Igualdade de Gênero

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Esta publicação é fruto do Projeto “CONSTRUINDO A IGUALDADE NA ESCOLA: reconhecendo a diversidade sexual e enfrentando o sexismo e a homofobia” coordenado pelas pesquisadoras Nanci Stancki da Luz e Lindamir Salete Casagrande, financiado pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (Secad/MEC) e executado, no período 2010- 2011, por pesquisadoras(es) do Grupo de Estudos e Relações de Gênero e Tecnologia (GeTec) do Programa de Pós-graduação em Tecnologia (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Dentre os objetivos do projeto, destaca-se a formação docente visando à sensibilização para o reconhecimento da diversidade sexual e o combate à homofobia e ao sexismo, como forma de disseminar, por meio de programas educacionais e intervenção na realidade escolar valores éticos de respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero, visando à eliminação de intolerâncias, preconceitos e discriminação e a promoção dos direitos humanos.

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igualdade de gêneroenfrentando o sexismo e a homofobia

EditoraUTFPR

Organização:

Lindamir S. CasagrandeMarilia G. de CarvalhoNanci S. da Luz

IGUALDADE DE GÊNEROenfrentando o sexismo e a homofobia

Carlos Eduardo CantarelliReitor da UTFPR

Paulo Osmar Dias BarbosaVice-Reitor da UTFPR

Noemi Henriqueta Brandão de PerdigãoDiretoria de Gestão da Comunicação

Vanessa Constance AmbrosioChefe do Departamento de Comunicação e Marketing

Adriano LopesCoordenador Geral da Editora UTFPR

IGUALDADE DE GÊNEROenfrentando o sexismo e a homofobia

1º edição

CURITIBA 2011

Lindamir Salete CasagrandeNanci Stancki da Luz

Marilia Gomes de Carvalho (Orgs.)

Projeto Gráfico: Felipe Leoni GomesEditoração eletrônica e revisão: Lindamir Salete Casagrande

Capa: Maristela Mitsuko OnoRevisão: Joyce Luciane Muzi

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

I24 Igualdade de gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia/ Organização: Lindamir Salete Casagrande, Nanci Stancki da Luz, Marília Gomes de Carvalho. - 1. ed. Curitiba: ed. UTFPR, 2011. 372p. ; 24cm Inclui bibliografias Vários autores ISBN: 978-85-7014-090-6

1. Relações de gênero. 2. Homofobia. 3. Sexismo 4. Discriminação de sexo. 5. Preconceitos. 6. Papel sexual. I. casagrande, Lindamir Salete. II. Luz, Nanci Stancki da. III. Carvalho, Marília Gomes de. IV. Título.

CDD – (22. ed.) 305.3 Bibliotecário: Adriano Lopes CRB 9/1429

Depósito Legal na Biblioteca nacional conforme Leino 10.994, de 14 de dezembro de 2004.

Av. Sete de Setembro, 3165, RebouçasCuritiba - PR 80230-901

www.utfpr.edu.br

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

APRESENTAÇÃO

Esta publicação é fruto do Projeto “CONSTRUINDO A IGUALDADE NA ESCOLA: reconhecendo a diversidade sexual e enfrentando o sexismo e a homofobia” coordenado pelas pesquisadoras Nanci Stancki da Luz e Lindamir Salete Casagrande, financiado pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (Secad/MEC) e executado, no período 2010-2011, por pesquisadoras(es) do Grupo de Estudos e Relações de Gênero e Tecnologia (GeTec) do Programa de Pós-graduação em Tecnologia (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Dentre os objetivos do projeto, destaca-se a formação docente visando à sensibilização para o reconhecimento da diversidade sexual e o combate à homofobia e ao sexismo, como forma de disseminar, por meio de programas educacionais e intervenção na realidade escolar valores éticos de respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero, visando à eliminação de intolerâncias, preconceitos e discriminação e a promoção dos direitos humanos.

Inúmeras foram as motivações que nos levaram a propor esse projeto1, mas sem dúvida a maior delas foi a vontade de desenvolver alguma ação concreta que possibilitasse contribuir para a construção de uma sociedade com justiça social e

1 Além desta publicação, o projeto desenvolveu formação docente continuada, por meio de cursos de extensão universitária com carga horária de 80horas/aula, envolvendo aproximadamente 600 profissionais da educação de Curitiba e Região Metropolitana.

com respeito às diferenças, o que pressupõe a problematização de uma realidade que apresenta inúmeras formas de violências de gênero e a reflexão sobre formas de intervenção para coibir tais manifestações de intolerância.

Nos dias atuais, notícias sobre agressões contra mulheres, homossexuais, crianças e adolescentes estão cada vez mais frequentes. Violências, antes invisibilizadas ou aceitas socialmente, passam a ser debatidas e percebidas como formas de violação dos direitos do ser humano. Tais violações revelam uma face intolerante de uma sociedade que demonstra dificuldades em respeitar diferenças, particularmente no que se refere à sexualidade humana. Alguns casos de agressões físicas acabam por assumir notoriedade nacional, gerando reflexões que desvelam que grande parte da sociedade não aceita o preconceito, a brutalidade dos atos e muito menos as motivações para tais atos. Entretanto, grande parte das violências que ocorrem no país ainda não é noticiada, não é denunciada e muitas vezes é tolerada, destacando-se dentre elas aquelas que não despertam interesse da sociedade por não configurarem violência física. É fundamental, no entanto, ressaltar que a violência psicológica, por exemplo, é tão ou mais prejudicial do que a violência física.

Parcela significativa dessa violência tem motivação baseada na forma como as pessoas vivenciam sua sexualidade. Pessoas julgam-se no direito de agredir outras e condená-las pelo fato de terem orientação sexual diferente daquela entendida por eles como normal. Sentem-se juízes, definem e executam a sentença por meio de violência.

O enfrentamento à homofobia tem sido tema de programas governamentais como o Programa Brasil sem homofobia implementado pelo Governo Federal cujo objetivo é o

reconhecimento e a reparação da cidadania da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, inegavelmente uma parcela relevante da sociedade brasileira, que sofre com o preconceito e a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, além de outros como de raça, etnia, gênero, idade, deficiências, credo religioso ou opinião política. (BRASIL)

Estes programas proporcionam discussão sobre a temática e o desenvolvimento de ações com o intuito de diminuir a homofobia na sociedade. As ações desenvolvidas por meio dos programas governamentais passam pela formação de professores, campanhas publicitárias, desenvolvimento de materiais de apoio para os profissionais da educação e atividades direcionadas aos estudantes.

As mulheres também têm sido historicamente vítimas de violência. As agressões, em grande medida, ocorrem no âmbito doméstico e são cometidas por (ex)companheiros, (ex)maridos, (ex)namorados. Nos últimos anos, com a aprovação da Lei Maria da Penha, começou-se a criar uma estrutura que possibilita coibir esse tipo de violência, acolhendo denúncias e condenando os agressores, fato que permitiu e estimulou a denúncia dos agressores, e, desta forma, deu mais visibilidade à violência contra a mulher, criando inclusive uma sensação aparente de que aumentou o número de casos.

É fundamental a reflexão sobre as razões para que a intolerância e o desrespeito aos direitos humanos estão se tornando tão visíveis e possivelmente aumentando no Brasil nos últimos anos. É sobre esta reflexão que autoras e autores deste livro escreveram os capítulos que seguem.

O capítulo “Direitos Humanos das Mulheres e a Lei Maria da Penha” de autoria de Nanci Stancki da Luz discute a violência contra a mulher, entendida como violação dos direitos humanos. Esse capítulo ainda destaca a relevância da luta das mulheres para que o direito à vida sem violência fosse reconhecido como direito humano fundamental, trazendo uma reflexão sobre os mecanismos adotados pelo Brasil para o enfrentamento da violência de gênero e a promoção da igualdade de gênero – Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a mulher, Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher e a Lei Maria da Penha.

No capítulo intitulado “Gênero: flashes de uma construção” as autoras Nadia Veronique Jourda Kovaleski, Cintia de Souza Batista Tortato e Marília Gomes de Carvalho apresentam um panorama da construção do campo dos estudos de gênero. Apresentam trabalhos desenvolvidos em diversos países e que algumas vezes apontaram resultados contraditórios. Consideram que é necessário ter em mente que a multiplicidade de olhares “só tem a acrescentar no desenvolvimento de novos horizontes para a existência humana.” Conhecer e entender como este campo de estudos foi constituído e vem se solidificando contribui para a compreensão da sociedade e das relações sociais. As autoras finalizam afirmando que “a questão de gênero está posta e deve ser pensada e repensada em todos os aspectos da vida para que as desigualdades não sejam obscurecidas e naturalizadas”.

Anderson Ferrari nos convida a refletir sobre a construção das homossexualidades. Sim, no plural. Para o autor “há uma infinidade de homossexualidades possíveis, que faz com que as pessoas tenham inserções distintas nas construções de suas identidades”. Baseado em pesquisas realizadas em sua trajetória acadêmica, ele argumenta que a escola é um fator relevante na construção das identidades dos homossexuais. Destaca que a “homofobia tem um vínculo estreito com as questões de gênero e sexualidades e, sobretudo com as políticas de identidade”. Argumenta que a masculinidade hegemônica obriga os meninos a imprimirem esforço e disciplina extra para não se distanciarem do que é ser homem e os leva a negar e repudiar aos homossexuais e às mulheres. Os meninos precisam estar distantes de qualquer característica que remeta a estes. A escola ensina isso desde as séries iniciais. O autor conclui que “trazer para o conhecimento dos leitores o que está acontecendo nas escolas em torno das homossexualidades é uma forma de dar voz às homossexualidades, uma maneira de problematizar suas construções”.

A heteronormatividade e a homofobia são questões abordadas por Rogério Diniz Junqueira no capítulo “Heteronormatividade e homofobia no currículo em ação”; nele ressalta o papel da escola no questionamento, na construção e desconstrução dos padrões vigentes. Baseado em relatos de professoras e professores sobre situações ocorridas em seus ambientes de trabalho, o autor constrói o argumento de que os “indivíduos que, de algum modo, voluntariamente ou não, escapam da sequência heteronormativa são postos à margem das preocupações centrais de um currículo e de uma educação supostamente para todos”. Leva-nos a refletir sobre as dificuldades que os homossexuais enfrentam para permanecer na escola, muitas vezes, para serem aceitos na escola e na sociedade, tem que demonstrar capacidade superior aos demais. Argumenta ainda que, na maioria das vezes, a homossexualidade é negada ou a heterossexualidade é presumida pelos profissionais que atuam na escola. Conclui que a homofobia e o preconceito são danosos não somente para as denominadas “minorias”. Argumenta baseado em pesquisas, que “uma escola racista, sexista e homofóbica revela-se, [...] um espaço menos educativo para todas as pessoas que a povoam”.

No capítulo de autoria de Maria Eulina Pessoa de Carvalho, Fernando Cezar Bezerra de Andrade, Francisca Jocineide da Costa e Silva, Maria Helena dos

Santos Gomes e Daiane da Silva Firino, são apresentadas duas atividades realizadas junto a estudantes de EJA do turno noturno de uma escola na Paraíba visando ao enfrentamento à homofobia. As(os) autoras(es) constataram que a participação dos rapazes nas atividades descrita neste capítulo foi menos intensa e representou maior esforço para eles do que para as meninas. Eles riam, faziam piada, se mostravam desconfortáveis e constrangidos diante da temática enquanto elas se mostravam participativas e interessadas. Sobre a menor dificuldade das moças em abordar a temática, argumentam que elas “não se veem ameaçadas em suas identidades. Ademais, dado que a homofobia se imbrica com a misoginia (aversão e desvalorização da feminilidade), as mulheres, desse ponto de vista, já estão em condição inferiorizada”. Sendo assim, a sexualidade delas não seria questionada pelo fato de demonstrarem interesse em discutir a temática. Por outro lado, a recusa dos meninos em participar das atividades indicava a preocupação de não serem interpretados como próximos a este universo que os afastaria do mundo masculino. Os autores nos convidam a refletir sobre a resistência à mudança presente nas intervenções dos alunos e alunas nas atividades sobre as quais o capítulo discorre.

Cristina Tavares da Costa Rocha e Nanci Stancki da Luz, no capítulo “Gênero, ciência e tecnologia: avanços e desafios”, abordam a construção social da ciência e da tecnologia, revelando que embora essa construção histórica tenha sido marcada pelo sexismo e androcentrismo, os avanços e conquistas femininas nesses campos de saber foram significativos, destacando-se uma quebra de paradigma a partir da entrada de mulheres militantes de movimentos sociais feministas no cenário científico e tecnológico. Para isso, o texto evidencia a importância da ampliação da escolaridade feminina, o que possibilitou o acesso à informação, contribuiu para a produção e divulgação de conhecimentos, permitindo que mulheres pudessem atuar em áreas que exigem formação acadêmica específica. Embora essa formação tenha sido fundamental para reduzir as disparidades de gênero, as autoras pontuam lacunas que ainda persistem obstaculizando a concretização da igualdade entre homens e mulheres no campo científico e tecnológico.

A pesquisadora Carla Giovanna Cabral apresenta em seu capítulo uma reflexão sobre as publicações sobre gênero e feminismo no Brasil. Enfoca principalmente em gênero e educação. Constata a escassez de publicações sobre a temática nas

revistas mais renomadas que se dedicam a temática de gênero. Argumenta ainda que a formação de professores/as nas universidades (licenciaturas) para abordar a temática com estudantes dos diversos níveis de ensino é precária e fruto de ações de “boa vontade” de alguns/mas professores/as e não de esforços e/ou iniciativas institucionais. Faltam projetos mais aprofundados e que assegurem a continuidade das ações. Reflete ainda sobre iniciativas governamentais como os cursos GDE e conclui que:

Um avanço no campo da formação inicial e continuada de professores, assim como de crianças e jovens, exigiria uma aproximação e um diálogo cada vez mais estreitos entre campos (inter) disciplinares, em que se admitam novos objetos e problemas, muito embora a conciliação de práticas e discursos seja trabalhosa e gere discordâncias e dissonâncias.

Para Valter Cardoso da Silva, Sandro Marcos Castro Araújo e Nanci Stancki da Luz, no capítulo “Violência de gênero: notas sobre um campo de pesquisa”, a violência deve ser compreendida como um fenômeno complexo, capaz de atingir os mais variados setores do tecido social e cujas manifestações ocorrem de forma distinta quando se refere aos homens e às mulheres, o que aponta o gênero como categoria essencial para a análise dos processos da constituição da violência, pois possibilita perceber as relações de poder, nas quais a violência de gênero tem se revelado como forma de dominação e controle. Nesta perspectiva, o texto analisa pesquisas sobre a violência de gênero no âmbito da sociologia, tomando por base trabalhos apresentados no XIV Congresso Brasileiro de Sociologia – ocorrido em 2009 – buscando, por meio de uma amostragem de discursos acadêmicos produzidos em pesquisas sobre violências de gênero, dar maior visibilidade aos estudos sobre essa temática, contribuindo assim para a construção de um mapeamento desses estudos.

O bullying foi o tema do capítulo de Lindamir Salete Casagrande, Cintia de Souza Batista Tortato e Marilia Gomes de Carvalho. Nesse capítulo as autoras lançam o olhar para este tema que se torna cada vez mais recorrente no dia a dia escolar. As agressões entre os/as alunos/as se tornam mais frequentes e violentas e muitas vezes são a razão para que os/as jovens deixem de frequentar a escola por não se sentirem protegidos no seu interior. As autoras apresentam alguns casos que foram veiculados na mídia pela violência da agressão e do desrespeito ao colega. Ressaltam que esta divulgação se torna importante, pois provoca as autoridades a

tomarem alguma providência para minimizar a ocorrência deste tipo de agressão. Destacam a “necessidade de preparação dos professores, diretores, pedagogos, enfim, equipe gestora das escolas para saberem identificar e abordar a temática de forma eficiente e preventiva”. Na opinião das autoras, o trabalho preventivo produz melhores resultados, uma vez que evita a ocorrência das agressões, sem a necessidade de ações punitivas contra os agressores e sem traumas para o agredido. Concluem que “é imprescindível o envolvimento de todos, de modo especial, dos próprios alunos no combate a esse mal que assola nossas escolas”.

O capítulo de autoria de Fabio Hoffmann Pereira e Marília Pinto de Carvalho aborda a questão da recuperação paralela sob a perspectiva de gênero. É baseado em uma pesquisa realizada em uma escola municipal de Embu, São Paulo, durante o ano de 2006. Os autores argumentam que a maioria dos/as estudantes encaminhados/as para a recuperação paralela é composta por meninos. Identificam que as professoras tinham percepção diferenciada dos motivos pelos quais meninos e meninas eram encaminhadas ao projeto de recuperação. Argumentam que uma dificuldade de aprendizagem recebia tratamento diferenciado quando encontrada em meninos ou em meninas. Concluem que a pesquisa revela “significados diferentes embutidos em falas semelhantes, interpretações do mesmo comportamento que variavam segundo o sexo do aluno”. Esta percepção diferenciada por parte das professoras pode estar baseada nos estereótipos de feminino e masculino que permeiam a sociedade atual.

No capítulo de autoria de Lindamir Salete Casagrande e Marilia Gomes de Carvalho aborda-se o rendimento escolar em Matemática de meninos e meninas. O artigo tem o objetivo de comparar o que os/as estudantes dizem sobre seu rendimento escolar em Matemática e as notas encontradas em documentos oficiais. As autoras argumentam que o rendimento em Matemática tem sido considerado como uma das razões para a pouca participação feminina em carreiras científicas e tecnológicas. As autoras concluem que há diferença no rendimento de alunos e alunas, porém é pequena e favorece as meninas. Encontraram ainda diferença significativa entre o que os/as estudantes dizem sobre seu rendimento e o que os documentos mostram. As alunas se avaliam com menor rendimento do que realmente têm, demonstrando maior exigência ou menor autoestima. As autoras ressaltam que “a diferença de rendimento não pode ser confundida com diferença de capacidade de aprendizagem

ou de potencial”. Ou seja, ter melhor rendimento não significa ser mais inteligente, mais capaz, mas sim que se adequou melhor à escola e seu sistema de avaliação. Concluem que “não era objetivo deste estudo afirmar que meninas são melhores do que meninos (ou vice-versa) e sim contribuir para a discussão sobre o acesso deles e delas ao conhecimento matemático”.

O capítulo de autoria de Constantina Xavier Filha aborda os pressupostos teórico-metodológicos de um projeto que tem por objetivo “coletar dados para a produção de materiais educativos, especialmente livros infantis, não apenas destinados à infância, mas contando com sua efetiva participação”. A autora faz uma descrição de como se deu a pesquisa-ação com as crianças. Afirma que a atenção foi destinada especialmente aos seus comentários sobre gênero e sexualidade. Conclui que, além do uso com as crianças, os livros para a infância nas temáticas de gênero, sexualidades, diferenças/diversidades podem também ser utilizados como recursos pedagógicos para discussão, reflexão, estudo, sensibilização entre outras possibilidades teórico-metodológicas em momentos de formação docente, tanto na etapa inicial quanto na continuada.

Em seu capítulo Claudia Maria Ribeiro faz uma reflexão sobre a importância que acontecimentos como a criação de um grupo de trabalho (GT23) na Anped e a aproximação com a Secad contribuíram para um acercamento entre os grupos de estudos sobre gênero, sexualidade e educação dispersos por Universidades de todo o país, o que permitiu a divulgação do conhecimento por estes produzidos. A autora argumenta que este campo de estudos e de atuação apresenta “precisões e imprecisões das problematizações das sexualidades e gênero”. Destaca que o “desafio é lançar os olhos para o que é preciso e se organizar para navegar com instrumentos adequados”. Sem dúvida, é necessário lançar o olhar e desenvolver ações que contemplem as sexualidades e os gêneros em nossas práticas educativas visando minimizar as desigualdades.

Este é um breve panorama do que vocês encontrarão nesta obra. Boa leitura!

Lindamir Salete CasagrandeNanci Stancki da Luz

Marilia Gomes de CarvalhoOrganizadoras

SUMÁRIO

Direitos Humanos das Mulheres e a Lei Maria da Penha

Gênero: Flashes de uma Construção

Reflexões Sobre a Homofobia na Escola

Heternormatividade e Homofobia no Currículo em Ação

Enfrentando a Homofobia na Escola: Reflexões a Partir de Desafios Postos pela Experiência

Gênero, Ciência e Tecnologia: Avanços e Desafios

Percursos e Discursos na Construção De uma Igualdade de Gênero na Educação

Violência de Gênero: Notas sobre um Campo de Pesquisa

Bullying: Quando a Brincadeira vira Violência

Meninos e Meninas Num Projeto de Recuperação Paralela

Desempenho Escolar em Matemática: O que o Gênero tem a ver com isso?

Gênero, Sexualidades, Diferenças e Diversidades em Livros Para a Infância: Análises e Produções para/com Crianças

Agitando Conceitos que Perpassam as Temáticas de Gênero e Sexualidade. Navegando por entre Dimensões Teóricas, Metodológicas e Políticas

Sobre as Autoras e Autores

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DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES E A LEI MARIA DA PENHA

Nanci Stancki da Luz

INTRODUÇÃO

No Brasil, o reconhecimento da igualdade entre homens e mulheres foi consagrado no texto constitucional de 1988, representando um marco na efetivação dos direitos fundamentais das brasileiras. Todavia, o reconhecimento formal da igualdade impôs o desafio de concretizá-la, pois preceitos constitucionais não alteram automaticamente as condições objetivas de vida.

A desigualdade de gênero ainda é uma realidade e dentre as suas expressões, destacamos, neste texto, a violência contra a mulher – historicamente justificada e naturalmente aceita, tornou-se fenômeno generalizado e um grave problema social, dificultando a efetivação dos direitos das mulheres.

A violência contra a mulher tem sido visibilizada, principalmente a partir da luta feminista e da inserção da categoria de gênero nos estudos sobre o tema, mostrando que a violência é resultado de relações de poder desiguais entre homens e mulheres e faz parte de um sistema patriarcal que defende a supremacia masculina e a subordinação feminina.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

A ampliação do rol dos direitos humanos e a busca da sua extensão às mulheres deixaram explícito que a violência contra a mulher é uma violação explícita desses direitos. Este texto objetiva apresentar uma reflexão sobre essa forma de violação de direitos das mulheres e apresentar uma avaliação sobre os mecanismos adotados pelo Brasil para o enfrentamento da violência de gênero e a promoção da igualdade de gênero, dentre os quais a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a mulher, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher e a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha).

Os DIReITOs HUmaNOs

O debate sobre a existência de direitos fundamentais aos seres humanos é bastante antigo:

Antes mesmo de se pensar em uma positivação, os filósofos gregos já examinavam o problema dentro da esfera do Direito Natural. Na Idade Média, o homem adquire, através da razão iluminista, uma série de direitos fundamentais, que seriam inerentes a sua própria natureza racional. Com as revoluções liberais, o indivíduo passa a ser o centro da organização social, sendo cara a essas revoluções a defesa da autonomia privada, cristalizada no direito à vida, à liberdade e à propriedade (RAMOS, 2002, p. 12).

Segundo Teles (2006), com a promulgação das declarações de direitos no final do século XVIII, como a Declaração Americana de Virgínia (1776) e a Declaração Francesa (1789), atribui-se um novo sentido à condição humana.

Piovesan (2003) também destaca estes momentos históricos, destacando que a igualdade formal reduzida à fórmula “todos são iguais perante a lei”, foi um avanço histórico decorrente das Declarações de Direitos do século XVIII. A Declaração Francesa e a Americana buscam limitar o controle do poder do Estado, introduzindo uma concepção formal de igualdade, como um dos elementos a demarcar o Estado de Direito Liberal. Naquele momento não se previa qualquer direito de natureza social e tampouco se pensava na igualdade numa perspectiva material e substantiva. Tornou-se necessário o repensar da igualdade para que especificidades e diferenças fossem observadas e respeitadas. Essa perspectiva foi concretizada com um processo de ampliação dos direitos humanos. Gradativamente vai se consolidando um aparato

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Direitos Humanos das Mulheres e a Lei Maria da Penha

normativo especial de proteção de pessoas ou grupos de pessoas que, de alguma forma, necessitem de proteção especial, passando a reconhecer direitos das crianças, idosos, mulheres, vítimas de tortura, vítimas de discriminação, entre outros.

Mobilizações sociais possibilitaram uma alteração sobre o conceito de direitos humanos e principalmente sobre a ideia de sujeito de direitos – os direitos humanos passam a reconhecer a pluralidade e a diversidade desses sujeitos. Lutas de movimentos específicos, dentre os quais mulheres, negros, LGBT, explicitam que tais direitos foram historicamente negados a uma grande parcela da humanidade e que não seria possível a efetivação dos direitos humanos sem o reconhecimento da igualdade de direitos para as mulheres, negros, pobres, analfabetos, homossexuais, travestis, idosos, ou seja, para toda a humanidade.

Embora se admita que o Estado tenha um papel relevante no sentido de efetivar direitos, principalmente a partir de políticas públicas, a história das lutas sociais aponta que o Estado não é, por excelência, o promotor dos direitos fundamentais. Em determinados momentos históricos a sua efetivação deveu-se a ações da sociedade civil organizada, inclusive contra políticas de Estado ou de governo que limitavam o exercício da cidadania para todos(as). O movimento sindical e a organização da classe trabalhadora, por exemplo, tiveram um papel relevante para que os direitos humanos incorporassem a ideia de direitos sociais, econômicos e culturais, dentre os quais o direito ao trabalho, à organização sindical, à remuneração justa, à greve, à moradia, à educação, à previdência, à saúde, etc.

Podemos considerar que lutas sociais que visem garantir ou ampliar direitos fundamentais constituem formas de efetivar os direitos humanos. Assim, a luta do povo negro na resistência aos processos degradantes e vergonhosos de escravidão humana e na efetivação dos direitos civis e sociais; a dos povos indígenas para garantir posse de suas terras e o direito de ter sua cultura respeitada; a das mulheres para garantir o direito sobre suas vidas e seus corpos; a do movimento LGBT para o reconhecimento da igualdade de direitos e contra a discriminação de lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros; são formas, dentre outras, de concretizar os direitos humanos.

Assim, vale destacar, que a história dos direitos humanos é complexa e deve ser lida na sua relação com a história social, tendo como protagonistas as lutas concretas para a afirmação histórica desses direitos (TOSI, 2010).

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O “alargamento” do rol de direitos humanos reforça que se protege um direito fundamental pelo seu conteúdo, consagrando uma intenção de proteger um princípio maior que é a dignidade da pessoa humana, de um ponto de vista ético-valorativo. Assim, se considera que direitos humanos é um conjunto mínimo de direitos necessário para assegurar uma vida humana digna. Destaca-se que a ampliação do rol dos direitos humanos e a sua tradicional classificação em gerações1 reflete tanto a evolução doutrinária do tema quanto demonstra que a definição “direito fundamental” é uma conquista histórica (RAMOS, 2002).

Os direitos humanos das primeiras declarações foram os chamados de “primeira geração” – direitos individuais. A esses direitos, somaram-se os direitos civis e políticos que possibilitaram a organização em associações de classe, participar de partidos políticos e da vida pública:

No século XIX, as propostas socialistas surgiram como uma alavanca ao processo histórico dos direitos humanos, que se encontravam em um impasse entre as pretensões formais e os direitos materiais propriamente ditos, aplicados seletivamente aos que possuíam propriedade. Em geral, homens, brancos e ricos. [...] No ápice do movimento socialista deu-se com a vitória da revolução soviética, em 1917. Nasce a “segunda geração de direitos humanos”, conhecidos como sociais e econômicos, que visam ao reconhecimento ao trabalho, à saúde, à educação. Esses direitos seriam incorporados aos textos constitucionais a partir do século XX e reafirmados com a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (TELES, 2006, p. 25).

Dornelles (2007) destaca a importância do movimento operário nesse processo de construção de direitos. Tal movimento demonstrou que o reconhecimento

1 A primeira geração de direitos humanos refere-se aos direitos individuais atribuídos a uma pretensa condição natural do indivíduo e expressam as lutas da burguesia revolucionária, com base na filosofia iluminista e na tradição doutrinária liberal, contra o despotismo dos antigos Estados absolutistas, requerendo assim a abstenção do Estado para o seu pleno exercício. A segunda geração dos direitos humanos refere-se aos direitos coletivos. Os direitos humanos deixam de ser entendidos apenas como direitos individuais e passam a incorporar a ideia de direitos coletivos de natureza social. Para dar conta da expansão conceitual a expressão “direitos sociais, econômicos e culturais” passa a ser utilizada. Entre os direitos fundamentais de natureza social, econômica e cultural estão o direito ao trabalho, direito à organização sindical, direito à previdência social, direito à greve, direito à educação gratuita, direito à uma remuneração digna, direitos trabalhistas, direito à moradia, etc. Os direitos dos povos ou os direitos da solidariedade compõem a terceira geração dos direitos humanos e são direitos a serem garantidos com o esforço conjunto do Estado, dos indivíduos, dos diferentes setores da sociedade e das diferentes nações (DORNELLES, 2002, p. 18-35).

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Direitos Humanos das Mulheres e a Lei Maria da Penha

de um direito não garantia o seu efetivo exercício. Não se tratava mais de admitir a existência de direitos naturais inerentes à pessoa humana. Os direitos sociais não teriam o intuito de limitar a intervenção e o poder do Estado, pois tais direitos passavam a exigir a ação do poder estatal para criar condições para o seu efetivo exercício. Tratava-se, portanto, não apenas de enunciar direitos, mas também de prever mecanismos adequados para a sua viabilização. Nesta perspectiva, Estado passaria a ser um grande promotor das garantias e direitos sociais.

Para Tosi (2010), os direitos humanos passam a ser valores que orientam o próprio direito e que o Estado e a sociedade realizam por meio de instituições. A partir de sua positivação, transformam-se em obrigações jurídicas que vinculam as relações internas e externas dos Estados e exigem para sua efetivação a implementação de instrumentos e garantias jurídicas de proteção desses direitos. Tais direitos também serão norteadoras de políticas públicas que possibilitarão que o Estado promova os direitos fundamentais de todos e de todas.

O reconhecimento dos direitos humanos assume outra dimensão e, segundo Dornelles (2007), tais direitos deixam de interessar unicamente aos Estados em particular e passam a ser interesse de toda a comunidade internacional. Assim, o que passou a caracterizar a evolução dos direitos humanos no século XX foi a sua progressiva incorporação no plano internacional, diferentemente do que ocorreu no século XIX que se caracterizou pelo reconhecimento dos direitos humanos em cada Estado. A ampliação dos mecanismos de proteção dos direitos humanos no plano internacional se expressa em diferentes documentos dentre os quais se destaca:

• Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem: primei-ra expressão do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, aprovada pela IX Conferência Interamericana, reunida na cidade de Bogotá entre março e maio de 1948;

• Declaração Universal dos Direitos do Homem: elaborada a par-tir da Carta das Nações Unidas que criou a Comissão de Direitos Humanos, aprovada em dezembro de 1948 na Assembléia Geral da ONU;

• Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José: aprovada na Conferência Especializada Interamericana sobre Di-

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reitos Humanos, realizada em San José – Costa Rica. Texto norma-tivo cujo objetivo é dar execução à proteção dos direitos e garan-tias a partir da definição das regras protetoras e prever a criação da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos;

• Declaração Universal dos Direitos dos Povos: aprovada em Argel em 1977. Documento enuncia princípios com a preocupação de construir uma nova ordem internacional mais solidária e coop-erativa.

Além desses documentos, outros de relevância passam a compor o sistema de proteção aos direitos humanos. Esse sistema, de acordo com Piovesan (2003), passa a ser integrado por instrumentos de alcance geral – Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – e por instrumentos específicos como as Convenções Internacionais que buscam responder a discriminação racial, a discriminação contra a mulher, a violação dos direitos das crianças, entre outras formas de violação. Passa a coexistir, de forma complementar, um sistema geral e um sistema especial de proteção dos direitos humanos. No segundo sistema realça-se a especificação do sujeito de direito visto em sua concretude e especificidade. Torna-se possível, dessa forma, assegurar às mulheres um tratamento específico que dê conta das particularidades e das diferenças, visando com isso assegurar que os direitos humanos sejam concretizados também para esta parcela da população.

a CONveNÇÃO sObRe a elImINaÇÃO De TODas as FORmas De DIsCRImINaÇÃO CONTRa a mUlHeR

A proclamação do Ano Internacional da Mulher e a realização, no México, da Conferência Mundial sobre a Mulher (em 1975) impulsionaram as Nações Unidas a aprovarem, em 1979, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a mulher – ratificada pelo Brasil em 1984 (PIOVESAN, 2003).

Essa Convenção tem como fundamento o compromisso de eliminar a discriminação contra a mulher, bem como assegurar a igualdade de direitos entre homens e mulheres. No preâmbulo, entre outras questões, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a mulher reafirma:

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Direitos Humanos das Mulheres e a Lei Maria da Penha

• a igualdade de direitos do homem e da mulher;

• a obrigação dos Estados em garantir a homens e mulheres a igual-dade de direitos;

• a discriminação contra a mulher como forma de violação dos princípios da igualdade de direitos e do respeito à dignidade hu-mana, constituindo-se em mecanismo que dificulta a participação feminina na vida política, social e cultural;

• a discriminação contra a mulher como um obstáculo para o bem-estar da sociedade, da família e que dificulta o pleno desenvolvi-mento das potencialidades da mulher, o desenvolvimento de um país e o bem-estar do mundo e obsta a paz;

• a necessidade de modificar o papel tradicional tanto do homem como da mulher na sociedade e na família para alcançar a plena igualdade de gênero.

A partir do preâmbulo, a referida Convenção em seu artigo 1º trata a discriminação contra a mulher como:

[…] toda distinção, exclusão ou restrição fundada no sexo e que tenha por objetivo ou consequência prejudicar ou destruir o reconhecimento, gozo ou exercício pelas mulheres, independentemente do seu estado civil, com base na igualdade dos homens e das mulheres, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.2

Nesta perspectiva, Piovesan (2003, p. 207) considera que “a discriminação significa sempre desigualdade”. Para a autora, se o combate à discriminação é medida emergencial à implementação do direito à igualdade, há que se conjugar medidas que coíbam a violência com políticas que acelerem a igualdade.

[...] a igualdade e a discriminação pairam sob o binômio inclusão-exclusão. Enquanto a igualdade pressupõe formas de inclusão social, a discriminação implica na violenta exclusão e intolerância à diferença e diversidade. O que se

2 DHNET. Direitos Humanos na Internet. Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/mulher/lex121.htm> Acesso em: 22 abr. 2009.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

percebe é que a proibição da exclusão, em si mesma, não resulta automaticamente na inclusão. Logo, não é suficiente proibir a exclusão, quando o que se pretende é garantir a igualdade de fato, com a efetiva inclusão social de grupos que sofreram e sofrem um persistente padrão de violência e discriminação. Neste sentido, como poderoso instrumento de inclusão social, situam-se as ações afirmativas. Essas ações constituem medidas especiais e temporárias que, buscando remediar um passado discriminatório, objetivam acelerar o processo de igualdade, com o alcance da igualdade substantiva por parte de grupos vulneráveis, como as minorias étnicas e raciais, as mulheres, dentre outros grupos (PIOVESAN, 2003, p. 199).

Com objetivo de eliminar a discriminação e acelerar a busca pela igualdade entre homens e mulheres, a Convenção, em seu artigo 4º, prevê a adoção de ações de discriminação positiva:

A adoção, pelos Estados Partes, de medidas especiais de caráter temporário visando acelerar a vigência de uma igualdade de fato entre homens e mulheres não será considerada discriminação, tal como definido nesta Convenção, mas de nenhuma maneira implicará, como consequência, na manutenção de normas desiguais ou distintas; essas medidas deverão ser postas de lado quando os objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento tiverem sido atingidos.3

Vale destacar que, conforme relata Piovesan (2003), esta Convenção é o instrumento internacional que mais recebeu reservas dentre as Convenções de Direitos Humanos. O Estado brasileiro que a ratificou em 1984 apresentou reservas ao artigo 15, §4º que assegura a homens e mulheres o direito de, livremente, escolher seu domicílio e residência; e ao artigo 16, §1º, (a), (b), (c), (g) e (h) que estabelece a igualdade de direitos entre homens e mulheres, no âmbito do casamento e das relações familiares. O Governo brasileiro apenas em dezembro de 1994 notificou o Secretário Geral das Nações Unidas acerca da eliminação dessas reservas.

Segundo a Convenção (art. 2º), os Estados-partes se comprometem com a implementação de uma política destinada a eliminar discriminação contra a mulher, possibilitando avanço na construção da igualdade de gênero:

Os Estados Partes condenam a discriminação contra as mulheres sob todas as suas formas, e concordam em seguir, por todos os meios apropriados e

3 Art. 4º da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher.

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Direitos Humanos das Mulheres e a Lei Maria da Penha

sem tardança, uma política destinada a eliminar a discriminação contra as mulheres, e para tanto, se comprometem a:

a) consagrar em suas constituições nacionais ou em outra legislação apropriada o princípio da igualdade dos homens e das mulheres, caso não o tenham feito ainda, e assegurar por lei ou por outros meios apropriados a aplicação na prática desse princípio;

b) adotar medidas legislativas e outras que forem apropriadas – incluindo sanções, se fizer necessário – proibindo toda a discriminação contra a mulher;

c) estabelecer a proteção jurisdicional dos direitos das mulheres em uma base de igualdade com os dos homens e garantir, por intermédio dos tribunais nacionais competentes e de outras instituições públicas, a proteção efetiva das mulheres contra todo ato de discriminação;

d) abster-se de incorrer em qualquer ato ou prática de discriminação contra as mulheres e atuar de maneira que as autoridades e instituições públicas ajam em conformidade com esta obrigação;

e) adotar as medidas adequadas para eliminar a discriminação contra as mulheres praticada por qualquer pessoa, organização ou empresa;

f) tomar todas as medidas apropriadas, inclusive de caráter legislativo, para modificar ou revogar leis, regulamentos, costumes e práticas que constituam discriminação contra as mulheres;

g) derrogar todas as disposições penais nacionais que constituam discriminação contra as mulheres.4

Esse compromisso do Estado brasileiro contribuiu para que a Constituição Federal de 1988 consagrasse o princípio da igualdade entre homens e mulheres. De acordo com Piovesan (2003), a Carta Magna trouxe dispositivos específicos voltados à mulher e consolidou o valor da igualdade, respeitando a diferença e a diversidade. Essa concepção exige, no entanto, duas metas básicas: o combate à discriminação e a promoção da igualdade, pois apenas o combate à discriminação torna-se insuficiente se não forem implementadas medidas voltadas para a promoção da igualdade que, por sua vez, mostra-se insuficiente se não se verificarem políticas de combate à discriminação.

4 Art. 2º da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

O processo de discriminação da mulher envolve inúmeros aspectos, conforme prevê a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. Este texto destacará a violência contra a mulher, considerada como forma de discriminar, subjugar e dominar, bem como reproduzir as desigualdades de gênero e violar os direitos humanos das mulheres.

Destaca-se um importante instrumento normativo que visa contribuir para a redução/eliminação da violência contra a mulher e a efetivação da igualdade de direitos entre homens e mulheres: a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.

a CONveNÇÃO INTeRameRICaNa paRa pReveNIR, pUNIR e eRRaDICaR a vIOlêNCIa CONTRa a mUlHeR

A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará, foi adotada, em 1994, pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos e ratificada pelo Brasil em 1995. Ela representou um grande avanço para a proteção dos direitos humanos das mulheres, pois de acordo Piovesan (2003), a Convenção de Belém do Pará é o primeiro tratado internacional de proteção de direitos humanos a reconhecer a violência contra a mulher como um fenômeno generalizado.

O preâmbulo da referida Convenção dispõe que:

[…] a violência contra a mulher transcende todos os setores da sociedade, independentemente de sua classe, raça ou grupo étnico, níveis de salário, cultura, nível educacional, idade ou religião, e afeta negativamente suas próprias bases.5

Ainda no preâmbulo, há o reconhecimento de que a violência contra a mulher constitui violação dos direitos humanos e das liberdades fundamentais e uma ofensa à dignidade humana e uma manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens.

5 DHNET. Direitos Humanos na Internet. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/oea/mulher2.htm> Acesso em: 22 abr. 2009.

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Direitos Humanos das Mulheres e a Lei Maria da Penha

A Convenção de Belém do Pará, dessa forma, conceitua a violência contra a mulher de forma ampla, tratando-a como uma ofensa à dignidade humana, uma manifestação de relações de poder desiguais entre mulheres e homens e reconhece que a eliminação da violência contra a mulher é condição indispensável para o desenvolvimento individual e social da mulher e sua plena e igualitária participação em todas as esferas da vida. Neste sentido, define, em seu artigo 1º, a violência contra a mulher como “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado”.6

Entende, em seu artigo 2º, que a violência contra a mulher inclui a violência física, sexual e psicológica e que independe da origem do agressor (família, comunidade ou Estado):

1. que tenha ocorrido dentro da família ou unidade doméstica ou em qualquer outra relação interpessoal, em que o agressor conviva ou haja convivido no mesmo domicílio que a mulher e que compreende, entre outros, estupro, violação, maus-tratos e abuso sexual:

2. que tenha ocorrido na comunidade e seja perpetrada por qualquer pessoa e que compreende, entre outros, violação, abuso sexual, tortura, maus tratos de pessoas, tráfico de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no lugar de trabalho, bem como em instituições educacionais, estabelecimentos de saúde ou qualquer outro lugar, e

3. que seja perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.7

Esses artigos reconhecem que a violação dos direitos humanos pode ocorrer no âmbito privado e que a esfera familiar e doméstica não pode ser um espaço no qual o Estado não pode interferir, pois é justamente nele que grande parte das violências contra as mulheres ocorrem.

O Capítulo II da Convenção, referente aos “Direitos Protegidos”, reconhece que “toda mulher tem direito a uma vida livre de violência, tanto no âmbito público como no privado”.8 Reconhece ainda (artigo 4º) que:

Toda mulher tem direito ao reconhecimento, gozo, exercícios e proteção de todos os direitos humanos e às liberdades consagradas pelos instrumentos

6 Art. 1º da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher. 7 Art. 2º da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher. 8 Art. 3º da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.

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regionais e internacionais sobre direitos humanos. Estes direitos compreendem , entre outros:

1. o direito a que se respeite sua vida;

2. o direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral;

3. o direito à liberdade e à segurança pessoais;

4. o direito a não ser submetida a torturas;

5. o direito a que se refere a dignidade inerente a sua pessoa e que se proteja sua família;

6. o direito à igualdade de proteção perante a lei e da lei;

7. o direito a um recurso simples e rápido diante dos tribunais competentes, que a ampare contra atos que violem seus direitos;

8. o direito à liberdade de associação;

9. o direito à liberdade de professar a religião e as próprias crenças, de acordo com a lei;

10. o direito de ter igualdade de acesso às funções públicas de seu país e a participar nos assuntos públicos, incluindo a tomada de decisões.9

O direito a uma vida livre de violência inclui “o direito da mulher ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados de comportamento e práticas sociais e culturais baseados em conceitos de inferioridade de subordinação”.10

Os Estados-partes concordam com a adoção de políticas orientadas a prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher e adotem medidas que visem modificar os padrões socioculturais de conduta de homens e mulheres. Concordam também a partir da previsão dos Artigos 7º e 8º em:

adotar em sua legislação interna normas penais, civis e administrativas necessárias para esse fim; adotar medidas jurídicas que exijam do agressor abster-se de fustigar, perseguir, intimidar, ameaçar, machucar ou pôr em perigo a vida da mulher de qualquer forma que atente contra sua integridade ou prejudique sua propriedade;

9 Art. 4º da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher. 10 Art. 6ºb da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher.

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estabelecer procedimentos jurídicos justos e eficazes para a mulher que tenha sido submetida à violência, que incluam, entre outros, medidas de proteção, um julgamento oportuno e o acesso efetivo a tais procedimentos;

aplicar os serviços especializados apropriados para o atendimento necessário à mulher objeto de violência, por meio de entidades dos setores público e privado, inclusive abrigos, serviços de orientação para toda a família, quando for o caso, e cuidado e custódia dos menores afetados.

A Convenção de Belém do Pará possibilitou que casos de violência contra mulher sem tratamento jurídico adequado no âmbito nacional se transformassem em denúncias de violação de direitos humanos para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Piovesan (2009) analisa 78 casos admitidos pela Comissão Interamericana contra o Estado brasileiro, no período de 1970 a 2004, dentre os quais três referem-se a denúncias de violência contra a mulher, fundamentadas na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher:

O caso 11996 é de Márcia Cristina Rigo Leopoldi, estudante de Arquitetura, estrangulada em sua própria casa pelo ex-namorado em 10 de março de 1984. O assassino foi condenado a quinze anos de reclusão, mas após concessão da Habeas corpus – afastada posteriormente – foragiu e não foi preso. Este é o primeiro caso contra o Estado Brasileiro baseado na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Os peticionários requerem a condenação do Brasil pela afronta ao direito assegurado à mulher a uma vida livre de violência e o dever do Estado em atuar no sentido de prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher.

O caso 12051 denuncia o Estado brasileiro no mesmo sentido e refere-se à violência cometida por seu então companheiro contra Maria da Penha Maia Fernandes. Este caso leva à condenação do Brasil, no âmbito do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. Em cumprimento à decisão da Comissão, o Estado Brasileiro adotou a Lei n. 11.340/2006 que cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

O caso 12263 refere-se ao assassinato da estudante Márcia Barbosa de Souza em João Pessoa (Paraíba) em junho de 1998. O principal acusado era deputado estadual e, em decorrência da imunidade parlamentar, só poderia ser processado

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criminalmente com autorização da Assembleia Legislativa do Estado que por duas vezes indeferiu pedido neste sentido.

Para a autora esses casos denunciam um padrão específico de violência que alcança as mulheres:

Trata-se da violência baseada no gênero, capaz de causar morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, seja na esfera pública, seja na esfera privada. Reconhece-se assim que o domínio do privado não é mais indevassável quando ocorre violação a direitos humanos. Embora esse padrão específico de violência seja distinto dos demais padrões até então examinados – em que os próprios agentes estatais atuam como agentes perpetradores na esfera pública –, os casos se assemelham aos demais casos na medida em que, do mesmo modo, requerem o combate à impunidade, acentuando o dever do Estado em investigar, processar e punir agentes responsáveis (PIOVESAN, 2009, p. 328-329).

A Convenção de Belém do Pará e a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher revelam a urgência de se eliminar a discriminação e a violência contra a mulher e promover a igualdade material e substantiva. Tais convenções buscam proteger o valor da igualdade, baseada no respeito à diferença e a aplicação desses instrumentos pode contribuir para a promoção dos direitos humanos das mulheres. Conforme lembra Piovesan (2003), os direitos humanos das mulheres são parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais, pois não há direitos humanos sem a observância dos direitos humanos das mulheres, ou seja, não há direitos humanos sem que a metade da população exerça em igualdade de condições, os direitos fundamentais.

A partir da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher e da condenação do Estado Brasileiro no caso 12051, o Brasil passou a adotar medidas para coibir a violência doméstica, entre elas destaca-se a Lei Maria da Penha – Lei n. 11.340/2006.

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Direitos Humanos das Mulheres e a Lei Maria da Penha

a leI maRIa Da peNHa

A Lei n. 11.340/200611, conhecida como Lei Maria da Penha, sancionada em 07 de agosto de 2006 pelo Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, representa uma resposta do Estado brasileiro às inúmeras violações dos direitos humanos das mulheres vítimas da violência doméstica e familiar no país e uma importante conquista da luta das mulheres e de toda sociedade brasileira.

A Lei Maria da Penha foi assim chamada em homenagem à farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, uma das vítimas da violência doméstica no país.

Essa discussão inicial nos remete ao ano de 1983, em Fortaleza, Estado do Ceará, época em que Marcos Antonio Herredia, então marido de Maria da Penha, em ato flagrantemente premeditado, tentou matá-la por duas vezes. Na primeira vez simulou um assalto e, enquanto ela dormia, desferiu-lhe um tiro de espingarda, deixando-a paraplégica. Não contente, ele ainda tentou eletrocutá-la no banho por meio de uma descarga elétrica, pouco tempo após essa primeira tentativa de homicídio. A ação premeditada foi reforçada a partir dos seguintes fatos: semanas antes da agressão, Heredia tentou convencer Maria da Penha a fazer um seguro de vida em favor dele e, alguns dias antes de agredi-la, tentou obrigá-la a assinar documento de venda de carro, de propriedade dela.

As agressões deixaram marcas físicas (paraplegia irreversível) e psicológicas. A dor de Maria da Penha, no entanto, foi canalizada para a luta em defesa do fim da violência contra a mulher (SOUZA, 2008).

A partir de então Maria da Penha iniciou uma longa luta para que seu agressor fosse condenado e punido pelo seu crime. O caso demorou oito anos para se ter uma decisão do Júri que somente em 1991 proferiu sentença condenatória contra Heredia, aplicando-lhe 15 anos de prisão (que poderia ser reduzida a dez por não

11 BRASIL. Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do §8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm> Acesso em: 03 mar. 2009.

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haver condenação anterior). Após apelação da defesa (apresentada extemporaneamente), em 1995, a condenação foi anulada, aceitando-se a alegação apresentada pela defesa de que houve vícios na formulação de perguntas aos jurados. Novo julgamento ocorreu em 1996 e condenou Heredia a dez anos e seis meses de prisão. Houve uma segunda apelação alegando que o réu teria sido julgado ignorando-se as provas dos autos. Maria da Penha juntamente com o Centro pela Justiça e o Direito Internacional e o Comitê Latino-Americano de Defesa da Mulher apresentou, em 1998, denúncia contra o Brasil à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos12.

Rogério Cunha e Ronaldo Pinto relatam que o caso chegou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA), sediada em Washington, Estados Unidos, cuja principal tarefa consiste na análise de petições apresentadas com denúncias de violações de direitos humanos. Qualquer indivíduo (incluindo a vítima da violação), grupo ou organização não governamental (ONG) legalmente reconhecida tem legitimidade para formular tais petições. Em 20 de agosto de 1998, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recebeu a denúncia do crime de violência doméstica apresentada por Maria da Penha. O Brasil se omitiu em responder as indagações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos; em 1998 quando solicitado para prestar informações, nada respondeu; em 1999, reiterado o pedido de informações, novamente não respondeu; em 2000, também não respondeu aos pedidos de esclarecimento. Frente à inércia do Estado brasileiro foi aplicado o artigo 39 do Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, presumindo-se verdadeiros os fatos relatados na denúncia (CUNHA e PINTO, 2008).

Frente a esses fatos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos publicou o Relatório 54/2001 que culminou, anos mais tarde, com a Lei Maria da Penha:

Mais especificamente quanto ao caso concreto, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos assim se pronunciou: “A Comissão recomenda ao Estado que proceda uma investigação séria, imparcial e exaustiva para determinar a responsabilidade penal do autor do delito de tentativa de homicídio em prejuízo da Senhora Fernandes e para determinar se há outros fatos ou ações de agentes estatais que tenham impedido o processamento rápido e efetivo do responsável; também recomenda a reparação efetiva e pronta da vítima e a adoção de

12 Dados retirados do Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos n. 54/01, caso 12.051 – Maria da Penha Maia Fernandes apresentado por Amini Haddad Campos e Lindinalva Rodrigues Corrêa – Direitos Humanos das Mulheres – editora Juruá, 2009.

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Direitos Humanos das Mulheres e a Lei Maria da Penha

medidas, no âmbito nacional, para eliminar essa tolerância do Estado ante a violência doméstica contra mulheres”(CUNHA e PINTO, 2008, p. 25).

O Relatório foi enviado ao Estado brasileiro em março de 2001 para que em um mês fossem cumpridas as suas recomendações. Nesta fase, houve novamente omissão do Brasil. Frente ao não cumprimento, a Comissão tornou público o teor do relatório e o Estado Brasileiro é condenado a pagar uma indenização de 20 mil dólares em favor de Maria da Penha, que foi imposta ao Estado do Ceará (CUNHA e PINTO, 2008).

Assim, conforme resgata Souza (2008), o nome atribuído à Lei 11.340/06 encontra razão de ser na luta desenvolvida pela vítima Maria da Penha diante da inoperância da legislação brasileira:

Ressalte-se que a luta da biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes não se deu apenas no âmbito interno, tendo ela o discernimento de levar a sua batalha pelos direitos humanos das mulheres aos campos internacionais, principalmente pela omissão brasileira em implementar medidas investigativas e punitivas contra o agressor, dentro do denominado razoável prazo de duração do processo, o que culminou com uma condenação do Estado brasileiro perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão da OEA (SOUZA, 2008, p. 30).

O caso de Maria da Penha e toda a sua luta para ter o reconhecimento de seus direitos não retratam um fato isolado. Os dados sobre violência no Brasil confirmam a assertiva da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher de que a violência contra a mulher é um fenômeno generalizado. Existem em nosso país inúmeras vítimas da violência, particularmente da doméstica, são “Marias” de todas as camadas sociais, de diversas etnias, de diferentes idades e distribuídas por todo o país e que continuam a sofrer as atrocidades e a violência daqueles que se espera afeto e proteção. A existência dessas mulheres, a busca da igualdade de direitos entre homens e mulheres, bem como a necessidade da efetivação dos direitos humanos das mulheres é a razão necessária e talvez suficiente para justificar a existência da Lei Maria da Penha13.

13 A Lei Maria da Penha teve como referência básica a Constituição Federal, a Convenção para Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (LIMA, 2007).

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Para Souza (2008) é patente a desigualdade existente entre os gêneros, pois as mulheres aparecem como parte que mais sofre as discriminações e violências, não só físicas, mas também culturais. Neste sentido, a existência de uma discriminação em favor da mulher tem o claro objetivo de dotá-la de uma especial proteção para permitir que o gênero feminino tenha compensações que equiparem as mulheres à situação vivida pelos homens. A Lei Maria da Penha constitui, dessa forma, uma política ou ação afirmativa no sentido de possibilitar que, em relação à questão da violência, as mulheres alcancem o respeito à sua dignidade enquanto ser humano, bem como atinjam a igualdade de condições em relação aos homens, estando em consonância com a Constituição Federal de 1988.

Até o advento da Lei Maria da Penha, a violência doméstica não mereceu a devida atenção, nem da sociedade, nem do legislador e tampouco do Judiciário, sendo tratada como situações que ocorriam no âmbito privado, prevalecia que “em briga de marido e mulher ninguém põe a colher” (DIAS, 2007).

Os crimes de violência contra a mulher, antes da Lei Maria da Penha, eram atendidos nos Juizados Especiais Criminais que, de acordo com artigo 60 da Lei 9.099/95, têm competência para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor poder ofensivo. O artigo 61 da referida lei define tais infrações:

Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa (Redação dada pela Lei n. 11.313, de 2006).14

Frente à inexistência de lei específica que tipificasse a violência doméstica contra a mulher, tal violação de direitos das mulheres era tratada como sendo um crime de menor poder ofensivo e, dessa forma, suas punições tão brandas que não contribuíam de forma satisfatória para inibir ou prevenir a violência contra a mulher. A Lei Maria da Penha prevê, conforme artigo 41, que independente da pena, não se aplica mais a Lei 9.099/95 para casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. As penas de cestas básicas ou outras de prestação pecuniária ou a substituição de pena por pagamento isolado de multa também passam a ser vedadas: 14 BRASIL. Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9099.htm> Acesso em: 03 mar. 2009.

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Houve uma vulgarização na aplicação desse tipo de pena e de sua variação (cestas básicas), a situações onde efetivamente ela não atingia os objetivos preventivos e tampouco a reprovação do crime (CP, art. 59) e então, ao invés de buscar mecanismos de correção de aplicação dessa importante modalidade de pena, que em diversas situações termina por valorizar a vítima, o legislador radicalizou ao extremo e preferiu vedá-la (SOUZA, 2008, p. 114).

A Lei n. 11.340/06 retira dos Juizados Especiais Criminais a competência para julgar os crimes de violência doméstica e familiar, tipificando tais crimes. No artigo 1º são apresentadas as finalidades da lei:

Art. 1º. Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do §8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.15

A proteção diferenciada para a mulher em situação de violência doméstica justifica-se pela sua condição peculiar, pois ela ocorre em um espaço onde nem sempre há quem preste socorro e, muitas vezes, a vítima depende do agressor afetiva e financeiramente. Essa realidade deve estar presente na aplicação da lei e pode inclusive contribuir para formar argumentos no sentido de afastar ou enfrentar discussões sobre a inconstitucionalidade da lei (CUNHA e PINTO, 2008).

Assim, a Lei Maria da Penha revela-se necessária devido ao grave quadro de violência contra a mulher presente no país e aos desequilíbrios de poder entre homens e mulheres, justificando assim um tratamento diferenciado e adequado à realidade das mulheres vítimas de violência:

Não há como exigir que o desprotegido, o hipossuficiente, o subalterno, formalizem queixa contra seu agressor. Esse desequilíbrio também ocorre no âmbito das relações afetivas, já que, em sua maciça maioria, a violência é perpetrada por maridos, companheiros ou pais contra mulheres, crianças e adolescentes. Apesar da igualdade entre os sexos estar ressaltada enfaticamente na Constituição Federal, é secular a discriminação que coloca a mulher em posição de inferioridade e subordinação frente ao homem. A desproporção,

15 Art. 1º da Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006.

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quer física, quer de valoração social, entre o gênero masculino e feminino, não pode ser olvidada (DIAS, 2007, p. 22).

A mulher passa a contar com um precioso estatuto, sendo sua aplicação uma exigência das estatísticas que demonstram a situação de verdadeira calamidade pública que assumiu a agressão contra as mulheres (CUNHA e PINTO, 2008).

Para Souza (2008), o termo “violência doméstica” apresenta o mesmo significado de “violência familiar” ou “violência intra-familiar”, circunscrevendo-se aos atos de maltrato desenvolvidos no âmbito domiciliar, residencial ou em relação a um lugar onde habite um grupo familiar. A Lei objetiva garantir a proteção da mulher enquanto ser humano mais suscetível de sofrer com o fenômeno da violência e levando em conta que é no seio do grupo familiar que a mulher mais sofre violências praticadas principalmente pelo seu marido, companheiro ou convivente, pai e irmão. O tratamento desigual de homens e mulheres é justamente o que possibilitará o alcance da real igualdade de gênero. O autor defende que, enquanto política afirmativa, uma vez atingida a igualdade entre homens e mulheres no âmbito da violência doméstica e familiar, deve-se passar a ter um tratamento isonômico entre os gêneros, mas isto não é a situação atual.

A violência doméstica e familiar é considerada como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”16 e “constitui uma das formas de violação dos direitos humanos”17.

São evidentes as mudanças na forma de perceber a violência e seu respectivo tratamento a partir do advento da Lei Maria da Penha. O quadro 1 apresenta as inovações da lei, comparando o tratamento dado às vítimas de violência doméstica e familiar contra a mulher antes e depois da Lei ser sancionada.

16 Art. 5º da Lei 11.340/2006.17 Art. 6º da Lei 11.340/2006.

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Direitos Humanos das Mulheres e a Lei Maria da Penha

Quadro 1: Violência doméstica antes e depois da Lei Maria da Penha

antes da lei maria da penha Depois da lei maria da penhaNão existia lei específica sobre violência domé-stica contra a mulher.

Tipifica e define a violência doméstica e famil-iar contra a mulher.

Não estabelece formas desta violência. Estabelece as formas da violência doméstica – física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.

Aplica a Lei dos Juizados Especiais Criminais que julgam crimes de menor poder ofensivo.

Retira dos Juizados Especiais a competência para julgar os crimes de violência doméstica.

Permite a aplicação de penas pecuniárias como as de cestas básicas e multa.

Proíbe a aplicação destas penas.

Os Juizados Especiais tratam apenas do crime. Para resolver outras questões (separação, pen-são, guarda de filhos) tem que ingressar com processo na Vara da Família.

São criados os Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher com competência cível e criminal para abranger todas as questões.

A mulher pode desistir da denúncia na delega-cia.

A mulher somente renuncia perante o juiz.

A mulher entrega a intimação para o agressor comparecer em audiência.

É vedada a entrega da intimação pela mulher ao agressor.

Não é utilizado prisão em flagrante do agressor. Possibilita a prisão em flagrante.Não prevê a prisão preventiva para os crimes de violência doméstica

Altera o Código do Processo Penal para pos-sibilitar ao juiz a decretação da prisão preven-tiva quando houver risco à integridade física ou psicológica da mulher.

A mulher vítima geralmente não é informada sobre o andamento dos atos processuais.

A mulher vítima será notificada dos atos pro-cessuais, especialmente quanto ao ingresso e saída da prisão do agressor.

A mulher vítima em geral vai desacompanhada de advogado ou defensor público em audiên-cia.

A mulher vítima deverá ser acompanhada de advogado ou defensor público em todos os atos processuais.

A pena é de 6 meses a 1 ano. A pena passa a ser de 3 meses a 3 anos.Não prevê o comparecimento do agressor a programas de recuperação e agressão.

Altera a Lei de Execuções Penais para permitir que o juiz determine o comparecimento obrig-atório do agressor a programas de recuperação e reeducação.

Fonte: secretaria Nacional sobre a mulher Trabalhadora da CUT a partir de informações da secretaria especial de políticas para as mulheres, 2008, p. 28.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

A partir do quadro comparativo, pode-se verificar que os mecanismos criados pela Lei Maria da Penha para coibir e prevenir a violência doméstica são amplos, envolvendo formas de assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar, medidas de prevenção, formas de atendimento pela autoridade policial, procedimentos judiciais, medidas protetivas de urgência, assistência judiciária.

Embora se possa questionar sobre a eficácia dos processos punitivos, deve-se considerar que a Lei Maria da Penha cumpre um importante papel de acabar com a impunidade dos crimes contra a mulher. Uma sociedade que prevê mecanismos de punição para diferentes crimes, quando deixa de punir outros – violência contra a mulher, por exemplo – envia uma mensagem clara de desvalorização da vítima (mulher), de aceitação da impunidade e de estímulo para que a violência perdure. A Lei prevê punição sim, não para os homens, mas para os homens que cometem crimes contra a mulher – o que é condenável e deve receber tratamento condizente com a gravidade que representa essa questão, a exemplo do que ocorre em outras esferas criminais.

A punição, no entanto, nem sempre dá resultados sociais satisfatórios, pois não consegue evitar que a violência ocorra, embora possa inibir. A prevenção revela-se importante, pois o que se deseja é eliminar a violência. A lei, neste aspecto, além das medidas punitivas, busca também coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher por meio de medidas de prevenção à violência. O artigo 8º da Lei Maria da Penha prevê diretrizes de uma política pública por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, visando, entre outras questões:

à promoção de busca de dados com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, concernentes às causas, às consequências e à frequência da violência doméstica e familiar contra a mulher;

ao respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar;

à implementação de atendimento policial especializado para as mulheres, em particular nas Delegacias de Atendimento à Mulher e a capacitação permanente das Polícias Civil e Militar, da Guarda Municipal, do Corpo de Bombeiros e dos

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Direitos Humanos das Mulheres e a Lei Maria da Penha

profissionais pertencentes aos órgãos e às áreas do Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Segurança Pública, Assistência Social, Saúde, Educação, Trabalho e Habitação quanto às questões de gênero e de raça ou etnia;

à promoção e à realização de campanhas educativas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao público escolar e à sociedade em geral, bem como à promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, com destaque nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher.

Conforme destaca Dias (2007), a violência sofrida pela mulher é responsabilidade sobretudo do agressor, mas também da sociedade que ainda cultiva valores que incentivam a violência. O fundamento é cultural e decorre de desigualdades de poder entre homens e mulheres que acabam sendo referendadas pelo próprio Estado. A sociedade protege a agressividade dos homens que se veem como superiores, mais fortes e proprietários do corpo e da vontade da mulher e dos filhos.

Dessa forma, a lei soma esforços no sentido de construir a igualdade, pois a equiparação entre homens e mulheres não depende apenas de processos punitivos, mas também de ações que colaborem para a mudança de uma cultura na sociedade, estimulando a ideia da equidade de gênero e do respeito aos direitos humanos de mulheres e homens, objetivos que podem ser observados na lei.

CONsIDeRaÇões FINaIs

A Lei Maria da Penha representa importante mecanismo e um avanço no combate à violência doméstica, podendo contribuir para mudanças de cultura no âmbito doméstico e para que as relações no âmbito privado possam ser estabelecidas a partir de parâmetros de respeito aos direitos fundamentais. As estatísticas sobre violência doméstica e familiar revelam que o direito à vida, à segurança, à saúde, à educação não tem se efetivado para um número significativo de mulheres, assim a lei

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

visa efetivar o direito de viver sem violência, resgatando a mulher como ser sujeito de direitos.

A Lei 11.340/06 revela-se inovadora ao expandir o conceito restrito de violência e considerar como violência não só a física, mas também a psicológica, sexual, patrimonial e moral, assumindo dessa forma, a conceituação de violência da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher. Destacamos que a efetivação dos direitos humanos é um processo complexo que, atualmente envolve mecanismos internos e internacionais para cuja existência teve contribuição decisiva de movimentos sociais que visavam ampliar a noção de direitos humanos e de sujeito de direitos. Deve-se destacar ainda a contribuição desses movimentos no sentido de exigir que o Estado implemente políticas públicas que possibilitem que seus direitos sejam garantidos, particularmente no que tange aos direitos que exigem uma ação estatal, dentre os quais os direitos sociais.

Podemos considerar que, historicamente, a efetivação de direitos de determinados grupos sociais esteve associada à organização e luta desses sujeitos. Tais lutas possibilitaram que parcelas da população injustamente excluídas dos benefícios sociais fossem consideradas na expressão genérica “todo ser humano tem direito” ou na expressão “todos são iguais perante a lei” e, dessa forma, reconhecidas como sujeitos de direitos.

Destacamos que a efetivação do direito à igualdade – essencial para a consolidação dos direitos fundamentais de todo ser humano – pressupõe o reconhecimento do direito à diferença.

No que tange aos direitos humanos das mulheres ainda enfrentamos o desafio de eliminar as várias formas de manifestação de violência contra a mulher. O reconhecimento do princípio da igualdade pela Constituição Federal de 1988, a Lei Maria da Penha e a ratificação de tratados e convenções internacionais, como a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, consistem em conquistas importantes na efetivação dos direitos fundamentais das mulheres e avanço para o enfrentamento da violência contra a mulher, proporcionado às vítimas e seus familiares instrumentos que tanto previnem quanto desempenham papel punitivo para ações que violem o direito da mulher a ter uma vida sem violência.

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Direitos Humanos das Mulheres e a Lei Maria da Penha

Há muitos desafios ainda a serem enfrentados, mas uma importante barreira para a efetivação dos direitos das mulheres e a concretização da igualdade real entre homens e mulheres começou a ser superada: leis que discriminam e não contribuem para a igualdade real passam a ser substituídas por leis que têm entre seus princípios a igualdade e o respeito à dignidade das mulheres.

Pode-se considerar que a Lei Maria da Penha é um instrumento que contribui para concretizar a igualdade, respeitando a condição peculiar que se encontra a mulher vítima de violência e consequentemente contribuindo para a efetivação do direito à vida sem violência.

A eliminação das violências de gênero, no entanto, exigirá mudanças nas relações de poder entre homens e mulheres e a construção da autonomia das mulheres. A aliança entre homens e mulheres com objetivo de construir uma sociedade com justiça social, o que pressupõe a igualdade de gênero, deve ser construída, pois juntos(as) podem e devem construir relações igualitárias.

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ReFeRêNCIas

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BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do §8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340. htm> Acesso em: 03 mar. 2009.

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GÊNERO: FLASHES DE UMA CONSTRUÇÃO

Nadia Veronique Jourda KovaleskiCintia de Souza Batista Tortato

Marilia Gomes de Carvalho

INTRODUÇÃO

Nos tempos atuais, especialmente nas questões que envolvem direitos humanos e desigualdades sociais, a palavra gênero tem sido frequentemente mencionada. A adoção de uma palavra pode ser insuficiente para simbolizar ou carregar questões sociais tão amplas. Assim, numa primeira abordagem o termo pode parecer polissêmico e talvez redundante.

Polissêmico porque poucas pessoas lhe dão um sentido unívoco. De fato, para alguns, gênero é um conceito para outros uma ferramenta, uma base, um catalisador, uma epistemologia, um paradigma, um mecanismo, uma dimensão (LOUIS, 2005). Distinguem-se estudos de gênero ou sobre gênero; a palavra pode ser usada no singular ou no plural. Existem pesquisas sobre o gênero no mundo, o gênero nos Estados Unidos, o gênero das políticas do tempo de trabalho, o gênero do capital social, mas também gênero e cultura, gênero e família, gênero e espaço publico, gênero e globalização, gênero e poder etc. (LOUIS, 2005).

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

Redundante porque se gênero designa simplesmente o sexo como socialmente construído não se entende o uso de um termo novo. De fato, os usos do termo sexo (o sexo fraco, a guerra dos sexos) já implicam o social.

Na verdade, questionamentos surgem cada vez que se tenta distinguir o social do biológico a respeito da realidade humana: construção social significa que tudo foi construído? O que é construído? O fato que as mulheres e os homens têm direitos desiguais? A obrigação para os homens de ter um comportamento “masculino” e as mulheres um “feminino”? O que advêm do sexo uma vez que foi extraído o gênero?

Para entender o conceito de gênero e todos os questionamentos relacionados, é necessário um retorno às raízes históricas e sociais que serviram de pano de fundo para o surgimento desse termo – gênero1 – no contexto mundial e no contexto brasileiro.

ORIGeNs

A antropóloga Margaret Mead, nos anos 1930, é uma das primeiras pesquisadoras a falar de “papéis sexuais”; no seu livro “Sexo e temperamento” ela comenta sobre suas pesquisas com tribos indígenas:

Nem os Arapesh nem os Mundugumpr2 sentem a necessidade de instituir uma diferença entre os sexos. O ideal Arapesh é um homem doce e sensível, casado com uma mulher igualmente doce e sensível. Para os Mundugumor, é aquele de um homem violento e agressivo, casado com uma mulher violenta e agressiva também (MEAD apud BERENI et al., 2008, p. 18).

Constata-se neste trecho que o temperamento não provém diretamente do sexo biológico, mas é diversamente construído pelas sociedades.

Nos anos 1950 e 1960 médicos psicólogos americanos que queriam explicar a difração constatada entre corpo e identidade por alguns pacientes, distinguiram sexo biológico e gênero sociocultural (THÉBAUD, 2005).

1 “Gênero é uma palavra que necessariamente pede uma explicação a respeito de seu significado. Serve para classificar fenômenos os mais diversos tais como gêneros de literatura, de cinema, de música, dos seres vivos na escala biológica, enfim é um termo classificatório” (CARVALHO e TORTATO, 2009, p. 21).2 Tribos indígenas que habitavam a Nova Guiné (SEIXAS, 1998).

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Gênero: Flashes de uma Construção

Em 1949, o livro de Beauvoir (2000, p. 7) O Segundo Sexo já fazia uma distinção entre a fêmea e a mulher:

Todo mundo concorda em que há fêmea na espécie humana; constituem hoje, com outrora, a metade da humanidade; e, contudo dizem-nos que a feminilidade “corre perigo”; exortam-nos: “Sejam mulheres, permaneçam mulheres, tornem-se mulheres”. Todo ser humano do sexo feminino não é, portanto, necessariamente mulher; cumpre-lhe participar dessa realidade misteriosa e ameaçada que é a feminilidade. Será essa secretada pelos ovários? Ou estará congelada no fundo de um céu platônico? E bastará uma saia ruge-ruge para fazê-la descer à terra?

No entanto, em 1968, é o livro do psicanalista americano Robert Stoller Sex and Gender que populariza a noção de gênero entre os psicólogos e os pesquisadores de ciências sociais (THÉBAUD, 2005; BERENI et al., 2008) 3.

Nos anos 70, os sexólogos John Money e Anke Erhardt consideraram necessário distinguir o papel de gênero (gender role) que designava os comportamentos públicos de uma pessoa, da identidade de gênero (gender identity) que se referia à experiência privada que tem de si mesma (BERENI et al., 2008).

Em 1972, a socióloga britânica Ann Oakley retomou essas noções no livro intitulado Sex, Gender and Society no qual ela definiu o primeiro termo como referente à natureza, às diferenças anatômicas e biológicas entre homens e mulheres, machos e fêmeas como sendo um fato invariante e o segundo termo à cultura e à classificação social e cultural entre masculino e feminino, sendo ele contingente (BERENI et al., 2008; THÉBAUD, 2005).

Assim, o termo nasce da transferência cultural de uma disciplina a outra: antropologia, psicologia, sociologia, sexologia. No entanto, Thébaud (2005, p. 61) argumenta que

resulta também [...] de insatisfações ressentidas em relação a uma história e uma sociologia no feminino que correm o risco de conformar o mito de uma natureza feminina e de uma condição feminina atemporal e de apresentar as mulheres como um grupo homogêneo; existe também o receio de desenvolver uma ciência a parte sem efeito sobre o conteúdo das disciplinas.

3 Robert Stoller revelou a complexidade entre a relação genitália e gênero ao pesquisar casos de genitália ambígua (LAQUEUR, 2001).

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

Bereni et al. (2008, p. 16) argumentam:

O que faz a originalidade do gênero [...] é que ele permite apreender o social como uma parte autônoma dotada de uma causalidade própria irredutível às leis biológicas. Essa “desnaturalização” é uma questão política principal: se a invocação da natureza serve sempre a justificar as desigualdades, a colocação da história em destaque contribui ao contrário, a tornar essas desigualdades mais arbitrárias [...] e facilita o seu questionamento.

O uso do conceito de gênero é concomitante à segunda onda do feminismo4 dos anos sessenta e setenta, no entanto o uso efetivo do termo pelas pesquisadoras feministas começou nos anos oitenta. Nos Estados Unidos essas pesquisas conhecidas como gender studies5 tiveram seu início num período anterior à França e outras partes da Europa e da America Latina. Para Silva (2003), na França começou-se a tratar de gênero no final dos anos 806. Segundo Perrot (1995, p. 21):

Os pontos de vista da historiografia francesa também se transformaram, creio eu, de maneira similar aos da historiografia norte-americana. Ambas partem de uma história das mulheres um pouco restrita para uma história sobre gender, sobre relações entre os sexos; partem de uma história social em direção a uma história mais preocupada com as representações e consciente da importância dos símbolos, refletindo intensamente acerca de algumas noções, tais como “cultura” e “poder” das mulheres – ainda hoje a questão do poder político chama a atenção.

Os estudos sobre mulheres, no entanto, continuaram a ser feitos em paralelo aos estudos de gênero, pois muitas pesquisadoras e pesquisadores mantiveram o foco na historiografia das mulheres. Nesse sentido Perrot (1995, p. 25) diz:

4 O feminismo designa uma perspectiva política apoiando-se na convicção que as mulheres sofrem uma injustiça específica e sistemática enquanto mulher, e que é possível e necessário acabar com essa injustiça com lutas individuais e coletivas. Se o feminismo, enquanto discurso, tem raízes históricas antigas (século XV) é só a partir do século XIX que ele se estrutura politicamente. O que é comumente chamado de feminismo da segunda onda corresponde às lutas dos anos sessenta e setenta que denunciaram o lado político de questões consideradas até então como privadas: contracepção, aborto, sexualidade, casamento. A primeira onda corresponde às lutas pelo voto e à educação do início do século XX. 5 Para Rago (1998, p. 89): Em 1990 os gender studies já estavam adiantados nos Estados Unidos e a controvérsia em torno da “história das mulheres”, ou do “estudo das relações de gênero”, parecia superada em favor do último.6 Segundo Rago (1998), havia uma resistência por parte das pesquisadoras francesas em utilizar o termo gênero.

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Gênero: Flashes de uma Construção

Creio que a história sobre gênero é uma área de pesquisa histórica perfeitamente legítima e extremamente útil. Porém, é preciso não confundi-la com uma história das mulheres e não tentar suprir, através dela, a carência de uma história social das mulheres.

Algumas pesquisadoras falam em uma “transformação dos Estudos da mulher em Estudos de Gênero” (YANNOULAS, VALLEJOS E LENARDUZZI, 2000, p. 429). Outras, como Michelle Perrot veem como dois campos de estudos distintos, mas interligados. Para Machado (1998) houve uma passagem dos estudos sobre mulheres para os estudos de gênero e isto representou um avanço, pois superou impasses metodológicos de pesquisa.

esTUDOs sObRe mUlHeRes e esTUDOs De GêNeRO. Nos primórdios dos estudos feministas dos anos sessenta e setenta, tanto

nos Estados Unidos como na Europa e no Brasil, a categoria usada era “mulher”. A partir dessa categoria as relações eram consideradas partindo de um pressuposto que ocultava as diferenças entre as lutas das próprias mulheres7. Era um termo que generalizava ao mesmo tempo em que se opunha à categoria “homem”. As especificidades e as questões sociais relacionadas às mulheres conforme sua origem social, etnia, condição socioeconômica, etc. tornaram impossível considerá-las numa categoria única e uniforme8. No sentido de considerar as diferenças dentro das próprias lutas o feminismo passou a adotar a categoria “mulheres”. Paralelamente as estudiosas e os estudiosos da questão intensificaram pesquisas históricas sobre as condições das mulheres na sociedade considerando que o entendimento das raízes históricas da subordinação feminina é decisivo para as lutas pela igualdade social9.

7 Conforme Schiebinger (2001, p. 26): As mulheres nunca constituíram um grupo cerrado com interesses, antecedentes, valores, comportamentos e maneirismos comuns, mas sim vieram sempre de diferentes classes, raças, orientações sexuais, gerações e países; as mulheres têm diferentes histórias, necessidades e aspirações.8 Pedro (2005, p. 82) explicita: “Mulheres negras, índias, mestiças, pobres, trabalhadoras, muitas delas feministas, reivindicaram uma “diferença” – dentro da diferença. Ou seja, a categoria “mulher”, que constituía uma identidade diferenciada da de “homem”, não era suficiente para explicá-las”.9 “Mais do que a inclusão das mulheres no discurso histórico, trata-se, então, de encontrar as categorias adequadas para conhecer os mundos femininos, para falar das práticas das mulheres no passado e no pre-sente e para propor novas possíveis interpretações inimagináveis na ótica masculina” (RAGO, 1998, p. 92).

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

O campo de estudos sobre mulheres, no entanto, não comportava a complexidade na qual as lutas estavam inseridas assim, “para o feminismo, a palavra ‘gênero’ passou a ser usada no interior dos debates que se travaram dentro do próprio movimento, que buscava uma explicação para a subordinação das mulheres.” (PEDRO, 2005, p. 79).

Assim, Nathalie Davis apud Scott (1995, p. 72), uma das primeiras pesquisadoras americanas a usar o termo gênero dizia em 1975:

Penso que deveríamos nos interessar pela história tanto dos homens quanto das mulheres, e que não deveríamos tratar somente do sexo sujeitado, assim como um historiador de classe não pode fixar seu olhar apenas sobre os camponeses. Nosso objetivo é compreender a importância dos sexos, isto é, dos grupos de gênero no passado histórico. Nosso objetivo é descobrir o leque de papéis e de simbolismos sexuais nas diferentes sociedades e períodos, é encontrar qual era o seu sentido e como eles funcionavam para manter a ordem social ou para mudá-la.

Os principais estudos eram sobre a opressão e exploração das mulheres

num mundo regido pelos homens: igualdade dos sexos na educação, abolição de

discriminações no trabalho, o direito de controlar seu corpo e sua sexualidade,

denunciar todas as violências sexuais, psicológicas e físicas. Nos Estados Unidos

falava-se em women´s studies, na Europa, de condição feminina. O fundamento

desses estudos era a identidade unitária, isto é, o desejo das feministas brancas, de

classe média em definir qualquer mulher pela sua identidade feminina: “We are one,

we are woman” (DOWNS, 2005, p. 357). Nesse momento outras vozes elevaram-se:

as mulheres negras, pobres, sem estudos. Elas denunciavam o fato de sofrer outras

discriminações antes daquelas devidas a seu sexo.

No Brasil, “da história das mulheres passamos repentinamente a falar

na categoria do gênero, entre as décadas de 1980 e 1990” (RAGO, 1998, p. 90).

Apesar das resistências de alguns setores do movimento feminista, que temiam a

descaracterização das lutas femininas, o enfoque no gênero e suas relações tomou

força nas pesquisas brasileiras; para Mariza Corrêa “há uma clara articulação entre o

feminismo dos anos setenta e a emergência dos estudos de gênero nos anos noventa

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Gênero: Flashes de uma Construção

(CORRÊA, 2001, p. 24)10. A questão veio de encontro a outras áreas do conhecimento, como a psicanálise, que estavam direcionando seus estudos às dimensões das identidades dos sujeitos em dimensões relacionais e diferenciais em que mesmo a categoria “mulheres” seria um fator limitante. Para Sohiet e Pedro (2007, p. 285) a partir de então “a interdisciplinaridade assume importância crescente nos estudos sobre as mulheres”. E ainda, segundo Yannoulas, Vallejos e Lenarduzzi (2000, p. 429): “Os estudos de gênero exigem uma abordagem multidisciplinar”.

A compreensão de que o feminino está sempre em relação com o masculino também torna fragmentada a posição de tomar uma categoria, no caso, “mulher”, em permanente oposição a outra – “homem”11. Desse modo, no sentido de adotar um termo mais amplo, adotou-se o termo gênero. Para Pedro (2005, p. 78):

O uso da palavra “gênero”, como já dissemos, tem uma história que é tributária de movimentos sociais de mulheres, feministas, gays e lésbicas. Tem uma trajetória que acompanha a luta por direitos civis, direitos humanos, enfim, igualdade e respeito.

Sobre a história dos estudos de gênero na Argentina, Acha e Halperin (2000, p. 14) relatam:

El género prometía una renovación de la historia de las mujeres. Ya no se trataba de recuperar las existencias pasadas de unas mujeres definidas por ciertos órganos, sino de preguntar por las condiciones en que la feminidad, la masculinidad, los caracteres “femeninos”, eran constituidas a través de procesos culturales políticamente investidos. Ninguna ingenuidad era posible a respecto de la naturalidad de las identidades sexuales.

Segundo os autores, em seu país os estudos de gênero vieram para superar a crise vivida pela área da história das mulheres que havia alcançado um estado de estagnação diante da onda conservadora que reinava na década de 80 na Argentina (ACHA e HALPERIN, 2000). Para Felitti e Queirolo (2009) foi ainda na

10 Nesse aspecto a autora destaca a questão política subjacente ao surgimento do campo de estudos.11 “Esforços vêm sendo feitos no sentido de se reconhecer a diferença dentro da diferença, apontando que mulher e homem não constituem simples aglomerados; mas elementos como cultura, classe, etnia, geração, religião e ocupação devem ser mais ponderados e intercruzados numa tentativa de desvendamento mais frutífera, através de pesquisas específicas que evitem tendências a generalizações e premissas preestabelecidas. Sobrevém a preocupação em desfazer noções abstratas de “mulher” e “homem”, enquanto identidades únicas, a-históricas e essencialistas, para pensar a mulher e o homem como diversidade no bojo da historicidade de suas inter-relações” (MATOS, 1998, p. 71).

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

década de 80 que o enfoque de gênero começou a ganhar prestigio na academia, levando alguns anos mais tarde, alguns institutos e grupos de pesquisas relacionados à história das mulheres a mudar seus nomes e referir-se a estudos de gênero.

GêNeRO e Os FemINIsmOs

Durante os anos setenta e oitenta na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil se sobressaíam três grandes grupos de pesquisas feministas: o feminismo marxista ou materialista, o feminismo das esferas separadas (DOWNS, 2005), e na França e nos Estados Unidos particularmente, o feminismo da História (THÉBAUD, 2005).

Para as feministas materialistas o gênero não era pensado com um fato social que poderia extrair-se do sexo, mas como uma relação social colocando os dois sexos como antagonistas. Tratava-se de analisar como o gênero dividia de forma hierarquizada a humanidade em duas metades. Isto é, o gênero podia ser pensado como sinônimo de patriarcado12 ou de opressão das mulheres e referia-se a uma relação social marcada pelo poder e a dominação (BERENI et al., 2008). Nestas análises as mulheres eram descritas como uma classe fundada sobre o trabalho doméstico gratuito (DELPHY, 2001). Para Guillaumin (1992), a apropriação total da classe das mulheres pela classe dos homens podia ser chamada de “sexagem13”. Neste contexto, a palavra gênero mais abstrata e menos conotada politicamente impõe-se com mais dificuldade.

As pesquisas sobre as esferas separadas, oriundas do feminismo mais radical da segunda onda do feminismo, reivindicavam uma separação dos sexos em nome do desenvolvimento das mulheres num espaço protegido construído sobre relações de igualdade entre mulheres longe da dominação masculina (DOWNS, 2005).

12 “Sistema de subordinação das mulheres que consagra a dominação do pai sobre os membros da família. As feministas insistem em particular sobre os aspectos políticos – e não naturais – dessa opressão (BERENI et al., 2008, p. 21).13 Neologismo popularizado pela antropóloga Colette Guillaumin que designa não somente a exploração econômica das mulheres pelos homens, mas também a sua apropriação e seu uso por eles. O termo aproxima-se da noção de escravidão que exprime também uma apropriação física total (BERENI et al., 2008, p. 22).

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Gênero: Flashes de uma Construção

Conforme Downs (2005) se durante os anos setenta o feminismo materialista dominou as pesquisas e as reivindicações dos movimentos feministas, a partir dos anos oitenta a maioria das pesquisadoras seguiu o feminismo da cultura feminina e das esferas separadas.

O conceito de esferas separadas foi elaborado por antropólogas feministas que procuravam demonstrar que a sociedade humana é organizada sobre a divisão do espaço entre uma esfera doméstica sempre representada pelo feminino e uma esfera pública reservada aos homens. A interação constante entre as duas esferas constitui a vida social, econômica e política de uma sociedade. Essa concepção demonstrou que a identificação das mulheres com a esfera privada e doméstica é culturalmente construída, isto é, que a divisão sexual do trabalho e do espaço social é um artefato da cultura humana (DOWNS, 2005).

Nos Estados Unidos essas reflexões levaram a estudos globais das distinções sociais entre os sexos: os “gender studies” ou estudos de gênero (DOWNS, 2005). Para Downs (2005), a grande maioria das pesquisadoras americanas apropriou-se dessa nova ferramenta analítica que permitiu sair do “gueto” dos estudos sobre as mulheres para poder analisar o impacto de gênero em vários segmentos da sociedade.

Na disciplina histórica, na França dos anos oitenta, começa a se prefigurar o projeto de uma história relacional que compara os homens e as mulheres e examina a representação dos dois sexos. Esse “gender à francesa” (THÉBAUD, 2005), sensível também à construção do feminino, vai ser o fio condutor dos cincos volumes da História das mulheres no Ocidente de George Duby e Michelle Perrot. Nesses cinco volumes, preferem-se, ao invés do conceito e da palavra gênero, sem dúvida por melhor entendimento, as expressões de diferença dos sexos, masculino-feminino, relação entre homens e mulheres. Segundo Thébaud (2005) o conceito de gênero será usado pelos especialistas de história das mulheres a partir da metade dos anos noventa.

Nos Estados Unidos, além de Natalie Zemon Davis que usa a expressão muito cedo, o conceito será usado só a partir dos anos oitenta graças a Joan Scott. De fato, a historiadora, em 1985 no colóquio do “American Historical Association”, profere um discurso que se tornará no ano seguinte um artigo famoso, traduzido em diversos idiomas “Gender: a useful category of historical analysis” (BERENI et al., 2008; THÉBAUD, 2005).

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

Esse trabalho tornou-se referência também no Brasil14, na legitimação de um campo de estudos tendo questões de gênero como uma categoria de análise histórica.15 Neste artigo a autora faz uma revisão de como gênero vem sendo interpretado por diferentes áreas do conhecimento e pelas lutas feministas. As formas de interpretar e conceituar o gênero revelam também suas limitações. Assim, as definições de gênero vão desde uma rejeição ao determinismo biológico baseado no sexo até uma ampla rede de conexões que levam em consideração não só o corpo, mas toda a organização social e seu contexto histórico.

Nesse trabalho, o conceito de gênero sofre uma primeira modificação, sendo definido por Scott (1995, p. 86) como “um elemento constitutivo das relações sociais fundado sobre as diferenças percebidas entre os sexos” e como “uma maneira primeira de significar as relações de poder”. Scott (1995) dá ao conceito um sentido pós-estruturalista, isto é, o transforma numa ferramenta capaz de transformar a análise de todo fenômeno político, social ou cultural em análise de gênero (DOWNS, 2005). No rastro de Michel Foucault, Scott (1995) define o gênero como “o saber sobre as diferenças sexuais”. Segundo Joan Scott (1995, p. 91), essa definição pressupõe que “as relações entre os sexos constituem um dos pilares da organização social” e que “a cultura condiciona uma grande parte da identidade feminina e masculina”. Assim, “as diferenças entre os sexos são ao mesmo tempo o fruto e a fonte das estruturas hierárquicas da sociedade”.

ResIsTêNCIas

Se o conceito de gênero foi rapidamente incorporado às pesquisas feministas americanas, sua aceitação teve reservas na Europa, no Brasil e no Canadá. Hoje vários nomes coexistem e não tratam exatamente das mesmas questões: relações sociais de

14 Publicado pela primeira vez em 1990, na revista Educação e Realidade. (SOHIET e PEDRO, 2007).15 Rachel Soihet e Joana Maria Pedro em seu artigo “A emergência da pesquisa da História das Mulheres e das Relações de Gênero” (2007) traçam a trajetória histórica do campo de estudos no Brasil de forma muito elucidativa, destacando também as produções brasileiras e analisando as contribuições de pesquisadoras de outros países.

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Gênero: Flashes de uma Construção

sexo, estudos feministas ou sobre as mulheres, diferenças sexuais ou diferença dos sexos16. Uma das resistências, para os países de língua latina, é devido à tradução da

palavra “gender” por gênero. De fato, a palavra gênero nas línguas latinas é gramatical (o masculino e o feminino) ou geral (o gênero humano). Na língua inglesa a expressão “sexual difference” é conotada biologicamente, daí a necessidade da palavra “gender” (FRAISSE, 1996). Haraway (2004, p. 209) relata que ao ser convidada a elaborar um verbete com o significado da palavra gênero para um dicionário feminista marxista alemão, deparou-se com a dificuldade diante das diferenças de significado que as palavras têm de acordo com a sua língua de origem:

Gender (inglês), Geschlecht (alemão), Genre (francês), Género (espanhol). A raiz da palavra em inglês, francês e espanhol é o verbo latino generare, gerar, e a alteração latina gener-, raça ou tipo. Um sentido obsoleto de “to gender” em inglês é “copular” (Oxford English Dictionary). Os substantivos “Geschlecht”, “Gender”, “Genre” e “Género” se referem à idéia de espécie, tipo e classe. “Gênero” em inglês tem sido usado neste sentido “genérico”, continuadamente, pelo menos desde o século quatorze. Em francês, alemão, espanhol e inglês, “gênero” refere-se a categorias gramaticais e literárias. As palavras modernas em inglês e alemão, “Gender” e “Geschlecht”, referem diretamente conceitos de sexo, sexualidade, diferença sexual, geração, engendramento e assim por diante, ao passo que em francês e em espanhol elas não parecem ter esses sentidos tão prontamente. Palavras próximas a “gênero” implicam em conceitos de parentesco, raça, taxonomia biológica, linguagem e nacionalidade.

Em consequência, o emprego dessa palavra, nos países de língua latina, causa certo desconforto devido à dificuldade (fora ou mesmo dentro do mundo acadêmico) de entender do que tratam estudos de gênero. O que não acontece com as expressões diferença dos sexos, divisão sexual do trabalho, relações sociais de sexo. Na França, numa recomendação de 2005, a Comissão Geral de Terminologia e de Neologia rejeitou o uso dessa palavra (BERENI et al., 2008), mas Scott (1995, p. 71) argumenta:

16 Para Schiebinger (2001, p. 45): O termo “gênero” foi introduzido na década de 1970 em tentativas de refrear o então avassalador determinismo biológico, no sentido de distinguir formas culturalmente específicas de masculinidade e feminilidade de “sexo” biológico, construído como cromossomos, fisiologia e anatomia. Os deterministas biológicos, na época, como agora, fundamentavam certas características masculinas, como relações especiais agudas, na anatomia do macho. A popularidade do termo “gênero”, contudo, resultou em sua expropriação. Gênero, hoje, é com frequência usado impropriamente como uma palavra de código para “sexo”, “mulher”, ou “feminista”. Ele é mais propriamente usado para referir um sistema de signos e símbolos denotando relações de poder e hierarquia entre os sexos. Ele pode também referir-se a relações de poder e modos de expressão no interior de relações do mesmo sexo.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

Aqueles que se propõem a codificar os sentidos das palavras lutam por uma causa perdida, porque as palavras, como as idéias e as coisas que elas significam, têm uma história. Nem os professores de Oxford, nem a Academia Francesa foram inteiramente capazes de controlar a maré, de captar e fixar os sentidos livres do jogo da invenção e da imaginação humana.

Uma das críticas ao uso do termo gênero, vinda de dentro do movimento feminista, é o caráter abstrato do conceito que não evoca de imediato as relações de poder e em consequência tem a tendência a esquecer a dominação masculina e o papel das mulheres na reprodução biológica que as colocam numa situação de subordinação (THEBAUD, 2005). Scott (1995) procurou contemplar o aspecto político e do poder (entre outros) na sua proposta de conceituação do gênero, entendendo que o grupo social das mulheres continua a ser discriminado e desvalorizado por causa do seu sexo e as análises científicas não podem ignorar esse fato.

Outra crítica foi o uso do termo gênero como sinônimo de “respeitabilidade cientifica” (BERENI et al., p. 10), para se desmarcar da militância feminista. Scott (1995, p. 75) comenta:

o uso do termo “gênero” visa indicar a erudição e a seriedade de um trabalho, pois “gênero” tem uma conotação mais objetiva e neutra do que “mulheres”. “Gênero” parece se ajustar à terminologia científica das ciências sociais e, por conseqüência, dissociar-se da política (pretensamente escandalosa) do feminismo. Neste uso, o termo gênero não implica necessariamente na tomada de posição sobre a desigualdade ou o poder, nem mesmo designa a parte lesada (e até agora invisível). [...] o “gênero” inclui as mulheres sem as nomear, e parece assim não se constituir em uma ameaça crítica. Este uso do “gênero” é um aspecto que poderia ser chamado de procura de uma legitimidade acadêmica pelos estudos feministas nos anos ’80.  

Apesar da preocupação de que os estudos de gênero se desligassem das lutas feministas, o que se apresenta é um enfraquecimento das lutas do feminismo como um movimento político, mas, por outro lado, uma grande produção teórica que ao abordar a questão de gênero o faz “numa perspectiva emancipatória (e, portanto, feminista para as mulheres e até mesmo para as ciências)” (MATOS, 2008, p. 339). Piscitelli (1998), no entanto, não considera estudos de gênero como estudos feministas, revelando uma preocupação com a perda do foco das pesquisas feministas quando abarcadas pelos estudos de gênero. As críticas acabam servindo para que as pesquisas continuem e se renovem como explicita Louro (2007, p. 205), falando sobre gênero e sexualidade:

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Gênero: Flashes de uma Construção

São muitas e distintas as formas que assumimos para lidar com essas questões; distintos são os modos de conceber o que cabe fazer diante de tal horizonte político. Um olhar mais acurado e perspicaz poderá nos mostrar que nossas distinções e particularidades começam, efetivamente, bem antes da questão do “que fazer”: para sermos sinceros, nós nem mesmo compreendemos de um modo único o que vem a ser gênero ou sexualidade. Mas essa diversidade, que pode, aos olhos de uns, parecer catastrófica, também pode, aos olhos de muitos, ser saudada como indicadora da vitalidade e da contemporaneidade dos campos teóricos e políticos a que nos dedicamos. Disputas em torno de conceitos, de correntes, de métodos e de estratégias são sugestivas de teorias vigorosas, moventes, vivas. Não se disputa aquilo que já está consagrado, quer dizer, aquilo que se tornou sagrado e que, em conseqüência, carece de animação, revelando-se, de algum modo, inanimado. Saudemos, então, nossas diferenças! Elas podem ser a fonte de nossa contínua renovação.

Como uma categoria que tem sido analisada pelas mais diferentes áreas do

conhecimento, para gênero não existe um conceito único e universalizante, mas

diferentes abordagens que podem até se apresentar como contraditórias ou mesmo

como complementares. Assim como o enfoque de gênero abre uma perspectiva

alternativa ao androcentrismo das ciências em geral, se não estiver articulado com

outras perspectivas como classe, geração, etnia, etc., suas análises também serão

limitadas (ACHA e HALPERIN, 2000). A relevância do surgimento da questão do

gênero está na visibilização das desigualdades historicamente construídas entre

homens e mulheres, “o conceito também abriu espaço analítico para se questionar as

próprias categorias de homem e de masculino, bem como de mulher e de feminino, que

passaram a ser fruto de intenso processo de desconstrução” (MATOS, 2008, p. 337).

a HIsTORICIDaDe DO sexO

A determinação biológica para ser homem ou mulher teve reforço e justificativa ao longo da história do ocidente, onde uma pretensa inferioridade feminina e consequente superioridade masculina serviram de esteio para toda organização social começando pelo espaço privado17.

17 “A idéia inicial de que sexo se referia à anatomia e fisiologia dos corpos deixava o caminho aberto para interpretações de que as diferenças entre mulheres e homens no domínio cognitivo e comportamental,

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

Diante da problemática resultante da consideração dos aspectos biológicos como definidores das desigualdades, busca-se uma distinção entre sexo e gênero.

Em 1990, na obra Inventando o sexo o historiador americano Thomas Laqueur (2001) lembra que a própria noção de “sexo” também é um constructo cultural. A concepção segundo a qual homens e mulheres pertencem a sexos diferentes é bastante recente na história da medicina: ela só se deu a partir do século XVIII, sobretudo no século XIX, e mais em virtude de razões políticas do que por motivos propriamente científicos. “Em alguma época do século XVIII, o sexo que nós conhecemos foi inventado” (LAQUEUR, 2001, p. 189). Até então o que se acreditava era que havia um sexo único, o masculino e sua variação imperfeita, a mulher (LAQUEUR, 2001)18.

Segundo Dorlin (2008) ao longo da historia médica diferentes campos conceptuais vão ajudar a elaborar uma bi-categorização: a fisiopatologia do temperamento, a anatomia dos aparelhos genitais e depois das gônadas (os testículos e os ovários), os hormônios (hormônios femininos e masculinos), a genética (os cromossomas XX e XY). Essas quatro definições sempre se referiam a duas categorias de sexo absolutamente distintas – macho e fêmea - e segundo Dorlin (2008, p. 42) foram um “obstáculo epistemológico” às pesquisas sobre a sexualização.

A adoção obrigatória do sexo masculino ou feminino chega ao extremo no caso da intersexualidade. A intersexualidade19 traduz-se pelo fato de uma criança nascer com uma ambiguidade genital (criança com cariótipo XX, mas com um pênis normal, criança com cariótipo XY, mas com pênis julgado anormal ou um clitóris). Dorlin (2008) comenta que no nascimento de tal criança, uma comissão de especialistas (cirurgiões plásticos, urologistas, endocrinologistas, psicólogos, assistentes sociais) decidia num espaço de tempo muito curto da necessidade e das modalidades da intervenção cirúrgica e dos tratamentos hormonais. Os critérios bem como as desigualdades sociais, poderiam decorrer de diferenças sexuais localizadas no cérebro, nos genes ou provocadas por hormônios etc.” (CITELI, 2001, p. 131). 18 Para Galeno “as mulheres, em outras palavras, são homens invertidos, logo, menos perfeitas. Têm exatamente os mesmos órgãos, mas em lugares exatamente errados”(LAQUEUR, 2001, p. 42).19 Também chamada de ambiguidade genital ou genitália ambígua, no entanto, [...] a definição “genitália ambígua” é ainda controversa na literatura. Alguns caracterizam a ambiguidade genital por sua concepção mais literal, sendo classificados como tal apenas os pacientes cujo sexo não se pôde designar na avaliação inicial. Entretanto, outros autores já começam a classificar os pacientes não como portadores de “ambiguidade” ou “intersexo” e, sim, como portadores de Distúrbios da Diferenciação Sexual (DDS), tendo ou não alterações genitais extremas a ponto da designação sexual estar comprometida (ANDRADE, 2008).

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da atribuição do sexo dependiam do tamanho do pênis ou do clitóris: acima de 2,5 cm tentar-se-ia a fabricação de um pênis, abaixo disso uma vagina e um clitóris. A penetração era o único critério do sucesso da fabricação de uma vagina: a amplitude da abertura, a lubrificação, a sensibilidade orgástica não eram prioridades. Pelo contrário, os critérios de um pênis realizado com sucesso eram o tamanho e a aptidão à ereção (DORLIN, 2005)20.

O estudo da intersexualidade foi fundamental no questionamento do determinismo biológico que só considera duas possibilidades e para cada uma delas contém as prescrições correspondentes. A binaridade sexual naturalizada constitui o fundamento de toda organização social, de modo que “uma pessoa cujo sexo não é claramente determinado põe em crise um sistema político e social” (BEN, 2000, p. 70).

Assim, conclui-se que a atribuição de sexo, a vagina, o pênis não fundam nenhuma bi categorização sexual biológica, mas obedecem ao gênero. Isso, mais uma vez, mostra como os sexos são construídos socialmente; identificar o sexo de uma pessoa ou simplesmente elucidar o que se entende por sexo é simplesmente muito complexo e, segundo Bereni et al., (2008, p. 25-26) por uma razão simples: “Se esses dados (cromossomas, gônadas, órgãos genitais) são biológicos, o trabalho pelo qual são ligados e unificados juntos é social”. Como afirmam Acha e Halperin (2000, p. 15):

No es la anatomía en sí misma la que hace posible una experiencia histórica, sino las concepciones del momento que interpretan a la carne y a través de las cuales se vive y siente a los cuerpos. Pensar que los cuerpos existían fuera de sus constituciones ideológicas carece de sentido.

Os mOvImeNTOs pOlíTICOs CRíTICOs DO GêNeRO

Em 1990, a filósofa americana Judith Butler, no livro Gender Trouble. Feminism and the politics of subversion sublinha o problema da dicotomia natureza-cultura embutida na distinção entre sexo e gênero. Mas a filósofa vai mais longe quando afirma que:

20 Uma análise muito completa sobre a intersexualidade, sua história, características, respostas da ciência, saber médico e questões de gênero podem ser encontrados em Fausto-Sterling (2006).

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

o gênero e sexo são fictícios no sentido que eles são construídos através de práticas, discursivas e não discursivas. Se o sexo, tanto quanto o gênero, são construção, segue-se que o corpo não tem um sexo prévio, mas que os corpos tornam-se inteligíveis pelo viés do gênero. Os corpos adquirem um gênero através da representação (performance) contínua do gênero (SCOTT, 1990 apud JAMI, 2003, p. 142-143).

Judith Butler é considerada, após Michel Foucault, como uma das fundadoras das teorias Queer21 que emergiram no fim dos anos oitenta. Suas reflexões sobre a relação sexo/gênero comprometem a norma heterossexual, vista como um sistema de dominação masculina. No contexto do movimento Queer que procura liberar os sexos e as sexualidades de uma normatividade heterossexual opressora, o pensamento de Butler abre um espaço à expressão e ao reconhecimento das homossexualidades, aos gay and lesbian studies e enfim aos queer studies. Butler, no entanto, demonstra também a estreita relação entre a liberação das mulheres e a liberação dos sexos e das sexualidades oprimidas pela heteronormatividade (BERENI et al., 2008).

Linda Nicholson (2000) levanta a discussão já mencionada por Joan Scott e outras estudiosas sobre as relações entre sexo e gênero. Para a autora o termo gênero é comumente utilizado de forma contraditória: algumas vezes em oposição ao sexo e outras como uma referência dele. Segundo Nicholson (2000) pensar em gênero como alguma coisa relacionada diretamente ao sexo retoma os pressupostos do determinismo biológico que o feminismo vem questionando desde o princípio. A autora propõe o entendimento do corpo como uma variável na construção das distinções e significados que o masculino e o feminino adquirem no contexto de cada sociedade.

O movimento queer nos leva a falar do transgênero e do transexualismo. Pertencer à humanidade é, em definitivo, pertencer a uma das duas classes de seres naturais que a compõe: os homens e as mulheres. Determinar o sexo de uma pessoa não é simplesmente classificá-la num sistema de categoria binária, mas colocá-

21 Termo inglês significando “estranho”, frequentemente usado como um insulta visando estigmatizar os homossexuais ou toda categoria de pessoa que não entra na norma do gênero. É com uma operação de “retorno de estigma” que, com ironia, criou-se o movimento político queer no fim dos anos 1980 reivindicando um posicionamento político contestatório. Considerando as identidades como não-essenciais, esse movimento afirma-se por uma reivindicação de identidade estratégica visando fazer das minorias e das identidades sexuais o lugar de contestação das normas dominantes (BERENI et al., 2008, p. 34).

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Gênero: Flashes de uma Construção

la numa classe de seres únicos: a humanidade. A história dos hermafroditas22 – criminalizados ou patologizados – assim como de todas as pessoas que rompem o continuum físico-social do sexo, testemunham que fora dos dois sexos não existe humanidade (BERENI et al., 2008).

O transgênero critica radicalmente o binarismo dos sexos e reivindica que os transexuais, os intersexos, os travestis, os homens efeminados, as mulheres masculinizadas ou as pessoas em dúvidas sobre o seu sexo pertencem simplesmente à humanidade. Assim a hipótese de um terceiro sexo, de um ou vários sexos indeterminados, ou ainda a ausência de sexo ou a abolição do sexo como categoria classificatória, representam um “trouble” profundo do gênero e uma política destabilizante para as sociedades (SCOTT, 1995).

Neste contexto a transexualidade23 também sofre certa crítica do transgênero.O termo transsexualidade é indissociável das categorias medicais que o

torna possível. Foi popularizado nos anos cinquenta pelo sexólogo americano Harry

Benjamin que formalizou um diagnóstico de transexualidade (BERENI et al., 2008). Num primeiro momento a experiência de transexualidade é descrita com

a experiência do corpo errado, no sentido de uma dissonância entre o corpo e a identidade vivida. Os médicos efetuam uma re-atribuição de sexo a fim de adequar o sexo e a identidade. Para os médicos e para a primeira geração de transexuais, segundo comenta Califa (2003), é evidente que só existem dois sexos e que a transexualidade é um erro da natureza. O diagnóstico da transexualidade é de um transtorno psiquiátrico em torno do verdadeiro sexo sem questionar a significação

da palavra sexo (CALIFA, 2003). Assim para a crítica “trans” o paradigma da transexualidade reforça a

dualidade dos sexos, e para o movimento é preciso: “renunciar à experiência de

22 Termo que significa que seres dispõem ao mesmo tempo das características fêmea e macho. É com esse mesmo termo que historicamente as situações de intersexualidade foram descritas. No século XIX, os biólogos consideraram que o verdadeiro sexo de uma pessoa é determinado pelas gônadas. Assim, só a presença simultânea de ovários e testículos permite falar de “verdadeiros” hermafroditas, o conjunto das outras discordâncias das características sexuais remetia à categoria de “falsos” hermafroditas (BERENI et al., 2008, p. 25).23 Uma pessoa transgênero se distingue de uma pessoa transexual no sentido que geralmente ela não recorre à cirurgia e reivindica uma identidade “trans” em si e não a assimilação a uma categoria de sexo homogênea (BERENI et al., 2008, p. 28).

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passagem24, recusar a invisibilidade25 e seguridade do retraimento num sexo, e abrir-se a uma política de contestação plena e inteira do gênero” (BERENI et al., 2008, p. 32). Segundo, Bornstein (1994) os transgêneros são os fora da lei do gênero.

De fato sem a categoria sexo como divisor do mundo social, mudar de sexo não tem mais sentido. O movimento trans estende sua crítica também à sexualidade. A sexualidade moderna é fundada na ideia psicanalítica da escolha de objeto, isto é, o investimento da libido num objeto que define nossa sexualidade. Assim se somos atraídos pelo outro sexo somos heterossexuais, e se é pelo mesmo sexo somos homossexuais, mas ao se desfazer a binaridade dos sexos não existe mais o objeto e a partir de lá se multiplicam as combinações. Por exemplo, uma MTF26 que não fez cirurgia pode se sentir heterossexual com um parceiro sexual homem e ele pode se sentir homossexual.

CONsIDeRaÇões

Desde os estudos sobre as mulheres até as pesquisas sobre a intersexualidade muito se fez acadêmica e politicamente. Pensar nas tensões teóricas de campos de estudo que só têm a acrescentar no desenvolvimento de novos horizontes para a existência humana pode parecer sem sentido, contudo é preciso salientar que o conhecimento não é formado por apenas um ponto de vista ou uma forma de análise. Pelo contrário, para aqueles que estão inserindo-se no campo dos estudos de gênero e sexualidade o entendimento dos caminhos percorridos pelas pesquisas e produções teóricas oferece a oportunidade de uma compreensão menos limitada das teorias atuais. Esse trabalho oferece alguns flashes de uma construção histórica muito mais ampla

Há muito mais a ser dito e pesquisado, a produção brasileira tem sido muito grande e relevante assim como as contribuições estrangeiras; olhando de perto é

24 O fato de mudar de sexo.25 Se tornar invisível no sentido de pertencer plenamente a um sexo, sem ambiguidade. 26 Sigla do inglês Male to Female que significa que uma pessoa tem um corpo masculino, mas se sente feminina e ao contrario a sigla FTM (Female to Male) designa uma pessoa com corpo feminino, mas que se sente masculina (BERENI et al., 2008).

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possível perceber a similaridade dos caminhos, lutas e construções de conhecimento. A questão de gênero está posta e deve ser pensada e repensada em todos os aspectos da vida para que as desigualdades não sejam obscurecidas e naturalizadas. Segundo as palavras de Haraway (2004, p. 81): “Precisamos de regeneração e não de renascimento, e o sonho utópico da esperança de um mundo monstruoso sem distinção de gênero faz parte do que poderia nos reconstituir”.

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“...eles ficam me chamando de bichinha e eu não sou obrigado a agüentar isso” –

REFLEXÕES SOBRE A HOMOFOBIA NA ESCOLA

Anderson Ferrari

INTRODUÇÃO

Escrever este artigo possibilitou revisitar minha trajetória acadêmica. Desde 1996 venho trabalhando com as questões que envolvem as construções das homossexualidades masculinas1. Dois reflexos deste investimento estão presentes já nesta segunda frase, ou seja, na utilização da palavra “construções” e do plural ao me referir as “homossexualidades masculinas”. Quero dizer com isso que entendo e sempre busquei compreender as homossexualidades como processos de construção2, que diz respeito às identidades, à constituição de subjetividades, aos gêneros e, portanto, a processos de negociação entre sujeitos nos diferentes contextos em que

1 Em 1996 realizei minha primeira pesquisa como parte da Especialização em Sociologia Urbana, na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Nesta pesquisa intitulada “Nem cabeleireiro nem enrustido”: estudo sobre a construção da identidade homossexual, trabalhei com frequentadores de duas boates gays na cidade do Rio de Janeiro – Bôemio e Le Boy – buscando debruçar sobre as histórias de vida e aproximações com as homossexualidades. 2 A ideia de construção me vincula a perspectiva foucaultiana, assumindo a partir de Foucault (1988) que a homossexualidade é uma invenção moderna, resultado dos diversos discursos e relações de poder que atravessa essa identidade.

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circulam. Isso também nos remete ao uso do plural, uma vez que não me parece possível falar em homossexualidade e homossexual no singular, mas, sempre no plural. Há uma infinidade de homossexualidades possíveis, que faz com que as pessoas tenham inserções distintas nas construções de suas identidades. Estas ideias tomaram forma desde minha primeira pesquisa em que trabalhei com a importância das boates gays na constituição das identidades homossexuais na cidade do Rio de Janeiro. Nessa ocasião, a escola não se constituía num interesse para mim, embora fosse professor e percebesse os processos dessas construções no interior das salas de aula, sobretudo em torno dos meninos e relacionadas à discriminação, vergonha, desvalorização. Trabalhando com história de vida como metodologia, tentava entender como meus informantes foram se constituindo como homossexuais e qual a importância da boate gay neste processo. Neste sentido, nós conversávamos sobre o que recordavam nas suas relações com as homossexualidades e eles iam pouco a pouco recuperando suas construções e os contextos e situações em que foram ocorrendo. Nas narrativas, um fato começou a se evidenciar e a me chamar atenção: o aparecimento da escola. Embora eu não tivesse essa preocupação, nem tampouco uma questão a respeito da escola, ela insistia em aparecer. E, sempre da mesma forma, como lugar em que tiveram contato com a discriminação, com a agressão, um lugar de tortura, de sofrimento, e em casos extremos, esses narradores atribuíam a isso a causa para algumas tentativas de suicídio3.

“Olha! Eu tive muitos problemas, porque eu sou homossexual desde os 12 anos de idade. Até os 18, quando eu descobri que existia vida gay e boate e tudo, meus relacionamentos eram limitados aos colegas do colégio e era xingado, agredido, achava tudo “ó”. E, hoje em dia, depois disso, depois que eu descobri que existia tudo isso, eu não tive mais problemas em casa, com amigos. (...)” (Adriano)4

3 O interesse de investigação a respeito da relação entre homofobia e suicídio vem se desenvolvendo em países como Canadá e França, demonstrando que suicídio e orientação sexual como preocupação de pesquisa levantam importantes questões metodológicas e éticas para os campos de conhecimento tais como Psicologia, Educação, Sociologia. Para maiores informações ver Dossiers Santé en Action: Les minorités sexuelles face au risque suicidaire, 2010. 4 Os nomes que aparecerão ao final de cada trecho de entrevista são fictícios, respeitando o anonimato. Essas citações também aparecerão sempre em itálico para diferenciar das citações bibliográficas.

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“(...)eu lembro que eu sempre senti atração pelas pessoas do mesmo sexo, há muito tempo. Desde o primeiro orgasmo que eu tive, eu já tinha essa certeza na minha cabeça. Mas é como é... a sociedade recrimina e é uma coisa muito pesada, a gente resolve... é um encargo muito pesado..., a gente resolve tentar mudar de vida, namorar alguém, tentar..., vê que isso pode ser modificado e tudo, até que um dia eu descobri que não tem nada a ver, que isso não é modificado assim de uma hora para outra, que a gente tem que entender a cabeça da gente, a gente tem que se aceitar e ser feliz. Porque é difícil. Na escola, com os amigos, na família, todo mundo fala mal, conta piada, te ofende, você se sente horrível. Se a gente não se aceita e se a gente não gostar da gente mesmo, é difícil. Então, eu resolvi lutar..., não lutar contra isso e aceitar. Na escola, quando me agrediam eu enfrentava. Antes não, antes eu fugia ia pro banheiro, chorava escondido, não queria ir à escola e cheguei até a tentar me matar... foi horrível. Mas agora estou bem. E estou vivendo muito bem, graças a Deus, com isso, levando a vida”. (Daniel)

“Quando eu morava em Teresópolis, né, eu não tinha me assumido. Assim... Eu era gay. Eu sabia que eu era gay, assim, mas não tinha muita vontade nem de levar isso à frente, entendeu? Por que era muito sofrimento, principalmente na escola. Eu achava que não era legal... É..., eu achava que não era legal e preferia ficar assim, tipo assim... Lá em Teresópolis, eu estudava e tal e tinha muito medo de expor que eu era gay e tal, porque lá é muito pequeno, entendeu? As pessoas se conhecem. Eu tinha medo da minha família descobrir, entendeu, meus amigos”. (Willian)

Trajetórias de construção que envolvem momentos distintos e minimamente duas situações antagônicas e relacionais: uma envolvendo agressão, sofrimento e escolas e outra encontro, contentamento e as boates. No entanto, a importância delas está em chamar atenção para negociação das identidades de gênero e orientação sexual que ocorrem num contexto social com grande influência para os adolescentes – a escola. Diante disso fui me interessando cada vez mais pelo cotidiano escolar como espaço de negociação, de confronto e de construção das identidades e dos sujeitos.

Em outras pesquisas fui me dedicando a essa categoria de análise, que não estava presente nas minhas investigações desde o início, nem tampouco se constituía objeto de pesquisa: a violência. Não quero com isso afirmar que somente as homossexualidades passam por processos de violência. As identidades de forma geral são resultados desses processos, uma vez que são construções discursivas e de poder. Como nos afirma Butler (2009), a linguagem tem o poder de ferir e, quando atribuímos a linguagem esse poder, queremos dizer que somos objetos

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dessa trajetória agressiva. Foucault é outro autor que, ao longo de seus escritos em torno da construção dos sujeitos, chama atenção para o poder da linguagem – devemos tomar cuidado com o que fazemos com as palavras e com o que as palavras fazem conosco. Neste sentido, fui percebendo como as agressões estavam muito presente quando se tratava das identidades sexuais, em especial, aquelas ligadas à construção das homossexualidades masculinas. Direcionada às homossexualidades, as agressões adquiriam outro nome: homofobia. Traduzida como intolerância às homossexualidades, ela pode ser entendida como uma construção social que se relaciona com os gêneros e as sexualidades. A homofobia, neste sentido, participa da ordem sexual e da hierarquia dos gêneros e das sexualidades, relacionando-se com o sexismo e com o machismo. É um conceito relativamente novo, que precisa ser tensionado, mas que, no entanto, já está incorporado no vocabulário das pessoas, o que representa um ganho importante para os grupos LGBT na luta pela implantação de políticas públicas. Investir no combate à homofobia é mais do que vincular a luta em favor das homossexualidades, representando uma oportunidade de colocar sob suspeita o que naturalizamos nas relações de gêneros e sexualidades. Significa combater o sexismo e o machismo que fazem parte da sociedade brasileira na direção da construção de diferentes masculinidades e feminilidades.

Para discutir essas questões em torno da homofobia e suas relações com as identidades sexuais, pretendo partir de situações concretas. Primeiro porque minhas discussões sempre estão ancoradas num contexto muito específico – o espaço escolar – entendendo esse ambiente como atravessado por relações de poder, momento e local em que são negociadas as identidades e os processos de subjetivação. Depois porque tenho me dedicado a pesquisas de iniciação científicas em torno da discussão da homofobia nas escolas, de forma que me parece interessante trazer para as discussões alguns recortes para enriquecer o entendimento. Portanto, vou me utilizar dos resultados de duas pesquisas que têm a escola como foco. Uma desenvolvida numa escola pública federal na cidade de Juiz de Fora, desde 2006, que busca investigar as formas de organização de um tipo de relação muito comum entre adolescentes: o bullying. Definido como prática de agressividade repetitiva entre crianças e adolescentes, expresso através de perseguições, humilhações e intimidações, esse fenômeno chega mesmo a ser caracterizado como uma nova síndrome, denominada

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Síndrome de Maus-Tratos Repetitivos – SMAR (FANTE, 2005). São eventos que estão presentes nas salas de aula, disseminando-se de forma sutil, crescente, cruel e, sobretudo, nas relações entre alunos. A outra intitulada Bullying e Homofobia nas escolas, foi realizada em 2008/2009 junto aos professores que participavam de um projeto de capacitação patrocinado pelo Programa Federal “Brasil sem Homofobia” e realizado pelo MGM – Movimento Gay de Minas – momento em que os professores recebiam formação e informação a respeito das temáticas de gênero e sexualidades, com ênfase nas homossexualidades.

De forma geral, uma das questões que as pesquisas nos apontam e nos ajuda a olhar com mais atenção para o que ocorre nas escolas é que um dos grandes desafios está nas relações do cotidiano escolar. Assim, a intolerância, a agressividade, a violência, a falta de habilidade para resolver conflitos e a dificuldade de reconhecimento da alteridade se tornam muito presentes nas falas dos alunos e professores, se constituindo como momentos importantes para problematizar a nossa sociedade. As relações humanas são marcadas pelo conflito e a escola é um desses campos, visto que é um dos locais de negociação das identidades. Tendo essas questões como foco, as pesquisas foram realizadas, tanto entre alunos e alunas do Ensino Médio quanto entre professores e professoras da rede municipal de ensino, de forma que foi possível perceber a organização das expressões de homofobia por esses dois vieses. Trabalhando com questionários abertos, a intenção era perceber o que os adolescentes e os profissionais da Educação entendiam e definiam como humilhação, além de saber se já tinha vivenciado (visto, sofrido ou cometido) situações de humilhação e violência.

A partir daí foi possível perceber como a humilhação está presente nas definições de gênero. Principalmente como está servindo para construir a noção de diferença e do diferente, a noção de pertencimento e de grupo como algo separado entre o “nós” e “eles” e, como os discursos da homossexualidade estão sendo utilizados para agredir, entendidos quase sempre de forma pejorativa. Situações que associam violência e humilhação ao gênero e às sexualidades aparecem na escola, nos possibilitam uma boa oportunidade para problematizar a construção desses conceitos, a hierarquização estabelecida e como isso está na própria constituição dessas categorias e sujeitos. É a partir dessas análises que esse texto pretende problematizar a homofobia nas escolas.

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HOmOFObIa: GêNeROs e sexUalIDaDes em DIsCUssÃO

Trabalhar com as agressões e com a homofobia nas escolas significa colocar em evidência o poder das palavras. E, nesse sentido, problematizar a sua utilização e seus resultados. Quais são as palavras que ferem? Por que as homossexualidades se organizam como agressão, como formas de agredir? Que representações são acionadas quando escutamos ou utilizamos termos como “viado”, “bicha”, “sapatão”? Relacionar linguagem com agressão faz com nos concentremos nas partes que são pronunciadas, que podem ser pronunciadas. E, trazendo a discussão para o contexto escolar também nos faz questionar a respeito do que pode ser dito neste espaço, quem está autorizado a dizer, que em última análise, significa quem está autorizado a ser. A homofobia passa por essa relação entre linguagem e agressão, entre o que pode ou não ser pronunciado, quem está ou não autorizado a falar. Dessa forma, o dano com a homofobia é mais do que linguístico, mas diz respeito à constituição do sujeito, visto que quem não está autorizado a falar não é reconhecido, está no “não humano”. Linguagem não é só efeito de palavras, mas também de formas de dizer, de entonação, contexto, que interpela e constitui sujeitos. Assim, quando um menino chama outro de “viadinho” em sala de aula, mais do que ferir, essa utilização da linguagem está constituindo sujeitos, está definindo fronteiras, estabelecendo distâncias entre “nós” e “eles”, está servindo para construir tanto as homossexualidades quanto as heterossexualidades.

Homofobia tem um vínculo estreito com as questões de gênero e sexualidades e sobretudo com as políticas de identidade. Nesta discussão, Butler (2007; 2009) tem uma importância fundamental nos estudos de gênero e, portanto, nas discussões em torno da homofobia. Ao questionar a naturalização das categorias “mulher” e “homossexual”, essa autora toma como inspiração os estudos de Foucault e Derrida, para elaborar o conceito de performatividade. Criticando as políticas de identidade colocadas em vigor nas décadas de oitenta e noventa, principalmente pelas feministas, Butler nos instiga a pensar as identidades sexuais não como algo natural ou dado, mas resultado de práticas discursivas e teatrais de gênero. A construção dos gêneros é uma invenção cultural, um efeito performativo de ações que são repetidas. Masculino e Feminino são fruto de repetições estilizadas de atos (BUTLER, 2007),

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e muitos desses atos que são repetidos insistentemente e que são responsáveis pela construção das heterossexualidades e, por confusão, do que é ser homem, passam pela agressão, pela negação e pela exclusão das homossexualidades. Dessa forma, as homossexualidades também podem ser entendidas como performatividade. O conceito de performatividade nos convida a pensar as identidades em relação, como construções sempre abertas, sujeitas ao confronto, à negociação, às mudanças. Repetidos atos de agressão em relação às homossexualidades servem, ao mesmo tempo, para construir as heterossexualidades e as homossexualidades, tomando as primeiras como valorizadas e as segundas como desvalorizadas.

Quando a pesquisa tomou forma na escola, ou seja, quando começamos a aplicar os questionários e os alunos e alunas tomaram conhecimento do que se tratava, houve um movimento de interação com o assunto. Mesmo aqueles que não participaram da aplicação do questionário passaram a interagir com o assunto uma vez que a pesquisa deu nome a algo que ocorria com frequência na escola, e que nem sempre os alunos sabiam nomear, nem tampouco identificar, uma vez que estava naturalizado como ato performativo. Assim, tomaram conhecimento do que era bullying e foram capazes de identificar o que faziam, sofriam ou presenciavam. Um dia estava na minha sala e fui procurado por um aluno do Ensino Médio que queria fazer uma reclamação. Pensei que se tratava de uma reclamação envolvendo alunos do Ensino Fundamental já que eu era coordenador deste segmento de Ensino. Mas o aluno queria fazer uma reclamação dos alunos do Ensino Médio, e me disse:

“Eu vim aqui porque eu sei que você está fazendo uma pesquisa sobre bullying e eu queria te dizer que eu já não agüento mais. Há muito tempo que eu venho sofrendo com esses alunos que me enchem o saco porque eu sou gay. Eu queria te dizer que se você não fizer nada eu vou à polícia, porque eu sei que homofobia é crime. Desde que eu estava no ensino Fundamental eles me enchem o saco, quase todos os dias, quando eu passo no corredor eles ficam me chamando de bichinha e eu não sou obrigado a agüentar isso.” (Petrus).

O que esse aluno denuncia com essa reclamação é mais do que um ato de agressão, de homofobia, é um ato de construção das subjetividades que passa pela questão de gênero e, por relação, pelas sexualidades. O discurso da homossexualidade está ancorado no discurso da heterossexualidade, ambos como resultados de uma relação performática, que tem eficácia porque se repete. Assim, esses meninos que

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insistentemente classificam o outro como homossexual, estão ao mesmo tempo estabelecendo uma separação entre “nós” e o “outro”. O “outro” como homossexual e, por consequência, nós os heterossexuais. A nomeação como homossexual é um tipo de reconhecimento, tanto é assim que o próprio menino se autodenomina homossexual e fala a partir desse lugar. Talvez a grande questão seja saber em que momento ele se identificou como homossexual e se reconheceu neste lugar. Esse reconhecimento faz com que ele assuma outra postura, que é da denúncia, de ir à Coordenação (porque essa está trabalhando com questões de bullying) e também de ameaçar procurar a polícia, porque sabe que isso é crime. Butler (2007; 2009) também chama atenção para a importância deste reconhecimento e de tomar a palavra e, assim, dar novo sentido à agressão, como aconteceu com o termo queer, que de pejorativo assumiu outro sentido, de “orgulho”. O que Petrus parece reclamar não é com o fato de ser homossexual, mas sim com o de ser agredido, de ser constantemente chamado de “bichinha”.

Durante muito tempo as agressões entre alunos no contexto escolar foram entendidas como “brincadeira de crianças e adolescentes”, de forma que era “próprio da idade” e não cabia intervenção, já que todos, um dia, passaram por isso e resolveram as questões e, portanto, seria um processo natural de relação entre eles. Essas agressões ou “brincadeiras” são organizadas por falas, gestos, práticas, traduzidas em apelidos, nomes, xingamentos, injúrias que definem sujeitos. As pessoas não são sujeitos simplesmente pelo nome que são chamadas, apelidadas, xingadas. Ao ser tratado desta forma, esse nome, apelido ou xingamento está servindo para menosprezar. No entanto, ele também pode ser entendido e utilizado de outra forma, abrindo uma nova possibilidade. Ao ser chamado por um nome se oferece à pessoa certa possibilidade de existência e de resistência. Se entendemos essas relações como atravessadas por poder, isso nos conduz à analítica foucaultiana (1988) em que onde há poder há resistência, que são partes de um mesmo processo de constituição dos sujeitos. No entanto, parece importante saber se a pessoa que é invocada pela palavra “viado” ou “sapatão” está autorizada a falar e sob que circunstâncias. Essas formas de expressão, de agressão, de relacionamento são enunciados que funcionam na medida em que se apresentam como um ritual, repetidos ao longo do tempo, de forma que são naturalizados. Assim não nos chamam mais atenção e estabelecem

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um campo de ação que não se limita ao momento da agressão. É um ritual que está organizado e tem conseqüências para além da escola. A homofobia é um ritual de historicidade, ou seja, se organiza a partir de um conceito surgido no século XIX – a homossexualidade5 – de forma que recupera esse passado, faz ele presente. No entanto, excede a ele, sendo efeito de invocação desse passado ao mesmo tempo em que prepara o futuro porque escapa à enunciação a partir das suas conseqüências.

Na minha prática como docente e como Coordenador do Ensino Fundamental, me deparava constantemente com situações em que alunos vinham reclamar de estarem sofrendo com determinados apelidos, muitos deles relacionados às homossexualidades e de seu entendimento comum de algo que ninguém quer ser, algo negativo. Chamados para conversar sobre essas questões, era comum também ouvir dos “agressores” que tal fato era apenas uma “brincadeira”. Esse aspecto também apareceu na pesquisa sobre bullying nas escolas. As falas surgidas a partir dos meninos parecem manter esse sentido de “brincadeira”, demonstrando certa naturalidade com o fato, já que se trata de uma negociação entre “homens”, ou de uma relação com as mulheres, marcada por certa hierarquia, que atribui a elas um aspecto de inferioridade. Por sua vez, as falas das meninas reforçam essa relação, em que as mulheres acabam se vendo como aquelas sem forças diante do mais forte. Outros estudos já mostraram como as “brincadeiras” entre meninos são marcadas pela violência enquanto as que envolvem meninas se destacam no campo da afetividade (FERRARI, 2007). Dessa forma, surgem reflexões que nos ajudam a questionar e a recuperar o espanto com as formas pelas quais uma sociedade estabelece suas relações de gênero. Mais do que isso, nos possibilitam descrever as relações de poder que estão presentes, assim como as resistências, visto que como nos lembra Foucault (1999, p. 91) “que lá onde há poder há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação do poder”. O interessante é saber por onde passam essas relações, desvendar suas maneiras de expressão, seus artifícios, suas sutilezas e como isso está servindo para organizar um sentido de homossexualidade.

5 Foi no século XIX que a homossexualidade foi inventada (FOUCAULT, 1988) através do discurso médico. Antes disso, existiam práticas homoeróticas, mas não existia o termo homossexual e, portanto, não existiam os homossexuais. Com o surgimento do conceito Homossexualismo, surgiu também um campo semântico capaz de dar origem ao homossexual, entendido neste momento como doente e, portanto como algo negativo.

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Perguntados sobre o que é humilhar outra pessoa, surge entre os meninos: “é agredir uma outra pessoa, ressaltando seus aspectos negativos”, “colocar uma pessoa em uma situação inferior a minha”, “humilhar é se impor sobre uma outra pessoa”. Essas falas parecem revelar um certo “orgulho” de fazer parte do grupo como se servisse para “comprovar” que são “homens de verdade”. Essa categoria de “homens de verdade” só é entendida em relação aos “homens de mentira”, aqueles que são considerados menos homens, ou não homens, mais próximos do feminino.

Outra visão aparece quando se trata de meninas. “humilhar é uma forma de discriminação que devemos combater”, “humilhar é não deixar que a pessoa seja do jeito que ela realmente é, impondo a ela os conceitos que a sociedade exige”. Esses discursos vão construindo uma relação binária entre homens e mulheres. Essa desigualdade entre homens e mulheres foi sendo construída através de vários discursos – o religioso, o médico, o filosófico e o pedagógico – que foram capazes de colocar em circulação representações de gênero, comumente vinculadas às concepções de natureza biológica que justificaram essa desigualdade. Foucault (1999) ressalta que uma das formas mais eficazes de governo das populações ocorreu pelo controle dos corpos e da sexualidade. Dessa forma, as mulheres, desde o século XIX foram comparadas com as crianças, como seres inferiores. Considerando que os gêneros são construídos em relação, homem e mulher se estruturam negando o gênero oposto. A mulher nega o homem, mas o homem nega a mulher e o homossexual. As homossexualidades têm sua origem vinculada ao binarismo de gênero, às fronteiras estabelecidas entre o que é ser homem e o que é ser mulher.

Como ressalta Butler (2007) são as relações de poder que operam nessa divisão binária entre o que é do homem e da mulher e que serve para pensar o conceito de gênero. Que relações de poder estão sendo colocadas em vigor na escola e estão servindo para construir o “sujeito” e o “outro”, essa relação binária entre “homens” e “mulheres”? Mais do que isso, como elas estão servindo para construir uma certa coerência interna desses gêneros? Situações como essa, em que as meninas assumem o lugar do “mais fraco”, nos possibilita uma boa oportunidade para problematizar a construção dos gêneros, a hierarquização estabelecida entre eles e como isso está na própria constituição dessas categorias.

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É necessário demonstrar que não são propriamente as características sexuais, mas é a forma como essas características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada sociedade e em dado momento histórico. Para que se compreenda o lugar e as relações de homens e mulheres numa sociedade importa observar não exatamente seus sexos, mas sim tudo o que socialmente se construiu sobre os sexos. O debate via se constituir, então, através de uma nova linguagem, na qual gênero será um conceito fundamental (LOURO, 1997, p. 21. Grifo da autora.).

Com esse argumento, a autora defende ainda que o conceito de gênero serve, assim, tanto como uma “ferramenta analítica” quanto uma “ferramenta política” (LOURO, 1997). Pensar esse conceito e as relações que se estabelecem no seu interior e entre eles como ferramentas analítica e política é evidenciar ou mesmo explicar essas categorias como efeitos de uma construção específica de poder, e revela uma forma de investigação crítica inaugurada por Foucault (1988) através da genealogia. Os estudos genealógicos não se preocupam com as origens do gênero, nem tampouco com a “verdade” do desejo masculino ou feminino, recusando a existência de uma identidade sexual genuína. Dessa forma, ele se interessa pelos investimentos políticos da construção e negociação entre os gêneros, entendendo as identidades de gênero como efeitos de instituições, práticas e discursos com pontos instáveis, múltiplos e difusos de origem. Essa é uma contribuição importante dos estudos foucaultianos, na medida em que defende como investigação o trabalho contínuo de focar e desfocar a análise nessas instituições definidoras, tanto do falocentrismo quando da heterossexualidade compulsória.

A homofobia evidencia pontos já ressaltados por autores como Louro (1997), Butler (2003) e Foucault (1988), na medida em que assumimos como foco o gênero, entendido numa perspectiva de poder, como uma construção relacional em que não somente está se forjando a ideia de “homem” como também de “mulher”. Não quero dizer com isso que os meninos “detêm” o poder e as meninas estão desprovidas dele. O poder está nessa relação que se estabelece entre meninos e meninas e que, portanto, o poder não pode ser entendido como uma “estratégia”, como um privilégio de quem o detém, ou como algo que se conquista, que se apropria. O poder é praticado por todos, uma vez que ele tem efeitos sobre suas ações. Dessa forma, podemos interrogar como o exercício do poder, organizado por manobras, práticas e discursos de violência está

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resultando em ações absorvidas, aceitas, contestadas, resistentes, criando assim, as categorias de gênero – meninos e meninas.

A pluralidade do masculino e do feminino demonstra que é por meio das relações sociais que os gêneros são construídos, revelando a ação das práticas sociais na direção dos corpos, na constituição dos seres. Neste sentido, trazer para discussão as relações que se estabelecem e que servem para organizar o contexto escolar é pensar em algo mais amplo. A homofobia como violência e a construção das diferenças servem para pensar os gêneros no contexto escolar, buscando problematizar as maneiras e os mecanismos de compreensão e representação das características sexuais. “Pretende-se, dessa forma, recolocar o debate no campo do social, pois é nele que se constroem e se reproduzem as relações (desiguais) entre os sujeitos” (LOURO, 1997, p. 22). Guacira Louro argumenta ainda que afirmar esse caráter social da construção dos gêneros nos obriga a considerar as distintas sociedades e tempos de sua organização, o que impede as generalizações e os essencialismos reforçando o aspecto de construção e de processo. “Observa-se que as concepções de gênero diferem não apenas entre as sociedades ou os momentos históricos, mas no interior de uma dada sociedade, ao se considerar os diversos grupos (étnicos, religiosos, raciais, de classe) que a constituem” (LOURO, 1997, p. 22-23).

A persistência e o investimento discursivo e institucional nas identidades de gênero coerentes acabam criando oportunidades de crítica e de problematização dos limites e objetivos das práticas reguladoras, ao mesmo tempo em que servem para construir rivalidades, resistências e rupturas, aquilo que foge e que instaura a desordem nos gêneros. Nesse sentido, a homofobia como prática de violência, parece se constituir a partir dessa noção de gênero como algo coerente. Ela pode ser entendida como a luta contra qualquer desvio dessa coerência, nos chamando atenção para a necessidade de problematizar a serventia dessas ações. Longe de tentar justificar seu exercício, ações homofóbicas se relacionam com a visão de fronteira entre os gêneros. Estabelecemos fronteiras e, quando um menino se aproxima “do que é feminino” ou uma menina daquilo que é “masculino”, sofrem a agressão. Quanto mais próximo um gênero está do que é tido como próprio do gênero oposto, mais sujeito à agressão. A homofobia agiria como um recado: “Você está fora do seu gênero, está fora do seu local e por isso eu posso te agredir”. Se esta é a organização da homofobia, me

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parece que também é sua força de resistência, ou seja, a homofobia tem que nos servir para que possamos problematizar essas fronteiras de gênero, possibilitando atravessamentos, desconstrução dos gêneros como algo coerente.

HOmOFObIa Na esCOla

Mais do que um diálogo entre a construção de gênero e as sexualidades, o que parece ocorrer é mesmo um certo “embaralhamento” entre esses dois conceitos. Além disso, parece possível afirmar que entre eles o que se traduz como um “problema” para a escola são questões relacionadas às sexualidades, principalmente, às homossexualidades. As homossexualidades estão presentes no cotidiano escolar quase que diariamente (FERRARI, 2000), seja como fato (alunos classificados como tal) ou como assunto (quando o assunto emerge nas relações entre alunos). Diante dessa situação cabe perguntar de que forma as homossexualidades são apresentadas discursivamente? A que elas estão servindo? A quem está ajudando e a quem está prejudicando? Até que ponto a escola está discutindo o que aparece?

A escola está sendo chamada a olhar para o campo de disputa que está organizando as homossexualidades, sobretudo no que se refere ao combate à homofobia. Os grupos gays interessados na desconstrução dos parâmetros da homossexualidade muitas vezes vinculados às noções de doença e pecado e na construção de imagens e discursos mais positivos dessas identidades, contribuiu para colocar a educação no centro das atenções reivindicando investimentos e uma articulação maior com o Estado, produzindo material informativo, preocupados com a formação e informação de educadores e principalmente com os adolescentes em tempos de Aids. Outro aspecto importante que serve para demonstrar um movimento de mudança em torno do tratamento da homossexualidade na escola são as políticas públicas que deram origem ao Programa “Brasil sem homofobia”, que visa ao combate à violência e à discriminação contra LGBT e produção da cidadania homossexual nas escolas. Esses dois aspectos juntos – a ação dos grupos gays e os programas federais – vêm impulsionando ações positivas para melhorar a situação do tratamento com a homofobia.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

A homofobia está estreitamente ligada à heteronormatividade, à ideia de que a heterossexualidade é a norma, “isto é, a obsessão com a sexualidade normalizante, através de discursos que descrevem a situação homossexual como desviante” (BRITZMAN, 1996, p. 79). Diante desse conceito que está posto na sociedade e se apresenta nas escolas organizando os confrontos e negociações identitárias, a homofobia passa a ser entendida como a “discriminação contra as pessoas que mostram, ou a quem se atribui, algumas qualidades (ou defeitos) atribuídos ao outro gênero. A homofobia engessa as fronteiras do gênero” (WELZER-LANG, 2001, p. 465). Com base nesses conceitos parece possível pensar o que está posto na escola quando a homossexualidade está sendo utilizada para humilhar, agredir e violentar aqueles que fogem do modelo hegemônico do masculino, dos atributos do que é ser homem para a cultura brasileira. Assim, aparecem falas como: “As humilhações ocorrem de diversas maneiras como preconceito racial, tipo físico, opção sexual, etc...”, “Para mim, humilhar é, de certa forma, desrespeitar uma característica do outro como, por exemplo, se ele anda rebolando ou se fala mole, e fazer com que ele se sinta envergonhado de ser “diferente”, chamando de viadinho, gay”, “pessoas gordas sofrem humilhações, gays e lésbicas e até mesmo as pessoas que são julgadas normais pela sociedade, em algum momento, são humilhadas”.

A partir das pesquisas foi possível perceber que as homossexualidades são tensas para os meninos e não se traduzem em uma ameaça para as meninas. Dessa forma, ela diz respeito à construção da identidade e da dominação masculina. Tanto assim que o combate à homofobia representa o combate ao machismo e a possibilidade de vivências de outros tipos de ser homem, de outras masculinidades. O homem no processo de construção de sua identidade nega a mulher e o homossexual, daí tanta veemência em se afirmar não-homossexual. Muitas vezes esse encontro entre a negação da homossexualidade e a afirmação da masculinidade, é regulado pela violência – múltiplas e variadas – violências domésticas de pais para filhos, no trabalho através de demissões e não contratação e também violência nas escolas, pela expulsão e invisibilidade da homossexualidade.

Considerando que a sexualidade é um conjunto de práticas e discursos em torno dos desejos, das afetividades, dos sentidos e sentimentos, dos gêneros e que atravessam e são atravessados pelo cultural e pelo social, podemos dizer que ela não

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Reflexões Sobre a Homofobia na Escola

é natural. Mais do que isso a sexualidade implica em investimento constante. Neste sentido, as masculinidades e as heterossexualidades estão em crise e em processo de dissolução (GUASCH, 2007). Essa crise tem como fundamento as mudanças sociais que afetam nossa sociedade atual. No entanto, não é possível dizer que essa crise se produz da mesma forma em todos os espaços sociais. Além disso, essa crise também faz com que haja um movimento de resposta e, recuperando a ideia de que as sexualidades (a heterossexualidade em especial), são resultados de investimento, me parece que há um recrudescimento de práticas agressivas em torno da negação e mesmo exclusão das homossexualidades entendidas como ameaça.

Segundo Guasch (2007, p. 121), “todas as características que definem a heterossexualidade estão em crise. Todas, exceto a homofobia”. A homofobia seria o último construtor da heterossexualidade, uma vez que ela pode ser definida como o temor profundo e irracional presente entre os meninos ante a possibilidade de amar a pessoas do mesmo gênero. Nossa sociedade trabalha com a definição binária de gênero, estabelecendo fronteiras entre o que é feminino e o que é masculino. Dessa forma, pressupõe o feminino na mulher, negando-o no homem. Mais do que isso, o feminino é afastado do que é masculino. O menino é ensinado desde cedo a se afastar e mesmo ignorar o que é entendido como feminino. Parte da crise da heterossexualidade está na relação com essa fronteira, que cada vez mais está se dissolvendo e ficando menos clara. Isso faz com que haja uma redefinição das identidades, visto que elas são relacionais. Dessa forma, quando a mulher alterar o seu lugar na sociedade ela altera o lugar do homem também. As homossexualidades também servem para se pensar um novo lugar para o homem, uma vez que ela não nega o gênero. O homossexual é um homem com uma orientação sexual voltada para pessoas do mesmo sexo, organizando outro tipo de masculinidade que rompe com a divisão entre “coisas de homem” e “coisas de mulher”.

A masculinidade hegemônica exige um esforço e uma disciplina que implica em tensão para muitos meninos. Perguntados a respeito “do que é ser homem” eles respondiam: “é ter jeito de homem, falar grosso, pegar mulher, se impor...”, “ser macho, ter força, não ter frescura” , “meu pai me ensinou que é olhar as meninas, ele disse que homem pode olhar à vontade as meninas e eu olho”, “é ser diferente das meninas...”. A partir desses exemplos podemos inferir que ser homem está ligado diretamente

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a ser heterossexual e a necessidade de se afirmar constantemente, sem descanso. Além disso parece importante demonstrar para os outros que se é homem, daí tanta preocupação com a negação das homossexualidades, que parece aproximar o menino do que é entendido como feminino e expulsá-lo do seu gênero. A homossexualidade é quase entendida como um terceiro gênero. A homofobia acaba sendo uma característica da constituição das heterossexualidades e que condiciona um conjunto de identidades masculinas. A homofobia não é apenas odiar, temer ou estigmatizar as homossexualidades, mas pode ser definida como resultado do medo e insegurança que afeta os homens diante a possibilidade de amar outros homens. A homofobia como atributo da heterossexualidade hegemônica afeta a todos e se traduz num problema social grave. Afeta aos homossexuais que sofrem todo tipo de violência uma vez que são entendidos como ameaça, como algo negativo, expostos a maus tratos e morte. Afeta aos meninos que, em meio ao processo de construção das identidades de gênero e sexuais, não são capazes de aprender a serem homens de outra forma, demonstrando certa dificuldade com afetividade, o que implica em consequências nos relacionamentos com as mulheres, por exemplo.

Um das professoras da pesquisa Bullying e homofobia nas escolas nos relata um caso exemplar ao mencionar a dificuldade de um aluno de seis anos que não se aproximava de nada que correspondesse ao gênero feminino. Mais do que não se aproximar, negava qualquer vinculação com esse gênero, como, por exemplo, não usar o lápis de cor rosa ou aceitar meninas nas brincadeiras coletivas. Nas demais falas das professoras também aparece a preocupação com a homofobia nas escolas, sendo apontada como uma das causas de terem procurado o curso de capacitação em Homossexualidades organizado pelo MGM: “eu espero que o curso me ensine a lidar com os meus alunos homossexuais e ajudar a diminuir o sofrimento deles diante dos apelidos”, “eu quero aprender a combater a homofobia que eu vejo que está cada vez pior nas escolas”. Falas que nos fazem pensar o papel do Estado, das Secretarias de Educação, das escolas, das Universidades e dos grupos gays. Falas que nos fazem refletir sobre o entendimento de homossexualidade, como aquele que precisa de ajuda, como se somente eles sofressem. A homofobia nos serve para problematizar esse aspecto da escola como local de ajuda e nos induz a perguntar: diante da homofobia, quem precisa de ajuda? Quem agride ou quem sofre agressão? O professor que

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Reflexões Sobre a Homofobia na Escola

assiste e não se sente preparado de atuar frente a situações de agressão verbal e física, também não precisa de ajuda?

A homofobia está ligada a uma combinação de agressão linguística e física, a violência simbólica, emocional e física, que muitas vezes é inseparável. Ao dizer que as palavras ferem estamos associando o linguístico com o físico. Certas palavras e certas formas de se dirigir a alguém operam não somente contra um entendimento emocional, mas também contra o respeito ao bem-estar físico, ao corpo. Para que a violência funcione são necessárias certas circunstâncias, um campo de poder e de entendimento cultural dos significados por meio do qual os efeitos performativos possam se materializar (BUTLER, 2009). A homofobia acaba colocando o sujeito a que é direcionada a violência numa posição subordinada. Ela opera através de entendimento e representações das homossexualidades que são do senso comum, são convencionais. É uma linguagem que circula e ainda que necessite de sujeitos para ser colocada em vigor, nem começa e nem termina com esses sujeitos que agridem, que falam e nem tampouco se encerra no nome que se usa. “Viado”, “sapatão”, ou qualquer outro nome que sirva para agredir tem uma história, assim como a homossexualidade. Uma história que revela a constituição de um nome e de seu significado. No entanto, é importante entender esse processo como construção, o que significa que não são dados, mas que estão organizados numa onda de desconstrução e reconstrução e que abre caminhos para um fazer diferente, na medida em que problematizamos essas formas de ser e de se constituir.

Para terminar é importante reforçar o argumento central desse texto, ou seja, a defesa pela problematização das nossas formas de ser e estar no mundo e em relação. Mais do que isso, partindo do entendimento que somos seres de linguagem, produtos e produtores de discursos, apostamos num processo de ressignificação das linguagens. Isso coloca um grande desafio para a escola que é assumir essa ressignificação abrindo novos contextos, novas aproximações, falando de assuntos ainda não legitimados, dando voz e reconhecendo sujeitos ainda não reconhecidos e assim produzindo novas e futuras formas de legitimação. Enfrentar e combater a homofobia é possibilitar novas formas de ser, tanto homossexuais, quanto heterossexuais, tanto homens quanto mulheres.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

CONsIDeRaÇões FINaIs

Para encerrar gostaria de ressaltar alguns pontos que me parecem importantes e que tentei chamar atenção neste artigo. O primeiro é aquele que situa as sexualidades no campo construcionista, negando o caráter essencial e naturalizador das homossexualidades e das heterossexualidades. Isso significa dizer que as sexualidades não são atos naturais, mas construções sociais, ancoradas na história e na cultura. Entender que as questões de agressão em torno das homossexualidades, por exemplo, são resultados de construção cultural me parece o ponto central. Assim poderemos reconhecer o campo discursivo em que um pode e está autorizado a agredir, a nomear, a julgar e surgir como sujeito que se constitui, ao mesmo tempo em que criam os outros e os objetos a que se dirige. Reconhecer esse campo discursivo em que surgem os sujeitos do conhecimento e os objetos que são possíveis de se conhecer parece importante para se discutir as sexualidades na escola, as formas que elas assumem a partir das relações e discursos entre alunos, entre professores e alunos.

Um segundo ponto está ancorado na ideia de que fazemos coisas com as palavras, de forma que os alunos ao utilizarem palavras como “viadinho”, “bichinha”, “mulherzinha” como forma de agredir, nos coloca diante da relação entre sujeitos e processos comunicativos. Ao iniciar o processo com a fala este aluno é parte ativa desse processo. No entanto ele também é resultado dele, tanto porque está construindo sua identidade em oposição a esse sujeito que ele nomeia e agride, como traz para o confronto algo construído em outro tempo e momento e que faz parte da história das homossexualidades. Nascemos num mundo construído discursivamente antes mesmo de nossa chegada, de forma que esses discursos nos constituem. Não quero com isso dizer que essa capacidade de ferir tenha um efeito absoluto inevitável, ou mesmo irreversível. Ao contrário, advogo neste artigo pela necessidade de reconstruir as identidades comprometidas com essa desvalorização, apostando numa ação subversiva capaz de conduzir a uma interpretação outra dessas palavras, usos e processos comunicativos, de forma a problematizar seus usos.

A reformulação dessas práticas, das relações binárias e da norma pode ser um trabalho realizado pelas escolas no sentido de investir na multiplicidade,

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Reflexões Sobre a Homofobia na Escola

na imprevisibilidade e na ressignificação. Esse também é um ponto central neste artigo, comprometido com estratégias em torno das construções das identidades e das orientações sexuais. Assim sendo, a minha defesa na relação escolas, homossexualidades, homofobia é pela busca de novas possibilidades de constituição das subjetividades, sobretudo aquelas que são silenciadas, e que não são possíveis de serem ditas do ponto de vista dos discursos, que regulam em determinados momentos e contextos o campo da legitimidade social.

Trazer para o conhecimento dos leitores o que está acontecendo nas escolas em torno das homossexualidades é uma forma de dar voz às homossexualidades, uma maneira de problematizar suas construções. Neste sentido, quero que este artigo seja entendido como inscrito numa política de enunciação, que significa dizer que estou questionando e convidando o meu leitor a pensar a respeito de uma questão importante para as homossexualidades e para escola de forma geral: quem e em que situação está legitimado a tomar a palavra para definir e construir uma realidade? Mais especificamente, quem e em que situação tem autorização para falar e definir as homossexualidades? Que homossexualidades são construídas a partir daí? Em se tratando da escola, quero deixar claro que entendo que estamos diante de relações de poder ou de um modelo de poder em que estes espaços de classificação, nomeação, enunciação, revelação estão em negociação, estão abertos, são campos de luta entre instâncias e sujeitos que reivindicam suas posições. Entre esses atos que ocorrem e se repetem na escola, entre imposições e reapropriações em torno das sexualidades, que se negocia, se apropria ou se nega autoridade para nomear e dar significado às identidades. A condução deste artigo segue nesta direção para chamar atenção de novas possibilidades de resistência nestas relações, de forma que possamos estabelecer outros tipos de relações e sujeitos.

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ReFeRêNCIas bIblIOGRáFICas:

BRITZMAN, Deborah P. O que é esta coisa chamada amor, identidade homossexual, educação e currículo. Educação & Realidade, UFRGS, v. 21, n. 1, 1996.

bUTleR, Judith. El gênero en disputa – el feminismo y la suberversión de la identidad. barcelona: paidós, 2007

_____. Lenguaje, poder e identidad. madrid: editorial síntesis, 2009.

FANTE, Cleo. O fenômeno Bullying. Campinas: Ed. Verus, 2005.

FERRARI, Anderson. O professor frente ao homoerotismo masculino no contexto escolar. Dis-sertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-graduação em Educação/Universidade Federal de Juiz de Fora, 2000. _____. “O que é loba??? É um jogo sinistro, só para quem for homem” – Gênero e sexualidade no contexto escolar. 30o Reunião Anual da ANPED, Caxambu, 2007. Anais... Caxambu:Anped, 2007. Páginas.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

_____. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

GUASCH, Óscar. La crisis de La Heterosexualidad. Barcelona: Edición Laertes, 2007.

lOURO, Guacira lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estrutur-alista. petrópolis: vozes, 1997.

WELZER-LANG, Daniel. A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia. Revista estudos feministas, UFSC, v. 9, n. 2, 2001.

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HETERONORMATIVIDADE E HOMOFOBIA NO CURRÍCULO EM AÇÃO

Rogério Diniz Junqueira

[...] com 18 anos, ia começar um curso em uma escola estadual que aceitava pessoas da comunidade. Fiz minha inscrição e comecei o curso de italiano. Estava muito feliz porque sou descendente de italianos e tinha a chance de ter cidadania italiana. E já pensou eu poder ir morar na Itália? Seria um luxo! Na segunda semana, uma funcionária [...] disse que eu deveria esperar na entrada que a diretora queria falar comigo. Fiquei ali por uma meia hora e só depois [ela] me levou até a diretora, que estava no computador e nem me olhou na cara, dizendo: “Então você resolveu se sentir gente? Com a vida que leva, você acha que pode freqüentar lugares de gente de bem? Mas é muito atrevido mesmo! Você quer desmoralizar a minha escola? Quer sujar o nome da escola? Saia imediatamente daqui ou terei que chamar a polícia!”

Lara, travesti (PERES, 2009, p. 248)

Quando nos convencemos de que um grupo não vale nada, é subumano, estúpido ou imoral, e desumanizamos os seus membros, podemos privá-los de uma educação decente, sem que nossos sentimentos sejam afetados.

(ARONSON, 1979, p. 187)

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

Como nos ensina Agnes Heller (1992), a vida cotidiana é, pura e simplesmente, a vida de todas as pessoas. Sem conseguir eliminá-la, todos a vivemos sem poder dela nos desvincular. E ela envolve cada aspecto de nossas individualidades, personalidades, valores, crenças, preconceitos, dilemas e conflitos. É constituída de cruzamentos de múltiplas dialéticas entre situações rotineiras e acontecimentos singulares (TEDESCO, 2003), ao sabor das quais cada sujeito se constitui, se transforma, dá e modifica os significados atribuídos a si mesmo, ao mundo e à vida.

Aqueles/as que povoamos o mundo social da escola assistimos no nosso dia-a-dia a um pipocar infindável de discursos, enunciados, gestos e ocorrências – e dele fazemos parte de variados modos. Trata-se de uma cotidianidade que se desdobra na esteira de situações corriqueiras, fortuitas e de outras mais incomuns. Isso tudo, dentro e fora da sala de aula, nas mais distintas, banais e inusitadas situações de aprendizagem, no âmbito das quais se constroem saberes, sujeitos, identidades, diferenças, hierarquias (CAMARGO e MARIGUELA, 2007). Cotidiano e currículo estão, por conseguinte, mutuamente implicados.

Em diversas maneiras e intensidades, o cotidiano tende a aderir-se a, engastar-se em, interagir com e inferir em cada aspecto do conjunto de saberes e práticas que constituem o currículo proclamado como oficial (o “currículo explícito”). No entanto, possivelmente o faça de modo ainda mais intenso ao longo das manifestações sub-reptícias, veladas e até negadas do “currículo oculto” (JACKSON, 1990 [1968]). Sobre este, vale lembrar:

O currículo oculto é constituído por todos aqueles aspectos do ambiente escolar que, sem fazer parte do currículo oficial, explícito, contribuem, de forma implícita para aprendizagens sociais relevantes [...] o que se aprende no currículo oculto são fundamentalmente atitudes, comportamentos, valores e orientações [...]. Entre outras coisas, o currículo oculto ensina, em geral, o conformismo, a obediência, o individualismo [...] aprende-se, no currículo oculto como ser homem ou mulher, como ser heterossexual ou homossexual, bem como a identificação com uma determinada raça ou etnia (SILVA, 2002, p. 78-79).

As fontes e os meios do currículo oculto parecem inesgotáveis e animam, caracterizam e delineiam a própria cotidianidade escolar: as relações sociais da escola, a organização do espaço, o ensino do tempo, o conjunto de rituais, regras,

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Heternormatividade e Homofobia no Currículo em Ação

regulamentos e normas, as diversas divisões e categorizações explícitas e implícitas próprias do mundo escolar (“bons”/“maus alunos” etc.), entre outras (SILVA, 2002, p. 79).

No entanto, isso não significa que somente o currículo oculto ensina conformismo, aprofunda e cimenta valores e crenças preconceituosas. O assim dito currículo formal, o explícito, em todos os seus aspectos se constitui um artefato político e, ao mesmo tempo, uma produção cultural e, logo, discursiva. É um campo de permanentes disputas e negociações em torno de cada disposição, princípio de visão e de divisão do mundo e das coisas – especialmente daquelas que dizem respeito ao mundo da educação e às figuras que o povoam e, ali, (re)definem sentidos e (re)constroem significados.

Bem por isso, parece muito proveitosa a noção de “currículo em ação”, por meio da qual nos referimos à pluralidade de situações formais ou informais de aprendizagem, geralmente sob a responsabilidade da escola, vivenciadas por estudantes (e também professores/as, dirigentes e funcionários/as), que podem ser ou não ser planejadas e, ainda, ocorrer dentro ou fora da sala de aula. Nas palavras de Corinta Geraldi (1994, p. 117): aquilo que “ocorre de fato nas situações típicas e contraditórias vividas pelas escolas, com suas implicações e compreensões subjacentes, e não o que era desejável [...] e/ou o que era institucionalmente prescrito”.

O currículo em ação também é um campo de produção, contestação e disputas: abriga relações de poder, formas de controle, possibilidades de resistência/conformismo. Nele, universos simbólicos distintos e desigualmente valorizados se enfrentam, não raro ao largo de processos de resistência desenvolvidos ao sabor (ou em oposição) de disposições sociais (duradouras ainda que dinâmicas) do campo em que se desdobram.

A prática da observação e a análise da trama miúda do cotidiano escolar podem revelar um conjunto infinito de situações e procedimentos pedagógicos e curriculares (ora mais explícitos, ora mais implícitos, e, de toda a sorte, “em ação”), estreitamente vinculados a processos sociais por meio dos quais se desdobra e aprofunda a produção de diferenças, distinções e clivagens sociais que interferem, direta e indiretamente, na formação, no desempenho escolar de cada um/a e na desigualdade da distribuição do “sucesso” e do “fracasso” escolar.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

Assim, procuro aqui refletir sobre dimensões da heteronormatividade que impregnam o currículo em ação, a partir da problematização de fragmentos de relatos que, na sua maioria, me foram apresentados por profissionais da educação, no decorrer de atividades de formação de que participei no âmbito da implementação do Programa Brasil Sem Homofobia, entre 2005 e 2009.1 São todos eles depoimentos de mulheres, docentes das redes públicas de ensino, em geral jovens, de todas as regiões do país.2 Todos mostram semelhanças ou nos fazem pensar em situações recorrentemente vividas em cada sala de aula ou pátio escolar, nas instâncias de deliberação da política educacional, nos ambientes de trabalho e de lazer, e em muitas famílias.

Resolvi suprimir informações que permitiriam a identificação das personagens e das escolas envolvidas, para evitar produzir ainda maior desconforto para as pessoas que foram ou continuam sendo alvo das violações relatadas. Não há aqui a pretensão de esmiuçar exaustivamente cada situação, esgotar a discussão ou impor a minha leitura como a única possível. O intuito é, antes, o de contribuir para a discussão, o questionamento, inquietar olhares acostumados com um reiterado estado de coisas e animar aqueles/as que apresentam suas retinas fatigadas.

Embora deva aqui me ater às questões mais relacionadas à homofobia, o que procurarei trazer não difere muito do que ocorre nos casos de outras formas de discriminação. Pelo contrário, mantém nexos profundos com elas. Além disso, vale ressaltar que essa mesma escola — que, cotidianamente, cultiva e ensina sexismo, homofobia, racismo e outras formas de preconceito e discriminação — também se revela um espaço privilegiado não apenas para a crítica, a problematização, a desestabilização de opressivos mecanismos de reificação e marginalização, bem com de crenças e atitudes desumanizantes. Ali, o costumeiro ou trivial, naturalizado e tido como incontornável, pode ser confrontado, ao longo de uma prática pedagógica disposta a promover releituras, reelaborações, novas e mais criativas maneiras de ser,

1 Para maiores informações sobre a implementação do Programa Brasil Sem Homofobia na área da educação, vide Junqueira, Chamusca e Henriques (2007).2 Embora minoritários, havia homens nesses encontros em que se discutia homofobia nas escolas. Quase que invariavelmente, permaneciam sem intervir. Talvez uma das razões seja um temor inconsciente de que a demonstração de um maior interesse pelo tema pudesse colocar em risco o reconhecimento social de suas masculinidades. Eis um dos aspectos delicados dessa temática. Uma pessoa branca não corre tanto risco de perder sua “branquitude” ao participar de eventos em que se discuta racismo.

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Heternormatividade e Homofobia no Currículo em Ação

ver, classificar e agir. Estas, traduzidas em novas possibilidades de currículo em ação, poderiam desencadear processos dialógicos e críticos de reinvenção e dignificação da vida, que, por sua vez, teriam, como um dos principais eixos, a promoção da igualdade e direito à diferença.

HeTeRONORmaTIvIDaDe, HOmOFObIa e peDaGOGIa DO aRmáRIO

Dizer que o cotidiano escolar e as diferentes formas de expressão curricular são atravessados por manifestações de valores, crenças e preconceitos não significa que fatores curriculares lato sensu, (re)produtores de alienação, desapossamento e hierarquias opressivas, devam ser banalizados, naturalizados e aceitos. Se assim fosse, nós profissionais da educação estaríamos eticamente autorizados a fazer de nossas ocupações meios propícios à livre manifestação de preconceitos e discriminações. Para que a escola e seus currículos se constituam – como pretendemos – em espaços e oportunidades efetivamente pedagógicos, seguros e de formação para a vida, a cidadania e a liberdade, seria importante nos interrogarmos constantemente sobre que fatores, discursos e práticas ainda a levam a ser diferente disso.

Ao longo de sua história, a escola brasileira (e por escola, daqui em diante, pretendo referir-me também a seus currículos, lato sensu) estruturou-se a partir de pressupostos fortemente tributários de um conjunto dinâmico de valores, normas e crenças responsável por reduzir à figura do “Outro” (considerado “estranho”, “inferior”, “pecador”, “doente”, “pervertido”, “criminoso” ou “contagioso”) todos aqueles/as que não se sintonizassem com os arsenais cujas referências eram e ainda são centradas no adulto, masculino, branco, heterossexual, burguês, física e mentalmente “normal”. A escola tornou-se, por conseguinte, um espaço em que rotineiramente circulam preconceitos que colocam em movimento discriminações de classe, cor, raça/etnia, sexo, gênero, orientação sexual, capacidade físico-mental etc. (AQUINO, 1998; LOURO, 1999; 2004a; 2004b; LOURO, FELIPE e GOELLNER, 2003; MUNANGA, 2005; CAMARGO e MARIGUELA, 2007; CARVALHO, 2009; JUNQUEIRA, 2009).

Com efeito, classismo, racismo, sexismo e homofobia (ou heterossexismo, se preferirmos), entre outros fenômenos discriminatórios, fazem parte da cotidianidade

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

escolar não como elementos intrusos que adentram sorrateiramente os muros da escola. Ou seja, além de terem sua entrada geralmente franqueada, eles são cotidianamente ensinados na escola, produzindo efeitos sobre todos/as (estudantes ou não). Não por acaso, ao falar de suas lembranças da vida escolar, Guacira Lopes Louro nota:

[...] as marcas permanentes que atribuímos às escolas não se referem aos conteúdos programáticos que elas possam nos ter apresentado, mas sim se referem a situações do dia-a-dia, experiências comuns ou extraordinárias que vivemos no seu interior, com colegas, com professoras e professores. As marcas que nos fazem lembrar, ainda hoje, dessas instituições têm a ver com as formas como construímos nossas identidades sociais, especialmente nossa identidade de gênero e sexual (LOURO, 1999, p. 18-19).

Isso vale também, de maneira crucial, para a construção de nossas identidades étnico-raciais e os processos de edificação de complexas hierarquias em que somos continua e contraditoriamente enredados e que, de variadas maneiras, acionamos ou a elas resistimos.

A escola é um espaço obstinado na produção, reprodução e atualização dos parâmetros da heteronormatividade. Com este conceito, referimo-nos a um conjunto de disposições (discursos, valores, práticas etc.) por meio dos quais a heterossexualidade é instituída e vivenciada como única possibilidade legítima de expressão sexual e de gênero (WARNER, 1993), com base na crença da existência natural de dois sexos que se traduziriam, de maneira automática e correspondente, em dois gêneros complementares e em modalidades de desejos igualmente ajustadas a esta lógica binária (BUTLER, 2003).

A heteronormatividade está na ordem das coisas, no cerne das concepções curriculares, e a escola faz de tudo para reafirmar e garantir o êxito dos processos de heterossexualização compulsória e de incorporação das normas de gênero (BUTLER, 2003). No entanto, não deixa de ser curioso o fato de que, ao mesmo tempo em que ela faz isso, ela se vê obrigada a se empenhar para conter manifestações da sexualidade que considera normais (EPSTEIN e JOHNSON, 2000).

Histórica e culturalmente transformada em norma, produzida e reiterada, a “heterossexualidade compulsória” torna-se o principal sustentáculo da heteronormatividade (LOURO, 2009). Não por acaso, a homofobia age aí, entre outras coisas, instaurando um regime de controle e vigilância não só da conduta

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Heternormatividade e Homofobia no Currículo em Ação

sexual, mas também das expressões e das identidades de gênero, como também das identidades raciais. Por isso, podemos afirmar que a homofobia é em si mesma uma manifestação de sexismo (BORRILLO, 2001) e, não raro, está associada a diversos regimes e arsenais normativos, normalizadores e estruturantes de corpos, sujeitos, identidades, hierarquias e instituições, tais como o classismo, o racismo, a xenofobia.3

A este ponto, é oportuno observar que o termo “homofobia” tem sido comumente empregado em referência a um conjunto de emoções negativas (aversão, desprezo, ódio, desconfiança, desconforto ou medo) em relação a “homossexuais”. No entanto, entendê-lo assim implica pensar o seu enfrentamento por meio de medidas voltadas sobretudo a minimizar os efeitos de sentimentos e atitudes de indivíduos ou de grupos homofóbicos. Em vez disso, creio ser mais adequado entender o fenômeno da homofobia mais do que simplesmente como algo relativo a um conjunto de atitudes negativas, ou seja: um fenômeno social relacionado a preconceitos, discriminação e violência, diretamente, voltado contra todas as pessoas que transgridam as normas de gênero e a matriz heterossexual e, indireta e potencialmente, contra qualquer pessoa, uma vez que todo e qualquer indivíduo é levado a confrontar-se com tais normas (JUNQUEIRA, 2007, 2009).

O aporte da escola, com suas rotinas, suas regras, suas práticas e seus valores, a esse processo de normalização heterorreguladora e de marginalização de sujeitos, saberes e práticas dissidentes em relação à matriz heterossexual tende a ser crucial. Ali, a homofobia pode agir, de maneira sorrateira ou ostensiva, em todos os seus espaços.

3 Refletir mais detidamente sobre tais articulações nos faria extrapolar os limites deste trabalho. No entanto, cabe observar que, no âmbito da construção social dos corpos, a ordem da sexualidade não se constitui isoladamente, mas ao sabor das dinâmicas das posições e das oposições que organizam todo o mundo social. Desse modo, marcadores identitários relativos a sexo, gênero, orientação sexual não se constroem separadamente e sem fortes pressões sociais concernentes a outros marcadores sociais, como cor, raça, etnia, corpo, idade, condição físico-mental, classe, origem etc. Por isso, tanto estes quanto aqueles não poderiam ser tomados de maneira isolada e sem levar em consideração os contextos de produção de seus significados, os múltiplos nexos e entrecruzamentos que estabelecem entre si e os mútuos efeitos que produzem. As identificações aí produzidas, como observa Judith Butler (2002, p. 174), são plurais justamente por estarem imbricadas: “uma é veículo da outra”. E, não por acaso, alerta Deborah Britzman (2004, p. 164): “o corpo não é vivido a prestações”, e, considerados em conjunto, “os marcadores do corpo agem uns sobre os outros de maneira que se afiguram imprevisíveis e surpreendentes” (JUNQUEIRA, 2009, p. 377).

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Com efeito, em distintos graus, na escola podemos encontrar homofobia no livro didático, nas concepções de currículo, nos conteúdos heterocêntricos, nas relações pedagógicas normalizadoras. Ela aparece na hora da chamada (o furor em torno do número 24, por exemplo; mas, sobretudo, na recusa de se chamar a estudante travesti pelo seu “nome social”), nas brincadeiras e nas piadas “inofensivas” e até usadas como “instrumento didático”. Está nos bilhetinhos, carteiras, quadras, paredes dos banheiros, na dificuldade de ter acesso ao banheiro. Aflora nas salas dos professores/as, nos conselhos de classe, nas reuniões de pais e mestres. Motiva brigas no intervalo e no final das aulas. Está nas rotinas de ameaças, intimidação, chacotas, moléstias, humilhações, tormentas, degradação, marginalização, exclusão etc.

Tratamentos preconceituosos, medidas discriminatórias, ofensas, constrangimentos, ameaças e agressões físicas ou verbais têm sido uma constante na vida escolar e profissional de jovens e adultos que, de maneira dinâmica e variada, podem se identificar ou ser identificados/as como lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais (LGBT)4 ou outras categorizações semelhantes, análogas ou equivalentes.

Dito de uma maneira mais abrangente: pessoas identificadas como dissonantes em relação às normas de gênero e à matriz heterossexual serão postas sob a mira preferencial de uma pedagogia da sexualidade (LOURO, 1999) geralmente traduzida, entre outras coisas, em uma “pedagogia do insulto” por meio de piadas, brincadeiras, jogos, apelidos, insinuações, expressões desqualificantes etc. Tais “brincadeiras” constituem-se poderosos mecanismos heterorreguladores de objetivação, silenciamento, dominação simbólica, normalização, marginalização e exclusão. E, não raro, fazem com que a pedagogia do insulto seja acompanhada de tensões de invisibilização e revelação (frequentemente involuntária), próprias de uma pedagogia do armário.

Vale lembrar que o “armário” (como é conhecido o processo de ocultação da posição de dissidência em relação à matriz heterossexual), por um lado, regula a

4 Emprego a categoria LGBT sem apego simplista às “políticas de identidade”, cujos limites e armadilhas são há muito apontados (SILVA, 2000). Uso-a não a partir de pressupostos essencialistas ou fomentadores de classificações, cesuras ou exclusões, mas considerando-a uma categoria política, dotada de dinâmicas e tensões internas e externas, passível de constantes reconfigurações.

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vida social de pessoas que se relacionam sexualmente com outras do mesmo gênero, submetendo-as ao segredo, ao silêncio ou expondo-as ao desprezo público – e, não raro, a tudo isso. Por outro, privilegia as que se mostram conformadas à ordem heterossexista e reforça as instituições e os valores heteronormativos (SEDGWICK, 2007).5

vIGIlâNCIa Das NORmas De GêNeRO e peDaGOGIa DO INsUlTO

Nas festas que organizamos nas turmas da pré-escola, a gente costuma distribuir balões coloridos. Esse ano, um dos meninos, de 5 anos, ficou com o último. Ele não queria porque era cor-de-rosa. Ele ficou tenso, e eu não sabia bem o que fazer, mas fui terminar de cuidar dos outros porque os pais foram chegando para buscar os filhos. A quem passava perto dele ele se explicava: “Olha, não fui que escolhi esse balão. Eu sou homem”. Uma mãe até respondeu a ele: “O que é que tem? Rosa é cor”. Não sei se algum coleguinha riu dele. Depois entendi que estava mais com medo que o pai viesse buscá-lo e o visse com aquele balão. Contei o sucedido para a coordenadora. Ela disse para não fazermos balões rosas daqui em diante nas festas em que há meninos. Na escola em que trabalho, o vice-diretor sempre se referia a um determinado aluno como “aquela coisa”. Havia outros estudantes, mas era apenas esse aluno que ele confrontava. Ele se dizia ultrajado e sempre se dirigia ao aluno aos berros, de preferência quando havia público.

O cotidiano escolar é um universo privilegiado para observar a contínua vigilância das normas de gênero sobre todas as pessoas. No primeiro caso, temos uma cena de uma criança de apenas cinco anos aterrorizada diante da possibilidade de ser admoestada por um pai temeroso de ver a masculinidade do filho posta em risco. Por parte da professora, o aluno certamente teria necessitado de um amparo maior do que lhe foi oferecido. De todo modo, a atitude da coordenadora é mais reveladora do que a dificuldade da professora em lidar com algo para o qual não foi preparada

5 “Sair do armário”, “assumir a condição homossexual” ou a “identidade gay” representa uma afirmação politicamente estratégica e, em certas circunstâncias, indispensável, no quadro histórico da luta por direitos civis e do enfrentamento da homofobia. No entanto, a ideia de que se possa “assumir” uma identidade sexual costuma se revestir de um caráter essencialista, como se existisse, pronto para ser assumido, o “verdadeiro homossexual” (diametralmente oposto ao “verdadeiro heterossexual”).

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e cujo enfrentamento requereria um respaldo institucional que inexistia: a escola preferiu ignorar a discussão, renunciou ao seu papel de problematizar preconceitos e possibilitar o surgimento de maneiras de ver e agir diferentes daquelas postas pelas normas de gênero. Preferiu o silêncio conformista e a reiteração da norma.

Embora para a instituição heteronormativa da sequência sexo-gênero-sexualidade concorram diversos espaços sociais e institucionais, parece ser na escola e na família onde se verificam seus momentos cruciais.

Quantas vezes, na escola, presenciamos situações em que um aluno “muito delicado”, que parecia preferir brincar com as meninas, não jogava futebol e era alvo de brincadeiras, piadas, deboches e xingamentos por parte dos colegas? Quantas são as situações em que meninos se recusam a participar de brincadeiras consideradas femininas ou impedem a participação de meninas e meninos considerados “gays” em suas atividades recreativas “masculinas”?

Processos heteronormativos de construção de sujeitos masculinos obrigatoriamente heterossexuais se fazem acompanhar pela rejeição da feminilidade e da homossexualidade, por meio de atitudes, discursos e comportamentos, não raro, abertamente homofóbicos. Tais processos – que são pedagógicos e curriculares – produzem e alimentam a homofobia e a misoginia, especialmente entre meninos e rapazes. Para eles, o “Outro” passa a ser principalmente as mulheres e os gays e, para merecerem suas identidades masculinas e heterossexuais, deverão dar mostras contínuas de terem exorcizado de si mesmos a feminilidade e a homossexualidade. À disposição deles estará um inesgotável arsenal “inofensivo” de piadas e brincadeiras (racistas, misóginas e homofóbicas). E eles deverão se distanciar do mundo das meninas e ser cautelosos na expressão de intimidade com outros homens, conter a camaradagem e as manifestações de afeto, e somente se valer de gestos, comportamentos e ideias autorizados para o “macho” (LOURO, 1999; 2004a, p. 82).

Na escola, indivíduos que, de algum modo, voluntariamente ou não, escapam da sequência heteronormativa são postos à margem das preocupações centrais de um currículo e de uma educação supostamente para todos (BUTLER, 1999; LOURO, 2004a). Uma marginalização que, entre outras coisas, serve para circunscrever o domínio do sujeito “normal”, pois, como ensina Mary Douglas (1976), à medida que se procura consubstanciar e legitimar a marginalização do indivíduo “diferente”, “anômalo”, termina-se por conferir ulterior nitidez às fronteiras do conjunto dos

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“normais”. A existência de um “nós-normais” não depende apenas da existência de uma “alteridade não-normal”: é indispensável legitimar a condição de marginalizado vivida pelo “Outro” para afirmar, confirmar e aprofundar o fosso entre os “normais” e os “diferentes” – nas palavras do vice-diretor, “aquela coisa”.

Não por acaso, tratamentos preconceituosos, medidas discriminatórias, ofensas, constrangimentos, ameaças e agressões físicas ou verbais são constantes na vida escolar das pessoas que de algum modo são identificadas como LGBT ou, mais genericamente, como não-heterossexuais. Estas pessoas veem-se, desde cedo, às voltas com uma “pedagogia do insulto”, constituída de piadas, brincadeiras, jogos, apelidos, insinuações, expressões desqualificantes.

Tais “brincadeiras” são poderosos mecanismos de silenciamento e de dominação simbólica. Por meio dessa pedagogia, estudantes aprendem a mover as alavancas da homofobia mesmo antes de terem a mais vaga noção do que elas significam (SULLIVAN, 1997). Não raro, garotos são alvo de escárnio por parte de colegas e professores/as antes de se identificarem como “gays”. Com seu nome escrito em banheiros, carteiras e paredes da escola, o “veadinho da escola” permanecerá alvo de zombaria, comentários e variadas formas de violência ao longo de sua vida escolar. E mais: tais brincadeiras ora camuflam ora explicitam injúrias e insultos, que são jogos de poder que marcam a consciência, inscrevem-se no corpo e na memória da vítima e moldam suas relações com o mundo. Mais do que uma censura, traduzem um veredicto e agem como dispositivos de perquirição e desapossamento (ÉRIBON, 2008). O que geralmente não se nota é que o insulto representa uma ameaça que paira sobre as cabeças de todos, pois pode ser estendido a qualquer um que por ventura falhar em uma das demonstrações de masculinidade a que é submetido sucessiva e interminavelmente.

GêNeROs plURaIs e FRONTeIRas De GêNeRO

A professora de História recriminava um aluno que usava brinco. Dizia-lhe que não deveria usá-lo, pois ele “já tinha um certo jeito”. Um dia, quando ele apareceu sem o brinco, ela deu-lhe um beijo na testa e disse, perante a turma: “Você sabe o porquê!”. Na turma havia um aluno com certo comportamento feminino. O professor de Educação Física gritou na frente dos outros: “Vira homem, moleque!”

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A internalização dos ditames da heterossexualidade como norma faz com que frequentemente se confundam expressões de gênero (gestos, gostos, atitudes etc.), identidades de gênero e identidades sexuais. Não existe uma forçosa, inescapável e linear correspondência entre esses conceitos. Comportamentos não correspondem necessariamente a assunções identitárias. Bastaria notar que podemos ser ou parecer masculinos ou femininos, masculinos e femininos, ora masculinos ora femininos, ora mais um ora mais outro, ou não ser nenhuma coisa ou outra, sem que nada disso diga necessariamente respeito a nossa sexualidade. Para ser “homem” alguém precisa ter pênis, ser agressivo, saber controlar a dor, ocultar as emoções, não brincar com meninas, detestar poesia, bater em “gays”, ser heterossexual ou estar sempre pronto para acossar sexualmente as mulheres? O que o professor espera que o aluno faça para se tornar, segundo a sua visão, um “homem”? O “homem” aí almejado não é justamente aquele denunciado como violento, machista e misógino? Precisamos dele?

“Vira homem, moleque!” Nesta frase, tão comumente pronunciada, subjaz a ideia de um único modelo de masculinidade possível. Algo a ser conquistado pelos indivíduos masculinos, numa luta árdua por um título a ser defendido a cada momento da vida, sob a implacável vigilância de todos. Uma busca por um modelo inatingível (VALE DE ALMEIDA, 1995), fonte permanente de insatisfação, angústia e violência. Reafirma-se a ideia segundo a qual rapazes afeminados seriam “homossexuais”. Uma crença cuja força reside na fé que se deposita nas “verdades” insistentemente reiteradas da heteronormatividade. Aqui, a sua sistemática repetição confere uma inteligibilidade ao “Outro” que, porque menos masculino, só pode ser homossexual. E vice-versa.

No entanto, não existe apenas este modelo (o da masculinidade hegemônica), mas uma gama de possibilidades de construção e de expressão de masculinidades, que representam distintas posições de poder nas relações quer entre homens e mulheres, quer entre os próprios homens (CONNELL, 1995a; 1995b; 2009), fortemente influenciados por fatores como classe social, etnicidade, entre outros, apresentando diferentes resultados. As escolas incidem nesse processo de construção na medida em que lidam com diferentes masculinidades, especialmente ao classificarem seus estudantes como “bons” e “maus”, reforçando hierarquias de classe, raça/etnia e gênero (CARVALHO, 2009).

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Seria, além disso, necessário perceber que não são apenas os alunos os que vigiam cada garoto “afeminado”, mas sim a inteira instituição. E todos o fazem à medida que, de maneira capilar e permanente, controlam os demais e a si mesmos. E mais: “Vira homem!”, mesmo que potencialmente endereçável a todos os rapazes, costuma configurar um gesto ritual por meio do qual seu alvo é desqualificado ao mesmo tempo em que seu enunciador procura se mostrar como um indivíduo perfeitamente adequado às normas de gênero. Assim, um professor que, aos berros, cobra de um aluno que vire “homem” pode sentir-se um emissor institucionalmente autorizado, orgulhosamente bem informado pelas normas de gênero.

Seria importante então sublinhar uma existência plural, dinâmica e multifacetada de masculinidades e de feminilidades. No entanto, ao percorrer as escolas, notamos facilmente o quanto é intensa a generificação dos seus espaços e de suas práticas, e o quanto as fronteiras de gênero são obsessivamente demarcadas e sublinhadas. Atividades, objetos, saberes, atitudes, espaços, jogos, cores tornam-se, arbitrária e binariamente, masculinos ou femininos. Animais como cachorros e gatos, que poderiam ser indistintamente atribuídos a meninos e a meninas, de repente são generificados e transformados em elementos de distinção e classificação. Os critérios podem ser inventados no momento e imediatamente assumidos como “naturais”. A criatividade é posta a serviço da heteronormatividade. Se cachorros são agressivos e baderneiros, são “de menino”; se gatos são delicados e maliciosos, são “de menina”. A distribuição, portanto, não é só binária, mas também biunívoca. Meninos não poderão ficar com “coisas de menina”, e vice-versa.

“Meninos brincam com meninos e meninas com meninas”, “coisas de mulher” e assim interminavelmente. Por que uma simples boneca ou um objeto rosa pode gerar tamanho furor ou sofrimento? Uma criança não pode preferir brincar com outras de gênero diferente do seu? Por que o atravessamento ou o borramento das fronteiras de gênero é tão problemático? Brincar de bonecas ou colocar pulseiras podem ser desejos secretos de muitos rapazes candidatos ao título de “homem de verdade”. Não seria possível existir uma masculinidade heterossexual que permita livre trânsito de jogos, objetos, gestos, saberes, habilidades e preferências hoje entendidas como femininas? O mesmo não pode se dar em relação às meninas e às “coisas de homem”? São possíveis masculinidades ou feminilidades homo ou bissexuais? Feminilidades e

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masculinidades devem continuar a ser atribuídas de maneira binária? Por que calar a multiplicidade?

As escolas já prestariam um grande serviço aos direitos humanos e à educação de qualidade se passassem a se dedicar à problematização de práticas curriculares, atitudes, rotinas, valores e normas que investem no binarismo de gênero, nas segregações, na naturalização das diferenças, na essencialização e fixação de identidades sociais, na (re)produção de hierarquias opressivas e no aprofundamento de neuroses e sofrimentos. Em outras palavras: seria preciso “estranhar o currículo” (LOURO, 2004b) e buscar novas formas de tradução em currículos em ação menos pautados por dispositivos normalizadores.

Dito isso, parece oportuno lembrar a célebre afirmação de Philippe Perrenoud:

Se um jovem sai de uma escola obrigatória persuadido de que as moças, os negros ou os muçulmanos são categorias inferiores, pouco importa que saiba gramática, álgebra ou uma língua estrangeira. A escola terá falhado drasticamente (PERRENOUD, 2000, p. 149).

sUpeRCOmpeNsaÇÃO e INClUsÃO CONseNTIDa e peRIFéRICa

Eu tive um aluno homossexual assumido. Ele era um aluno exemplar. Os colegas às vezes faziam troça, e ele não gostava, mas não reagia. Era muito educado e ajudava muito os colegas nos trabalhos em grupo. Trabalho com Educação Infantil. Lá tenho um colega, um rapaz. Ele nunca me disse, mas acho que é homossexual. É muito respeitoso e perfeccionista. Nunca falta e nem se atrasa. Está sempre atento para nunca permanecer sozinho na sala com uma criança.

É preciso não descurar que a homofobia, em qualquer circunstância, é fator

de sofrimento6 e injustiça. Também por isso, a ideia de que ela seria menos grave

quando não produz baixo rendimento, evasão ou abandono escolar deve ser repelida.

Afinal, inseridos/as em um cenário de stress, intimidação, assédio, não-acolhimento

6 Importantes estudos realizados em diversos países europeus e na América do Norte mostram que a incidência do risco de suicídio entre adolescentes é extremamente maior entre homossexuais (BAGLEY e RAMSEY, 1997; VERDIER e FIRDION, 2003).

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e desqualificação permanentes, adolescentes e jovens estudantes homossexuais ou transgêneros são frequentemente levados/as a incorporar a necessidade de apresentarem um desempenho escolar irrepreensível, acima da média.

Assim, muitos desses/as estudantes podem ser impelidos a apresentarem “algo a mais” para, quem sabe, serem tratados como “iguais”7. Sem obrigatoriamente perceber a internalização dessas exigências, podem ser instados a assumirem posturas voltadas a fazer deles: “o melhor amigo das meninas”, “a que dá cola para todo mundo”, “um exímio contador de piadas”, “a mais veloz nadadora”, “o goleiro mais ágil” etc. Outros/as podem dedicar-se a satisfazer e a estar sempre à altura das expectativas dos demais, chegando até mesmo a se mostrarem dispostos a imitar condutas ou atitudes convencionalmente atribuídas a heterossexuais.

Trata-se, em suma, de esforços para angariar um salvo-conduto que possibilite uma inclusão (consentida) em um ambiente hostil, uma frágil acolhida, geralmente traduzida em algo como: “É gay, mas é gente fina”, que pode, sem dificuldade e a qualquer momento, se reverter em “É gente fina, mas é gay”. E aí, o intruso é arremetido de volta ao limbo. Como nota Marina Castañeda (2007, p. 152-153), essa frenética busca de “supercompensação” – fonte de ansiedade, autocobrança e perfeccionismo exagerados – não impede que qualquer insucesso do candidato seja logo traduzido como sinal inequívoco de seu “defeito homossexual”8. “Só podia ser gay mesmo!”... “É assim que eles são!”

Isso, evidentemente, não vale apenas para o caso de estudantes, mas também para os de professores/as e outros/as profissionais. No caso do professor de Educação Infantil, às preocupações e ansiedades em supercompensar somam-se aquelas de evitar qualquer acusação de pedofilia. Sabemos que é escassa a presença de professores de sexo masculino na Educação Infantil. Se vistos como heterossexuais, tendem a ficar expostos a suspeitas de possuírem propensões à pedofilia. Essas suspeitas tendem a se agravar exponencialmente em caso de serem vistos como homossexuais. A “verdade” do estereótipo “gay-pedófilo” apresenta uma capacidade enorme de sobrevivência

7 Sobre as estratégias adotadas frente às situações de violência homofóbica no cotidiano escolar, vide, por exemplo: Human Rights Watch (2001, item IV) e Caetano (2005).8 Sobretudo para as lésbicas, a adoção de práticas compensatórias deriva em grande parte da pressão e da violência a que estão submetidas no ambiente familiar (ALMEIDA, 2005).

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frente aos frequentes desmentidos das estatísticas, que permanecem ignoradas inclusive por dirigentes escolares. A reiteração do estereótipo fala mais alto.

É preciso ainda notar que, na escola (e também fora dela), a contínua repetição das “verdades” postas pela matriz heterossexual e, portanto, pelas normas de gênero, aprofunda o processo de distinção e elevação estatutária dos indivíduos pertencentes ao grupo de referência: os heterossexuais, particularmente os homens heterossexuais. A norma os presume, ao mesmo tempo em que sua incessante reiteração garante maior sedimentação das crenças associadas ao estereótipo, podendo levar a sua “profecia” ou a se cumprir ou a exercer seus efeitos de poder na inclusão periférica ou na completa marginalização do “Outro”. Seria importante que começássemos a pensar na situação de privilégio em que se encontram as pessoas vistas como heterossexuais nesse cenário, inclusive nos efeitos (anti)pedagógicos que isso produz.

HeTeROssexUalIDaDe pResUmIDa

Depois do curso sobre diversidade sexual, parei de pensar em meus alunos como sendo todos heterossexuais. Nós, professores, fomos à Parada da Diversidade como parte da atividade da formação que estávamos fazendo. Eu nunca tinha ido e gostei muito. Foi um aprendizado importante. Depois, na escola, uma aluna minha se aproximou e me disse: “Professora, eu te vi na Parada. Eu sou lésbica”. Eu nunca tinha parado para pensar nisso.

A tendência, já detectada em pesquisas consagradas segundo as quais a escola se nega a perceber e a reconhecer as diferenças de públicos, mostrando-se “indiferente ao diferente” (BONNEWITZ, 2003, p. 119), encontra, no caso de estudantes e profissionais da educação que são vistos como “homossexuais”, sua expressão mais incontestável.

A não ser em casos excepcionais em que um/a aluno/a tenha chamado particularmente a atenção, professores/as costumam dirigir-se a seus grupos de estudantes como se jamais houvesse ali uma pessoa que se define (ou que mais tarde se definirá) como gay, uma lésbica, um/a bissexual ou alguém que esteja se interrogando acerca de sua identidade sexual ou de gênero. Impera, nesse caso, o princípio da heterossexualidade presumida, que faz crer que não haja homossexuais

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em um determinado ambiente (ou, se houver, deverá ser “coisa passageira”, que “se resolverá quando ele/ela encontrar a pessoa certa”).

A presunção de heterossexualidade enseja o silenciamento e a invisibilidade das pessoas homossexuais, inclusive em termos curriculares. Ao mesmo tempo, essa presunção dificulta enormemente a expressão e o reconhecimento das homossexualidades como maneiras legítimas de se viver e se expressar afetiva e sexualmente (BECKER, 2005).

O hábito ou a tendência a se presumir a heterossexualidade parece derivar de uma profunda crença nos investimentos sociais nos processos de “heterossexualização compulsória”, mas pode ser, antes disso, um fator de produção ou de aprofundamento dos processos de silenciamento. Tal presunção mantém nexos diretos com a “pedagogia do insulto” e, ainda mais, com a “pedagogia do armário”.

NORmalIzaÇÃO e FúRIa DesUmaNIzaNTe

Os meus alunos protestaram contra a permanência de um colega gay no time de futebol. Dizem sempre: “Você é uma libélula! Veado é a pior coisa que existe!”

Na sala dos professores, um colega imita sempre um outro colega, fazendo gestos, trejeitos, debochando. Vários colegas participam destas cenas de humilhação. A direção não faz nada.

Na nossa escola os alunos considerados gays não têm direitos na sala de aula. Não é fácil, porque cada pessoa possui valores e preconceitos.

A turma sempre ri e chama um colega de borboleta, libélula e bailarina. Falei várias vezes para eles pararem. Não adiantava. Ele abandonou a escola.

Temos um problema em minha escola: um garoto afeminado demais, com muitos trejeitos. Ele é ótimo dançarino! Ele apanha sempre dos colegas, e todos os professores riem dele. Eu já lhe disse: “Tu és gay mesmo, tudo bem, eu respeito, mas pára de desmunhecar, pois estás atraindo a ira dos outros sobre ti.” Já mandei chamar a mãe dele. Ele está com 6 anos agora. [...] Que fiz com os outros? Nada! Fazer o quê?

As normas de gênero costumam aparecer numa versão nua e crua da pedagogia do insulto e da desumanização. Estudantes, professores/as funcionários/as identificados como “não-heterossexuais” costumam ser degradados à condição

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de “menos humanos”, merecedores da fúria homofóbica cotidiana de seus pares e superiores, que agem na certeza da impunidade, em nome do esforço corretivo e normalizador. Os seus direitos (que direitos?) podem ser suspensos e contra eles/as pode ser despejada a ira coletiva.

As pessoas aí não agem em seus próprios nomes. O que temos aí é a escola – a instituição e não apenas os colegas e os superiores – mostrando-se cruamente como uma instituição disciplinar (FOUCAULT, 1997). Seus dispositivos, técnicas e redes de controle e de sujeição conseguem alcançar, microfisicamente, cada espaço, situação e agente. Aqui, disciplinar é mais do que controlar: é um exercício de poder que tem por objeto os corpos e por objetivo a sua normalização, por meio da qual uma identidade específica é arbitrariamente eleita e naturalizada, e passa a funcionar como parâmetro na avaliação e na hierarquização das demais. Ela, assim, recebe todos os atributos positivos, ao passo que as outras só poderão ser avaliadas de forma negativa e ocupar um status inferior (SILVA, 2000). Quem não se mostrar apto a ser normalizado torna-se digno de repulsa e abjeção, ocupando um grau inferior ou nulo de humanidade.

Isso não necessariamente significa que tudo venha ao conhecimento dos setores formalmente responsáveis pelo controle social no âmbito escolar. Numa instituição disciplinar isso não é necessário, já que ali os agentes vigiam-se mutuamente e cada um vigia a si mesmo. De todo modo, diante de casos de opressão ostensiva, de enorme visibilidade, deveriam causar perplexidade as cenas em que dirigentes mostram-se totalmente alheios a eles. Como fazem para ignorá-los?

O que muitas vezes não percebemos é que processos de desumanização também degradam e desumanizam quem agride, exatamente como se dá nos casos clássicos de tortura. E todo este misto de omissão, negligência e cumplicidade institucional conduz à edificação de uma escola não apenas com alto grau de deficiência cívica: ela deve também exibir, na média, baixos índices de desempenho escolar.

Dito isso, vale retomar alguns trechos dos relatos acima. Se “cada pessoa possui valores e preconceitos”, precisaríamos nos interrogar sobre como, quando e em que medida esses valores e preconceitos encontram guarida e são consolidados no espaço e na cultura escolar e pelo saber-poder escolar, isto é, na escola como instituição e, por

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conseguinte, no inteiro sistema de ensino e nos seus currículos em ação. Ademais, o que significa que “os considerados gays não têm direitos na sala de aula”? Diante de tal assertiva, cabe perguntar o que os/as professores/as consideram ser o seu dever docente? E as pessoas responsáveis pela gestão? E as demais autoridades? Por que não se proporcionam atividades de formação e não se fomenta a mobilização social? Por que não se busca envolver setores de fora da escola em iniciativas permanentes voltadas à inclusão e à qualidade educacional? Afinal, direitos humanos ou são de todos/as ou não são direitos, e projetos culturais alternativos requerem abordagens em que a escola não seja tomada isoladamente (EPSTEIN e JOHNSON, 2000).

O último relato desse bloco é o único depoimento aqui trazido por uma diretora de escola. Por meio dela a escola exibe-se, sem véus, como espaço normalizador, de disciplinamento, silenciamento e marginalização. O “problema” por ela identificado é o aluno, segundo ela “efeminado”, e não os processos de reificação, marginalização e desumanização conduzidos pela instituição que dirige. Somente uma fúria heterorreguladora poderia identificar e atribuir (como em uma sentença condenatória) homossexualidade a uma criança de seis anos e, além disso, não se inquietar diante da violência física e simbólica a que ela está sendo submetida, coletiva e institucionalmente. A indiferença em relação a esse sofrimento e a cumplicidade para com os algozes imediatos exprime um autêntico “estado de alheamento”, na esteira do processo de desumanização do “Outro” que Paul Aronson (1970) – em epígrafe – considerou.

Alheamento consiste numa atitude de distanciamento, na qual a hostilidade ou o vivido persecutório são substituídos pela desqualificação do sujeito como ser moral. [...] significa não vê-lo como um agente autônomo [...] um parceiro [...] ou, por fim, como alguém que deve ser respeitado em sua integridade física e moral. [...] No estado de alheamento, o agente da violência não tem consciência da qualidade violenta de seus atos (COSTA, 1997, p. 70. Grifos meus.).

Só um profundo estado de alheamento poderia fazer com que o curioso “conselho” da professora à criança seja considerado aceitável e até necessário por parte de alguns. Este poderia ser traduzido assim: “Mantenha imperceptível a sua (suposta) homossexualidade. Normalize-se aos olhos dos outros ficando invisível. Assim, nós o aceitaremos”.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

Diante de casos como esse notamos a insuficiência do discurso dos direitos humanos. Evidentemente, a livre expressão de gênero e do desejo sexual é um direito humano (RIOS, 2007). Porém, penso que a busca da legitimação das homossexualidades não pode ficar aprisionada a visões e posturas que traduzem uma espécie de autorização, concessão, aquiescência ou clemência. Isto não implicaria avanço ético e político algum. Afinal, dizer “Ele é homossexual não porque quer, não escolheu, a culpa não é dele” equivale a advogar pela simples aceitação conformada diante do inevitável e não a promover o reconhecimento de um direito.

No entanto, falar em direitos humanos de maneira abstrata e genérica pode ser insuficiente. Por isso, Jaya Sharma (2008) defende que, em favor da promoção dos direitos sexuais e do enfrentamento à opressão sexista e homofóbica, é preciso considerar a própria heteronormatividade uma violação dos direitos humanos. E mais: além de duvidar de formulações vagas e bem-intencionadas, seria indispensável confrontar-se diretamente com as crenças e as lógicas produtoras de opressão.

Como reivindicar direitos humanos se você não é considerada/o humana/o? [...] Em contextos mais liberais, há quem aceite as/os homossexuais como pessoas cujos direitos não devem ser violados. Entretanto, mesmo neste caso, se o desconforto e o julgamento moral contra o desejo por pessoas do mesmo sexo não são confrontados, uma mera afirmação dos direitos não será suficiente. Não existe alternativa ao enfrentamento das crenças e dos valores subjacentes que alimentam a hostilidade (SHARMA, 2008, p. 115. Grifos meus.).

Um meNINO DIFeReNTe e a psICOpeDaGOGa

Tínhamos na nossa escola um menino diferente. Ele provocava os colegas, que reagiam. Era muito feminino, e mandamos chamar a mãe. Ela disse que ele teve diagnosticado seu lado feminino. Resolvemos encaminhá-lo para a psicopedagoga.

Aqui parece não haver dúvidas: o caso é de um agente perturbador, um menino “diferente de um menino normal”, que “provoca” os colegas que, por isso, parecem se ver obrigados a revidar com violência física e verbal. Como a reação dos colegas não o trouxe ao bom senso, fez-se recurso à mãe. As esperanças agora estão postas no trabalho da psicopedagoga. Eis um nítido discurso norteado por

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formulações patologizantes frente às homossexualidades e favorável à sujeição disciplinar das pessoas que se colocam ou são percebidas como dissidentes sexuais em relação à heteronormatividade (homossexuais, travestis, trabalhadores/as sexuais etc.), como tais, passíveis e merecedoras da atenção dos saberes-poderes incumbidos do controle disciplinar e da intervenção normalizadora.

É cabível atribuir a homossexualidade a uma criança? Descartadas as visões essencialistas, poderíamos crer que ela possa ser homossexual? Pessoas que nem sequer chegaram à puberdade poderiam ser alvo de sentenças tão categóricas acerca das dinâmicas de conformação do seu desejo? Ou a expressão do desejo se definiria – tão linear e mecanicamente – em função de maneirismos, do timbre de voz, do estilo de se vestir, das preferências musicais ou esportivas? Não seria mais apropriado pensar que gestos, maneiras de falar e agir refiram-se a possíveis expressões de gênero e não à orientação do desejo sexual?

“Ele é gay”, em contexto semelhante, seria uma frase que tenderia a soar como sentença objetivadora, que traria embutida uma condenação à morte social. No entanto, afirmar que um garoto teve diagnosticado seu “lado feminino”, além de impreciso, é incorrer no mais autêntico binarismo heteronormativo. Evidencia-se aqui a crença na existência de uma essência feminina, natural, fixa e exclusivamente atrelada ao corpo e ao espírito das “mulheres naturais”. Analogamente, o inverso se daria em relação aos “homens de verdade” e suas essências masculinas.

Na hipótese de que o garoto em questão venha, um dia, a adotar práticas sexuais homoeróticas e até a assumir uma identidade sexual homossexual, podemos dizer só por isso que ele não é ou não será “normal”? A mesma pergunta valeria para o caso (também hipotético) de ele vivenciar uma experiência de gênero contraposta aos ditames das normas de gênero e passar a colocar-se como travesti ou como transexual.

De toda sorte, vale ressaltar que mesmo sem saber no que exatamente consiste e o que se espera do trabalho da psicopedagoga, é possível nutrir sérias suspeitas em relação a ele. Há décadas, a comunidade médica e clínica internacional deixou formalmente de considerar a homossexualidade uma doença. No entanto, muitas crianças continuam recebendo atenção de psicólogos que passaram a oferecer diagnósticos de “desordens de gênero infantil” (SEDGWICK, 1993), uma tentativa de se continuar a investir, de modo subreptício, na busca da “cura da homossexualidade”.

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Poderíamos, enfim, inverter o raciocínio: o problema, em vez de estar no estudante reificado como “diferente” ou “anormal”, não deveria estar, mais precisamente, nos processos socioculturais e institucionais que o assim definem, o humilham e o marginalizam?

Reduzir as homossexualidades e as transgeneridades a uma “questão” médica, psicológica ou psicopedagógica é mais do que simplesmente querer entregá-las a “especialistas”, que com ela saberiam lidar. Tal redução é, a um só tempo, um dispositivo de assujeitamento e uma forma de despolitização da sexualidade, uma tentativa de impedir que direitos sexuais sejam reconhecidos como direitos humanos.

NOme sOCIal, baNHeIROs e espaCIalIzaÇÃO

O professor de Educação Física propôs dispensar um aluno homossexual, pois disse que ficava sem saber como chamá-lo. Ele diz que suas aulas são prejudicadas.

Na minha escola tinha um aluno muito feminino. Todo mundo fazia deboche dele dizendo que era mulher. Depois de muito tempo, um dia, ele apareceu com esmalte nas unhas. Foi uma loucura! Depois foi aparecendo cada vez mais com coisas e enfeites de mulher. E aí o deboche ficou mais forte. Ele dizia, agora, que era travesti e queria ser tratado com nome feminino. Não queria ir mais ao banheiro dos homens. Algumas alunas ficaram revoltadas e começaram um abaixo-assinado. Diziam que não queriam um homem no banheiro delas. Todo mundo lhe dizia para deixar dessa vida, que ele é homem. Ele deixou a escola.

Uma aluna travesti na minha escola conseguiu o direito de ser chamada pelo nome diferente do registro. Ela queria usar o banheiro das meninas, mas a Direção achou melhor ela usar o banheiro das professoras. Tem gente que não gosta muito, mas acho que está dando certo. Aprendi numa palestra que se diz “a travesti” e não “o travesti”. É uma forma de respeito.

A professora perguntou aos alunos o que eles gostariam de ser quando crescerem. Um aluno respondeu: “Eu quero ser mulher”. A professora o puniu, pregando um absorvente nas costas dele.

Soube que a secretária da nossa escola não deixou um rapaz que apareceu de cabelos longos e unhas cumpridas se matricular. Disse que não havia vaga. Não é a primeira vez que acontece.

O diretor não permitiu que uma pessoa se matriculasse no turno da manhã. Disse que, se ela quisesse poderia se matricular à noite, no curso de jovens e adultos. “No matutino há muitos rapazes de 16 anos que poderão ficar abalados com a presença de um travesti”. Disse-nos também para não tratarmos o aluno pelo nome feminino.

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O preconceito, a discriminação e a violência que, na escola, atingem gays, lésbicas e bissexuais e lhes restringem direitos básicos de cidadania, se agravam enormemente em relação a travestis e transexuais.9 Essas pessoas, ao construírem seus corpos, suas maneiras de ser, expressar-se e agir, não podem passar incógnitas, uma vez que elas, mais do que ninguém, não tendem a se conformar à “pedagogia do armário”. Não raro, ficam sujeitas às piores formas de desprezo, abuso e violência. Seus direitos são sistematicamente negados e violados sob a indiferença geral.

Não por acaso, diversas pesquisas têm revelado que as travestis constituem a parcela com maiores dificuldades de permanência na escola e de inserção no mercado de trabalho (PARKER, 2000; PERES, 2009). Os preconceitos e as discriminações a que estão cotidianamente submetidas incidem diretamente na constituição de seus perfis sociais, educacionais e econômicos, os quais, por sua vez, serão usados como elementos legitimadores de ulteriores discriminações e violências contra elas. A sua exclusão da escola passa, inclusive, pelo silenciamento curricular em torno delas.

Privadas do acolhimento afetivo, em face das suas experiências de expulsões e abandonos por parte de seus familiares e amigos, são alvo de inúmeras formas de violência por parte de vizinhos, conhecidos, desconhecidos e instituições. Com suas bases emocionais fragilizadas, travestis e transexuais, na escola, têm que encontrar forças para lidar com o estigma e a discriminação sistemática e ostensiva por parte de colegas, professores/as, dirigentes e servidores/as escolares. As experiências de chacota e humilhação, as diversas formas de opressão e os processos de exclusão, segregação e guetização a que estão expostas as arrasta como uma “rede de exclusão” que “vai se fortalecendo, na ausência de ações de enfrentamento ao estigma e ao preconceito, assim como de políticas públicas que contemplem suas necessidades básicas, como o direito de acesso aos estudos, à profissionalização e a bens e serviços de qualidade em saúde, habitação e segurança” (PERES, 2004, p. 121).

Como os relatos ilustram, nas escolas elas tendem a enfrentar obstáculos para se matricularem, participarem das atividades pedagógicas, terem suas identidades

9 Para breves reflexões sobre a distinção entre travestis, transexuais e outras pessoas transgêneros, além de outros conceitos, vide: Carvalho, Andrade e Junqueira (2009).

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minimamente respeitadas, fazerem uso das estruturas das escolas (os banheiros, por exemplo10) e conseguirem preservar sua integridade física.

Por que pode ser tão difícil e perturbador reconhecer o direito de uma pessoa ser tratada da forma em que ela se sente confortável? O nome social não é um apelido, mas representa o resgate da dignidade humana, o reconhecimento social da legitimidade de sua identidade tal como ela se percebe.

É importante lembrar que professores/as desempenham papel de “adultos de referência” para o alunado. Assim, creio ser importante considerar que um/a docente, ao se recusar a chamar uma estudante travesti pelo seu nome social, está ensinando e estimulando os/as demais a adotarem atitudes hostis em relação a ela e à diversidade sexual.11 Trata-se de um dos meios mais eficazes de se traduzir a “pedagogia do insulto” e o currículo em ação em processos de desumanização e exclusão.

Ao lado disso, é preciso sublinhar que a espacialização é um dos procedimentos cruciais dos dispositivos de poder. Bem por isso, é um dos aspectos centrais do currículo, que se verifica na esteira dos processos de divisão, distinção e classificação que este continuamente opera. A violação do direito ao acesso ao banheiro é um exemplo que mostra que os processos de espacialização são acompanhados de naturalizações extremamente sutis, que se desdobram em interdições e segregações.

Uma aluna travesti dificilmente poderá em segurança arrumar-se diante do espelho em um banheiro masculino. Pesquisas trazem depoimentos de travestis que relatam episódios frequentes de agressões e estupros nos banheiros masculinos, em que elas acabaram punidas e não os agressores (PERES, 2009). Na escola, negar o direito do uso do banheiro conforme a identidade de gênero de alguém (e não necessariamente segundo seu sexo biológico) corresponde a negar-lhe o direito à educação. Quem não pode ir ao banheiro não pode permanecer na escola.

Para que as pessoas transgêneros (especialmente travestis ou transexuais) tenham seus direitos de cidadania assegurados (entre eles o de receber uma educação de qualidade), é indispensável garantir-lhes o direito de serem tratadas em

10 Para um estudo sobre banheiros como reprodutores de diferenciações sociais na escola, vide Carvalho, Teixeira e Raposo (2008).11 A Secretaria Estadual do Pará, por meio da Portaria 16/2008, foi a primeira a reconhecer o direito de travestis e transexuais inserirem seus nomes sociais nos documentos escolares.

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conformidade com suas identidades de gênero. O reconhecimento da legitimidade da transgeneridade é decisivo para assegurar-lhes direito à autodeterminação de gênero e dignidade humana.

lesbOFObIa

Os pais de uma aluna exigiram da direção da escola que a mudasse de turma. Não queriam que ela estudasse com uma colega sapatão. Ameaçaram tirar a filha da escola, dizendo que não admitiam que ela estudasse em um ambiente que incentiva o homossexualismo.

A direção da minha escola proibiu o beijo entre as meninas. É uma moda. Na nossa escola não temos lésbicas.

Tenho uma ótima relação com meus alunos. Recentemente, uma aluna me procurou para dizer que estava apaixonada por uma colega do mesmo sexo e queria um conselho. Como ela tinha 13 anos, eu lhe disse para esperar um pouco, pois pode ser coisa passageira e ela nem parece lésbica.

Soubemos de um episódio de violência sexual contra uma aluna no terreno da escola. Ela era bem masculina. Os rapazes disseram que era lésbica por falta de homem.

A lesbofobia, em suas diversas formas de manifestação, costuma figurar entre as menos perceptíveis formas de homofobia. Isso ocorre especialmente graças aos processos de invisibilização a que as lésbicas geralmente estão submetidas na sociedade. A invisibilidade lésbica (mais do que a feminina em geral) foi construída ao longo da História (e na historiografia), nos discursos sobre a sexualidade, a homossexualidade, a militância e a diversidade em geral. Vetores discriminatórios que operam no mundo social contra as mulheres em geral se acirram no caso das mulheres lésbicas – e ainda mais se forem lésbicas pertencentes a outras “minorias”. Aquelas que tendem a se tornar visíveis e identificáveis são as que são consideradas mais “masculinas” e tornam-se alvo fácil da violência física.

Durante esses anos de encontros com profissionais da educação de todo o país, algo que sempre me chamou a atenção foi o fato de a maior parte dos relatos de docentes referirem-se a casos de homofobia contra estudantes de sexo masculino. Isso, de um lado, faz logo pensar na vigilância obsessiva das normas de gênero na

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construção e no disciplinamento dos sujeitos portadores da identidade de referência, a masculina heterossexual. Mas, de outro, remete-nos aos processos de interdição e silenciamento da mulher, seu corpo e sua sexualidade. Mulheres não precisam exorcizar a masculinidade e a homossexualidade para serem reconhecidas como tais. Os “delitos femininos”, conforme assinalam Dolores Juliano e Raquel Osborne (2008), são outros: a prostituição, o adultério e o aborto. Segundo esta lógica de negação e de subalternização do feminino, a lesbianidade nem sequer existiria como opção.

No entanto, o beijo entre as meninas – o “selinho” – tem sido motivo de preocupação para muitos/as dirigentes escolares. Certo discurso corrente procura esvaziá-lo de seu possível conteúdo transgressivo e desestabilizador, banalizando-o, isto é, dizendo se tratar de “moda”, “coisa passageira”. Mesmo assim, ele costuma vir acompanhado de medidas para inibi-lo e cerceá-lo.

Causaria certamente riso ou surpresa uma cena de um docente que, procurado por uma aluna que lhe confidenciasse um interesse amoroso por um colega, aconselhasse-a a aguardar um pouco, pois essa atração pode ser passageira, uma possível influência da mídia. O relato acima é um nítido exemplo de ação engrenada aos processos de “heterossexualização compulsória”.

O fato de a sociedade aceitar certas manifestações de afeto entre as mulheres é comumente percebido como uma maior tolerância em relação à lesbianidade. Ledo engano. Vale observar que a produção pornográfica que retrata sexo entre mulheres se dá em atendimento a uma demanda machista e heterossexista ligada a fantasias que determinados homens cultivam ao imaginarem o que elas fazem em matéria de sexo. Alguns se excitam, pensando que lhes falta um “homem de verdade como eu”.

O que talvez esteja se tornando apenas midiaticamente mais palatável é o par que reúne mulheres “femininas”, brancas, vivendo uma relação estável e sem disparidade de classe ou geração (BORGES, 2005).

Algumas famílias podem discordar que as escolas falem a respeito da diversidade sexual e a promovam como igualmente legítima, enquanto outras podem estar interessadas em uma educação mais desmistificadora e progressista para seus filhos/as. A escola teria que agradar uma ou outra? O que está em questão é o papel da instituição escolar como espaço público e de formação cidadã. A escola pode se escorar na homofobia socialmente difusa para não assumir suas responsabilidades

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de ensinar o respeito à diversidade humana e aos direitos humanos? Deve a escola ser uma continuidade de certos interesses domésticos ou deve ser um espaço de educação de qualidade e de promoção do convívio social e democrático?

Docentes permitem que seus estudantes sejam dispensados/as das aulas quando o assunto é cultura indígena, deficiência física, diversidade religiosa ou racismo? Por que deveriam fazê-lo quando o tema é o respeito à diversidade sexual? Os/as estudantes não teriam, desde cedo, direito a uma educação problematizadora dos preconceitos?

Temos o desafio de construir e consolidar a escola como um espaço público, republicano e laico. Para isso, é também fundamental trabalhar para que a escola não se torne uma continuidade das lógicas da esfera privada, do mundo doméstico e que não reproduza ou amplie as situações de desamparo e hostilidade a que muitos/as jovens e adolescentes, homens e mulheres (homossexuais ou não) estão submetidos/as em seus ambientes familiares, em suas comunidades ou em outros espaços.

Em sociedades historicamente pouco democráticas e muito hierarquizadas, diversas manifestações violentas costumam ser naturalizadas. É o caso do estupro e da violência contra as mulheres, que são aceitos como “algo contra o qual nada podemos fazer”. Isso é ainda mais pulsante naquelas situações em que a vítima “não é bem uma vítima”, mas “alguém que foi atrás de encrenca” e que “recebeu o que merecia”. Do contrário, como entender o silêncio que existe em torno de tantos assassinatos de travestis em todo o país?

Relatos de estupros contra travestis, lésbicas masculinas e gays mais femininos não são incomuns. São atos impregnados de desprezo em relação às mulheres e ao feminino. E mais: exprimem um desejo de normalização, uma ânsia para encerrar, de maneira binária, a masculinidade nos homens e a feminilidade nas mulheres (PLATERO, 2008). Por isso, no caso do estupro contra lésbicas, tais atos de violência machista, sexista, homofóbica e lesbofóbica são comumente animados pela crença de que mulheres lésbicas somente são lésbicas por não terem encontrado um homem que soubesse “fazer o serviço direito”. O estuprador de uma lésbica agiria como um pretenso agente de normalização. Seria o estupro uma “oportunidade de redenção” de mulheres que ousaram desobedecer aos cânones da matriz heterossexual?

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É preciso desestabilizar os elementos (inclusive curriculares) que integram um universo material e simbólico que tem produzido altos índices de estupro. A sua força explica o tristemente sintomático tom de humor que acabou por revestir a famosa frase “Estupra, mas não mata”. Expressões de humor apaziguadoras sinalizam mais concordância do que indiferença em relação àquilo de que se ri.

Estupros são truculências heterorreguladoras de afirmação masculina. Por meio deles, também se procura fazer as vítimas lembrarem que sexo para elas deve permanecer “um sofrimento imposto, uma violência sofrida – nunca uma iniciativa ou um prazer” (CALLIGARIS, 2009). São atos de tortura, rebaixamento, marginalização, desapossamento e anulação física, social, psicológica e simbólica. Sua execução em grupo é corriqueira em situações em que o “Outro” é reduzido à condição de presa ou prêmio, atrocidades coletivas de aniquilamento heteronormativo.

paRa TeRmINaR sem eNCeRRaR

Os fragmentos de relatos aqui apresentados reportam uma cotidianidade curricular composta desde eventos mais triviais e corriqueiros (como “brincadeiras” e brigas) a acontecimentos mais singulares (como estupro). Compõem um mosaico que não esgota os vastos e multifacetados meios e formas de manifestação homofóbica no cenário escolar, e constituem um espaço de mostração válido para dinamizar a reflexão e adensar o diálogo sobre algo que, em geral, se prefere deixar em surdina. Não raro, experiências de subordinação estrutural e marginalização sistemática na escola têm sido subestimadas, negadas, silenciadas, ignoradas, ou recebido tratamento inadequado.

A heteronormatividade está na ordem das coisas, na ordem do currículo. Assim, seria incorreto pensar que a homofobia manifesta-se de maneira fortuita ou isolada nas instituições escolares. Nem é ela uma herança, um resíduo trazido de fora, cujas manifestações a escola meramente admitiria. Em vez disso, a escola consente, cultiva e ensina homofobia (LOURO, 1999), não só repercutindo o que se produz em outros âmbitos, mas oferecendo uma contribuição decisiva para a sua atualização e o seu enraizamento. E mais: não raro também informada pelo racismo e pelo classismo, e sempre atrelada às concepções postas pela heteronormatividade,

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a homofobia atua na estruturação deste espaço e de suas práticas pedagógicas e curriculares, produzindo efeitos em todos/as.

Muitos relatos anteciparam nas crianças a homossexualidade, confundindo expressão de gênero, identidade de gênero, orientação sexual e identidade sexual, e pensando toda a temática a partir da linearidade determinada na sequência sexo-gênero-sexualidade. Ao mesmo tempo, vale observar que o termo “homofobia” também não aparece nos relatos, embora disto eles tratem explicitamente. As possíveis razões para isso possivelmente terão algo a ver com as dificuldades das instituições e dos seus agentes em falar de determinados sujeitos e em nomear certas formas de violação de direitos (PRADO, MARTINS e ROCHA, 2009). Mencionar tais sujeitos e as violações a que estão submetidos poderia implicar processos de reconhecimento não só de suas existências, mas também de suas condições como sujeitos de direitos.

Os relatos aqui apresentados vão em mais de uma direção. O tom que prevalece deixa transparecer que muitas narradoras apresentam dificuldades para aceitar ou lidar com as homossexualidades. Posicionam-se, às vezes, como observadoras externas, apresentando dificuldade em se perceberem como parte do problema – como se as relações ali construídas, as práticas pedagógicas adotadas, as normas e as rotinas institucionais não cumprissem um papel relevante nos processos de naturalização da heterossexualidade, na heterossexualização compulsória e na legitimação da marginalização daqueles/as considerados/as “diferentes” ou “anormais”.

Além de uma sensação comum de isolamento e falta de respaldo técnico e institucional para se fazer frente a um cenário de opressão sistemática, muitos relatos evidenciam uma ausência de indignação e uma forte busca de autoapaziguamento. Verifica-se, aí, uma mescla de ingredientes diferentemente dosados: conformismo, resignação, indignação, descontentamento, desconforto, compaixão, impotência e indiferença. Chama quase sempre a atenção uma falta de motivação para ir em busca de novos meios e alternativas mais eficazes, coletivamente construídas.

No mais das vezes, diante de um quadro intenso de violações de direitos, as providências tomadas são paliativas ou equivocadas, e não apontam para nenhuma maior articulação social. Muitos encaminhamentos adotados parecem informados por um modo de ver que não leva à mudança. E às vezes se dá o que considero ser ainda pior: alguns discursos perfazem um deslocamento nos processos de atribuição

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de responsabilidades, e estas migram do grupo e da instituição que praticaram a violação para o alvo da discriminação direta.

Quase sempre, em maior ou menor grau, as narrativas deixam transparecer um entendimento de que respeitar o “Outro” seria um gesto humanitário, expressão de gentileza, delicadeza ou magnanimidade. Indicam uma espécie de benevolente tolerância que deixa ilesas as hierarquias, as relações de poder e a heteronormatividade. Em casos assim, pessoas com distintos graus de preconceitos costumam se perceber dotadas de atributos positivos justamente por crerem-se portadoras de sensibilidade em relação às vítimas, uma dose de uma espécie de compaixão, em função da qual o “Outro” recebe uma aquiescente autorização para existir.

Em vez disso, é preciso lembrar que a noção de respeito está historicamente fundamentada no princípio da não-discriminação. Neste sentido, respeitar é agir com justiça, e não com bondade (WALZER, 1999). Trata-se, portanto, de um direito, ainda quando este não está estipulado detalhadamente em lei. Mesmo que as nossas normas de convívio, as diretrizes curriculares ou a legislação vigente pareçam insuficientes para assegurá-lo, nada nos impediria de o reconhecermos como legítimo e procurarmos fazer o que está ao nosso alcance na nossa vida cotidiana. Ao contrário do que se crê, as leis em geral se reconfiguram ao abrigo das transformações sociais que as engendram. Ou seja, elas são fundamentais, mas não se pode atribuir a elas o dom de, sozinhas, produzir as mudanças.

Na escola, antes mesmo de falarmos em respeito às diferenças, poderíamos questionar e “estranhar” os processos sociocurriculares por meio dos quais elas são produzidas, nomeadas, desvalorizadas e marginalizadas. Assim, ao problematizarmos a norma (e não o suposto “desvio”), discutiríamos relações de poder e processos de hierarquização e o que os “currículos” tiveram e têm a ver com isso. Poderíamos, ao mesmo tempo, falar em respeito, questionar a produção da diferença e procurar desestabilizar processos de classificação, opressão e marginalização.

Ao lado disso, é preciso sempre atentar-se para o fato que processos de configuração de identidades e hierarquias sociais estão também relacionados à desigualdade na distribuição social do sucesso e do fracasso escolares. Usualmente, é esperado que ambiências preconceituosas desfavoreçam o rendimento das pessoas que são o alvo de preconceito e discriminação direta. No entanto, a “Pesquisa sobre

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preconceito e discriminação no ambiente escolar” (BRASIL, INEP, 2009) vai mais longe. Realizada entre 2006 e 2008 em todos os estados brasileiros, sob a coordenação do Ministério da Educação e do Instituto Nacional de estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a pesquisa revelou existir uma forte correlação negativa entre ambiência escolar discriminatória e desempenho escolar do conjunto do alunado. Isto é, quanto mais preconceituoso e discriminatório o ambiente escolar, piores são as médias gerais alcançadas nos exames de português e matemática da Prova Brasil. Ao produzirem e alimentarem privilégios e discriminações negativas, ambientes escolares racistas, sexistas e homofóbicos não comprometem apenas o rendimento escolar das (equivocadamente) chamadas “minorias”, mas, potencialmente, atingem todo o corpo discente. Uma escola racista, sexista e homofóbica revela-se, portanto, um espaço menos educativo para todas as pessoas que a povoam.

A busca pela qualidade na educação não poderia, por conseguinte, prescindir da incessante desestabilização das lógicas hierarquizantes, desumanizadoras e marginalizantes das diversas formas de discriminação que atuam de maneira interconectada, nutrindo-se, reforçando-se e tensionando-se. Por isso, merecem enfrentamentos cada vez mais atentos às suas articulações, inclusive – e sobretudo – no universo escolar.

No entanto, não é raro que profissionais da educação se percebam sem suficientes diretrizes ou sem respaldo institucional para agir de maneira distinta e contraposta ao instituído pela escola ou pelo sistema de ensino. Além disso, como praticamente todas as pessoas, tais profissionais foram feitos portadores de um formidável lastro heteronormativo ao longo de suas socializações. São disposições dinâmicas, mas profundamente incorporadas (BOURDIEU, 1992). Não surpreende, assim, que, ao lado de tanto descontentamento que muitos/as docentes costumam transparecer em relação ao mundo das escolas, seus discursos se mostrem frequentemente informados por uma matriz de conformação e, por isso, não se encontrem suficientemente persuadidos quanto à necessidade de se promover mudanças no modo de ver, pensar, agir, aprender e ensinar em relação aos ditames da heteronormatividade.

No entanto, alguns depoimentos também indicam que é possível pensar e orientar nossas ações curriculares em novas direções. Um número também considerável e não contabilizado de escolas tem ido nessa direção. Nelas, o empenho

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em problematizar e desestabilizar a homofobia tem representado trabalhar por uma escola melhor para todas as pessoas, uma escola inclusiva, um espaço livre, seguro, educativo e de qualidade, que promova experiências que considerem que corpos, sexualidades, sujeitos, padrões culturais, normas, valores, relações humanas e hierarquias não constituem realidades naturais e imutáveis, mas construções sociais e históricas em contínua transformação (RIBEIRO et al., 2008; CARVALHO, ANDRADE e MENEZES, 2009; XAVIER FILHA, 2009). Em tais cenários, sempre haverá espaço para o questionamento e a reconsideração permanente do trabalho de indivíduos e da sociedade sobre si mesmos, para um repensar permanente dos valores e das relações de poder, voltado à invenção dialógica das regras e das formas de conviver, ensinar e aprender.

Mais do que uma responsabilidade, aí há uma gama de possibilidades para quem anima o mundo da educação, forma e informa, produz conhecimentos e influencia mentes e corações, em um esforço pessoal e coletivo de mudança. Do êxito e da ampliação dessas experiências dependem a formação para a democracia, a cidadania e a liberdade. Para isso, entre outras coisas, nós, profissionais da educação, poderíamos assumir como um de nossos lemas o que militantes do coletivo português “Insubmissão Feminina” escreveram em sua faixa, na XI Marcha do Orgulho LGBT de Lisboa, em 2010: “O binarismo não faz meu gênero”.

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ENFRENTANDO A HOMOFOBIA NA ESCOLA: Reflexões a partir de desafios postos pela experiência

Maria Eulina Pessoa de CarvalhoFernando Cézar Bezerra de AndradeFrancisca Jocineide da Costa e Silva

Maria Helena dos Santos GomesDaiane da Silva Firino

O debate sobre a diversidade sexual e de gênero ocorre desde a década de 1970, mas só recentemente está chegando à escola, devido à forte pressão dos grupos feministas e dos grupos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) que lutaram e continuam lutando contra a discriminação e exclusão nos espaços públicos, políticos e institucionais. Em 2004, foi lançado o Programa “Brasil sem Homofobia” para o “combate à violência e à discriminação contra gays, lésbicas, transgêneros e bissexuais e de promoção da cidadania homossexual”, que inclui entre suas ações o “direito à educação” com foco na promoção de “valores de respeito à paz e à não-discriminação por orientação sexual” (CONSELHO NACIONAL DE COMBATE À DISCRIMINAÇÃO, 2004). Em maio de 2008, ocorreu a primeira Conferência Nacional de Políticas para LGBT; e em maio de 2009 foi lançado o Plano Nacional de

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, com diretrizes a serem transformadas em políticas de Estado, entre as quais o “combate à homofobia institucional” e “a inserção da temática LGBT no sistema de educação básica e superior, sob abordagem que promova o respeito e o reconhecimento da diversidade da orientação sexual e identidade de gênero” (BRASIL, 2009a, p. 15-16).

O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, na versão de 2006, também afirma, nas ações programáticas para educação básica, a importância da “inclusão, no currículo escolar, das temáticas relativas a gênero, identidade de gênero, raça e etnia, religião, orientação sexual, pessoas com deficiências, entre outras, [...] assegurando a formação continuada dos(as) trabalhadores(as) da educação para lidar criticamente com esses temas” (BRASIL, 2007, p. 33); e “de princípios de convivência, para que se construa uma escola livre de preconceitos, violência, abuso sexual, intimidação e punição corporal, incluindo procedimentos para a resolução de conflitos e modos de lidar com a violência e perseguições ou intimidações, por meio de processos participativos e democráticos” (p. 35).

Este texto apresenta o relato de um projeto de extensão que focalizou a problemática da homofobia em uma escola pública de ensino fundamental de João Pessoa, com jovens do turno noturno. A reflexão sobre alguns registros dessa experiência aponta desafios para docentes de todos os níveis do ensino comprometidos com os direitos humanos das pessoas LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros), com a equidade de gênero, e com o papel crítico-transformador da escola na direção da justiça social e da felicidade humana. Como laboratório de relações sociais inclusivas, a escola deve acolher e promover o respeito a pessoas LGBT entre educandos/as, educadores/as e demais integrantes da comunidade escolar.

A homofobia pode ser definida sucintamente como “o medo, o desprezo, a desconfiança, o ódio, a hostilidade e a aversão em relação à homossexualidade e às pessoas homossexuais ou identificadas como tais” (CARVALHO, ANDRADE e JUNQUEIRA, 2009, p. 24). Tem expressões claras e específicas na escola, de modo que essa instituição não só reproduz o tratamento preconceituoso e injusto contra pessoas de orientação homossexual, mas o recria e intensifica, por conta da obrigatoriedade de ir e estar na escola, que torna muitos alunos e alunas LGBT

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Enfrentando a Homofobia na Escola: Reflexões a Partir de Desafios Postos pela Experiência

alvo de discriminações, cotidianamente, segundo os padrões dominantes da heteronormatividade (JUNQUEIRA, 2009).

A heteronormatividade impõe a heterossexualização compulsória via instituições sociais e educativas – família, igreja, escola, encarregadas da produção de sujeitos masculinos e femininos. Heteronormatividade e heterossexismo (discriminação por orientação sexual) baseiam-se na crença em uma atração “natural” entre “corpos e sexos opostos”, que correspondem obrigatoriamente a gêneros distintos, sendo a expressão da sexualidade/orientação sexual rigidamente vinculada às identidades e expressões de gênero. Consequentemente, “a homossexualidade, a transgeneridade e as práticas sexuais não reprodutivas” são consideradas “desvio, crime, aberração, doença, perversão, imoralidade, pecado” (CARVALHO, ANDRADE e JUNQUEIRA, 2009, p. 20-21).

A partir de uma revisão de pesquisas, Junqueira (2009) ressalta os efeitos deletérios da homofobia sobre a escolarização de estudantes LGBT que são transformados em objeto de segregação de gênero na escola: “afeta-lhes o bem-estar subjetivo; incide no padrão das relações sociais entre estudantes e destes com profissionais da educação; interfere nas expectativas quanto ao sucesso e ao rendimento escolar; [...] gera desinteresse pela escola” (p. 24). Ribeiro, Soares e Fernandes (2009, p. 200-201) lembram que

além dos dispositivos postos pela heteronormatividade, que a instituição escolar cultiva e propaga, a “anormalidade” homossexual é ali construída também por meio de ações pedagógicas pequeninas, ou melhor, não-institucionais – xingamentos dos colegas, piadas, fofocas, brincadeiras dos/as professores/as.

Todavia, a homofobia também alcança docentes e pode ter como autores discentes. Se professores/as estariam mais protegidos do escárnio e exclusão por serem adultos/as e, sobretudo, investidos/as da autoridade institucional, isso não é suficiente para isentá-los/as dos efeitos da homofobia na escola. Embora se trate menos da rejeição discente a docentes homossexuais, como prática social, a homofobia é também compartilhada pelo alunado. Foi a partir de um caso de rejeição

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

de estudantes a um professor homossexual que foi gerado o projeto de extensão denominado Gênero e Sexualidade em Cena1, descrito a seguir.

HOmOFObIa NUma esCOla públICa: se CORReR, O bICHO peGa; se FICaR, O bICHO COme

Logo após o início do ano letivo de 2010, um jovem professor de Inglês, homossexual, pedira para ser transferido de escola por não mais conseguir dar aulas no segmento noturno da EJA, sendo desafiado e ofendido por alguns alunos (que chegaram a tocar em suas nádegas e não se dispunham a assistir a qualquer aula). O professor afirmava sentir medo dos discentes (que mencionavam com frequência o uso de armas e drogas) e de transitar no bairro periférico em que se situa a escola (marcado por episódios de violência).

Por pouco, não abandonou a escola: apenas dois de seus colegas, imbuídos da consciência de que assim seria mais pedagógico, insistiram para que ele ficasse – os mesmos que levaram a instituição a promover uma formação em diversidade sexual e de gênero junto ao alunado.

Face ao exposto, nosso grupo de pesquisa, do qual participava uma docente da escola, decidiu realizar um projeto de extensão universitária dirigido ao alunado do turno noturno, com uso de abordagens possivelmente atrativas e interessantes, como filmes e oficinas de Teatro do Oprimido, visando problematizar e reverter a intolerância homofóbica presente no ambiente escolar.

O projeto “Gênero e Sexualidade em Cena” foi aprovado pelo Conselho da Escola Municipal Economista Celso Furtado, contou com o apoio da direção e da

1 O problema foi trazido ao Grupo de Pesquisa Currículo Transversal do Programa de Pós-Graduação em Educação e ao NIPAM – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Ação sobre Mulher e Relações de Sexo e Gênero, da Universidade Federal da Paraíba, por docentes da Escola Economista Celso Furtado, da rede municipal de João Pessoa. O projeto de extensão Gênero e Sexualidade em Cena (SIGProj No 43339.261.24254.04032010) é coordenado por Maria Eulina Pessoa de Carvalho e Fernando Cézar Bezerra de Andrade e conta em sua equipe com as/os seguintes educadoras/es e extensionistas: Marileda Rodrigues de Oliveira e Alexsandro de Andrade Souza, docentes da referida escola; Kathleen Bond e Flávio Rocha, estudantes de pós-graduação da UFPB e membros da Sociedade de Missionários de Maryknoll, ele especialista em Teatro do Oprimido, ambos voluntários no projeto; Maria Helena dos Santos Gomes, Francisca Jocineide Costa e Silva e Daiane dos Santos Firino, bolsistas PROBEX e alunas do Curso de Pedagogia da UFPB.

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Enfrentando a Homofobia na Escola: Reflexões a Partir de Desafios Postos pela Experiência

coordenação pedagógica, envolveu docentes e 32 estudantes das turmas dos ciclos III e IV de educação de jovens e adultos, com concentração de idades entre 15 e 21 anos. As atividades que serão descritas a seguir, e que servem de contexto de problematização e reflexão, ocorreram no primeiro semestre de 2010: a exibição do filme Amanda e Monick (PINTO, 2007) e as oficinas de Teatro do Oprimido (BOAL, 1998).

amaNDa e mONICk Na esCOla

Artur Marculino Gomes e Hernando Porfírio da Silva assumiram identidades de gênero opostas ao seu sexo biológico: Artur é Amanda e Hernando é Monick. São personagens reais apresentadas no documentário produzido em Barra do São Miguel, no Cariri Paraibano, dirigido por André da Costa Pinto (2007), intitulado com o nome das próprias personagens, travestis. Amanda é professora do Ensino Fundamental e Médio, respeitada por seus alunos e alunas, e pela comunidade onde vive. Monick é aluna de Amanda, trabalha como profissional do sexo em Santa Cruz do Capibaribe, PE, e vive com Nilda, uma lésbica que espera um filho seu.

Durante a exibição do filme, as alunas ficaram silenciosas e atentas, mas os rapazes riam e faziam piadas e chacotas com as personagens e colegas, chamando-os de Amanda e Monick, simultaneamente desprezando as travestis, afirmando que não são como elas, e provocando colegas a afirmarem sua masculinidade, segundo o modelo hegemônico masculino/hetero. Foi notável o espanto de todos, alunos e alunas, ao saberem que o homem que entrou em cena acompanhando Amanda era seu pai, pois pensaram que era seu namorado. Cabe menção ao comentário de um aluno de que teve dificuldade de escutar as vozes do filme porque um colega ao lado estava “rezando”, posto que seus princípios religiosos não lhe permitiam concordar com a identidade de gênero das personagens.

Fez-se um intervalo após a exibição do filme, e retomou-se a atividade para discussão e reflexão. Quando os alunos e alunas retornaram à sala, apresentavam visível apreensão. Foram sorteadas questões para serem respondidas em pequenos grupos, organizados assim: três grupos de rapazes, dois de moças e dois mistos. As questões propostas foram: (1) Como você se sentiria tendo uma professora como

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

Amanda? (2) Descreva o perfil de Amanda. (3) Descreva o perfil da companheira de Monick. (4) Você concorda com a atitude de total apoio do pai de Amanda em relação à orientação sexual do filho? (5) Você acredita que esse apoio o ajudou na sua definição sexual? (6) Por que Amanda é mais aceita e respeitada em sua comunidade do que Monick?

Nos grupos somente de mulheres as questões eram discutidas com bastante interesse; nos grupos apenas de rapazes a atitude era de desinteresse. Na apresentação das discussões para o grande grupo, o primeiro grupo de rapazes ficou inicialmente constrangido, mas prosseguiu com o incentivo do professor. O segundo grupo de rapazes, os grupos formados por moças e os grupos mistos não demonstraram dificuldade em falar. Todavia, o último grupo a apresentar, somente de rapazes, solicitou que o professor lesse suas anotações, recusando-se a falar para a turma.

Em um dos grupos somente de homens chamou atenção a seguinte resposta: “nós do grupo sentíamos envergonhados porque essa pessoa nasce com o gênero masculino querendo ser do gênero feminino, e devemos respeitar do jeito que elas são porque são seres humanos”. Observa-se a confusão entre sexo e gênero, assim como a noção essencialista de que o gênero decorre automaticamente da condição biológica, estranhando-se, por conseguinte, os casos anômalos. Observa-se ainda a ignorância dos limites da biologia e do fato de que a humanização é uma construção cultural, social e educacional.

Supõe-se que a noção biológica-essencialista do gênero seja decorrente de influências da educação religiosa (manifesta, por exemplo, no comportamento defensivo de um dos alunos, que rezava), familiar e também (o que é mais preocupante) da omissão do currículo escolar em esclarecer o que é condição biológica e o que é construção sociocultural no contexto das disciplinas tradicionais (ciências naturais e sociais), assim como no contexto do tema transversal Orientação Sexual dos Parâmetros Curriculares Nacionais.

É importante mencionar que a exibição do filme se deu após palestras e oficinas de apresentação e discussão conceitual sobre sexo, gênero, sexualidade e orientação sexual. A reflexão que se pode fazer é que um projeto de poucos meses de duração, que ocorre nos anos finais do ensino fundamental, não vai conseguir mudar rapidamente, para todos/as os/as alunos/as, noções comuns ensinadas na família,

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Enfrentando a Homofobia na Escola: Reflexões a Partir de Desafios Postos pela Experiência

na igreja e na cultura popular, que não foram continua e amplamente confrontadas criticamente pelo currículo escolar, encarregado de promover a aquisição de conhecimento poderoso, especializado, científico, teórico, não disponível em casa ou na vida cotidiana (YOUNG, 2009).

Por que, diferentemente de suas colegas, os rapazes evitaram o debate o quanto puderam e, durante a exibição do documentário, apresentaram sinais não verbais sugestivos de constrangimento e desaprovação – risos, expressões faciais de surpresa ante a aprovação paterna para a professora transexual, inquietação manifesta nas muitas entradas e saídas da sala?

Aparentemente, as reações manifestadas nas brincadeiras ocorridas no início do filme entre os meninos, como já foi explicitado, dizendo “olha o... (nome do colega)” quando apareciam as personagens, indicam provocação que desafia o colega mencionado a reafirmar sua masculinidade segundo o modelo hegemônico, ao mesmo tempo em que os provocadores afirmam que não são como Amanda e Monick.

O riso e o constrangimento apontam para a identificação de uma situação de risco identitário, diante da qual é necessário reagir de modo idêntico aos outros do mesmo grupo de iguais, preferencialmente para reafirmar a norma, a fim de garantir-se através dela. Desse modo, não só os laços intragrupais são reafirmados, mas também o próprio lugar nesse grupo é garantido, à custa da conservação de padrões de gênero heterossexistas, claramente resistentes a qualquer mudança de pensamento, atitudes e práticas sociais.

Contudo, ainda que esses padrões ofereçam, por sua função de agregação social, uma tendência à oposição a mudanças, eles podem ser mudados sem prejuízo à sociabilidade. Considerando não só essa possibilidade, mas a necessidade ética da inclusão na escola de todas as pessoas (inclusive as que escapam à heteronormatividade), percebe-se o quanto a escola não tem cumprido seu papel de formação para a democracia e a convivência justa e pacífica, já que nem consegue formar seu alunado, tampouco seu professorado. Disso serve de indício confirmador o fato de que, no debate, poucos indivíduos do sexo masculino participaram, fazendo-o como uma tarefa obrigatória, ou até pedindo ao professor para que apresentasse o resultado da discussão por eles no grande grupo.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

Por que para as mulheres parece ser mais fácil discutir diversidade de gênero e heteronormatividade? Simplesmente porque não se veem ameaçadas em suas identidades. Ademais, dado que a homofobia se imbrica com a misoginia (aversão e desvalorização da feminilidade), as mulheres, desse ponto de vista, já estão em condição inferiorizada. Por isso, tendem a simpatizar com as personagens travestis e acolhê-las, identificando-se com elas.

em CeNa a HOmOFObIa, a mIsOGINIa e O HeTeROssexIsmO

A proposta do Teatro do Oprimido, criada e desenvolvida por Augusto Boal2 (1931-2009), alia o teatro à ação/emancipação social, objetivando refletir sobre as relações de poder ao explorar histórias/relações entre opressor e oprimido em que o/a expectador/a participa da peça. Na experiência aqui analisada, adotou-se o Teatro do Oprimido como método para problematizar as representações de gênero e sexualidade do alunado (quiçá, inclusive, as do professorado) da escola campo do projeto.

O facilitador das oficinas de Teatro do Oprimido apresentou aos alunos e alunas a proposta de trabalho: num primeiro momento seriam desenvolvidas atividades de reconhecimento do tema, através de dinâmicas envolvendo o corpo; num segundo momento, ocorreria a apresentação pelos alunos de uma história escolhida, tematizando-se a homofobia.

Durante a realização das várias dinâmicas, envolvendo movimento e expressão corporal, os/as alunos/as, muito mais os rapazes do que as moças, estavam ansiosos, tensos e riam bastante; alguns/as se recusavam a fazer os exercícios, participando após a insistência do facilitador; outros se retiravam da sala envergonhados; e alguns até foram embora.

Após as dinâmicas, o facilitador novamente explicou a metodologia do Teatro do Oprimido, ressaltando que no fórum se apresenta um problema e os/as

2 Diretor de teatro, dramaturgo e ensaísta brasileiro, uma das grandes figuras do teatro contemporâneo mundial. O Teatro do Oprimido é teatro político, educativo e terapia social, sendo empregado nas áreas de educação, saúde mental e no sistema prisional (http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_Boal).

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Enfrentando a Homofobia na Escola: Reflexões a Partir de Desafios Postos pela Experiência

expectadores/as vão tentar resolvê-lo. Foram formados seis pequenos grupos e o facilitador propôs que cada participante contasse uma história real sobre preconceito contra homossexuais; cada grupo deveria escolher a melhor história; em seguida, se formariam dois grupos maiores (cada um composto de três pequenos grupos) para escolher uma entre três histórias; finalmente, uma das duas histórias restantes seria selecionada para ser trabalhada no Teatro do Oprimido no encontro seguinte.

Uma das histórias finalistas tratava da experiência familiar de uma aluna da turma: “A irmã da minha sogra, aos 14 anos, se relacionou com outra moça e sofreu muito por isso – mas sabemos que ela já nasceu assim, é algo que foi natural. Porém, quando a família descobriu, a expulsaram de casa e ela assumiu o seu relacionamento. Há cinco anos que não temos notícias dela”.

A segunda história finalista referia-se ao irmão de uma aluna que assumiu sua homossexualidade. A aluna deixou claro que o ama e que sempre o apoiou. Relatou que o irmão sofreu muito com o preconceito da própria família, que não aceitava o fato dele ser homossexual, chegando ao ponto de ser renegado pelo próprio pai. “Mas sei que meu irmão é feliz do jeito que ele é, e amo muito ele pelo fato dele não ter vergonha de si mesmo”.

Após as alunas terem contado suas histórias, o facilitador propôs que fosse escolhida a melhor, a qual seria apresentada pelo grupo que contou; porém, esse grupo não aceitou, e o outro grupo então assumiu a tarefa; contudo, alguns/as alunos/as do grupo escolhido não queriam apresentar, dizendo não saber encenar. O facilitador explicou que não era necessário ser ator ou atriz. Foram escolhidos sete personagens: a irmã opressora, a irmã defensora, o pai também opressor, o irmão homossexual oprimido e três transeuntes. O facilitador concluiu o primeiro momento da oficina com um ensaio e orientações para o grupo que encenaria a história no dia seguinte.

O segundo momento foi iniciado com dinâmicas de aquecimento, envolvendo movimentos acelerados, para que todos interagissem. Passou-se então à encenação da história sobre homofobia.

Na primeira cena, a irmã opressora varria a casa e comentava com outra irmã o fato do irmão (homossexual/oprimido) sair de shortinho e blusinha feminina pela rua, o que para ela era inadmissível: afinal ele tinha que se comportar como homem, pois “nasceu assim e deveria se vestir e andar como os outros homens”. A irmã

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

defensora retruca, acusando-a de discriminar seu próprio irmão, e pergunta: “Qual é o seu problema, pois ele é nosso irmão, uma pessoa digna, o que você estava dizendo é típico de uma pessoa preconceituosa.” A irmã opressora responde: “Não aceito ele ser desse jeito, afinal ele deveria ter um comportamento de homem, se ele nasceu homem deveria se comportar como um”. A irmã opressora encerra a discussão e chama a irmã defensora e o irmão oprimido para fazerem a feira.

A segunda cena se passa na rua, no momento em que as irmãs e o irmão estão na feira e ele é objeto de chacotas de três transeuntes: “aquele modo como ele se veste não é coisa de homem e sim de gay”. O oprimido, então, responde: “não tem problema nenhum me vestir assim”. Sua irmã opressora reclama mais uma vez com ele por causa de suas roupas. Chegando em casa, a irmã opressora conta tudo para o pai, que fica contra o filho e não aceita o fato de ele ser homossexual, falando que na casa dele “não aceita aquele tipo de coisa.”

As cenas são interrompidas e o facilitador (coringa) indaga se alguém quer voltar alguma cena, mostrando uma solução para acabar com o preconceito. Ocorre a primeira intervenção com uma aluna representando a irmã defensora, que, ao discutir com a irmã opressora, diz que “cada um tem um jeito de ser, e você precisa deixar de ser preconceituosa”.

O coringa perguntou: “O problema foi solucionado?” Uma aluna respondeu: “Não, ela (a irmã opressora) continua do mesmo jeito e não muda de conceito, afinal não existe solução para o preconceito, se acabar com o preconceito de um, sempre haverá outros com preconceitos e assim por diante”. O coringa pediu para essa aluna tentar solucionar o problema. Ela aceitou o desafio e assumiu o papel da irmã defensora, dizendo à irmã opressora: “Você deveria orar por ele, e se você não apoiar o pessoal da rua vai meter o pau nele”. E disse ainda: “Vá procurar outra coisa para fazer ao invés de criticar o nosso irmão”.

Depois dessa intervenção, vários/as participantes deram sugestões de soluções, porém o coringa explicou que tinham que entrar nas cenas para intervir.

A aluna da primeira intervenção pede para participar novamente na primeira cena como a irmã defensora, dando a sua contribuição para a terceira intervenção, na qual revidou as críticas da irmã opressora sobre o irmão, dizendo-lhe: “É preciso conversar, para que ele tente mudar o jeito dele ser”.

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Enfrentando a Homofobia na Escola: Reflexões a Partir de Desafios Postos pela Experiência

Um professor pediu para interpretar o pai, porém o coringa explicou que o único papel que pode ser interpretado pelo público no Teatro do Oprimido é o do oprimido, pois é ele que busca resolver seu conflito. Então o professor representou a irmã defensora, ressaltando, em sua intervenção, as qualidades do irmão oprimido, “uma pessoa maravilhosa”, e lembrando, ainda, dos ensinamentos da mãe sobre o amor e o respeito às diferenças: “Devemos aceitar as diferenças; você deveria respeitar ele, porque é nosso irmão”.

Os alunos que interpretaram os transeuntes conversavam entre si que o que estava faltando para resolver o problema era ter alguém que dissesse: “O respeito é tudo, e cada pessoa é diferente da outra e isso deve ser visto como bom”. O coringa pediu para alguém fazer mais alguma contribuição, mas os/as alunos/as ficavam indicando uns aos outros. O coringa explicou que a intervenção deveria ser voluntária, então uma aluna se dispôs a fazer o papel da irmã defensora, que também é oprimida por defender o irmão. Ela pede para que a irmã opressora coloque-se no lugar do irmão oprimido.

A sexta contribuição veio de uma professora que assume a personagem da irmã defensora (oprimida), apelando mais uma vez para os laços afetivos: “Devemos aceitar as diferenças e você deve respeitá-lo, porque é nosso irmão”. Pede ainda para a irmã opressora pensar como se fosse mãe dele e para levar em consideração a importância da família nesse momento.

Na sétima intervenção, outra professora assumiu o papel da irmã defensora, ressaltando que a irmã não deveria agir com discriminação, pois um dia poderia necessitar da ajuda de um homossexual.

Apesar das várias intervenções o problema não havia sido solucionado e muitos/as alunos/as já afirmavam que não tinha solução. A interpretação de uma das professoras na oitava contribuição trouxe um argumento novo. Ao fazer o papel da irmã oprimida, ela apontou que a irmã opressora poderia necessitar da ajuda financeira que seu irmão pudesse oferecer, caso ele ganhasse bastante dinheiro.

A nona intervenção foi na segunda cena, em que o irmão sofre preconceito na rua. Uma extensionista assumiu o papel do irmão oprimido, destacando a coragem de assumir a sua orientação sexual perante a sociedade, afirmando que “não tenho vergonha de me assumir”, principalmente quando falava a um dos

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

opressores: “eu me visto do jeito que eu sou. Não é porque você se veste feito homem, que isso vai indicar sua masculinidade”.

A décima e última intervenção também abordou a segunda cena, interpretada por uma aluna, que, assumindo o papel do oprimido, falou da necessidade de autoaceitação e exigiu o respeito de todos. Nenhuma das intervenções foi suficiente para mudar os conceitos da irmã opressora que continuou a discriminar o irmão.

O facilitador lembrou que o Teatro do Oprimido não sugere de imediato uma solução para os problemas abordados durante sua execução, pois visa trazer uma reflexão que servirá para a vida nas suas várias situações.

A aluna que interpretou a irmã opressora ressaltou que a história faz parte da sua família e que, na realidade, ela é a oprimida, e que apoia a orientação sexual do irmão.

A participação dos/das estudantes e as cenas criadas por eles e elas sugerem algumas constatações e reflexões. A primeira delas é a maior participação de alunas do que alunos nas intervenções: elas trouxeram as histórias, elas foram as protagonistas, como irmã opressora e irmã oprimida. Nenhum aluno assumiu o papel do irmão oprimido, gay.

A segunda constatação é que o homossexual/oprimido que é construído na história encenada é feminino: um rapaz que se veste de shortinho e blusinha feminina. No senso comum, homossexual é um homem efeminado, portanto, inferiorizado na lógica sexista, machista e misógina. Concorre para confirmar esse padrão de representações, inclusive, o fato de ser o professor discriminado por suas turmas um homem efeminado, ao passo que, nessa mesma escola também havia outro professor homossexual assumido, que, todavia, se gabava de não sofrer qualquer discriminação por ser másculo (o que significa forte, brabo) – correspondendo, assim, aos atributos de gênero para seu sexo.

Apenas na nona intervenção, na segunda cena (na rua/feira), a extensionista (estudante de Pedagogia integrante do projeto), ao assumir o papel do irmão homossexual oprimido, contesta a fala dos opressores, desligando masculinidade e vestimenta/aparência de homem: “Não é porque você se veste feito homem, que isso vai indicar sua masculinidade” – questionando, assim, a relação “certa” entre aparência masculina e orientação heterossexual.

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Enfrentando a Homofobia na Escola: Reflexões a Partir de Desafios Postos pela Experiência

A terceira constatação é o fato de a irmã opressora defender veementemente a determinação sexo-gênero (se ele nasceu homem, deveria se vestir e se comportar como os outros homens) e a dicotomia de gênero associada à heteronormatividade. Mas pode-se perceber que a atitude da irmã defensora também é de não aceitação da orientação sexual do irmão, tolerando-o apenas por ser seu familiar. Em algumas das intervenções da irmã defensora a orientação sexual do irmão é um problema a ser resolvido através da conversa, para convencê-lo a mudar o jeito de ser, e, como último recurso, da oração, talvez na esperança de uma graça divina que opere uma conversão sexual e de gênero. Ou seja, há esperança de reversão da homossexualidade para que se retorne à ordem natural (dicotômica e heteronormativa).

A quarta constatação diz respeito ao modelo de família, de pai intolerante (que não aceita a homossexualidade do filho) e de mãe benevolente (que ensina o amor e a harmonia familiar). Em várias das intervenções também se nota que os apelos se referem à aceitação da homossexualidade por solidariedade de sangue, “porque é nosso irmão”, “se você não apoiar o pessoal da rua vai meter o pau nele”, ou seja, os laços afetivos poderiam facilitar mais a aceitação no caso de um irmão do que de um estranho.

A quinta constatação é sobre a resistência do preconceito homofóbico. Em todas as intervenções, a opressão não foi resolvida: a irmã opressora, antagonista de todos os argumentos pela inclusão, manteve-se irredutível no seu preconceito homofóbico, não cedendo aos mais diversos apelos: empatia (colocar-se no lugar do irmão oprimido), consciência da interdependência (um dia poderia necessitar da ajuda de um homossexual), interesse (o irmão homossexual poderia ficar rico). Uma das possíveis razões para tanto deriva da qualidade das tentativas de libertação do oprimido: todas supuseram um descentramento inexistente. O descentramento, segundo Piaget (1994), consiste na capacidade de colocar-se no lugar do outro, de modo a reconhecer a situação pelos olhos dele e avaliá-la (e a si mesmo) moralmente, levando em conta não mais o autointeresse (no caso, ficar rico ou receber ajuda em retribuição), mas o bem-estar alheio (empatia e, em alguns casos, o sacrifício). Para descentrar-se, é necessário admitir a possibilidade e a legitimidade de perspectivas diversas daquela que adota o sujeito cognoscitivo e moral. O heterossexismo, a misoginia e a homofobia são padrões de conformação da conduta que, por definição, não permitem alternativas igualmente legítimas à heterossexualidade e ao

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

machismo, carecendo de questionamento e superação pelas práticas escolares – o que não ocorre, a considerar-se a experiência analisada.

Assim, o problema trabalhado através do teatro do oprimido não foi solucionado, o que levou uma aluna a afirmar que não existe solução ou superação para o preconceito. Cabe destacar a crença dessa aluna de que o preconceito é inextinguível, sendo os esforços de esclarecimento insuficientes diante de sua contínua geração. A força dessa percepção tem o peso de uma convicção várias vezes confirmada pelas práticas excludentes, na família, na escola e na sociedade em geral. Quando o preconceito é reforçado, a resistência à mudança torna-se ainda mais firme, posto que variantes do padrão estabelecido aparecem como ameaças a esse paradigma. Incluí-las implica recusar os fundamentos do pensamento e de condutas que estão profundamente arraigados nas identidades individual e grupal.

Para cogitar a possibilidade de incluir o diferente (em gênero, identidade sexual e/ou orientação sexual), reduzindo a resistência às transformações necessárias, faz-se necessário pensar em uma educação e em uma escolarização nas quais não só o essencialismo seja evitado, mas também as identidades sejam mais abertas. Para isso, é preciso refundá-las em elementos comuns não necessariamente gendrados e, sim, situados em critérios mais universais e equânimes, como as virtudes morais, que permitem a apreciação das diferenças sem torná-las argumento para a desigualdade; ou, se gendrados, abertos à pluralidade de formas de expressão e alternância de gêneros (o que aqui é feminino pode ser masculino lá, sem que isso cause abalo às identidades, mas, antes, as renove).

HOmOFObIa e ResIsTêNCIa à mUDaNÇa

Percebe-se, em conclusão, a importância de refletir sobre o problema da resistência, tanto cognitiva quanto afetiva, à mudança. Essa resistência, no caso da homofobia, quando analisada pelos processos constituintes das identidades, explica-se pela associação entre heteronormatividade, identidade de gênero, autoconceito e autoestima, de modo que práticas homofóbicas têm como meta primária a confirmação da identidade, através da autoimagem e da autoestima, constituídas a partir de representações adequadas à norma heterossexual. Esse processo dá àquelas práticas uma força capaz de promover resistência

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Enfrentando a Homofobia na Escola: Reflexões a Partir de Desafios Postos pela Experiência

à mudança, mesmo em situações nas quais a diversidade não parece oferecer risco para a identidade adequada à norma predominante.

A heteronormatividade consiste num “conjunto de valores, normas, dispositivos e mecanismos definidores da heterossexualidade como a única forma legítima e natural de expressão identitária e sexual” (CARVALHO, ANDRADE e JUNQUEIRA, 2009, p. 20). Nesse sentido, o imperativo heterossexista está imbricado em práticas diversas e cotidianas de construção identitária, de que a escola também participa, como instituição obrigatória para a infância e adolescência: o gênero masculino e a heterossexualidade são considerados superiores ao gênero feminino e a outras orientações sexuais, tratados como inferiores ou desviantes – e, neste último caso, indesejáveis, atraindo a agressão e a exclusão dos indivíduos e grupos que não se adéquam ao padrão dominante.

Se somente a heterossexualidade é admitida, ela se torna o único valor positivado, agregando estima ao conceito de si (ou autoconceito): é o que se chama de autoestima (mais positiva, caso o autoconceito agregue elementos de gênero considerados superiores ou necessários, negativa em todos os outros casos). Já que todos constroem um autoconceito, entendido como a representação global de si que faz cada pessoa, representação essa que envolve tanto aspectos cognitivos (o autoconhecimento acerca de características próprias, como as corporais, sociais e intelectuais), quanto afetivos (marcadamente, os afetos de diferentes tipos (OLIVA, 2004), dirigidos a traços mais ou menos prestigiosos); e já que todo autoconceito é objeto de estima, na construção da identidade só há uma forma de escapar à adesão à heteronormatividade: não ser heterossexual. Porém, neste caso, a mesma diferença que permite criticar o preconceito é aquela que sofre a exclusão fundada na norma injusta: a invisibilidade (a que se associa a clandestinidade) é uma das expressões dessa recusa a orientações sexuais não normatizadas (LOURO, 2001; RIBEIRO, SOARES e FERNANDES, 2009).

Nas intervenções que ocorreram nas cenas do Teatro do Oprimido naquela escola eram perceptíveis, da parte da irmã opressora (na inflexibilidade e na intolerância para com o irmão), o constrangimento e o aborrecimento por ter um irmão homossexual: ela se incomodava por estar ligada a esse que desrespeitava a heteronormatividade, exigindo dele a mudança de comportamento. Ora, se até mesmo os produtores do preconceito de gênero constrangem-se e muitas vezes se escondem para escapar à abjeção pública, que dizer dos alvos? O preconceito, assim, afeta alvos

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

e autores. A irmã opressora toma para si ativamente a heteronormatividade e o faz associando à sua identidade os componentes da norma. De um lado, a identidade heterossexista reconhece-se como superior ou exclusiva; de outro, essa identidade vê-se ameaçada por qualquer diferença que sugira não ser a heterossexualidade a única forma aceitável, digna de ser, sexualmente falando.

Se as categorias de pensamento são fatores decisivos nesse processo, do ponto de vista cognitivo, são as teorias da resistência à assimilação de novos conceitos pelo conhecimento prévio que ajudam a entender a reprodução de representações. A teoria vigotskiana, por exemplo, acentua a forte determinação que conceitos espontâneos, gerados no e para o senso comum, têm sobre a compreensão do mundo e da vida. Se tais conceitos não forem mobilizados e, em vários casos, alterados (caso sejam incompatíveis com a natureza do novo conhecimento), não será possível assimilar a informação nova e fazer com que ela produza aprendizagem (SALA e GOÑI, 2000).

Por sua vez, afetivamente, de um ponto de vista psicanalítico, a identidade supõe uma parte considerável do autoconceito (eu ou ego) submersa em outro registro: o inconsciente. Desse modo, resistir é recusar a assimilação de características incongruentes com o autoconceito, buscando evitar, com isso, sentimentos de angústia e desprazer decorrentes de uma eventual ameaça à unidade identitária que se chama “eu”. Com isso, muitas representações autorreferentes que não são compatíveis com o padrão heteronormativo podem ser (e por vezes são) mantidas inconscientes: seu eventual retorno à consciência de si, a mera possibilidade de que características consideradas indesejáveis por um sistema psíquico muito fechado retornem, já é causa de conflitos, pela coexistência de representações incompatíveis relacionadas ao mesmo eu (LAPLANCHE e PONTALIS, 1991, p. 458). E como a identidade (re)faz-se permanentemente nas interações com os outros, o encontro com alguém diferente pode, inclusive, ser considerado perigoso para o eu.

Em síntese: quando o autoconceito é ameaçado por qualquer característica da outra pessoa que seja diferente (esse pareceu ser o caso da irmã opressora), a identidade da pessoa em confronto com a diferença tende a manter-se estável, recusando qualquer elemento que sugira reorganização da identidade. Isso é ainda mais forte quando a ameaça atinge algum atributo de superioridade – o que, no caso apresentado, pode explicar a intransigência da irmã opressora.

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ReFeRêNCIas

BOAL, Augusto. Jogos para atores e não-atores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

BRASIL. Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília: Presidência da República, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, 2009.

BRASIL. Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Ministério da Edu-cação, Ministério da Justiça, UNESCO, 2007.

CARVALHO, M. E. P. de; ANDRADE, F. C. B. de; JUNQUEIRA, R. D. Gênero e diversidade sexual, um glossário. João Pessoa: Ed. Universitária/UFPB, 2009.

CONSELHO Nacional de Combate à Discriminação. Brasil Sem Homofobia: Programa de combate à violência e à discriminação contra GLTB e promoção da cidadania homossexual. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.

JUNQUEIRA, R. D. Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: MEC/SECAD/UNESCO, 2009.

LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

LOURO, G. L. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

PIAGET, Jean. O julgamento moral na criança. São Paulo: Summus, 1994.

PINTO, A. da C. Amanda e Monick. Brasil: 2007 (19 min), documentário-DVD, colorido, som. Disponível: <www.telefilme.net/sinopse-do-filme-13440_AMANDA-E-MONICK.html> Acesso em: 13 set. 2010.

RIBEIRO, P. R. C.; SOARES, G. F.; FERNANDES, F. B. M. A ambientalização de professores e professoras homossexuais no espaço escolar. In: JUNQUEIRA, R. D. Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: MEC/SECAD/UNESCO, 2009.

SALA, E. M.; GOÑI, J. O. A teoria sociocultural da aprendizagem e do ensino. In: COLL et al. Psicologia do Ensino. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.

YOUNG, Michael. Para que servem as escolas? In: PEREIRA, M. Z. da C.; CARVALHO, M. E. P. de; PORTO, R. de C. C. Globalização, Interculturalidade e Currículo na Cena Escolar. Campinas/SP: Alínea, 2009. p. 37-54.

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GÊNERO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA: avanços e desafios

Cristina Tavares da Costa RochaNanci Stancki da Luz

As mudanças recomendadas pelos presentes não foram somente direcionadas às mulheres, mas derivaram de suas mais amplas preocupações como mulheres para a qualidade de vida de suas famílias. Em particular, elas queriam que homens e mulheres trabalhassem juntos, para assegurar que o desenvolvimento de ciência e tecnologia pudesse fortalecer, mais do que atrapalhar; curar, mais do que prejudicar; construir, mais do que destruir; capacitar, mais do que debilitar; aliviar o trabalho penoso, mais do que infligir mais trabalho.

MALCOM, Shirley, 2005/20061

1 Trecho extraído do relatório escrito durante encontro de especialistas, financiado pelo Comitê de Conselheiros em Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento das Nações Unidas, e da American Association for the Advancement of Science (AAAS) - (Associação Americana para o Progresso da Ciência).

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

pReâmbUlO: o perigo da história única

Chimamanda Adiche, da Nigéria, em palestra intitulada “O Perigo da História Única”,2 proferida em julho de 2009 na TED Ideas Worth Spreading3, nos alerta sobre os perigos da história única.

De forma geral, o que nos chega são fragmentos, informações parciais e quase sempre (re)interpretações da história, feitas a partir do olhar de quem conta e de sua inserção social e cultural. Esta é uma realidade que se repete na história da ciência e da tecnologia – construções humanas percebidas como hegemonicamente masculinas. A cultura científica e tecnológica ocidental foi construída a partir de valores de dominação e controle tipicamente masculinos, revelando-se ainda hoje com marcas de sexismo e discriminação de gênero.

Este artigo objetiva contribuir com os estudos e as pesquisas sobre gênero, ciência, tecnologia e sociedade, sem pretender, no entanto, esgotar estas temáticas interligadas. Para tanto, expõe considerações e instiga reflexões sobre o sexismo na ciência e na tecnologia, a partir da ótica de uma outra história que está sendo contada em oposição ao sexismo4 e ao androcentrismo5, oposição esta que se constrói e se reflete nas práticas da ciência e da tecnologia. O artigo informa sobre avanços e conquistas das mulheres nas áreas científicas e tecnológicas, mas pontua que ainda há muito a conquistar, evidenciando lacunas consideradas graves sobre a recorrente minoria de mulheres na construção do conhecimento e decorrente atuação nas mais variadas dimensões do ver o mundo e viver no mundo.

2 “As nossas vidas, as nossas culturas, são compostas por muitas histórias sobrepostas. A romancista Chimamanda Adichie conta a história de como descobriu a sua voz cultural – e adverte que se ouvirmos apenas uma história sobre outra pessoa ou país, arriscamos um desentendimento crítico”. Disponível em: <http://www.ted.com/talks/lang/por_pt/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.html> Acesso em: 15 nov. 2010.3 Trata-se de uma comunidade global de pensadores e executores (agentes) comprometidos com o compartilhamento de grandes ideias.4 Sexismo: é uma posição, ou postura misógina, de desprezo frente ao sexo oposto; é atitude de discriminação em relação às mulheres. Mas é importante lembrar que se trata de uma posição, que pode ser perpetrada tanto por homens quanto por mulheres; portanto, o sexismo está presente intragêneros tanto quanto entre gêneros (SMIGAY, 2002).5 O androcentrismo se caracteriza por entender o ser humano do sexo masculino como o centro do universo, com poderes de governabilidade máxima e superior a todos e a tudo no mundo (MORENO, 1999).

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Gênero, Ciência e Tecnologia: Avanços e Desafios

pRáTICas Da CIêNCIa e Da TeCNOlOGIa: ResIsTêNCIas aO sexIsmO e aO aNDROCeNTRIsmO

No processo de construção do conhecimento houve uma quebra de paradigma a partir da entrada de mulheres militantes de movimentos sociais feministas no cenário científico e tecnológico. Tais movimentos defendiam uma oposição ao androcentrismo e sexismo vigentes nas sociedades ocidentais e nos campos do saber, dentre os quais a ciência e a tecnologia.

A partir de então, começam a surgir evidências de mudanças. Outra história também passa a ser contada, desconstruindo a invisibilidade feminina na produção do conhecimento. Ao serem visibilizadas, evidencia-se uma participação já existente, apesar de tentativas de apagar a constante contribuição das mulheres na produção da ciência e da tecnologia.

A problematização da ausência feminina nos campos do saber também questionou elementos que embasavam a ciência até então: objetividade, universalidade, racionalidade, neutralidade, verdade e controle. Outros elementos que fazem parte da construção do conhecimento e que até então eram negados passam a ser considerados, dentre os quais: localidade, intuição, sensibilidade e subjetividade do sujeito que pesquisa.

Outro fato relevante foram as denúncias acerca do etnocentrismo científico. Pesquisador@s contemporâne@s, a exemplo das feministas Donna Jeanne Haraway, Sandra Harding, e de Bruno Latour, dentre outr@s, posicionam-se favoráveis à aceitação do conhecimento produzido fora dos países considerados de primeiro mundo, como Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha. Haraway (1991) tem uma postura contrária à centralização de abordagens nesses países, devido à concentração e hegemonia do saber, prejudicial ao desenvolvimento social e econômico dos demais países. Dentre as denúncias, além do etnocentrismo, destacam-se questões como: o feminismo que privilegiava as mulheres brancas e de classe média/alta, desconsiderando os interesses das mulheres negras e pobres; o androcentrismo que permeava a maioria das instituições do contexto de globalização econômica (ou mundialização do capital), nas quais predomina as consideradas novas tecnologias de informação e de comunicação.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

As evidências de mulheres construtoras do conhecimento se fazem abundantes, desde a antiguidade, com Hypatia de Alexandria (370 a 415 d.C.) que tem sido considerada a primeira cientista ocidental, destacando-se pelos seus trabalhos sobre álgebra e geometria e pelos artefatos tecnológicos que inventou: astrolábio, densímetro e o hidrômetro.

No século XIX, outro destaque é a inglesa Ada Augusta Byron Lovelace (1815-1852), que se dedicou a estudos da Matemática e das Ciências. Ela foi responsável pela concepção e desenvolvimento do primeiro programa para computadores, após ter tido contato com Charles Babbage, que lhe mostrou uma máquina de calcular. Em sua homenagem, denominou-se ADA a uma linguagem de programação desenvolvida pelo Departamento de Defesa/EUA e que é ainda utilizada em sistemas computacionais.

No final do século XIX e início do século XX visibiliza-se Marie Marya Sklodowska Curie (1867-1934). Ela é a única que recebeu dois prêmios Nobel na história. Nasceu em Varsóvia, Polônia e, em 1891, seguiu para Paris, onde se graduou com honras em Ciências Físicas e Matemática. Em 1895 conheceu o físico Pierre Curie, seu esposo e colega no seu 1º Prêmio Nobel. Em 1911, Marie ganhou seu 2º Nobel, desta vez em Química, por descobrir os elementos rádio e polônio (nominado por seu país natal).

Diversas outras cientistas poderiam ser citadas neste trabalho, a exemplo de Grace Murray Hopper (1906-1992), Rita Levi-Montalcini (1909), Amalie Emmy Noether (1882-1935), Berta Lutz (1894-1976), Mayana Zats (1947), Belita Koiler (1949). Porém, por questões de limites de espaço inerentes a um artigo científico opta-se por prosseguir na discussão sobre os avanços das mulheres no campo científico e tecnológico, assim como os desafios a serem enfrentados na conquista da equidade de gênero em todas as dimensões da existência humana.

As atuações das mulheres na construção do conhecimento nas diversas áreas do saber têm resultado em avanços significativos. As evidências de tais avanços são percebidas em âmbitos como os educacionais e os do mundo do trabalho, como os exemplos explicitados no item a seguir.

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Gênero, Ciência e Tecnologia: Avanços e Desafios

eDUCaÇÃO FemININa: avaNÇOs e DesaFIOs Um dos grandes avanços da luta das mulheres nas últimas décadas tem sido

a ampliação da escolaridade feminina. Esse fato facilitou o acesso à informação, contribuiu para a produção de conhecimentos, possibilitou a ampliação da divulgação de ideias e permitiu que mulheres pudessem atuar em áreas que exigem formação acadêmica.

Elas já compõem a maioria do corpo discente do ensino superior nas diversas áreas do conhecimento, conforme é evidenciado na tabela 1, que apresenta dados estatísticos do Censo 2008 do CNPq sobre o número de estudantes separados em grandes áreas e desagregados por sexo.

Tabela 1 – Número de estudantes no ensino superior, por sexo, segundo áreas do saber – Censo 20086

Grande área Total geral Masc Fem

Ciências Agrárias 17.123(100%)

7.747(45,2%)

9.376(54,8%)

Ciências Biológicas 23.027(100%)

8.333(36,2%)

14.694(63,8%)

Ciências da Saúde 29.085(100%)

8.534(29,3%)

20.551(70,7%)

Ciências Exatas e da Terra

16.362(100%)

9.029(55,2%)

7.333(44,8%)

Ciências Humanas 32.455(100%)

11.156(34,4%)

21.299(65,6%)

Ciências Sociais Aplica-das

15.646(100%)

6.564(42%)

9.082(58%)

Engenharias 21.628(100%)

14.630(67,6%)

6.998(32,4%)

6 Os dados em destaque evidenciam a maioria de homens em relação às mulheres

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

Linguística, Letras e Artes

9.471(100%)

2.757(29,1%)

6.714(70,9%)

TOTAL 164.797(100%)

68.750(41,7%)

96.047(58,3%)

Fonte: Censo 2008, CNpq.7

Estes dados estatísticos revelam que, embora sendo maioria nas grandes áreas das ciências tidas como “softs”: agrárias, biológicas, humanas, sociais aplicadas, Linguística/Letras/Artes, quadro este, aliás, que vem se mantendo há alguns anos, ainda há minoria de mulheres nas grandes áreas das ciências tidas como “hards”: exatas e da Terra: 7.333 mulheres e 9.029 homens; e engenharias: 6.998 mulheres e 14.630 homens. Convém observar ainda que as áreas em que há maior predominância de mulheres são Linguística, Letras e Artes (70,9%) e Ciências da Saúde (70,7%). Já a predominância numérica masculina ocorre na área de Engenharias (67,6%). Tais dados apontam para a continuidade da divisão tradicional do trabalho – expressa em uma divisão sexual dos processos de formação: área tecnológica (no caso, engenharias) com maioria de estudantes e profissionais do sexo masculino e áreas relacionadas ao cuidado (saúde e magistério) com composição majoritariamente feminina.

No que se refere ao número de pesquisador@s no Brasil, verifica-se, a partir da tabela 2, que existe um aparente equilíbrio entre o número de homens e de mulheres (51,1% e 48,9% respectivamente). No entanto, quando se analisa as áreas específicas, verifica-se que praticamente se repete a divisão sexual da tabela 1: predominância de pesquisadoras nas áreas de Linguística, Letras e Artes e Ciências da Saúde – 66,5% e 60,4%, respectivamente; predomínio de pesquisadores na área de Engenharias – 72,7%. Nota-se, no entanto, que entre @s pesquisador@s, há duas áreas – Ciências Agrárias e Sociais Aplicada – que tem composição majoritariamente masculina e que, quando se trata de número de estudantes, a maioria é feminina. Pode-se conjecturar que as mulheres estão ampliando participação nessas duas áreas e que isso deve refletir em número maior de pesquisadoras nos próximos anos ou

7 Disponível em: <http://dgp.cnpq.br/planotabular/> Acesso em: 10 set 2010.

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Gênero, Ciência e Tecnologia: Avanços e Desafios

também que as mulheres, mesmo fazendo cursos superiores em tais áreas, não têm se encaminhado para a área de pesquisa.

Tabela 2 – Número de pesquisador@s, distribuídos por sexo e área de conhecimento

– Censo 20088

Grande área Total Masc Fem

Ciências Agrárias 12.237(100%)

7.604(62,1%)

4.633(37,9%)

Ciências Biológicas 13.361(100%)

6.241(46,7%)

7.120(53,3%)

Ciências da Saúde 21.197(100%)

8.394(39,6%)

12.803(60,4%)

Ciências Exatas e da Terra 11.825(100%)

7.836(66,3%)

3.989(33,7%)

Ciências Humanas 23.074(100%)

9.399(40,7%)

13.675(59,3%)

Ciências Sociais Aplicadas 14.422(100%)

7.544(52,3%)

6.878(47,7%)

Engenharias 15.197(100%)

11.046(72,7%)

4.151(27,3%)

Linguística, Letras e Artes 6.640(100%)

2.227(33,5%)

4.413(66,5%)

TOTAL 117.953(100%)

60.291(51,1%)

57.662(48,9%)

Fonte: Censo 2008, CNpq.9

Em relação à condição de liderança em um grupo de pesquisa, a tabela 3 apresenta a participação masculina e feminina, em números relativos (%) no período 1995-2008. Percebe-se que os homens são sempre maioria quando se trata de condição de “líder”. Por consequência, no referido período, as mulheres perfazem a maioria

8 Os dados em destaque evidenciam maioria de homens em relação às mulheres.9 Disponível em: <http://dgp.cnpq.br/planotabular/> Acesso em: 10 set 2010.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

na condição de “não-líder”, evidenciando que a distribuição d@s pesquisador@s, embora equilibrada quando se trata de dados quantitativos agregados nas diversas áreas, isso não se reflete na condição de liderança dos grupos de pesquisa. Destaca-se o fato de, no período analisado, não ter ocorrido alteração significativa em relação aos percentuais de participação feminina e masculina na condição de líder – homens, oscilando entre 33% a 40%, sem tendência de aumento; e mulheres, variando de 27% a 33%, também sem tendência de aumento.

Tabela 3 – Pesquisador@s distribuíd@s, por sexo e condição de liderança no grupo

de pesquisa - Brasil - 1995 a 2008 (%)

Condição de liderança

1995 1997 2000 2002 2004 2006 2008

Masc Fem Masc Fem Masc Fem Masc Fem Masc Fem Masc Fem Masc Fem

Líderes 35 29 34 28 36 31 40 33 37 31 35 29 33 27

Não-líderes 65 71 66 72 64 69 60 67 63 69 65 71 67 73

Total 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100

Fonte: Censo 2008, CNpq.10

Ao analisar a distribuição de pesquisador@s líderes, por sexo e faixa etária, observa-se que os homens são maioria em relação às mulheres em todas as faixas etárias, com uma única exceção, que é a faixa até 24 anos, em que se nota paridade entre os gêneros. Além disso, as faixas etárias em que há maior distanciamento entre participação de mulheres e homens (com vantagem masculina) são aquelas em que a mulher estaria mais sujeita à maternidade (gravidez e cuidado de filh@s pequen@s) – fase que ainda exerce influência sobre a presença feminina na produção de pesquisas, pois são elas que assumem as maiores responsabilidades nesse âmbito, restringindo e até mesmo gerando um certo impedimento para este tipo de trabalho que, via de regra, tem exigido grande dedicação e compromisso com índices de produtividade, nem sempre compatível com o acúmulo de tarefas inerente às atividades do

10 Disponível em: <http://dgp.cnpq.br/planotabular/> Acesso em: 10 set 2010.

153

Gênero, Ciência e Tecnologia: Avanços e Desafios

âmbito reprodutivo. Na faixa etária acima de 65 anos, que é a fase praticamente de consagração do experiente e maduro pesquisador, que tem mais chance de angariar verbas para suas pesquisas por meio de Bolsa Produtividade, nível A, de organismos financiadores de pesquisas, como Capes e CNPq, há uma ampliação da concentração masculina, conforme tabela 4.

Tabela 4 – Pesquisador@s líderes distribuíd@s por sexo e faixa etária. Brasil, 2008.

Faixa etária Total Masc FemPercentuais

Masc Fem

Até 24 4 2 2 50,0 50,0

25 a 29 214 133 81 62,1 37,9

30 a 34 1.549 923 626 59,6 40,4

35 a 39 3.568 2.022 1.546 56,7 43,3

40 a 44 5.404 3.075 2.329 56,9 43,1

45 a 49 6.060 3.291 2.769 54,3 45,7

50 a 54 5.519 2.848 2.671 51,6 48,4

55 a 59 4.502 2.503 1.999 55,6 44,4

60 a 64 2.608 1.423 1.185 54,6 45,4

65 ou mais 1.758 1.076 682 61,2 38,8

Total 31.186 17.296 13.890 55,5 44,5

Fonte: Censo 2008, CNpq.11

Ainda em relação à questão educacional no Brasil, estudos da demografia da base técnico-científica brasileira mostram que as mulheres brasileiras já são maioria entre @s doutor@s (gráfico 1). Percebe-se que a participação relativa das mulheres entre ess@s profissionais tem demonstrado tendência de crescimento desde 1996, superando a participação masculina a partir de 2004. Considerando a influência que as mulheres doutoras possam ter sobre a escolha profissional e acadêmica de meninas e jovens e a possibilidade de criação de modelos de referências femininos, bem como a tendência apresentada no gráfico 1, pode-se conjecturar uma maior

11 Disponível em: <http://dgp.cnpq.br/planotabular> Acesso em: 10 set 2010.

154

Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

ampliação feminina no ensino superior, crescimento do número de doutoras e um possível cumprimento das Metas do Milênio relativo à educação feminina.

Gráfico 1 – Distribuição de doutor@s por sexo. Brasil 1996-2008

0

10

20

30

40

50

60

19961998

20002002

20042006

2008

Homem

Mulher

Fonte: Doutores 2010 – estudos da demografia da base técnico-científica brasileira.12

CIêNCIa, TeCNOlOGIa e GêNeRO: DIFICUlDaDes e DesaFIOs

Apesar do cenário recém descrito nos itens anteriores que demonstram avanços e conquistas das mulheres no âmbito educacional, evidenciando uma melhor preparação feminina no sentido de se eliminarem as disparidades de gênero ainda existentes, há que se pontuar a existência de lacunas que ainda persistem obstaculizando a concretização da equidade de gênero.

Participantes da 4ª Conferência Mundial sobre Mulheres, ocorrida em Beijing, China, em 1995, criaram uma Plataforma de Ação, focando 12 áreas consideradas críticas para o avanço e desenvolvimento feminino: 1) pobreza; 2) educação e treinamento; 3) saúde; 4) violência; 5) conflito armado; 6) economia; 7) mecanismos institucionais; 8) direitos humanos; 9) mídia; 10) meio ambiente; 11) criança do sexo feminino; 12) preocupantes barreiras à saúde da mulher e ao bem-estar em cada área.

Dentre essas áreas, destaca-se a educação e treinamento, pois as mulheres ainda têm maior índice de analfabetismo do que os homens, o que repercute

12 Disponível em: <http://www.observatoriodegenero.gov.br/menu/areas-tematicas/educacao> Acesso em: 10 nov 2010.

155

Gênero, Ciência e Tecnologia: Avanços e Desafios

sobre os processos de formação área de ciência e tecnologia. Estas discriminações geram consequências ao longo da vida das mulheres, e vão influir negativamente em diversos outros itens pontuados pela Plataforma de Ação dessa Conferência das Nações Unidas sobre as Mulheres, a exemplo da economia, do meio ambiente, da saúde, da pobreza, dentre outros.

Em termos globais, segundo uma pesquisa sobre as “Mulheres na Ciência”, de agosto de 2010, realizada pelo Instituto de Estatísticas da Unesco, existe uma lacuna de gênero na produção do conhecimento científico, evidenciando, em porcentagens, a baixa participação das mulheres: de 0% a 30% em alguns países, a exemplo da Alemanha, Arábia Saudita, Chile, Coréia do Sul, Costa do Marfim, Etiópia, França, Groenlândia/Dinamarca, Guiné, Índia, Irã, Japão, Laos, Mali, Marrocos, Nigéria, Paquistão, Senegal, Zâmbia. De 30,1% a 45%, África do Sul, Argélia, Botsuana, Edito, Espanha, Indonésia, Madagascar, Moçambique, Portugal, República Centro Africana, Rússia, Sri Lanka, Sudão, Suécia, Tailândia, Vietnã. De 45,1% a 55%, Brasil, Venezuela, Paraguai, Argentina. De 55,1% a 70%, Filipinas. De 70,1% a 100%, Naypiyadaw (Mianmar).

O gráfico 2 expõe o “ranking” de pesquisadoras13 nas Américas, na década de 2000, segundo o Instituto de Estatísticas da Unesco. Nele, o Brasil ocupa a 5ª posição, com 48% de pesquisadoras, atrás da Venezuela (53,1%), do Uruguai (52,3%), da Argentina (51,4%) e de Cuba (48,5%).

13 Pesquisad@r é definid@ como profissional engajad@s na concepção ou criação de novos conhecimentos, novos produtos, novos processos, novos métodos e sistemas, tanto quanto no gerenciamento desses projetos (Frascati Manual, 2002).

156

Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

Gráfico 2 – Pesquisadoras nas Américas - %

Pesquisadoras nas Américas - %

53,1%

52,3%

51,5%

48,5%

48,0%

46,8%

44,9%

42,5%

40,0%

39,6%

38,0%

36,4%

32,9%

32,7%

31,7%

31,6%

30,0%

26,5%

00,10,20,30,40,50,6

Venez

uela

Urugua

i

Argenti

naCub

aBras

il

Paraqu

ai

Equad

or

Nicarag

ua

Costa

RicaBolí

via

Trinid

ade &

Toba

go

Colômbia

El Salv

ador

Panam

á

Guatem

alaMéx

icoChil

e

Hondu

ras

Fonte: UNesCO, Instituto de estatística, agosto de 2010.14

A tabela 5 apresenta a participação feminina na produção da ciência nas regiões: América Latina e Caribe, Europa, África, Ásia e Oceania. Ressalta-se que os dados referem-se ao número total de pessoas empregadas em Pesquisa & Desenvolvimento, incluindo o pessoal empregado tanto em período integral quanto em meio período.

Tabela 5 – Participação (%) feminina na Ciência distribuída por região - 2010Região %

América Latina e Caribe 45,0Europa 33,9África 32,7Ásia 18,0

Oceania 39,2América do Norte -

Fonte: Unesco, Instituto de estatística, agosto de 2010.

14 Notas: 1) Venezuela, Uruguai, Cuba, El Salvador: os dados referem-se ao ano de 2008; 2) Argentina, Brasil, Equador, Costa Rica, Trinidade & Tobago, Colômbia, Panamá e Guatemala: os dados referem-se a 2007; 3) Paraguai: o dado refere-se a 2005; 4) Chile: o dado refere-se a 2004; 5) México e Honduras: os dados referem-se a 2003; 6) Nicarágua: o dado refere-se a 2002; 7) Bolívia: o dado refere-se a 2001.

157

Gênero, Ciência e Tecnologia: Avanços e Desafios

No que tange à educação, segundo o Instituto de Estatística da UNESCO

– setor de Global Education Digest, a partir de dados de 2010 – o Brasil poderá não

atingir as metas de eliminar disparidades de gênero em todos os níveis educacionais

até 2015.

Essas metas integram a “Declaração de Copenhagen” e fazem parte das

“Metas de Desenvolvimento do Milênio”15, firmadas pela comunidade internacional

em 1995. O Compromisso nº 5 dessa Declaração, diz:

Nos comprometemos a promover total respeito à dignidade humana e alcançar igualdade e equidade entre mulheres e homens, e reconhecer e intensificar funções/posições de participação e liderança e desenvolvimento de mulheres na vida cultural, social, econômica, civil e política.

Neste sentido, é importante pontuar que as questões de paridade de gênero

perpassam os demais compromissos por suas características de transversalidade no

seu campo de ação.

Outros dados estatísticos – Programa Internacional de Avaliação de Alunos

– PISA 2009 - alertam sobre necessidades de se propor e incrementar medidas mais

eficazes de políticas públicas para que o Brasil alcance as Metas de Desenvolvimento

do Milênio para 2015. A tabela 6 apresenta a colocação do Brasil no “ranking” dos

países em Ciências – divulgados em 7 de dezembro de 201016. Para este estudo, a

Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) avaliou,

em 2009, o conhecimento de cerca de 470 mil estudantes de 65 países em leitura,

ciências e matemática. O Brasil ocupa a 53ª posição.

15 Mais informações sobre as Metas de Desenvolvimento do Milênio: acessar diversos sites na Internet, a exemplo do das Nações Unidas, que dão informações atualizadas e fazem referência à Declaração de Copenhagen (que contém 10 compromissos) assinada por 117 líderes mundiais, em reunião da Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social, ocorrida em Copenhagen, Dinamarca, de 6 a 12 de março de 1995.16 Disponível em: <http://www.oecd.org/document/61/0,3343 en_2649_35845621_46567613_1_1_1_1,00.html> Acesso em: 09 dez. 2010.,

158

Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

Tabela 6 – Colocação dos países na Pisa 2009 a partir da pontuação média em ciências

Colocação País Pontuação média1º Xangai (China) 5752º Finlândia 5543º Hong Kong 5494º Cingapura 5425º Japão 5396º Coreia do Sul 5387º Nova Zelândia 5328º Canadá 5299º Estônia 528

10º Austrália 52753º Brasil 405

Fonte: pIsa 2009/2010.

mUlHeR e mUNDO DO TRabalHO: DesaFIOs paRa a CONsTRUÇÃO Da IGUalDaDe

Segundo dados do Fórum Econômico Mundial17 o Brasil ocupa a 85ª posição no ranking internacional que mede a igualdade entre os gêneros em 2010 e essa posição vem caindo nos últimos cinco anos, quatro posições abaixo da obtida em 2009. Em 2006, o país havia ficado na 67ª posição. Outro indicador importante: o Brasil está em 123º lugar no índice que mede a percepção de igualdade salarial entre homens e mulheres, para trabalhos similares. No quesito participação política, o Brasil aparece no 112º lugar, menos de vinte posições à frente da Arábia Saudita e quase cem atrás do país latinoamericano mais bem colocado, a Costa Rica.

A efetivação da equidade de gênero no Brasil, passa necessariamente por críticas à divisão sexual do trabalho e pela valorização do trabalho feminino.

17 Disponível em: <http://www.weforum.org/pdf/gendergap/rankings2010.pdf> Acesso em: 01 nov 2010.

159

Gênero, Ciência e Tecnologia: Avanços e Desafios

O gráfico 3 mostra a distribuição da população metropolitana18 ocupada por grupamentos de atividade segundo o sexo.

Gráfico 3 – Distribuição da população metropolitana ocupada, por grupamentos de

atividade, segundo o sexo - 2009.19

0

20

40

60

80

100

Indústria Construção Comércio Serviços aempresas

AdminsitraçãoPública

Serviçosdomésticos

Outros serviços

Homem

Mulher

Fonte: IbGe, março de 2010.

A partir destes dados, depreende-se que os dois únicos setores em que as mulheres são maioria são: Administração Pública – 36,8% de homens e 63,2% de mulheres; e Serviços Domésticos – 5,5% de homens e 94,5% de mulheres. Elas continuam com percentuais abaixo do que os dos homens em vários outros setores, como os da indústria, comércio, serviços prestados a empresas e, principalmente, no setor de construção.

É interessante pontuar que, com relação à construção civil, há evidências de mudanças com a ampliação da entrada de um maior número de mulheres nos cursos de engenharia civil e inserção delas inclusive nos canteiros de obras. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o segmento da construção civil no mundo do trabalho absorveu no ano de 2007 171 mil mulheres; no ano de 2008, 184 mil; e, em 2009, 240 mil mulheres, com atividades diversas, a exemplo de assentamento de tijolos, colocação de azulejos e demais acabamentos, e responsabilidade de gerenciamento de obras por engenheiras.

18 Os dados são do IBGE, no quesito Pesquisa Mensal de Emprego (PME) e foram disponibilizados em março de 2010, embora se refiram ao ano de 2009.19 Disponível em: <http://www.observatoriodegenero.gov.br/menu/areas-tematicas/trabalho> Acesso em: 01 nov 2010.

160

Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

No que se refere à questão salarial, o gráfico 4 aponta para a continuidade de uma maior valorização do trabalho masculino do que do trabalho feminino. Os dados apresentam o rendimento médio habitual da população metropolitana ocupada, por sexo, que concluiu o nível superior, segundo os grupamentos de atividade, ano 2009 (dados do IBGE).20 O gráfico mostra que em todos os setores produtivos, os homens ganham mais do que as mulheres. Surpreendentemente, inclusive no segmento de Serviços Domésticos – setor em que as mulheres são maioria absoluta (94,5%) – são eles que ganham mais, visto que recebem, em média, RS$1.029,10 e as mulheres, RS$758,00.

Gráfico 4 – Salários distribuídos por sexo e setor – Brasil 2010.

5.01

4,10

3.06

3,60

5.41

0,10

3.23

6,90 3.72

0,60

2.06

6,90

4.54

3,50

3.07

2,20

4.18

3,30

2.61

8,60

1.02

9,10

758,

10

3.60

7,20

2.40

7,00

Indús

tria

Constr

ução

Comérc

io

Serviço

s Pres

tados

Admini

straç

ão Púb

lica

Serviço

s Dom

éstic

os

Outros

Serviço

s

Rendimento médio habitual da população metropolitana ocupada, por sexo, que concluiu o nível superior, segundo os grupamentos de atividade - 2009

Homem Mulher

Fonte: Instituto brasileiro de estatística (IbGe).

Verifica-se que os maiores salários d@s trabalhaor@s ocorre no setor de construção – majoritariamente masculino – e no qual homens recebem cerca de R$ 5.410,10 e mulheres R$ 3.236,90, ou seja, os salários masculinos são, em média, aproximadamente 67% superiores aos femininos. Para a indústria – também com

20 Dados retirados do IBGE – Pesquisa Mensal de Emprego (PME) – março de 2010.

161

Gênero, Ciência e Tecnologia: Avanços e Desafios

postos de trabalho ocupados em sua maioria por homens – os salários médios masculinos são aproximadamente 64% superiores aos femininos: R$5.014,10 para homens e R$3.063,60 para mulheres.

Sobre a participação feminina no mercado de trabalho, vale destacar pesquisa do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social em parceria com Ibope Inteligência, lançado em novembro de 2010: “Perfil social, racial e de gênero das 500 maiores empresas do Brasil e suas ações afirmativas”. Nessa investigação verificou-se que em todos os níveis hierárquicos das 500 empresas estudadas, desde quadro executivo, gerência, supervisão/chefia ou coordenação e até mesmo o quadro funcional geral, as mulheres são minoria (tabela 7).

Tabela 7 – Participação masculina e feminina nos níveis hierárquicos de empresas

estudadas – Brasil, 2010.Nível Hierárquico Homens Mulheres Total

Nº absolutos. % Nº Absolutos %

Quadro Executivo 1.299 86,3 207 13,7 1.506

Gerência 10.815 77,9 3.077 22,1 13.892

Supervisão, Chefia ou Coordenação

19.058 73,2 6.976 26,8 26.034

Quadro Funcional 389.896 66,9 192.632 33,1 582.528

TOTAL 421.068 (67%) 202.892 (33%) 623.960

Fonte: Instituto ethos de empresas e Responsabilidade social em parceria com

Ibope Inteligência, 2010.

Pode-se observar que a participação feminina em “grandes empresas” é bastante reduzida (33%), a qual se reduz ainda mais quando analisamos os níveis hierárquicos dessas empresas: à medida que se “sobe” hierarquicamente, reduz-se ainda mais a presença das mulheres: elas passam a representar 13,7% no quadro executivo.

Embora a participação feminina, tanto em termos relativo quanto absoluto, de fato seja reduzida, deve-se considerar, no entanto, que a presença feminina nessas empresas representa uma conquista de grande relevância. Há muitos desafios ainda a

162

Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

serem superados na busca da igualdade, mas o caminho inicial já foi aberto, seja pelo movimento feminista que conseguiu mudar culturas sociais e empresariais, seja pelas mulheres que conseguiram vencer obstáculos para se consolidarem em uma carreira, e que certamente contribuíram para reduzir discriminações de gênero no âmbito das empresas.

a ImpORTâNCIa Da mUlHeR Na CIêNCIa e Na TeCNOlOGIa

A inclusão das mulheres na ciência e tecnologia tem sido considerada como elemento importante para iniciativas direcionadas a essa área tanto no âmbito local quanto internacional. A perspectiva da inclusão das mulheres abarca tanto aspectos vinculados à sua participação mais equitativa – implementadoras e formatadoras da ciência e da tecnologia – e também de seus direitos de cidadã de ser beneficiária das aplicações da ciência e da tecnologia, em termos igualitários em relação aos homens.

Esse cenário que busca integrar a mulher como agente de sua própria história, direcionada ao seu empoderamento, e também agente da história da sua comunidade local e global, é proposto e almejado por diversos órgãos internacionais de políticas públicas que têm programas que promovem a equidade de gênero na ciência e na tecnologia, a exemplo da Comissão das Nações Unidas para a Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento do Grupo de Trabalho sobre Gênero, de 1995; a Conferência Mundial sobre Ciência, de 1999, A Beijing+5, a Cúpula Mundial para a Sociedade da Informação (WSIS), a União Europeia e, mais recentemente, a OAS, além da Unesco, ONU, etc.

Os benefícios da democratização de gênero na ciência e tecnologia são inúmeros. É importante que a mulher tenha conhecimentos sobre ciência e tecnologia, pois isto contribui para cuidados com a saúde, para a melhoria nos níveis educacionais, amplia as possibilidades de participação no mundo do trabalho, e principalmente possibilita que ela seja sujeito da sua própria história. Isto porque o conhecimento contribui para a autonomia e o empoderamento feminino, nas suas relações pessoais e profissionais, tanto no âmbito privado quanto público. As mulheres

163

Gênero, Ciência e Tecnologia: Avanços e Desafios

educadas e conscientizadas sobre ciência e tecnologia poderão ser agentes de seu próprio destino e agentes das transformações que o mundo vem passando. Não serão meros indivíduos passivos da contemporaneidade. Inseridas numa ambientação política, educacional, direcionadas à liderança e à conscientização da diversidade de culturas, classes sociais, gerações, interações sociais nas várias comunidades, e inclusive de orientações das manifestações diversas das sexualidades, estarão aptas a propor soluções para problemas que surjam; tomar decisões; refletir sobre situações que confrontem seus comportamentos e atitudes, etc.

É importante destacar a saúde da mulher no processo de capacitação em C&T. Há informações relevantes, embora nem sempre disponíveis, sobre, por exemplo, efeitos de medicamentos, dosagens adequadas, possibilidades de tratamentos alternativos e se testes iniciais foram feitos em homens e mulheres. A dosagem de alguns medicamentos produzidos pela indústria farmacêutica pode ter sido planejada tendo apenas homens na fase inicial dos testes. Ora, se as mulheres não foram incluídas nos experimentos iniciais, o corpo feminino poderá ter respostas diferentes a estes medicamentos em relação ao corpo masculino. E ela vai poder decidir pelo uso ou não de tal medicamento. Ou, até melhor, as mulheres poderão exigir dos órgãos responsáveis pelas políticas públicas de seus países21, que exijam, por sua vez, dos laboratórios das indústrias farmacêuticas, que haja homens e mulheres nas amostragens dos testes iniciais a quaisquer medicamentos destinados à população em geral, e explicitem as respostas diferenciadas pelos corpos masculinos em relação aos femininos, caso haja diferenças.

Há evidências de que mulheres capacitadas em ciência e tecnologia fazem diferença e contribuem para um mundo melhor. Em relação a medicamentos para mulheres e homens, há um artigo publicado na revista Science Magazine, de março de 2010, v. 327, p.1571-1572, de autoria de Chelsea Wald e Corinna Wu.

21 Exemplo: em 1993, o Ato de Revitalização do Instituto Nacional de Saúde (NIH, sigla em inglês) determinou que mulheres e minorias fossem incluídas na pesquisa clínica, porque os tratamentos têm mostrado ter diferentes efeitos em diferentes populações. Em 2001 o relatório do Instituto de Medicina (IOM, sigla em inglês) publicado pela Imprensa da Academia Nacional ressaltou evidências de que o mesmo era verdadeiro para pesquisas usando modelos animais: o sexo do animal pode direcionar para resultados diferentes qualitativamente (WALD & WU, 2010).

164

Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

O artigo intitula-se “Of mice and women: The bias in animal models”22. Nele, as autoras denunciam que há pesquisas concebidas para oferta de medicamentos às mulheres que, no entanto, têm como cobaias ratos e não ratas na fase experimental. Isto por vários motivos, dentre eles, e o principal, é a questão econômica, visto que pesquisas com ratas são mais caras, na medida em que outras variáveis entram no delineamento da experimentação, e nas discussões e que afetam a dinâmica das relações da pesquisa, a exemplo dos quatro dias de ovulação das ratas, o que, consequentemente, altera os resultados. As grandes instituições financiadoras23 preferem ignorar tais tendências quando há planejamento de pesquisas para ambos os sexos, mesmo que resultados indiquem que há respostas diferentes para cada um deles. Shirley Malcom (2010)24, em sua palestra de encerramento proferida no VIII Congresso Iberoamericano de Ciência, Tecnologia e Gênero, cita a pesquisa das duas autoras do artigo, enfatizando o alerta dado por elas. Estas considerações e reflexões são importantes porque há resultados que influenciam diretamente as mulheres, seus corpos, seu viver. E elas devem ser beneficiadas pelos direitos humanos incluindo sua educação e inserção no mundo da ciência e da tecnologia, sendo agentes de decisão sobre seus próprios corpos e suas vidas.

Tudo isto contribuirá para que a mulher possa refletir com autonomia, fazer escolhas tendo como base elementos que possam mostrar os diversos ângulos de uma situação e ter melhor qualidade de vida. Possibilitará análises críticas sobre as diversas formas de controle sobre os corpos femininos, a exemplo das novas tecnologias e políticas conceptivas e reprodutivas, desde pílulas até cirurgias invasivas; sobre campanhas de esterilização nos países de 3º Mundo; pro-natalismo nos países do 1º Mundo; anticonceptivos com danosos efeitos secundários; cirurgias ginecológicas muitas vezes consideradas desnecessárias; técnicas de reprodução assistida, que podem implicar em sérios riscos para os corpos das mulheres; testes de paternidade; reassignação de sexo; sobre as mais inusitadas possibilidades da condição das “barrigas de aluguel”, sobre as novas tecnologias da informação e da comunicação (TICs) para se posicionar sobre exposições suas e de familiares e amig@s nas redes

22 Tradução livre: “De ratos e mulheres: a tendenciosidade nos modelos de animais”.23 Muitas delas estão vinculadas às indústrias farmacêuticas que querem lucro.24 Artigo publicado no livro resultante do VIII Congresso Iberoamericano de Ciência, Tecnologia e Gênero, realizado em abril de 2010 na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). No prelo.

165

Gênero, Ciência e Tecnologia: Avanços e Desafios

sociais, como Internet, Facebook, Orkut, etc. e prováveis perigos que escondem; sobre novas tecnologias no trabalho (ex. computadores nos escritórios), que lhes provocam doenças, pelas atividades repetitivas.

Assim, vale salientar que o domínio da ciência e tecnologia é necessário para ambos os sexos, que a educação científica e tecnológica deve ser crítica, e o gênero é uma categoria de análise de extrema relevância para essas áreas que devem contribuir para o bem estar de todos e de todas, mas para que isto ocorra elas devem ser democratizadas e pensadas também por todos e todas.

CONsIDeRaÇões FINaIs

Enfim, “olhar o mundo através dos olhos das mulheres”. Esta perspectiva generificada é significante e ela foi ressaltada pela pesquisadora norte-americana Shirley Malcom (MALCOM, 1999).

Houve, sim, muitos avanços e muitas conquistas das mulheres nas dimensões da vida humana, como sua maior inserção na área educacional e no mundo do trabalho, no qual ela tem ocupado cargos de poder, rompendo o teto de vidro. De certa forma, os avanços as beneficiam com sua participação, mas também como agentes de transformação no mundo contemporâneo, repleto de artefatos científicos e tecnológicos. Porém, a caminhada para uma real equidade de gênero ainda é longa no sentido dos obstáculos a serem superados em todas as esferas do pensar e do agir humano.

Uma outra história possível de ser contada está se construindo e se solidificando. O mundo não é mesmo feito de uma história única, como nos reforça a nigeriana Chimamanda Adichie.

166

ReFeRêNCIas

BONDER, Gloria. Equidad de Género em Ciencia y Tecnología em America Latina: Bases y Proyecciones en la Construcción de Conocimientos, Agendas e Institucionalidades. OEA. Agosto, 2004. Disponível em: <http://www.science.oas.org> Acesso em: 10 abr 2006.

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PERCURSOS E DISCURSOS NA CONSTRUÇÃO DE UMA IGUALDADE DE GÊNERO NA EDUCAÇÃO

Carla Giovana Cabral

No meio do caminho tinha uma pedra Tinha uma pedra no meio do caminho

Carlos Drummond de Andrade, “No meio do caminho” (1928)

O campo dos Estudos de Gênero e Feminismo no Brasil tem uma história de quase 50 anos1. Nesse período, houve diferentes percursos de produção acadêmica e militância. Diversos também foram os meios pelos quais circularam a informação e o conhecimento produzido. Alguns jornais tiveram um papel fundamental na disseminação de ideais feministas a partir da década de 1970; e duas das mais importantes revistas científicas do campo estão por completar duas décadas de intensa luta. O que eu gostaria de chamar atenção, aqui, é para as narrativas por meio das quais Gênero e Feminismo construíram-se como discurso e se institucionalizaram como

1 Tomo como base o marco narrado por Miriam Grossi, no artigo “A Revista Estudos Feministas faz 10 anos: uma breve história do feminismo no Brasil” (2004).

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

campo (inter)disciplinar no Brasil. E como, contemporaneamente, outros discursos reivindicam espaço na constituição desse campo. Refiro-me àqueles que têm sido elaborados como resultado da implementação da política pública de Educação para a Diversidade, que inclui a formação de professoras/es em Gênero e Diversidade na Escola e que perpassam a esfera do pedagógico.

Essa política, que deslocou e/ou afinou o olhar de muitas/os pesquisadoras/es do âmbito acadêmico para a escola, provocou uma necessária reflexão sobre a formação em gênero e feminismo, a produção intelectual, a circulação do conhecimento e a relação desses aspectos com a escola e com o campo da Educação. Se os jornais da década de 70 buscavam formar opinião de mulheres, muito especialmente por meio de uma linguagem marcada pela objetividade e, obviamente, pelos contextos de produção e recepção da época, no início da década de 90, as revistas científicas feministas empreenderam novos discursos e novas linguagens na institucionalização do campo e seu empoderamento. Nesse momento, nossas lutas e reivindicações viajavam do discurso jornalístico para o científico.

Novos discursos e novas linguagens contextualizadas precisarão ser empreendidos nesse enlace do campo do Gênero e do Feminismo com a escola a partir da política pública. Quero dizer que cada experiência, cada vivência da formação de professoras/es em Gênero e Diversidade na Escola carrega o potencial de construção de um conhecimento social e historicamente contextualizado. Ao chegarmos às escolas, suas diferentes realidades e sujeitos, não será apenas nossa história de quase 50 anos de luta e reflexão teórica e militante que contará. Precisamos nos perguntar: quais as demandas da escola? E mais do que isso: que demandas temos em Florianópolis, Natal, Dourados, Belém, Rondônia, Rio de Janeiro, Chapecó, Santa Maria, Caicó, Caruaru...?

Neste texto, eu me proponho a ensaiar reflexões sobre a produção discursiva no campo dos Estudos de Gênero e Feminismo, pensando como articulá-la a um diálogo mais profícuo entre Gênero e Educação, no tocante a questões referentes à institucionalização, política pública e, especialmente, a oportunidade de valorização do discurso pedagógico social e historicamente contextualizado que construa uma educação não sexista, não racista e não homófica.

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Percursos e Discursos na Construção De uma Igualdade de Gênero na Educação

Uma importante pesquisadora norte-americana da área de Gênero e Ciências, Londa Schiebinger, escreveu o seguinte:

E nós precisamos aproveitar esse momento, quando as universidades de todo o país caminham em direção à interdisciplinaridade de uma maneira sem precedentes. O conhecimento e os detentores do conhecimento – as instituições acadêmicas – estão sendo reformulados. Agora é tempo de fazer do gênero uma categoria importante de análise em novas configurações disciplinares (SHIEBINGER, 2008, p. 272).

Se a questão de Londa, aqui, é lançar Gênero em novas configurações disciplinares no ensino superior – o que, creio, seria muito bem-vindo no Brasil, também para incrementar a relação Gênero, Ciência e Tecnologia – a minha é pensar a produção intelectual em Gênero e Feminismo com o olhar para as demandas da escola. Não apenas pensar em produzir discursos para os sujeitos da escola, mas principalmente com eles, em diálogo.

Reflito se, impulsionadas pela política pública, não estaríamos adentrando um novo território de circulação do conhecimento, em que novas práticas e linguagens precisarão ser adotadas para que os percursos ainda incompletos da institucionalização do gênero no ensino superior brasileiro se enredem também nos diferentes etapas da Educação Básica. Eu creio que a formação em Gênero e Diversidade na Escola teve um impacto na academia, na escola e mesmo nos movimentos sociais quanto ao trabalho que temos em termos de formação para uma igualdade de gênero de meninas, meninos e suas/seus professoras/es. Um estudo amplo que verifique como essa política circulou nesses espaços e os impactou, entretanto, ainda está por ser feito.

No contexto brasileiro, desde a década de 70 do século 20, os Feminismos e o campo dos Estudos de Gênero e Feminismo, têm produzido diferentes tipos de discursos, com objetivos, alcances e públicos diversos; na prática isso se traduz em diferentes publicações. De início, refiro-me aos jornais feministas da segunda metade da década de 70 e início dos anos 80 – Nós, Mulheres; Mulherio, Brasil Mulher –, e ao campo intelectual, que se forja em um diálogo não sem tensões entre movimento social e academia. O surgimento de revistas científicas como a REF e Cadernos Pagu, no início dos anos 1990, foi crucial para a institucionalização do campo dos Estudos

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de Gênero e Feminismo no Brasil e nos mostrou, de certa forma, como havia espaço para a discussão das temáticas desse campo (COSTA, 2008, p. 131-132; GROSSI, 2004).

Essas revistas, criadas em 1992 e 1993, respectivamente, passaram a se destacar nessa área. Elas providenciam um espaço privilegiado para a circulação do conhecimento produzido nesse campo, uma circulação que se dá, principalmente, nos espaços de pesquisa e docência de instituições de ensino superior e instituições de pesquisa, notadamente brasileiras. Diferentemente dos jornais feministas da década de 70, por exemplo, as revistas não são voltadas a um público leigo ou público em geral e seus objetivos não coadunam exclusiva e prioritariamente com os de formação de opinião, mas com a construção de conhecimento.

Considerando experiências e vivências pontuais, aproprio-me da formação em Gênero e Diversidade na Escola para pensar que, nessa primeira década dos anos 2000, nós, pesquisadoras feministas e também aquelas militantes nos movimentos sociais, nos vimos diante da necessidade de sensibilizar milhares de professoras/es da Educação Básica brasileira em temáticas de gênero, orientação sexual, sexualidades e relações étnicorraciais. Para isso, lançamos mão de todo um percurso discursivo de nosso campo intelectual e outras vivências e investimos (?) na transposição didática necessária à compreensão, pelos sujeitos da escola, de um discurso que circula pouco ou quase nunca no ambiente escolar.

Fomos nos dando conta que para ensinar-aprender o que sabemos precisamos aprender-ensinar o que há na escola. Eu creio que esse pode ser um momento em que, para algumas de nós, torna-se crucial dialogar com outros espaços fora do nosso próprio campo intelectual, projetando-o em práticas discursivas diversas daquelas em que validamos e legitimamos o discurso científico. Parece-me que estamos tentando construir um novo espaço de circulação de conhecimento, que também é um novo espaço de publicação, desta vez voltado ao pedagógico. Talvez seja um momento semelhante ao dos anos 1990, a pensar que temos contemporaneamente uma indução provinda de políticas públicas e talvez uma possibilidade de diálogos novos entre a academia e a militância – mas quais?

Quais são os desafios que isso nos coloca? O que os discursos dos jornais feministas e das revistas científicas têm a nos ensinar para essa nova produção

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Percursos e Discursos na Construção De uma Igualdade de Gênero na Educação

discursiva, ou como eles poderiam se articular? Como estamos produzindo nosso discurso pedagógico?

Um ponto a ser refletido nessa discussão é se essa oportunidade discursiva também não estaria criando novas oportunidades de diálogo entre o campo em que historicamente se desenvolveram os Estudos de Gênero no Brasil – as Ciências Sociais – e o campo da Educação. Quais diálogos seriam possíveis aqui? Quais tensões e negociações?

Essas questões entretecem as reflexões que procurarei fazer a seguir. Em “percursos”, procuro mapear brevemente produções discursivas jornalística e intelectual em gênero e feminismo. No subtítulo “tensões”, reflito sobre a maneira como se articularam campos (inter)disciplinares. Depois, faço uma crítica ao espaço ainda diminuto que é concedido a gênero na legislação educacional brasileira. Isso ajuda a vislumbrar caminhos e oportunidades de diálogo, diálogo de sujeitos em contextos diferentes de produção de conhecimento. Por fim, mas sem enclausurar o debate, teço alinhavos para olharmos a Educação.

peRCURsOs

Ao pontuar sua experiência pessoal em percursos do Feminismo e da constituição dos Estudos de Gênero no Brasil, Mariza Corrêa (2001) inicia desfiando contextos da década de 1970: a articulação do Feminismo com outros movimentos sociais da época, como movimentos populares de luta pela moradia, criação de creches em fábricas e universidades e movimentos políticos, pela anistia aos presos políticos, direito dos grupos indígenas à terra, contra o racismo, e também o movimento dos homossexuais. Assim como Corrêa o fez em seu texto, convém relembrar que os primeiros anos dessa década estão marcados como os piores da ditadura militar e seus atos repressivos, entre eles a censura aos jornais, a dissolução de partidos políticos e a cassação dos direitos políticos. Nesse árduo cenário, os movimentos sociais, e também o movimento feminista, buscavam uma atuação, mais das vezes apoiada pelo Partido Comunista e pela Igreja (CORRÊA, 2001, p. 14).

Em 1975, Corrêa defendeu sua dissertação de mestrado e foi trabalhar em um jornal feminista fundado por um grupo de mulheres que se reunia na mesma

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casa em que se produzia uma revista cultural de resistência à ditadura (CORRÊA, 2001, p. 16).

Esses grupos recém criados eram, é claro, tão atravessados por dissensões políticas quanto quaisquer outros: ainda que a imprensa homogeneizasse o movimento, falando sobre as feministas, éramos de fato grupos com lealdades muito diversificadas – em relação à Igreja, ao Partido Comunista, ou à Universidade. Assim, uma das questões que reiteradamente aparecia nas nossas discussões era a clivagem entre militantes e pesquisadoras, clivagem que se tornou importante à medida que a pesquisa sobre a situação da mulher no país ganhou preeminência sobre os movimentos de mulheres (CORRÊA, 2001, p. 17).

No jornal Nós Mulheres (1976-1978), o trabalho era praticamente voluntário – “quase uma utopia” – e essa característica afastou muitas das participantes, que se vincularam a outros grupos ou acabaram reencontrando-se posteriormente em outras instituições, tais como a Fundação Carlos Chagas, como menciona Corrêa.

Segundo Maria Luiza Heilborn e Bila Sorj, a Fundação Carlos Chagas, “além da destacada reputação e boa infra-estrutura organizacional e de comunicação, era a instituição mais bem informada sobre as pesquisas que estavam sendo realizadas no país nesta área temática” (1999, p. 6).

Graças aos recursos da Fundação Ford, outro periódico feminista foi criado, o jornal Mulherio (1981-1987), mais profissional, segundo Corrêa, com matérias assinadas e equipe técnica. Relembro que o primeiro periódico feminista foi o Brasil Mulher (1975-1979).

Com novas linguagens e um olhar para a “difusão de reivindicações e propostas diretamente relacionadas com a condição das mulheres” (LEITE, 2003, p. 234), esses jornais e seus princípios coadunavam com a imprensa “democrática” da época. Tinham, segundo essa autora, formato tablóide, tiragem irregular e circulação restrita e vendidos em banca, embora a comercialização entre militantes fosse mais corriqueira2.

Segundo Leite, é na fase de “maior efervescência política e abrandamento da

2 Diferentes tipos de jornais e com diversidade de tendências políticas representavam essa imprensa alternativa. Pasquim, Opinião, Movimento e Em Tempo tinham um conteúdo fundamentalmente político; Versus, Ovelha Negra, Lampião e De Fato, tendiam a publicar informações e questões relacionadas à orientação sexual e ideologia.

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Percursos e Discursos na Construção De uma Igualdade de Gênero na Educação

censura” que a imprensa denominada alternativa cresce e surgem jornais feministas, tais como o Brasil Mulher e o Nós Mulheres. Esses jornais trouxeram inovações, não apenas na linguagem, mas nas reivindicações e propostas e na maneira de divulgar uma visão de mundo e uma nova concepção de política também (ARAÚJO, 2000, p.159, apud LEITE, 2003).

Se um dos caminhos da política alternativa era buscar unir público e privado; tornar político o que antes era considerado assunto pessoal, íntimo e subjetivo; levar em conta e politizar as emoções, sentimentos, relações pessoais e laços familiares; dar importância à transformação do cotidiano e às questões domésticas do dia-a-dia; falar de amor e sexo, de dor e frustração, de alegria e esperanças individuais, valorizando as experiências pessoais, o vivido, a troca dessas experiências – o movimento feminista e a sua imprensa são os melhores exemplos dessa concepção de política (ARAÚJO, 2000, p. 160, apud LEITE, 2003, p. 235.

O discurso assumido por jornais como o Nós Mulheres e o Brasil Mulher entrelaça uma série de assuntos relacionados à “subjetividade, ao indivíduo”, algo que Leite (2003) interpreta como a politização do cotidiano das mulheres de esquerda, a busca por novas formas de expressão, a crítica às relações verticalizadas, hierarquizadas e burocratizadas que estavam presentes nas práticas da esquerda mais tradicional.

Dentre os temas de caráter mais geral abordados pelos dois periódicos, destacam-se eleições (período 1976-1978), o Movimento pela Anistia e campanhas contra a carestia e creches. Os mais específicos tratavam dos direitos reprodutivos da mulher (pílulas anticoncepcionais, planejamento familiar, sexualidade e aborto), creche e organização popular das mulheres, a mulher e o trabalho (salários diferenciados, discriminação no cotidiano do trabalho, direitos trabalhistas, trabalho noturno, profissionalização para as mulheres, etc.).

Esses novos sujeitos coletivos, as feministas, criam seu próprio espaço de representação e favorecem com sua militância o debate das questões relacionadas com o convívio familiar, a intimidade, a sexualidade e as relações de poder entre homens e mulheres, pais e filhos etc., introduzindo-as no movimento popular (LEITE, 2003, p. 238.

É no Nós Mulheres que a inovação linguística, com o uso da primeira pessoa do plural – nós – busca um dialógo com seu público-alvo e a construção de uma identidade coletiva, muito diferente da linguagem impessoal em terceira pessoa que

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é tradicional nos textos jornalísticos e que busca marcar uma certa objetividade na elaboração do texto e um consequente distanciamento de quem escreve para aquele que lê. Isso não envolve apenas questões óbvias de autoria, mas de autoridade.

O uso da primeira pessoal do plural destrói, em parte, a autoridade do autor que fala para um outro; outrossim, conclama a quem lê uma espécie de reconstrução de sua própria experiência a partir da experiência narrativa de um outro: dialogicidade3.

A preocupação com questões relacionadas à educação de meninos e meninas já está presente no editorial número 1 do Nós Mulheres. Esse editorial critica o discurso de instituições como a família e a escola de uma educação feminina voltada ao casamento e à maternidade; também aponta o papel dos brinquedos em nossa socialização e como, quando crianças, já somos submetidas aos significados de estar e circular nos espaços privado e público (LEITE, 2003).

Negociações e autoridade, mas desta vez de uma outra ordem, estão também presentes nas narrativas das revistas científicas do campo Estudos de Gênero e Feminismo, enredadas nas práticas de legitimação de verdades por meio de um discurso que, agora, é o científico. As revistas científicas feministas tiveram um papel crucial na institucionalização do campo no Brasil, reforçando a ideia de que “as ciências são construções coletivas” (FLECK, 1986) e atividades comunicativas, ou seja, do ponto de vista da sociologia do conhecimento, é preciso submeter os resultados das pesquisas aos rituais de publicação para que se tenha a autoridade de cientista reconhecida (LOPES e PISCITELLI, 2004,p. 116). Quais são essas implicações e como o discurso das revistas feministas tem construído o nosso campo?

Luzinete Simões Minella considera que as publicações feministas constituem uma forma de militância, pois provocam debates teóricos e os influenciam, interferem em práticas sociais por meio das reflexões que suscitam sobre suas implicações e impactos (MINELLA, 2008, p. 106). Ela valoriza o contexto de redemocratização do país e da expansão dos movimentos sociais de maneira geral e em especial os movimentos feministas em que a REF surgiu, refletindo sobre a implicação desse momento político no redirecionamento nas práticas editoriais da revista, “em

3 Faço referência à dialogicidade como Bakhtin conceitua, em poucas palavras, a característica ideológica e intertextual da palavra. BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud. 9. ed. São Paulo: 1999.

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contramão às políticas editoriais tradicionais”. Ela se refere ao esquema de rodízio que a REF adotou: editada inicialmente na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), desloca-se posteriormente para Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A implementação desse rodízio institucional foi uma forma de se evitar a configuração de um “nicho editorial, controlado pelas mesmas pessoas, grupos e tendências”, uma espécie de “quebra de certas tradições” na circulação do conhecimento científico.

Verificou-se que a partir do segundo semestre de 2004, a oferta de artigos para publicação na REF aumentou, o que exigiu uma expansão de sua equipe. Por certo, há uma relação entre a ampliação do campo e o estímulo à produção, como a própria Luzinete aponta em seu artigo (MINELLA, 2008, p. 107). Em outras palavras, diversos fatores, também relacionados à circulação do conhecimento4, contribuíram, naquele momento e também presentemente, para a ampliação do campo. Mas uma revista, pelo status que ocupa em termos de validação de verdades e sua legitimação, desempenha um papel ímpar na institucionalização de um campo e seu desenvolvimento.

Isso implica diferentes hierarquias de poder, de quem remete um artigo, avalia e edita (MINELLA, 2008, 107). Além disso, o conhecimento é contextualizado social e historicamente, e isso implica circulação e até mesmo prestígio maior ou menor de um tema a depender do momento em que ele circula e das redes às quais se vincula. São processos de negociação e escolhas (LOPES e PISCITELI, 2004, p. 116-117).

Tratando-se de países não centrais, pensar as publicações acadêmicas e as redes de colaboração é um desafio para o desenvolvimento de um pensamento científico nacional/regional. Colaborações entre cientistas de um país ou de uma região, como a latinoamericana, pode viabilizar a constituição de um pensamento crítico que valorize “suas próprias pautas investigativas” (LOPES e PISCITELI, 2004, p. 117).

4 Encontros científicos como o Fazendo Gênero; redes, tais como o Instituto de Estudos de Gênero (IEG), a Rede Norte-Nordeste de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher e Relações de Gênero (Redor), Rede Brasileira de Estudos e Pesquisas Feministas (Redefem) e Articulação Feminista em Ciência, Tecnologia e Gênero (AFeCT-GEn), etc., criação de núcleos e grupos de pesquisa.

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As publicações acadêmicas que veiculam abordagens feministas estão marcadas pela singularidade de estar orientadas por um interesse político específico. Do nosso ponto de vista, esse interesse é o de compreender, denunciar e oferecer elementos para alterar as maneiras como gênero, articulado a outras categorias de diferenciação, incide no posicionamento desigual das pessoas e, de maneira específica, das mulheres, na vida social. Esse interesse político foi alicerçado no marco de uma série de práticas, tais como o trabalho para desmontar hierarquias em todos os planos possíveis, o que exigia alcançar públicos ou audiências, amplos e diversificados. Todavia, o fato de estarem marcadas por interesses políticos feministas não exime essas revistas da integração num sistema social acadêmico ou ciência (LOPES e PISCITELI, 2004, p. 118).

As revistas são parte de um aparato material para a tradução cultural das teorias feministas, elas proporcionam essa viagem, necessariamente marcada pelos contextos de produção do conhecimento e sua recepção (COSTA, 2003). Como escreveu Claudia de Lima Costa, teorizar no feminismo implica um engajamento em tradução, quer dizer “traduzir conceitos e terminologias de um campo disciplinar para as categorias analíticas de outro(s)” (2003, p. 255. É uma “transação dinâmica de leituras”5; segundo Costa, uma espécie de contato ou transação entre teorias na leitura de qualquer tipo de texto, seja literário ou social. Desse contato, “nos resvalos resultantes desse encontro de linguagens, textos e significados, e a partir de traduções necessariamente infiéis, faz-se possível a construção de outros “mapas relacionais do conhecimento6”” (COSTA, 2003, p. 255).

Assim como Claudia o fez em seu texto, também aqui me parece pertinente pensar como a análise dos diferentes lugares e histórias da produção periodística feminista (GODARD, 2002)7 vai representar na construção dos discursos e também na reprodução de tipos de autoridade e poder simbólico na constituição de um campo. Como diferentes discursos – jornalístico, científico, e o pedagógico – constituem ou estão por constituir o campo, dele se apropriam e se deslocam na produção do conhecimento e de uma aprendizagem feminista, se posso dizer dessa forma. Compartilho da preocupação de Claudia, em ficar ‘vigilante’ na apropriação que fizemos do conceito de gênero “a fim de este não se desprenda de um projeto político e epistemológico feminista” (COSTA, 2003, p. 259). Mas que projeto seria esse?

5 Gayatri Spivak (2005), citada originalmente por Costa (2003).6 Ella Shohat (2002), citada por Costa (2003).7 Citada originalmente em Costa (2003).

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TeNsões

Para refletir sobre o discurso pedagógico a que me refiro neste ensaio, gostaria de discutir um pouco algumas questões pontuadas por Fúlvia Rosemberg sobre a apropriação dos Estudos de Mulheres/Estudos de Gênero no campo da Educação (2001). Rosemberg pesquisou a produção acadêmica contemporânea brasileira sobre educação e gênero (ou mulheres) em três fontes de dados: de dissertações e teses oriundas de Programas de Pós-Graduação em Educação filiados à Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped)8, no período entre 1981 e 1998; o diretório “Quem pesquisa o quê em educação: 1998”; e seis coleções de revistas científicas do campo dos Estudos de Gênero e Feminismo.

A pesquisadora constatou um aumento de dissertações e teses, vinculado mais fortemente ao crescimento dos programas de pós-graduação, do que propriamente a um aumento no interesse sobre o tema que, na sua opinião, não está consolidado no campo da Educação. Outra questão que verificou diz respeito à descontinuidade dessa produção e à dispersão temática. Adicionalmente, encontrou muito pouco espaço para discussões relacionadas à Educação nas revistas feministas. Uma reflexão importante apontada por ela, a qual pretendo retomar adiante, são “os efeitos deletérios de tal fragilidade acadêmica no plano das propostas atuais sobre igualdade de gênero na educação” (ROSEMBERG, 2001, p. 47).

A pesquisa realizada por Rosemberg orientou-se, principalmente, pela busca de mudanças na relação Gênero e Educação na década de 909. Inicialmente motivada a atualizar o trabalho realizado por Sponchiado, observou, entretanto, que a base de dados que pretendia investigar não havia incluído a palavra-chave gênero!

8 Em muitos aspectos, Rosemberg aprofundou a pesquisa realizada por Justina Sponchiado (1997) em sua dissertação de mestrado – Docência e relações de gênero: estudo da produção acadêmica no período de 1981 a 1995.9 Originalmente, Rosemberg perguntou: “teria a década de 1990 alterado o cenário descrito anteriormente?” Ela havia realizado um trabalho semelhante correspondente ao período 1975 e 1989, quando encontrou 755 títulos publicados, persistindo a temática Educação da Mulher e não Educação e Relações de Gênero.

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A temática dos trabalhos que encontrou foi diversificada10. Na sua visão, essa diversidade “pode ser entendida como sinal de fragilidade ou de dinamismo social e teórico de estudos sobre mulher/gênero, ou, ainda, da falta de consenso11” (ROSEMBERG, 2001, p. 50).

Rosemberg encontrou 233 dissertações e teses referindo-se a mulheres/relações de gênero ou tratando dessas temáticas. Em números absolutos, houve um crescimento. Temos, por exemplo, cinco trabalhos em 1981, e 24 em 1998. O ano de 1996 foi aquele em que se encontrou o maior número de trabalhos – 33. Por outro lado, ao verificarmos a representatividade do tema no total de trabalhos dos programas de pós-graduação em Educação, deparamo-nos com uma média de 2,7% de trabalhos correspondendo a mulheres/relações de gênero no período (ROSEMBERG, 2001, p. 53).

Além dessa questão, a pesquisadora12 levanta a desproporção entre dissertações e teses, a distribuição desigual pelo território nacional e a divulgação precária dos resultados (ROSEMBERG, 2001, p. 54), ressaltando-se a produção acadêmica do Sul/Sudeste do País e a autoria e orientação de mulheres. Essa produção concentra-se em nove instituições, destacando-se, com um perfil mais constante entre 1981 e 1998, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Um ponto que Rosemberg destaca como reflexo dessa descontinuidade e dispersão é a dificuldade de se instituir linhas de pesquisa que se consolidem nas instituições e também no campo da Educação (ROSEMBERG, 2001, p. 55). Retomarei esse ponto mais adiante.

Diria que o campo da Educação não ignora a existência de um debate sobre gênero na academia, mas que a produção discente pós-graduada em seu conjunto não mostra indícios de um campo estabelecido de conhecimentos na disciplina. Considera-se, menciona-se, refere-se ao debate mulher e relações sociais de sexo/gênero, algumas vezes, do mesmo modo que político pede a benção a um líder religioso ilustre. A questão que me parece em jogo aqui (ou pelo menos aquela que me mobiliza é a de saber o quanto a perspectiva de análise mulher e

10 Estudos sobre mulher(es), condição feminina, identidade feminina, feminismo, papéis femininos, sexismo, estudos sobre homens, masculinidade(s) hegemônica(s) ou não, identidade masculina, papéis masculinos, dominação masculina, machismo, estudos de gênero, identidade de gênero, papéis de gênero, subordinação, dominação de gênero, relações sociais de sexo, patriarcado (ROSEMBERG, 2003, p. 50). 11 Ao referir-se à falta de consenso, Rosemberg cita Flex (1992).12 Com base em Sponchiado (1997), Maria Alta Campos e Osmar Fávero (1994).

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relações de gênero em Educação tem contribuído para compreender os dilemas da Educação no Brasil (ROSEMBERG, 2001, p. 59).

Na pesquisa no diretório da Anped, Rosemberg localizou 31 pesquisadsores/as que fizeram menção a algum tipo de publicação na área, o que representa 6,3% do total (490 fichas de pesquisadores foram analisadas); no âmbito dos programas de pós-graduação, gênero representa “área de interesse” de 3,1% dos/as pesquisadores/as cadastrados/as.

Nas revistas acadêmicas do campo da Educação13, dos 95 artigos analisados no período estudado, 63 tratavam do tema mulher/gênero de maneira geral e 42 deles associavam essa temática à educação. Quanto às revistas feministas14, dos 377 artigos analisados, apenas 34 tratavam de educação. Os demais, 343, dedicavam-se a outras temáticas ou disciplinas.

pOlíTICas15

A legislação educacional brasileira tem avançado na direção de incorporar questões de direitos e valores, mas ainda parece conceder às relações de gênero uma tímida presença. No estudo que fizeram sobre esse tema, Cláudia Vianna e Sandra Unbehaum (2004, p.44) observaram que é no tema transversal Orientação Sexual que Gênero ganha mais relevo, assumindo objetivos, tais como o de “combater relações autoritárias, questionar a rigidez de padrões de conduta estabelecidos para homens e mulheres e apontar para a sua transformação” (VIANNA e UNBEHAUM, 2004, p. 42). Na análise, as autoras ainda destacam referências à “promoção de relações interpessoais dotadas de significados não-discriminadores”, na articulação de

13 Foram analisadas Educação e realidade e Cadernos de pesquisa.14 Fizeram parte da pesquisa Caderno espaço feminino, Cadernos Pagu e Revista Estudos Feministas. Na pesquisa que realizou, Rosemberg não incluiu o dossiê Educação e Gênero que a REF publicou em 2001, mas menciona-o.15 Neste item, baseio-me, em certa medida, em texto “Gênero e diversidade na escola: vivências e experiências na fomação de professores/as da educação básica brasileira”, que apresentei na mesa-redonda “Formação em estudos de gênero, mulheres e feminismos: impasses, dificuldades e avanços”, e posteriormente publicado em Pensando gênero e ciências. Encontro Nacional de Núcleos e Grupos de Pesquisa – 2009/2010. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2010.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

gênero com “as áreas de História, Educação Física e as situações de convívio escolar” (VIANNA e UNBEHAUM, 2004, p. 42).

Concordo com Vianna e Unbehaum quando dizem que gênero deveria ser uma perspectiva mais presente nos parâmetros curriculares, por exemplo, perpassando todas as áreas de conhecimento16. Elas criticam que esses documentos foram elaborados num momento em que as discussões de gênero já assumiam, no final do século XX, uma centralidade nos debates em nossa sociedade. As leis, entretanto, refletem plenamente essas ideias. Vianna e Unbehaum lamentam que nas pesquisas brasileiras ainda há poucos estudos sobre gênero e educação, como vimos no estudo de Rosemberg (2003).

De uma maneira geral, gênero não está presente nos currículos da formação inicial das licenciaturas; em Física, Química, Biologia e Matemática muito menos, o que nos coloca o desafio de desconstruir visões de ciência e tecnologia calcadas em uma verdade única, na objetividade absoluta, na universalidade e pretensa neutralidade científicas. Lembro que a Física e a Engenharia são as áreas mais masculinas da pesquisa brasileira e que o número de mulheres aí não passa de 25%17.

Quando há a discussão das relações de gênero nas licenciaturas ou bacharelados de História, Ciências Sociais (Sociologia e Antropologia), Psicologia, Letras, Ciências da Saúde, Serviço Social, Pedagogia18, para citar alguns, comparecem mais como fruto de anos de luta de professoras pesquisadoras da área, menos de uma política voltada à inserção de estratégias curriculares que tornem essas discussões mais perenes nas instituições.

A produção de dissertações e teses entrelaçando gênero e educação que dispomos no presente tem implicações na formação de futuros docentes da educação superior. Como transformar o currículo da formação inicial de professores se os programas de pós-graduação pouco formam nessa área?

Aprovado em março de 2009, o Projeto de Lei n. 235/07, da deputada Alice Portugal, altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e prevê a inclusão de

16 Ver recomendações dos encontros Pensando Gênero e Ciências 1 (2006) e 2 (2009).17 CABRAL, Carla. O conhecimento dialogicamente situado: histórias de vida, valores humanistas e consciência crítica de professoras do Centro Tecnológico da UFSC. 2006. (Doutorado em Educação Científica e Tecnológica) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.18 Remeto-me aqui à experiência de professoras e pesquisadoras da UFSC.

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Percursos e Discursos na Construção De uma Igualdade de Gênero na Educação

uma disciplina no Ensino Médio para abordar a conscientização sobre os direitos da mulher, nos vieses histórico, sociológico, econômico, cultural e político. Qual formação será necessária aqui?

DIálOGOs

Eu gostaria de pensar o campo dos Estudos de Gênero e Feminismo, as vivências e experiências do curso Gênero e Diversidade na Escola, ampliando o conceito de formação de professoras, ou seja, considerando que a formação que está em jogo no GDE não é apenas a de professoras da educação básica, mas de todas as que estão envolvidas na aplicação dessa política pública.

Depoimentos que colhi de tutoras/es da primeira edição da Formação em Gênero e Diversidade na Escola, em Santa Catarina19, expressam a possibilidade de pensar o campo dos Estudos de Gênero e Feminismo em diálogo com a escola. Como já disse em outro texto, vejo aí possibilidades de puxar novos fios para tecer nosso campo.

Entendo que a expressão do campo dos Estudos de Gênero e Feminismo e também do campo da Educação na direção de um discurso pedagógico passa, necessariamente, pelo diálogo, e pela reflexão do que é uma educação transformadora, em oposição àquela que “narra e sempre narra” conhecimentos aos educandos, supondo-os desprovidos de vivência, experiências e conhecimentos também.

Paulo Freire (2004) denomina essa educação de bancária, essência dessa educação que chamamos tradicional e bastante presente ainda no dia-a-dia das salas de aula, é essencialmente narradora e dissertadora de valores e dimensões da realidade, apresentando-os como estáticos, “algo quase morto” (p. 57). Nesse caso, as/os educandas/os são meros ouvintes de um conhecimento sobrepujante da/o educadora/r, e as experiências narradas, dissertadas lhe são muitas vezes alheias.

19 Ver CABRAL, Carla Giovana. Gênero e diversidade na escola: vivências e experiências na fomação de professores/as da educação básica brasileira. In: Pensando gênero e ciências. Encontro Nacional de Núcleos e Grupos de Pesquisa – 2009/2010. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2010.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

“Nela, o educador aparece como o seu indiscutível agente, como o seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é ‘encher’ os educandos dos conteúdos de sua narração” (FREIRE, 2004, p. 57).

Ao apartar da educação a experiência vivida e vívida das/os educandas/os, a/o educadora/r bancária/o impossibilita a construção de uma totalidade em que a visão das/os educandas/os ganharia uma significação. A palavra e sua força transformadora se esvaziam da “dimensão concreta”, e seu som perpetua normas, valores, verdades como únicas. A/O educanda/o memoriza e repete, sem fazer valer sua voz – cortina fechada ao seu questionamento do mundo, das suas relações com esse mundo, com as outras pessoas e consigo mesma.

É uma forma de construção de conhecimentos e de uma verdade, que esfalfa a diversidade. Nesse caso, as normas, os valores devem ser únicos, soar em uníssono. Opor-se a essa concepção de educação, intenta que, em primeiro lugar, se considere a vivência e a experiência das/os educandas/os, a maneira como percebem determinadas questões e conhecimentos, suas subjetividades, e a partir dessa experiência, problematizando-a, saber enxergar a possibilidade de um conhecimento novo. Trata-se aqui de uma relação dialética, em que o conhecimento da/o educadora/r também se vê muitas vezes fraturado para que se integrem novos conhecimentos, advindos da relação com as vivências e experiências e conhecimentos das/os educandas/os. “Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente e permanente que os homens fazem no mundo e com os outros. Busca esperançosa também” (FREIRE, 2004, p. 58).

Na educação bancária, refletir, desconstruir valores, ideias é perigoso – “viver é perigoso” (ROSA, 1986, p. 9); na concepção problematizadora, incentiva-se, provoca-se uma superação das contradições que a primeira concepção quer manter. Dialoga-se: “O diálogo é esse encontro dos homes mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu” (FREIRE, 2004, p. 78).

Não é no silêncio, da escuta surda, da mudez e da cegueira do mundo, que a transformação se dá, mas na “palavra, no trabalho, na ação-reflexão” (FREIRE, 2004, p. 78).

A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir humanamente, é pronunciar o mundo,

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Percursos e Discursos na Construção De uma Igualdade de Gênero na Educação

é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles um novo pronunciar (FREIRE, 2004, p. 78).

Essa nova pronúncia do mundo é também renúncia a qualquer forma de discriminação (FREIRE, 2002, p. 32-42) de classe, gênero, orientação sexual, e de natureza étnicorracial.

A pensar em um discurso pedagógico feminista, o que em muitos casos, significa produzir textos e outros materiais didáticos, nosso olhar precisa problematizar nossas próprias hierarquias, que são hierarquias de saber-poder. Reflito sobre as negociações de nossa autoridade científica, a apreensão de uma capacidade

comunicativa, a transposição dialógica desses discursos.

alINHavOs

É preciso reconhecer que para as feministas que estão nas Ciências Sociais não foi uma tarefa fácil dedicar-se a um objeto de estudo até certo ponto estranho (e algumas vezes até mesmo indesejável) para esse campo disciplinar (HEILBORN e SORJ, 1999; GROSSI, 2004). O centro do debate não eram as mulheres ou gênero! Foi preciso, em alguns casos, construir espaços interdisciplinares de formação em pós-graduação20 para além das fronteiras de núcleos e grupos de pesquisa, acercando-se, de certa forma, a linhas de pesquisa que também em seus campos disciplinares padeciam de um sentimento de marginalização.

Pensando na constituição de um campo interdisciplinar, onde podemos localizar os Estudos de Gênero e Feminismo, talvez seja necessário admitir que não nos debruçamos apenas sobre objetos já conhecidos do nosso campo, mas de outros não tão conhecidos ou mesmo desconhecidos e que isso não é muito confortável, pois nos desloca de nossa tradição intelectual.

20 Falo do Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas, mais especificamente sua área de concentração em Estudos de Gênero, na Universidade Federal de Santa Catarina (PPGICH/UFSC). E do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo do Núcleo de Estudos Interdisciplinares Sobre a Mulher da Universidade Federal da Bahia (PPGNEIM/UFBA).

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

Um avanço no campo da formação inicial e continuada de professores, assim como de crianças e jovens, exigiria uma aproximação e um diálogo cada vez mais estreitos entre campos (inter)disciplinares, em que se admitam novos objetos e problemas, muito embora a conciliação de práticas e discursos seja trabalhosa e gere discordâncias e dissonâncias.

Um esforço nessa direção, creio, refetir-se-ia nos materiais didáticos e paradidáticos que produzirmos, estendendo os sentidos e significados advindos dos diferentes percursos discursivos aqui abordados, considerando contextos e sujeitos da escola nos desejos e ações de transformação social.

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ReFeRêNCIas

CABRAL, Carla Giovana. Gênero e diversidade na escola: vivências e experiências na fo-mação de professores/as da educação básica brasileira. In: Pensando gênero e ciências. Encon-tro Nacional de Núcleos e Grupos de Pesquisa – 2009/2010. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2010.

_____. O conhecimento dialogicamente situado: histórias de vida, valores humanistas e con-sciência crítica de professoras do Centro Tecnológico da UFSC. 2006. (Doutorado em Edu-cação Científica e Tecnológica) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

CORRÊA, Mariza. Do feminismo aos estudos de gênero no Brasil: um exemplo pessoal. Cad-ernos Pagu, n.16, p.13-30, 2001.

COSTA, Albertina de Oliveira. O campo de estudos de gênero e suas duas revistas: uma pauta de pesquisa. Rev. Estud. Fem., v.16, n.1, p. 131-132, 2008 .

COSTA, Claudia de Lima. As publicações feministas e a política transnacional da tradução: reflexões do campo. Rev. Estud. Fem., v.11, n.1, p. 254-264, jun. 2003.

FLECK, Ludwik. La génesis y el desarrollo de un hecho científico. Madrid: Alianza Editorial, 1986.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Ja-neiro: Paz e Terra, 2002.

_____. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.

GROSSI, Miriam Pillar. A Revista Estudos Feministas faz 10 anos: uma breve história do feminismo no Brasil. Rev. Estud. Fem., v.12, número especial, p. 211-221, 2004.

HEILBORN, Maria Luiza; SORJ, Bila. Estudos de gênero no Brasil. In: MICELI, Sérgio (Org.). O que ler na ciência social brasileira (1970-1995). São Paulo: Editora Sumaré/ANPOCS, 1999. p. 183-221.

LEITE, Rosalina de Santa Cruz. Brasil Mulher e Nós Mulheres: origens da imprensa feminista brasileira. Rev. Estud. Fem., v.11, n.1, p. 234-241, jun. 2003.

LOPES, Maria Margaret; PISCITELLI, Adriana. Revistas científicas e a constituição do campo de estudos de gênero: um olhar desde as “margens”. Rev. Estud. Fem., v.12, número especial, p.115-121, dez. 2004.

MINELLA, Luzinete Simões. Fazer a REF é fazer política: memórias de uma metamorfose editorial. Rev. Estud. Fem., v.16, n.1, p. 105-116, abr. 2008.

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ROSEMBERG, Fúlvia. Caminhos cruzados: educação e gênero na produção acadêmica. Educ. Pesqui., v. 27, n. 1, p. 47-68, jun. 2001.

SCHIEBINGER, Londa. Mais mulheres na ciência: questões de conhecimento. História, Ciên-cias, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 15, supl., p. 269-281, jun. 2008. (Apresentação de Maria Margaret Lopes.)

VIANNA, Claudia; UNBEHAUM, Sandra. Gênero e políticas da educação: impasses e desafio para a legislação educacional brasileira. In: SILVEIRA, Maria Lúcia da; GODINHO, Tatau. Educar para a igualdade: gênero e educação escolar. São Paulo: Prefeitura do Município de São Paulo; Coordenadoria Especial da Mulher, 2004.

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VIOLÊNCIA DE GÊNERO: NOTAS SOBRE UM CAMPO DE PESQUISA

Valter Cardoso da SilvaSandro Marcos Castro de Araújo

Nanci Stancki da Luz

INTRODUÇÃO

Refletir sobre violência requer a compreensão de que ela é um fenômeno complexo que está inserido na dinâmica das relações sociais. Assim, tem-se que ao mesmo tempo em que está arraigada no espectro das relações intersubjetivas, é também marcada por forte matiz estrutural, envolvendo questões como a desigualdade social – que pode ter sua origem em questões étnicas, de gênero ou de classe. Acrescente-se a forte assimetria nas relações entre capital e trabalho no modo de produção capitalista contemporâneo – que gera violências como o desemprego, a precarização e desvalorização do trabalho –, e obter-se-á um cenário básico para a proliferação de comportamentos tidos como violentos – marcados pela alta competitividade, pela discriminação, preconceito e xenofobia, além da ausência de direitos essenciais ao exercício da cidadania.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

Se o cenário descrito acima aponta para a violência como fenômeno capaz de atingir aos mais variados setores do tecido social, atingindo indiscriminadamente tanto a homens como a mulheres, nota-se que em suas manifestações, um e outro gênero sofrem-na de forma distinta. As pesquisas apontam que os homens são vítimas de violência principalmente no espaço público. Já no que tange às mulheres, percebe-se que a violência tem ocorrido, em grande medida, no ambiente doméstico e sendo o agressor algum homem conhecido ou mesmo alguém da família – namorados, companheiros e maridos lideram o ranking dos agressores (SAFIOTTI, 1999).

A categoria gênero, dessa forma, pode ser considerada como essencial para a compreensão dos processos da constituição da violência. A perspectiva de gênero possibilita analisar as relações de poder entre homens e mulheres, nas quais a violência de gênero tem se revelado como forma de dominação e controle.

Comportamentos violentos entre homens e mulheres parecem obedecer a um script que nada tem de biológico, mas que, de alguma forma, fazem parte de uma construção social do masculino e do feminino. A violência tanto pode ser praticada por um ou por outro sexo, no entanto os dados sobre essa questão apontam que a violência masculina contra a mulher tem sido muito mais frequente.

Consideramos que o ser humano não é naturalmente violento, mas os processos de socialização podem contribuir, de um lado, que comportamentos agressivos sejam aceitos e estimulados nos homens e, por outro lado, que sejam desestimulados nas mulheres. Para Heleieth Saffioti (1987), a resignação tem sido uma constante na educação feminina. Às mulheres impõe-se a necessidade de inibir a agressividade, pois elas deveriam ser dóceis, cordatas e passivas. A educação masculina, no entanto, historicamente trouxe elementos que contribuem para a agressividade. Os homens são ensinados a competir permanentemente e a agressividade é um componente básico da personalidade competitiva.

Devemos considerar que o sistema patriarcal ainda faz parte da estrutura da nossa sociedade, o que contribui para que se valorize uma suposta autoridade masculina e para que o poder e a força façam parte da construção social do masculino.

Se a violência pode ser definida como o emprego da força, seja ela física, psicológica ou intelectual no processo da submissão do outro, a violência de gênero pode ser entendida como aquela praticada dentro de uma relação de caráter

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Violência de Gênero: Notas sobre um Campo de Pesquisa

intersubjetivo por aquele que tem mais poder nesta relação, não importando qual seja o seu sexo. No entanto, há que se levar em consideração que a configuração da cultura ocidental é toda articulada no sentido da constituição e manutenção de um poder masculino que atravessa todo o conjunto das relações sociais (TELES, 2006).

Deve-se destacar ainda que uma análise acerca da violência de gênero, por estar no âmbito de complexas relações sociais e por envolver inúmeros fatores específicos, sempre há o risco de incorrer em generalizações que, mais do que ajudar a compreender a realidade, pode promover uma homogeneização que não condiz com a riqueza e complexidade dessa realidade. Se é verdade, como afirmavam Simmel (1983) e Weber (1997), que é possível ver a lógica do todo na contemplação e no estudo da parte, o contrário, reduzir a riqueza do todo à lógica de questionáveis princípios de determinação encontrados em particularidades do sistema social, sempre foi um risco. À academia e aos cientistas sociais cabe a tarefa de buscar captar os diversos matizes desta realidade social complexa e não reduzi-la aos ditames de seus achados sociológicos.

De qualquer forma não é possível negar que a pesquisa acadêmica possui um grande papel legitimador nos processos de construção e legitimação das representações sobre o real. A chancela de cientificidade confere aos discursos um importante peso nos interstícios das relações de poder1. É neste sentido que procurou-se aqui buscar uma pequena amostragem dos discursos acadêmicos que têm sido produzidos em pesquisas que se propõem a estudar a violência de gênero. Se com essa empreitada é possível por um lado colocar em evidência a pertinência dos objetos e a seriedade com que se procede as investigações na área, por outro permite dar maior visibilidade aos estudos acerca da violência de gênero, contribuindo para que se tenha em alguma medida, um mapeamento de parte dos estudos sobre a temática.

Este estudo tem por objetivo promover uma análise do campo onde se dão as pesquisas sobre a violência de gênero no âmbito da sociologia. Para tanto, toma por base trabalhos apresentados no XIV Congresso Brasileiro de Sociologia ocorrido entre 28 e 31 de julho de 2009 na cidade do Rio de Janeiro. Tal congresso, organizado

1 Sobre este tema debruçaram-se um grande número de pensadores, dos autores da Escola de Frankfurt (HABERMAS, 1983) a Bourdieu (2002). Entre os brasileiros podem ser citados Japiassu (1999) e Bazzo (1998).

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

a cada dois anos pela Sociedade Brasileira de Sociologia, reúne tanto pesquisadores seniores como estudantes oriundos de instituições de todo o Brasil e também do exterior e é considerado um evento de referência para a pesquisa sociológica nacional. Nessa edição, a partir do tema “Sociologia: Consensos e Controvérsias”, uma vasta programação geral – Grupos de Trabalho, Mesas Redondas, Conferências, Fóruns, Minicursos, Sessões Especiais, Mostras de Vídeos e outras Atividades Culturais e Exposição de Pôsteres – contemplava as mais variadas áreas de pesquisa do campo sociológico.

As reflexões que se seguem tomam como base empírica os trabalhos apresentados na terceira sessão do Grupo de Trabalho “Violência e Sociedade”2, intitulada “Violência de Gênero e Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher”. Tal sessão contava com doze trabalhos inscritos para a apresentação, dentre os quais apenas sete enviaram o texto completo para ser disponibilizado nos anais eletrônicos do evento. É a este último material que as análises deste estudo se referem. Os trabalhos analisados são os seguintes:

Segurança pública no atendimento às mulheres: uma análise a partir do Ligue 180 (BONETTI, Alinne de L.; PINHEIRO, Luana; FERREIRA, Pedro);

Violência de gênero: uma análise dos discursos masculinos e femininos sobre as práticas (MENDES, Mary A.);

A implementação da Lei Maria de Penha em Chapecó (SANTIN, Myriam A. V.; BONAMIGO, Irme S.; CAVAGNOLI, Murilo);

Mulheres: vítimas e autoras de crime no Juizado Especial Criminal em Belo Horizonte/2006 (SANTOS, Andreia dos; BATITUCCI, Eduardo C.; CRUZ, Marcus V.);

Transferência de poder, desordem e violência conjugal contra mulheres no município de São Paulo (SILVA, Bárbara G. R. S. da);

Intervenção: criminalidade sexista e cumplicidade social (THURLER, Ana L.); A Lei Maria da Penha, o empoderamento feminino e as relações de gênero

(VASCONCELLOS, Fernanda B.; FREITAS, Gabriela).

2 Coordenado pelos professores Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo (PUC-RS), Pedro Rodolfo Bodê de Moraes (UFPR) e Maria Stela Grossi Porto (UNB). Este Grupo de Trabalho teve também em sua programação a sessão “Formação e Práticas Policiais” (29/07/2009) e a sessão “Representações da Violência, Vitimização e Medo do Crime” (30/07/2009), bem como as sessões de Laboratórios de Pesquisa “Concepções e Práticas dos Operadores do Direito e Administração da Justiça Penal” (29/07/2009), “Sistema Prisional” (30/07/2009) e “Teoria Sociológica, Violência e Segurança Pública” (31/07/2009).

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Violência de Gênero: Notas sobre um Campo de Pesquisa

Procurou-se primeiro mapear as pesquisas que deram origem aos trabalhos, enfatizando os pontos comuns em suas abordagens. Em seguida a ênfase é voltada para as especificidades de cada pesquisa, ressaltando suas principais contribuições. Por fim busca-se uma análise do panorama geral do campo das pesquisas sobre violência de gênero que estes trabalhos permitem entrever.

mapeameNTO Das pesqUIsas

Este item tem como objetivo desenvolver um mapeamento dos trabalhos apresentados, apontando o universo e a instituição que promove a pesquisa, a formação dos pesquisadores e a metodologia empregada, bem como o referencial teórico utilizado. Serão também apresentados os pontos de convergências a que chegaram as diversas pesquisas.

Dentre as pesquisas apresentadas, apenas o trabalho oriundo da Universidade de Brasília não foi fruto direto de pesquisa empírica – embora a autora3, para tratar da criminalidade sexista, tenha lançado mão de uma grande quantidade de dados de pesquisas realizadas no Brasil e no exterior, inclusive dados coletados por ela mesma. Seu estudo procurou conectar determinadas “[...] estratégias de propagação da misoginia e do sexismo com territórios que compõem uma rede de cumplicidades em que se fundamenta a preservação e a reprodução de violências contra as mulheres” (THURLER, 2009, p. 2).

Três dos outros trabalhos lançaram mão de dados recolhidos junto às Delegacias da Mulher (DEAM / DDM) – dois deles em capitais, São Paulo e Teresina, e um terceiro em Chapecó4, cidade de médio porte do sul do Brasil. Dois outros trabalhos se valeram de dados obtidos junto a Juizados Especiais localizados nas cidades de Belo Horizonte e Porto Alegre. Por fim, o trabalho oriundo do IPEA-DF tomou como base de dados os registros da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180.

3 Professora da Universidade de Brasília.4 É importante salientar que esta pesquisa não se ateve apenas à Delegacia da Mulher, mas estendeu seu escopo às demais instituições responsáveis pelo atendimento às mulheres vítimas de violência.

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Embora não tenha havido critério de escolha regional, pois se está trabalhando com uma seleção feita previamente pela organização do Congresso, os trabalhos contemplaram uma parcela significativa do território nacional: Sul, Sudeste e Nordeste, além do Distrito Federal. Se por um lado é certo que não se pode pretender produzir grandes sínteses diante dessa variedade de elementos regionais, ter-se-á como resultado uma interessante noção caleidoscópica da questão da violência de gênero no país.

O estudo realizado, em Teresina, pela pesquisadora e professora da Universidade Federal do Piauí, entrevistou vítimas e agressores5, “[...] respectivamente, em relação às práticas de violência sofridas e cometidas. O tipo de violência a qual [faz] referência é aquela impetrada contra as mulheres por seus maridos ou companheiros, dentro ou fora do domicílio” (MENDES, 2009, p. 5). Analisou discursos masculinos e femininos a fim de chegar aos motivos desencadeadores das práticas de violência contra a mulher.

Tendo objetivos muito próximos a este, a pesquisa que tem por base uma Delegacia de Defesa da Mulher – DDM da grande São Paulo6 se propôs a discutir a violência conjugal enquanto problema social. Querendo analisar esta prática por parte dos homens contra mulheres das camadas médias, baseou-se em dados quantitativos, visando observar se houve ou não aumento do número de denúncias efetuadas por mulheres desta classe social; e também qualitativos, no qual pretendia detalhar as causas pelas quais se dava a violência (SILVA, 2009).

O estudo organizado por duas professoras e um estudante de pós-graduação da Universidade Comunitária Regional de Chapecó – Unochapecó, buscou compreender as implicações da implementação da Lei Maria da Penha na cidade de Chapecó-SC. A pesquisa iniciada no primeiro semestre de 2008 desenvolveu-se em dois momentos distintos. Primeiramente desenvolveu a coleta e análise de documentos relacionados à lei e à sua tramitação no Congresso Nacional, colhendo também entrevista junto a uma das coordenadoras do Centro Feminista de Estudos

5 A partir de uma abordagem qualitativa, foram realizadas trinta e duas entrevistas (doze homens e vinte mulheres) no período de maio a julho de 2008.6 Sua autora é doutoranda da Universidade Estadual de Campinas e seu trabalho é fruto dos resultados obtidos na pesquisa de campo para a conclusão de seu trabalho de mestrado, realizado na Universidade de São Paulo em 2005.

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Violência de Gênero: Notas sobre um Campo de Pesquisa

e Assessoria – CFEMEA. Na sequência centrou seu foco nas organizações e estabelecimentos ligados à implementação da nova legislação: Delegacia da Mulher, Polícia Militar, Casa Abrigo para Mulheres vítimas de Violência e Vara Criminal7 (SANTIN, 2009).

Tomando por base os dados do Juizado Especial Criminal de Belo Horizonte, o trabalho dos pesquisadores8 da Universidade Federal de Minas Gerais e da Fundação João Pinheiro teve por objetivo analisar o perfil das mulheres nos processos julgados no ano de 2006. Ao ter acesso aos registros, que vão do Boletim de Ocorrência à Sentença, analisou-se tanto as situações nas quais as mulheres são vítimas e também autoras de crimes. Foram entrevistados também o Juiz, o Promotor e o Defensor Público que atendem ao Juizado (SANTOS, 2009).

O trabalho que teve por objetivo analisar a experiência do Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher na cidade de Porto Alegre foi desenvolvido a partir de pesquisa etnográfica no citado Juizado. O trabalho de campo recolhe dados importantes sobre as audiências ali ocorridas e conta também com entrevistas junto à Juíza responsável e com a delegada titular da Delegacia da Mulher. A partir dos dados obtidos as pesquisadoras9 procuram analisar o impacto que a Lei Maria da Penha traz à questão do empoderamento feminino frente à violência doméstica (VASCONCELLOS, 2009).

Por fim, o estudo de Brasília10 teve por objetivo “[...] empreender uma análise dos dados oriundos da Central de Atendimento no que se refere às reclamações registradas acerca dos serviços de segurança pública no atendimento a mulheres em

7 A pesquisa de campo envolveu a coleta e análise de documentos, observação participante, além de entrevistas semiestruturadas com três mulheres vítimas de violência doméstica e amparadas pelo Sistema Judiciário de Chapecó. Também foi colhido depoimentos do Juiz da Terceira Vara Criminal da Comarca da cidade.8 A equipe de pesquisadores é formada por um doutorando – estudante da Universidade Federal de Minas Gerais e Professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais –, e dois doutores, estes ligados à Fundação João Pinheiro.9 Uma delas Mestre em Ciências Sociais e a outra graduanda em Direito, ambas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. O trabalho conta também com financiamento do CNPq.10 A equipe de pesquisadores era formada por uma doutora bolsista Instituto de Pesquisa Econômica Avançada – IPEA, uma mestre atuando na Secretaria Especial de Políticas para Mulheres – SPM/PR e também um terceiro pesquisador atuando na mesma secretaria, cujo currículo lattes não foi possível localizar.

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situação de violência doméstica e familiar” (BONETTI, 2009, p. 3-4). Buscou ainda identificar as falhas, abusos e situações de despreparo no atendimento às mulheres que buscam apoio no Estado para enfrentar a violência. Neste sentido lançou mão tanto de métodos quantitativos quanto qualitativos – seja para a produção de dados técnicos voltados à gestão das políticas públicas, seja para a produção de conhecimento sobre a questão da violação dos direitos da mulher.

No que se refere ao perfil dos(as) pesquisadores(as), chama atenção o fato de a maioria ser pertencente ao sexo feminino. Os sete trabalhos foram produzidos por quatorze sociólogos, dentre os quais apenas quatro eram do sexo masculino. Este dado faz refletir: a violência de gênero tem preocupado mais as mulheres do que os homens? Por quê?

De modo geral, os(as) autores(as) destes estudos são, em sua maioria, professores universitários, com mestrado ou doutorado e experiência como pesquisadores. A única exceção foi a pesquisa realizada no Rio Grande do Sul, que contava com uma graduanda em direito entre seus autores. Isto se explica pelo regulamento adotado pela Sociedade Brasileira de Sociologia, o qual determinava que só seriam aceitos nos GTs trabalhos escritos por pesquisadores cuja formação mínima fosse o mestrado.

Nota-se que apenas dois trabalhos analisados não eram oriundos de Universidades públicas: o trabalho dos pesquisadores da Universidade Comunitária Regional de Chapecó e das pesquisadoras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

No que se refere ao referencial teórico adotado pelos(as) autores(as), todos sem exceção fazem referência à epistemologia feminista. Seja por se filiar a ela, seja para tecer considerações acerca de alguns elementos de suas estratégias de ação política – como se verá mais adiante. Em boa parte dos textos há a preocupação de, antes de abordar diretamente o objeto de pesquisa, situar, mesmo que brevemente, a trajetória das lutas e conquistas referentes à violência de gênero. Neste sentido, é possível perceber a referência a alguns estudos que podem ser considerados delimitadores dentro do campo, tais como a produção de autoras como Bárbara Musumeci, Lourdes Bandeira, Heleieth Saffioti e Wania Pasinato. De uma forma geral, pode-se apontar que, no momento de construir seus argumentos, para além

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das autoras ligadas à epistemologia feminista ou de gênero, buscou-se uma grande variedade de autores para alavancar posições no espectro sociológico – alguns buscaram os clássicos, tais como Durkheim e Weber, outros foram ao outro extremo recorrendo a Guattari, Foucault ou Giddens para construir fundamentos para seus argumentos; outros ainda preferiram Bourdieu para implementar seu referencial teórico. Mas embora haja essa profusão de autores com filiação distinta, não se pode dizer que o ecletismo teórico seja a tônica de construção aqui. Tal situação apenas reflete as diferentes possibilidades de abordagem teórica no campo.

Após este exercício de mapeamento geral e de encontro das similaridades, passar-se-á à análise de pontos específicos revelados pelas pesquisas em questão. Alguns deles, inclusive se mostrarão conflitantes entre si.

sINGUlaRIDaDes

A proposta desta sessão é buscar o caráter único das contribuições de cada trabalho, procurando, mesmo que de forma paradoxal, estabelecer algum tipo de fio condutor que possa ligar pesquisas tão distintas.

Como apontado anteriormente, a intervenção de Thurler tem por objetivo promover a reflexão acerca da misoginia e do sexismo que se propaga por meio de uma rede de cumplicidades que se faz presente nos elementos estruturais da sociedade e da cultura contemporânea. A leitura do texto permite analisar que, mesmo reconhecendo os avanços promovidos pela ação política de organizações da sociedade civil, dentre as quais se destaca o movimento feminista, criando espaços institucionais para a defesa dos direitos da mulher, tais espaços são muitas vezes ocupados por atores sociais imbuídos ainda de uma mentalidade conservadora e conivente, mesmo que de forma inconsciente, com uma criminalidade sexista, que busca “[...] legitimar e minimizar a gravidade da violência masculina e, até mesmo, negá-la, por meio de um repertório social de mecanismos de ocultamento” (THURLER, 2009, p. 4). As estratégias empregadas para a preservação e propagação deste poder masculino, se por um lado não podem ser consideradas novidade, por outro não deixam de ser desanimadoras para aqueles que militam pela causa da igualdade de gênero. Há que

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se dar destaque para as práticas de eufemização das situações de agressão, para os processos de desumanização e culpabilização da vítima, para o artifício de diluição da responsabilidade entre vítima e agressor, para a cilada de promover a naturalização e biologização dos comportamentos violentos, sem deixar de mencionar a capciosa saída que procura promover a psicologização, a patologização e despolitização da violência de gênero. Segundo a autora a violência masculina se sustenta também por meio de transmissões inter-geracionais promovida por uma educação sexista, seja ela formal ou informal. A conclusão de seu texto coloca em relevo o papel de instituições balizadoras no contexto da dominação masculina – o Judiciário como espaço de ação androcêntrico, a Mídia através de leituras masculinistas da violência contra as mulheres, bem como a Igreja e a reprodução de papéis de gênero altamente conservadores.

Tendo sido realizada num período anterior ao surgimento da lei Maria da Penha, a pesquisa de Belo Horizonte teve por foco a presença de mulheres no Juizado Especial Criminal, seja como vítimas, seja como autoras de crimes, tendo procurado desenvolver a compreensão de como elas estabelecem vínculos com a Justiça Criminal. Dentre os crimes mais cometidos por mulheres figuram os de lesão corporal (21%), vias de fato (20%), lesão corporal no trânsito (19%) e ameaça (18%) – a conta é fechada com outros crimes não identificados no estudo. O estudo aponta que as mulheres aparecem neste ambiente mais como vítimas do que como agressoras – e neste sentido, está-se fazendo referência à violência doméstica, praticada por maridos, companheiros ou namorados. No entanto, o número de mulheres que desistiram de comparecer às audiências foi grande. “Assim, sempre fica a impressão de que elas não são ouvidas e que a justiça não se realiza quando o gênero é feminino” (SANTOS, 2009, p. 18). A pesquisa sugere que talvez isso aconteça porque quando a Polícia Militar procede ao atendimento da ocorrência policial, tende a atuar como mediadora do conflito, chamando para si uma responsabilidade que deveria ser da justiça – a saber, mediar e dirimir o conflito (SANTOS, 2009, p. 18).

Essas reflexões todas podem ser articuladas com o estudo que se fez junto ao “Ligue 180”. Segundo a pesquisa “muitos são os relatos de mulheres violentadas pelas instituições do Estado, especialmente em função da reprodução de estereótipos e preconceitos que banalizam a violência doméstica e familiar” (BONETTI, 2009, p.

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10). Este trabalho põe em evidência que cada vez mais é necessário que as políticas públicas a serem implementadas sejam construídas numa perspectiva feminista. Tendo a dupla função de receber relatos/denúncias de violência contra a mulher e de reclamações sobre a própria Rede de Atendimento à Mulher em Situação de Violência11 organizada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, o serviço apresentou um amento da demanda de 1700% entre 2005 e 2008. A análise destes números faz refletir que se por um lado, cresce a demanda pelo serviço público no sentido da proteção contra a violência de gênero, bem como pelo respeito por parte do Estado em relação àqueles que procuram seus serviços, por outro, o número de reclamações demonstra que a capacitação dos integrantes dessa Rede deve ser melhorada. Neste sentido, pode-se afirmar que as queixas se referem “i) ao despreparo e à falta de comprometimento na aplicação da legislação vigente; e ii) ao atendimento inadequado em função de comportamentos que reproduzem estereótipos e preconceitos no atendimento” (BONETTI, 2009, p. 13). Mais graves do que os problemas estruturais12 que a pesquisa levanta são os casos em que as pessoas que procuram a Rede se veem, por vezes, às voltas com a recusa dos agentes de segurança pública em atender às suas demandas. Embora o texto aponte uma série de motivos para que isso aconteça, acaba por concluir que, de modo geral, subsiste a noção de que a violência doméstica não é crime. O que revela um enorme descompasso ainda existente entre os demandantes dos serviços de segurança pública e seus agentes.

Tal situação pode, em alguma medida, ser conectada aos estudos desenvolvidos junto às delegacias da Mulher. O estudo desenvolvido em Teresina procurou exatamente localizar os discursos de agressores e de vítimas, tentando deslindar os

11 O conceito de Rede de Atendimento refere-se à atuação articulada entre as instituições/serviços governamentais, não-governamentais e a comunidade, visando à ampliação e melhoria da qualidade do atendimento; à identificação e encaminhamento adequado das mulheres em situação de violência; e ao desenvolvimento de estratégias efetivas de prevenção. Integram a Rede não apenas os serviços especializados de atendimento às mulheres (casas-abrigo, centros de referência, Deams, Juizados Especiais, etc.), mas também os serviços não especializados que as atendem, como as delegacias comuns da polícia civil, os serviços de saúde, o número 190 da Polícia Militar, entre outros (BONETTI, 2009, p. 5).12 No que se refere à estrutura, a Rede se mostra deficiente principalmente no que diz respeito à “[...] falta de viatura; telefone sem resposta, demanda fora da jurisdição do serviço, delegacias fechadas; e falta de recursos humanos” (BONETTI, 2009, p. 14).

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motivos pelos quais se dá a violência de gênero13. Ao analisar essas falas, chegou-se à conclusão de que uma série de elementos “[...] reincidiam como fatores de forte influência no desencadeamento das práticas de violência, a exemplo da ingestão de bebidas alcoólicas, autoridade, ciúme, desconfiança, controle, infidelidade, relações sexuais e divisão sexual do trabalho” (MENDES, 2009, p. 9). O estudo revela, porém, que o que dá suporte e viabiliza as práticas de violência entre estes casais são relações de gênero desiguais e hierarquizadas. Depreendem-se dos discursos categorias como posse, controle, vigilância, acusação e proibição por parte dos homens em relação às mulheres. Se por um lado mulheres dependentes financeiramente sofrem com mais intensidade este processo de submissão, as mulheres profissionalmente ativas são cobradas em relação às tradicionais tarefas delegadas ao universo feminino, como o cuidado da casa e dos filhos. Este seria o quadro geral onde se desenrolam os dramas referentes à violência contra mulheres, que também segundo a pesquisa, não se configuram como passivas ou cúmplices, mas pelo contrário, reagem de diferentes maneiras a este fenômeno. As mulheres podem ocultar as agressões que sofrem, mas expressam a não aceitação da violência por outras formas tais como a “[...] decisão de separação, abstinência sexual e traição” (MENDES, 2009, p. 16). De qualquer forma, este estudo apresenta como ainda significativa a associação da violência de gênero ao consumo de álcool – que é considerado como combustível que aflora uma agressividade ligada questões oriundas da trajetória pessoal destes homens, que veem no consumo de bebidas alcoólicas uma forma de superar situações de desemprego, abuso na infância, exposição a modelos masculinos viciados e violentos, etc. –, e à vivencia de uma masculinidade que vê no sexo uma pulsão irrefreável e que considera que a afirmação do macho se dá pelo desempenho sexual. Nesta ótica a recusa feminina está sempre atrelada à traição que deve ser punida de forma violenta. O estudo encerra apontando que para coibir os abundantes casos de violência de gênero, tão importante quanto medidas punitivas, são as medidas socioeducativas – estas atuariam no sentido de desconstruir modelos e estereótipos conservadores, apontando a mulher como sujeito de direitos.

Embora esse estudo não tenha pretendido apresentar a classe social de

13 Deparando-se também com as mesmas situações de atendimento arbitrárias que os estudos acima revelaram.

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pertença dos seus entrevistados, é interessante compará-lo com o efetuado em 2005 em uma Delegacia da Mulher da cidade de São Paulo – sendo que este sim adotou a classe média por universo de análise acerca da violência de gênero. A base de dados quantitativa14 da pesquisa aponta que houve um aumento do numero de violências contra mulheres das classes médias em São Paulo, bem como para o aumento do número de mulheres dispostas a promover a denúncia da violência sofrida – assim como aumentou também o volume geral de denúncias. O tipo de violência mais comum foi a Lesão Corporal, seguida dos crimes contra a pessoa e a ameaça; embora haja registros de “[...] contravenções penais, injúria, difamação, maus tratos, dano, crimes contra o patrimônio e violação de domicílio” (SILVA, 2009, p. 5). Nesta pesquisa as denunciantes apontam como motivo das agressões o fato do agressor estar alcoolizado ou ser alcoolista, não se conformar com o fim da relação, ciúme ou ainda por não aceitarem o acordo de separação ou de divórcio. Na fase qualitativa da pesquisa, foram realizadas entrevistas com mulheres que buscavam promover a denúncia das agressões que sofriam. Neste ponto, acabam por reafirmar que os principais motivos da violência que sofreram estavam relacionados à separação do casal e/ou ao acordo que formaliza tal separação. A pesquisa revela que muitos destes relacionamentos, sejam conjugais seja afetivo de outra ordem, já haviam de fato acabado. No entanto, as mulheres apontaram como “[...] motivação para o ato de violência conjugal o fato de terem mencionado para o parceiro (agressor) o interesse de se separar, divorciar-se ou deixar a casa. A maioria dessas denunciantes afirmou, ainda, ter sofrido ameaça de morte” (SILVA, 2009, p. 6-7). Entre as considerações finais figura que tais situações denunciadas se inscrevem em um quadro geral de violência no relacionamento, não se configurando em fato isolado. Embora a maior parte das entrevistadas estivesse separada dos agressores, destacou-se a tentativa de impedir que viesse a público a face obscura de um relacionamento privado – o que para os homens implica em por vezes recorrer à força para manter “suas” mulheres num relacionamento falido e para elas (por conta própria, ou a pedido da família), em evitar o processo a fim de que não se evidencie a ideia de desordem familiar.

14 Em 2000, para um universo de 425 Termos Circunstanciados, 88 se referiam a mulheres oriundas da classe média. Em 2003, têm-se um universo de 862 TCs, com 167 referindo-se a mulheres da classe média. Já em 2004 para um universo de 968 TCs, têm-se 211 casos em que a mulher em questão era de classe média (SILVA, 2009).

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Os pesquisadores de Chapecó procuraram exatamente o nó de mudança neste cenário para desenvolver seu estudo, ou seja, buscaram o que significou a implementação da Lei Maria da Penha neste contexto. Para tanto, tomaram como problema de pesquisa a seguinte questão: quais são e em que consistem os processos de subjetivação e os possíveis alargamentos da cidadania provocados, em Chapecó-SC, pela instituição da Lei Maria da Penha? Como acontece o processo de produção mútua da lei, das jurisprudências, das subjetividades e da cidadania? A pesquisa revelou que a Lei Maria da Penha pode ser compreendida como um dispositivo15 voltado à produção de subjetividades, já que desencadeou modificações quanto às formas de perceber e agir frente a situações de violência em seus vários níveis de atuação – legal, social, doméstico e familiar. O estudo aponta que a partir da implementação da nova legislação criou-se uma rede que conecta serviços e estabelecimentos – alguns já existentes, outros criados a partir do novo paradigma – voltados à operacionalização da lei e neste sentido o Programa Ressignificar, tenta efetivar ações para que as mulheres agredidas sintam-se mais à vontade para superar as situações de violência. Neste novo contexto, é possível que não apenas as vítimas, mas também os agressores superem as tradicionais relações de poder desencadeadoras da agressividade, que atravessando sua subjetividade não lhes permitiam entrever outras formas de ação além daquelas marcadas por um horizonte de violência e agressão. Neste contexto, sujeitas a constantes ameaças e agressões, “[...] contribuíam para que os processos criativos destas mulheres ficassem estagnados, resultando em subjetividades enclausuradas na situação de violência” (SANTIN, 2009, p. 9). Assim, tem-se que mesmo a relação entre agentes do judiciário e as mulheres vítimas de violência passou a ser ressignificada, uma vez que houve também transformações subjetivas entre esses atores sociais “[...] produzindo novas práticas e desejos, em um movimento que implica um processo de singularização” (SANTIN, 2009, p. 11). Mesmo nos casos em que as mulheres

15 No sentido foucaultiano, dispositivo é “uma espécie de novelo ou meada, um conjunto multilinear, não podendo ser identificado a modelos rígidos ou estruturas fixas, formando processos sempre em desequilíbrio, e essas linhas tanto se aproximam como se afastam uma das outras. Dessa maneira, as três grandes instâncias que Foucault distingue sucessivamente (Saber, Poder e Subjetividade) não possuem, de modo definitivo, contornos definitivos; são antes cadeias de variáveis relacionadas entre si”(DELEUZE, 1996, p. 155).

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optam por não apresentar representação criminal já há uma maior compreensão quanto aos motivos que as levam a essa decisão, tais como: “[...] questões ligadas à guarda dos filhos, pressão por parte do autor da agressão, laços afetivos que mantém com o marido, situação financeira que se complicaria no caso da prisão dele, entre outros” (SANTIN, 2009, p. 11). A pesquisa informa que existe um ciclo de violência que precisa ser rompido – a Lei Maria da Penha e suas prerrogativas parecem ter sido um importante passo neste sentido.

Já em uma perspectiva diversa, o estudo de Porto Alegre analisa que o contexto do surgimento e aplicação da Lei Maria da Penha foi fruto da pouca eficácia que a criação dos Juizados Especiais Criminais obteve no equacionamento da violência de gênero. Apresenta inclusive vários outros estudos em que se destacam aspectos positivos e negativos do trabalho desses juizados. Entre os primeiros estaria a delimitação de importante espaço de defesa dos direitos da mulher, que não via suas denúncias chegarem ao judiciário devido à morosidade da produção dos inquéritos. No sentido inverso, as críticas se davam justamente porque os Juizados Especiais não resolviam a questão da violência, uma vez que esta era banalizada por meio da aplicação corriqueira de medida alternativa que consistia, em boa parte das vezes, no pagamento de uma cesta básica pelo agressor. O texto resgata, no entanto, o trabalho de Izumino (2004) no qual se argumenta que a lei 9.099/95 – que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais – representava um instrumento de empoderamento das mulheres frente a seus relacionamentos e ao Sistema de Justiça na medida em que lhes dava a prerrogativa de escolher, a partir da tomada de consciência sobre seus direitos, entre a manutenção ou retirada da representação criminal contra seu agressor.

O trabalho etnográfico realizado junto ao Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher na cidade de Porto Alegre veio apontar que, a despeito da Lei Maria da Penha, os operadores do direito ainda adotam uma postura muito próxima àquela comum nos Juizados Especiais Criminais, preferindo adotar critérios mais subjetivos. Exemplo desta postura seria a ação do Ministério Público que, num viés oposto ao punitivo, prefere a aplicação de Medidas Alternativas, principalmente se os agressores assumem o compromisso de frequentar reuniões dos Alcoólicos ou Narcóticos Anônimos – sendo que caso não ocorra nenhum outro

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agravante seu processo pode ser extinto em seis meses. A pesquisa aponta também que nos casos em que é solicitada medida protetiva de urgência, antes mesmo de proceder ao inquérito policial “[...] passou a marcar audiências com as partes, no sentido de verificar quais suas reais necessidades e, na verdade, tentar realizar um acordo entre elas sem a necessidade da realização do processo criminal” (VASCONCELLOS, 2009, p. 12). As pesquisadoras concluem seu trabalho afirmando que a as situações da violência de gênero não podem ser solucionadas simplesmente por via penal, e que uma visão meramente punitiva não responderia às reais necessidades da vítima, o que poderia ocorrer pela radicalização dos mecanismos de mediação.

CONsIDeRaÇões FINaIs

A análise dos trabalhos revelou pontos de convergência, mas também posicionamentos que se mostraram conflitantes – o que era de se esperar, uma vez que foram escritos para participar de um congresso cujo tema evocava “Consensos e controvérsias”.

No que se refere às similaridades destes trabalhos destaca-se o caráter histórico da construção de políticas públicas capazes de garantir um mínimo de proteção a mulheres atingidas pela violência de gênero. Os textos apontam que a Lei Maria da Penha é fruto da luta de mulheres organizadas e sua efetividade demanda posicionamentos e ações do Estado no sentido de implementar a lei de forma ampla. Os textos permitem entrever, que, se de um lado a violência contra as mulheres continua presente nas diversas classes sociais, por outro tem crescido a demanda pelo seu enfrentamento. Embora muitas mulheres, seja por falta de condições objetivas ou emocionais, ainda não tenham dado um basta definitivo a uma condição de submissão, outras tantas têm buscado meios para efetivar seu direito a uma vida sem violência, exigindo a implementação de políticas públicas, o que contribui para realizar os direitos humanos das mulheres, alterando a imagem de uma suposta fragilidade e resignação feminina. O posicionamento dessas mulheres que buscam sair da violência é um fator que certamente contribuirá para que a violência contra a mulher seja avaliada a partir de outros valores e deixe de ser aceita socialmente.

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Um dos pontos mais interessantes que surgem no confronto dos resultados das várias pesquisas analisadas se refere aos resultados e conclusões do trabalho realizado junto ao Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher na cidade de Porto Alegre em relação à intervenção acerca da criminalidade sexista proposta por Thurler, bem como da análise da Segurança Pública no atendimento às mulheres, desenvolvida por Bonetti. Tem-se a nítida impressão que as estratégias de propagação do sexismo no âmbito jurídico foram fruto da análise das práticas dos operadores do direito de Porto Alegre – o que a leitura dos textos não permite afirmar. Isto porque salta aos olhos que, no afã de promover a conciliação entre as partes, justificam-se as violências praticadas através da culpabilização das estruturas sociais de origem do agresssor, bem como por alegações de serem portadores de patologias, como a drogadição e o alcoolismo. Se por um lado é louvável a preocupação no sentido de não promover a estigmatização do agressor, por outro, nota-se certa displicência no que se refere aos direitos da vítima, inclusive no que tange ao pedido de medida protetiva de urgência – que não deveria estar condicionada a uma tentativa de acordo prévio. Neste sentido, as críticas sobre a capacitação dos indivíduos que compõem a Rede de Atendimento à Mulher em Situação de Violência, apontadas por Bonetti também se aplicam aos resultados da pesquisa gaúcha – inclusive no sentido de que a violência de gênero acaba por não ser compreendida como crime, e na melhor das hipóteses é tratada como um crime menor. O estudo de Vasconcellos está correto ao afirmar que mecanismos punitivos não são suficientes para a solução dos problemas que se referem à violência de gênero – e que inclusive o endurecimento penal na área estaria na contramão das correntes que defendem o uso alternativo do direito. No entanto, a Lei Maria da Penha propõe medidas socioeducativas que dependem da constituição de uma Rede que, infelizmente, parece ainda estar longe de ser amplamente implementada no país.

De qualquer forma, mesmo que esta Rede estivesse instituída, suas práticas teriam que ser purgadas da misoginia institucional da qual, a pesquisa de Vasconcellos também aponta, padeciam os JECrim(s) – na medida em que banalizavam a violência de gênero ao puni-la com o pagamento de cestas básicas. De qualquer forma, a pesquisa de Chapecó parece se apresentar como um contraponto às reflexões acima. Talvez por ser oriundo de uma cidade de médio porte, o estudo revela uma realidade

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menos contundente que aquela apresentada pela capital gaúcha. De qualquer forma, a pesquisa demonstra que ali a nova legislação realmente se apresentou como um elemento significativo para a produção de novos horizontes de interpretação do mundo, servindo como verdadeiro instrumento de empoderamento das mulheres frente à submissão promovida pela violência de gênero. Há que se ter cuidado para não ceder à sedutora ideia de que uma vez criados dispositivos legais estes serão suficientes para a superação dos problemas. Caberá ao envolvidos valerem-se dela para a construção de relações sociais calcadas em outras bases que não aquelas marcadas pela violência.

Essa perspectiva se torna evidente quando se confrontam os dados provenientes de Delegacias da Mulher de realidades sociais tão diversas como a de Teresina e do bairro de classe média de São Paulo. O que aparece aqui como traço marcante é o substrato daquilo que se convencionou chamar de dominação masculina (BOURDIEU, 1999). Esta se faz presente nas mais variadas regiões do país, não importando a classe social ou o grau de instrução dos indivíduos pesquisados. Tem-se que o álcool, e por vezes as drogas, podem ser considerados os grandes deflagradores das situações de violência de gênero. No entanto, mais do que estas situações pontuais, denota-se o sentimento de domínio, um anseio de posse que, nestas situações, os homens têm em relação às mulheres. Ameaçados de verem-se destituídos deste poder reagem violentamente. No entanto, cabe alguma análise de classe do que se depreende destes movimentos: as mulheres das classes mais baixas acabam tendo mais facilidade de expor a situação, de chamar a polícia e tornar pública a violência pela qual passam – mas com dificuldades de manter a representação, encarando a agressão como arroubo passional e, muitas vezes, culpando a si próprias pelas circunstâncias em que se encontram. Aquelas da classe média, tomadas por certo pudor, tomam atitudes mais discretas. Hesitam em recorrer à justiça para a solução do conflito e, quando o fazem, já com relacionamentos falidos, parecem estar imbuídas de algum caráter instrumental no que se refere à guarda de filhos e partilha dos bens. Percebe-se então que muitas vezes, estas mesmas mulheres têm internalizados em si os elementos culturais que mantêm a dominação masculina. E que também podem ser imbuídas de comportamentos agressivos e violentos. Como asseverado no começo deste texto, a violência acaba por ser um dos elementos

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inseridos na complexa dinâmica das relações sociais. Neste sentido, como bem aponta o estudo de Santos (2009), mulheres tanto podem ser vítimas como autoras de crimes. Não se pode assumir a posição romantizada de que as mulheres são capazes apenas de posturas de fragilidade e recato, tornando-se incapazes de atos tidos como violentos e até criminosos – esta seria outra forma de promover a submissão da mulher (ALMEIDA, 2001). De qualquer forma, o estudo de Santos também aponta que mulheres ainda são mais vítimas do que agressoras, pelo menos no que tange à violência de gênero – o que não impede que haja situações em que as mulheres possam vir a estar no pólo oposto.

À guisa de considerações finais, há que se registrar que o estado da arte das pesquisas de gênero – pelo menos naquilo que se depreende dos trabalhos aqui analisados – parece apontar para dois vetores: de um lado, como que se estivesse a procurar os indícios que dão origem ao ovo da serpente, busca compreender os elementos culturais que ainda permitem, em pleno século XXI a violência de gênero e, de forma mais específica, a violência contra a mulher. Por outro, trata de buscar investigar como as novas configurações legais têm impactado neste contexto – seja pela falência dos Juizados Especiais Criminais, seja pela emergência da Lei Maria da Penha. Chega-se ao final desta análise com a impressão de um grande quadro caleidoscópico no qual a violência de gênero se institui como uma linguagem. Linguagem que acaba por ser expressão do quanto homens ainda têm dificuldade de lidar com os novos paradigmas de uma sociedade aberta, na qual a mulher é, por força de suas conquistas históricas, sujeito de direitos.

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BULLYING: qUaNDO a bRINCaDeIRa vIRa vIOlêNCIa

Lindamir Salete CasagrandeCintia de Souza Batista Tortato

Marilia Gomes de Carvalho

a vIOlêNCIa Na esCOla

O tema da violência não caracteriza um assunto ou um problema novo no cotidiano da escola. Ao longo da história da educação brasileira e mundial a violência se fez presente desde os primórdios criando uma base para uma disciplinarização mais eficaz e permanente, principalmente em relação às crianças e jovens que estavam em fase de desenvolvimento. Debarbieux (2002a, p. 70) argumenta que “A violência era muito mais presente nos tempos antigos, e, na educação, de fato desempenhava um papel socializador”. A violência de que se tratava naquele momento era aquela praticada por adultos, pais, professores, tutores, com o objetivo de disciplinar. Estes recebiam o aval da sociedade para a prática de vários tipos de torturas e humilhações, tornando o sofrimento parte do processo educacional desempenhado tanto na família quanto na escola, de modo especial a pública.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

Segundo Arroyo (2007, p. 803), a elite delegou à escola a função de moralizar os pobres, o povo e os indolentes. Função esta que

a escola não estaria cumprindo, como revelam as violências infanto-juvenis. Diante de tantas indisciplinas os discursos propõem que retomem as escolas essa sua função precípua: moralizar os bárbaros. Este foi o discurso mais repetido perante o espanto diante dos menores infratores. Uma disputa sobre o imaginário do povo e da infância popular que leva a uma acirrada disputa sobre a função das escolas públicas e dos seus profissionais.

O autor argumenta que a abordagem da violência em suas várias manifestações dentro da escola e em seu entorno vem se constituindo como campo e objeto de pesquisa em tempos atuais. Pesquisadores têm voltado sua atenção para esta temática na intenção de entender e intervir de maneira preventiva.

Sposito (2001, p. 89) fez um levantamento da pesquisa sobre violência escolar no Brasil até os anos 1980 e verificou a “inexistência de um programa nacional de investigações sobre violência escolar proposto pelo Poder Público através de suas agências de fomento à pesquisa”. A autora verificou também o pouco interesse dos meios acadêmicos em desenvolver pesquisas relacionadas às violências presentes no meio escolar na época pesquisada.

Ainda segundo a referida autora foi a partir dos anos de 1980 que o problema da violência nas escolas tornou-se uma questão de segurança pública e passou a preocupar também a classe média. Sposito (2001, p. 93) destaca como marco dessa preocupação um acontecimento violento praticado por jovens em Brasília que chocou a opinião pública nacional. Ela argumenta que

em 1997, um índio pataxó é queimado e assassinado por cinco jovens de camadas médias da cidade de Brasília, ocasionando um grande debate público, em âmbito nacional. A partir dessa data o Ministério da Justiça começa a voltar suas atenções de forma mais sistemática para o tema da violência entre os jovens.

Assim, a partir dos anos 1990, houve uma intensificação tanto das formas de violência dentro da escola quanto das pesquisas realizadas sobre a questão1.

1 Segundo Abramovay (2002, p. 26): “no Brasil, durante a década de 1990, diferentemente da tendência de anos anteriores, aumenta a preocupação com a violência nas escolas não somente como fenômeno de origem exterior às instituições de ensino (causas exógenas), ainda que se dê ênfase, em especial, ao problema do narcotráfico, à exclusão social e às ações de gangues.”

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Bullying: Quando a Brincadeira vira Violência

Importantes trabalhos de pesquisa foram desenvolvidos e trouxeram “questões importantes para a compreensão das relações entre a violência e escola, apontando, principalmente, a influência do aumento da criminalidade e da insegurança sobre os alunos e a deterioração do clima escolar” (SPOSITO, 2001, p. 95).

Quando se menciona aumento da criminalidade, da insegurança e a deterioração do clima escolar é preciso considerar todo o contexto que circunda a escola e a sociedade. Aspectos sociais, econômicos, históricos, dentre outros não podem ser deixados de fora da análise. Debarbieux (2002a, p. 84) ressalta que “muitos trabalhos mostram que a violência não tem uma origem única, e que vale a pena examinar as abordagens sociológicas e psicológicas.” Estes estudos apontam para o aspecto pluricausal que origina a violência.

A violência presente na escola, portanto, apresenta-se de várias maneiras e dirige-se a vítimas diferentes. A depredação física da escola, a má remuneração dos profissionais, as humilhações entre os pares, entre professores e alunos, entre chefias e funcionários, a exclusão, a omissão podem ser consideradas formas de violência direta ou indireta. De alguma forma essas violências acabam se ligando e aumentando o prejuízo para todas as partes.

Os termos adotados para tratar das questões que relacionam violência e

escola variam de acordo com o foco assumido. Existem os termos: violência escolar2,

violência na escola, violência em meio escolar3, violência da escola, indisciplina e

bullying. No Brasil, a literatura “contempla não apenas a violência física, mas acentua

a ética, a política e a preocupação em dar visibilidade a violências simbólicas”

(ABRAMOVAY, 2002, p. 22). A violência simbólica é entendida como formas de

segregação, preconceito, diferença ou indiferença sem necessariamente embate físico.

2 Segundo Lopes Neto (2005, p. 165): “o termo violência escolar diz respeito a todos os comportamentos agressivos e anti-sociais, incluindo os conflitos interpessoais, danos ao patrimônio, atos criminosos, etc. Muitas dessas situações dependem de fatores externos, cujas intervenções podem estar além da competência e capacidade das entidades de ensino e de seus funcionários. Porém, para um sem número delas, a solução possível pode ser obtida no próprio ambiente escolar”. 3 Para Gonçalves e Sposito (2002, p. 102): “a designação violência em meio escolar, cunhada por Debarbieux (1996), parece a mais adequada para a compreensão das múltiplas faces do binômio violência e escola.”

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

As violências que acontecem no campo emocional ou psicológico podem

passar despercebidas na escola ou mesmo na família, no entanto, seus prejuízos revelam-se devastadores. Por este fato, elas não podem ser negligenciadas. Debarbieux (2002a, p. 67), em seu texto apresentado na Conferência Internacional sobre Violência nas Escolas e Políticas Públicas em Paris, França, em março de 2001, ressalta que

a pior situação e a mais violenta, que um cientista ou qualquer pessoa pode provocar para uma vítima é negar que ela seja uma vítima, é relegá-la ao reino do subjetivismo. Isso não refuta o modelo da violência simbólica, que é ainda mais violenta pelo fato de ser oculta, mas abre o caminho para que as vítimas possam dizer o que sentem, e para o aumento do nível de conscientização, que é uma tarefa sociológica.

Sendo assim é importante prestar atenção tanto para a violência física quanto

a emocional e psicológica presentes no ambiente escolar. Considerar relevante

qualquer queixa de agressão, mesmo que esta pareça pequena para quem está de fora

da situação. Para quem foi ou se sentiu agredido certamente não é pequena e nem

sem importância.

a vIOlêNCIa eNTRe esTUDaNTes

A violência de forma ampla ou aquela que acontece entre estudantes vem

sendo investigada em muitos países4. Segundo Francisco e Libório  (2009, p. 201) “no

Brasil, o interesse pelo estudo do bullying é mais recente, requerendo esforços para

que se possa compreendê-lo e propor intervenções mais articuladas com a realidade

4 Segundo Francisco e Libório (2009, p. 200): “sabe-se que o bullying é um tema muito discutido na Noruega, Portugal, Espanha e nos Estados Unidos”. Segundo Blaya (2002), o tema tem sido muito estudado também na Inglaterra. Smith (2002, p.187) argumenta que nos últimos dez ou vinte anos, a intimidação por colegas (bullying) nas escolas transformou-se num tópico que vem despertando interesse em muitos países. Começando com pesquisas realizadas na Escandinávia e, em seguida, no Japão, no Reino Unido e na Irlanda, esse estudo vem hoje tendo lugar na maioria dos países europeus, na Austrália e na Nova Zelândia, no Canadá e nos Estados Unidos.

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Bullying: Quando a Brincadeira vira Violência

do país.” Dentre estes estudos destaca-se os realizados por Fante (2003-2005)5, Lopes Neto6 (2005) e Mascarenhas (2006)7.

Francisco e Libório (2009, p. 200) também realizaram uma pesquisa baseada nos métodos qualitativos e quantitativos, “com o objetivo de caracterizar o bullying em duas escolas públicas estaduais de Presidente Prudente-SP, com duzentos e oitenta e três alunos de 5as e 8as séries”, onde constataram forte presença de bullying e um indicativo de que esse tipo de violência tem sido invisibilizado na escola.

As pesquisas mostram que os casos de bullying têm aumentado significativamente nas escolas brasileiras nos últimos anos. Este comportamento agressivo atinge escolas públicas e privadas indistintamente. Pesquisa realizada pelo IBGE no ano de 2010 mostra que Curitiba ocupa o terceiro lugar no rol das capitais onde ocorrem mais casos de bullying (35,2%). Fica atrás somente do Distrito Federal (35,6%) e de Belo Horizonte (35,3%). Os números são altos e indicam a importância de se refletir sobre as razões que provocaram este fenômeno.

O que está acontecendo com as nossas crianças e adolescentes que possibilitam ou estimulam a violência com relação aos colegas? Como a escola e as famílias devem agir para que estes casos diminuam? Quais os indícios que evidenciam que uma criança ou adolescente está sendo vítima de bullying? Estes são questionamentos que surgem quando se reflete sobre a situação da violência nas escolas nos dias atuais.

Entretanto é importante reafirmar que este fenômeno não é recente. Ao pensarmos sobre o tempo em que frequentávamos a escola como alunos, certamente virá à mente casos de “brincadeiras” entre estudantes que hoje podemos identificar como bullying. Estas situações de violência podem ter produzido traumas que interferem ou interferiram na construção das identidades de muitos jovens, hoje adultos.

5 Estudos realizados em cidades do interior de São Paulo sobre a caracterização de bullying. (FRANCISCO e LIBÓRIO, 2009, p. 201)6 O autor desenvolveu juntamente com a Associação Brasileira de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia), o Programa de Redução do Comportamento Agressivo entre Estudantes. A pesquisa foi realizada com mais de 5.500 alunos de 5ª a 8ª séries do Ensino Fundamental, na cidade do Rio de Janeiro-RJ. Investigou “as características de tais atos, além de sistematizar estratégias para intervir e reduzir a agressividade entre os escolares”. (FRANCISCO e LIBÓRIO, 2009, p. 201)7 Esta pesquisa foi realizada com uma amostra de 300 pessoas “de diferentes turmas de Ensino Fundamental e Médio, Educação de Jovens e Adultos, além de professores, em uma investigação-ação na zona urbana de Porto Velho-RO, e que apontou à necessidade de medidas preventivas frente à gestão institucional do bullying e da indisciplina.” (FRANCISCO; LIBÓRIO, 2009, p. 201)

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Assim, neste capítulo nos propomos a refletir sobre o conceito de bullying, suas causas e consequências, bem como sobre a postura que pais e professores deveriam assumir para o enfrentamento desta problemática. Traremos ainda alguns casos que foram notícia na mídia nacional e internacional com o intuito de ilustrar o tema.

O CONCeITO De BULLYING

“Não apanho mais, vou-me atirar ao rio!” Leandro Felipe de 12 anos freqüentava o 6º ano da Escola EB 2/3 Luciano Cordeiro em Mirandela. Vítima de bullying era frequentemente ameaçado e agredido por colegas mais velhos. Ontem, Leandro não aguentou mais. Saiu a chorar do estabelecimento de ensino pelas 15h00, e nem o irmão gêmeo e nem os três primos sensivelmente da mesma idade o conseguiram travar. “Não agüento mais, vou-me atirar ao rio”, disse a criança, diante da incapacidade dos familiares que não o conseguiram demover. Marcio, irmão gêmeo de Leandro foi internado em estado de choque. Viu o irmão despir-se na margem e ainda o tentou agarrar. Não teve força, Leandro cumpriu a ameaça8.

A palavra bullying, como já mencionado, é um termo de origem inglesa que vem sendo utilizado em diversos países e “abrange todos os atos de violência (física ou não) que ocorrem de forma intencional e repetitiva contra um ou mais alunos, impossibilitados de fazer frente às agressões sofridas” (SILVA, 2010, p. 13). Sendo assim, o agressor geralmente exerce algum tipo de poder sobre a vítima deixando-a impossibilitada de reagir ou de cessar o bullying. A repetitividade e o desequilíbrio de poder representado pela diferença de idade, de porte físico, de segurança ou de confiança são características essenciais, que tornam possível a intimidação da vítima. Caso estas duas características não estejam presentes na situação de violência, esta não deverá ser considerada bullying9.

8 Fato ocorrido em Portugal. Notícia veiculada em 04/03/2010 e disponível no site http://vekikiprojects.blogspot.com/2010/03/sera-o-bullying-o-unico-culpado.html. Acesso em: 27 out. 2010.9 Antunes e Zuin (2008, p. 34) argumentam que este tipo de violência também ocorre “em outros ambientes como no trabalho, na casa da família, nas forças armadas, prisões, condomínios residenciais, clubes e asilos como apontam Fante (2005) e Smith (2002)”.

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Bullying: Quando a Brincadeira vira Violência

O uso do termo em inglês se justifica pela dificuldade de encontrar uma palavra em outros idiomas, inclusive o português, com a mesma abrangência. O termo bullying deriva da palavra inglesa bully, que significa valentão, brigão, mandão, em suma, “bully é o valentão: um menino que, por sua força e sua alma deformada pelo sadismo, tem prazer em bater nos mais fracos e intimidá-los.” (ALVES, s.d., s.p.)

Quando utilizado como verbo, significa ameaçar, amedrontar, tiranizar, oprimir, intimidar, maltratar. O primeiro pesquisador a relacionar a palavra ao fenômeno foi Dan Olweus, professor da Universidade da Noruega10. Esta associação foi feita quando o pesquisador, ao estudar as tendências suicidas entre adolescentes, percebeu que a maioria daqueles jovens tinha sofrido algum tipo de ameaça ou constrangimento. Este é o caso de Leandro, menino da notícia apresentada anteriormente11.

Desde então os estudos sobre esse fenômeno vêm ganhando destaque na mídia e nas pesquisas acadêmicas. Na busca por expressões que mantenham o significado original do termo, alguns estudiosos sobre a temática no Brasil têm usado expressões como “violência moral”, “vitimização” ou “maltrato entre pares” para definir o fenômeno. Porém estes termos não dão conta de expressar o mesmo significado do termo em inglês e seu uso não é consenso, assim como não é consenso o uso do termo inglês em estudos escritos em outros idiomas.

Para Lopes Neto (2005, p. 165) bullying e vitimização representam diferentes formas de envolvimento em casos de violência que ocorrem na infância a na adolescência. Para o autor “o bullying diz respeito a uma forma de afirmação de poder interpessoal através da agressão. A vitimização ocorre quando uma pessoa é feita de receptor do comportamento agressivo de uma outra mais poderosa”. Porém ambas são formas de violência e têm consequências prejudiciais imediatas ou não em todos os envolvidos na agressão.

10 Dan Olweus realizou o primeiro levantamento a respeito do problema da intimidação nas escolas na Suécia e, posteriormente, na Noruega, tendo mais tarde exercido grande influência sobre as pesquisas realizadas na Inglaterra, na década de 90, após a tradução de seu livro: Aggression in schools: bullies and whipping boys (1978). (BLAYA, 2002a, p. 225). 11 Após a investigação, a justiça portuguesa não atribuiu a causa da morte de Leandro ao bullying por ele sofrido na escola. Este fato revoltou a família do menino morto.

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Na Inglaterra, o bullying é considerado como intimidação por colegas e problemas comportamentais (BLAYA, 2002a). Na França a intimidação é tratada como incivilidade, termo utilizado por Debarbieux para quem “a noção de incivilidade recobre uma série de práticas cotidianas expressas nos pequenos delitos, nas agressões verbais, na falta de polidez, nas ameaças e nas freqüentes irrupções de desordem nos estabelecimentos escolares” (SPOSITO, 2001, p. 100).12

Independente da palavra que se utilize para determinar o fenômeno, o importante é que se reflita sobre ele e se busque soluções para que a situação seja minimizada e que a convivência entre estudantes no interior das escolas seja mais agradável, pacífica e harmoniosa.

públICO eNvOlvIDO em CasOs De BULLYING

Ter as bochechas apertadas, ser beliscado e até virar alvo de gozação de toda a turma, até certo ponto, fazem parte dos percalços da convivência escolar. Mas e se a “brincadeira” é colocar a cabeça dentro do vaso sanitário e enfiar a língua dentro d’água, como L., de 9 anos, fez a pedido de alguns colegas? “Ele me ligou na quinta-feira (há duas semanas) e contou que tinha feito uma brincadeira ‘verdade ou desafio’ e teve de lamber a privada. Eu perguntei a ele por que fez isso e ele disse: ‘Mãe, você não está entendendo, eles iam me fazer dançar a dança da galinha’.” O dono do colégio diz estar “tristíssimo” com o caso, que culminou na transferência de L. e na expulsão de outro colega, supostamente um dos algozes.13

A faixa etária mais envolvida em casos de bullying oscila entre 11 e 13 anos, porém casos são encontrados entre crianças menores, como no caso da notícia acima e adolescentes mais velhos. Existem relatos de casos ocorridos em universidades

12 “As pesquisas francesas sobre a violência nas escolas vêm, há anos, se utilizando do conceito de incivilidade, que pode ser visto como o correspondente sociológico da intimidação” (DEBARBIEUX e BLAYA, 2002b, p. 27).13 Fato ocorrido no Colégio Ofélia Fonseca em Higienópolis – São Paulo. Notícia veiculada em 20/09/2010 pelo site http://www.estadao.com.br/noticias/vida,pais-e-escola-trocam-acusacoes-apos-bullying,612512,0.htm. Acesso em: 27 out. 2010.

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Bullying: Quando a Brincadeira vira Violência

públicas e privadas, no Brasil14 e no exterior. Frequentemente ouve-se na mídia que um aluno entrou em uma escola atirando e matou estudantes e professores. Ao pesquisar a história destes jovens, descobre-se que a maioria deles foi vítima de bullying. A agressão sofrida por eles e reprimida por muito tempo explode em outra forma de agressão e vitima pessoas que aparentemente não tem nada a ver com o caso. Estes episódios trágicos demonstram que o bullying está presente no meio universitário e evidenciam o fato de que as vítimas, com o passar do tempo e das agressões, acabam sentindo ódio e revolta contra a instituição (escola ou universidade) que deveria protegê-las e não o faz.

Pesquisas mostram que os meninos são a maioria dos envolvidos em atos de bullying, de modo especial como agressores (LOPES NETO, 2005). Mostram ainda que as formas como meninos e meninas o praticam é diferenciada. O bullying praticado pelos meninos é denominado pelo autor de direto, ou seja, são praticados na presença das vítimas. Dentre as formas de agressão neste tipo de bullying estão o uso de apelidos, agressões físicas, ameaças, roubos, ofensas verbais ou expressões e gestos que geram mal estar aos alvos. Os autores podem se valer de uma única forma de agressão ou de várias, de acordo com o momento. Por outro lado, as meninas praticam o bullying denominado por Lopes Neto (2005) como indireto, ou seja, as ações de violência são praticadas quando as vítimas estão ausentes. As formas mais comuns do bullying indireto são atitudes de indiferença, isolamento, difamação e negação aos desejos.

O fato dos meninos serem a maioria dos agressores não significa que as ações de desrespeito e agressividade cometidas por eles sejam mais violentas que as cometidas por meninas. O bullying direto ou indireto tem consequências semelhantes. A grande diferença é que no caso do bullying direto as vítimas sabem quem são seus agressores e no caso do bullying indireto, isso nem sempre ocorre. As meninas

14 Um dos exemplos mais conhecidos sobre bullying na universidade foi o ocorrido com Geysi Arruda, aluna da Uniban. Ela foi insultada por seus colegas porque usava um vestido considerado por eles muito curto para o ambiente universitário. A aluna chegou a ser expulsa pela universidade que voltou atrás devido à pressão da sociedade e do Ministério da Educação – MEC. Outro caso noticiado recentemente na internet ocorreu em uma das mais importantes universidades públicas do país, a Unesp. Foi o denominado “rodeio de gordas”. Este fato será abordado posteriormente.

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costumam ser mais sutis em suas ações. Esta característica dificulta a identificação das atitudes de violência praticadas por elas. Lopes Neto (2005) afirma que isso pode mascarar os números de meninas envolvidas em ações de bullying e interferir nos percentuais das pesquisas que têm sido publicadas recentemente15.

Se entre os agressores os meninos são maioria, entre as vítimas não há este tipo de distinção. A “escolha” da vítima não é feita com base no sexo e sim em alguma característica que as diferenciam da maioria dos estudantes. Esta característica faz com que os demais considerem-na como “estranha” ou “anormal”.

FORmas De eNvOlvImeNTO em aTOs De BULLYING

Ao deixar a sala de aula, na última segunda-feira, após um dia normal de estudos em uma escola particular de ensino médio no bairro São Luiz, na região da Pampulha, um aluno de 15 anos, da 9ª série, não imaginava que seria alvo de uma surra dada por colegas de classe. O caso, agora alvo de um inquérito policial, culminou com a expulsão, anteontem de dois adolescentes, também de 15 anos, acusados pelo espancamento. A agressão, cometida dentro dos domínios da escola, uma instituição de alto padrão que funciona há 25 anos na região, foi a consequência extrema de uma ação de bullying liderada por um dos alunos expulsos. Recém-chegado na classe, o estudante seria oriundo de outro colégio particular, de onde também teria saído por determinação da diretoria. No caso do colégio da Pampulha, ele teria contado com a participação de pelo menos mais seis colegas, conforme denuncia a família do menino agredido. Tímido, o jovem que sofreu a agressão conta como eram as intimidações. “Ele me chamava de olho caído e de medroso. Sempre arrumava apelido sobre a aparência das pessoas. Chamava outro aluno de Nhonho (personagem gordo do “Chaves”).16

A participação dos estudantes em ações de bullying pode ocorrer de várias formas. Dentre elas destaca-se:

15 Sobre as diferenças entre meninos e meninas e a questão do bullying, Francisco e Libório (2009, p. 204) ressaltam que “não se pode deixar de refletir que as meninas podem apresentar formas mais sutis de expressar a violência, e que muitas vezes os meninos são movidos por processos culturais e de socialização que os encorajam a assumir posições violentas rotineiramente naturalizadas pela sociedade”.16 Notícia veiculada no dia 24/06/2010 pelo site http://www.otempo.com.br/otempo/noticias/?IdNoticia=144313. Acesso em: 27 out. 2010.

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Bullying: Quando a Brincadeira vira Violência

Agressor ou autor: é quem comete o ato de bullying. Segundo Lopes Neto (2005, p. S167), são características destes estudantes a popularidade; a presença de comportamentos antissociais; a agressividade não só com jovens de sua idade, mas também com adultos; a percepção da agressividade como qualidade; a impulsividade; geralmente são mais fortes que seus alvos; sentem prazer em dominar. Segundo Silva (2010, p. 43) os agressores/autores “possuem em sua personalidade traços de desrespeito e de maldade e, na maioria das vezes, essas características estão associadas a um perigoso poder de liderança que em geral é obtido ou legitimado através da força física ou de intenso assédio psicológico”. A matéria jornalística acima ilustra o fato de que o agressor tinha um grande poder de liderança. Mesmo estando há pouco tempo na escola já havia formado um grupo que o auxiliou na agressão ao colega.

Os agressores/autores podem se envolver em outros delitos fora do ambiente escolar como, por exemplo, vandalismo, roubos, furtos, destruição do patrimônio público, dentre outros. Silva (2010, p. 44) argumenta que eles apresentam falta de apego e amor pelos outros. Este comportamento pode ter origem “em lares desestruturados ou no próprio temperamento do jovem”. Lopes Neto (2005, p. S167) afirma que fatores pessoais como “hiperatividade, impulsividade, distúrbios comportamentais, dificuldades de atenção, baixa inteligência e desempenho escolar deficiente” também podem contribuir para este tipo de comportamento dos jovens.

Dentre as consequências imediatas na vida do agressor, o comportamento conturbado destes jovens pode resultar em baixo rendimento escolar mesmo que eles apresentem nítida capacidade de aprendizagem.

O poder de liderança é uma característica comumente considerada positiva e que, neste caso, assume papel negativo. Os agressores/autores são alunos que necessitam de atenção especial de toda a equipe pedagógica da escola, da família, e se for o caso de apoio psicológico para que este poder e a agitação sejam canalizados para ações construtivas.

Vítima ou alvo: é quem sofre o ato de bullying. São estudantes que, de modo geral, apresentam autoestima baixa e por esta razão se sentem incapazes, sem status ou habilidade para reagir ou cessar o “bullying” (LOPES NETO, 2005, p. S167). Costumam ser pouco sociáveis, inseguros e não ter esperança de se adequar ao grupo. A inadequação ao grupo faz com que as vítimas tenham poucos amigos, sejam

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retraídos e infelizes. Tenham vergonha e medo de se expor, apresentem sintomas de depressão e ansiedade. “Sua auto-estima pode estar tão comprometida que acredita ser merecedor dos maus-tratos sofridos” (LOPES NETO, 2005, p. S167) e desta forma não veem motivos para reagir às agressões.

Silva (2010, p. 38) argumenta que as vítimas/alvos “são mais frágeis fisicamente e apresentam uma ‘marca’ que as destaca da maioria dos alunos.” Entenda-se por “marca” qualquer característica que difere do que os demais estudantes consideram como normal. Está relacionada ao peso, à estatura, à cor da pele, ao tipo de cabelo, à crença religiosa, à dificuldade de locomoção ou de expressão verbal, à dificuldade de aprendizagem, ao comportamento, à orientação sexual assumida ou presumida, enfim, qualquer característica ou atitude que não seja condizente com o modelo estabelecido pelo grupo como sendo normal é motivo para humilhação e agressão. Na matéria acima, a vítima sofria as agressões baseadas em diferenças física e comportamental que eram vistas pelos agressores como pontos fracos; um problema no olho e o medo eram as “marcas” que, na opinião dos agressores, o diferenciava dos demais.

Hermann, Nunes e Amorim (2009, p. 3650) argumentam que “os autores do bullying escolhem suas ‘presas’ de acordo com a vulnerabilidade que estas aparentam, sendo aquelas que possuem pouca sociabilidade e que possivelmente não revidará e não denunciará”. A fragilidade das vítimas e a certeza da impunidade proporcionam a sensação de conforto e segurança aos agressores. As vítimas precisam de apoio emocional e psicológico para superar suas dificuldades, aumentar a autoestima e cessar as agressões.

Testemunha ou espectador: São os estudantes que presenciam ações de bullying, ou seja, a maioria dos estudantes. A maioria das testemunhas/espectadores não toma atitude diante do que presenciam. Muitas vezes se calam por receio de ser a próxima vítima, por não saberem como agir, qual atitude tomar ou por não acreditarem que a escola tome alguma iniciativa no sentido de coibir estes atos de violência entre estudantes. Normalmente estes estudantes se sentem sem ação e mesmo não concordando ou repudiando a atitude dos colegas “ficam de mãos atadas para tomar qualquer atitude em defesa das vítimas” (SILVA, 2010, p. 45). O

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Bullying: Quando a Brincadeira vira Violência

fato das testemunhas e vítimas de bullying se calarem diante das ações sofridas ou presenciadas cria um falso clima de tranquilidade que pode ser “interpretado pelos autores como afirmação de seu poder, o que ajuda a acobertar a prevalência desses atos” (LOPES NETO, 2005, p. S167). Este silêncio dificulta a identificação dos casos de agressão pelos adultos que atuam na escola e pelos familiares.

Os estudantes costumam apresentar reações distintas diante das ações de bullying. Lopes Neto (2005, p. S168) classifica as testemunhas da seguinte forma: auxiliares – não iniciam a ação, mas uma vez iniciada têm participação ativa na continuidade da agressão; incentivadores – dão apoio ao autor por meio de risadas e estímulos17; observadores – percebem a agressão e nada fazem ou se afastam; ou defensores – tomam algum tipo de atitude com o intuito de proteger o alvo ou cessar a agressão.

Vítima/agressor ou alvo/autor: São estudantes que ora são vítimas das agressões e ora são agressores. Estes estudantes agem desta maneira como uma forma de compensarem os maus tratos sofridos. Muitas vezes a vítima/alvo procura “outra vítima ainda mais frágil e vulnerável e comete contra esta todas as agressões sofridas” (SILVA, 2010, p. 43). Podem apresentar sintomas de depressão e insegurança, buscando na humilhação de seus colegas uma forma de encobrir as próprias limitações.

Em qualquer que seja a forma de envolvimento em casos de bullying, os estudantes são vítimas. Sofrem consequências destes atos e apresentam problemas emocionais e psicológicos a eles associados. Todos, indistintamente necessitam de apoio e atenção para que estes problemas sejam minimizados e a violência nas escolas diminua.

17 Esta semana (última semana de outubro de 2010) circulou na internet e na televisão a imagem de duas meninas brigando em uma escola de Biritiba Mirim, interior de São Paulo, e um grande número de estudantes assistindo e alguns dizendo frases de incentivo a violência. Notícia disponível em http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM1363769-7823-BRIGAS+ENTRE+ALUNOS+SE+TORNAM+COMUNS+EM+BIRITIBA+MIRIM,00.html. Acesso em: 01 nov. 2010.

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TIpOs De BULLYING

Nove adolescentes foram indiciados pela Justiça do Estado americano de Massachussetts após o suicídio de uma estudante de 15 anos que teria sido supostamente vítima de bullying (intimidações físicas e psicológicas) do grupo. Phoebe Prince, que havia imigrado recentemente com a família da Irlanda para a cidade de South Hadley, em Massaschussetts, foi encontrada enforcada na escada do prédio onde morava no dia 14 de janeiro. Segundo a promotora que cuida do caso, Elizabeth D. Scheibel, Phoebe teria se matado após uma série de ataques físicos e verbais, culminando com um dia descrito como “torturante” no qual ela teria sido vítima de calúnias e atacada com uma lata de bebida. Phoebe teria começado a ser perseguida por colegas de escola após um curto relacionamento com um colega popular, terminado seis semanas antes de seu suicídio. Os ataques teriam ocorrido principalmente dentro da escola, mas também por meio de mensagens por celular e em sites de relacionamento social na internet.18

As agressões aos colegas podem ocorrer de várias formas. Muitas vezes se inicia de forma branda e vai se acentuando, e passa a formas visivelmente mais violentas. Dentre os tipos de agressões destaca-se:

Verbal: as agressões verbais mais comuns são “insultar, ofender, xingar, fazer gozações, colocar apelidos pejorativos, fazer piadas ofensivas, ‘zoar’” (SILVA, 2010, p. 23). Este tipo de agressão expõe as vítimas ao escárnio dos colegas e gera mal estar e constrangimento. Muitas vezes são confundidas com brincadeiras que fazem parte do desenvolvimento natural das crianças e adolescentes. Porém a repetitividade e a falta de reação da vítima indicam que não se trata de brincadeira e que está causando prejuízo ao desenvolvimento da criança ou adolescente alvo.

Física e material: nesta categoria estão inclusas ações como “bater, chutar, espancar, empurrar, ferir, beliscar, roubar, furtar ou destruir pertences da vítima, atirar objetos contra as vítimas” (SILVA, 2010, p. 23). Este tipo de ação é mais comumente considerado agressivo pelos educadores e familiares. Sua identificação é perceptível por meio de possíveis marcas físicas deixadas na vítima. Em um caso recente no Distrito Federal, duas meninas brigaram e uma delas usou a lâmina de

18 Notícia veiculada no dia 30/03/2010 pelo http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/03/100330_adolescente_bullying_rw.shtml. Acesso em: 29 out. 2010.

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Bullying: Quando a Brincadeira vira Violência

um apontador para ferir a outra. Foram mais de 20 lesões, principalmente no rosto da vítima19. Este caso evidencia o fato de que quando ocorre agressão física, ocorre também mobilização de familiares, profissionais de educação, meios de comunicação e demais setores da sociedade.

Psicológica e moral: as ações englobadas nesta categoria são “humilhar, excluir, discriminar, chantagear, intimidar, difamar” (CNJ, 2010, p. 7). Ações como estas fazem com que as vítimas tenham dificuldade de se relacionar com os colegas, não somente com os agressores. Atingem fortemente a autoestima dos estudantes e dificulta sua vida em sociedade.

Sexual: Nesta categoria estão incluídas violências como abusar, violentar, assediar e insinuar. Segundo Silva (2010, p. 24) este é um comportamento encontrado entre meninos com meninas e meninos com meninos, de modo especial, os meninos homo-orientados (assumidos ou presumidos). Não são raros os casos de bullying nos quais um grupo de estudantes se junta para abusar sexualmente de um menino ou de uma menina. Este abuso pode ocorrer dentro ou fora da escola, porém, o início do bullying ocorre na escola.

Virtual ou Ciberbullying: são ações nas quais os agressores se valem de recursos tecnológicos como celulares, filmadoras, internet (e-mails, sites de relacionamentos, vídeos) etc. Esta modalidade de agressão é extremamente violenta e assume dimensões incontroláveis tanto por parte do agressor quanto da vítima. “Além de a propagação das difamações serem [sic] pratica mente instantânea o efeito multiplicador do sofrimento das vítimas é imensurável. O ciber bullying extrapola, em muito, os muros das escolas e expõe a vítima ao escárnio público” (CNJ, 2010, p. 8). Ao contrário da modalidade de bullying “tradicional” na qual vítima e agressor se conhecem e convivem, o ciberbullying é feito de forma anônima e não oferece nenhuma possibilidade de defesa à vítima. No caso do bullying “tradicional”, ao se afastar do agressor a agressão cessa, mas na modalidade virtual isso não acontece. Mesmo entre as paredes de seu quarto, a vítima é agredida por meio de mensagens no celular ou na internet. Esta modalidade tem sido considerada como a forma mais violenta de bullying, pois “traumas e consequências advindos do bullying virtual são dramáticos” (CNJ, 2010, p. 8).

19 Notícia disponível em http://violenciainvisivel.wordpress.com/2010/10/27/pancadaria-no-distrito-federal/. Acesso em: 01 nov. 2010.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

A adolescente citada na matéria acima foi vítima de várias formas de bullying. Este fato é comum nos casos de agressão. Muitas vezes o bullying inicia de forma mais branda e evolui para formas de agressão mais violentas. O caso acima evidencia a negligência da escola com relação às denúncias feitas. Exemplos como esse ajudam a compreender os motivos pelos quais, na maioria das vezes, os estudantes não denunciam as ações violentas que ocorrem no ambiente escolar. A falta de iniciativa dos adultos no sentido de cessar o bullying faz com os jovens se sintam desmotivados a denunciar.

Nos estudos sobre bullying percebe-se também dificuldades de comunicação entre estudantes e adultos responsáveis pelo andamento da escola, professores ou equipe pedagógica. Para Abramovay (2008, p. 3),

a cultura escolar não tem demonstrado receptividade à linguagem e às várias formas de expressão juvenil. Assim, vemos na escola uma cultura adultocrata, baseada no não diálogo e nas relações de poder entre estudantes e adultos da escola. A relação é assimétrica e tensa, causada, muitas vezes, por adultos que partem de posições conservadoras, rígidas, sendo desprovidos da capacidade de diálogo. Vivemos, portanto, em uma sociedade adultocêntrica, com uma forma de ver o mundo e uma ordem de valores que partem dos adultos.

O descolamento entre as pessoas que representam a autoridade e os estudantes pode não só comprometer todo o desenvolvimento do trabalho, mas também criar espaços de desconfiança e desrespeito mútuos20. Isso significa que é preciso primar pelo diálogo. A construção e manutenção das regras de convivência dependem da qualidade desse diálogo e das facilidades de comunicação entre os grupos, cabendo aos profissionais que atuam na escola gerir essa construção de forma democrática e transparente.

A falta de comunicação dificulta a prevenção de formas violentas de bullying e invisibilizam outras formas menos evidentes. Em uma pesquisa feita nos Estados Unidos foi constatado que muitos colegas sabiam de antemão que outros seriam vítimas de violência direta de seus pares e não avisaram nem suas próprias famílias, nem as famílias das vítimas, nem mesmo as autoridades da escola. Assim, os

20 Para Sposito (2001, p. 100) a percepção das tensões existentes entre alunos ou entre estes e o mundo adulto tem afetado o clima dos estabelecimentos escolares, especialmente a ação dos professores, que passam a sentir-se sob ameaça permanente, quer real ou imaginária.

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Bullying: Quando a Brincadeira vira Violência

resultados das pesquisas de Devine (2002a, p. 222) mostram outra grave consequência da desconfiança entre estudantes e profissionais da escola. Para o autor,

essas informações de pesquisa talvez nos façam perceber o vasto abismo que separa a cultura da juventude do mundo dos adultos maduros. Essas informações, se interpretadas da maneira correta, talvez venham a apontar as deficiências de nosso processo de socialização.

Esta deficiência é evidenciada pela visão deturpada de muitos estudantes de que a violência é a solução para os conflitos e que o outro pode ser vitimizado para satisfazer o seu desejo de afirmação.

CONseqUêNCIas DO BULLYING Na vIDa DOs JOveNs

Membros do Ministério da Educação divulgaram um ensaio no qual uma menina de 14 anos denuncia o assédio escolar a que foi submetida e que foi a causa do seu suicídio, informou no dia 3 a agência de notícias Kyodo. O objetivo das autoridades é evitar que o caso se repita. O Japão assiste a uma alta no número de suicídios por assédio escolar. A adolescente se atirou da janela da sua casa, em Warabi (Tokyo), em junho de 2004. Ela revelou ter sofrido assédio escolar em repetidas ocasiões. A decisão de publicar a redação foi tomada pelas autoridades locais da área de educação, a pedido de seus pais. Eles esperam que o depoimento evite situações parecidas, disse seu pai, de 46 anos. Na redação, escrita na véspera do suicídio, a menina se pergunta se há alguém no mundo que precise dela. “O assédio me afundou”, afirma, acrescentando que “para todo mundo deve ser triste e doloroso sofrer rejeição”. Com 35 mil suicídios por ano, o Japão tem a maior taxa de suicídios do mundo industrializado. Em 2005, 608 japoneses menores de 20 anos se mataram, 71 deles oficialmente por “problemas na escola”. Muitos analistas acreditam que os números reais são ainda maiores, e denunciam a intenção das escolas de ocultar ou minimizar o problema.21

As ações de bullying podem ter inúmeras consequências na vida atual e futura dos estudantes. Cada pessoa tem uma capacidade diferente de lidar com situações desagradáveis e de agressão, sendo assim, as consequências diferem de pessoa para pessoa, mas algumas se repetem com frequência. Segundo Silva (2010), o

21 Notícia disponível em: http://www.ipcdigital.com/br/Noticias/Japao/Redacao-de-menina-suicida-revela-assedio-escolar. Acesso em: 01 nov. 2010.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

bullying pode causar problemas físicos e emocionais que acompanhariam as pessoas envolvidas por toda a vida. É importante salientar que não é somente a vítima de bullying que sofre com a situação. Os agressores e as testemunhas também têm seu desenvolvimento escolar, social e emocional prejudicado por esta prática.

Como este tipo de comportamento ocorre em sua maioria no interior das escolas, os/as estudantes, vítimas ou testemunhas de bullying, podem perder o interesse por ela e considerá-la como um espaço inseguro para o seu desenvolvimento. Lopes Neto (2005, p. S165) argumenta que os comportamentos de bullying são agressivos e “tradicionalmente admitidos como naturais, sendo habitualmente ignorados ou não valorizados, tanto por professores quanto pelos pais”. Ao refletir sobre este comportamento não se pode incorrer no erro de considerar qualquer desavença ou brincadeira entre estudantes como sendo bullying, por outro lado, não se pode descuidar e ignorar as situações nas quais este comportamento ocorre.

Nos momentos em que ocorrem situações de bullying se evidenciam as razões pelas quais Louro (2001, p. 59) argumenta que “os sentidos precisam estar afiados para que sejamos capazes de ver, ouvir e sentir as múltiplas formas de constituição dos sujeitos implicadas na concepção, na organização e no fazer cotidiano escolar”. A diferenciação entre o que é bullying e o que não é necessita o aguçamento dos sentidos de todos os sujeitos que estão envolvidos na educação formal ou informal dos/as jovens.

Cruz e Carvalho (2006) argumentam que muitas vezes os estudantes usam de atitudes consideradas agressivas como uma forma de convidar o outro para a brincadeira. Estas atitudes agressivas podem ser tapas, xingamentos, invasão do espaço do outro, atividades turbulentas etc. A reação de um à provocação do/a outro/a faz com que a brincadeira tenha início. Porém, é fundamental ressaltar que existe reação do aluno provocado. A psicóloga Lidia Aratangy, em entrevista a Marilia Gabriela no programa do SBT De frente com Gabi no dia 03/10/2010, ressaltou que a brincadeira tem que ser agradável para todos. Se uns se divertem com o sofrimento e a humilhação de outros, isso não pode ser considerado brincadeira. Isso é bullying.

Os argumentos das pesquisadoras acima mencionadas evidenciam a necessidade de estar atentos para que não haja a desvalorização ou naturalização da violência e tampouco sua supervalorização. As duas formas de posicionamento

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Bullying: Quando a Brincadeira vira Violência

podem resultar em negligência na abordagem da temática e ter consequências danosas na vida dos estudantes.

Beaudoin e Taylor (2006, p. 44-45) ressaltam a importância de se perceber que os estudantes são resultado da sociedade atual. As autoras argumentam que muitas vezes os professores são levados a pensar que as atitudes dos estudantes resultam de escolhas pessoais. Ressaltam que tais escolhas não surgem do nada, são resultados de “conversas com os pais, com os tios, com os avós, e com os amigos, nos shows e nos filmes da TV e na experiência de vida em comunidade”. As autoras ressaltam que não se pode atribuir as atitudes de bullying e desrespeito a uma única causa, pois existem múltiplos “fatores que contribuem para que alguém se envolva em condutas de bullying e desrespeito. Os alunos não são os problemas; o sentimento de falta de opções (devido aos bloqueios contextuais) é que é o problema”.

Tanto os alunos que agridem os colegas com base em algo considerado pelos adultos como menor e sem importância, quanto os estudantes que não reagem na tentativa de coibir e cessar a agressão, são resultados da forma como foram criados pelos familiares e pela sociedade. Refletir sobre o que faz com que os estudantes sejam agressivos ou o que faz com que sejam submissos é imprescindível quando se busca estratégias para diminuir ou cessar as situações de bullying nas escolas.

Convém salientar que a negligência sobre o bullying pode ter consequências severas na vida dos estudantes. Silva (2010, p. 25-32) argumenta que tem recebido em seu consultório crianças, adolescentes e jovens com sintomas variados22. Ela destaca, dentre eles os seguintes:

Sintomas psicossomáticos;Transtorno do pânico;Fobia escolar;Fobia Social (Transtorno de Ansiedade Social – TAS);Transtorno de Ansiedade Generalizada – TAG;Depressão;Anorexia e Bulimia;Transtorno Obsessivo-Compulsivo – TOC;

22 Ana Beatriz Barbosa Silva é médica psiquiatra e atende em seu consultório crianças e adolescentes envolvidos em casos de bullying.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

Transtorno do Estresse Pós-Traumático – TEPT;Esquizofrenia (menos frequente);Suicídio e Homicídio (menos frequente).

Percebe-se que esses sintomas ou resultados associados ao bullying são severos e comprometem o desenvolvimento social, emocional e escolar dos jovens. São problemas que podem seguir com eles por toda a vida e prejudicá-los nos diversos segmentos da interação social. Os casos de suicídio e homicídio, embora menos frequentes, são os que ganham maior destaque na mídia como o caso da menina japonesa da matéria jornalística citada no início deste item. Pensar que estudantes podem se suicidar por causa das supostas “brincadeiras” dos colegas parece ser um exagero, entretanto os casos que ocorrem em diversos países evidenciam que esta é uma possibilidade real e deve ser uma preocupação dos governantes, professores e familiares.

COmO IDeNTIFICaR víTImas De BULLYING

Numa época em que não se falava muito de bullying, há quatro anos, a advogada Clara (nome fictício) começou a notar mudanças em sua única filha, na época com 13 anos. De menina doce e estudiosa, Marina virou garota-problema. Não gostava da escola, se vestia de preto e tornou-se agressiva. Clara não entendia onde estava o problema nem imaginava que, no colégio, Marina sofria. Perseguida por uma menina, foi tachada de homossexual porque tinha cabelo curto. Sozinha, mergulhou na depressão. A mãe só descobriu a história quando a filha tentou se matar no colégio. “Eu soube porque, no dia seguinte, li uma carta no seu computador. Desesperada, corri para a escola e a tirei de lá.” Já preocupada com a menina, Clara tinha por hábito mexer nas coisas da filha e ler as mensagens. “Os pais devem respeitar a privacidade dos filhos, mas, se desconfiarem de algo errado, precisam buscar pistas em qualquer lugar.” A mudança de escola, porém, não livrou Marina dos problemas. Sua ex-turma começou a atacá-la pela internet. Vítima do bullying pela internet, voltou a ter paz quando seu pai foi até a antiga escola e ameaçou chamar a polícia. “O colégio não tinha tomado nenhuma atitude até então.”23

23 Extraído do texto de Daniela Tófoli veiculado em 04 de junho de 2006 pelo site http://noticias.bol.com.br/destaques/2006/06/04/ult305u18676. jhtm. Acesso em: 27 out. 2010.

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Bullying: Quando a Brincadeira vira Violência

As vítimas de bullying apresentam mudanças comportamentais que permitem a identificação de que isso está ocorrendo. Porém, o fato de que a maioria dos casos de agressão acontece na adolescência, período no qual ocorrem mudanças físicas e comportamentais nos jovens, faz com que muitas vezes os familiares e educadores não associem tais mudanças à possibilidade de que seus filhos ou alunos estejam sendo vítima de “zoação”, “sarro”, humilhação, piadas maldosas, intimidação, isolamento, fofoca, constrangimento por seus colegas. Esta atitude retarda a identificação do problema e a tomada de atitudes com o intuito de diminuir ou cessar as agressões.

É importante salientar que, na maioria dos casos, as pessoas envolvidas em bullying não contam o que está acontecendo para nenhum adulto, na maioria das vezes por medo de que suas queixas não sejam levadas a sério ou que, quando agressores, sejam punidos. Sendo assim, familiares e educadores precisam estar atentos aos “sinais” para identificar as situações de violência e em caso de denúncia de um estudante, não desconsiderá-la.

Estudos (SILVA, 2010; SMITH, 2002; dentre outros) argumentam que alguns “sinais” emitidos pelas vítimas de bullying são:

Baixa no rendimento escolar: As vítimas não conseguem prestar atenção na aula, pois sentem-se intimidados por colegas. A dificuldade de concentração e a insegurança fazem com que não se sintam bem no ambiente escolar e as notas caem. A baixa no rendimento escolar contribui para que a autoestima caia ainda mais.

Sintomas somáticos: Apresentam sintomas como dor no estômago, enjoo, dor de cabeça, náuseas, vômitos quando se aproxima a hora de ir para a escola. Muitas vezes estes sintomas desaparecem quando os pais permitem que o estudante falte à aula. Isso ocorre porque “para esses alunos, a escola transforma-se em um contexto opressivo, no qual se sentem inadequados, constantemente criticados e pressionados a ser alguém que não conseguem ser” (BEAUDOIN e TAYLOR, 2006, p. 75). Esta inadequação faz com que o organismo reaja e inconscientemente impeça a exposição ao meio que o agride.

Falta de vontade de ir à escola: As crianças e adolescentes perdem o interesse e a vontade de frequentar a escola sem um motivo aparente. Os jovens começam a faltar ou pedem para que os pais deixem-nos em casa.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

Tem receio de ir sozinho para a escola: Pede que alguém o acompanhe para ir e voltar da escola e muda com frequência o trajeto. Muitas vezes demonstra o descontentamento e pede para mudar de escola. Isso ocorre devido ao receio de ser agredido no trajeto casa/escola/casa, local frequente das agressões físicas mais severas.

Roupas danificadas e lesões: voltam para casa com as roupas danificadas (sujas, rasgadas ou amassadas) e lesões como arranhões e hematomas pelo corpo. Esses são indícios claros de que a criança ou adolescente se envolveu em uma briga que pode ser ou não bullying, que merece a atenção dos familiares.

Pesadelos frequentes: acordam com gritos de “socorro” ou “me deixa”. Isso pode indicar que este jovem tem sofrido agressão ou está com receio de que isto ocorra.

Perda de dinheiro e de objetos: Uma das formas de agressão é o roubo ou danificação de objetos. Por receio de assumir que foram agredidos, os jovens dizem que perderam estes objetos. Quando estas queixas se tornarem frequentes é um sinal de que ele pode estar sendo vítima de bullying. Por outro lado, o agressor chega em casa com objetos ou dinheiro que não tinham anteriormente e se recusam a explicar onde conseguiu.

Isolamento, angústia e depressão: O jovem se isola em casa e se recusa a desenvolver qualquer atividade junto com seu grupo de amigos, incluindo a recusa em atender ao telefone. Apresenta angústia e sinais de depressão. A adolescência é uma fase na qual o grupo assume grande importância para os jovens e a recusa em se relacionar com os pares oferece indícios de que alguma coisa não vai bem. É importante prestar atenção para este fato e buscar conhecer as causas deste comportamento.

Ataques de fúria: Quando apresentam uma agressividade acima do normal e explodem com facilidade e sem uma razão aparente. Mudam frequentemente de humor.

Conflitos entre irmãos: São comuns entre os adolescentes, mas costumam ser exacerbados quando um deles está envolvido em ações de bullying. Como se sentem impossibilitados de reagirem e entrarem em conflito com seus agressores descontam a irritação e frustração nos irmãos.

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Bullying: Quando a Brincadeira vira Violência

Autoagressão: Os jovens usam objetos cortantes e pontiagudos para fazerem a automutilação. Quando isso ocorre se acende o sinal vermelho. O jovem está prestes a cometer algum atentado mais sério contra a sua vida. Há a necessidade de ajuda profissional para o tratamento do caso.

O olhar atento à presença de qualquer um desses sinais pode evitar que os casos de bullying se acentuem e provoquem prejuízos maiores ao desenvolvimento da criança e do adolescente, dificultando sua vida em sociedade. Marina, adolescente da matéria citada na abertura deste item, apresentou sintoma de depressão. A postura da mãe, que ao perceber as mudanças comportamentais da filha buscou saber o que estava acontecendo, foi vital para a identificação da violência que a jovem sofria. Ela não se suicidou graças à intervenção da mãe, que mesmo tendo consciência sobre a necessidade de respeito à intimidade da filha, percebeu que o caso justificava a invasão de privacidade. Por outro lado, a omissão da escola dificultou que o bullying cessasse.

O combate ao bullying deve ser uma tarefa assumida por familiares, educadores e sociedade em conjunto. Essa associação possibilitará que as ações obtenham êxito. A negligência dos adultos sobre as queixas das crianças e adolescentes podem causar danos irreparáveis.

NúmeROs DO BULLYING

“Isso aí é um caso muito grave. Minha filha poderia estar morta”, disse Maria Lenari de Souza, mãe de uma aluna de 14 anos vítima de bullying na porta de uma escola, na Grande São Paulo. A estudante foi espancada por uma outra menina até desmaiar. A violência foi gravada por uma câmera no Bairro dos Pimentas, em Guarulhos, na Grande São Paulo. A vítima contou que já vinha sendo provocada pela colega desde agosto. “Ela sempre procura alguma coisa pra brigar com as pessoas”, afirmou a filha de Maria Lenari. “Não sei porque [a menina brigou]. Ela [agressora] sabe que sou quieta, né?”. Com medo, a estudante agredida pediu ajuda na terça-feira (17). “Falei pra diretora, expliquei tudo”, contou a aluna de 14 anos.24

24 Notícia veiculada em 20/11/2009 pelo site http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL1386534-5605,00-VITIMA+DE+BULLYING+NAO+SABE+POR+QUE+APANHOU+E+MAE+DIZ+QUE+ELA+PODIA+MORRER.html Acesso em 20/09/2010.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

A quantidade de jovens envolvidos em casos de bullying é crescente de modo especial nas grandes cidades. Dados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar 2009 (PeNSE) realizada pelo IBGE procurou, dentre outras coisas saber sobre a incidência de bullying nas escolas brasileiras. Os resultados dessa pesquisa são preocupantes.

A pergunta feita aos alunos do 9º ano, antiga 8ª série do ensino fundamental, foi a seguinte: “Nos últimos 30 dias, com que frequência algum dos seus colegas de escola te esculacharam, zoaram, mangaram, intimidaram ou caçoaram tanto que você ficou magoado/incomodado/aborrecido?” (IBGE, 2009, p. 41). A maioria dos estudantes que participaram da PeNSE (69,2%) afirmaram que não sofreram bullying naquele espaço de tempo. O percentual de 25,4% dos pesquisados responderam que foram vítimas desse tipo de violência, raramente ou às vezes, e 5,4% afirmaram ter sofrido bullying na maior parte das vezes ou sempre. Somando as porcentagens dos que sofreram algum tipo de violência por parte dos colegas raramente ou às vezes com a porcentagem dos que foram vítimas na maior parte das vezes ou sempre totaliza 30,8% dos pesquisados, ou seja, quase 1/3 dos estudantes brasileiros sofreram violência no interior das escolas no espaço de um mês. O espaço de tempo considerado nessa pesquisa é curto se considerarmos o argumento de Silva (2010, p. 151) com base em Olweus:

para ser considerado bullying é necessário que o comportamento agressivo apresente natureza repetitiva e ocorra em um contexto de desequilíbrio de poder. Segundo Olweus, as ações são qualificadas como repetitivas quando os ataques são desferidos contra a mesma vítima, pelo menos duas ou mais vezes ao longo do ano letivo.

Analisando-se as opções de respostas apresentadas para a pergunta é possível concluir que os estudantes que afirmaram ter sofrido agressões na maior parte do tempo ou sempre foram vítimas de bullying. As outras duas opções não permitem chegar a esta conclusão. Porém, mesmo considerando somente essa opção, o número de estudantes vitimados é expressivo. A porcentagem de estudantes que se sentem magoados, incomodados, aborrecidos com o comportamento dos colegas não pode ser considerada baixa, pois a escola deve propiciar condições para que todos possam se desenvolver com segurança, e a pesquisa aponta que pelo menos 5,4% dos estudantes têm este direito negado.

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Bullying: Quando a Brincadeira vira Violência

Quando realizada a análise dos dados por capital, as três capitais com maiores frequências de escolares que declararam ter sofrido esse tipo de violência alguma vez nos últimos 30 dias foram o Distrito Federal com (35,6%) seguido por Belo Horizonte com (35,3%) e Curitiba com (35,2 %). As três capitais estão situadas em estados com boa condição social e econômica e lideram o ranking no que se refere ao desrespeito e à violência contra os colegas. Ao considerar as taxas relativas aos estudantes que afirmaram que na maioria das vezes ou sempre sofriam esse tipo de agressão, a situação se modifica. Belo Horizonte (7,1%) é a capital que lidera a lista nesse quesito, seguida pelo Distrito Federal (6,6%) e Boa Vista (6,6%). Curitiba e São Paulo aparecem na sequência (6,1%).

A pesquisa confirmou as informações de Lopes Neto (2005) no que se refere às diferenças sobre a prática de bullying por sexo. Dados da PeNSE apontam que este tipo de comportamento é mais frequente entre os estudantes “do sexo masculino (32,6%) do que entre os escolares do sexo feminino (28,3%)” (IBGE, 2009, p. 41). Carvalho (2006) argumenta que as meninas se adaptam mais facilmente ao oficio de aluno fato que pode estar influenciando nos números relativos ao comportamento de bullying.

A PeNSE pesquisou ainda se havia diferença entre os percentuais de incidência de bullying em escolas públicas e privadas e constatou que este tipo de comportamento é mais frequente em escolas privadas (35,9%) do que em escolas públicas (29,5%).

Hermann, Nunes e Amorim (2009) desenvolveram uma pesquisa com o objetivo de avaliar a incidência do bullying em escolas públicas e particulares na cidade de Curitiba, estado do Paraná. Os resultados desta pesquisa mostram que a maioria dos estudantes pesquisados (66%) teve algum envolvimento em situação de bullying, dos quais 56% presenciaram as ações, 25% foram vítimas e 14% foram autores. Segundo os pesquisadores “a agressão mais utilizada, de acordo com as testemunhas é ‘uso de nomes ofensivos’ e as razões alegadas pelos autores foram ‘vingança’ (39%) e ‘reação à provocação’ (33%), predominando entre os mesmos sentimentos como ‘raiva’ (47%) e ‘desprezo’ (25%)” (2009, p. 3648). Este resultado corrobora o argumento de Silva (2010) quando ela afirma que os autores de bullying tendem a sentir desprezo e falta de apego ao ser humano.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

Os referidos autores constataram ainda que as ações de bullying aconteceram, em sua maior parte, “no recreio, momento em que a supervisão do adulto é reduzida, sendo realizados principalmente em grupo e a atitude predominante das testemunhas foi ‘pedir para parar’”. Este é um momento no qual os estudantes sentem-se mais livres e à vontade para se expressar, fato que pode justificar a incidência desse tipo de atitude.

Os números desta pesquisa convergem para os resultados encontrados pelo IBGE na PeNSE 2009. Embora os formatos das duas pesquisas sejam diferentes, os resultados se aproximam.

Mesmo que a maioria dos pesquisados relatasse que sua participação nas ações tenha sido como testemunhas, não se pode esquecer que “o simples testemunho destes atos já é suficiente para causar descontentamento com a escola e comprometimento do desenvolvimento acadêmico e social” (HERMANN et. al., 2009, p. 3648). Sendo assim, a preocupação não deve ser apenas com as vítimas, mas com todos os envolvidos na ação de bullying.

Números semelhantes aos encontrados no Brasil são encontrados em outros países. Carvalhosa (2007, p. 1-2) argumenta que em Portugal as porcentagens de estudantes entre 11 e 16 anos que se envolveram em ações de bullying em 1998, era de 57,5%. Destes, 10,2% eram agressores, 21,4% eram vítimas e 25,9% eram simultaneamente vítimas e agressores. Os números permaneceram quase inalterados em 2004, 58,7% dos estudantes estiveram envolvidos em comportamentos de bullying. Sendo que 9,4% se definiram como agressores, 22,1% como vítimas e 27,2% tanto vítimas quanto como agressores.

Considerando os números acima apresentados percebe-se que as manifestações de violência escolar são comuns nas escolas, tanto no Brasil quanto no exterior. Torna-se importante refletir sobre o que está acontecendo com os jovens da nossa sociedade na qual alguns têm uma visão equivocada de que “os problemas podem ser resolvidos com violência ou com a anulação moral dos mais fracos” (SILVA, 2010, p. 156), bem como o que se passa com outros estudantes que têm autoestima tão baixa a ponto de aceitarem a submissão e humilhação dos colegas e, algumas vezes, se considerarem merecedores destas. Em que pontos estamos falhando como pais, educadores, como sociedade como um todo? Onde está ocorrendo a distorção de valores que faz com que uns se sintam superiores a outros e pensem ter direito de julgar os demais como inferiores?

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Bullying: Quando a Brincadeira vira Violência

O qUe FazeR

Universitários criam “competição” na qual pulam sobre estudantes obesas. Mais de 50 rapazes fizeram parte da agressão contra as meninas, que ocorreu em jogos entre os campi.

Um grupo de alunos da Universidade Estadual Paulista, uma das mais importantes do país, organizou uma “competição”, batizada de “Rodeio das Gordas”, cujo objetivo era agarrar suas colegas, de preferências as obesas, e tentar simular um rodeio ficando o maior tempo possível sobre a presa. A agressão ocorreu no InterUnesp 2010, jogos universitários realizados em Araraquara, de 10 a 13 de outubro.

Roberto Negrini, estudante do campus de Assis, um dos organizadores do “rodeio das gordas” e criador da comunidade do Orkut sobre o tema, diz que a prática era “só uma brincadeira”. Segundo ele, mais de 50 rapazes de diversos campi participavam. Conta que, primeiro, o jovem se aproximava da menina, jogando conversa fora – “onde você estuda?”, entre outras perguntas típicas de paquera.

Em seguida, começava a agressão. “O rodeio consistia em pegar as garotas mais gordas que circulavam nas festas e agarrá-las como fazem os peões nas arenas”, relata Mayara Curcio, 20, aluna do quarto ano de psicologia, que participa do grupo de 60 estudantes que se mobilizaram contra o bullying.

As vítimas não querem falar. “Uma das meninas está tão abalada que não teve condições de voltar à faculdade. Teme ficar conhecida como “a gorda do rodeio’”, afirma a advogada Fernanda Nigro, que acompanhou, na última terça-feira, uma manifestação de repúdio.25

O tema bullying está em pauta devido ao número crescente de casos divulgados pela mídia e a violência de tais agressões. Tornou-se um tema de extrema relevância e tem despertado a atenção dos governos26, educadores, familiares e demais setores da sociedade. A diminuição dos casos e a minimização das consequências das agressões

25 Notícia veiculada no site http://somosmulheresreais.wordpress.com/2010/10/27/rodeio-de-gordas-na-unesp-revela-que-o-preconceito-ainda-e-grande/ no dia 27/20/2010. Acesso em 02 nov. 2010.26 Alguns governos estaduais e municipais têm aprovado leis que obrigam o desenvolvimento de ações de combate ao bullying nas escolas. Este é o caso do Estado de Santa Catarina (http://www.alesc.sc.gov.br/escola/docs/cartilhabullying.pdf) e de Goiás (http://www.jusbrasil.com.br/noticias/2385486/lei-de-combate-ao-bullying-e-sancionada-pelo-governador-do-estado_ http://www.jusbrasil.com.br/noticias/2385486/lei-de-combate-ao-bullying-e-sancionada-pelo-governador-do-estado) bem como, do município de Curitiba, terceira capital com maior incidência de bullying no Brasil (http://www.rpctv.com.br/parana-tv/2010/10/combate-ao-bullying-agora-e-lei/).

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

na vida dos estudantes são objetivo daquelas instituições. Lopes Neto (2005, p. S169) argumenta que

o fenômeno bullying é complexo e de difícil solução, portanto é preciso que o trabalho seja continuado. As ações são relativamente simples e de baixo custo, podendo ser incluídas no cotidiano das escolas, inserindo-as como temas transversais em todos os momentos da vida escolar.

A primeira atitude a se tomar é reconhecer que o problema existe e que está presente, em maior ou menor grau, em todas as escolas, públicas e privadas, ricas ou pobres, de bairros nobres ou da periferia. O bullying não discrimina nenhuma escola ou realidade. Somente a partir deste reconhecimento é que se vislumbrará a necessidade e a possibilidade de desenvolver ações de enfrentamento ao fenômeno. Silva (2010, p. 118) argumenta que uma boa escola “não é aquela onde o bullying não ocorra, mas sim, aquela que, quando ele existir, sabe enfrentá-lo com coragem e determinação”.

Ações de combate ao bullying são essenciais para que os estudantes tenham condições de se desenvolverem plenamente e possam viver em sociedade de forma saudável e segura. Estas ações não devem ser pontuais, somente quando acontece um caso. Devem iniciar desde cedo e envolver familiares, profissionais da educação e a comunidade local. Ações realizadas após a ocorrência de um fato dificilmente não serão baseadas em punição aos agressores, que, como vimos anteriormente, também sofrem com as consequências dessas ações e precisam de ajuda. A punição nem sempre é a melhor medida, mas muitas vezes é inevitável. Destacamos que os esforços devem ser impressos preferencialmente em ações preventivas. Diminuir a incidência de agressões é melhor para todas as pessoas que convivem no espaço escolar.

O fato acontecido na Unesp resultou na mobilização de parte do corpo discente, e se esta mobilização for bem conduzida pode resultar em ações efetivas de combate ao bullying na universidade, ações estas tão necessárias nos dias atuais. Porém resta o questionamento sobre as razões pelas quais essa mobilização não iniciou anteriormente. Qualquer medida tomada agora não vai eliminar o trauma das alunas que tiveram sua dignidade violentada pelos colegas. É evidente que qualquer mobilização nesse sentido é positiva e contribuirá para que outros casos sejam evitados. Entretanto, destacamos a necessidade de se desenvolver ações

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Bullying: Quando a Brincadeira vira Violência

preventivas, tanto em escolas de educação infantil, ensino fundamental, ensino médio e universidade.

Silva (2010, p. 63) argumenta que nos dias atuais

é preciso dar destaque à escola como um ambiente no qual as relações interpessoais são fundamentais para o crescimento dos jovens, contribuindo para educá-los para a vida adulta por meio de estímulos que ultrapassam as avaliações acadêmicas tradicionais (testes e provas).

O papel da escola é fundamental nessa tarefa. Por ser o principal espaço de manifestações dessas ações violentas, para alguns alunos, “a escola transforma-se em um complexo opressivo, no qual se sentem inadequados, constantemente criticados e pressionados a ser alguém que não conseguem ser” (BEAUDOIN e TAYLOR, 2006, p. 75). As autoras argumentam que, diante de uma cena de agressão, o adulto deve manter a calma e ouvir todos os envolvidos sem pré-julgar nenhuma das partes. Muitas vezes a cena não reflete o que de fato ocorreu. O pré-julgamento impede que se visualizem os múltiplos olhares sobre a questão. Muitas vezes, uma reação exagerada e inapropriada faz com que os estudantes tenham receio de se manifestar diante de uma agressão e contribui para o silenciamento dos envolvidos. Pode ser tão danosa quanto a falta de reação. As referidas autoras argumentam que familiares e educadores devem estabelecer relação de confiança com os estudantes a fim de facilitar a aproximação e as ações de enfrentamento ao bullying.

Lopes Neto em entrevista à repórter Daniela Tófoli do Jornal Folha de São Paulo (2006) argumenta que é fundamental estar atentos para perceber como determinada brincadeira repercute no outro. “Se uma criança ganha um apelido de que não gosta muito, mas o encara sem traumas, não há porque se preocupar”, entretanto, complementa “se ela muda seu comportamento, reclama para ir à escola, se isola no recreio e deixa de ser convidada para atividades, é preciso intervir. Para começar, uma boa conversa.” O diálogo é sem dúvida a porta de entrada para o enfrentamento aos casos de bullying. Diálogo entre pais e filhos, professores e alunos, pais e professores, enfim, entre todos os envolvidos na tarefa de educar.

Outro ponto importante a se reforçar é a necessidade de se saber definir o que é e o que não é bullying. Avaliar uma brincadeira como bullying pode dificultar a interação entre os estudantes limitando seu desenvolvimento e a vivência de

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

experiências que são fundamentais para a construção da cidadania. Por outro lado, ao se desconsiderar ou subestimar as ações de bullying pode-se estar permitindo que a violência se propague e resulte em danos como foi visto anteriormente.

CONsIDeRaÇões FINaIs

Como já foi dito, a violência não é um fenômeno novo nas escolas, contudo, as formas com que ela vem se manifestando, a frequência e a intensidade tem se revelado de forma muitas vezes alarmante. Há todo um contexto, social, econômico, histórico que ajuda a situar e compreender que os acontecimentos não estão ocorrendo de forma isolada ou desconectada da realidade social. Segundo Abramovay (2002, p. 27) “É justamente por sua complexidade e multiplicidade de facetas que a compreensão do fenômeno das violências nas escolas impõe o desafio de uma ótica transdisciplinar, multidimensional e pluricausal”. É fundamental estar atentos para todos os fatores que convergem para que uma atitude de violência e agressão ocorra. Não desconsiderar e nem desvalorizar nenhum deles e nenhuma queixa de estudantes.

Quando a questão é o bullying, o desafio é captar essa complexidade e não ficar somente no campo individual; corre-se o risco de focar somente nos envolvidos numa cultura de vitimização e culpabilização e perder um ponto de vista mais abrangente que vai envolver todo o fazer da escola e suas consequências. É preciso dar atendimento e apoio tanto às vítimas quanto aos agressores sem, contudo, esquecer que a escola pode contribuir para manutenção das violências de que ela própria é vítima.

Durante este capítulo apresentou-se histórias reais de bullying. Casos muitas vezes dramáticos que ilustraram o texto, que ganharam destaque na mídia pela violência ou frequência com que ocorreram. Esta apresentação teve por objetivo evidenciar que esta é uma realidade nas escolas não só no Brasil como no mundo. Convém salientar que os números sobre o bullying não são precisos devido à falta de registro sobre a ocorrência dos casos. Muitas vezes as famílias e as escolas, de modo especial as particulares, escondem o fato para não manchar a imagem de seus filhos e da instituição. Entretanto, a divulgação destes casos é que fará com que as autoridades

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Bullying: Quando a Brincadeira vira Violência

tomem providências no sentido de criar ações e políticas que, ao minimizar as ocorrências, possam proteger tanto os estudantes quanto as escolas e a sociedade.

Destaca-se que ações governamentais estão estabelecendo, por meio de leis, a obrigatoriedade de ações de combate ao bullying. Entretanto as ações também precisam ser implementadas pela sociedade e pela comunidade escolar. A necessidade de se estabelecer uma lei para que alguma coisa aconteça significa dizer que a sociedade está falhando em suas obrigações e, para mudar isso, fez-se necessária a aprovação de lei. Discutir e conscientizar os estudantes sobre os danos que as agressões podem causar em todos os envolvidos em casos de bullying é importante neste processo, e não é necessário lei para se perceber esta importância.

Salienta-se a necessidade de preparação dos professores, diretores, pedagogos, enfim, equipe gestora das escolas para saberem identificar e abordar a temática de forma eficiente e preventiva.

Em conversa com professores, manifestou-se a preocupação com o fato de que muitas vezes o próprio professor desencadeia ou acentua os casos de bullying. Este fato ocorre quando o professor ri das “brincadeiras” e dos apelidos que os alunos colocam nos colegas ou, em alguns casos, ele mesmo é quem apelida o estudante. Pelos relatos dos professores, este fato é comum nas escolas paranaenses, e provavelmente se repete em outros estados também. Destaca-se a necessidade da conscientização desses profissionais sobre as consequências que essas atitudes podem ter na vida dos estudantes. Torna-se imprescindível envolvê-los nas ações de combate ao bullying, transformá-los em parceiros nesta tarefa.

As ações de enfrentamento ao bullying têm mais chance de apresentar bons resultados quando forem desenvolvidas em conjunto. É imprescindível o envolvimento de todos, de modo especial, dos próprios alunos no combate a esse mal que assola nossas escolas. A união da escola com a família, a comunidade e, principalmente, com os estudantes, pode ser o caminho para que este quadro seja revertido.

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MENINOS E MENINAS NUM PROJETO DE RECUPERAÇÃO PARALELA1

Fábio Hoffmann PereiraMarília Pinto de Carvalho

Este capítulo resulta de uma pesquisa (PEREIRA, 2008) cujo objetivo consistiu em analisar, segundo as relações de gênero, os motivos dos encaminhamentos de alunos e alunas a um projeto de recuperação paralela desenvolvido na rede municipal de educação de Embu, na região metropolitana de São Paulo. Buscamos verificar se as dificuldades de aprendizagem percebidas pelas professoras nos meninos seriam iguais àquelas percebidas nas meninas, na medida em que eram indicados mais do que o dobro de crianças de sexo masculino às atividades de recuperação.

Em Embu, a implementação da progressão continuada, forma de organização do ensino fundamental que se difundiu mais intensamente no país a partir da Lei 9394/96, tem se baseado em ações bem fundamentadas e vem mostrando resultados

1 Uma versão anterior deste texto foi publicada na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 90, n. 226, p. 673-694, set./dez. 2009.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

animadores, como pode ser verificado em publicações internas (EMBU, 2002) e na mídia (CAVALCANTE, 2004), além da premiação de seus programas educativos (SANTOS, 2005). Dentre essas políticas, a Secretaria Municipal de Educação do município implantou em 2002, o Projeto Letras e Livros, um programa de recuperação paralela.

Um dos autores foi professor e coordenador pedagógico em escolas de Embu e, desde o início de sua atuação, vinha observando maior quantidade de meninos do que de meninas atendidos por este projeto: em 2002, quase 70% eram do sexo masculino e essa proporção se repete desde então. O fracasso escolar mais acentuado entre meninos, expresso tanto na defasagem série-idade, quanto em taxas de evasão e repetência, vem sendo constatado no Brasil há algumas décadas (ROSEMBERG, 2001; FERRARO, 2007) e foi discutido em alguns trabalhos (SILVA, 1999; CARVALHO, 2001, 2003 e 2004; BRITO, 2004; DAL IGNA, 2005). A originalidade deste estudo é o enfoque num programa de recuperação paralela bem sucedido e não em processos de produção de trajetórias escolares de fracasso. Isso torna ainda mais intrigante a predominância de meninos entre os indicados para atendimento, pois não se pode atribuí-la à precariedade do trabalho ou simplesmente a problemas de formação das professoras regentes de classe ou atuantes no projeto.

O conceito de gênero foi tomado nesta pesquisa como um sistema de relações não apenas entre masculino e feminino, mas entre diferentes formas de masculinidades e feminilidades (SCOTT, 1995; NICHOLSON, 2000). Questionamos, seguindo outros estudos (BRITO, 2004; CONNELL, 2000; JACKSON, 1998; CARVALHO, 2003 e 2004), a ideia da vitimização dos meninos, que fracassariam na escola por esta ser uma instituição feminizada, dominada pelas profissionais que nela atuam. Esta ideia se baseia em características que seriam inerentes a uma “natureza masculina”, marcada, por exemplo, pela necessidade de movimentar-se, de ser um indivíduo ativo, o que na escola seria visto como falta de compromisso ou bagunça, sendo mais aceitos comportamentos associados à “natureza feminina”, como introspecção, obediência e silêncio.

Além disso, consideramos que, quando se tenta explicar o desempenho escolar sob a ótica das relações de gênero, esta categoria não pode ser a única levada em conta, devendo ser analisadas suas inter-relações, por exemplo, com classe, raça

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Meninos e Meninas num Projeto de Recuperação Paralela

e geração. Contudo, acreditamos que, ao centrarmos nossa ênfase nas diferenças e semelhanças nas percepções das professoras sobre as dificuldades de aprendizagem de meninos e meninas, foi possível também uma análise tanto da diversidade quanto do que há em comum nestes processos de encaminhamento, assim evitando uma visão bipolar entre masculino e feminino.

A hipótese inicial era de que os meninos encaminhados teriam sua dificuldade atribuída pelas professoras ao fato de não contarem com acompanhamento familiar nos estudos, por andarem em “má companhia” e, por isso, serem percebidos como indisciplinados – causas externas à sua personalidade, ao seu intelecto ou cognição. Com as meninas encaminhadas acreditávamos que aconteceria o inverso e as atendidas seriam aquelas percebidas com algum tipo de deficiência, consideradas apáticas e tímidas, ou seja, com dificuldades atribuídas a causas internas a elas, a seu intelecto ou personalidade. Como propõe Michèle Cohen (1998, p. 20), ao discutir o desempenho escolar de meninos na Grã-Bretanha, numa perspectiva histórica,

O bom desempenho de meninos foi atribuído a fatores internos – à natureza do seu intelecto – mas o fracasso deles foi atribuído a algo externo – à pedagogia, aos métodos, aos textos didáticos, aos/às professores/as. A significação completa disto fica clara quando o assunto do discurso é as meninas. No caso delas, o fracasso é atribuído a algo interno – normalmente à natureza do intelecto – e o sucesso delas a algo externo: métodos, professores/as ou condições particulares.2

Uma esCOla e Um pROJeTO bem sUCeDIDOs

A pesquisa de campo centrou-se em uma escola do município de Embu e contou com observações e entrevistas semiestruturadas com os atores envolvidos, principalmente as professoras regentes de classe (que encaminhavam as crianças à recuperação paralela) e professoras atuantes no Projeto Letras e Livros.

A Estância Turística de Embu tinha, em 2004, 223.581 habitantes. Pode ser caracterizada como cidade-dormitório e alguns dos bairros enfrentam problemas de saneamento, ocupação irregular e falta de serviços públicos. O Jardim Catarina, onde

2 Nossa tradução.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

fica a Escola Municipal Helena Petri3, na qual a pesquisa foi realizada, tem a maioria dessas deficiências e fica próximo ao centro do município.

A rede municipal de ensino era formada por 36 escolas de educação básica, nas quais poderia haver apenas educação infantil ou também o primeiro segmento do ensino fundamental. De acordo com documento distribuído para os profissionais da Educação quando aquela gestão municipal tomou posse, em 2001, a política adotada pelos dirigentes municipais caracterizava-se pela “inclusão social e o combate à miséria” (EMBU, 2001, p.1). Nas diretrizes definidas, as expressões “democratizar o conhecimento”, “permanência do aluno na escola” e “educação com qualidade social” estavam sempre presentes. Diversos programas e ações concretizavam essas proposições gerais, entre elas o Projeto Letras e Livros.

Inspirado em ação com o mesmo nome desenvolvida desde meados da década de 1990 na Escola de Aplicação da Universidade de São Paulo, este projeto foi iniciado no ano de 2002 em Embu. Sua gênese na Escola de Aplicação é explicada pela mentora e pioneira na sua implantação e coordenação, professora Heloysa Dantas:

Tratava-se de alguns casos de crianças multi-repetentes e ainda analfabetas. Comecei um atendimento individual que era feito na biblioteca da escola e consistia basicamente em leitura cooperativa. Eu escolhia livros de pequeno nível de dificuldade e lia com e para as crianças, que eram retiradas da sala de aula durante o horário normal. Trabalhava com elas de uma em uma, convidando a segunda ao devolver a primeira (DANTAS, 2004, p. 8).

No ano de implantação no Projeto em Embu (2002) foram atendidos apenas alunos e alunas do quarto ano do ensino fundamental, “pela razão óbvia da urgência” (DANTAS, 2004, p. 9), sendo o atendimento progressivamente ampliado para as séries anteriores. Os resultados do ano de 2005 eram bastante otimistas: no mês de março, 61,82% de todos os alunos e alunas que foram encaminhados/as para atendimento estavam abaixo da chamada “meta mínima” para seu ano e no mês de novembro apenas 24,5% ainda não haviam atingido esta meta.

3 A fim de garantir o sigilo e a integridade ética da unidade escolar que nos acolheu, bem como das pessoas que nos auxiliaram neste trabalho, os nomes da escola, dos bairros e das pessoas envolvidas na pesquisa de campo são fictícios.

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Meninos e Meninas num Projeto de Recuperação Paralela

A pesquisa foi realizada no ano letivo de 20064. Selecionamos uma escola na qual o Projeto Letras e Livros fosse desenvolvido com boas condições materiais e humanas e, além disso, estivesse aberta a receber um pesquisador. A coordenadora geral do Projeto indicou-nos a Escola Municipal Helena Petri, dizendo que se tratava de um “grupo bom de professores” e também de uma escola em que o Projeto estava sendo aplicado desde 2002, com grande proximidade da proposta feita pela coordenação geral, mostrando um dos melhores resultados da rede e se mostrando referência para as demais escolas.

No ano de 2005, foram encaminhados para atendimentos um total de 136 crianças, das quais metade não conhecia todas as letras nem escrevia convencionalmente, segundo as professoras. Ao final do ano letivo, apenas 17,6% das crianças atendidas na escola não sabiam ler e escrever convencionalmente.

A pesquisa teve como foco as classes do segundo e terceiro ano vespertinos. Neste grupo, em 2006, 64,5% dos encaminhamentos feitos ao Projeto eram meninos e 35,5% meninas. As professoras regentes das turmas pesquisadas possuíam ou estavam concluindo a formação em Pedagogia, exceto Gislaine, que estava concluindo graduação em área alheia à Educação, e Mariângela, com licenciatura em Letras. Seu tempo de experiência em sala de aula era bastante variado, oscilando entre 13 e três anos, assim como a experiência com classes de alfabetização, revelando percursos de vida e profissionais bastante diversos.

O Nó Da avalIaÇÃO: CRITéRIOs x INsTRUmeNTOs x meDIDas

Na rede municipal de ensino de Embu o desempenho escolar era medido por meio de três conceitos: “PS” para um desempenho plenamente satisfatório, “S” para satisfatório ou “NS” para não satisfatório. A atribuição de conceitos não era o único meio de mostrar às famílias o desempenho das crianças, pois a cada bimestre as professoras deviam escrever relatórios sobre a aprendizagem, com os avanços de

4 Naquele momento o Ensino Fundamental na rede municipal em questão tinha duração de oito anos, com início aos 7 anos de idade.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

todos os alunos e alunas. Durante a reunião de pais, os responsáveis pelas crianças assinavam esta Ficha de Avaliação5. Além disso, cada professora tinha também um Diário de Classe, no qual havia um resumo geral dos conteúdos e temas trabalhados coletivamente.

De acordo com as entrevistas, a avaliação era feita usando diferentes instrumentos, variando entre atividade escrita individual, do tipo prova, até acompanhamentos individuais cotidianos. O modo como era feito esse “acompanhamento individual” ficou pouco claro nas falas:

Eu não fico muito apegada a papel, eu não gosto muito, até porque eu não sou muito organizada com isso. Então eu passo muito entre eles, faço muita escrita espontânea, faço escrita dirigida. Eu avalio muito o caderno deles, como eles estão fazendo, como eles estão desenvolvendo. [...] Avalio pela participação mesmo, e de vez em quando eu até faço uma avaliaçãozinha com eles, geralmente é uma escrita livre, de frases, ou produção de textos, geralmente. Mas avaliação mesmo, eu faço no dia-a-dia. (Professora Mariluci, entrevista, 22/08/2006)

Da mesma forma, a atribuição de conceitos era bastante subjetiva e variava de professora para professora. Gislaine, por exemplo, dizia não considerar se o aluno acompanhava os conteúdos esperados para aquela “série” e atribuíra “NS” apenas a dois alunos, João e Junior, que segundo ela “não fazem nada, nem interagem” com outras crianças ou com a professora. Já Mariângela disse fazer uma atividade a cada quinze dias, a qual os alunos deviam entregar; ela corrigia e guardava para compor a avaliação.

Parece haver uma contradição entre a fala e a prática das professoras, uma vez que diziam não se apegar ao papel, não gostar de aplicar provas, mas por outro lado davam valor, ao que pudemos perceber, ao caderno, que é um meio de registro escrito. Parece haver certa confusão entre o que seria registro: se aquele que a professora pode fazer cotidianamente sobre a realização das tarefas e lições ou se o registro do aluno seria apenas considerado no contexto de uma atividade silenciosa e sem comunicação com as demais crianças. O registro de produções (do tipo prova, ditados, escritas de palavras, frases ou textos) dos alunos parecia ser muito

5 Estes relatórios, entretanto, não foram analisados nesta pesquisa, uma vez que as falas das professoras mostraram-se muito mais ricas em detalhes. O espaço disponível para escrever sobre os alunos muitas vezes não era suficiente para um relatório minucioso.

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Meninos e Meninas num Projeto de Recuperação Paralela

valorizado como avaliação pelas professoras. Mas percebe-se uma tensão, já que para elas o caderno e a realização das tarefas cotidianas eram também muito importantes. Se a discussão sobre o que é avaliação e a que serve é recorrente na literatura da área da Educação6, os escritos atuais sobre o tema refletem sobre seu poder de formação, replanejamento da ação pedagógica e contra a avaliação repressora e que classifica, como mera medição do nível de conhecimento.

A diretriz da rede municipal para que fossem feitas as indicações ao atendimento no Projeto Letras e Livros era que as professoras encaminhassem “quem as preocupa em sala de aula”, segundo afirmou a professora Heloysa Dantas, durante o primeiro encontro de formação das professoras atuantes no Projeto em 2006. Ora, essa orientação pode ter dado margem a diversos entendimentos dentro das escolas. Por exemplo, para a professora Gislaine, um aluno ou aluna “que preocupa” seria aquele ou aquela que não interage com outras pessoas nem sequer copia a lição da lousa. Já para a professora Mariluci, a preocupação seriam as crianças que não conhecem as letras e não sabem escrever o próprio nome sozinhas; e para Rosana, a preocupação seria com a autoestima.

Para tentar corrigir essa diversidade de ideias e conter o encaminhamento indiscriminado de crianças para atendimento, a Secretaria Municipal de Educação divulgou um texto curto em 2003 (DANTAS, 2003), que procurava esclarecer quem seria o aluno ou aluna a ser encaminhado/a para atendimento no Projeto: aqueles/as que estivessem abaixo da meta mínima estabelecida para seu ano/ciclo. Durante o trabalho de campo, entretanto, não ficou explícito em nenhum momento se as professoras tinham esses critérios e essas metas mínimas claros e se os utilizavam ao avaliar as crianças.

Em suma, a avaliação, de acordo com a maioria das professoras, era realizada de forma “diária”, por meio de atividades de escrita dirigidas e elas também procuravam estar “atentas a cada avanço ou dificuldade” na aprendizagem dos alunos. Este tipo de avaliação, como já registramos em estudo anterior, permite a “erupção de valores, de subjetividade, afetividade” (CARVALHO, 2001, p. 572), e conduz a que se leve em conta não só a aprendizagem, mas também, ou principalmente, elementos alheios a ela.

6 Sobre a avaliação da aprendizagem escolar, ver, por exemplo, os trabalhos de Jussara Hoffmann (2000; 2006) e Cipriano C. Luckesi (2003), que são considerados expoentes sobre o tema no Brasil.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

Quanto aos conceitos, os alunos atendidos pelo Projeto Letras e Livros tinham registros que oscilavam entre o S e o NS, de forma muito variável entre as professoras. Para algumas, mesmo frequentando o projeto e apresentando avanços na aprendizagem, a criança continuava com conceito não-satisfatório, pois era comparada ao restante da classe, enquanto outras encaminhavam alunos e alunas com conceito satisfatório.

Das 62 crianças que compuseram o corpo de análise desta pesquisa, 58 ainda não sabiam escrever o próprio nome completo nem o alfabeto (fazendo correspondência entre a letra e seu fonema) no começo do ano letivo. As crianças que sabiam mais do que nome e as letras do alfabeto eram quatro meninos, todos do terceiro ano e que já haviam passado pelo menos um ano por atendimentos no Projeto Letras e Livros, mas ainda não escreviam convencionalmente no início de 2006.

meNINOs e meNINas NO pROJeTO

A partir das anotações no caderno de campo sobre as conversas e discussões nos conselhos de classe e da transcrição das entrevistas, foi possível criar um perfil de cada aluno e aluna que participava do projeto, com todas as falas a seu respeito registradas no decorrer do ano letivo de 2006. De posse de 62 fichas, buscamos semelhanças e diferenças nas falas, evidenciando temas que emergiram a partir do que as professoras diziam. Algumas dificuldades tinham maior frequência nas falas das professoras, como aquelas relacionadas ao ritmo de aprendizagem dos alunos e alunas, à falta de maturidade para o aprendizado, além de dificuldades de ordem familiar, social ou econômica.

A análise das semelhanças e diferenças nestas dificuldades percebidas pelas professoras, de forma articulada ao sexo das crianças, não foi tarefa simples. Um primeiro exercício foi realizado a partir da separação das fichas individuais em dois grupos conforme o sexo do aluno. Porém, esta divisão mostrou-se ineficiente devido à diversidade de dificuldades percebidas e mencionadas pelas professoras e à inexistência de um padrão polarizado, com todos os tipos de problemas presentes

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Meninos e Meninas num Projeto de Recuperação Paralela

nas falas tanto sobre meninos quanto sobre meninas. Neste exercício de análise começamos a questionar a hipótese inicial de que as dificuldades das meninas seriam atribuídas a fatores intrínsecos à personalidade do indivíduo enquanto as dificuldades dos meninos seriam extrínsecos a eles, e a perceber o quanto essa hipótese reproduzia os binarismos que buscávamos evitar.

Em texto sobre o essencialismo de gênero na análise do desempenho escolar, Jackson (1998, p. 83) alerta para o fato de que o “absolutismo de gênero” polariza as vítimas, perpetuando características que seriam naturais e absolutas para cada sexo. Todos os homens, de um lado e todas as mulheres de outro, seriam portadores das mesmas características, o que não se aplica na realidade. Jackson alerta exatamente para a necessidade de evitar estereótipos simplistas, que unificam as vidas do conjunto de homens e meninos. A leitura e análise de nosso material empírico mostraram que eram atribuídos tanto a meninas quanto a meninos quase todos os motivos percebidos pelas professoras como causadores de dificuldade de aprendizagem. Dessa forma, procuramos a partir daí não apenas diferenças entre as falas a respeito de cada sexo, mas também se há dificuldades que podem ser consideradas masculinas ou femininas independentemente de estarem presentes em um aluno ou uma aluna. Também buscamos os conteúdos atribuídos pelas professoras a cada tipo de dificuldade, em articulação ao sexo da criança sobre quem se falava.

Após encaixes e desencaixes, agrupamentos e reagrupamentos as falas das professoras foram classificadas em dois grandes grupos: 1) dificuldades relacionadas à família e às condições econômicas e sociais nas quais algumas crianças viviam; e 2) dificuldades relacionadas à não adaptação ou à não aprendizagem de um “ofício de aluno”.

Uma primeira observação se refere ao número total de explicações que as professoras apresentavam para as dificuldades de meninos e de meninas. As falas a respeito dos meninos eram muito mais ricas em detalhes e busca de explicações do que as falas sobre as meninas7. A quantidade de citações de cada criança em

7 Embora as professoras soubessem que o foco da pesquisa era buscar explicações para a maior presença de meninos na recuperação paralela, não acreditamos que isso possa ter influenciado este resultado, uma vez que ele provém não apenas de entrevistas, mas principalmente de discussões registradas durante os conselhos de classe.

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diferentes temas variava significativamente conforme o sexo do aluno ou aluna. Assim, cinco meninos e cinco meninas tiveram seus nomes citados apenas uma vez, sendo relacionados a um único tipo de dificuldade de aprendizagem; a 12 meninas e nove garotos foram atribuídas duas explicações. Três motivos diferentes são utilizados para explicar as dificuldades de dez alunos e de apenas quatro meninas, enquanto sete meninos e três meninas são percebidos/as como tendo quatro dificuldades diferenciadas. Somente a meninos (oito) são atribuídas cinco explicações diferentes. Podemos concluir que as professoras buscavam mais explicações para as dificuldades de aprendizagem dos meninos, enquanto para as meninas atribuíam motivos mais simples e específicos, talvez indicando que os problemas dos meninos eram alvo de maior preocupação.

Dificuldades de aprendizagem percebidas pelas professoras como sendo causadas por problemas de ordem social ou econômica afetavam sete crianças indicadas para o Projeto Letras e Livros, quatro meninos e três meninas. A análise qualitativa dos dados, no entanto, nos mostra que a dificuldade dos meninos é mais percebida quando demonstram uma linguagem peculiar, diferente daquela valorizada pela escola ou quando precisam trabalhar para ajudar a complementar a renda familiar. As professoras não percebem que a ajuda nas tarefas domésticas seja empecilho para nenhum aluno ou aluna, o que nos mostra que para elas o trabalho infantil perverso é aquele que se exerce em âmbito público. De toda forma, a atribuição de dificuldades de aprendizagem diretamente a situações de pobreza foi uma exceção nas falas das professoras da escola Helena Petri, o que merece ser destacado frente à literatura já existente sobre o tema (PATTO, 1999) e parece revelar um dos resultados das políticas de inclusão escolar e dos cursos de formação em serviço desenvolvidos pela prefeitura do Embu.

As dificuldades percebidas como decorrentes de ausência da família na educação dos filhos foram apontadas numa maioria absoluta de meninos, exceto quando se faz referências à figura da mãe, situação em que o número se iguala entre os sexos. Quando a referência é feita à família, seja por número “excessivo” de pessoas morando na casa, seja pelas dificuldades enfrentadas por irmãos, primos mais velhos e até mesmo pais e tios que estudaram na EM Helena Petri no passado, os meninos são maioria, havendo uma significativa diferença na proporção de meninos e meninas

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Meninos e Meninas num Projeto de Recuperação Paralela

quando se analisam as falas das professoras quanto à permanência de “dificuldade de aprendizagem” na mesma família. Além de revelar uma série de pressupostos e preconceitos contra famílias que não correspondem ao modelo nuclear completo e pressupor certo tipo de acompanhamento da vida escolar nem sempre possível ou entendido da mesma maneira por famílias das camadas populares, as falas nas quais se atribui a dificuldade das crianças a aspectos da vida familiar são muito mais frequentes em relação aos meninos (70% do total de referências a esse motivo), que seriam mais prejudicados quando a família é percebida como ausente do acompanhamento escolar. Portanto, parece que dificuldades de aprendizagem por motivos familiares são mais percebidas pelas professoras em meninos, o que parece indicar a necessidade de novos trabalhos que busquem explicar essa diferenciação.

O “OFíCIO De alUNO”

O maior grupo de dificuldades mencionadas nas falas das professoras eram aquelas relacionadas às posturas e atitudes que os alunos devem saber para se tornarem alunos ideais. Philippe Perrenoud (1995) trabalha com o conceito de ofício de aluno, tratado como um modelo de ator social que vive numa instituição organizada (a escola) segundo algumas regras e rituais aos quais todos, alunos e outros indivíduos, devem se adaptar. Definir este conceito precisamente não seria uma tarefa fácil, tampouco definitiva, uma vez que:

o ofício de aluno não é igual para todos. Das pedagogias tradicionais às pedagogias ativas, os seus contornos variam. Mudam, ainda, de um professor para outro, de acordo com as expectativas de cada um, os métodos, os modos de manejar a classe, a concepção de aprendizagem, de ordem, do trabalho, da cooperação, da avaliação, etc. (PERRENOUD, 1995, p. 201-202).

Sendo assim, o ofício de aluno que buscaremos analisar é aquele valorizado pelas professoras da EM Helena Petri. Suas falas atribuindo a “dificuldade de aprendizagem” dos alunos e alunas a motivos relacionados a seu desajuste frente ao que estamos chamando de ofício de aluno referem-se a 34 meninos e 22 meninas, sobre os quais elas comentavam diferentes aspectos.

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APATIA E PREGUIÇA

Em artigo anterior (CARVALHO, 2001), observamos que as professoras percebiam como apáticos muitos dos seus alunos e alunas com dificuldades de aprendizagem. Entretanto, havia apatias diferentes, com “naturezas diversas, intrinsecamente articuladas a certas características da feminilidade e da masculinidade” (p. 565). Nas falas das professoras da EM Helena Petri, apenas uma aluna foi classificada como apática: Jamile, do segundo ano.

E ela necessita mesmo de um atendimento diferenciado. Ela é muito apática, não tem vontade, não te chama [...]. Ela é muito calada, gente, é uma menina que te olha sempre por baixo. (Professora Daniela, conselho de classe, 04/07/2006)

Coincidentemente seu primo Wellington, também do segundo ano, demonstrava igualmente falta de vontade em realizar as tarefas escolares.

Aí, eu tenho o Wellington [...]. Ele é meio preguiçoso [risos], sabe. Deixa as atividades incompletas, não quer terminar, quer deixar para fazer em casa. Pergunta se pode fazer no dia seguinte. (Professora Patrícia, entrevista, 05/09/2006)

Parece que ambos os alunos, que estudam em turmas diferentes, apresentam uma dificuldade semelhante: a falta de vontade em fazer ou terminar a lição. Jamile é percebida como apática, enquanto Wellington é tido como preguiçoso. Essa diferença no uso dos termos para descrever comportamentos parecidos revela seu conteúdo quando se vê que a apatia da menina Jamile é correlacionada à sua submissão, uma vez que ela sempre estaria de cabeça baixa, enquanto o menino Wellington manteria um bom relacionamento com a professora e teria iniciativa e intimidade suficiente com ela para sugerir terminar a lição em outro momento. Assim, podemos falar que estas “diferentes apatias” referem-se a percepções de comportamentos que podem ser semelhantes, mas ocasionados por motivos diferentes. A apatia e a preguiça referem-se a posturas parecidas diante das tarefas propostas pelas professoras, com o diferencial de que a apatia estaria ligada à submissão feminina, enquanto a preguiça seria considerada em certa medida tolerável, desde que o menino estivesse disposto a realizar a tarefa em outro momento.

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Meninos e Meninas num Projeto de Recuperação Paralela

DESORGANIZAÇÃO

Outro aspecto que as professoras percebem como dificuldade de aprendizagem é o da desorganização. Escrever no caderno pulando páginas, abrir o caderno de ponta-cabeça, não conseguir localizar-se utilizando a paginação dos livros, não ter hábito de consultar a grade semanal de aulas para saber qual livro levar à escola são alguns exemplos. A desorganização é uma dificuldade percebida em três meninos e uma menina. O caso do menino Armando, do segundo ano, é exemplar no que diz respeito ao uso do caderno:

[...] e melhorou até no registro do caderno dele. Ele escrevia com uma letrona. Agora, começou a escrever o nome. Melhorou a letra no caderno, está mais organizado, porque antes ele não conseguia sair do nome da escola. Ele avançou nesse sentido. (Professora Patrícia, entrevista, 05/09/2006)

A menina Jeane, também do segundo ano, não se organizava sequer para copiar a lição da lousa e isso a prejudicaria no uso do caderno:

E ela comia muita letra, copiava tudo pela metade. Hoje ela sabe usar o caderno, mas em termos de aprendizagem é muito fraquinha. (Professora Patrícia, entrevista em 05/09/2006)

A cópia desorganizada da lousa é uma queixa frequente de professoras dos anos iniciais do ensino fundamental. Aprender a copiar a lição do quadro é tarefa complexa: exige que se prenda a atenção a um ponto muitas vezes distante mais de dois metros da criança, ponto este em posição vertical que deve ser transcrito no caderno na horizontal, em tamanho muito mais reduzido, fazendo-o caber entre duas linhas da pauta. A desorganização do material e, principalmente, do caderno parecem estreitamente associadas à masculinidade, como já apontamos também em estudo anterior (CARVALHO, 2001), já que o capricho seria um atributo feminino.

INDISCIPLINA

A tensão dos meninos para equilibrar-se dentro de um comportamento considerado adequado pela escola e afirmar sua masculinidade também pode ser percebida nas falas sobre alguns meninos classificados como indisciplinados:

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Esse Armando deu muito, muito trabalho. Super indisciplinado. Sabe, não tem limite para nada, nada, nada, nada. Agora ele já melhorou o comportamento, mas ele ainda dá trabalho. Ele sai muito do lugar, para brincar, para conversar... (Professora Patrícia, entrevista, 05/09/2006)

Cármen A. Duarte da Silva e colaboradores (1999) num estudo pioneiro sobre desempenho escolar e relações de gênero ouviram de professores e professoras que os meninos seriam mais indisciplinados do que as meninas, embora também mais inteligentes. Em nossos estudos anteriores, também, a maioria das crianças indicadas como indisciplinadas eram meninos (CARVALHO 2001; 2004). Isto parece ter continuidade na EM Helena Petri, uma vez que apenas meninos eram vistos como indisciplinados, porém em número muito pequeno em comparação com o total de alunos das classes estudadas. Além disso, a classificação como indisciplinado não parecia central no momento de indicação ao Projeto Letras e Livros, já que em 64 crianças com defasagem em leitura e escrita, apenas três (todas elas do sexo masculino) tiveram sua dificuldade associada à indisciplina em sala de aula.

Raewyn W. Connell (1997) nos diz que a tensão entre a hierarquia do poder escolar e a busca por uma identidade de masculinidade pode causar rupturas, levando ao que conhecemos como a indisciplina dos meninos. Em seu trabalho, a autora entrevista rapazes egressos do ensino médio australiano, mas pode ser referência para nossos estudos sobre meninos dos anos iniciais do ensino fundamental na medida em que podemos perceber que os três meninos chamados de indisciplinados também são percebidos como tendo dificuldade atribuída a outros fatores e não apenas à indisciplina. O mau-comportamento seria um meio de demonstrarem que não se adaptaram ou não aceitavam a escola, as regras, as rotinas, as ordens recebidas dos adultos. Alguns outros alunos (todos do sexo masculino) foram citados pelas professoras quando questionadas sobre quem tinha problemas com a disciplina, mas eles não frequentavam o Projeto Letras e Livros.

DESINTERESSE

Outras formas de ruptura com as regras escolares são percebidas pelas professoras como desinteresse ou desmotivação pelos estudos. A fala sobre o menino Wesley, do segundo ano, explica como seria esse desinteresse pela escola:

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Patrícia: E tem falta de interesse! Não tem interesse em aprender. Ele não se esforça, ele não faz.

Daniela: O problema do Wesley é essa desmotivação. [...] Ele escreve algumas palavras. [...] É um menino muito inteligente. (Conselho de Classe, 04/07/2006)

Dois meninos e duas meninas são apontados como desinteressados e desmotivados e não percebemos diferenças qualitativas nessas percepções das professoras.

DISPERSÃO E IMATURIDADE

Meninos percebidos como “esquecidos”, “dispersos” e “imaturos”, curiosamente foram apontados em minoria, em relação às meninas. Foram três casos de meninos para dez casos de meninas nos três temas. Todas as crianças percebidas como tendo algum problema de concentração esqueciam-se rapidamente do que lhes foi ensinado, segundo as professoras. O caso exemplar é o do menino Elielson, do terceiro ano, que

tem uma dificuldade tremenda de concentração e de lembrar. Ele esquece o que ele aprendeu meia hora atrás. Então, é muito complicado trabalhar com esse tipo de criança. (Professora Mariângela, entrevista, 14/09/2006)

A dispersão não foi claramente explicada por qualquer das professoras, mas referia-se ao fato do aluno ou aluna distrair-se facilmente e várias vezes enquanto a professora explicava alguma coisa ou quando estava fazendo a lição. Para a Professora Rosana, o Projeto Letras e Livros era bom para sua aluna Cristiane, considerada dispersa, porque

até as amigas [dela] ajudam a dispersar na atividade. Então, quando ela vai para o PLL, está só ela e a Cícera, então ela está tête-à-tête ali, não tem nenhum outro movimento. Eu acho que isso facilita bastante: o individual. (Professora Rosana, entrevista, 19/09/2006)

Já o único menino percebido como imaturo era Sandro, do segundo ano da professora Patrícia, que foi matriculado um ano mais cedo na escola. Durante

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a entrevista, a professora Patrícia referiu-se a ele como “o bebê da sala”, porque no mês de setembro, época da entrevista, o menino contava sete anos de idade. Quando questionada se, caso ele tivesse sido matriculado na idade então recomendada para o ensino fundamental, teria alguma dificuldade de aprendizagem, a professora respondeu que ele iria “normal. É uma criança inteligente em tudo” (Professora Patrícia, entrevista, 05/08/2006).

Já as meninas percebidas como imaturas eram crianças que estavam na idade regular e todas do segundo ano. O caso da menina Adriana é exemplar: “A mãe contou que ela chupa chupeta [...] E ela já é uma mocinha.” (Professora Gislaine, conselho de classe, 25/04/2006).

Ela ainda não amadurou dentro de leitura. Então, é uma menina que você tem que estar sempre cobrando dela. É uma menina que vive sorrindo pra você. [...] Eu ficava pensando “o que será que tinha a Adriana, o que será?” Agora ela já fica sentadinha, ela já tenta se concentrar pra leitura. (Professora Nilda, entrevista em 12/06/2006)

Estes números e estes exemplos parecem contraditórios em relação às construções sociais que temos na cultura ocidental contemporânea, já que o “esquecimento”, a “dispersão” e a “imaturidade” estão intimamente ligadas ao masculino e aos homens de forma geral e, em particular, aos meninos. Como explicar esta aparente contradição?

Ora, sendo associadas às masculinidades e aos indivíduos do sexo masculino, estas características são tomadas em nossa sociedade como naturais nos homens. Quando uma menina demonstra possuí-las, isso chama atenção, o que não aconteceu com os meninos. Provavelmente a falta de concentração e a imaturidade já sejam esperadas nos meninos e isso não cause preocupação nas professoras. Por isso, elas perceberiam mais essas características em meninas.

LENTIDÃO

Também foram levantadas nas entrevistas e nas observações dos conselhos de classe as diferenças individuais em relação ao tempo que crianças demoram para aprender. A fala da professora do projeto sobre o menino Junior, do segundo ano,

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mostra uma crença na aprendizagem que ele possa desenvolver, respeitando seu próprio tempo:

[...] Ainda preciso falar “Junior, olha, qual a letra que escreve isso?”. Aí, ele busca a letra para escrever. Mas o Junior logo, logo sai dessa fase. Não é repetente, é criança de oito anos, ele vai... (Professora Maria Cícera, entrevista, 28/06/2006)

A expressão “o tempo dele” é recorrente, como no caso do menino Amilton, do segundo ano: “É... No tempo dele, ele tem certa vontade de ler, de fazer tentativas de escrita, coisa que ele não fazia.” (Professora Mariluci, entrevista, 22/08/2006).

A evolução da menina Natasha, do segundo ano, era vista pela professora Maria Cícera como “muito lenta”, como ela disse na entrevista:

A Natasha é uma aluna que me preocupa, sempre me preocupou, desde a fase 58, desde lá ela vem preocupando, vem mostrando uma evolução bem lenta. A gente pedia no pré para ela desenhar, enquanto os outros enchiam a folha de desenho, ela ia e desenhava do lado: ‘Terminei, professora, esse é o meu desenho’. E na fase 6, ela saiu escrevendo ‘Natasha’, trocando, invertendo, mas ela continua escrevendo ‘Natasha’. [...] Não vou dizer para você que ela não evoluiu, a meu ver, ela está indo, mas é uma evolução mais lenta do que os outros, do que o processo dos outros. (Professora Maria Cícera, entrevista, 28/06/2006)

As diferenças individuais em relação ao ritmo de aprendizado envolveram citações de sete meninos e três meninas. Assim, a lentidão de meninos na aprendizagem em relação aos demais parecia incomodar mais as professoras e elas demonstraram sentir-se responsáveis pelo desenvolvimento deles. Ao mesmo tempo, a menina citada parecia ser culpabilizada por sua “lentidão” e impermeável aos avanços, uma vez que não demonstrou grandes progressos desde a educação infantil.

8 Cada etapa da educação infantil na rede de ensino de Embu é chamada fase. A fase 5 era a penúltima fase pela qual a criança passava na educação infantil, na rede embuense.

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TIMIDEZ

Outros cinco casos de crianças encaminhadas ao Protejo Letras e Livros tinham suas dificuldades atreladas à timidez: dois meninos e três meninas. A fala da professora que atendia Jamile ilustra como essa personalidade tímida poderia trazer uma dificuldade de aprendizagem:

A Jamile tem uma dificuldade muito grande de conversar. Ela vinha para os encontros com a cabeça baixa, tinha dificuldade de te olhar, era muito difícil. Para você conversar com ela... Porque a gente faz um trabalho com as crianças assim: “ó, vamos escrever...” [...] E com ela fica difícil porque ela não abre a boca, ela não fala da vida dela, de ninguém. Ela é muito quietinha. Eu já conversei com a Patrícia e ela disse que já conversou com a mãe dela e falou que ela é assim também em casa. [...] Ela é uma criança que a gente percebe que tem capacidade de progredir, mas ela tem essa dificuldade de se relacionar: muito tímida, muito quietinha. Eu acho que isso dificulta um pouquinho. (Professora Daniela, entrevista, 11/08/2006)

As falas sobre as duas outras meninas percebidas como tímidas pelas professoras foram, ao longo do ano letivo, bem mais curtas e geralmente associavam a timidez a outras dificuldades:

Ela tem dificuldade na fala, é caso de fono [...] Eu acho que a dificuldade dela é porque ela tem vergonha de falar, ela fala assim meio para dentro. (Professora Lucélia, entrevista, 21/06/2006)

Segundo a professora Gislaine, sua aluna Lorena era retraída e por isso ela percebia “muito pouco avanço nela (...) não vejo muito entusiasmo dela para aprender a ler” (Entrevista, 22/08/2006).

Quando a timidez era percebida como obstáculo à aprendizagem de meninos, no entanto, a situação aparecia nas falas como bem mais preocupante do que em relação às meninas. Os dois alunos classificados como “tímidos” (Brian e João) eram atendidos juntos nas sessões do Projeto Letras e Livros. Sobre o menino João, a professora do Projeto explicou que o atendimento dos meninos fazia com que trocassem ideias e pudessem se expressar:

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E agora eu comecei de novo, ele continua vindo com um amiguinho. (...) E geralmente é o Brian, então eu pergunto, “Brian, que letra é essa?” porque o Brian está no mesmo nível que o João. Estão no mesmo nível. Aí, o Brian pára para pensar. “Que letra é essa, João? Fala para ele.” E ele “ih, professora, essa é a letra tal.” E foi avançando, agora eu já consigo pedir uma escrita para ele. E mando tarefinha para casa: “Faça uma lista do nome das pessoas da família”, “escreva o alfabeto”, “escreva os numerais”, “dê o nome de coisas que você tem no quarto”... E ele escreve tudo bonitinho. E eu pergunto “quem é que te ajudou, João?” “minha mãe” “ah, tá bom então, vamos mandar mais”, porque na sala ele não faz nada, nada, (...). A Gislaine está agoniada. (Maria Cícera, entrevista, 28/06/2006)

O menino Brian, segundo as professoras, teve bom aprendizado durante o ano letivo, demonstrando avanços no conhecimento sobre o sistema de escrita. Na entrevista, a professora de sua turma disse que ele era um menino “retraído, mas tem vontade de aprender” e não soube dizer se o avanço que ele demonstrou foi porque “chegou o momento dele ou foi a ajuda do Projeto” (Professora Gislaine, entrevista, 22/08/2006).

O caso que mais parecia preocupá-las era o do menino João. Vários elementos surgiram nas falas das professoras sobre o menino do segundo ano, porque ele não conversava com os adultos.

É... Ele não falava com adulto nenhum, nem com a professora. Então, para ele falar com a professora no ano passado, sabe o que ela fazia? Ela entregava as atividades para todo mundo e pulava ele. E lá vinha ele lá na mesa. E ela continuava. De repente ele vinha “ô, professora, e a minha?”. Só isso também. Complicado. Ele pegava a folha e ia para o lugar. Bom, para ir ao banheiro, o amigo ia lá e dizia assim “professora, o João quer ir ao banheiro”. (Maria Cícera, entrevista, 28/06/2006)

João procurava manter uma postura de não-relacionamento com as professoras e demais adultos dentro da escola. Segundo as educadoras, a situação familiar do menino teria alguma consequência na formação da sua personalidade:

A mãe não sai na rua. Parece que é evangélica, e tudo o que recebe, dá para a igreja. Quem faz tudo é o pai: os dois filhos e a filhinha andam na rua com o pai. O pai parece, assim, a mãe. (Professora Daniela, conselho de classe, 25/04/2006)

Esta fala da professora Daniela repercutiu durante todo o ano letivo. Esta professora morava na mesma rua da família de João e dizia que tinha conhecimento

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sobre como vivia a família: “A mãe fala do pai, o pai fala da mãe, aliás, você só o vê [João] na rua com o pai, não com a mãe” (Professora Daniela, conselho de classe, 07/07/2006); “E não adianta falar para a mãe levar no psicólogo, porque ela diz que quem vai cuidar dele é Deus” (Professora Gislaine, conselho de classe, 25/09/2006). Contudo, a professora Daniela estranhou quando ouviu que ele tinha dificuldade devido a sua timidez, pois para ela, brincando com outras crianças do bairro, ele “é uma criança feliz” (Conselho de classe, 25/04/2006).

A timidez de João era associada ao modo como o menino vivia, ao arranjo familiar no qual ele estava inserido e à religião. Depois de tantas discussões, fica a dúvida sobre o porquê da timidez de João preocupar tanto as professoras, a ponto de mobilizar várias pessoas do corpo docente, tanto no trabalho de recuperação paralela, quanto as professoras regentes de classe. E quanto às três meninas, que também eram consideradas tímidas e por isso teriam dificuldade de aprendizagem, por que não preocupavam tanto? Por que sua timidez não era analisada pelas professoras no sentido de buscar um motivo, como a professora de Brian procurava explicar sua “dificuldade de expressar-se”, completando que ele tinha vontade de aprender?

Talvez o fato de um menino ser retraído vá contra a percepção de masculinidade que o grupo de professoras tinha, uma ideia de que o homem (e os meninos em geral) deve ser independente, espontâneo e ativo em suas ações. Já as meninas tímidas estariam em conformidade com os padrões socialmente estabelecidos de passividade e comedimento, de uma feminilidade esperada ou desejada socialmente. O padrão de comportamento de João contrariaria o padrão de masculinidade hegemônica discutida por Raewyn W. Connell (1995) e causaria esta preocupação exacerbada por parte das professoras.

INSEGURANÇA

Das quatro crianças consideradas inseguras para aprender, três eram meninos. A professora de Jeane, do segundo ano, classificava-a como “insegura”. Segundo a fala da professora Patrícia, a menina se preocupava meramente em copiar a lição, mas não respondia a nenhuma questão nem fazia os exercícios propostos:

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A Jeane tem muita dificuldade, é muito insegura. Porque é assim, se eu estou passando lição na lousa e vem a menina do Projeto chamá-la, ela nem quer ir para o Projeto. O objetivo dela é unicamente em copiar, é em ter o caderno cheio, para ela, isso é o que importa. Eu sempre converso com ela e, às vezes, ela tem que ir para o Projeto e quando ela chega, fica desesperada e começa a chorar, só que ela é muito rápida, ela consegue. Então eu converso com ela, é importante? É, mas não é o mais importante. Porque ela não presta atenção, ela só quer dar conta de copiar, ela não se empenha em fazer. [...] E ela comia muita letra, copiava tudo pela metade. (Professora Patrícia, entrevista em 05/09/2006)

A professora Mariluci explicou o que ela considerava insegurança na aprendizagem, falando sobre seu aluno Raul:

Eu percebo que ele está apresentando melhora. Perdeu o medo, porque ele também era muito medroso, de arriscar e errar. Ele se recusava a fazer a escrita, não escrevia, não lia. Agora ele já tenta, ele está bem melhor. (Professora Mariluci, entrevista, 22/08/2006)

A segurança para lidar com os desafios talvez seja considerada pelas professoras pesquisadas como uma qualidade ligada à masculinidade, uma vez que a estabilidade emocional e o enfrentamento e superação de desafios é atributo comumente ligados ao comportamento masculino. Para a menina Jeane, a realização das atividades na escola se restringia a copiar a lição da lousa. Por isso, sua insegurança percebida pela professora referia-se ao fato do impedimento da cópia das tarefas da lousa. Já os meninos teriam medo de fazer errado e por isso se sentiriam travados diante dos desafios que a alfabetização lhes impunha.

DEPENDÊNCIA E AUTONOMIA

Finalmente, o maior diferencial entre meninos e meninas dentro do grupo de dificuldades de aprendizagem percebidas pelas educadoras diz respeito à dependência de muitos alunos em relação à professora. São dez meninos (e nenhuma menina) que, segundo as professoras, só conseguiam realizar alguma atividade de escrita estando ao lado delas e longe de outras crianças. Alguns meninos demonstravam conseguir escrever e fazer as atividades propostas pelas professoras do Projeto Letras e Livros, mas apenas enquanto elas estavam ao lado, questionando sobre quais letras o menino deveria usar para escrever e fazendo a revisão da escrita. É o caso, por exemplo, do

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menino Jorge, do segundo ano, cujas professoras discutiram no final do ano letivo se ele ficaria ou não retido: “Ele faz, se for com muita ajuda. Quem pegar ele, se fizer esse trabalho, compensa passar, se não, eu não sei se compensaria, não” (Conselho de Classe, 11/12/2006). O conselho de classe decidiu que o menino seria promovido para o terceiro ano, condicionado a frequentar o Projeto Letras e Livros em 2007.

Às vezes a dificuldade era associada ao fato da professora precisar exigir que o menino fizesse a tarefa, chamando-lhe a atenção constantemente, como podemos ver no caso do menino Camilo, do segundo ano:

Nilda: Ele melhorou, mas é aquele caso, você tem que dar uma ripa nele, senão ele não faz.

Mariluci: É assim mesmo, se não der uma dura...

Nilda: É uma criança que precisa de cobrança permanentemente, senão ele descamba. (Conselho de Classe, 25/09/2006)

Os casos destes dez meninos que só faziam as tarefas diante da cobrança ou ajuda constante da professora são intrigantes: um número considerável de meninos percebidos como crianças que necessitavam de acompanhamento individualizado, enquanto nenhuma menina foi citada. Ora, se os princípios da implantação do Projeto Letras e Livros são exatamente estes (dar atenção individual aos alunos que ainda não leem ou escrevem convencionalmente) por que dez meninos são assim percebidos?

Esse achado reforça parte de nossa hipótese inicial (COHEN, 1998) de que a culpa pelo fracasso dos meninos seria atribuída a fatores externos a seu intelecto, uma vez que, por mais dificuldades que estes dez alunos apresentassem, as professoras pareciam acreditar que elas não se deviam a limitações quaisquer em seu ritmo ou capacidade de aprendizagem mas ao fato de necessitarem alguém por perto, aceitando auxiliá-los constantemente.9

9 Uma análise a partir de referenciais psicológicos certamente contribuiria também para uma compreensão mais aprofundada desse quadro, buscando captar as dimensões afetivas aí envolvidas.

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Meninos e Meninas num Projeto de Recuperação Paralela

CONClUsões

Dos 40 meninos e 22 meninas que compuseram a população inicial da pesquisa, foram desligadas do Projeto proporções equivalentes de cada sexo no ano de 2007: cerca de 22,5% dos meninos e das meninas não necessitariam continuar em atendimentos individualizados no ano seguinte. De um total de 32 crianças aprovadas no final do ano letivo de 2006, com a condição de que frequentassem o Projeto Letras e Livros em 2007, 19 eram meninos e 13 meninas. Apenas nove dessas crianças eram do terceiro ano (sete meninos e duas meninas), o que nos mostra um resultado positivo no trabalho de atendimento individualizado. Ao mesmo tempo, a diferença entre a quantidade de meninos e meninas que ainda necessitariam de atendimento no quarto ano do ensino fundamental indica que a desvantagem dos meninos nos resultados de desempenho escolar foi ampliada com o passar do tempo.

Dados nacionais sobre as trajetórias escolares de cada sexo (ROSEMBERG, 2001; FERRARO, 2007) indicam que a situação observada na Escola Municipal Helena Petri provavelmente se repete em outras escolas de ensino fundamental e pode trazer pistas para entender as raízes de uma disparidade que se mostra crescente ao longo do percurso escolar.

De acordo com as observações desta pesquisa, podemos concluir que a desvantagem dos meninos em relação à adaptação às normas, à necessidade de autonomia e ao ofício de aluno acaba atrasando-os ou afastando-os do acesso à escola, defasando-os em relação às meninas e às moças. Dentre os problemas percebidos pelas professoras destaca-se a falta de autonomia de dez meninos como o grande diferencial entre os sexos. Segundo as educadoras, estes alunos necessitariam de intervenção constante para realizarem suas atividades, enquanto nenhuma menina foi apontada com uma dificuldade parecida. Concluímos que as professoras percebiam parte dos meninos como muito dependentes delas, necessitados de uma atenção ou de uma metodologia própria que às vezes precisava ser exclusiva.

As dificuldades de concentração eram mais relacionadas às meninas, que eram vistas como mais “dispersas” e “esquecidas”. Já a desorganização, a indisciplina e a insegurança na realização de tarefas estariam mais ligadas aos meninos. A timidez afetaria um número próximo de meninas e meninos e isso levaria a dificuldades

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

de aprendizagem. Contudo, diferentemente das alunas, os meninos com esse comportamento silencioso, passivo e submisso eram motivo de muitas discussões, causavam muita preocupação em todo o corpo docente e eram conhecidos em toda a escola tanto quanto aquelas crianças mais indisciplinadas, o que não acontecia com as meninas “tímidas”.

Decerto os meninos continuam sendo maioria em turmas de recuperação paralela nas mais variadas modalidades em que elas existem no país. Entre as razões para isso, estão as percepções das professoras a respeito da aprendizagem e do comportamento de alunos e alunas, que as levam a indicá-los para tais atividades. Se não podemos fazer uma associação linear entre tipos de dificuldades apontadas pelas professoras que estudamos e cada um dos sexos, o que procuramos revelar foram significados diferentes embutidos em falas semelhantes, interpretações do mesmo comportamento que variavam segundo o sexo do aluno e diferentes graus de visibilidade de determinadas características, conforme se tratasse de menino ou menina. Estamos convencidos de que modificar esses olhares, de forma a garantir acesso equitativo para meninos e meninas tanto à aprendizagem da leitura e escrita quanto aos comportamentos considerados adequados pela escola é uma tarefa ainda a ser enfrentada pelos cursos de formação inicial e continuada de professores.

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ReFeRêNCIas:

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DESEMPENHO ESCOLAR EM MATEMÁTICA: O que o gênero tem a ver com isso?

Lindamir Salete CasagrandeMarilia Gomes de Carvalho

INTRODUÇÃO

A busca pela construção da igualdade de gênero passa pela igualdade de acesso e permanência de homens e mulheres nas diversas carreiras profissionais e de

modo especial nas carreiras científicas e tecnológicas1. Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP mostram que no Brasil as mulheres são a maioria em todos os níveis de ensino incluindo o universitário. Porém em alguns cursos, dentre eles as Engenharias, a Física e a Matemática, as mulheres são minoria. Por outro lado, os homens são a minoria em cursos como Magistério,

1 Neste capítulo, quando se fala em carreiras científicas e tecnológicas, está-se referindo às carreiras vinculadas às ciências tradicionais, bem como as carreiras que envolvem o uso e desenvolvimento de artefatos tecnológicos avançados. Estão excluídas destas as ciências humanas e as ciências sociais. Isso não significa que elas não são consideradas pelas autoras como ciências.

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Pedagogia e Enfermagem. Estudos têm sido desenvolvidos buscando entender as razões pelas quais esta situação permanece e têm apontado como possíveis causas da diferença de participação masculina e feminina em determinados cursos a socialização diferenciada de meninos e meninas (VELHO, 2006); falta de interesse e estímulo para o estudo matemático (VELHO e LEON, 1998); a diferença na expectativa dos/as professores/as (WALKERDINE, 1995); o ambiente hostil à presença feminina nos cursos de Engenharia (SOBREIRA, 2006); dificuldades de inserção no mercado de trabalho (FARIAS, 2007), dentre outras. A menor participação feminina nestes cursos se reflete na menor participação delas nas carreiras científicas e tecnológicas não só no Brasil, mas também em diversos países.

Contudo algumas lacunas persistem e necessitam de pesquisas com o intuito de minimizá-las. Embora muito tenha sido feito nos últimos anos, há um grande caminho a ser percorrido para que se compreenda melhor as causas que geram a menor participação feminina em determinadas áreas do conhecimento como as ciências exatas e as engenharias.

É no bojo dos estudos que buscam contribuir para a compreensão da desigualdade de acesso e permanência de homens e mulheres nas carreiras científicas que este capítulo se insere. A afinidade e o rendimento em Matemática têm sido apresentados como causas que influenciam na escolha profissional de homens e mulheres. Porém convém salientar que esta afinidade não é o único fator que influencia nesta escolha.

Sendo assim, este capítulo tem o objetivo de comparar o que os/as estudantes dizem sobre seu rendimento escolar em Matemática e as notas encontradas em documentos oficiais. Para atingir este objetivo será analisada a percepção dos/as estudantes sobre seu rendimento escolar coletadas por meio de um questionário, verificado o desempenho escolar de alunos e alunas nos anos de 2008 e 2009 com base nos diários de classe e nos editais finais encaminhados pelo colégio à Secretaria de Educação do Estado do Paraná e feita a comparação entre a percepção dos/as estudantes com o desempenho escolar encontrado nos documentos oficiais.

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Desempenho Escolar em Matemática: O que o gênero tem a ver com isso?

O aCessO Das mUlHeRes às CaRReIRas CIeNTíFICas e TeCNOlóGICas

Para o desenvolvimento deste estudo parte-se do pressuposto de que o gênero é social e culturalmente construído. Representa e estabelece relação de poder entre os sujeitos de cada gênero assim como entre sujeitos do mesmo gênero (SCOTT, 1995; COSTA, 1994). Assim, todos os segmentos da sociedade contribuem para esta construção, inclusive a escola e os sujeitos que nela atuam.

Concorda-se com o argumento de que a escola é uma importante instituição na formação dos novos membros da sociedade, porém salienta-se que ela não é a única responsável por essa formação. Outras instâncias como a família, a igreja, os meios de comunicação e o convívio em sociedade contribuem de forma significativa para a formação dos/as jovens. Este estudo será focado na escola, pois, entende-se que os/as profissionais que nela atuam (professores/as, diretores/as dentre outros/as) assumem papel importante na construção das identidades de gênero dos alunos e das alunas. Silva (2004, p. 79) argumenta que na escola, por meio do currículo oculto, “aprende-se como ser homem ou mulher, como ser heterossexual ou homossexual, bem como a identificação com uma determinada raça ou etnia”.

Sendo a escola uma das instituições que contribui para a construção dos padrões, dos estereótipos, é nela também que podem acontecer transformações que minimizem os preconceitos e desigualdades de classe, de gênero e de raça/etnia. Para Auad (2006, p. 15) tanto “a escola pode ser o lugar no qual se dá o discriminatório ‘aprendizado da separação’ ou, em contrapartida, pode ser uma importante instância de emancipação e mudança”. Sendo assim, é um ambiente rico de acontecimentos que merecem a atenção de pesquisadores/as sobre mais diversos enfoques, dentre eles, as relações de gênero.

Para Louro (2001, p. 61), a escola é generificada, “gestos, movimentos, sentidos são produzidos no espaço escolar e incorporados por meninos e meninas, tornando-se partes de seus corpos. Ali se aprende a olhar e a se olhar, se aprende a ouvir, a falar e a calar; se aprende a preferir.” A autora reforça o argumento de que a escola, por meio de seus atores sociais, tem papel importante na formação das crianças e jovens, inclusive nas expectativas profissionais dos alunos e das alunas. É

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papel da escola ensinar mais do que conteúdos disciplinares. É importante que na escola aborde-se também o comportamento dos/as estudantes diante das variadas situações do cotidiano, se ensine a ser cidadãos/ãs com responsabilidade social e respeito à diversidade.

Essa atitude é fundamental para que todos/as possam permanecer na escola com igualdade de condições de desenvolvimento de suas capacidades intelectuais, afetivas e emocionais. Esse desenvolvimento ocorre na interação entre os/as estudantes com diversos perfis e na liberdade de expressão e ação dos/as mesmo/as, contribuindo para o desenvolvimento de todos/as. Para Auad (2003, p. 94), “todos, tanto meninas quanto meninos, seriam menos angustiados se tivessem mais liberdade de expressão e de ação na escola”. Convém salientar que a liberdade deve estar acompanhada do respeito ao/à outro/a e da responsabilidade sobre todos os atos.

Estudos (CARVALHO, 2007; CASAGRANDE et al, 2005; LOMBARDI, 2006; SCHWARTZ et al., 2006; dentre outros) mostram que as mulheres são minoria nas carreiras científicas e tecnológicas, não só no Brasil como também em outros países. Isso pode ser consequência do fato dos pais/mães e professores/as oferecerem pouco estímulo para que as meninas se dediquem e se interessem pelos estudos matemáticos, fato que estaria também limitando suas possibilidades profissionais futuras (VELHO e LEON, 1990). Considera-se que o conteúdo matemático é fundamental para a maioria das carreiras científicas e tecnológicas e a afinidade com a Matemática pode ser decisiva na escolha das profissões. Entende-se que esse não é o único fator a interferir nas expectativas profissionais, porém não se pode negar que uma pessoa que não tenha afinidade com uma determinada disciplina dificilmente escolherá uma profissão que necessite do seu conteúdo no desenvolvimento das atividades profissionais cotidianas.

Segundo González Garcia e Pérez Sedeño (2006, p. 46), a suposta falta de habilidade Matemática e espacial “explicaria o escasso número de mulheres nas engenharias e arquitetura, profissões que requerem habilidade para as Matemáticas e as relações espaciais”. Entretanto, Velho (2006, p. xiv) argumenta que a socialização diferenciada de meninos e meninas é fundamental para o desenvolvimento das habilidades e no decorrer desse processo “as mulheres são ensinadas a procurar ajuda e a ajudar e não a serem autoconfiantes ou a funcionar autônoma e competitivamente

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Desempenho Escolar em Matemática: O que o gênero tem a ver com isso?

como os garotos”. Selke (2006) argumenta que os meninos, ao ingressarem em cursos técnicos, trazem um conhecimento prévio oriundo da socialização voltada para o manuseio de artefatos tecnológicos. Argumenta ainda que os/as professores/as de disciplinas técnicas, ao iniciar um conteúdo, partem do pressuposto de que todos os alunos e alunas já têm este conhecimento prévio. Os/as professores/as, ao introduzir um tema novo durante as aulas, não partem do zero e com isso, as meninas que tiveram socialização mais voltada para as relações pessoais, encontram dificuldade em acompanhar as aulas.

Os materiais didáticos podem contribuir para a construção da imagem que os/as estudantes têm das ciências e da produção e uso de artefatos tecnológicos. Em pesquisa realizada para a dissertação de Mestrado, Casagrande (2005) constatou que os gêneros são representados de forma diferenciada nos livros didáticos de Matemática, principalmente com relação ao mercado de trabalho e à relação com as ciências e a tecnologia e com os artefatos tecnológicos. Os homens e meninos são mais frequentemente representados em relação a profissões que têm maior contato com artefatos tecnológicos bem como em profissões remuneradas. Por outro lado, as mulheres são mais frequentemente representadas em atividades laborativas que muitas vezes não são consideradas como profissões. Elas aparecem realizando atividades artesanais que podem ser desenvolvidas no interior das casas, conciliadas com o cuidado com o lar e a família e têm remuneração mais precária. São raras as situações nas quais as mulheres aparecem manuseando equipamentos eletrônicos ou informáticos. Como os livros didáticos são distribuídos a todas as escolas da rede pública de ensino, essa representação diferenciada pode servir de estímulo aos meninos e desestímulo às meninas a se interessarem por profissões que necessitem de maior conhecimento científico e tecnológico.

Tabak (2002) argumenta que a participação das mulheres nas ciências e tecnologia é fundamental para o desenvolvimento do país. Para a referida autora é importante “a utilização de todos os recursos humanos disponíveis para a constituição de uma importante massa crítica e de uma comunidade científica produtiva” (2002, p. 28) e complementa: “a sub-representação das mulheres no campo científico representa uma subutilização dos recursos humanos disponíveis na sociedade, o que afeta o desenvolvimento nacional” (TABAK, 2002, p. 54). Para ela, um país que se encontra

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em desenvolvimento como o Brasil não pode abrir mão da capacidade intelectual de mais da metade de sua população. Desta forma, compreender as causas pelas quais as mulheres não se sentem atraídas pelas carreiras científicas e tecnológicas pode contribuir para que se desenvolvam ações para que mais mulheres ingressem nessas carreiras e possam assim contribuir para o desenvolvimento do País no que tange aos aspectos da ciência e tecnologia.

Santos e Ichikawa (2006, p. 13) argumentam que, como causa para a escassa presença feminina nas ciências e tecnologias, pode-se ter “a forma como se ensina ciência e tecnologia na escola, os conteúdos das disciplinas, as atitudes de quem as ensina para as estudantes” e isso tem sido investigado com o intuito de se elaborar políticas que minimizem esta situação. Acredita-se que são inúmeras as razões que levam as mulheres a preferirem outras carreiras que não as vinculadas com ciência e tecnologia.

É importante salientar que todas estas possíveis causas para a menor participação feminina na ciência e na Tecnologia são social e culturalmente construídas, e que, portanto podem ser modificadas por meio de ações políticas e educacionais que rompam com os estereótipos que dificultam o acesso e a permanência das mulheres nessas profissões. Sabe-se que em muitos lares brasileiros a principal fonte de renda é a remuneração do trabalho feminino. Sabe-se ainda que as carreiras científicas e tecnológicas são mais valorizadas pela sociedade e melhor remuneradas. Ao dificultar o acesso das mulheres a essas profissões, elas ficam alijadas dessa melhor remuneração e suas famílias deixam de ter acesso à qualidade de vida que uma melhor renda pode proporcionar. A igualdade de gênero nas carreiras científicas e tecnológicas pode contribuir para a diminuição das desigualdades sociais.

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Desempenho Escolar em Matemática: O que o gênero tem a ver com isso?

a maTemáTICa COmO DIFeReNCIal

O desempenho em Matemática tem sido uma das causas apontadas para o reduzido interesse das meninas e mulheres por carreiras científicas e tecnológicas. Velho e Leon (1998) argumentam que meninas e meninos têm desempenho semelhante nos primeiros anos da vida escolar inclusive em Matemática. Entretanto, em torno da 7ª série as meninas passam a demonstrar menos interesse pelos conteúdos dessa disciplina. Segundo as autoras, diversos fatores podem influenciar nesta mudança de comportamento das alunas, dentre eles o menor estímulo oferecido por pais/mães e professores/as. Por outro lado, Walkerdine (1995, p. 214) questiona a falta de reconhecimento do brilhantismo das meninas por parte dos/as professores/as. No estudo realizado por Walkerdine (1995), quando algumas meninas se saíam bem em Matemática, elas “eram acusadas de ir bem porque trabalhavam muito, seguiam regras, comportavam-se bem”. Enquanto para os meninos que não obtinham bons resultados, encontravam-se explicações na falta de paciência para se dedicar às atividades escolares.

A falta de paciência e concentração também foram causas encontradas por Dal’Igna (2007) para justificar o baixo desempenho dos meninos. Esta diferença nas formas de justificar o fracasso e o sucesso de meninas e meninos pode ter consequências danosas para todos/as. Aceitar e justificar o mau desempenho masculino como não sendo algo ruim pode levar os/as professores/as a negligenciar a respeito de dificuldades que os alunos estão enfrentando naquele momento da vida escolar. Por outro lado, a desvalorização do sucesso feminino pode causar nas alunas um desestímulo a prosseguir esforçando-se e apresentando bom desempenho.

É preocupante pensar que o esforço e a dedicação das meninas sejam vistos como “defeitos”. Em Matemática essas atitudes são fundamentais para o aprendizado e a fixação dos conteúdos que apresentam muitas regras e normas e que às vezes são abstratos. O aprendizado de Matemática e de outras disciplinas depende da capacidade individual dos/as estudantes, porém também do esforço, empenho e dedicação por eles/as apresentados. Essas características são complementares e contribuem para o bom desempenho de meninas e meninos. Alguns estudos (WALKERDINE, 1995; DAL’IGNA, 2007) têm apontado que os/as professores/as têm desvalorizado essas características nos/as estudantes, de modo especial, nas alunas.

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Carvalho (2001), em pesquisa realizada com professores/as de séries iniciais, encontrou descrições diferenciadas para o comportamento de meninas e meninos. As meninas eram descritas como mais organizadas, tranquilas, assíduas, seguidoras de regras, com cadernos enfeitados, inclusive as que apresentavam um mau desempenho escolar. Os meninos eram descritos como agitados, espontâneos, transgressores de regras, com cadernos desorganizados, dentre outras características.

A Matemática é considerada por muitos como uma disciplina masculina por valorizar características mais comumente encontradas nos homens, como a razão e a precisão. Convém salientar que nem todos os homens são racionais e precisos e nem as mulheres são desprovidas dessas características. Estas formas de ver o comportamento masculino e feminino foram social e culturalmente construídas, portanto variam de acordo com o espaço e o tempo. Por essa razão, existe a possibilidade de serem modificadas.

Em estudo realizado sobre os resultados do INAF (Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional), Souza e Fonseca (2008) observaram que as mulheres obtiveram piores resultados do que os homens em Matemática. As autoras argumentam que no cotidiano, mulheres e homens usam conteúdos matemáticos diferenciados. Elas estão mais acostumadas com a leitura de números, de bulas, comparação de preços, enfim, com cálculos aproximados, e eles com atividades de controle que necessitam uma precisão maior, como por exemplo, controle de saldo bancário, consumo de energia e água, etc.

Evidentemente não se pode dizer que somente os homens realizem atividades de controle e somente as mulheres cálculos aproximados, porém, segundo as autoras, há uma predominância desta diferença de atividades relacionadas à Matemática. São exatamente os conteúdos mais acionados pelos homens que compõem este teste, fato este que poderia justificar o pior desempenho feminino. Para Souza e Fonseca (2008, p. 516) “a sociedade atribui um valor maior a determinadas formas de matematizar (em detrimento de outras) e, consequentemente, também valoriza mais os indivíduos, os grupos e as instituições que as dominam” e isso pode interferir no fato das mulheres obterem piores resultados em testes de Matemática. Porém, é importante ter em mente que “uma diferença evidencia uma desvantagem e não uma deficiência” (SOUZA e FONSECA, 2008, p. 517). O fato de homens e mulheres acionarem

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conteúdos matemáticos diferentes no dia-a-dia não significa que um gênero saiba mais do que o outro, apenas que exercem habilidades diferentes. Enfatizando, nem melhores, nem piores, apenas diferentes.

Andrade, Franco e Carvalho (2003) analisaram o desempenho de alunos e

alunas2 no Pisa (Program of International Student Assessment) no ano de 2000. Este Programa aplicou testes de Leitura, Ciências e Matemática a estudantes de 15 e 16 anos de 36 países e o resultado mostrou que as alunas obtiveram rendimento inferior em Matemática em quase todos os países. Somente em três países3 o rendimento feminino superou o masculino nesta disciplina e em nenhum país o rendimento masculino em Leitura superou o feminino. Os autores ressaltam que “no Brasil observou-se a maior diferença em favor dos meninos em Matemática e a menor diferença a favor das meninas em Leitura” (2003, p. 80).

Essa constatação poderia levar à conclusão de que as alunas brasileiras apresentam uma desvantagem ainda maior em relação aos meninos. Entretanto esta conclusão seria precipitada se baseada exclusivamente em um teste que os/as jovens brasileiros/as não estão acostumados/as a fazer e que foi elaborado por Instituições estrangeiras sem base na realidade brasileira. Evidentemente que esse fato não se aplica somente às alunas. Os alunos brasileiros estão expostos à mesma realidade que elas. Faz-se necessária a realização de estudos para investigar as razões para esse baixo desempenho feminino tanto em Leitura quanto em Matemática em nosso país.

É no escopo dos estudos que buscam contribuir para a discussão que tenta entender as razões para a pequena participação feminina nas carreiras científicas e tecnológica (que muitas vezes é associada ao desempenho e a afinidade com a Matemática) que encontra-se em desenvolvimento um projeto de doutorado cujo objetivo é analisar as relações de gênero no cotidiano das aulas de Matemática em turmas de 5ª a 8ª séries do ensino fundamental em um colégio Estadual de Curitiba, capital do Paraná. A pesquisa cujos resultados serão apresentados neste artigo faz parte deste projeto de doutorado e visa contribuir para o embasamento do referido projeto e para a discussão dos dados obtidos por meio daquela pesquisa.

2 Neste artigo usar-se-á os termos estudantes e discentes para referir-se à totalidade dos/as pesquisados/as e os termos alunos e alunas para referir-se aos/às pesquisados/as de cada gênero.3 Islândia, Nova Zelândia e Rússia.

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A compreensão e o conhecimento sobre o rendimento escolar dos/as estudantes pesquisados/as e a forma como eles/as percebem seu desempenho em Matemática é de fundamental importância para a análise das relações entre os gêneros que ocorrem no cotidiano escolar bem como para compreender se existe diferença na forma como estudantes de sexos distintos se posicionam com relação à aprendizagem dos números e cálculos.

meTODOlOGIa

O estudo sobre o rendimento escolar foi baseado no método quantitativo. Foram analisados documentos oriundos do Colégio Centenário4 nos quais constam as médias dos estudantes de 5ª a 8ª série de 2008 e 2009, bem como um questionário aplicado pela pesquisadora a estudantes, no ano de 2009.

Os documentos analisados nessa pesquisa foram os Editais de Resultado Final do ano de 2008 das treze turmas de 5ª a 8ª séries do ensino fundamental do Colégio Centenário encaminhados à Secretaria de Estado da Educação do Estado do Paraná – SEED5, diários de classe de Matemática do ano de 2009 de quatro turmas6 de 5ª a 8ª séries do ensino fundamental do mesmo Colégio e um questionário aplicado pela pesquisadora aos/às estudantes dessas quatro turmas no ano de 2009.

Para a análise dos dados construiu-se quadros nos quais é possível perceber como foi o desempenho escolar dos alunos e alunas no período pesquisado. Como foram utilizados três documentos diferentes, os números obtidos por meio deles foram comparados com o intuito de estabelecer relação entre o que os/as estudantes dizem sobre o seu rendimento (questionário) e o que os documentos mostram. Comparou-se ainda o rendimento escolar dos/as estudantes no ano de 2008 em Matemática com

4 Todos os nomes citados nesta pesquisa (do colégio, dos/as professores/as, dos/as estudantes e da diretora) são fictícios. A troca dos nomes deu-se com o intuito de preservar a identidade dos/as participantes desta pesquisa. A escolha do nome do Colégio foi motivada pelo fato de ele ter sido fundado há mais de 100 (cem) anos, de ser, portanto um Colégio Centenário.5 Estes documentos foram fornecidos pela direção do Colégio para essa pesquisa. O envio das informações contidas nos editais à SEED é feito via internet e o acesso pode ser feito pela direção do Colégio a qualquer momento.6 Uma turma de cada série. Este documento foi fornecido pela direção do colégio pesquisado.

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outras cinco disciplinas7 buscando identificar se havia diferenças significativas entre o desempenho em diferentes áreas do conhecimento que pudessem ser atribuídas ao gênero.

O UNIveRsO Da pesqUIsa

A pesquisa foi realizada em um colégio localizado na região central de Curitiba, Paraná que oferece turmas de Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio, Educação de Jovens e Adultos e Cursos de idiomas.

A escolha do Colégio não se deu de forma aleatória. Escolheu-se o Colégio Centenário por este ser um dos primeiros colégios do Estado do Paraná, fundado há mais de 100 (cem) anos, ter excelente reputação e ser reconhecido pela sociedade como um Colégio que oferece ensino de boa qualidade. Outro fator que influenciou na escolha do Colégio Centenário foi sua localização central, com diversas formas de acesso por transporte público possibilitando que estudantes oriundos de diversos bairros de Curitiba e Região Metropolitana possam frequentá-lo. Esse fato possibilita a convivência entre estudantes com perfis diferenciados e maior diversidade cultural.

Segundo a diretora Ana Clara, os/as estudantes do Ensino Médio buscam o Colégio por sua localização que facilita o acesso a uma região onde há possibilidade de trabalho. Muitos são originários/as da periferia de Curitiba e municípios da Região Metropolitana e trabalham durante o dia e estudam à noite. Outros estudam pela manhã e trabalham à tarde. Sendo assim, o fato do Colégio estar localizado na área central de Curitiba possibilita que esses estudantes possam conciliar trabalho e estudo, realidade de muitos/as jovens curitibanos/as. Porém essa característica faz com que exista muita rotatividade discente. Os/as estudantes que mudam de trabalho durante o ano letivo mudam também de Colégio. A escola passa a ser provisória, dificultando a criação de vínculo entre os/as estudantes, o Colégio e a comunidade.

Os/as estudantes do Ensino Fundamental também são originários de bairros distantes, porém para estes a motivação é outra. Segundo a diretora, os pais e mães matriculam seus/suas filhos/as no Colégio Centenário com o intuito de assegurar-lhes uma educação de qualidade. Pelo fato dos/as estudantes não pertencerem ao

7 Língua Portuguesa, História, Geografia, Inglês e Ciências.

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mesmo grupo comunitário, uma vez que suas residências estão espalhadas pelos bairros de Curitiba, há dificuldade na formação de uma comunidade escolar coesa, preocupada com o processo escolar.

As turmas nas quais foram aplicados os questionários eram mistas e a distribuição dos/as estudantes por gênero no momento da aplicação do questionário deu-se conforme os números do Quadro 1. O questionário apresentava seis questões fechadas8 com três opções de resposta e quatro abertas9, e foi aplicado pela pesquisadora durante uma das aulas de Matemática na qual o/a professor/a autorizou a aplicação do questionário e disponibilizou o tempo necessário para esta atividade. Neste artigo serão analisadas somente as questões fechadas. Para as questões abertas os estudantes deveriam oferecer somente uma resposta e muitos indicaram várias disciplinas como resposta o que inviabilizou o uso das informações10. Os/as estudantes não precisavam se identificar, mas era fundamental informar se eram meninos ou meninas. Por meio da análise dos dados fornecidos por este questionário foi possível obter um panorama do posicionamento dos/as discentes em relação à Matemática, bem como identificar algumas razões que possam interferir em seu rendimento escolar.

Série Alunos Alunas Total por sérieNo % No %

5ª 16 55,2 13 44,8 296ª 14 42,4 19 57,6 337ª 14 40 21 60 358ª 12 41,4 17 58,6 29

Total por sexo 56 44,4 70 55,6 126

Quadro 1 – Número de discentes que responderam ao questionário por série e por sexoLegenda: No – número absoluto; % porcentagem sobre o total de cada série.Fonte: questionário aplicado pela pesquisadora – 2009.

8 As questões fechadas foram as seguintes: Você gosta de Matemática? Você acha Matemática fácil? Você entende a explicação do professor ou professora? Você pede para o professor ou professora explicar novamente quando não entendeu? Você costuma ir bem nas provas de Matemática? Você acha que Matemática é importante para a sua vida?9 As questões abertas foram as seguintes: Qual a disciplina que você mais gosta? Qual a disciplina que você menos gosta? Em qual disciplina você costuma tirar as melhores notas? Em qual disciplina você costuma tirar as piores notas?10 No artigo “A relação de meninas e meninos com a Matemática: o que elas e eles nos dizem?” apresentado no III Simpósio Nacional de Tecnologia e Sociedade realizado em Curitiba-Pr em 2009, foram analisadas as respostas a todas as questões.

283

Desempenho Escolar em Matemática: O que o gênero tem a ver com isso?

Responderam ao questionário 126 estudantes, sendo 29 da 5ª série, 33 da 6ª série, 35 da 7ª série e 29 da 8ª série11. Do total de questionários, 70 foram respondidos por alunas e 56 por alunos. Esses números mostram que nas turmas pesquisadas a maioria dos/as discentes eram meninas. A única turma na qual a maioria era de meninos foi a 5ª série.

Posteriormente analisou-se os diários de classe das mesmas turmas com o intuito de comparar o rendimento dos/as estudantes ali encontrados com as respostas dadas por eles/elas ao questionário. O número de discentes concluintes constantes

nos diários de classe estão expressos no quadro 2.

Série Alunos Alunas Total por sérieNo % No %

5ª 16 55,2 13 44,8 296ª 15 51,7 14 48,3 297ª 14 43,7 18 56,3 328a 16 48,5 17 51,5 33

Total por sexo 61 49,6 62 50,4 123

Quadro 2 – Número de discentes concluintes por série e por sexoLegenda: No – número absoluto; % porcentagem sobre o total de cada série.

Fonte: Diários de classe – 2009.

O número de alunos e alunas concluintes foi muito próximo, porém eles estavam mais concentrados nas séries iniciais e elas nas séries finais. A maior porcentagem de alunas ocorre na 7ª série (56,3%) e de alunos ocorre na 5ª série (55,2%). Convém salientar que a diferença é pequena tanto em prol dos alunos quanto das alunas.

O questionário foi aplicado no meio do ano de 2009 e a análise dos diários foi realizada ao final do mesmo ano. Essa diferença de tempo foi ocasionada pelo fato de que era necessário que as aulas estivessem em andamento para a aplicação

11 Esses números não representam a totalidade de discentes matriculados nas turmas, pois como foi aplicado em um dia de aula alguns/mas estudantes não estavam presentes.

Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

284

dos questionários e que o ano fosse concluído para analisar as médias finais dos/as estudantes. O fato da coleta de dados por meio dos dois instrumentos ter ocorrido em épocas diferentes ocasionou a diferença entre o número de respondentes ao questionário e de concluintes. Como alguns/mas estudantes foram transferidos de Colégio e outros desistiram, o número de concluintes constantes nos diários de classe foi ligeiramente inferior ao número de respondentes ao questionário.

No decorrer do ano de 2009 analisou-se ainda os Editais de Resultado Final do ano de 2008, nos quais constavam as médias finais dos/as estudantes. Foram analisados os Editais de todas as turmas do Ensino Fundamental de 5ª a 8ª séries do Colégio Centenário. Foi um trabalho manual, pois nesses relatórios não há a desagregação por sexo. Como se teve acesso à versão impressa destes relatórios, foi necessário fazer a separação dos alunos por sexo com base nos nomes e de forma manual. Alguns nomes não permitiam que fosse definido o gênero dos/as estudantes, porém como foram poucos os casos, esses/as discentes foram descartados o que não interferiu no resultado final da pesquisa.

O quadro 3 apresenta o número de estudantes pesquisados/as nesta etapa. O número de alunos supera o de alunas nas 5ª e 6ª séries e isso se inverte na 7ª e 8ª séries, porém no geral os números são praticamente iguais.

Série Alunos Alunas Total por sérieNo % No %

5ª 50 54,3 42 45,7 926ª 69 55,2 56 44,8 1257ª 50 49 52 51 1028ª 39 40,6 57 59,4 96

Total por sexo 208 50,1 207 49,9 415

Quadro 3: Total de estudantes por série e por sexoLegenda: No – número absoluto; % porcentagem sobre o total de cada série.

Fonte: edital de Resultado Final do Colégio Centenário – 2008.

285

Desempenho Escolar em Matemática: O que o gênero tem a ver com isso?

A maior diferença entre os números de alunos e alunas por série ocorre na 8ª série na qual o número de alunos é aproximadamente 2/3 do número de alunas. Estes números convergem para o argumento de Carvalho (2003) de que os meninos abandonam a escola mais precocemente para se dedicar ao trabalho remunerado. Porém neste estudo não se pode fazer nenhuma afirmação com relação às causas da diminuição de alunos na 8ª série.

Quanto aos/às docentes de Matemática, o Colégio Centenário tinha duas professoras e dois professores que atuavam no ensino fundamental de 5ª a 8ª séries no ano de 2009. Elas atuavam nas 5a e 6a séries e eles nas 7a e 8a séries. O fato de os professores estarem nas séries finais e as professoras nas iniciais chamou a atenção desde o princípio. Com o desenvolvimento da pesquisa, verificou-se que a distribuição foi casual. Os dois professores estavam substituindo duas professoras que se encontravam em licença.

A seguir passar-se-á à análise dos dados obtidos por meio dos instrumentos acima mencionados.

a RelaÇÃO DOs alUNOs e alUNas COm a maTemáTICa

Inicia-se a discussão dos resultados com a análise dos dados obtidos por meio do questionário aplicado aos/às estudantes pela pesquisadora. Começou-se o questionário perguntando se os/as estudantes gostavam de Matemática e ofereceu-se a eles/elas três opções de resposta: sim, não e um pouco. A alternativa que recebeu o maior número de respostas foi “sim”, porém não foi a maioria absoluta, pois a soma das outras duas respostas superou este número. Pode-se perceber pelo quadro 4 que a porcentagem de alunos que tem afinidade com Matemática (62%) é quase o dobro da porcentagem de alunas que fizeram a mesma afirmação (37%). Em nenhuma série o número de alunas que disseram gostar de Matemática superou ao de alunos com a mesma resposta.

Os números indicam ainda que os/as estudantes de 5ª série são os/as que demonstram maior afinidade com Matemática. Dentre os/as pesquisados/as, nesta série 53% das alunas e 87% dos alunos afirmaram gostar de Matemática. Porém,

Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

286

considerando-se as porcentagens, a maior diferença entre alunos e alunas ocorreu na 8ª série, na qual 29% das alunas afirmaram gostar de Matemática e o dobro, 58% dos alunos fizeram a mesma afirmação. Percebe-se também que o número de alunas que não manifestaram afinidade com a disciplina é superior ao de alunos. Na 6ª série se encontrou a maior porcentagem de alunos que responderam não gostar de Matemática e a 8ª série a maior porcentagem de alunas com a mesma resposta. Com base nestes números pode-se concluir que, dentre os/as estudantes pesquisados/as, mais alunos do que alunas têm afinidade com a Matemática (quadro 4).

Série Sim Não Um pouco

Alunas Alunos Total por série

Alunas Alunos Total por série

Alunas Alunos Total por série

no % no % no % no % no % no % no % no % no %

5ª 7 53 14 87 21 72 1 8 1 6 2 7 5 38 1 6 6 21

6ª 3 15 3 21 6 18 5 26 4 29 9 27 11 58 7 50 18 55

7ª 11 52 11 78 22 63 3 14 0 0 3 8 7 33 3 21 10 29

8ª 5 29 7 58 12 41 5 29 0 0 5 17 7 41 5 42 12 41

Total por sexo

26 37 35 62 61 48 14 20 5 9 19 15 30 43 16 29 46 37

Quadro 4 – afinidade com Matemática por série e por sexoLegenda: no – número absoluto; % - porcentagem sobre o número de discentes

daquela série e daquele gênero.

Fonte: questionário aplicado pela pesquisadora.

Convém salientar que esse resultado contraria a ideia corrente de que os/as estudantes, alunos e alunas, não têm afinidade com a Matemática. O que leva a essa conclusão é o fato de que a porcentagem de estudantes que afirmam gostar de Matemática (48%) é mais do que o triplo da porcentagem dos/as estudantes que dizem não gostar desta disciplina (15%). Entretanto os números reforçam a ideia de que as meninas gostam menos de Matemática do que os meninos.

Em seguida procurou-se saber se os/as discentes consideram que Matemática é uma disciplina fácil. As opções de respostas eram sim, não e um pouco. A maioria dos/as estudantes (57%) respondeu que Matemática é um pouco fácil, ou seja, eles/

287

Desempenho Escolar em Matemática: O que o gênero tem a ver com isso?

as apresentam dificuldade de aprendizagem nessa disciplina, mas não acham difícil (quadro 5). A porcentagem dos/as estudantes que consideram Matemática difícil foi de 29% e apenas 14% consideram-na fácil.

A porcentagem de estudantes que consideram Matemática fácil (14%) é menor do que um terço dos/as estudantes que afirmaram gostar de Matemática (48% - quadro 4). Comparando as informações dos quadros 4 e 5 pode-se perceber que mesmo considerando difícil, uma parcela significativa de estudantes (alunos e alunas) afirmam gostar de Matemática. Esses números induzem a pensar que o fato de não considerarem fácil aprender Matemática não é impeditivo para que eles/elas desenvolvam o gosto pela disciplina. Essa ligação pode existir, porém não é diretamente proporcional e não se evidencia pelos números. Convém salientar que a porcentagem de alunas que consideram Matemática fácil (14%) é igual à porcentagem de alunos com a mesma resposta (14%), entretanto a porcentagem de alunas que não acham Matemática fácil supera em 3% a de alunos com a mesma opinião. Na opinião dos/as estudantes, não há diferença significativa no que tange aos números relativos à facilidade em aprender Matemática.

Série Sim Não Um poucoAlunas Alunos Total

por sérieAlunas Alunos Total por

sérieAlunas Alunos Total

por sérieno % no % no % no % no % no % no % no % no %

5ª 3 23 4 25 7 24 3 23 5 31 8 28 7 54 7 44 14 486ª 1 5 1 7 2 6 8 42 4 29 12 36 10 53 9 64 19 58

7ª 5 24 1 7 6 17 5 24 4 29 9 26 11 52 9 64 20 578ª 1 6 2 17 3 10 5 29 2 17 7 24 11 65 8 66 19 66

Total por sexo

10 14 8 14 18 14 21 30 15 27 36 29 39 56 33 59 72 57

Quadro 5 – Discentes que acham Matemática fácil por série e por sexoLegenda: no – número absoluto; % - porcentagem sobre o número de discentes

daquela série e daquele gênero.

Fonte: questionário aplicado pela pesquisadora.

Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

288

Em seguida, buscou-se saber se os/as estudantes entendiam as explicações do/a professor/a. Os/as estudantes tinham três opções de respostas: sim, não e às vezes. Comparando as respostas afirmativas e negativas pode-se perceber que a porcentagem de estudantes que afirmaram entender as explicações do/a professor/a (42%) é expressivamente superior à porcentagem dos/as estudantes que não entendem (3%), porém a maioria (55%) afirma que às vezes entendem e outras vezes não (quadro 6).

Série Sim Não Às vezesAlunas Alunos Total

por sérieAlunas Alu-

nosTotal

por sérieAlunas Alunos Total por

sérieno % no % no % no % no % no % no % no % no %

5ª 4 30 6 38 10 35 0 0 1 6 1 3 9 70 9 56 18 626ª 5 26 7 50 12 36 1 5 1 7 2 6 13 68 6 43 19 587ª 8 38 8 57 16 46 0 0 0 0 0 0 13 62 6 43 19 548ª 6 35 9 75 15 52 1 6 0 0 1 3 10 59 3 25 13 45

Total por sexo

23 33 30 53 53 42 2 3 2 4 4 3 45 64 24 43 69 55

Quadro 6 – Discentes que entendem a explicação do professor por série e por sexoLegenda: no – número absoluto; % - porcentagem sobre o número de discentes

daquela série e daquele gênero.

Fonte: questionário aplicado pela pesquisadora.

Considera-se a resposta às vezes como não satisfatória, pois se os/as estudantes não entendem a explicação, mesmo que seja às vezes, terão dificuldade em assimilar o conteúdo matemático. A soma da porcentagem dos/as estudantes que não entendem com a porcentagem dos/as que às vezes entendem totaliza 58%, ou seja, mais da metade dos/as pesquisados/as saem das aulas de Matemática sem entender o que foi ensinado. Esse número é significativo e pode refletir-se no fato dos/as estudantes não considerarem Matemática como uma disciplina fácil, bem como em seu baixo rendimento escolar, como será demonstrado mais adiante.

Percebe-se ainda que mais alunos (53%) do que alunas (33%) afirmam entender a explicação dos/as professores/as. Ou seja, a dificuldade de compreensão

289

Desempenho Escolar em Matemática: O que o gênero tem a ver com isso?

no geral (58%) é alta e quando se observa as respostas femininas é ainda maior (67%). Com base nesses dados pode-se concluir que as meninas têm mais dificuldade de compreensão do conteúdo matemático do que os meninos. Porém, os números podem indicar ainda que as meninas assumem mais essa dificuldade do que os meninos. Podem indicar também uma diferença de postura e não de aprendizado. Em nenhuma série a porcentagem de alunas que afirmou entender as explicações dos professores superou a porcentagem de alunos com a mesma resposta.

O fato de 58% (quadro 6) dos estudantes saírem das aulas de Matemática com dúvidas pode indicar que as estratégias de ensino adotadas pelos/as professores/as não estão sendo eficazes uma vez que eles/as não se fazem entender pela maioria dos/as estudantes. Convém salientar que as aulas são expositivas. Os/as professores/as explicam o conteúdo, passam alguns exercícios, acompanham os/as estudantes durante a execução auxiliando-os/as quando solicitados/as e depois fazem a correção dos exercícios na lousa.

A próxima pergunta foi se os/as estudantes pediam ao/à professor/a que explicasse novamente quando não entendiam a explicação. As opções de respostas foram as mesmas da pergunta anterior. O número de respostas para cada alternativa foi mais equilibrado (quadro 7). A porcentagem de estudantes que afirmaram pedir nova explicação quando não entendiam o conteúdo (34%) foi superior à porcentagem correspondente aos/às estudantes que não pediam explicação (28%). Porém a porcentagem de alunas que pediam explicação (26%) foi inferior a porcentagem das que não pediam explicação (41%). Quanto aos alunos, 45% deles pediam para os/as professores/as explicarem novamente e 10% não tiravam suas dúvidas.

Série Sim Não Às vezesAlunas Alunos Total

por sérieAlunas Alunos Total por

sérieAlunas Alunos Total

por sérieno % no % no % no % no % no % no % no % no %

5ª 5 38 8 50 13 45 4 31 1 6 5 17 4 31 7 44 11 386ª 4 21 4 29 8 24 9 47 2 14 11 33 6 32 8 57 14 437ª 6 29 8 57 14 40 8 38 0 0 8 23 7 33 6 43 13 378ª 3 18 5 42 8 28 8 47 3 25 11 38 6 35 4 33 10 34

Total por sexo

18 26 25 45 43 34 29 41 6 10 35 28 23 33 25 45 48 38

Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

290

Quadro 7 – Discentes que tiram suas dúvidas por série e por sexoLegenda: no – número absoluto; % - porcentagem sobre o número de discentes

daquela série e daquele gênero.Fonte: questionário aplicado pela pesquisadora.

Esses números indicam que a quantidade de alunas que saíam das aulas de Matemática com dúvidas sobre o conteúdo explicado (74%)12 é significativamente superior ao número de alunos que não resolviam suas dúvidas (55%). Essa postura feminina pode ser motivada por inúmeros fatores. Dentre eles pode-se colocar a timidez, o desinteresse pela matéria, o receio de que os colegas zombem de suas dúvidas, a postura do professor/a que pode intimidá-las ou o fato de terem entendido a explicação. A última opção não se aplica, pois, na pergunta anterior (quadro 6), somente 33% delas afirmaram entender quando o/a professor/a explicava. Os fatores acima mencionados podem afetar também os alunos, porém, no caso desta pesquisa, isso ocorre em menor proporção. Os/as estudantes (alunas e alunos) que não entendem o conteúdo explicado pelo/a professor/a e não pedem esclarecimentos aos/às professores ou aos colegas dificilmente terão condições de obterem bons resultados nas avaliações, ou seja, não sanar as dúvidas reflete-se diretamente no rendimento escolar e prejudica a aprendizagem dos conteúdos subsequentes.

A análise das respostas dos/as estudantes a estas quatro perguntas evidencia uma postura diferenciada dos alunos e alunas nas aulas de Matemática. Os alunos demonstram uma postura mais ativa, buscando sanar suas dificuldades de compreensão do conteúdo e maior autoestima ao afirmarem entender a explicação e ao considerarem Matemática fácil. As respostas das alunas demonstram que elas têm mais dificuldade de se comunicar com os/as professores/as e de expor suas dúvidas diante da turma. Isso pode indicar maior timidez ou maior preocupação com o que os/as colegas podiam pensar a seu respeito. O fato de não sanar suas dúvidas pode fazer com que os estudantes obtenham resultados cada vez piores e se afastem da Matemática e por consequência das carreiras que necessitam de seu conteúdo como base para o desenvolvimento das atividades cotidianas. Dificilmente os/as jovens se interessarão por profissões que tenham como pré-requisito conteúdos que eles/elas não dominam.

12 Este número resulta da soma das porcentagens dos/as estudantes que disseram não pedir explicação com as porcentagens dos/as estudantes que às vezes pedia para o/a professor/a explicar novamente.

291

Desempenho Escolar em Matemática: O que o gênero tem a ver com isso?

O ReNDImeNTO esCOlaR

As questões levantadas até o momento podem interferir diretamente no rendimento escolar dos/as estudantes. Quando questionados/as se eles/elas costumavam obter bons resultados nas avaliações de Matemática13, menos de 1/3 dos/as estudantes afirmaram que sim (quadro 8). Mais da metade dos/as respondentes afirmou que às vezes tiram boas notas. A 5ª série foi a turma na qual uma porcentagem maior de estudantes (41%) afirmaram obter bons resultados nas avaliações. A maioria dessas respostas foi dada pelos alunos (56%). Essa porcentagem corresponde a mais do que o dobro das respostas das alunas. Somente 23% delas afirmaram obter bons resultados nas avaliações na 5ª série.

Série Sim Não Às vezesAlunas Alunos Total

por sérieAlunas Alunos Total

por sérieAlunas Alunos Total

por série

no % no % no % no % no % no % no % no % no %5ª 3 23 9 56 12 41 2 15 1 6 3 10 8 62 6 38 14 486ª 2 11 3 21 5 15 7 37 5 36 12 36 10 53 6 43 16 487ª 3 14 3 21 6 17 6 29 2 14 8 23 12 57 9 64 21 608ª 3 18 3 25 6 21 4 24 1 8 5 17 9 53 7 58 16 55

Total por sexo

11 16 18 32 29 23 19 27 9 16 28 22 38 54 28 50 66 52

Quadro 8 – Rendimento dos discentes por série e por sexoLegenda: no – número absoluto; % - porcentagem sobre o número de discentes

daquela série e daquele gênero.

Fonte: questionário aplicado pela pesquisadora.

Pode-se observar que a porcentagem de estudantes que assumiram não obter bons resultados nas avaliações (22%) foi praticamente igual ao número dos/

13 As avaliações nas turmas observadas são compostas por diversas atividades dentre elas provas individuais e trabalhos individuais e em grupos. São várias avaliações durante o bimestre que contribuirão para a construção das médias bimestrais.

Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

292

as discentes que afirmaram obter boas notas (23%). Porém quando se olha para o desempenho feminino a diferença entre as porcentagens das alunas que afirmaram obter bons resultados nas avaliações (16%) e a porcentagem das alunas que disseram não obter bons resultados (27%) aumenta significativamente.

Por outro lado, os alunos são mais confiantes. Uma parcela significativa deles (32%) afirmou obter boas notas nas avaliações e 16% admitiram não ter bom rendimento em Matemática. Essa diferença na percepção dos estudantes sobre o seu rendimento escolar converge para os resultados encontrados por Souza e Fonseca (2008) sobre a percepção que as mulheres e homens têm sobre suas habilidades matemáticas no cotidiano. Com base nas respostas das mulheres à pesquisa do Inaf, as autoras argumentam que para as mulheres, “o ato de fazer contas representa uma dificuldade, quando não uma absoluta impossibilidade” (p. 518) enquanto que para os homens essa atividade parece ser mais corriqueira, pois 60% deles “afirmaram não ter dificuldades para fazer contas” (SOUZA e FONSECA, 2008, p. 518). A forma como as mulheres percebem-se em relação à Matemática no estudo sobre o Inaf converge para a forma como as alunas se percebem na pesquisa aqui apresentada. Nos dois casos as pesquisadas se percebem mais distantes da Matemática do que os pesquisados.

Convém salientar que o que é uma boa nota para um/a não o é para outro/a. Porém é visível a diferença na percepção que os/as estudantes têm sobre seu desempenho escolar e estes números não podem ser ignorados. Esse resultado pode significar que elas são mais exigentes do que eles no que tange ao rendimento escolar e não necessariamente que elas obtenham rendimento inferior ao deles. Pode significar ainda que elas realmente apresentem menor rendimento do que eles em Matemática. Esta opção se mostra inválida quando se analisa o rendimento escolar dos estudantes com base nos diários de classe a ser demonstrado na sequência.

Comparando o quadro 8 que versa sobre o rendimento de alunos e alunas com o quadro 4 que aborda a questão do gosto pela Matemática, pode-se concluir que o baixo rendimento não é impeditivo para que os/as estudantes gostem de Matemática, pois a porcentagem de respondentes que afirmam gostar de Matemática (48%) é bastante superior à porcentagem dos/as que afirmam apresentarem bom desempenho

293

Desempenho Escolar em Matemática: O que o gênero tem a ver com isso?

nas avaliações (23%). Uma porcentagem significativa (25%) de estudantes que não obtém bom desempenho nas avaliações afirmou gostar de Matemática.

Ao analisar as médias anuais dos/as estudantes com base nos diários de classe, documento oficial, percebeu-se que as meninas foram a maioria dos/as discentes

que obtiveram média final igual ou superior a 7014 (quadro 9). A porcentagem das alunas com média igual ou superior a 70 foi de 21% enquanto que a porcentagem de alunos na mesma condição foi de 16%. Isso se inverte entre os/as estudantes com rendimento regular. A porcentagem de alunas com notas entre 70 e 60 é de 35% e de alunos nessa mesma condição é de 41%. Quando se analisam as porcentagens de estudantes com rendimento ruim as alunas (44%) superam os alunos (43%) em 1%, diferença esta insignificante.

Série Notas superiores a 70 Notas entre 70 e 60 Notas inferiores a 60Alunas Alunos Total

por sérieAlunas Alunos Total

por sérieAlunas Alunos Total

por sérieno % no % no % no % no % no % no % no % no %

5ª 5 38 1 6 6 21 4 31 9 56 13 45 4 31 6 38 10 346ª 0 0 3 20 3 10 6 43 5 33 11 38 8 57 7 47 15 527ª 4 22 2 14 6 19 6 33 5 36 11 34 8 44 7 50 15 478ª 4 24 4 25 8 24 6 35 6 38 12 36 7 41 6 37 13 39

Total por sexo

13 21 10 16 23 19 22 35 25 41 47 38 27 44 26 43 53 43

Quadro 9 – Rendimento dos discentes por série e por sexoLegenda: no – número absoluto; % - porcentagem sobre o número de discentes

daquela série e daquele gênero.

Fonte: Diários de classe – 2009.

A série na qual o desempenho feminino é pior é a 6ª série, na qual 57%

das alunas obtiveram médias inferiores a 60. Esta foi também a série na qual maior

14 Para este artigo considerou-se bom desempenho as médias maiores ou iguais a 70. Desempenho regular as médias menores que 70 e maiores ou iguais a 60. Desempenho ruim as médias inferiores a 60 que representam a reprovação dos/as estudantes.

Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

294

número de alunas afirmou não obter bons resultados nas avaliações (37% no quadro

8). Em duas séries (5ª e 7ª) a porcentagem de alunas com notas inferiores a 60 é

menor do que a porcentagem de alunos com rendimento similar e nas outras duas

(6ª e 8ª) os números se invertem. Estes números não coincidem com os números

encontrados no quadro 8. Naquele quadro a porcentagem de alunas que afirmavam

se sair bem nas avaliações era inferior ao de alunos com a mesma afirmação em todas

as séries.

Comparando as respostas do questionário (quadro 8) com a análise do

rendimento encontrado nos diários de classe (quadro 9) pode-se perceber que a

porcentagem de estudantes que obtém bom desempenho nas avaliações (19%) não

difere muito da porcentagem de estudantes que, ao responderem o questionário,

afirmaram tirar boas notas em Matemática (23%). É importante observar que a

porcentagem de alunas que obtiveram médias superiores a 70 (21%), supera a

porcentagem das alunas que afirmaram obter bons resultados (16%). Com relação

aos alunos, 32% afirmaram obter boas notas nas avaliações e exatamente a metade

deles (16%) obteve médias superiores a 70.

Esses números indicam que há diferença entre a percepção deles e delas com

relação ao seu desempenho em Matemática. Em estudo realizado nos Estados Unidos

da América, a equipe chefiada pela pesquisadora Nicole Else-Quest argumentou

que “estereótipos sobre a inferioridade feminina em Matemática são um contraste

claro com os verdadeiros dados científicos” (citada por BBC, 2010). Essa suposta

inferioridade feminina pode estar influenciando as meninas na construção da

percepção de seu rendimento escolar, ou seja, elas se percebem menos produtivas do

que o são, enquanto eles superestimam seu rendimento.

O quadro 9 mostra ainda que pouco mais da metade (57%) dos/as estudantes

obtiveram notas suficientes para serem aprovados. Comparando as três categorias

– bom rendimento (19%), rendimento regular (38%) e rendimento ruim (43%) – a

maior porcentagem dos/as estudantes obtiveram rendimento ruim e ficaram com

295

Desempenho Escolar em Matemática: O que o gênero tem a ver com isso?

as médias finais inferiores a 60, nota mínima para a aprovação15. Esses números são preocupantes, pois quase metade dos estudantes pesquisados/as não apresentou o rendimento mínimo necessário para a aprovação.

Considerando que o rendimento obtido nas avaliações é reflexo do conhecimento adquirido durante as aulas, significa que mesmo que sejam aprovados pelo conselho de classe estes/as estudantes seguirão para as séries seguintes sem o conhecimento mínimo necessário para dar continuidade a seus estudos matemáticos. Provavelmente estes/as estudantes continuarão apresentando rendimento abaixo do esperado nas séries seguintes uma vez que lhes faltarão os pré-requisitos que deveriam ter sido adquiridos nas séries anteriores. Evidentemente isso nem sempre se aplica, pois em muitos casos o desempenho escolar não reflete o aprendizado e estes conteúdos podem ser recuperados na sequência dos estudos, porém, para que isso ocorra é necessário um empenho maior dos/as estudantes.

No quadro 10 são apresentadas as médias gerais dos/as estudantes das quatro turmas cujos diários de classe foram analisados. Ao observar essas médias, percebe-se que elas são baixas. Em três séries (6ª, 7ª e 8ª) a média geral é inferior à nota mínima para aprovação que é 60. Em três séries (5ª, 6ª e 7ª) a média dos alunos é inferior a 60 e em duas séries (6ª e 8ª) as médias das alunas é inferior a 60. Em duas séries as médias das meninas são superiores à média dos meninos e nas outras duas séries a situação se inverte. Não se pode deixar de observar que a diferença entre as médias de alunos e alunas nas turmas nas quais elas os superam é menor do que nas turmas nas quais eles as superam. Isso indica que o rendimento dos alunos em Matemática no ano de 2009 foi superior ao rendimento das alunas. O fato das médias terem sido baixas significa que mesmo os/as estudantes que obtiveram nota suficiente para aprovação, ficaram com suas médias próximas a 60.

15 Isso não significa que os/as estudantes reprovaram. Existe a possibilidade de eles/as terem sido aprovados/as no conselho de classe. O conselho de classe é uma reunião de professores/as que acontece ao final de cada bimestre para avaliar o desempenho dos/as estudantes. Na reunião do 4º bimestre este conselho tem a autonomia de aprovar estudantes que não obtiveram médias superiores a 60 em todas as disciplinas. Os critérios para aprovação são estabelecidos pelo próprio conselho.

Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

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Séries Médias anuais - 2009 Diferença entre as médias dos alunos e das alunasAlunas Alunos Geral

5ª 61.5 59,4 60,3 2,1 a favor delas6ª 51 54,1 52,6 3,1 a favor deles7ª 60,9 58,3 59,8 2,6 a favor delas8ª 57,4 60,7 59 3,3 a favor deles

Total 57,8 58,2 58 0,4 a favor deles

Quadro 10 – Médias anuais por série e por sexo

Fonte: Diários de classe – 2009.

O menor rendimento das alunas pode ser explicado pelo fato de que elas são a minoria em várias situações: dos/as que gostam de Matemática, dos/as que consideram-na fácil, dos que entendem as explicações dos/as professores/as e dos/as que solicitam nova explicação quando não a entendem. Os números indicam que estes fatores se refletem no rendimento escolar dos/as estudantes e fazem com que as médias caiam.

Até o momento analisou-se exclusivamente o rendimento e a postura dos estudantes com relação à Matemática. Embora este tenha sido o foco principal do estudo, considerou-se importante fazer a comparação do rendimento escolar dos estudantes em outras disciplinas. Para isso analisou-se os editais encaminhados à secretaria Estadual de Educação do Estado do Paraná referente ao ano de 2008. Nestes diários constavam as médias finais dos/as estudantes em todas as disciplinas e o resultado final que poderia ser três: aprovado, aprovado por conselho de classe ou reprovado.

Com essa análise pode-se perceber que as médias das alunas superam as médias dos alunos em todas as séries e disciplinas. Comparando o desempenho em Matemática e Língua Portuguesa percebe-se que as médias de alunos e alunas são próximas. Por exemplo, na 8ª série a média das alunas em Matemática foi de 65,4 e em Língua Portuguesa foi de 64,5. Os alunos da mesma série tiveram média em Matemática de 63,2 e em Língua Portuguesa de 60,3. Estudos apontam que as meninas e mulheres se destacam em Linguagens e os meninos e homens em Matemática

297

Desempenho Escolar em Matemática: O que o gênero tem a ver com isso?

(ANDRADE, FRANCO e CARVALHO, 2003; SOUZA e FONSECA, 2008). Outros estudos apontam que as mulheres se sobressaem nas disciplinas voltadas para a área das ciências humanas (CARVALHO, 2008). Os dados desta pesquisa mostram que as alunas se destacaram em Língua Portuguesa e Inglês, disciplinas que podem ser consideradas Linguagens, porém os alunos não as superaram em Matemática. Esta pesquisa contrariou parcialmente os estudos acima citados e indica que as alunas também têm habilidades para os estudos matemáticos. Quanto à História e Geografia, as médias delas também são superiores às médias deles, o mesmo ocorrendo com Ciências.

Disciplina 5ª série 6ª série 7ª série 8ª sérieAlunas Alunos Alunas Alunos Alunas Alunos Alunas Alunos

Matemática 68,2 60,2 67,9 60,8 65,1 64,2 65,4 63,2Língua Portuguesa 71,8 60,7 69,1 58,3 63,9 58,6 64,5 60,3

Ciências 79,7 71,3 61,9 54,3 71,4 70,1 61,6 60,7História 73,2 60,5 66,8 58,2 64,2 56,8 63,1 61,2

Geografia 73,5 63,4 67,1 62,2 65,4 62,1 63 61,3Inglês 71,1 57,9 67,3 55,3 68,2 59,9 67,8 66,7

Quadro 11- Média geral por série, por disciplina e por sexo Fonte: edital de Resultado Final do Colégio Centenário – ano de 2008.

As médias femininas ficaram acima de 60 em todas as disciplinas e séries enquanto que para as médias masculinas isso não se aplica. Pode-se exaltar o desempenho feminino no ano de 2008, mas é importante refletir sobre as causas que levaram ao baixo rendimento dos alunos neste mesmo ano. Enquanto educadores/as, a principal preocupação é com o desenvolvimento intelectual de todos/as os/as estudantes. Esse desenvolvimento se reflete nas avaliações escolares. As baixas médias de alunos e alunas são preocupantes, pois indicam que estes/as jovens estão seguindo para as séries seguintes sem dominar os conteúdos básicos para seguirem seus estudos.

Quando se faz o recorte para analisar os/as estudantes com bom rendimento em 2008 percebe-se que a porcentagem de alunos com notas superiores a 70 supera a

Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

298

porcentagem de alunas em apenas dois casos, em Ciências na 6ª série e em Matemática na 7ª série (quadro 12). Nas demais disciplinas e séries as meninas são a maioria dos/as estudantes com média final superior a 70. A 5ª série foi a que apresentou a maior variação das médias de alunos e alunas em todas as matérias analisadas, sendo que as médias femininas foram superiores. A diferença na porcentagem de meninos e meninas superou os 20% em Língua Portuguesa, História, Ciências, Inglês e Geografia, chegando a mais de 28% nesta última. Em Matemática a porcentagem de meninas com médias superiores a 70 superou a porcentagem masculina em 8,1 %. A diferença nas porcentagens de alunos e alunas com bom rendimento em Matemática na 6ª série, na qual as médias femininas foram superiores, chegou a 16,1% e a 5,3 na 7ª série na qual os meninos superaram as meninas (quadro 12).

Disciplina 5ª série 6ª série 7ª série 8ª série

Alunas Alunos Alunas Alunos Alunas Alunos Alunas Alunos

n % n % n % n % n % n % n % n %

Matemática 16 38,1 15 30 22 39,3 16 23,2 16 33,3 19 38 20 35,1 11 28,2

Língua Portuguesa

21 50 14 28 25 44,6 16 23,2 18 37,5 14 28 21 36,8 7 17,9

Ciências 31 73,8 25 50 6 10,7 8 11,6 28 58,3 22 44 10 17,5 5 12,8

História 24 57,1 14 24 19 33,9 16 23,2 18 37,5 11 22 17 29,8 6 15,4

Geografia 27 64,3 18 36 27 48,2 19 27,5 18 37,5 16 32 19 33,3 8 20,5

Inglês 22 52,4 13 26 17 30,4 17 24,6 23 47,9 15 30 29 50,9 17 43,6

Quadro 12- Estudantes com médias finais superiores a 70 por série, por disciplina e por sexoLegenda: n – número absoluto; % sobre o total de estudantes do gênero em cada série.

Fonte: edital de Resultado Final do Colégio Centenário – 2008.

Os dados aqui apresentados evidenciam o melhor rendimento feminino nas diversas disciplinas no ano de 2008. A crença de que as meninas têm menor habilidade em Matemática não se confirma, pois na maioria das séries elas superam os meninos no que tange ao bom rendimento. Estes números levam à concordância com Brito (1996, p.75) quando ela argumenta que

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Desempenho Escolar em Matemática: O que o gênero tem a ver com isso?

Culturalmente, são atribuídos “rótulos” aos indivíduos e afirmações que não são confirmadas através de pesquisas passam a ser consideradas como verdadeiras. Assim, cristalizou-se a idéia que a habilidade verbal é uma característica feminina e a habilidade matemática é uma característica masculina. Dentro desta concepção, os homens deveriam apresentar alta habilidade matemática e baixa habilidade verbal enquanto as mulheres apresentariam alta habilidade verbal e baixa habilidade matemática.

Os números apresentados neste artigo evidenciam que este fato não ocorre.

O rendimento escolar das alunas demonstrou que elas têm mais habilidade do que

os alunos em todas as disciplinas incluindo Matemática, Língua Portuguesa e Inglês,

porém a diferença a favor das alunas é maior em Língua Portuguesa e Inglês do que

em Matemática. É evidente que os dados analisados neste artigo foram construídos

de forma diferenciada dos dados obtidos por meio de testes padronizados.

Quando se compara o rendimento das alunas e alunos nos anos de 2008

e 2009, percebe-se que os rendimentos são diferenciados e se alternam. A média

das meninas em Matemática no ano de 2008 (66,6) superou a média dos meninos

(61,9). Em 2009 os números se invertem. As meninas ficaram com média geral de

57,8 e os meninos 58,2. Ou seja, se no ano de 2008 as meninas obtiveram melhores

resultados, em 2009 foram os meninos que se saíram melhor em Matemática (quadro

13). Essa alternância no rendimento de alunas e alunos indica que o desempenho em

Matemática depende de diversos fatores. O gênero pode ser um desses fatores, mas

não o principal.

Percebe-se ainda que o rendimento dos/as estudantes em Matemática em

2008 é melhor do que o rendimento em 2009 na mesma disciplina (quadro 13). Isso

pode ter ocorrido pelo fato de que os documentos analisados nos dois anos foram

diferentes. No documento de 2008 constava a média final, já ajustada pelo conselho

de classe e no documento de 2009 não. Nos diários de classe constavam as médias

reais, sem os possíveis ajustes feitos por ocasião do conselho de classe.

Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

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Séries Médias anuais - 2009 Médias anuais -2008Alunas Alunos Geral Alunas Alunos Geral

5ª 61,5 59,4 60,3 68,2 60,2 63,96ª 51 54,1 52,6 67,9 60,8 647ª 60,9 58,3 59,8 65,1 64,2 63,58ª 57,4 60,7 59 65,4 63,2 64,5

Total 57,8 58,2 58 66,6 61,9 64,2

Quadro 13- Média geral por série, por ano e por sexo Fonte: edital de Resultado Final do Colégio Centenário – ano de 2008 e Diários

de classe-2009.

Convém salientar que embora o Colégio analisado nos dois anos seja o mesmo, os/as professores/as e os/as estudantes não o são. Por ser um Colégio da rede estadual de ensino, existe rotatividade de professores/as e de estudantes de ano para ano e até mesmo durante o mesmo ano. Sendo assim, o público analisado nos dois anos era diferente. É importante salientar que a aptidão individual interfere significativamente no rendimento dos/as estudantes e o fato dos/as pesquisados/as não serem os/as mesmos/as pode ter sido um componente importante na diferença de rendimento encontrada nos dois anos, entretanto este não é o único fator a definir essa diferença. A configuração das turmas, o relacionamento dos/as estudantes com os/as professores/as e entre si, o clima em sala de aula, dentre outros, podem ter contribuído para a construção desta diferença. De acordo com Messias e Monteiro (2009, p. 4032) “um clima positivo na sala de aula contribui para a promoção no aluno de um sentimento de valor, uma auto-estima positiva, confiança em si, nas suas competências e capacidades de autocrítica” que podem resultar em bom desempenho escolar.

301

Desempenho Escolar em Matemática: O que o gênero tem a ver com isso?

CONsIDeRaÇões FINaIs

A análise dos dados obtidos por meio dos três instrumentos de coleta de dados utilizados para este artigo demonstrou coerência entre as respostas dos/as estudantes ao questionário e as notas por eles/as obtidas nas avaliações de Matemática. A minoria dos/as estudantes (23%) afirmou obter bons resultados em Matemática e isso se confirmou na avaliação das médias por eles obtidas. Na análise dos diários de classe de Matemática do ano de 2009, 19% dos/as estudantes obtiveram médias iguais ou superiores a 70. Porém a coerência diminui quando se analisa os números sob a perspectiva de gênero. A postura das alunas é mais humilde no que diz respeito ao rendimento escolar. Elas se percebem menos produtivas do que o são, pois somente 16% das alunas afirmaram obter bons resultados nas avaliações e 21% delas obtiveram médias iguais ou superiores a 70, considerado neste estudo como bom rendimento. Por outro lado, 32 % dos alunos afirmam obter bom desempenho nas avaliações e somente 16% deles finalizaram o ano com médias iguais ou superiores a 70.

Essa diferença na forma de perceber o próprio desempenho como satisfatório pode significar que as alunas são mais exigentes ao considerar o seu rendimento em Matemática. Pode significar ainda que elas tenham autoestima mais baixa e por este motivo percebem seu rendimento como inferior ao que realmente o é. A baixa autoestima das meninas pode ser resultado da forma diferenciada de socialização. Desde muito cedo, são ofertados estímulos diferenciados às crianças de sexos diferentes. Eles são estimulados a participarem de brincadeiras que necessitam de mais iniciativa e que são realizadas em grupo. Essas atividades podem resultar no aumento da autoconfiança dos meninos.

Por outro lado, às meninas são apresentadas brincadeiras que desenvolvem as habilidades relativas ao cuidado o que pode resultar no fato de que elas não se percebam como competitivas e produtivas. Velho argumenta que no decorrer do processo de socialização “as mulheres são ensinadas a procurar ajuda e a ajudar, e não a serem autoconfiantes ou a funcionar autônomas e competitivamente como os garotos” (2006, p. xiv). As meninas são treinadas para o cuidado e não para a ousadia. A elas raramente são proporcionadas experiências que estimulam a criatividade, a iniciativa, a agressividade, a assertividade, a racionalidade, características

Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

302

fundamentais para o desenvolvimento da auto-confiança e da segurança com relação às suas decisões, tanto no campo pessoal quanto no profissional. Isso pode se refletir no fato de que poucas mulheres buscam as carreiras científicas e tecnológicas nas quais essas características são fundamentais.

Hildete Pereira de Melo, quando de sua participação em mesa redonda no Congresso Fazendo Gênero 9, argumentou que ao se dar uma boneca a uma menina, ensina-se que ela deve cuidar do brinquedo como se fosse um ser humano. Dificilmente a menina irá desmontar a boneca, pois esta não é uma atitude que se tenha no cuidado com as crianças. Normalmente não se tiram as pernas, a cabeça, os braços de um ser humano. Por outro lado, os meninos são presenteados com carrinhos, os quais eles podem desmontar e montar novamente, muitos são estimulados a fazer esta experiência. Essa atitude, aparentemente inocente os estimula mais do que elas a experimentar, a apertar o botão para ver o que acontece, a abrir para ver o que tem dentro. Eles aprendem que podem desmontar e depois montar novamente, que nada de errado vai acontecer e que se acontecer, pode-se consertar depois. Não há problema em errar. Elas aprendem a cuidar, a preservar, a acertar. Com seres humanos não se pode fazer experiências, não se pode errar. O medo de errar e a falta de “treinamento” de como fazer certo pode resultar em insegurança e falta de iniciativa. O resultado desse “treinamento” (ou falta dele) pode causar um sentimento de inferioridade nelas e se refletir na forma como alunos e alunas percebem seus rendimentos escolares, como apontado neste artigo.

Os dados desta pesquisa são significativos. Contradizem a ideia corrente de que os alunos têm maior habilidade para a Matemática do que as alunas e de que elas se sobressaem em Linguagem. Neste estudo pode-se perceber que elas se destacam em Matemática e também em Linguagens. A diferença de rendimento não pode ser confundida com diferença de capacidade de aprendizagem ou de potencial. Dal’Igna (2007, p. 251) argumenta que “é possível pensar que o desempenho em sala de aula pode não ser indicativo do potencial verdadeiro”, porém este argumento tem sido acionado somente a favor dos meninos.

Walkerdine (1995) argumenta que são utilizados argumentos diferenciados para justificar o baixo desempenho de alunos e alunas. Quando eles não obtêm bons resultados costuma-se encontrar razões no fato deles serem agitados e terem

303

Desempenho Escolar em Matemática: O que o gênero tem a ver com isso?

dificuldade de concentração e quando elas se saem mal nas avaliações, as razões são buscadas na falta de conhecimento e de capacidade intelectual. Resultado semelhante foi encontrado por Dal’Igna (2007, p. 250) em estudo realizado com professoras de educação infantil. A autora argumenta que as dificuldades femininas “são justificadas por sua (in)capacidade cognitiva, portanto não atingiram a média por sua falta de conhecimento”. Não se pode cair nesta armadilha quando se analisa a vantagem que as alunas obtêm sobre os alunos. Os números aqui analisados demonstram que elas obtiveram melhores resultados do que eles. A forma de avaliação foi a mesma para todos/as os/as estudantes independentemente do gênero e, nesse tipo de avaliação, elas obtiveram mais sucesso. Evidenciam ainda que o rendimento escolar, de modo especial em Matemática, é baixo. Indica a necessidade de rever o ensino em geral, especialmente o ensino de Matemática para que se possibilite melhor rendimento por parte dos/as estudantes.

Não era objetivo deste estudo afirmar que meninas são melhores do que meninos (ou vice-versa) e sim contribuir para a discussão sobre o acesso deles e delas ao conhecimento matemático. O suposto baixo rendimento escolar das meninas em Matemática é, muitas vezes, utilizado como justificativa para a pouca participação feminina nas carreiras científicas e tecnológicas. Entretanto os dados desta pesquisa indicam que o rendimento feminino supera ou se equipara ao rendimento masculino em Matemática. Sendo assim, tudo indica que o rendimento em Matemática não justifica a menor participação feminina nestas carreiras. Isso parece ser mais uma questão comportamental. Falta-lhes o treinamento para o desenvolvimento de atitudes condizentes com as atividades dessas carreiras, como dito anteriormente.

Considerando que o conteúdo matemático é fundamental para a maioria das carreiras que são voltadas para a ciência e a tecnologia, o melhor desempenho delas pode resultar no aumento do número de mulheres que se interessam por essas áreas profissionais. Evidentemente o fato de obter bons resultados em Matemática não significa que estas meninas vão se interessar pelas carreiras científicas e tecnológicas, que em nossa sociedade são mais valorizadas do que as carreiras voltadas para as áreas das Ciências Humanas e da Saúde, porém pode ser um elemento facilitador que propicie às jovens cogitar seguir estas carreiras. É importante frisar que a Matemática não é importante somente para as profissões que são reconhecidas pela sociedade

Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

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como científicas e tecnológicas. As Ciências Humanas e da Saúde, bem como as demais carreiras (que também são científicas) também utilizam de seu conteúdo, mesmo que em menor escala. Porém a habilidade com os números e cálculos é utilizada como justificativa na escolha de carreiras como Engenharias, Física e a própria Matemática.

Ressalta-se que embora as médias femininas superassem as masculinas, ambas permaneceram em torno de 60, ou seja, são notas baixas. A média 60 é o mínimo necessário para a aprovação nos colégios estaduais do Paraná e esta pesquisa pode estar indicando que para alguns/mas estudantes essa é a nota máxima que eles devem obter. Essa ideia é evidenciada nas conversas com professores/as das diversas disciplinas que relatam que os/as estudantes objetivam a nota mínima para a aprovação e não estão interessados em ampliar os conhecimentos que poderão lhes ser úteis para o futuro. Essa visão equivocada pode justificar o fato das médias ficarem próximas a 60 e a pesquisa demonstrou ser mais frequente nos meninos do que nas meninas.

Outra ideia frequente no senso comum e que não se sustenta nesta pesquisa é a de que os estudantes não gostam de Matemática. Pode-se perceber que o número de discentes que afirmam gostar de Matemática supera significativamente o número dos/as estudantes que afirmam não gostar. A Matemática parece não ser o “bicho papão” para os estudantes que participaram desta pesquisa.

Os números levantados aqui apresentados mostram que a 5ª e a 7ª série são as turmas que apresentam a maior porcentagem de alunas que gostam de Matemática, que têm facilidade em aprender o conteúdo desta disciplina, entendem e pedem explicações quando não compreendem o conteúdo. Esse resultado contraria o argumento de Velho e Leon (1998) de que é por volta da 7ª série que as meninas perdem o interesse pela Matemática. Esta pesquisa demonstrou que a turma que oferece algum indício nesse sentido é a 6ª série, na qual somente 15% das alunas declararam gostar de Matemática. Porém como o interesse delas pela Matemática ressurge nas séries consecutivas, pode-se pensar que o conteúdo de Matemática ensinado na 6ª série não se mostra atraente para elas. É importante frisar que o estudo realizado por Velho e Leon ocorreu há mais de uma década e este intervalo de tempo pode ter interferido na diferença entre os resultados daquela pesquisa e os desta.

Quando se pensa na pergunta presente no título deste artigo pode-se

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Desempenho Escolar em Matemática: O que o gênero tem a ver com isso?

concluir que o rendimento escolar está permeado pelas relações de gênero quer quando se analisam os números propriamente ditos, quer quando se analisam as justificativas que se encontram para explicar a diferença no rendimento de alunos e alunas. Considera-se inadequado dizer que existe uma superioridade de um gênero sobre o outro no que tange ao aprendizado matemático, com base exclusivamente nos números que expressam o rendimento escolar. Tentar definir quem é melhor em Matemática ou em qualquer disciplina não contribui em nada para o desenvolvimento de uma educação justa e igualitária que propicie a todos/as condições de se tornarem cidadãos/ãs críticos/as e conscientes de seu papel na sociedade. Os resultados desta pesquisa podem contribuir para que sejam pensadas políticas públicas e ações que permitam a construção da igualdade de gênero na escola, nas carreiras científicas e tecnológicas e na sociedade de modo geral. Sem dúvida, a construção da igualdade de gênero passa pela educação.

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TABAK, Fanny. O laboratório de Pandora: estudos sobre a ciência no feminino. Rio de Janeiro: Garamond, 2002.

VELHO, Lea. Apresentação. In: SANTOS, Lucy Woellner dos; ICHIKAWA, Elisa Yoshie; CARGANO, Doralice de Fátima. Ciência, Tecnologia e Gênero: desvelando o feminino na construção do conhecimento. Londrina: IAPAR, 2006. p. 9-18.

VELHO, Lea; LEÓN, Elena. A construção social da produção científica por mulheres. Cader-nos Pagu, Campinas, 10, p. 309-344, 1998.

WALKERDINE, Valerie. O raciocínio em tempos pós-modernos. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 207-226, jul./dez. 1995.

309

GÊNERO, SEXUALIDADES, DIFERENÇAS E DIVERSIDADES EM LIVROS PARA A INFÂNCIA: ANÁLISES E PRODUÇÕES

PARA/COM CRIANÇAS

Constantina Xavier Filha.

Com apoio do CNPq1, coordeno uma pesquisa que apresenta dois eixos

teórico-metodológicos, a saber: a) pesquisa bibliográfica, que tem por fontes livros

para a infância com os temas sexualidade, gênero e diversidades/diferenças; como

produto deste eixo, ao final será elaborado um catálogo digital com todas as obras

coletadas, selecionadas e analisadas com a intenção de socializar as fontes para

posteriores pesquisas; e b) a pesquisa-ação realizada em escola pública com crianças,

estudantes do Ensino Fundamental. Pretendem-se coletar dados para a produção de

materiais educativos, especialmente livros infantis, não apenas destinados à infância,

mas contando com sua efetiva participação. Presentemente, estamos realizando ações

nos dois eixos do projeto.

1 Pesquisa sob minha coordenação “Gênero e sexualidade em livros infantis: análises e produção de material educativo para/com crianças”, com apoio do CNPq (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, DED/PROPP) – 2008 a 2012.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

Deter-me-ei a apresentar aqui os pressupostos teórico-metodológicos dos dois eixos da investigação, os dados coletados até o presente momento e, finalmente, a discussão sobre o desafio de produção coletiva de materiais educativos para/com crianças.

O arco histórico delimitado para a coleta e seleção dos livros, fontes do primeiro eixo da investigação, compreende o período de 1930 a 2010. São 80 anos. Embora se admita ser um período demasiadamente longo, parte das fontes foi retirada de outra pesquisa2, também sob minha coordenação, que tinha como fonte comum livros para crianças com as temáticas da sexualidade, gênero e educação sexual. Dessa pesquisa, aproveito o levantamento bibliográfico de aproximadamente 50 livros para a infância.

Naquele estudo, além dos livros infanto-juvenis, livros para adultos – denominados manuais – também serviram de fonte. Tinham por função indicar e orientar condutas das pessoas adultas relativas à educação sexual e de gênero de meninas e meninos. O levantamento dos dados então produzido se fixou em livros publicados no Brasil e em Portugal (desde que disponíveis em acervos brasileiros) no período de 1930 a 1985.

No Brasil, nas décadas de 1920 e 1930, segundo Lopes (2001), observou-se um intenso debate, provocado pelos/as educadores/as escolanovistas e expresso em artigos e livros em torno dos usos escolares e de outras apropriações do livro e da leitura. Tais propostas foram concretizadas na reformulação de programas de ensino, na criação e na renovação das bibliotecas escolares, na construção de ambientes próprios para a leitura, na formulação de regras normativas para a boa leitura, como, por exemplo, indicações para o/a leitor/a das posturas corporais corretas e prescrições de livros considerados “bons” (LOPES, 2001, p. 58). Este período caracterizou-se pela reflexão e produção de discursos sobre a educação de crianças, especialmente influenciados pelos ideários da Escola Nova, fundamentados em preceitos da Psicologia da Educação.

2 Pesquisa “Já é tempo de saber...”: a construção discursiva da educação sexual em manuais e livros infanto-juvenis – 1930 e 1985 (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, DED/PROPP), com apoio da FUNDECT (2006 a 2009).

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Gênero, sexualidades, diferenças e diversidades em livros para a infância: análises e produções para/com crianças

Na pesquisa anterior que deu origem à presente, observou-se que o período compreendido entre 1930 e 1985 foi considerado fértil pela profusão de conceitos veiculados e por produções bibliográficas sobre a educação de crianças e adolescentes (em sua maioria, traduções de outras línguas) e, consequentemente, sobre sua educação sexual e de gênero. Além disso, há indicações de registros de discussão e de trabalhos sistematizados sobre educação sexual em escolas brasileiras desde a década de 20 do século passado.

Pelos motivos aqui expostos, tais elementos justificam a década de 1930 como o marco inicial do mapeamento de bibliografias que ora empreendo.

O motivo, dentre outros, que me levou a dar continuidade à coleta de dados após o período delimitado pela pesquisa anterior e penetrar na segunda metade da década de 1980 e prosseguir na de noventa do século passado até o ano de 2010, foi a profusão de discursos sobre a necessidade da educação sexual no contexto brasileiro, preponderantes a partir da década de 80, mais particularmente na de 90, devido à epidemia da Aids. Em razão de várias solicitações, inclusive de muitos movimentos sociais como o feminista e o de gays e de lésbicas, a pressão resultou em política pública sobre prática de educação sexual em meio escolar no ano de 1997, com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), mais especificamente com o tema transversal denominado Orientação Sexual.

A ampliação do limite da coleta e seleção de livros infantis de 1985 para 2010 se justifica, também para a efetivação dos objetivos da presente pesquisa, pelo montante de material analisado na pesquisa anterior (64 dos 361 livros selecionados eram indicados para o público de crianças e jovens). Desses, alguns eram indicados indistintamente para adultos, jovens e crianças. 50 deles eram indicados especificamente para crianças e jovens. Os dados revelam que há uma pequena produção de livros para o público infantil diante dos demais indicados para outros públicos, especialmente para pessoas adultas. Era necessário dar continuidade à coleta, seleção e análise dos livros publicados nas décadas subsequentes a de 1980. Por esse motivo, a pesquisa atual se aproveita em parte das fontes do estudo já realizado, ampliando a coleta para as que foram publicadas até os tempos atuais.

A fixação do ano 2010 (para a coleta e seleção de livros infantis) tem como propósito o cumprimento de um dos objetivos da presente pesquisa: socializar os

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

conteúdos e propô-los a debate em oficinas com crianças em escolas públicas. Por esse motivo queria ampliar a coleta visando obter livros atuais que versassem nas temáticas da sexualidade, gênero e diversidades/diferenças para crianças. Os livros da pesquisa anterior, totalizando um número de 50, apresentavam, em sua maioria, características comuns. Entretanto, essa amostragem foi ampliada para incluir o que há de mais contemporâneo na produção de livros para a infância com as temáticas selecionadas.

A seguir descrevo os caminhos teórico-metodológicos da pesquisa para, em seguida, discutir sobre alguns dos dados coletados. Na última parte do texto descrevo uma experiência de produção de material para/com crianças e proponho reflexões, problematizações e desafios para/com essa prática. Acredito que esses dados da pesquisa possam nos instigar a refletir sobre os livros como artefatos culturais que visam educar crianças sobre sua sexualidade e com isso contribuir na constituição de suas identidades. Nem sempre os/as educadores/as, que atuam com crianças, conhecem esses livros e, quando os que conhecem, são temidos pois há o medo de que sejam impróprios para crianças, especialmente para as mais pequeninas.

a pesqUIsa – CamINHOs TeóRICO-meTODOlóGICOs

Os objetivos da pesquisa, já suficientemente repetidos, é, em primeiro lugar, identificar nos livros com temáticas de gênero, da sexualidade e das diversidades/diferenças os enunciados priorizados (em texto escrito e em ilustrações), para não só analisar seus conteúdos, mas silêncios e interditos presentes nos enunciados; em seguida, produzir um catálogo digital (CD-Rom) dos livros selecionados e analisados para subsidiar futuras consultas e/ou pesquisas; finalmente, propiciar momentos de pesquisa-ação com crianças mediados pelos livros selecionados e analisados na pesquisa para, com tudo isso, produzir material educativo com/para as crianças. Os/as educadores/as também serão ouvidos/as mediante questionários visando coletar dados sobre suas opiniões diante dos livros existentes no mercado com as temáticas já descritas.

De um ponto de vista metodológico, convém assinalar que a pesquisa obedece aos preceitos da abordagem qualitativa. Para isso, seguirá dois eixos de execução e

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Gênero, sexualidades, diferenças e diversidades em livros para a infância: análises e produções para/com crianças

organização, ambos interdependentes no decorrer do processo: a pesquisa teórico-bibliográfica e a pesquisa-ação. Apesar de cada eixo ocorrer em momentos próprios, eles dialogam entre si, especialmente no momento em que levamos os livros coletados no primeiro eixo para serem analisados pelas crianças.

Os livros são as fontes do estudo nos dois eixos da pesquisa. Já o objeto da pesquisa são os enunciados veiculados e produzidos pelos livros e a discussão sobre os efeitos dos enunciados ao produzir subjetividades de crianças.

Na primeira etapa, a dos estudos teórico-bibliográficos, retomamos os dados coletados na já citada pesquisa que teve como produto um catálogo digital3 das fontes analisadas: livros manuais (para o público adulto) e livros infanto-juvenis. Prosseguimos com o mapeamento das bibliografias em acervos de bibliotecas brasileiras, via internet, em bases informatizadas e também de pesquisa in loco. Em seguida, foram estabelecidas estratégias para a coleta de fontes das produções publicadas no período de 1985 até 2010. Os acervos consultados foram os sites de livrarias e bibliotecas para a compra e a pesquisa in loco nos acervos das cidades de São Paulo (PUC, USP, Biblioteca Mário de Andrade; Biblioteca Monteiro Lobato); Campinas (UNICAMP) e, no Rio de Janeiro (PUC, UFRJ) e na Biblioteca Nacional.

Concomitantemente à coleta das fontes, estamos elaborando e reelaborando instrumentos analíticos, aí incluídas as fichas descritivas que serão utilizadas no momento da análise das fontes escritas e que também serão disponíveis no catálogo digital. As fontes pertinentes são coletadas, fotocopiadas, fotografadas ou adquiridas. Há casos, especialmente nos livros de edições mais antigas, dos quais se copiam excertos ou sínteses no próprio acervo, ou se tiram fotografias (desde que autorizadas pelos/as profissionais do acervo).

Após esse levantamento, será produzido um “catálogo digital” (CD-Rom) visando a socialização das obras analisadas no estudo, privilegiando os dados extraídos, bem como sua localização nos respectivos acervos. Acreditamos que este material possa ser de grande utilidade para consultas em futuras pesquisas por investigadores/as interessados/as nas temáticas.

3 XAVIER FILHA, Constantina (Org.). Catálogo digital de bibliografias sobre sexualidade, educação sexual e gênero. Campo Grande, MS: Editora da UFMS, 2009.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

O segundo eixo do pressuposto teórico-metodológico da investigação compreende a pesquisa-ação. Após a seleção de uma escola pública no município de Campo Grande/MS, apresentamos a proposta da pesquisa para as gestoras da instituição. Com o aceite, foi-nos solicitado que realizássemos o projeto em duas turmas do 5º ano do Ensino Fundamental com crianças/pré-adolescentes com idades médias entre 10 e 15 anos. Em seguida realizamos uma reunião para pais/mães/responsáveis para apresentarmos os objetivos do projeto e coletar as devidas autorizações e assinaturas dos termos de consentimento, conforme determinação do conselho de ética da universidade. Uma reunião com todas as professoras e professores da escola também ocorreu. As oficinas com as crianças ocorreram nos meses de agosto a dezembro de 2010.

Costa (2002) advoga em prol da pesquisa-ação. Para ela, a pesquisa-ação pode ser vista como uma estratégia de fabricação de discursos, a qual visa, tanto quanto outras formas de produção de saber, ao controle e à regulamentação daquilo que narra. A “vontade de saber”, na pesquisa-ação, é também “vontade de poder”:

Os objetos não existem, para nós, sem que antes tenham passado pela significação. A significação é um processo social de conhecimento. Quando indivíduos, grupos, tradições, descrevem ou explicam algo em uma narrativa ou discurso, temos a linguagem produzindo uma “realidade”, instituindo algo como existente de tal ou qual forma. Assim, quem tem o poder de narrar pessoas, coisas ou processos, expondo como estão constituídos, como funcionam, que atributos possuem, é quem dá as cartas da representação, ou seja, é quem estabelece o que tem ou não tem estatuto de “realidade” (COSTA, 2002, p. 104).

A perspectiva adotada pela autora é a mesma que a dos estudos pós-estruturalistas, dos Estudos Culturais e dos Estudos Feministas para os quais a linguagem, o discurso e a representação são elementos que merecem ser pesquisados e dos quais nos valemos para constituir o referencial teórico da presente pesquisa. Ela ressalta:

Pesquisar é uma atividade que corresponde a um desejo de produzir saber, conhecimentos, e quem conhece, governa. Conhecer não é descobrir algo que existe de uma determinada forma em um determinado lugar do real. Conhecer é descrever, nomear, relatar, desde uma posição que é temporal, espacial e hierárquica. O que chamamos de “realidade” é o resultado desse processo. A realidade ou “as realidades” são, assim, construídas, produzidas na e pela linguagem. Isto não quer dizer que não existe um mundo fora da linguagem, mas sim, que o acesso a este mundo se dá pela significação mediada pela linguagem (COSTA, 2002, p. 107).

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Gênero, sexualidades, diferenças e diversidades em livros para a infância: análises e produções para/com crianças

A pesquisa-ação, ao priorizar sujeitos com condições de produzir discursos sobre sua vida, sobre os efeitos que os vários discursos são capazes de produzir em suas constituições identitárias, por exemplo, é uma abordagem metodológica que promove a discussão e a reflexão sobre a produção de “verdades” e vontades de saber e de poder. Na pesquisa com as crianças pudemos efetivar essas premissas na medida em que propomos o debate, a discussão, a problematização de vários assuntos que dizem respeito às suas vidas e especialmente que são regulados socialmente. Nesse sentido, com as crianças, discutimos que a sexualidade, para além de experiências vividas no âmbito da intimidade, é fundamentalmente um assunto que é social, político e cultural. Louro (1998) nos instiga a pensar sobre isso quando ressalta que “a sexualidade é mais do que uma questão pessoal e privada, ela se constitui num campo político, discutido e disputado” (1998, p. 86).

Ao pressuposto metodológico da pesquisa-ação, pretendo aliar alguns preceitos de pesquisas fundamentadas pela Sociologia da Infância, que visam a coletar dados da cultura da infância.

A investigação sobre a infância foi, durante várias décadas, influenciada por um viés adultocêntrico, pois tinha como referencial a pessoa adulta, isto é, descrevia-se a infância a partir das concepções e entendimentos do adulto. O mesmo acontece com relação à produção de livros para a infância: os autores e as autoras são, em sua maioria, adultos que escrevem para crianças.

Hoje, porém, espera-se tirar as crianças da espécie de “quarentena” (ÁRIES, 1981) a que foram submetidas. Como se lê em Oliveira-Formosinho (2008, p. 13):

Vários teóricos e investigadores da infância têm vindo a sinalizar a importância e utilidade de escutar as vozes das crianças relativamente a aspectos que lhes dizem directamente respeito. [...[ esta tendência encontra-se estritamente relacionada com a reconstrução da imagem convencional da criança que tem vindo a permear a teoria e investigação na infância.

Ainda a este respeito, ressalta a autora:

O facto de a investigação ser realizada com criança e não sobre crianças representa várias responsabilidades e preocupações para o investigador, algumas análogas àquelas que caracterizam a investigação que recorre a métodos por

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

procuração e algumas que representam uma novidade e são muito específicas à investigação baseada nas perspectivas das crianças. [...] De facto, a novidade e a complexidade desta abordagem recente não deverão representar uma barreira, mas antes um motor de investimento no sentido de a participação da criança ser plenamente reconhecida, o que, na nossa óptica, só deverá ser alcançado através da criação de oportunidades reais e efectivas (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2008, p. 27).

Na pesquisa demos preferência à participação das crianças (estudantes do 5º ano do Ensino Fundamental de uma escola pública), partindo da premissa de que são sujeitos ativos com condições de argumentar, produzir hipóteses e conhecimentos sobre as temáticas de gênero, sexualidade e diversidades/diferenças, além de também serem capazes de criticar e analisar os livros infantis supostamente produzidos para elas.

Como estratégia da pesquisa-ação, realizamos oficinas de trabalho, discussão, reflexão e estudos com grupos de crianças com a finalidade de problematizar esses temas e o modo como são apresentados nos livros selecionados e analisados na pesquisa. O desafio imposto foi a forma da coleta de dados com crianças. Utilizamos recurso de filmagens e gravação de voz nos momentos das discussões e das produções das crianças em pequenos textos e desenhos. Questionários foram os instrumentos aplicados em grupos de professores e professoras da referida escola, que atuam diretamente com as crianças e de outros/as que atuam com esse público visando coletar suas opiniões sobre os livros, sobre as características do que consideram um bom livro para a infância com as temáticas priorizadas.

Nos momentos da pesquisa-ação com as crianças, tivemos especial atenção a seus comentários sobre gênero e sexualidade nas leituras coletivas, na elaboração das atividades sugeridas e em outras dinâmicas para comentar e problematizar os conceitos e reflexões encontrados nos livros analisados. Além de priorizar a coleta de dados durante as atividades realizadas nas oficinas na escola, também priorizamos a escrita coletiva de textos e também de um filme de animação. A construção coletiva entre crianças e adultos é um desafio imposto e que temos tentado encontrar estratégias de aproximação e negociação.

Nas oficinas, a produção coletiva com as crianças obedeceu aos preceitos dos estudos da cultura da infância sugeridos por Sarmento (2004, p. 23):

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Gênero, sexualidades, diferenças e diversidades em livros para a infância: análises e produções para/com crianças

A inventariação dos princípios geradores e das regras das culturas da infância é uma tarefa teórica e epistemológica que se encontra em boa medida por realizar. Constitui, desse modo, um desafio científico a que se não podem furtar todos quantos se dedicam ao estudo da criança. Esse esforço científico deve, a meu ver, seguir os quatro eixos estruturadores das culturas da infância: a interactividade, a ludicidade, a fantasia do real e a reiteração.

Na pesquisa, pretende-se, nos momentos das oficinas, apreender as falas das crianças, captando as várias nuances das práticas e jogos discursivos, buscando entender os elementos da interatividade, da ludicidade, da fantasia e da reiteração com o real e as representações, como propõe o autor. Estratégias variadas foram empregadas. Duas delas, sugeridas por Gobbi (2002), são coletar as várias linguagens das crianças e articular o desenho com a oralidade. As linguagens foram coletadas com gravador de voz e com filmagens em momentos das discussões. Todas as produções escritas e ilustradas são analisadas visando compreender suas representações de sexualidade, gênero, diferenças/diversidades e também para subsidiar a produção coletiva dos produtos da pesquisa.

Outro aspecto a destacar nesse segundo eixo da pesquisa, nas oficinas com as crianças, é a dimensão ética em estudos e pressupostos metodológicos como os que são utilizados. Vale reafirmar que o projeto foi submetido ao comitê de ética da instituição. Os pais/mães e responsáveis foram convidados/as a participar de uma reunião de apresentação do projeto e, na ocasião, assinaram dando o seu “Consentimento livre e esclarecido” para a realização da pesquisa. A criança também assinou o termo, aceitando participar. Este procedimento visa garantir uma oportunidade real e legítima para que ela tenha voz diante de suas ações e também para que tenha seus direitos respeitados se quiser desistir no decorrer do processo.

Os referenciais teóricos utilizados para a realização da pesquisa teórico-bibliográfica (coleta e análise dos dados) e a pesquisa-ação baseiam-se em Estudos de Gênero, Estudos Culturais e pressupostos de estudos foucaultianos. Alguns conceitos serão priorizados: dispositivo, sexualidade, gênero, entre outros.

A sexualidade será analisada como dispositivo histórico, como propõe o filósofo Michel Foucault (1996). O autor explica o que entende por “dispositivo”:

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

um conjunto decididamente heterogêneo, que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e filantrópicas; enfim, o dito e o não-dito são elementos do dispositivo. O dispositivo, portanto, é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos (FOUCAULT, 1996, p. 244).

A sexualidade, como dispositivo histórico, constitui um conjunto de práticas – discursivas ou não – permeadas por relações de poder. Por constituir-se em determinada cultura, a sexualidade, bem como a respectiva educação, configurada sob a forma de educação sexual (ou orientação sexual, como preveem os Parâmetros Curriculares), ou mesmo como educação para a sexualidade4, reflete os elementos culturais e históricos de uma determinada época. As relações de gênero são também constituídas socialmente.

A inscrição do gênero nos corpos – masculino ou feminino – é também um processo decorrente do contexto de determinada cultura. Segundo Scott (1995, p. 86), “o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais com base nas diferenças percebidas entre os sexos”. A diferença biológica é socialmente ressignificada. Na perspectiva desta autora, portanto, discutir gênero é essencialmente colocá-lo nas relações sociais. É na sociedade, nas relações entre as pessoas, que o gênero é criado e estabelecido. É no ambiente social que os sujeitos se fazem homens e mulheres, em um processo continuado e dinâmico, não dado no nascimento e a partir daí marcado para sempre. Os seres humanos vão construindo ativamente suas identidades de acordo com as inúmeras influências sociais – como a da educação, no que se relaciona à sexualidade e ao gênero – com as quais têm possibilidades de interagir. Este processo identitário não é determinista ou passivo; faz-se com lutas, conflitos e negociações entre aspectos de ordem pessoal e social.

4 Sobre esse tema, sugiro ver outros textos de minha autoria: XAVIER FILHA, Constantina. Educação para a sexualidade, equidade de gênero e diversidade sexual: entre carregar água na peneira, catar espinhos na água e a prática de (des)propósitos. In: XAVIER FILHA, Constantina (Org.). Educação para a sexualidade, para a equidade de gênero e para a diversidade sexual. Campo Grande, MS: Editora da UFMS, 2009; XAVIER FILHA, Constantina. Educação para a sexualidade: carregar água na peneira? In RIBEIRO, Paula Regina Costa; SILVA, Méri Rosane Santos da; GOELLNER, Silvana (Orgs.). Corpo, gênero e sexualidade: composições e desafios para a formação docente. Rio Grande, RS: Editora da FURG, 2009.

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Gênero, sexualidades, diferenças e diversidades em livros para a infância: análises e produções para/com crianças

O conceito de gênero é fundamental para entender o objeto deste estudo – enunciados sobre gênero, sexualidade, diferença/diversidade nos livros para a infância – e a produção de material educativo, mais especificamente livros infantis, em parceria com crianças. Em síntese, parte do entendimento de:

construção social feita sobre diferenças sexuais. Gênero refere-se, portanto, ao modo como as chamadas “diferenças sexuais” são representadas ou valorizadas; refere-se àquilo que se diz ou se pensa sobre tais diferenças, no âmbito de uma dada sociedade, num determinado grupo, em determinado contexto (LOURO, 2000, p. 26).

Estes conceitos serão fundamentais para nortear a vivência pelos caminhos metodológicos e especialmente para a produção dos materiais e, consequentemente, a análise dos dados. Vários desafios estão postos. Entre eles, a proposta de desenvolver estratégias de pesquisas com crianças. Esse ainda é um processo novo no campo da pesquisa em educação. Outro aspecto a destacar são os vários pressupostos metodológicos a serem utilizados na pesquisa, algo que demanda tempo e investimento no desenvolvimento das etapas dos dois eixos da investigação. Outro desafio é priorizar a análise dos livros a partir dos conceitos anteriormente citados como, por exemplo, a discussão dos livros como instrumentos de dispositivos pedagógicos para a educação da infância. Elementos esses que não serão aprofundados neste texto, pois ainda estamos construindo o estudo.

Passo, a seguir, à parte final do texto, na qual constam alguns dados, ainda inconclusivos, e a discussão sobre o desafio de produzir materiais educativos para/com a infância, trazendo dados de um projeto de extensão e também dados coletados com as crianças na pesquisa.

alGUNs DaDOs Da pesqUIsa em DesTaqUe, Os DesaFIOs Da pesqUIsa COm CRIaNÇas e a pRODUÇÃO COleTIva De maTeRIaIs eDUCaTIvOs paRa/COm a INFâNCIa

Até o momento, o montante de livros coletados na pesquisa passa de 400 títulos, todos com temas de sexualidade, gênero e diversidades/diferenças para o público infantil. Os que foram coletados de 1930 até 1985 (coletados na pesquisa

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

anterior) correspondem a um total de 50 livros, o que corresponde a menos de 10% do número total coletado até agora. Os demais livros, publicados de 1985 a 2010, indicam mais de 90% do total coletado até o momento. Alguns motivos, acerca desse avassalador aumento das produções nos últimos anos, devem ser mencionados: um deles é de que os livros publicados nas primeiras décadas do século XX são mais difíceis de serem encontrados nos acervos. Em muitos deles não há espaço reservado aos livros escritos para crianças. Outro dado, já evidenciado em outros estudos, é de que a partir da década de 1970 ocorreu no Brasil um aumento do mercado editorial e, mais especificamente na década de 1980, esse fenômeno se torna realidade com o empenho em atingir o público de crianças, inicialmente com obras traduzidas de outros países. No século XXI, observa-se uma profusão de obras escritas por autores e autoras brasileiras destinadas ao público da infância, com temáticas diversas, entre elas as que destacamos neste estudo.

A construção do sexo-discurso, ou melhor, a produção discursiva que nos afetou nos últimos três séculos, como indicam os estudos foucaultianos, pode explicar a verdadeira eclosão e emergência da temática da sexualidade, gênero e das diversidades/diferenças em bibliografias específicas para adultos – para instrumentalizarem suas ações diante das manifestações de sexualidade de crianças e adolescentes – e para as próprias crianças e jovens sobre como “conduzir” sua sexualidade.

A “concepção adultocêntrica” impera, na maioria das vezes, nos conteúdos dos livros e na própria relação de poder que se estabelece, ressaltando quando e mediante quais enunciados a educação sexual deve realizar-se; em que momento o adulto decidirá a hora certa dessa educação; qual a linguagem e por quais objetivos se deve proceder essa ação educativa. Estabelece-se, então, um “tempo” ideal em que esta educação deva ocorrer e que conceitos priorizar.

O que nos chama a atenção na análise dos livros é de que há uma predominância da visão e concepção do adulto diante da sexualidade e da subjetividade das crianças. Foi esse o principal objetivo que me impulsionou a levar essas questões para um grupo de crianças e, coletivamente, pensarmos sobre esses livros. O que se pretende, no segundo eixo da pesquisa, mediante a pesquisa-ação com as crianças, portanto, torna-se algo inovador: discutir com elas, observar seus anseios, seus desejos,

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Gênero, sexualidades, diferenças e diversidades em livros para a infância: análises e produções para/com crianças

suas hipóteses, dúvidas, curiosidades, medos... tratar de aspectos que lhes dizem respeito, incorporando essas informações nos conteúdos dos livros e produzindo-os coletivamente.

Antes das oficinas com as crianças, já havia experimentado a construção de um material educativo visando propiciar que as vozes das crianças pudessem ser ouvidas. Essa ação foi realizada em um projeto de extensão. Passo a descrever essa experiência de produção de um dos produtos, um livro5 infantil, desenvolvida visando justificar a necessidade da produção coletiva junto e com as crianças. Várias das ações e das produções desenvolvidas subsidiam a construção coletiva que empreendo atualmente com o grupo das crianças.

No âmbito de um projeto de extensão6 produzi e organizei vários materiais que compõem um kit de materiais educativos. O projeto de extensão e a produção dos materiais ocorreram concomitantemente ao desenvolvimento do primeiro eixo da pesquisa. Apesar de ter sido produto de outro tipo de ação, que não a de pesquisa, a experiência contribuiu sobremaneira para a realização da presente, na medida em que se vivenciou a produção de um material que se presta a discutir as questões relativas à sexualidade com/para o público de crianças. Passo a descrever aspectos dessa experiência que subsidiará a produção coletiva da segunda parte da pesquisa em questão.

5 O livro é um dos itens que compõem um kit de educação para a sexualidade, equidade de gênero e diversidade sexual. O kit é composto de vídeos, livros para docente, livro pra criança e filmes de animação. Um dos livros para crianças será abordado mais adiante neste texto. O outro, denominado “A menina e o menino que brincavam de ser”, de minha autoria conta a história de uma menina que de tanto viver em um mundo cor-de-rosa transforma-se em uma menina dessa cor. O mesmo ocorre com o menino, só que na cor azul. O decorrer da narrativa do livro é de como a menina e o menino resolvem esse drama retornando as cores de antes e, sobretudo como aprendem novas formas de “brincar de ser... o que quiserem”. XAVIER FILHA, Constantina. A menina e o menino que brincavam de ser... Ilustrações de Marilza Rodrigues. Campo Grande, MS: Editora da UFMS, 2009.6 O projeto de extensão intitulado “Educação para a Sexualidade, Equidade de Gênero e Diversidade Sexual” foi realizado pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, sob minha coordenação, e teve o apoio financeiro da SECAD/MEC. O projeto teve como objetivo a capacitação docente com as temáticas da sexualidade, gênero e diversidade sexual e como produto final um Kit de materiais educativos denominado “Kit de Materiais Educativos para a educação para a sexualidade, para a equidade de gênero e para a diversidade sexual”. Os materiais que compõem o kit são: para o público docente (um livro teórico e um DVD com vídeo-aulas); para o público infanto-juvenil (dois livros para crianças e um DVD contendo dois curtas de animação). XAVIER FILHA, Constantina. (Org.). Kit de materiais educativos para a educação para a sexualidade, para a equidade de gênero e para a diversidade sexual. Campo Grande, MS: Editora da UFMS, 2009.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

Elizabeth Ellsworth (2001), no artigo “Modos de endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisa de educação também”, faz uma pergunta que aplico ao livro para a infância produzido no projeto e para os demais que serão produzidos no âmbito da pesquisa: Quem o livro imagina ser a criança-leitora? Ou o/a adolescente leitor/a? A autora, quando fez a pergunta, pensava inicialmente no cinema. Mas é aplicável, indistintamente, aos modos de endereçamento da educação. Aqui também sugiro que pensemos nos modos de endereçamento de outros artefatos culturais, como, no nosso caso, os livros para/com crianças.

Para ela, “o espectador ou a espectadora nunca é, apenas ou totalmente, quem o filme pensa que ele ou ela é” (ELLSWORTH, 2001, p. 20). Ou ainda: “A maneira como vivemos a experiência do modo de endereçamento de um filme depende da distância entre, de um lado, quem o filme pensa que somos e, de outro, quem nós pensamos que somos, isto é, depende do quanto o filme ‘erra’ seu alvo” (ELLSWORTH, 2001, p. 20). Vejo que pensar na perspectiva dos “modos de endereçamento” do livro parece ser um aspecto a ser enfatizado na análise das fontes coletadas na pesquisa.

Ao elaborar os livros para crianças/adolescentes pretendi, inicialmente, por-me a questão sobre quem penso sejam as crianças ou adolescentes leitores/as, ou seja, quem seria o possível público leitor. Esta perspectiva de pensamento traz outras reflexões embutidas, sobre: como penso nos modos de endereçamento desses materiais? Como é possível pensar em protagonismos e ousadias com esses livros? Que infância é essa?

O conceito de “modo de endereçamento”, oriundo da teoria do cinema, parece fértil para pensar outros materiais educativos, ou artefatos culturais, no caso, os livros para o público da infância e adolescência, como já frisei. Para Ellsworth (2001, p. 14),

O conceito de modo de endereçamento está baseado no seguinte argumento: para que um filme funcione para um determinado público, para que ele chegue a fazer sentido para uma espectadora, ou para que ele a faça rir, para que a faça torcer por um personagem, para que um filme a faça suspender sua descrença [na “realidade” do filme], chorar, gritar, sentir-se feliz no final – a espectadora deve entrar em uma relação particular com a história e o sistema de imagem do filme.

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Gênero, sexualidades, diferenças e diversidades em livros para a infância: análises e produções para/com crianças

O filme, ou o livro, na perspectiva apontada pela autora, deve produzir mecanismos de identificação para que o/a leitor/a ou espectador/a assuma posições-de-sujeito esperadas. No entanto, não há como garantir que essas posições e identificações possam ocorrer tal como se planeja. Embora esses artefatos tentem cativar os sujeitos, dizer-lhes como deveriam ver o filme ou ler o livro, o processo é, de certa forma, volátil e, em alguns casos, inatingível.

A autora argumenta que não existe um único e unificado modo de endereçamento de um filme (ou de um livro!), pois

da mesma forma que o espectador ou a espectadora nunca é exatamente quem o filme pensa que ele ou ela é, assim também o filme não é, nunca, exatamente o que ele pensa que é. Não existe, nunca, um único e unificado modo de endereçamento de um filme (ELLSWORTH, 2001, p. 21).

O que a autora quer dizer, aplicando-o aqui ao livro, é que não há linearidade entre o que o livro pensa que o leitor ou a leitora é, nem como esses sujeitos reais fazem a leitura do livro e muito menos sobre quem será o eventual leitor/a.

As reflexões até aqui desenvolvidas servem para pensar que, apesar de pretender atingir um determinado público com os livros – no caso, crianças e pré-adolescentes –, não existe qualquer garantia de êxito em relação à configuração desse público. Mesmo assim, vejo que a tentativa de pensar quem é esse possível público leitor me permite pensar na infância, ou nas infâncias, com a qual ou com as quais pretendo dialogar. É exatamente sobre o espaço “escorregadio” do endereçamento que é preciso pensar. Isto leva a outras questões: como pretendemos realizar um diálogo para além dos livros? Como podemos priorizar os saberes e poderes das crianças e adolescentes nas escritas e narrativas do livro? Que infâncias serão representadas nesses materiais educativos? Como dar legitimidade aos saberes e poderes das crianças como se pretende no segundo eixo da pesquisa?

Estas questões me guiaram na escrita e produção do livro para atingir o público infanto-juvenil. Trata-se de questões fundamentais que continuamos pensando e problematizando na vivência da pesquisa-ação empreendida com as crianças.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

O livro do kit que passo a detalhar tem como protagonistas uma menina, a Gabriela, e um menino, o Rafael (XAVIER FILHA, 2009). O livro pode ser lido tanto por um lado quanto pelo outro. Há duas possíveis entradas para a sua leitura. A parte do livro cuja personagem principal é a menina é denominada de “Entre sementes e cegonhas: as curiosidades de Gabriela”. E a do menino “Entre explosões e cortes na barriga: as curiosidades de Rafael”. O público leitor que pretendo atingir é o das crianças que estudam nos anos iniciais do Ensino Fundamental e, talvez, as dos últimos anos desse nível de ensino, portanto, já na pré-adolescência ou adolescência, além de adultos interessados na temática. Não pretendi (pensando nos escorregadios labirintos dos modos de endereçamento) aqui delimitar faixas de idade para os/as possíveis leitores/as, pois assim estaria simplificando a infância ou a adolescência, até porque muitos dos livros escritos para crianças também podem ser indicados e apropriados para o público adulto, de professoras, mães, pais... por exemplo.

A escrita do texto, tal como a elaboração das ilustrações, contou com dados coletados em pesquisa no ano de 2008 (pesquisa realizada em parceria entre coordenação do projeto de extensão e cursistas). O que se pretendeu enfatizar foram aspectos da cultura da infância e da adolescência ao perguntar-lhes como aprenderem sobre suas entradas na barriga de suas mães e de como de lá saíram. Com esses dados, analisamos as falas e ilustrações e posteriormente construímos o livro. Trata-se, portanto, de uma obra coletiva. Cuidei para que a escrita contemplasse representações de crianças e adolescentes sobre como aprenderam a respeito da concepção e nascimento. A pergunta da Gabriela é como as/os bebês vão parar na barriga da mulher; a do Rafael, como saem de lá. Portanto, uma história complementa a outra. O que as une é a dificuldade de muito adultos em discutir e dialogar abertamente temas da sexualidade com crianças e até com adolescentes. São vários os “medos” descritos por muitos adultos, desde o receio de os/as incentivar, até o de não serem entendidos por elas. As crianças, entretanto, são sujeitos ativos diante de tudo, e não seria diferente quando a questão envolve sexualidade, portanto, produzem hipóteses, dúvidas e teorias sobre tudo em suas vidas e isso não seria diferente em relação à sexualidade.

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Gênero, sexualidades, diferenças e diversidades em livros para a infância: análises e produções para/com crianças

O livro, então, contém imagens e falas de crianças e adolescentes sobre como conjeturam, teorizam, imaginam, usam da criatividade para falar sobre uma das mais básicas vontades de saber que temos: a de como viemos ao mundo.

O livro também não pretende ser “didático”. Deixei de lado conceitos científicos, vazios de criatividade e imaginação e adotei uma linguagem aberta à possibilidade de verdades diferentes. É evidente que não nego a existência de conhecimentos historicamente construídos. No entanto, a intenção é trazer as várias vozes de crianças e adolescentes sobre os assuntos em pauta, dando espaço às suas narrativas ou imagens, a seus equívocos, dúvidas, hipóteses sobre concepção e nascimento, construídas agora ou quando eram pequenos, resgatadas da memória. A valorização de suas representações e hipóteses é intencional, pois servirão de base para pensar outras questões, como minar a dificuldade de se dialogar abertamente sobre sexualidade, ou mesmo de procurar outras respostas, outras pesquisas, outras... e outras perguntas.

O que pudemos aprender com essa experiência e de como ela foi apropriada na pesquisa que ora apresento? O primeiro aspecto a destacar é de que a tentativa de uma pesquisadora em escrever para crianças é um desafio inimaginável. O que há a destacar é que a obra pretendeu ser coletiva, pois nela priorizei as falas, hipóteses, dúvidas das crianças e adolescentes coletadas no projeto de extensão. Da experiência, também pude perceber os processos e meandros da produção, editoração e pós-produção do livro. Portanto, a produção do livro exige um saber técnico do qual até então tinha conhecimento, mas que carecia da vivência concreta desse doloroso processo. É importante ressaltar que, apesar disso, o livro ainda é uma produção de uma pessoa adulta que articula vozes, conceitos, teorias e hipóteses das crianças. Mesmo assim, diante de todos os dados já analisados com a coleta dos livros analisados no primeiro eixo da pesquisa, considero-o inovador.

A experiência da produção do livro para/com criança desenvolvida no projeto de extensão contribuiu sobremaneira na experiência da presente pesquisa com as crianças e também na própria análise dos livros para a infância.

No atual momento, apesar da aprendizagem da experiência desenvolvida na produção dos materiais do kit, outros desafios estão sendo trilhados na produção coletiva com as crianças. Várias dificuldades são impostas especialmente no que diz

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

respeito à tônica do projeto que é a mediação e discussão dos conceitos veiculados e produzidos pelos livros. Observamos que várias crianças e pré-adolescentes apresentam dificuldades na leitura e, consequentemente, no entendimento da mensagem dos livros. Isso nos instigou a repensar as estratégias de trabalho com os livros mediante e a proposição de outras técnicas de leitura para além da leitura individual. Outra questão é a construção coletiva com/para as crianças, pois esse processo é composto por negociações entre as crianças entre si e também entre elas e o grupo de adultos, composto pelas/os pesquisadores/as do estudo. Enfim... estamos em um mar de possibilidades e também de dificuldades; de limites e retrocessos; de idas e vindas possíveis nesse processo coletivo de produções de saberes e poderes.

CONsIDeRaÇões FINaIs

A pesquisa em andamento já nos revela dados que merecem destaques. Um dos primeiros é a profusão de livros das últimas décadas dirigidos ao público infantil. Muitos deles são escritos por autoras e autores brasileiros/as, o que nos parece um aspecto positivo, pois nas décadas anteriores, especialmente na primeira metade do século passado, o que havia era uma quantidade considerável de livros traduzidos de outras realidades. O que não se vê, no entanto, é a participação efetiva das crianças nessas obras. A que reflexão pode nos levar essa constatação? Uma das questões a salientar é de que prevalece um discurso adulto para regular as condutas da sexualidade, gênero e diversidades das crianças. Trazer a linguagem, as teorias e as hipóteses das crianças é um desafio que tentamos empreender no projeto de extensão com a escrita de um livro com as ideias, concepções e teorias das crianças, as quais subsidiarão a nova experiência que estamos desenvolvendo na pesquisa.

Outro aspecto a ressaltar na pesquisa, é de que nas primeiras décadas estudadas, percebe-se, nos livros coletados, a preponderância de uma linguagem normalizante e essencialista da infância. Os mais contemporâneos priorizam os temas em questão com linguagem lúdica, valorizando o estético, a poesia. Apesar disso, apresenta linguagem um pouco distante da cultura da infância brasileira.

A pesquisa em questão, a partir de seus dois eixos metodológicos, pode

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Gênero, sexualidades, diferenças e diversidades em livros para a infância: análises e produções para/com crianças

contribuir para problematizar os conceitos veiculados e produzidos pelos livros e analisá-los como artefatos culturais que visam produzir formas de subjetividade e de condução das vivências da sexualidade, de gênero e das várias identidades na infância. Esses dados nos levam também a refletir sobre como esses livros são apropriados e selecionados pelas pessoas adultas, no caso, educadores e educadoras. Os livros para a infância nas temáticas de gênero, sexualidades, diferenças/diversidades podem também ser utilizados como recursos pedagógicos para discussão, reflexão, estudo, sensibilização entre outras possibilidades teórico-metodológicas em momentos de formação docente, tanto na etapa inicial quanto na continuada. Muitos/as professores/as perguntam sobre quais seriam os livros considerados ideais para serem utilizados em suas práticas educativas com crianças pequenas. Questionam: como articular as discussões com crianças pequenas? Como incorporar essas discussões no currículo da educação da infância? Como ler as narrativas, imagens, silêncios, ditos e não-ditos? Quais livros estão disponíveis no mercado e quais os mais recomendados para crianças? Qual a faixa etária indicada pelos livros? Quais representações de gênero, de sexualidades, de diferenças, de diversidades esses livros veiculam em seus textos e ilustrações? Essas questões têm muito a nos dizer. Aliadas a essas questões, urge perguntarmos para as crianças sobre o que acham sobre esses livros produzidos para elas? Quais estratégias metodológicas podemos utilizar para socializar esses livros com esse público? Como instigar a reflexão e problematização sobre os textos e ilustrações desses livros? Enfim... são questões que necessitam de outras tantas perguntas e também de estudos e aprofundamentos teóricos e metodológicos mediados pelos livros tanto para momentos sistematizados de formação docente (seja na graduação ou em momentos de formação continuada) como, sobretudo, com as crianças.

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ReFeRêNCIas

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981.

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FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 12. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1996.

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_____. Currículo, género e sexualidade. Lisboa, PT: Porto Editora, 2000.

LOPES, Eliane Marta Teixeira; GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. História da educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

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SARMENTO, Manuel Jacinto; CERISARA, Ana Beatriz. Crianças e miúdos: perspectivas so-ciopedagógicas da infância e educação. Porto, PT: Asa, 2004.

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XAVIER FILHA, Constantina. Entre explosões e cortes na barriga: as curiosidades de Rafael. Entre sementes e cegonhas: as curiosidades de Gabriela. Campo Grande, MS: Editora da UFMS, 2009.

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AGITANDO CONCEITOS QUE PERPASSAM AS TEMÁTICAS DE GÊNERO E SEXUALIDADE. NAVEGANDO POR ENTRE DIMENSÕES TEÓRICAS, METODOLÓGICAS E POLÍTICAS

Cláudia Maria Ribeiro

Navegar é precisoViver não é preciso

Fernando pessoa

INTRODUÇÃO Os conceitos borbulhantes por entre as temáticas de gênero e sexualidade

demandam ser agitados, sacudidos, mexidos, revoltos. Possibilidades para mexer e remexer em representações, em crenças, em desejos, que navegam na cultura ocidental – sem precisão – inundando a complexidade das vidas, seja de crianças, jovens, adultos, idosos/as. Tanta complexidade requer olhares teóricos, metodológicos, políticos alicerçados em referenciais que possibilitem uma enxurrada de problematizações. Assim, para instigar as referidas problematizações, o convite é para navegar – por que é preciso? – pelo imaginário das águas, entrelaçando, engalfinhando, entretecendo as temáticas de gênero e sexualidade em dimensões teóricas, metodológicas e políticas.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

pOR qUe ImaGINáRIO Das áGUas? aGITaR a RaCIONalIDaDe é pReCIsO!

“Na linguagem ocidental, a razão pertenceu por muito tempo à terra firme. Ilhaou continente, ela repele a água com uma obstinação maciça: ela só lhe concede

sua areia. A desrazão, ela, foi aquática, desde o fundo dos tempos e até uma databastante próxima. E, mais precisamente, oceânica: espaço infinito, incerto;

figuras moventes, logo apagadas, não deixam atrás delas senão uma esteiradelgada e uma espuma; tempestades ou tempo monótono; estradas sem caminho”

(FOUCAULT, 2002, p. 205)

O imaginário das águas possibilita agitar a racionalidade, navegando pela imaginação e fantasia (ANDRADE, 2001; RIBEIRO, 2008, 2009; FOUCAULT, 2002). Criar e recriar na (des)construção de saberes surfando em aparatos culturais. Inicio este texto buscando a epígrafe escolhida: navegar é preciso; viver não é preciso, dita aos marinheiros amedrontados:

“Navigare necesse; vivere non est necesse” – latim, frase de Pompeu, general romano, 106-48 a.C., dita aos marinheiros, amedrontados, que recusavam viajar durante a guerra, conforme Plutarco, in: Vida de Pompeu.

Quais são as recusas, os medos, as ansiedades, os desafios, as ousadias, quando a temática é a da sexualidade e de gênero? O que é preciso e o que não é preciso? Fernando Pessoa pede para si o espírito desta frase, considerando que: “Viver não é necessário; o que é necessário é criar”.

Caetano Veloso compõe “Os argonautas” para falar de navegadores ousados. De um coração que não aguenta tanta tormenta! E traz a imagem do barco para afirmar que “navegar é preciso; viver não é preciso”!

Mas... é preciso!?... Com todas as entonações possíveis. Quanta contradição, paradoxo, enigma ao navegar por entre o preciso e o impreciso, por entre produções intelectuais que possam criar problematizações e fissuras em determinados “regimes de verdade”:

É instigante pensar que aquilo que nos é mais familiar (ou parece), pois diz

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Agitando conceitos que perpassam as temáticas de gênero e sexualidade. Navegando por entre dimensões teóricas, metodológicas e políticas

respeito ao nosso corpo, aos nossos desejos e às nossas práticas, possa também nos causar tanta estranheza, e, portanto, tantos não-saberes, tantas questões. Para começar por que o familiar (da sexualidade) nos parece ao mesmo tempo estranho e, sendo assim, torna tão difícil, complexa (ou mesmo impossível) a constituição de um saber sobre ela e, por conseguinte, seu “ensino”? Desde já, quero deixar assinalado este primeiro paradoxo em torno de um saber sobre a sexualidade e de efeito possível. Temos que nos haver com um saber que é um não-saber, um saber “estranho”, pois ele diz respeito não somente a um eu consciente, como também a um sujeito que não sabe de si, de seu desejo (o sujeito do inconsciente). Como então ensinar o que não se sabe (de si e do outro), a não ser que se admita estar lançando mão de outros saberes ou discursos (da biologia, da medicina, da epidemiologia, da educação) que se ocupam da sexualidade que, inclusive, a constituíram como uma problemática em torno do sexo, dos prazeres, do corpo e dos poderes (DUNLEY, 1999).

Isso requer perturbar as palavras que nos remetem a vários conceitos; aprofundar nos conceitos situados nas teorias pós-estruturalistas, nos estudos feministas e nos estudos culturais. Assim, nos processos de formação continuada de educadoras e educadores somos instigados/as a navegar por: concepções de sexualidades, de gênero, de currículo, infância, adolescência, redes de proteção na intersetorialidade das políticas públicas, na abordagem e enfrentamento da homofobia, sexismo, violências sexuais e nas metodologias para a ação docente.

Dessa forma, articular teoria, metodologia e política com as temáticas de gênero e sexualidade requer outra racionalidade; requer engalfinhar, entrelaçar, entretecer razão/emoção, imaginários que desencadeiem problematizações. E o imaginário das águas é fértil em possibilidades. Foucault (2002, p. 205) afirma que “a desrazão, ela, foi aquática [...] oceânica: espaço infinito, incerto; figuras moventes, logo apagadas, não deixam atrás delas senão uma esteira delgada e uma espuma; tempestades ou tempo monótono; estradas sem caminho”.

Illich (apud ODENT, 1991) em seu livro H2O e as Águas do Esquecimento aponta como nas sociedades industrializadas, na era dos canos de esgoto e dos banheiros, a água foi reduzida a uma substância utilitária que pode destruir a água dos sonhos. O mesmo autor distingue a água de limpeza, que é uma necessidade doméstica e a água purificadora, que é força religiosa e espiritual.

Nesse (des)caminho mergulhando no imaginário das águas e na temática da sexualidade, inicio com o bebê na barriga da mãe. Ferenczi (1967), estudando as origens da vida sexual, considerou o ato sexual como uma regressão ao período pré-

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

natal, à vida no líquido amniótico. Psicanalista, discípulo de Freud, seu projeto não era apenas descrever, mas precisar o significado de um acontecimento:

É impressionante constatar a constância com que as idealizações psíquicas (sonho, neurose, mito, folclore, etc) utilizam um mesmo símbolo para representar o coito e o nascimento: ser salvo de um perigo, principalmente da água (líquido âmnico); e, a uniformidade com que exprimem, pelas sensações de nadar, flutuar, voar, as sensações experimentadas durante o coito e no decorrer da existência intra-uterina; e, finalmente, como é freqüente a identificação simbólica que elas fazem entre o órgão genital e a criança (FERENCZI, 1967, p. 82).

A regressão Thalassal contempla a ideia de um desejo de retorno ao oceano ancestral de todas as mães. O material psicanalítico cotidiano traz exemplos do simbolismo materno da terra e da água:

Em muitos contos de crianças encontramos o fato de que o amor pela mãe, proibido por causa do complexo de Édipo, transfere-se para a terra; a criança faz tentativas de coito com a ajuda de buracos cavados na terra ou tenta a regressão completa escondendo-se nos buracos. Um caso que jamais esqueci, de um rapaz homossexual, ligado de modo indissolúvel à mãe que, mesmo adulto, ficava horas estendido no fundo de uma banheira cheia de água, e, para se manter na situação primitiva que lembrasse a existência aquática, respirava por um canudo preso à boca que saía para fora da água (FERENCZI, 1967, p. 89, 90).

Bachelard (1998), ao estudar a composição do elemento água com outros elementos da imaginação material, dá especial atenção à combinação da água com a terra1. Esse autor fala da importância de se realizar um estudo da amassadura e da modelagem. A água tempera os outros elementos:

1 BACHELARD, Gaston. A Terra e os Devaneios da Vontade. Ensaio sobre a imaginação das forças. Tradução de: Paulo Neves da Silva. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda, 1991. “Essas imagens da matéria terrestre oferecem-se a nós em profusão num mundo de metal e de pedra, de madeira e de gomas; são estáveis e tranqüilas; temo-las sob os olhos; sentimo-las nas mãos, despertam em nós alegrias musculares assim que tomamos o gosto de trabalhá-las. Portanto, parece ser fácil a tarefa que nos resta fazer para ilustrar, através de imagens, a filosofia dos quatro elementos. Parece que podemos, passando pelas experiências positivas às experiências estéticas, mostrar com mil exemplos o interesse apaixonado do devaneio pelos belos sólidos que ‘posam’ infinitamente diante de nossos olhos, pelas belas matérias que obedecem fielmente ao esforço criador de nossos dedos” (p. 1).

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Agitando conceitos que perpassam as temáticas de gênero e sexualidade. Navegando por entre dimensões teóricas, metodológicas e políticas

Nunca será demais insistir, para a compreensão da psicologia do inconsciente criador, nas experiências da fluidez, da maleabilidade. Na experiência das massas, a água surgirá claramente como a matéria dominadora. É nela que pensaremos quando desfrutarmos, graças a ela, da docilidade da argila (BACHELARD, 1998, p. 14-15).

Haja fluidez, maleabilidade e plasticidade – precisões e imprecisões para (des)construir conceitos, navegar pelas teorizações, agitar conceitos, com vistas a compreender os processos históricos e sociais de produção de saberes, para compreender as possibilidades de organização e produção desses saberes na escola em quaisquer dos temas acima. O desafio, portanto, é compreender que falar de gênero e sexualidade não é preciso. Não há receitas, mas, ao mesmo tempo, exige surfar acontecimentos, acreditar na possibilidade de produzir acontecimentos na fluidez, na maleabilidade e na plasticidade:

acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo; nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapam ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos [...] É ao nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle (DELEUZE, 1992, p. 218).

Pergunto: que acontecimentos foram suscitados no Brasil e que constituíram-se em novos espaços para problematizações de verdades hegemônicas acerca da sexualidade, de gênero e da educação para a sexualidade; que foram (são) geradores de resistências constituindo-se em espaços privilegiados de interações conectando pessoas e instituições? Cito somente dois, sem a mínima intenção de esgotar as possibilidades: Grupo de Trabalho Gênero, Sexualidade e Educação da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) e as ações conjuntas das universidades, das ONGs e da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad-MEC), dentre elas os Projetos desenvolvidos pelas universidades e o funcionamento do Grupo de Trabalho Brasil sem Homofobia.

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

Uma eNxURRaDa De pOssIbIlIDaDes: GT 23: GêNeRO, sexUalIDaDe e eDUCaÇÃO

No ano de 2003, durante a 26ª Reunião Anual da ANPEd, realizada em Poços de Caldas - MG, um grupo de pesquisadoras/es, docentes e estudantes, mobilizou-se para propor à Associação a criação de um Grupo de Estudos que se voltasse para as temáticas de gênero e sexualidade em sua articulação com a educação. Com o expressivo apoio da assinatura de cerca de 500 colegas, a proposta foi levada à Assembléia Geral daquela 26ª RA e aprovada. Criava-se, assim, o Grupo de Estudos (GE) 23 Gênero, Sexualidade e Educação. A rede de estudiosas/os e pesquisadores/as que, há vários anos, ensaiava contatos no âmbito da ANPEd, conquistava um espaço privilegiado. Os muitos grupos e núcleos de pesquisa ligados aos estudos de gênero, de sexualidade e de educação para a sexualidade existentes nas instituições de ensino superior e nos programas de pós-graduação do País, dispersos e distantes uns dos outros, passavam a ter o GE 23 como um ponto de referência; aqueles pesquisadoras/es e estudantes que, isoladamente, desenvolviam investigações ou ensaiavam práticas pedagógicas focadas nessas temáticas eram estimulados a buscar na ANPEd, parceiras/os para o diálogo e para o debate teórico. Enfim, esse movimento e essa movimentação não tinha por objetivo “inventar” um novo grupo de estudos, mas sim propiciar um espaço legitimado, no interior da mais importante associação brasileira de educação, para que essa rede – que já existia – pudesse se tornar visível e, consequentemente, pudesse se fortalecer.

Meyer, Ribeiro e Ribeiro (2004, p. 1), no primeiro trabalho encomendado a ser apresentado no GE afirmaram que não é mais:

necessário enfatizar a importância que as dimensões de gênero e sexualidade adquiriram na teorização social, cultural e política contemporânea. De fato, desde o final dos anos 70 do séc. XX, uma ampla, complexa e profícua produção acadêmica vem ressaltando a impossibilidade de se ignorarem relações de gênero e sexualidade quando se busca analisar e compreender questões sociais e educacionais. Estudiosas/os e pesquisadoras/es de várias nacionalidades e filiações teóricas e disciplinares participaram e continuam participando da construção desses campos, numa perspectiva que focaliza tanto relações de gênero e sexualidade quanto suas importantes articulações com dimensões como raça/etnia, classe, geração, nacionalidade, religião, dentre outras.

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Agitando conceitos que perpassam as temáticas de gênero e sexualidade. Navegando por entre dimensões teóricas, metodológicas e políticas

Sua exposição continuava, demonstrando que esse movimento havia se afirmado, no plano acadêmico internacional, especialmente, a partir dos departamentos de Women´s Studies e posteriormente se ampliaria com os Gender Studies e os Gays and Lesbian Studies. Ressaltavam a multiplicação desse movimento em muitas instituições universitárias e centros de estudos e o quanto ele havia impulsionado pesquisas nos mais diversos campos, tais como a educação, a história, o direito, a literatura, a arte, a saúde, a teologia, a política, etc. No entanto, acentuavam que a expansão dos estudos e pesquisas no plano internacional “não se visibiliza do mesmo modo nos currículos formais de graduação e pós-graduação em educação do País”; chamavam atenção para o fato de que, apesar de já contarmos com vários núcleos e grupos de estudo sobre o tema, cadastrados no CNPq, continuava “existindo uma lacuna curricular no que diz respeito a essas temáticas e que elas ainda não aparecem, com muito destaque, na pauta dos grandes eventos ou na agenda de revistas importantes da área da educação” (MEYER, RIBEIRO e RIBEIRO, 2004, p.1). Essa lacuna parece ainda mais importante se lembrarmos que, a partir de 1996, o Ministério da Educação incluiu “orientação sexual” como “tema transversal”, nos seus Parâmetros Curriculares Nacionais. As diretrizes que eram, então, propostas pelo Ministério exigiam que as questões de gênero e sexualidade tratadas no âmbito escolar estivessem afinadas com as teorizações contemporâneas.

Os dados trazidos pelos colegas acenavam para uma situação que todos buscamos contribuir para modificar. Por um lado, observamos um número cada vez maior de teses de doutorado e dissertações de mestrado que assumem gênero e sexualidade como seu foco central ou, pelo menos, como dimensões indispensáveis para a constituição de seus objetos de estudo, bem como teses e dissertações que analisam ou propõem projetos de educação sexual nas escolas brasileiras; registramos também um aumento de publicações na área (livros, artigos e mesmo algumas revistas de projeção internacional, como a Revista de Estudos Feministas e a Pagu) e, por outro lado, continuam os nossos cursos de formação e qualificação de docentes beneficiando-se muito pouco de toda essa produção.

Por todas essas razões, reafirmava-se, naquele momento inaugural do GE, a importância da constituição deste espaço no interior da ANPEd como um marcador do movimento de consolidação acadêmica e política desse campo. A pluralidade

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Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

teórico-metodológica e a constante autocrítica que tem acompanhado a produção de conhecimento nos estudos de gênero e sexualidade eram ressaltadas pelos colegas que abriam as discussões do GE e logo se mostrariam evidentes nas exposições e debates.

Estes são extratos do texto veiculado na página da internet www.ded.ufla.br/gt23 apresentado à Assembleia Geral da ANPEd com a proposição de transformação de GE em Grupo de Trabalho. As partes do referido texto são retomadas aqui pela sua força histórica ressaltando a importância da constituição do espaço Gênero, Sexualidade e Educação na ANPEd. De lá para cá quanto conhecimento produzido, apresentado e veiculado nas Reuniões Anuais da Associação; quanta possibilidade de interferir em processos educativos de formação inicial e continuada de educadores e educadoras a partir dos estudos do material produzido.

Além disso o material apresentado nas Reuniões Anuais tem subsidiado pesquisas, conforme a apresentada na 33ª RA:

nosso objetivo geral foi realizar um mapeamento dos trabalhos de pesquisa apresentados na ANPEd que se ocupam dos temas “relações de gênero” e “sexualidades”. Em termos específicos, pretendíamos conhecer quais temáticas vêm sendo abordadas; identificar os Grupos de Trabalho da ANPEd que receberam os estudos apresentados; identificar as instituições/Programas de Pós-Graduação responsáveis pela produção, bem com a produção que recebeu financiamento de agências; identificar o sexo das/os autoras/es da produção; examinar a abrangência do uso que se faz das relações de gênero como ferramenta de análise, isto é, se as relações de gênero aparecem como categoria principal ou secundária na análise; discriminar e realizar uma análise de conteúdo, dentre os trabalhos apresentados, daqueles que abordam os referidos temas no plano de sua produção no cotidiano da instituição educacional (FERREIRA e NUNES, 2010, p. 1).

Essas pesquisas também contam a história do GT.

CaRTas De NaveGaÇÃO: NaveGaR é pReCIsO

Essa precisão demanda planejamentos, resistências, proposições. Assim, outro aspecto a ser abordado é a interlocução do GT 23 com a Secad. Desde a 29a RA o GT 23 considerou importante a aproximação com a Secad/MEC – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação com

337

Agitando conceitos que perpassam as temáticas de gênero e sexualidade. Navegando por entre dimensões teóricas, metodológicas e políticas

vistas a interferir no processo de formação continuada de educadores e educadoras nas temáticas pertinentes ao GT, articulando ensino, pesquisa e extensão. Para tanto, no ano de 2006, realizou a Sessão Conversa intitulada “Gênero e sexualidade nas políticas de formação de educadores e educadoras”, que foi geradora da intensificação das trocas entre esta secretaria do MEC e os/as pesquisadores/as voltados às questões de gênero e sexualidade. Esta aproximação redundou em algumas atividades desenvolvidas em conjunto e, no final de 2007, na aprovação de alguns projetos por pesquisadores/as que integram o GT 23. No ano de 2009 a referida Secretaria realizou o Seminário Educação em Direitos Humanos, Sexualidades, Gênero e Diversidade Sexual em Brasília, de 01 a 03 de julho de 2009, com o objetivo de congregar os/as partícipes dos vários projetos aprovados para reflexões sobre os temas, avaliação e encaminhamento das ações futuras. Participaram do Seminário integrantes do GT 23 para avaliação, dentre outros, dos seguintes projetos:

Refletindo gênero na escola: a importância de repensar conceitos e preconceitos. Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Coordenação: Marília Gomes e Daniel Canavese.

Iguais porque diferentes e Biblioteca digital de materiais educativos em gênero, corpo e sexualidade. Universidade Federal da Paraíba. Coordenação: Maria Eulina Pessoa de Carvalho e Fernando Cézar Bezerra de Andrade.

Educação para a sexualidade, equidade de gênero e diversidade sexual – práticas e materiais educativos. Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Coordenação: Constantina Xavier Filha.

Educação Inclusiva: tecendo gênero e diversidade sexual nas redes de proteção. Universidade Federal de Lavras. Coordenação: Cláudia Maria Ribeiro e Ila Maria Silva de Souza.

Outros editais foram veiculados pela SECAD e algumas universidades aprovaram seus projetos, a saber:

338

Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

Tabela 1 – Projetos aprovados pela Secad/MEC. Edital n. 22, de 25 de Agosto de 2009

UF Instituição de Educação

Superior

Projeto

1 MS UFMS Educação para a sexualidade, gênero e direitos humanos de crianças

2 MS UFMS Direitos Humanos e Cidadania – Desenvolvimento pela Edu-cação

3 AL UFAL Saberes e práticas na reconstrução de práticas do material informativo e formativo de Educação em Direitos Humanos

4 PB UFPB Materiais educativos para a implementação do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos

5 PE UFPE Humanos Direitos – Estudo sobre o tráfico de pessoas

6 RS Fundação U. de Passo

Fundo

Educação em Direitos Humanos no Cotidiano

7 MG UFVJM Educação em Direitos Humanos na Educação Infantil

8 SP PUC-SP Direitos Humanos e Ambiente Escolar

9 SP UFScar Violência nota zero

10 SC UFSC Diversidade Religiosa e Direitos Humanos

11 ES UFES Cineclubismo e Educação em Direitos Humanos

12 RS UCPEL Educação em Direitos Humanos no contexto da formação inicial de professores para a Educação Básica

Tabela 2 – Projetos aprovados pela SECAD/MEC e veiculados no Diário Oficial da

União – Seção 3, n. 183 UF Instituição

de Educação Superior

Projeto

1 MT UFMT Educação e Diversidade: ressignificando saberes e vivências da educação em Mato Grosso

2 DF UnB Vidas Plurais: enfrentando o sexismo e a homofobia

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Agitando conceitos que perpassam as temáticas de gênero e sexualidade. Navegando por entre dimensões teóricas, metodológicas e políticas

3 AM UFAM Formação de professores em diversidade sexual e gênero no Amazonas

4 TO UFTM Políticas de enfrentamento ao sexismo e a homofobia no ambi-ente escolar: ressignificando as práticas educativas no Estado do Tocantins

5 PB UFPB Aprender em paz – educação para a prevenção às violências na escola

6 PI UESPI Educação para a Diversidade: cuidando de quem cuida da ambiência escolar

7 BA UFBA Formação docente para o ensino de gênero e diversidade no semi-árido baiano

8 RS Fundação Regional

Integrada do Alto

Uruguai e das Missões

Educação em Direitos Humanos

9 SC FURG Sexualidade e Escola: discutindo a diversidade sexual, o en-frentamento ao sexismo e a homofobia

10 PR UTFPR Construindo a igualdade na escola: conhecendo a diversidade sexual, enfrentando o sexismo e a homofobia

11 MG UFMG Educação sem Homofobia: capacitação de educadores da rede pública

12 MG UFOP Educação para a Diversidade: capacitação de educadores da rede públicaEducação Básica Mineira

13 MG UFLA Tecendo Gênero e Diversidade Sexual nos Currículos da Edu-cação Infantil

14 RJ UFRJ Educação para a promoção do reconhecimento da diversidade sexuale enfrentamento ao sexismo e homofobia

Retomo aqui a “precisão” da navegação. Rumos, rotas, bússolas para navegar. Aqui, no caso, a política educacional governamental que foi sendo construída e contemplou financiamentos para a universidade pública realizar a formação de educadores e educadoras, desde a primeira etapa da Educação Básica, ou seja, desde a Educação Infantil. Política essa que está sendo construída em conjunto com

340

Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

as próprias universidades que reivindicavam sua participação nesse processo de formação continuada.

Lendo as tabelas 1 e 2 desejo inteirar-me do material produzido por esses projetos; o que constou do processo educativo realizado tanto na formação continuada como também na interferência na formação inicial, visto que a maioria desses projetos realiza a formação de discentes para neles atuarem? Seria extremamente válido se houvesse uma pesquisa que sistematizasse os rumos, as rotas, as bússolas nestes/destes projetos, ou seja, o referencial teórico/metodológico utilizado nas formações. Mas não só! Cada universidade tem a sua história para contar em relação às articulações com as secretarias de educação; aos trâmites nas próprias universidades; opções teórico/metodológicas; a interlocução com a Secad/MEC, que foi criada apenas em julho de 2004. Nela estão reunidos temas como alfabetização e educação de jovens e adultos, educação do campo, educação ambiental, educação em direitos humanos, educação escolar indígena, e diversidade étnico-racial, temas antes distribuídos em outras secretarias. O objetivo da Secad é contribuir para a redução das desigualdades educacionais por meio da participação cidadã em políticas públicas que assegurem a ampliação do acesso à educação.

eNFReNTaNDO TempesTaDes

Todo esse regime de colaboração entre governo federal, estadual, municipal, universidades, ONGs, ainda são insuficientes frente aos desafios da Educação para as Sexualidades. Pergunto: por que será que essa temática reveste-se de turbulências? Anuncia-se como tempestades? Você já olhou para o céu quando as nuvens revoltas, escuras, densas, compactas revelam fortes temporais? Qual o sentimento? Medo? Angústia? Dúvida?

O texto “Educação para a sexualidade nas nuvens: quando há o anúncio das tempestades...” (RIBEIRO, 2010) fez um convite para pensar nas simbologias: do furacão, das tormentas, das tempestades... outras formas diversas das nuvens2.

2 Cf. essa problematização na leitura do texto: Navegando pelo enigma da sexualidade da criança: “lá onde a polícia dos adultos não adivinha nem alcança” (RIBEIRO, 2009).

341

Agitando conceitos que perpassam as temáticas de gênero e sexualidade. Navegando por entre dimensões teóricas, metodológicas e políticas

Nessa enxurrada de simbologias remeto-me também às possibilidades do pensar a partir do dicionário:

Tempestade: agitação violenta da atmosfera, às vezes acompanhada de chuvas, ventos, granizo ou trovões; procela, temporal. Grande estrondo. (figurativamente) agitação moral. Grande perturbação; agitação; desordem. Tempestade em copo d’água. Espalhafato, grande agitação, por motivo frívolo (FERREIRA, 1988, 629 p.).

Quanta agitação extraordinária, ventos, trovões, tumultos, estrondos, perturbações, desordens... se, ao se problematizar gênero e sexualidade, discutir e focar na diversidade sexual, nos Direitos Humanos e na cidadania LGBT – lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Ainda há muito o que fazer para a implementação de processos educativos libertários, pois o cenário de negação da dignidade dessa população nas escolas e, muitas vezes, na sociedade em geral, revela a distância de uma educação para todos e todas.

Para tanto, ciente dessas ações articuladas e assumindo o compromisso com as possibilidades para transformar contextos educacionais, o Ministro da Educação, no uso de suas atribuições e de acordo com o art. 1º, do Decreto 5.159, de 28 de julho de 2004, e de acordo com o disposto na Portaria 4.032, de 24 de 27 de novembro de 2008 compôs o Grupo de Trabalho para acompanhar a implementação do “Programa Brasil sem Homofobia” e do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e dos Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNLGBT) no âmbito do Ministério da Educação. Este Grupo de Trabalho é integrado por representações (titulares e suplentes) de todas as secretarias e autarquias vinculadas ao Ministério da Educação, do Movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis (LGBT) e por especialistas. A coordenação do GT é de competência da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade.

No art. 1º da Portaria n. 4.032/2005 estão evidenciadas as finalidades do Grupo de Trabalho, entre elas:

acompanhar a implementação do “Programa Brasil sem Homofobia” no âmbito do Ministério da Educação;

subsidiar a formulação de ações que garantam o direito à educação da população LGBT e que promovam o respeito à diversidade de orientação sexual e de identidade de gênero nos sistemas educacionais;

342

Igualdade de Gênero: enfrentando o sexismo e a homofobia

colaborar com as ações relativas a direitos humanos das populações LGBT no âmbito das Secretarias do Ministério e entidades vinculadas;

[...]propor a elaboração de estudos, pesquisas e avaliações relacionadas ao tema

de educação e direitos humanos da população LGBT e contribuir para sua divulgação.Assim, esse Grupo de Trabalho vem atuando no sentido de promover e

socializar saberes e fazeres sobre o tema LGBT e auxiliando o MEC na formulação de políticas educacionais para esse segmento.

CONsIDeRaÇões FINaIs

Retomo o imaginário das águas que inundou todo este texto e foi cúmplice nesse itinerário que navegou nas precisões e imprecisões das problematizações das sexualidades e gênero. Não a água ornamento de paisagens, mas a água substância de devaneios, poetizada por Bachelard: “A imaginação inventa mais que coisas e dramas; inventa vida nova, inventa mente nova; abre olhos que têm novos tipos de visão. Verá se tiver ‘visões’” (1998, p. 18).

Esse olhar das invenções, das criações exige dizer não ao olhar cartesiano, frio, imóvel e assumir o olhar bachelardiano, da imaginação criadora, que busca aproveitar todas as profundidades, sendo solidária de uma dinâmica do olho:

Pretende-se sempre que a imaginação seja a faculdade de formar imagens. Ora, ela é antes a faculdade de deformar as imagens fornecidas pela percepção, é sobretudo a faculdade de libertar-nos das imagens primeiras, de mudar as imagens. Se não há mudança de imagens, união inesperada das imagens, não há imaginação, não há ação imaginante. Se uma imagem presente não faz pensar numa imagem ausente, se uma imagem ocasional não determina uma prodigalidade de imagens aberrantes, uma explosão de imagens, não há imaginação. Há percepção, lembrança de uma percepção, memória familiar, hábito das cores e das formas. O vocábulo fundamental que corresponde à imaginação não é imagem, mas imaginário. O valor de uma imagem mede-se pela extensão de sua auréola imaginária. Graças ao imaginário, a imaginação é essencialmente aberta, evasiva. É ela, no psiquismo humano, a própria experiência da abertura, a própria experiência da novidade (BACHELARD, 1990, p. 1).

343

Agitando conceitos que perpassam as temáticas de gênero e sexualidade. Navegando por entre dimensões teóricas, metodológicas e políticas

Assim, navegando pelo imaginário das águas, instiguei a remexer teorizações e assumir os desafios de outra racionalidade alicerçada em autores e autoras tais como Foucault (1993), Dunley (1999), Britzmann (2001), Louro (2004), Silva (2000), Deleuze (1992), que afirmam que o teórico está indissociado do político.

Nesse mergulho, porque iniciei navegando no líquido amniótico? Pela urgência em marcar o nascimento da novidade, na instigante temática da sexualidade e gênero. Novidade não só do referencial teórico-político, mas da metodologia utilizada nos processos de formação de educadores e educadoras.

Na contradição, portanto, que se revestem as temáticas, o desafio é lançar os olhos para o que é preciso e o que não é preciso e se organizar para navegar com instrumentos adequados. Apresentei, então, dois acontecimentos que foram geradores de mudanças: a criação do GT 23 – Gênero, sexualidade e educação da ANPEd e a interlocução das universidades e das Ongs com a Secad – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do MEC. Espaços para uma enxurrada de possibilidades!

344

ReFeRêNCIas

ANDRADE, Cláudia Maria Ribeiro. O Imaginário das Águas, Eros e a Criança. Tese (Douto-rado em 2001) – Universidade de Campinas, 2001.

BACHELARD, Gaston. A Poética do Devaneio. Tradução: Antonio de Pádua Danesi. São Pau-lo: Martins Fontes, 1988.

BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria.Tradução: Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Coleção Tópicos.

BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento. São Pau-lo: Martins Fontes, 1990.

BRITZMAN, Déborah. Curiosidade, Sexualidade e Currículo. In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O Corpo Educado: Pedagogias da Sexualidade. 2. ed. Belo Horizonte: Editora Autên-tica. 2001.

DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

DUNLEY, Gláucia. Sexualidade & Educação: um diálogo possível? Rio de Janeiro: Gryphus, 1999.

FERENCZI, Sandor. Thalassa. Psicanálise das Origens da Vida Sexual. Tradução: Wagner Martins Lopes. Rio de Janeiro: Biblioteca Universal Popular S.A., 1967.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda et al. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portu-guesa. Rio de Janeiro-RJ: Editora Nova Fronteira. 1988.

FERREIRA, Márcia Ondina Vieira; NUNES, Georgina Helena Lima. Panorama da produção sobre gênero e sexualidades apresentada nas reuniões da ANPEd (2000-2006). Trabalho apre-sentado na 33ª Reunião Anual da ANPEd, Caxambu, 2010.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. 11. Ed. Rio de janeiro: Graal. 1993.

FOUCAULT, Michel. Problematização do Sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise. Tradução: Vera Lúcia Avellar Ribeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. Coleção Ditos & Escritos I.

LOURO, Guacira Lopes. Um Corpo Estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria Queer. Belo Horizonte: Editora Autêntica. 2004.

345

MEYER, Dagmar; RIBEIRO, Cláudia Maria; RIBEIRO, Paulo Rennes. Gênero, Sexualidade e Educação. “Olhares” sobre algumas das perspectivas teórico metodológicas que instituem um novo GE. 27ª Reunião Anual da ANPEd, 2004.

ODENT, Michel. Água e Sexualidade. Tradução: Fátima Marques. São Paulo: Siciliano, 1991.

RIBEIRO, Cláudia Maria. Na produção das heterotopias as possibilidades de problematizar gênero e sexualidade navegando nas ambigüidades das águas. ANPEd-Sul, 2008.

RIBEIRO, Cláudia Maria. O imaginário das águas e o aprendizado erótico do corpo. Educar em Revista, Curitiba, n. 35, set./dez. 2009.

RIBEIRO, Cláudia Maria. Navegando pelo enigma da sexualidade da criança: “Lá onde a polí-cia dos adultos não adivinha nem alcança”. In: XAVIER FILHA, Constantina (org). Educação para a sexualidade, para a equidade de gênero e para a diversidade sexual. Campo Grande – MS, 2009. 57 p. – 70 p.

RIBEIRO, Cláudia Maria. Educação para a sexualidade nas nuvens: quando há o anúncio das tempestades... (Material produzido para o Curso de Extensão da Universidade Aberta do Brasil – UAB coordenado Profa. Dra. Constantina Xavier Filha. Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. 2010.)

SILVA, Tomaz Tadeu. Teoria Cultural e Educação: um vocabulário crítico. Belo Horizonte: Autêntica. 2000.

347

SOBRE AS AUTORAS E AUTORES

Anderson Ferrari

possui graduação em Licenciatura em História pela Universidade do Estado

do Rio de Janeiro (1991), graduação em Bacharelado em História pela Universidade

do Estado do Rio de Janeiro (1994), mestrado em Educação pela Universidade Federal

de Juiz de Fora (2000) e doutorado em Educação pela Universidade Estadual de

Campinas (2005). Atualmente é professor de História do Colégio de Aplicação João

XXIII / UFJF e professor do PPGE/UFJF (mestrado e doutorado) da Universidade

Federal de Juiz de Fora, trabalhando com a relação entre Cultura Visual, Educação e

Homossexualidades.

348

Carla Giovana Cabral

é professora adjunta na Escola de Ciências e Tecnologia da Universidade Federal do

Rio Grande do Norte (UFRN/ECT). Possui pós-doutorado em História das Ciências

(Interdisciplinar em Ciências Humanas) (2009), doutorado em Educação Científica

e Tecnológica (2006), mestrado em Literatura (1998) e graduação em Comunicação

Social-Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) (1995).

Colabora também com o Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS),

Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Tecnológica (Nepet) e Instituto de

Estudos de Gênero (IEG) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Cintia de Souza Batista Tortato

possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Paraná (1994)

e mestrado em Tecnologia pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (2008).

Doutoranda em Tecnologia pelo PPGTE/UTFPR. Tem experiência na área de

Educação, com ênfase em Educação, Tecnologia, Sociedade e Relações de Gênero.

Cláudia Maria Ribeiro

possui graduação em Pedagogia pela Fundação Faculdade de Filosofia

Ciências e Letras de Lavras (1974), mestrado em Educação pela Universidade

Estadual de Campinas (1994) e doutorado em Educação pela Universidade Estadual

de Campinas (2001). Atualmente é professora associada da Universidade Federal de

Lavras atuando no ensino, na pesquisa e na extensão produzindo conhecimento nas

temáticas de Sexualidade e Gênero. Coordena o Grupo de Pesquisa Relações entre

Filosofia e Educação para a Sexualidade na contemporaneidade: a problemática da

349

Formação Docente e integra o Grupo de Pesquisa Anahí – Gênero e Sexualidade

composto por docentes da USP, Unicamp, UFJF, UFMS e UFLA. Coordenadora do

Grupo de Trabalho 23 – Gênero, Sexualidade e Educação da Anped – Associação

Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação.

Constantina Xavier Filha

é Graduada em Pedagogia pela Faculdade Unidas Católicas de Mato Grosso

(1990), com mestrado em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do

Sul (1998) e doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo FEUSP (2005).

Atualmente é professora Adjunta III da Universidade Federal do Mato Grosso do

Sul UFMS, atuando no Departamento de Educação do Centro de Ciências Humanas

e Sociais e no Programa de Pós-Graduação em Educação Social (CPAN/UFMS)

campus de Corumbá/MS. Vice-coordenadora do Grupo de Trabalho 23 – Gênero,

Sexualidade e Educação da Anped (2008-atual). Líder/coordenadora do GEPSEX –

Grupo de Estudos e Pesquisas em Sexualidades, Educação e Gênero CNPq/UFMS.

Autora e organizadora de materiais educativos para a educação para a sexualidade,

para a equidade de gênero e para a diversidade sexual, entre eles, de livros para a

infância com a temática da sexualidade, gênero e diversidades/diferença: Entre

explosões e cortes na barriga: as curiosidades de Rafael/Entre sementes e cegonhas:

as curiosidades de Gabriela (Editora da UFMS, 2009); A menina e o menino que

brincavam de ser... (Editora da UFMS, 2009). Diretora executiva do filme de animação

Jéssica e Júnior no mundo das cores (2010) realizado juntamente com crianças de

uma escola pública no âmbito do projeto de extensão Educação para a sexualidade,

gênero e direitos humanos de crianças – UFMS/DED/PREAE (2010).

350

Cristina Tavares da Costa Rocha

é doutora em Ciências Humanas (UFSC, 2006). Mestre em Tecnologia (UTFPR,

2001). Especialista em Metodologia da Ciência (1995). Graduada em Comunicação

Social/Jornalismo (1972). Realizou pesquisa de pós-doutorado na Universidad

Complutense de Madrid (UCM), Espanha em Comunicação/Antropologia/Gênero.

Artigo extraído da tese recebeu Menção Honrosa no 1º Prêmio Construindo a

Igualdade de Gênero (2006), Programa Mulher e Ciência, Brasília-DF, evento da

Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), MEC, MCT, CNPq e UNIFEM. Artigo

extraído da Dissertação recebeu o 1º lugar no Intercom-2002 (categoria: Mestrado,

modalidade: Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação). É pesquisadora-

colaboradora do IEG-UFSC e GeTec/PPGTE/UTFPR e integra o corpo docente dos

cursos de formação de professoras/es em Gênero e Diversidade na Escola desses dois

órgãos de estudo e pesquisa. Uma das organizadoras do livro Interdisciplinaridade em

diálogos de gênero: Teorias, sexualidades, religiões (Ed. Mulheres, 2004).

Daiane da Silva Firino

é aluna de Pedagogia e membro da equipe do projeto de extensão Gênero e

Sexualidade em Cena (Centro de Educação, Nipam, DHP, UFPB, Probex).

Fábio Hoffmann Pereira

possui graduação em Pedagogia (2004), mestrado (2008) e é doutorando em

Educação pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor dos anos iniciais,

efetivo da Prefeitura Municipal de São Paulo. Tem experiência de doze anos na área

de Educação, atuando como professor e coordenador pedagógico. Na pesquisa em

351

Educação, vem atuando principalmente nos seguintes temas: gênero e educação,

recuperação paralela, olhar do/a educador/a, reforço escolar e fracasso escolar.

Fernando Cézar Bezerra de Andrade

é graduado em Psicologia, Filosofia e Letras (UFPB), Especialista em

Teoria Psicanalítica (UFPB), Mestre e Doutor em Educação (UFPB), professor do

Departamento de Fundamentação da Educação (UFPB) e do Programa de Pós-

Graduação em Educação (UFPB). Pesquisa sobre temáticas relacionadas aos conflitos

inter-relacionais na escola (indisciplina, violência, mediação, competência inter-

relacional docente), a partir de referenciais da teoria psicanalítica e da pedagogia

institucional.

Francisca Jocineide da Costa e Silva

é aluna de Pedagogia, bolsista PIBIC junto ao projeto Concepções e Práticas

de Dever de Casa e membro da equipe do projeto de extensão Gênero e Sexualidade

em Cena (Centro de Educação, Nipam, DHP, UFPB, Probex).

Lindamir Salete Casagrande

possui graduação em Ciências com habilitação em Matemática pela

Fundação de Ensino Superior de Pato Branco (1990), especialização em Fundamentos

da Matemática pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa (1992). É doutoranda em

tecnologia pelo PPGTE/UTFPR. Atualmente é professora do Ensino básico, Técnico

e Tecnológico da Universidade Tecnológica Federal do Paraná e membro de corpo

352

editorial da revista Cadernos de Gênero e Tecnologia (GeTec/PPGTE/UTFPR).

Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Relações de Gênero e Tecnologia

– GeTec.

Maria Eulina Pessoa de Carvalho

é graduada em Pedagogia (UFPB), Mestra em Psicologia Educacional

(Unicamp) e PhD em Currículo, Ensino e Política Educacional (MSU/USA).

Professora Associada do Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba,

integra o Nipam – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Ação sobre Mulher e

Relações de Sexo e Gênero e o Programa de Pós-Graduação em Educação. É líder do

Grupo de Pesquisa Currículo Transversal, bolsista de produtividade CNPq, membro

do Grupo de Trabalho 23 – Gênero, Sexualidade e Educação da Anped e da Gender

and Education Association.

Maria Helena dos Santos Gomes

é aluna de Pedagogia e bolsista Probex junto ao projeto de extensão Gênero

e Sexualidade em Cena (Centro de Educação, Nipam, DHP, UFPB, Probex).

Marilia Gomes de Carvalho

possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná

(1966), mestrado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo (1978) e doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo

(1992). Fez Pós-Doutorado na Université de Technologie de Compiègne-França, no

353

ano de 1995. Atualmente é professora associada da Universidade Tecnológica Federal

do Paraná e docente/pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia,

onde atua na área de Dimensões Socioculturais da Tecnologia. Coordena o Grupo

de Estudos e Pesquisas sobre Relações de Gênero e Tecnologia – GeTec/PPGTE/

UTFPR.

Marília Pinto de Carvalho

possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (1985),

mestrado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1991)

e doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (1998). Atualmente é

Professora Livre Docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

Pesquisa Educação e Relações de Gênero, principalmente na educação escolar,

o trabalho docente nas séries iniciais do ensino fundamental e as diferenças de

desempenho escolar entre meninos e meninas. Foi editora responsável pela revista

Educação e Pesquisa entre 2004 e 2006 e atualmente é sua editora assistente. É co-

coordenadora do Grupo de Estudos de Gênero Educação e Cultura Sexual (EdGES) e

da coleção de Educação da Editora Hucitec. É bolsista de produtividade em pesquisa

nível 1 pelo CNPq.

Nadia Veronique Jourda Kovaleski

possui graduação em Licence Portugais Mention Français Langue Etrangère

– Universite Lumiere Lyon 2 (1992). É mestre em Ciências Sociais pela Universidade

Estadual de Ponta Grossa em 2002. Desde 1997 é professora da Universidade

Tecnológica Federal do Paraná. Tem experiência em pesquisa na área de gênero. É

doutoranda em Tecnologia pelo PPGTE/ UTFPR desde 2010.

354

Nanci Stancki da Luz

possui graduação em Matemática pela Universidade Federal do Paraná (1987),

graduação em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (2009), especialização

em Metodologia do Ensino Tecnológico pela Universidade Tecnológica Federal do

Paraná (1994), especialização em Ministério Público: Estado Democrático de Direito

pela Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná (2011), mestrado

em Tecnologia pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (2000) e doutorado

em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (2005) .

Atualmente é Professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, membro de

corpo editorial da revista Cadernos de Gênero e Tecnologia (CEFET/PR) e docente

da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Pesquisadora do Grupo de Estudos

e Pesquisas sobre Relações de Gênero e Tecnologia – GeTec/PPGTE/UTFPR.

Rogério Diniz Junqueira

é doutor em Sociologia pelas Universidades de Milão e Macerata (Itália).

Pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas e Estudos Educacionais Anísio

Teixeira (Inep). Membro do Núcleo de Pesquisa sobre Letramento, Escolarização e

Avaliação Educacional (CNPq).

Sandro Marcos Castro de Araújo

possui graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do

Paraná (1995), especialização em Informática na Educação pela PUC-Pr (1996) e

mestrado em Tecnologia pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (2004).

355

Valter Cardoso da Silva

é doutorando em sociologia pela Universidade Federal do Paraná – UFPR

(ingresso em 2008). É mestre em Tecnologia pela Universidade Tecnológica Federal

do Paraná – UTFPR (2006) e possui graduação em Filosofia pela Universidade São

Francisco (2001). Está ligado ao CESPDH (Centro de Estudos em Segurança Pública

e Direitos Humanos) da Universidade Federal do Paraná – UFPR e ao GeTec (Grupo

de Estudos em Gênero e Tecnologia) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná

– UTFPR. Atualmente é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e

Tecnologia do Mato Grosso – IFMT (Campus Rondonópolis).