da

Psicologia Cognitiva e da Psicologia da Aprendizagem. A Psicopatologia é um quadro

de referência, mas o mal estar sentido por quem procura a terapia é analisado de uma

forma funcional, em contexto, em função de objectivos pessoais e de critérios de

adaptação. O certo e o errado, o saudável e o doente, o normal e o anormal, são formas

populares de descrever os problemas e as dificuldades, mas não correspondem de facto

às concepções propostas por estes modelos.

Quando no campo das Dificuldades de Aprendizagem o essencial parece ser

distinguir entre dois tipos de alunos (os que “têm” e os que “não têm” dificuldades) isso

coloca qualquer terapeuta de orientação cognitivo-comportamental em dissonância, em

conflito, em dificuldade. E como nesta perspectiva as dificuldades podem ser motivo ou

oportunidade de crescimento (desenvolvimento) ou de mudança (inovação, descoberta,

reformulação) o desafio estava aberto. Tratava-se de tentar responder essencialmente a

uma questão nuclear: como podem as dificuldades de aprendizagem ser concebidas

simultaneamente como limitações (distúrbios) e, por outro lado, como oportunidades de

mudar e de crescer?

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Numa breve síntese, é possível constatar que os resultados obtidos nos quatro

estudos reunidos neste trabalho, se encontram, de modo geral, dentro das expectativas e

hipóteses formuladas.

Tal como se esperava, o Estudo 1, que integra a tradução e adaptação para

língua portuguesa do Questionário Epistemológico (versão para estudantes

universitários), apresenta uma estrutura factorial similar a outras anteriormente

observadas para a população americana. Oferece neste momento a possibilidade de

utilização de três escalas: (1.) para um estudo de crenças pessoais sobre a natureza do

conhecimento; (2.) de crenças sobre processos de conhecimento e de aprendizagem; e

(3.) de crenças sobre o acesso ao conhecimento. O estudo efectuado permitiu confirmar

as propriedades psicométricas desta adaptação. Este questionário também poderá vir a

ser utilizado como instrumento de auto-observação (e debate) em programas de

intervenção junto de estudantes universitários e na formação de professores.

No Estudo 2, identificaram-se quatro perspectivas pessoais ou de senso comum

sobre Dificuldades de Aprendizagem (Disfuncional, Processual, Interdependente e

Funcional), que integram nove concepções mais específicas. Verifica-se que, de modo

geral, é possível fazer corresponder todas estas perspectivas e concepções pessoais,

intuitivas e de senso comum, a quase todos os modelos e concepções científicas sobre

Dificuldades de Aprendizagem desenvolvidos na comunidade científica, nas últimas

décadas. Este paralelismo entre concepções pessoais e científicas é especialmente

interessante pela enorme diversidade de respostas, incluindo perspectivas mais

“conservadoras”, concepções estáticas e deterministas, mas reflectindo também

algumas das perspectivas científicas mais actuais e inovadoras. De uma forma natural

e quase espontânea, alguns dos estudantes inquiridos revelam concepções pessoais

muito mais complexas, relativas e construtivistas do que seria provável encontrar em

muitos membros da comunidade científica, que persistem na defesa de posições

anteriores.

No Estudo 3, procedeu-se ao desenvolvimento de uma segunda versão do

Questionário Epistemológico para estudantes do ensino secundário (QEES). Esta nova

versão apresenta uma estrutura factorial paralela à observada na versão para estudantes

universitários, com bons resultados ao nível das propriedades psicométricas analisadas.

Além disso, entre outros aspectos, foi possível observar uma crescente maturidade,

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conceptual e epistemológica, ao longo da escolaridade, entre o início do secundário

(10º ano) e o final das licenciaturas no ensino universitário (4º e 5º anos). Isto parece

confirmar o papel da escola (ao nível do ensino superior) na formação científica e

epistemológica dos estudantes e a necessidade de rever e reforçar a formação de

professores neste domínio (para os níveis básico e secundário).

Por fim, no Estudo 4, verificou-se que as crenças pessoais sobre dificuldades de

aprendizagem podem ser abordadas através de um novo instrumento (QCDA), um

complemento específico aos dados obtidos com o Questionário Epistemológico.

Embora se confirme a necessidade de uma revisão e de estudos posteriores,

observaram-se desde já algumas relações significativas entre esta nova escala e as

escalas de segunda ordem do QEES, nomeadamente, sugerindo que as dificuldades

tendem a ser concebidas de forma mais positiva e adaptativa (Escala de Dificuldades

Processuais) em alunos que revelam uma maior maturidade na escala de Processos de

Conhecimento e de Aprendizagem no Questionário Epistemológico. Uma vez mais se

verifica que as crenças de senso comum apresentam uma estrutura multidimensional

complexa e que pode ser descrita de forma ortogonal. Constatou-se que as crenças

sobre Dificuldades de Aprendizagem podem ser descritas simultaneamente em várias

dimensões (e não apenas numa, como inicialmente se esperava), por vezes com grande

ambivalência e aparente contradição. São resultados a rever em estudos posteriores.

Com base na revisão bibliográfica efectuada e nos resultados obtidos nos quatro

estudos desenvolvidos, parece útil sintetizar e acrescentar a esta discussão final, alguns

aspectos conceptuais. Podem referir-se, nomeadamente, elementos relativos ao

contexto, à funcionalidade e o desenvolvimento de dificuldades de aprendizagem.

Tanto numa perspectiva de senso comum como numa perspectiva científica,

vimos que é possível conceber a existência de dificuldades de aprendizagem

funcionais enquadradas por crenças e concepções adaptativas. Por outro lado,

considera-se que criar condições para o aparecimento de determinadas dificuldades

é condição necessária para uma maior qualidade no ensino e na aprendizagem.

Em termos pessoais, o que assim se sintetiza não constitui realmente uma

conclusão ou um ponto de chegada nesta dissertação. Pelo contrário, o paralelismo entre

estas duas asserções constitui-se como um dos vectores essenciais para todo este

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trabalho. Algo que foi surgindo gradualmente, na formação de professores, no ensino de

autores como Piaget ou Bruner, no desenvolvimento de programas de estimulação

metacognitiva e da capacidade de auto-regulação (Gonçalves, 1992), na docência e no

exercício da psicoterapia. Agora, no momento de rever todo este percurso, talvez seja

possível ir um pouco mais longe, num breve jogo de palavras que se pretende também

de reflexão conceptual. Em educação como em psicoterapia, a mudança pode ocorrer

quando, no uso das palavras (narrativas, metáforas, diálogo socrático, etc.) se

(re)descobrem significados e se (re)pensam crenças e concepções.

Há cerca de oito anos, num dos livros que mais contribuiu para o

desenvolvimento deste projecto de investigação (Finlan, 1994), surgiu uma frase que

tem servido de mote para reflexão e conversa em muitas aulas das disciplinas de

“Dificuldades de Aprendizagem” e de “Psicologia Educacional”:

“Existem no mundo, dois tipos de pessoas:

as que dividem as pessoas em dois grupos e as que não o fazem.”

Esta frase, citada no texto original em língua inglesa, surge como proveniente de

autor anónimo (ob. cit. , p. 59). O que, no contexto de um trabalho sobre concepções de

senso comum, tem um valor acrescido. No entanto, o que se assim se diz não parece

nem comum nem consensual. Mas pode fazer pensar, pensar sobre o papel dos rótulos e

das classificações simplificadoras. No domínio das dificuldades de aprendizagem, como

em tantos outros, surgem por vezes tentações maniqueístas e reducionistas. Pais e

professores colocam muitas vezes a questão em termos simples: pretendem saber se o

aluno realmente “tem ou não tem” dificuldades de aprendizagem. “Não ter” traduz-se

em descanso, “ter” é motivo de uma preocupação e perturbação por vezes extrema. No

contexto deste jogo de palavras, poderia talvez propor-se uma versão mais

“Shakespeariana” mas muito menos dramática: a questão essencial de cada dificuldade

poder “ser ou não ser” modificável, funcional ou mesmo necessária (e, entre outros

aspectos, aceitar correr o risco de aprender).

Centenas de estudos e de investigadores têm tentado, em vão, um diagnóstico

tão precoce e tão redutor quanto possível, na tentativa de integrar todos os casos num

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número limitado (e limitador) de categorias. E no entanto, na frase de Bernard Shaw “a

ciência nunca resolve um problema sem criar dez novos problemas”. Pelo menos no

domínio das dificuldades de aprendizagem, parece que tem sido assim. Muitas das

tentativas de classificação adiantadas até ao momento (veja-se por exemplo, a forma

utilizada no DSM) não ajudam nem na descrição nem na compreensão do problema, não

facilitam a reeducação nem uma intervenção adequada1. A separação de alunos

“difíceis” ou em dificuldade, tem muitas vezes uma reduzida eficácia sobretudo se não

for secundada por outras medidas de facilitação processual e de ajuda específica,

podendo conduzir à desistência, à exclusão e a situações de profecia auto-realizada. Para

Finlan, como para muitos outros autores (e.g. Marinoff, 1999; Stanovich, 1993), são

precisamente os fundamentos subjacentes às tentativas de classificação de dificuldades e

distúrbios de aprendizagem que devem ser questionados, por problemas de

fundamentação empírica, mas sobretudo por insuficiências conceptuais e critérios de

avaliação inadequados2.

Um diagnóstico diferencial pode ser importante mas não é o aspecto

fundamental. Pode rotular e estigmatizar o aluno e não informa realmente sobre o que

fazer ao nível da intervenção. Num contexto educacional, as dificuldades só podem ser

efectivamente apoiadas se forem descritas e analisadas em contexto, situacional, social e

pessoal. Conhecer crenças e concepções pessoais sobre este problema, saber como

modificar crenças desadaptadas e incentivar pressupostos mais adaptativos, pode ajudar

de forma significativa a uma intervenção de natureza preventiva ou remediativa.

Neste trabalho sugere-se a possibilidade de conceber e definir o conceito de

Dificuldade de Aprendizagem de uma forma diferente. Por analogia com o que se passa

noutros domínios de aplicação da Psicologia (Psicoterapia, por exemplo), não são as

pessoas que devem ser divididas em dois grupos distintos, nem a questão pode ser

colocada em termos de um “ter ou não ter” uma qualquer dificuldade ou patologia. As

dificuldades, na vida como na escola, ocorrem em contexto, pessoal, situacional e

temporal. Sobrepõem-se no tempo ao próprio processo de aprendizagem. Devem ser

1 “There are only two things wrong with special education... it isn’t special and it isn’t education.

(Metzner, citado por Finlan, 1994). 2 “...dar o nome de síndroma a um qualquer estado não significa que saibamos aquilo que

estamos a dizer, mesmo nos casos em que há algo de errado em termos clínicos.” (Marinoff, 1999)

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concebidas de forma interactiva e dinâmica, enquanto processos, entidades em

desenvolvimento, de carácter mais ou menos funcional e adaptativo.

As dificuldades não caracterizam alunos, antes são um elemento que pode servir

à caracterização de situações, contextos e projectos de aprendizagem. E só em função

desse contexto serão mais ou menos valorizadas, como mais ou menos graves; só em

função desse contexto se desenvolverão de forma mais ou menos positiva, de forma

mais ou menos funcional.

Sugere-se, deste modo, que as dificuldades podem ser concebidas como

entidades em desenvolvimento (e não como estados ou traços persistentes). As

dificuldades modificam, modificam-se e são modificáveis ao longo do tempo.

E não são as pessoas (como na frase citada), nem os alunos, que devem ser alvo

de classificação nem de discriminação em categorias distintas. Mas como, no fundo, as

dicotomias e as taxonomias nos ajudam no saber e no fazer, então que se escolham

conceitos, metáforas e modos de classificação que em si mesmos ajudem à mobilidade,

à modificabilidade cognitiva e ao desenvolvimento.

Neste sentido, podemos considerar que existem afinal, não tanto dois tipos de

pessoas, mas apenas dois tipos de dificuldades: dificuldades funcionais e

disfuncionais, dificuldades mais e menos facilitadoras da aprendizagem, mais e menos

adaptativas.

Podem dizer-se disfuncionais, todas as dificuldades que podem favorecer

situações de desadaptação pessoal, todas as que contribuam para reduzir,

limitar ou prejudicar o processo de aprendizagem.

Podem designar-se como funcionais, todas as dificuldades que se constituem

como desafio, oportunidade, incentivo ao esforço e à aprendizagem.

Perante o mesmo tipo de dificuldades e em situações que poderiam parecer

similares, constata-se que alguns alunos se mantêm confiantes e com forças renovadas

para vencer os obstáculos e outros, paralisam, sentem-se impotentes e sem capacidades

para continuar. Os primeiros parecem encontrar motivação e inspiração nas dificuldades

(dificuldades funcionais) enquanto para os outros tudo parece inútil, demasiado difícil e

impossível de ultrapassar (dificuldades disfuncionais). O que separa estes dois grupos

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de alunos? O que determina o êxito ou o insucesso, a força ou a impotência? Porque é

que perante dificuldades, alguns alunos se superam a si próprios, vão em frente,

enquanto outros se sentem completamente “ultrapassados” e se deixam ficar para trás?

Esta questão tem sido respondida de diferentes modos e recebido contributos de

diferentes domínios, entre os quais se podem referir: vinculação precoce

(“attachment”), desenvolvimento cognitivo, auto-estima, expectativas de sucesso,

história de aprendizagem, motivação, atribuição causal (Heckhausen, 1987; Licht, 1983;

Shell, Colvin & Bruning, 1995).

No dia-a-dia, numa perspectiva de senso comum, na voz de quem de psicologia

“nada sabe” talvez se pudesse ouvir algo de muito mais simples: “o mais importante é

acreditar, se um aluno não acredita, nunca vai ser capaz”. Acreditar. Acreditar ou não

acreditar. Numa perspectiva de senso comum, a palavra acreditar parece vagamente

associada à ideia de “esperança” ou de “confiança”. Sinónimo de confiar, ter confiança.

Mas, também numa acepção comum, a noção de crença pode ser referida de uma outra

forma. Por vezes soa a crendice, a superstição, a ignorância ou incultura. Na melhor das

hipóteses, as crenças são vistas como parte integrante da filosofia popular ou da

religião. Voz do povo ou voz de Deus. Nada que a ciência possa, saiba ou queira

dissecar.

Não é esta, no entanto, a perspectiva epistemológica que orienta este trabalho. O

estudo de uma Psicologia do Senso Comum, o estudo de crenças e concepções pessoais,

pode ser essencial em termos práticos, teóricos e epistemológicos. Em termos práticos,

os dados assim obtidos podem constituir um auxiliar precioso para a intervenção

psicológica, individual ou institucional, para a prevenção e para a divulgação de

informação científica, para a terapia, para as diversas formas de apoio ou de reeducação.

Em termos teóricos, pode ser relevante para a reconceptualização de um conceito tão

pouco específico como o conceito de dificuldade de aprendizagem. Uma dificuldade de

aprendizagem não é apenas um deficiente produto ou resultado escolar. Uma

dificuldade é (ou deve ser concebida como) um problema de adaptação pessoal a um

contexto ou situação de aprendizagem. Como sucede noutras áreas de intervenção

clínica que se baseiam em modelos de aprendizagem (por exemplo, intervenção

comportamental-cognitiva) o problema só pode ser adequadamente definido em

contexto: num contexto social, situacional e pessoal (cognitivo, emocional,

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comportamental, mas também conceptual). A percepção sobre todos estes níveis ou

contextos muda de pessoa para pessoa, em função de factores de mediação cognitiva (e

de variáveis moderadoras), e entre todos os aspectos que poderíamos nomear, em

função de crenças e concepções pessoais. Erros lógicos, distorções cognitivas, crenças

irracionais, expectativas e atribuições, determinam comportamentos mais ou menos

adaptativos, de maior ou menor sucesso. Numa perspectiva pós-moderna, os limites

entre os quais decorre a existência de cada indivíduo, são em grande parte estabelecidos

por si mesmo (Ferreira-Alves & Gonçalves, 2001) e pela forma como organiza e atribui

significado ao que o envolve.

Em síntese: tradicionalmente, numa perspectiva diferencial, importa sobretudo

distinguir entre alunos, tipos, categorias e sub-categorias de dificuldades, problemas e

distúrbios de aprendizagem. Esta é uma perspectiva essencialmente normativa e

legislativa, centrada em critérios prévios, exteriormente impostos, com base em

fundamentos, pressupostos e princípios teóricos ou decorrentes de dados empíricos, por

análise comparada entre grupos de estudantes. É uma perspectiva organizadora, que

procura a segurança e a estabilidade no diagnóstico, mas de reduzida utilidade na

definição de objectivos, no planeamento da intervenção e na monitorização dos

resultados.

De modo diferente, numa perspectiva funcional pretende-se sobretudo uma

distinção tão precoce quanto possível entre dificuldades (e não entre alunos). Trata-se,

essencialmente, de tentar descrever, analisar e compreender no seu modo de

funcionamento (mais do explicar na sua origem) um complexo sistema de factores e de

relações que contribuem para o aparecimento e manutenção de dificuldades

potencialmente desadaptativas (disfuncionais). Mais do que classificar tipos e subtipos

de problemas em função de áreas curriculares ou de categorias de tarefas escolares

(escrita, leitura, cálculo, etc.) importa sobretudo analisar o modo de funcionamento

pessoal, o modo de processamento e de gestão processual, caso a caso e em contexto.

Além disso, a forma como o próprio aluno e a sua envolvência interpretam e reagem às

dificuldades de aprendizagem, pode contribuir ou determinar de forma significativa os

resultados obtidos (e a obter no futuro) qualquer que seja a tentativa e o esforço de

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intervenção. Para cada dificuldade analisada em contexto, para cada aluno em cada

situação específica, importa sobretudo:

1) avaliar produto e processo de forma integrada, para a determinação de um

estado actual (linha de base) na origem da queixa docente, associada ao insucesso

escolar ou que possa constituir um risco potencial para o aparecimento de dificuldades

futuras;

2) avaliar e determinar aspectos funcionais que inibam ou prejudiquem o

aparecimento de comportamentos e de estratégias mais adequadas e eficazes, tanto ao

nível dos produtos como dos processos de aprendizagem;

3) sugerir e planear formas de intervenção e de avaliação intra-individual que

permitam acompanhar a evolução e possam facilitar a superação das dificuldades

identificadas; que possam orientar e conduzir, alunos e professores, à descoberta de

alternativas pessoais e curriculares, para a compensação de défices, para a redefinição

de objectivos, elaboração de projectos de aprendizagem e de vida.

Por fim, pode dizer-se que este trabalho, considerado no seu conjunto, teve como

objectivo: tentar aprender, numa perspectiva científica, sobre crenças e concepções

pessoais, inerentes a uma perspectiva intuitiva, na pesquisa de múltiplas relações entre

tudo aquilo em que se acredita e o sucesso pessoal, na vida como na escola.

Mais especificamente, o tema das dificuldades de aprendizagem foi abordado

numa perspectiva só recentemente analisada em Psicologia Educacional, na intersecção

com a chamada psicologia do senso comum (“folk psychology”): o estudo de crenças e

concepções pessoais sobre o conhecimento e sobre a aprendizagem (incluindo as

crenças e concepções pessoais sobre as próprias dificuldades).

Um trabalho como este corresponde essencialmente a um projecto e a um

processo de aprendizagem, pontuado por inúmeras questões e múltiplas dificuldades

(práticas, pessoais e profissionais, emocionais e cognitivas, mas sobretudo, dificuldades

de aprendizagem). Porque de acordo com os pressupostos deste trabalho, um projecto

de investigação decorre essencialmente de forma isomorfa a qualquer outro percurso de

aprendizagem. E porque, de acordo com o que ficou dito em capítulos anteriores, as

dificuldades podem ser desafios e oportunidades, do ponto de vista pessoal, estas

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sugestões são talvez o principal produto deste percurso de aprendizagem. São uma

tentativa de resposta, de reequilíbrio e reconceptualização de muitas das dificuldades

que estiveram na sua origem ou que foram surgindo ao longo do caminho. Espera-se

que possam constituir mais um contributo para uma urgente reflexão e revisão do

conceito genérico de “Dificuldade de Aprendizagem”.

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2. Estudos posteriores.

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2. Estudos posteriores.

Os resultados obtidos, tanto do ponto de vista quantitativo como do ponto de

vista qualitativo, parecem confirmar o interesse pelo estudo de crenças e concepções

pessoais sobre dificuldades de aprendizagem, mas deixam ainda sem resposta muitos

aspectos que se julgam da maior importância, nomeadamente: a forma como crenças e

concepções interagem com outras variáveis, o modo como evoluem ao longo do tempo

ou como se relacionam com crenças e concepções pessoais noutros domínios.

Estes resultados poderão ser aprofundados em estudos posteriores, de entre os

quais se indicam apenas alguns exemplos.

A generalidade dos estudos publicados sobre dificuldades de aprendizagem

concentra-se numa perspectiva transversal e estática. Pelo contrário, estudos de natureza

mais longitudinal ou desenvolvimentista, que acompanhem a evolução das dificuldades

ao longo do tempo, podem também ajudar a esclarecer como se processa a evolução de

crenças e concepções. O estudo de caso, os diários, os portfolios, as histórias de vida,

os estudos ex-post facto, em alunos de maior e de menor sucesso, com diferentes

experiências de dificuldade, parecem extremamente necessários. Compreender o ponto

de vista de quem vive (com) uma dificuldade, é talvez um dos aspectos essenciais.

Essencial para um apoio mais adequado, que englobe não só os aspectos curriculares,

mas também a estimulação de aspectos atitudinais, emocionais e conceptuais (Ryden,

1997).

Numa área em que a variabilidade é imensa (variabilidade ao nível dos

currículos, dos métodos, dos recursos, das influências socio-culturais, dos estilos e

práticas docentes, etc.) talvez seja verdadeiramente impossível encontrar padrões

distintivos comuns. Talvez só a compreensão da individualidade, a comparação entre

individualidades e o estabelecimento de quadros conceptuais que alberguem e

descrevam as diferenças (mais do que as semelhanças) pode esclarecer (e ajudar a usar)

todo o potencial do conceito de dificuldades de aprendizagem.

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A comparação entre estudantes de diferentes níveis de escolaridade (secundário

e universitário) sugere a existência de um processo gradual de maturação

epistemológica. No entanto, fica por esclarecer qual a origem desta evolução, se ocorre

ou não em todos os indivíduos, independentemente da influência escolar. Isto é, fica

por esclarecer até que ponto as crenças de outros jovens não universitários evoluem ou

não da mesma forma. Fica por confirmar até que ponto a escola contribui de forma

determinante neste processo de amadurecimento ou se todos os alunos, mesmo os que

abandonam precocemente o sistema escolar, se vão desenvolvendo do ponto de vista

epistemológico com base numa informação veiculada pelos media, na sociedade ou no

meio cultural. Fica por determinar, se não são estes afinal os factores determinantes,

mesmo que modestamente secundados pela escola, ou mesmo que ineficazmente

contrariados na escola.

Embora fosse um dos aspectos previstos no início deste projecto, não se

concretizou o estudo das relações entre concepções pessoais sobre a aprendizagem e o

ensino (Bruner, 1996; Lonka, Joram & Brysson, 1996) e concepções pessoais sobre

Dificuldades de Aprendizagem. Os dados que permitiriam estudar esta relação foram

recolhidos, transcritos e estão neste momento preparados para um procedimento de

análise de conteúdo que permita a identificação de segmentos relevantes, a sua

categorização e relacionação com as respostas dadas pelos mesmos estudantes à questão

sobre concepção de dificuldade de aprendizagem, já tratada e aqui descrita no âmbito do

Estudo 2. deste trabalho.

Alguns estudos sugerem que as dificuldades de aprendizagem podem exercer um

efeito mais positivo (maior funcionalidade) em situações onde nomeadamente os pais

incentivam a prática e o desenvolvimento noutras áreas de mestria (Reis, Neu &

McGuire, 1997). Os alunos que têm a oportunidade de aprender a superar-se e às suas

dificuldades desenvolvem atitudes e hábitos mais eficazes e adaptativos. Algumas das

competências assim desenvolvidas podem constituir um factor determinante do êxito

pessoal e profissional. Isto significa que as dificuldades, ao invés de serem concebidas

como “um mal maior” podem, em condições adequadas, constituir uma oportunidade de

auto-descoberta e de desenvolvimento de competências que de outro modo não se

revelariam. Um estudo comparado de práticas e crenças parentais pode contribuir para

um maior esclarecimento sobre as formas mais eficazes de intervenção e apoio no

contexto familiar.

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3. Implicações psicoeducacionais.

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3. Implicações psicoeducacionais.

A concluir este trabalho, analisam-se algumas das implicações

psicoeducacionais decorrentes, implicações que podem ser consideradas essencialmente

a dois níveis: ao nível das atitudes e práticas pedagógicas no domínio das dificuldades

de aprendizagem e ao nível da formação de professores, inicial ou contínua.

• Atitudes e práticas pedagógicas no domínio das dificuldades de

aprendizagem.

Conceber e compreender o conceito de dificuldades de aprendizagem não é no

essencial diferente do que significa compreender qualquer outro aspecto no domínio da

aprendizagem ou do ensino, ou mesmo qualquer outra instância da vida pessoal e

interpessoal. As dificuldades de aprendizagem devem ser encaradas num contexto de

significação e desenvolvimento pessoal.

Isto significa que é necessário disputar, relativizar ou modificar, concepções que

definam a aprendizagem como um processo sequencial, neutro e objectivo, prejudicado

por inúmeros erros e dificuldades. É necessário substituir o domínio da resposta correcta

como condição de progressão e critério de qualidade do ensino ou da aprendizagem. É

fundamental criar condições, em termos pessoais e institucionais, de superação de uma

escola que no nosso tempo, “mais parece existir para avaliar os alunos do que para os

ajudar a aprender” (Ferreira-Alves & Gonçalves, 2001, p.63). É urgente substituir

crenças, concepções, atitudes e práticas que há muito poderiam já estar ultrapassadas,

pelo exercício consciente de actualização e construção de uma escola que responda aos

desafios da pós-modernidade. No início de um novo século, exige-se uma escola mais

centrada nos processos do que nos produtos, que promova a individualidade no respeito

pela diversidade e na pluralidade (Ashman & Conway, 1993, 1997; Denti & Katz, 1996;

Greene, 1994; Novak, 1998; Mintzes & Wandersee, 1998a). Porque a sociedade actual

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espera de cada indivíduo que seja capaz de lidar com problemas novos, de forma

adaptada, flexível e auto-regulada, que acredite em si próprio e se mantenha disponível

para correr o risco de continuar a aprender e a investir no seu desenvolvimento pessoal

(Bullard, 1996; Glenn & Nelsen, 1989; Osborne, 2000).

Numa perspectiva construtivista, “the single most important factor influencing

learning is what the learner already knows” (Mintzes & Wandersee, 1998b, p.80).

Alguns métodos e estratégias de ensino parecem mais de acordo com esta perspectiva.

A avaliação dinâmica, como o próprio nome indica, surge como alternativa (ou

em complemento) de uma avaliação de estado e pode ser um instrumento essencial, no

pressuposto de que é possível mudar e ajudar a mudar (Campione & Brown, 1987;

Cruz & Almeida, 1996; Lidz, 1991; Moats, 1994).

O trabalho de projecto, os diários de aula, o portfolio, o contrato comportamental

e muitas outras estratégias de diferenciação pedagógica têm vindo a ser gradualmente

introduzidos na escola portuguesa. Dado que todas as propostas instrucionais de

inspiração construtivista requerem uma aplicação flexível, adaptada a cada situação e

contexto, a utilização destes métodos pode ser ainda mais prejudicada do que em outros

casos, por falta de formação e de experiência, e sobretudo, por um insuficiente

entendimento dos pressupostos teóricos e epistemológicos destes modelos. Com

formação adequada, muitos outros métodos além dos que aqui ficam referidos poderão

vir a ser ensaiados, estruturados e desenvolvidos (Eggen & Kauchak, 1997; Hresko,

Parmar & Bridges, 1996a; Joyce, Calhoun & Hopkins, 1997; Przesmycki, 1991, 1994;

Reid & Leamon, 1996; Thomas, 1993; Woolfolk, 1998), num espírito que se espera de

permanente actualização e de investigação em acção.

No ensino recíproco, no diálogo socrático, na reflexão partilhada, pode

promover-se a auto-regulação e a reestruturação cognitiva, facilita-se a mudança e a

aprendizagem. Pode dizer-se que se aprende de forma holística no sentido em que os

significados são mais eficazmente adquiridos em conjunto, num contexto significativo

e partilhado por todos os participantes (Brown et al., 1993; Poplin, 1988a; Stone &

Reid, 1994).

Por outro lado, todos estes métodos devem reflectir-se e ter aplicação específica

ao nível da prevenção do insucesso e no apoio a alunos em risco ou gravemente

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limitados por dificuldades de aprendizagem sentidas como bloqueadoras e quase

inultrapassáveis.

Ainda uma nota final, centrada em testemunhos obtidos no contexto clínico.

Alguns alunos precocemente diagnosticados como tendo dislexia, dizem ter sofrido de

tal forma com o problema, reconhecem tão claramente as carências educacionais e os

erros sucessivamente cometidos ao nível do apoio, na escola, na família e na sociedade,

que nalguns casos são levados a optar por uma escolha profissional neste domínio.

Dizem que querem vir a ser psicólogos, professores ou educadores. Desejam ajudar

outras crianças com este tipo de problemas, dar-lhes o tipo de apoio que eles próprios

nunca tiveram ou só tardiamente receberam. Esta atitude militante esbarra muitas vezes

com os limites e as exigências do sistema, que muitas vezes inviabiliza a progressão

destes alunos para o ensino médio ou superior. No entanto, numa perspectiva socio-

construtivista, seria fundamental assegurar que alguns destes alunos pudessem receber a

formação adequada, aliar essa formação ao conhecimento intuitivo e experiencial que

têm sobre o problema e que pudessem vir a exercer neste domínio, como acontece desde

há muito noutros países (Ferri et al. 2001).

• Formação de professores.

As concepções e as crenças pessoais de professores e de outros técnicos com

intervenção na área das dificuldades de aprendizagem, quer sejam de carácter intuitivo

ou geradas no contexto da formação, podem influenciar a forma como virão a actuar e a

intervir junto dos alunos. As suas práticas e escolhas metodológicas podem ter um

efeito, por vezes determinante, não só ao nível do apoio dado aos alunos em risco ou já

em dificuldade, mas também ao nível do modo de desenvolvimento das dificuldades de

aprendizagem.

Este conceito de desenvolvimento de dificuldades de aprendizagem serve

essencialmente para salientar que as dificuldades existem em contexto, ocorrem e

evoluem num contexto, são avaliadas, diagnosticadas e apoiadas num contexto. A sua

existência deve ser concebida, não como uma característica pessoal do próprio aluno,

antes como uma característica da forma como o aluno se integra, interage e se relaciona

com o contexto, e vice-versa, da forma como o contexto integra, interage e se relaciona

com o aluno.

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Ao sugerir que as dificuldades devem ser concebidas como entidades em

desenvolvimento de carácter funcional ou disfuncional, isto implica naturalmente a

necessidade de introduzir algumas alterações ao nível da formação de professores.

Sugere-se que na formação de professores e de outros técnicos para futura intervenção

no contexto educativo, sejam criadas as condições para uma modificação efectiva de

concepções e crenças pessoais sobre a noção de dificuldade como, de modo mais geral,

sobre a própria aprendizagem. Não basta adquirir informação e formação sobre modelos

e práticas (Raposo, 1990). Até porque “a prática de ensino tende a contrariar e a anular

os efeitos da formação” (Estrela & Estrela, 1977, p.65). No fundo, as verdadeiras

mudanças, as aprendizagens significativas só ocorrem a nível conceptual, quando se

mudam pressupostos e esquemas prévios, quando se discutem e abalam crenças

intuitivas, quando se passa da teoria à acção, da análise genérica e generalizadora ao

estudo de caso e à solução de problemas específicos num contexto determinado.

Mesmo os elementos teóricos oferecidos durante a formação devem servir mais

ao desenvolvimento pessoal e conceptual de cada professor, do que à prescrição de

práticas ou a uma tentativa de sedução e adesão a modelos teóricos específicos.

Na formação em epistemologia genética, por exemplo, mais do que um

contributo para uma compreensão sobre o desenvolvimento psicológico dos alunos,

mais do que informar sobre processos de construção e desenvolvimento do

conhecimento, sugere-se uma análise e reflexão sobre este modelo (incluindo

pressupostos, metodologias, dificuldades e evolução histórica do modo de conceber as

questões em estudo). Sob uma adequada orientação, pode constituir uma ocasião

privilegiada de reflexão, de discussão e de descoberta epistemológica. Pode contribuir

para dar a conhecer aos futuros professores, procedimentos de investigação científica

menos divulgados, de carácter menos positivista e de maior utilidade para a sua própria

auto-formação, promovendo um exercício profissional de qualidade crescente. O

método clínico, o estudo de caso, a observação sistemática, etc. podem ser introduzidos

em projectos de investigação em acção, em propostas de análise e renovação de

ambientes e actividades educacionais. Mas podem também conduzir a uma reflexão

sobre o próprio processo de aquisição e reformulação do corpus científico de cada

disciplina a ensinar, oportunidade de reflexão e aprendizagem sobre princípios

epistemológicos fundamentais.

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Na formação de professores, como aliás na psicoterapia, “o nosso objecto de

trabalho é a pessoa do professor e o conjunto de processos experienciais que o possam

tornar mais complexo3, mais flexível e mais disponível para compreender e autorizar

múltiplas vozes, culturalmente aceites, ou culturalmente necessárias” (Ferreira-Alves &

Gonçalves, 2001, p.72). Esta perspectiva pressupõe a criação de condições para um

desenvolvimento pessoal de cada formando a todos os níveis, incluindo uma maior

mestria e eficácia no ensino mas também uma maior valorização e envolvimento

pessoal, maior auto-conhecimento, maior equilíbrio e maior aceitação de desafios4.

Sendo desde há muito considerada uma profissão de risco, exercida quase sempre de

uma forma muito autónoma, verifica-se que as exigências da função docente se tornam

ainda maiores na época actual. O desenvolvimento tecnológico e a globalização

proporcionam o confronto de múltiplas perspectivas, concorrentes e relativas,

estimulam o aparecimento de novas realidades, novas tarefas e, necessariamente, de

novos problemas. Tudo isto proporciona a emergência de dúvidas sobre aquilo que

outrora era consensual (Gergen, 1992, citado por Ferreira-Alves & Gonçalves, 2001,

p.21).

Neste sentido, “a escola da pós-modernidade terá que ser uma escola, não de

realidades, mas uma escola de possibilidades” (Gonçalves e Ferreira-Alves, 1995,

p.137). Do ponto de vista epistemológico, esta abertura à complexidade, à pluralidade,

mesmo à inovação, será mais acessível a todos aqueles que entendam o conhecimento

como relativo, contextualizado e em permanente construção. O desenvolvimento de

uma “pedagogia da situação” (Estrela & Estrela, 1978), exige uma articulação profícua

3 Como ficou referido num dos testemunhos analisados no estudo 2., por um dos estudantes

universitários do curso de formação inicial de professores: “Julgo que se ultrapassa uma dificuldade

quando se ganha consciência de que "alguma coisa" deixou de ser complicada para passar a ser complexa.

Esta passagem é fruto do "ganhar sentido".” (TEXT: univ.L17)

4 “A menos que o professor valorize, respeite, goste e se aceite a si próprio, ele não pode atingir o

valor, o respeito, o gosto e aceitação dos estudantes; a menos que o professor tenha uma alta opinião de si

próprio, ele não pode ter uma alta opinião dos estudantes; a menos que o professor seja sensível a si

próprio, ele não pode ser sensível aos estudantes.” (Schmier, 1995, citado por Ferreira-Alves &

Gonçalves, 2001, p.123).

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entre conhecimento e acção, numa constante inter-relação entre teoria e prática

pedagógica. Num constante esforço de adaptação e de articulação, que supõe e exige

uma mudança de atitudes, um comprometimento pessoal de cada professor (De Corte,

2000) numa constante busca de significado (Frankl, 2000). Numa tentativa de

identificação e de superação de dificuldades, concebidas como inerentes e decorrentes

de qualquer esforço de aprendizagem, na necessidade de construção e de reconstrução

de percursos e planos, de formação e de acção pedagógica5.

Neste sentido, também as dificuldades colocadas pela existência de alunos em

dificuldade podem constituir (e ser concebidas como) um desafio, como uma

permanente (e persistente) oportunidade de mudança e de reconstrução de uma escola

diferente. Se todos os alunos fossem e permanecessem, iguais e simples, se tudo fosse

fácil e a aprendizagem fluisse, cada professor teria provavelmente muito menos

ocasiões para reflectir sobre a sua prática, sobre os limites das suas estratégias e das

“suas” teorias, pessoais ou científicas. A possibilidade de estar atento, de aproveitar e

aprender o mais possível com um tal contributo, parece dependente, entre outros

aspectos, de crenças e concepções pessoais sobre o conceito de “Dificuldade de

Aprendizagem”, tal como estão difundidas na comunidade e como podem ser

individualmente assumidas (modeladas, mobilizadas ou modificadas) por alunos e

professores, por investigadores e por todos os outros intervenientes no domínio da

educação.

5 “Uma parte do desânimo e do mal-estar sentidos por muitos professores poderá explicar-se por

essa incapacidade de transposição para a prática de um ideal pedagógico, com todo o sentimento de

incongruência que isso acarreta.” (Estrela & Estrela, 1978, p. 83).