IGBÁBÒ: Uma práxis pedagógica exuriana

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CLAUDIA BRAGA MAIA ODOLESSY IGBÁBÒ: Uma práxis pedagógica exuriana Universidade Federal do Sul da Bahia Mestrado em Ensino e Relações Étnico Raciais Porto Seguro, BA 2020

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CLAUDIA BRAGA MAIA

ODOLESSY

IGBÁBÒ:

Uma práxis pedagógica exuriana

Universidade Federal do Sul da Bahia

Mestrado em Ensino e Relações Étnico Raciais

Porto Seguro, BA

2020

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CLAUDIA BRAGA MAIA

ODOLESSY

IGBÁBÒ:

Uma práxis pedagogia exuriana

Apresentação de Memorial como requisito parcial

para obtenção do título de Mestre pelo Programa de

Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais

/ PPGER / UFSB.

Colaborador: Prof. Dr. Alexandre Osaniiyi

(IFBA/PPGER)

Membros da Banca:

Profa. Dra. Joceneide Cunha (UNEB/PPGER)

Prof. Dr. Marcelo Máximo Niel (FAP)

Prof. Dr. Luís Rufino (UERJ)

Universidade Federal do Sul da Bahia

Mestrado em Ensino e Relações Étnico Raciais

Porto Seguro, BA

2020

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Universidade Federal do Sul da Bahia

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO-PRPPG

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENSINO E RELAÇÕES ÉTNICO- RACIAIS

ATA Nº 8

Aos vinte e nove dias do mês de maio do ano de 2020, às 14 horas por meio de webconferência endereço:

https://mconf.rnp.br/webconf/csc-1/ UFSB, realizou-se a prova de Defesa de dissertação/produto final, intitulado

IGBÁBÒ: UMA PRÁXIS PEDAGÓGICA EXURIANA, de autoria da Candidata CLAUDIA BRAGA MAIA,

aluna do Programa de Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais, em nível de Mestrado. A Comissão

Examinadora esteve constituída pelas/os professores/as: ALEXANDRE DE OLIVEIRA FERNANDES (ON/MCT

- Examinador Interno) ORIENTADOR; JOCENEIDE CUNHA DOS SANTOS (UNEB - Examinador Interno);

MARCELO MÁXIMO NIEL (UNIFESP - Examinador Externo à Instituição); LUIZ RUFINO RODRIGUES

JÚNIOR (UERJ - Examinador Externo à Instituição). Concluídos os trabalhos de apresentação e arguição, a

candidata foi aprovada pela Comissão Examinadora. Houve indicações de correções condicionais. Foi concedido

um prazo de 30 dias regimentares, para que a candidata entregue o trabalho em sua redação definitiva na Secretaria

Acadêmica e na Biblioteca do Campus. Para constar, foi lavrada a presente ata, que vai assinada pelos membros

da Comissão.

Dr. MARCELO MÁXIMO NIEL, UNIFESP

Examinador Externo à Instituição

Dr. LUIZ RUFINO RODRIGUES JÚNIOR, UERJ

Examinador Externo à Instituição

ALEXANDRE DE OLIVEIRA FERNANDES, IFBA

Examinador Interno

JOCENEIDE CUNHA DOS SANTOS, UNEB

Examinador Interno

CLAUDIA BRAGA MAIA

Mestrando

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DEDICATÓRIA

A Exu, que abriu caminhos para o mestrado de Ensino e Relações Étnico Raciais. A

Yemanjá, que cuidou de meu Ori, permitindo o desenvolvimento da pesquisa e da escrita. A

Oxalá, que me trouxe paz nos períodos de turbulência. A Xangô, que me trouxe coragem para

reagir nos momentos de tropeços. A LogunEdé, que se revelou no momento mais difícil,

mostrando que eu deveria confiar. A Orunmilá Ifá, que me orientou a não desistir do mestrado,

no momento de maior fraqueza.

Ao meu pai carnal, João Batista Maia, homem forte de Xangô, que não se abateu com

uma cirurgia cardíaca e continua vivo para testemunhar meu sucesso. A minha mãe, carnal,

Júlia Maria Braga Maia, mulher acolhedora de Oxum, que em seu colo enxugou minhas

lágrimas me aconselhando a não desistir de meus sonhos.

Aos discentes participantes do curso: Jéssica, Kezia, Andréia, Sandro e Flavio, por terem

caminhado comigo até o final, e serem multiplicadores da Pedagogia de Terreiro. Aos

colaboradores: Danilo D’Oxóssi, André D’LogunEdé, Nena D’Oxum, Doté Balegunan, e Mãe

Luziene de LogunEdé, por terem ministrado aulas e terem nos recebido em seus espaços. Aos

colaboradores: Caíque e Eliza, por todo trabalho de secretaria, divulgação, filmagem, e suporte

técnico.

A Universidade do Estado da Bahia - UNEB, especificamente o Núcleo de Pesquisa e

Extensão - NUPE, pela emissão dos certificados do curso. Ao Espaço Cultural Viola de Bolso,

por ter cedido o espaço para a realização das aulas, pelo acolhimento e valorização de meu

trabalho.

Para o amigo Leandro Soares que presencia agora os frutos colhidos daquela orientação

que você me deu para a entrevista de ingresso ao mestrado!

À benção e gratidão a meu Babalorixá Dary Giberewá D’Jagun, zelador de meu orixá,

pois sem seus cuidados não teria trilhado uma trajetória que me levou ao PPGER.

À benção e gratidão a meu Oluwo Ifalola Eegungbade Akanmu, pois no decorrer de

minha trajetória me iniciei em Ifá, o que veio a somar ainda mais em meu processo de

crescimento espiritual e de me conhecer enquanto sujeito.

Para o amigo e irmão de caminhada espiritual, meu Pai Pequeno Doté Balegunan, que

há anos está comigo e entende a importância desse momento, te dedico, em nome de Oyá e do

Ilê Asé Silé Iná Tuntun Omo Torrundê, nosso egbe! Desculpe minhas ausências em momentos

de escrita!

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IGBÁBÒ: Uma práxis pedagógica exuriana

RESUMO:

O objetivo da pesquisa-ação ora apresentada foi o de promover uma práxis exuriana como

metodologia de ensino, o que ocorreu através de curso de formação de professores, intitulado

“Pedagogia da Ancestralidade e Terreiro: práticas antirracistas, decoloniais e a aplicabilidade

da Lei 10.639”. Desenvolvido no âmbito do Mestrado em Ensino e Relações Étnico-Raciais

(PPGER/UFSB), a ideia do curso implicou em tornar os participantes, multiplicadores em

espaços escolares com vistas a colaborarem para a decolonização e enegrecimento do currículo.

A metodologia utilizada no curso foi atravessada por categorias como ancestralidade, memória,

pertencimento, oralidade e mitologia. As atividades aconteceram com rodas de conversa, filmes

e debates, oficinas de culinária e dança, aulas de campo em terreiros de candomblé e recitação

de mitologia dos orixás, além de discussão de textos pertinentes à temática. Os frutos gerados

a partir desse curso e do trabalho intelectual desenvolvido durante o Mestrado são dois artefatos

finais: um memorial relatando minha trajetória profissional, acadêmica e pedagógica e o

documentário “Igbábò”, que traz as filmagens do curso. Elaborado com o intuito de servir como

material didático para escolas e universidades, especialmente para a formação de

professoras/es, “Igbábò” pode instrumentalizar para o pensamento decolonial, para uma práxis

libertadora e inspirar expectadoras/es e futuras/os pesquisadoras/es. Igbábò é estudo resultado

de ação colaborativa, que se coaduna com um pensamento decolonial e de resistência, logo,

propõe rupturas na construção hegemônica de saberes, corrói relações de poder

hierarquicamente eurocentradas, lega espaço aos saberes de Terreiro e coloca em tela uma

práxis exuriana para a Educação. Tendo como desafio o cruzo, o atravessamento de saberes,

com vistas à uma encruzilhada pluriepistêmica, Igbábò (o memorial e o documentário) trata do

avesso, ou seja, interessa-se por uma Educação que anda em sentido invertido e ancorada no

movimento espiralado de Exu. Rodopia em seu movimento e vai do caos a harmonia,

enegrecendo o pensamento e a relação saber/poder escolar.

Palavras-chave: Igbábò; Pedagogia de terreiro; Práxis exuriana; Decolonialidade.

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IGBÁBÒ: An exurian pedagogical praxis

ABSTRACT:

The purpose of the action research presented here was to promote an Exurian praxis as a

teaching methodology, which occurred through a teacher training course, entitled “Pedagogy

of Ancestrality and Terreiro: anti-racist, decolonial practices and viability of Law 10.639”.

Developed within the scope of the Master in Teaching and Ethnic-Racial Relations (PPGER /

UFSB), the idea of the course involved the participation of educational staff in order to

collaborate for the decolonization and blackening of the curriculum. The methodology used in

the course was crossed by categories such as ancestry, memory, belonging, orality and

mythology. The activities took place with conversation circles, films and debates, cooking and

dance workshops, field classes in candomblé terreiros and recitation of Orixá mythology, in

addition to discussion of relevant texts. The fruits generated from this course and the intellectual

work developed during the Master's are two final artifacts: a memorial reporting my

professional, academic and pedagogical trajectory and the documentary “Igbábò”, which bring

footage of the course. Elaborated with the intention of serving as didactic material for schools

and universities, especially for the training of teachers, “Igbábò” can be used as a tool for

decolonial thinking, for a liberating praxis and to inspire viewers and future researchers. Igbábò

is a study resulting from collaborative action, which is consistent with a decolonial and

resistance thinking, therefore it proposes ruptures in hegemonic construction of knowledge, it

erodes hierarchically Eurocentric power relations, leaves space for Terreiro's knowledge and

puts on an exurian praxis for the education. With a view to a multi-epistemic crossroads, Igbábò

(the memorial and the documentary) deals with the reverse, that is, he is interested in an

Education that walks in an inverted direction and is anchored in the spiral movement of Exu.

Its twists in movement and harmony goes from chaos, blackening the thought and the

relationship between knowledge and school power.

Keywords: Igbábò; Terreiro pedagogy; Exurian praxis; Decoloniality.

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SUMÁRIO

1. IGBÁBÒ: Resistir contra o memoricídio 10

1.1. Ensino Fundamental 10

1.2. Ensino Médio e Superior 11

1.3. Especializações e Trajetória Profissional: Giros, cruzos, encruzilhadas 12

1.3.1. Giros 12

1.3.2. Cruzos 13

1.3.3. Encruzilhadas 14

2. O TRAJETO DO MESTRADO E ATIVIDADES EXTRACLASSE 16

2.1. Primeiro ano no PPGER 16

2.2. Segundo ano no PPGER 21

3. A PRÁTICA PEDAGÓGICA 28

3.1. Trajetória Espiritual 28

3.2. As categorias de análise da Práxis Pedagógica Exuriana 35

3.3 Exu leva aos homens o oráculo de Ifá 40

3.4. Interpretação do Itan 42

3.5. O Curso Produzido 43

3.6. Sobre o Plano de Curso 45

3.7. Como os professores podem aplicar a Pedagogia de Terreiro? 62

3.7.1. Mas por que aplicar a Pedagogia de Terreiro? 62

3.7.2. Proposta de Andreia Silva Encarnação 69

3.7.3. Proposta de Sandro Leite Souza 74

3.7.4. Proposta de Jéssica da Silva Soares 76

3.7.5. Proposta de Kezia Merlo 78

3.7.6. Relato de Experiência dos Estudantes 84

4. O DOCUMENTÁRIO: Análise fílmica - IGBÁBÓ (Resistência) 86

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por uma educação às avessas 91

REFERÊNCIAS 94

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Educação às avessas baseada no Movimento Espiralado de Exu: uma

pedagogia de terreiro decolonizadora

88

Quadro 2: Janela intermediária padrão: recurso audiovisual ilustrativo com a

imagem de Exu, o movimento espiralado e a legenda.

89

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1. IGBÁBÒ: Resistir contra o memoricídio

A incumbência de escrever sobre minha trajetória como educadora exigiu uma ação

complexa de rememorar e relembrar os movimentos discursivos que me levaram a refletir sobre

mim mesma, em um espaço potencialmente interpretativo. O presente memorial que ora

apresento a esta banca de Mestrado, busca fazer emergir e identificar uma etapa concreta de

minha vida, discorrendo sobre os percursos acadêmico, profissional e espiritual que nela estão

imbricados.

No transcurso da escrita, a banca poderá perceber as situações que julguei serem as mais

significativas. Essas questões estão ligadas à resistência necessária contra o pensamento único,

contra o apagamento de nossa memória e a agressão violenta que incide sobre saberes

historicamente recalcados. Daí intitular esse trabalho de retomada da memória como

“IGBÁBÒ”, ou seja, resistência.

Igbábò se coaduna com um pensamento decolonial de resistência, porque propõe

rupturas na construção hegemônica de saberes. Corrói relações de poder hierarquicamente

eurocentradas, lega espaço aos saberes de Terreiro, coloca em tela uma práxis exuriana para a

educação, tendo como desafio o cruzo, o atravessamento de saberes das e pelas encruzilhadas.

Com vistas a uma encruzilhada pluriepistêmica, Igbábò trata do avesso, ou seja,

interessa-se por uma educação que anda em sentido invertido e ancorada no movimento

espiralado de Exu, rodopia em seu movimento e vai do caos a harmonia, enegrecendo o

pensamento.

Nessa caminhada de (re)existência, a banca se encontrará agora com uma revisão sobre

minha vida acadêmica, a qual será atrela às minhas experiências espirituais e também às leituras

que me foram demandadas durante meus estudos no Mestrado. No final do texto, encontrará as

discussões pertinentes à pesquisa-ação desenvolvida por mim durante o Mestrado Profissional

em Ensino e Relações Étnico-raciais e o artefato construído.

1.1. Ensino Fundamental

Nasci no dia 02 de março de 1975, na cidade de Vitoria - Espírito Santo, fui criada no

seio de uma família amorosa, cujos valores mais importantes eram o respeito ao próximo e a

honestidade. Aprendi em casa que a única forma que se tem para vencer na vida é o trabalho e

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o estudo. Na Vitória que crescia e o desenvolvimento que ora chegava, eu brincava e estudava

com crianças de minha rua, de diferentes classes sociais e etnias e, desde cedo, aprendi a não

julgar ninguém por sua condição social, religiosa ou étnica, mas, sim, pelo caráter. Minha mãe

é dona de casa e meu pai é professor aposentado da Universidade Federal do Espírito Santo -

UFES.

Estudei as séries iniciais do Ensino Fundamental na Escola Municipal Álvaro de Castro

Matos, localizada no meu bairro. Terminei os anos finais em escolas particulares por conta da

minha família acreditar que seria o melhor para minha formação, período este marcado por

grande turbulência devido ao divórcio litigioso de meus pais, uma ruptura familiar que por

algum tempo afetou meus estudos, mas que depois foi superado. Passei minha infância neste

clima e não fui preservada das turbulências inevitáveis que ocorreram no seio familiar e social

da época. Sempre fui muito responsável com os estudos e tinha um excelente relacionamento

com os professores, sendo estes meus grandes amigos. Eu estudava muito, era uma aluna

dedicada, fazia grupos de estudo em minha casa, tomava a frente na execução dos trabalhos.

1.2. Ensino Médio e Superior

Estudei o Ensino Médio no Colégio Objetivo que, na época, distribuiu bolsas de estudo

no curso pré-vestibular para os estudantes que apresentassem boas notas e desempenho. Ganhei

a bolsa e estudava o segundo ano pela manhã e o curso pré-vestibular a noite.

Foi cansativo frequentar a escola em dois turnos e, no intervalo desses, produzir

atividades de estudos e pesquisas, mas o resultado conquistado foi passar no vestibular para

bacharelado em Turismo, cursando ainda o segundo ano do Ensino Médio.

Acionei a justiça para que fosse permitido que eu ingressasse sem ter cursado o terceiro

ano, a petição foi concedida por meio da prova do CEEJA - Centro de Educação de Jovens e

Adultos - de minha cidade, com isso consegui então obter a média para todas as disciplinas e

conquistei o certificado de conclusão do Ensino Médio, podendo iniciar meus estudos na

Faculdade de Turismo de Guarapari. Fiz o curso de forma empenhada, sempre participando de

grupos, eventos, visitas técnicas e obtendo boas notas.

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1.3. Especializações e Trajetória Profissional: Giros, cruzos, encruzilhadas

1.3.1. Giros

Ao me formar em 1999, fui convidada por um colega da área para morar e trabalhar em

Porto Seguro – BA, assim o fiz e vivenciei meu primeiro grande emprego na área turística, no

parque aquático Paradise Water Park, hoje chamado Arraial Eco Park. Em um ano, fui

promovida a supervisora de promoção, cargo que ainda não existia, o qual foi criado porque

entreguei um projeto de execução de trabalho.

Após um ano de vivendo na Bahia, senti a necessidade de me qualificar e voltei ao

Espírito Santo no intuito de me especializar melhor na área de Marketing Empresarial e fiz a

minha primeira especialização latu sensu na Universidade de Vila Velha – UVV. Iniciei minha

vida como professora em diversas faculdades: Faculdade Espírito Santense de Ensino

Tecnológico, Faculdade de Turismo de Guarapari, Faculdade Novo Milênio e, por fim, a

Faculdade Estácio de Sá, de Vitória, sempre dando aulas relacionadas ao Turismo e Marketing.

Fiquei alguns anos ministrando aulas nessas referidas instituições, ora em uma, ora em outra,

intercalando.

No ano de 2004, como professora da Estácio de Sá de Vitória, tinha um salário muito

bom para os padrões da época, já havia ingressado no Mestrado em Educação, na Universidade

Estácio de Sá do Rio de Janeiro. Minha rotina era passar a metade da semana no Rio estudando

uma média de 300 páginas por semana, escrever e retornar para o Espírito Santo para cumprir

as minhas 40 horas de aulas semanais na Faculdade Estácio de Sá, de Vitória. Para além da

rotina estafante, eu era feliz, estava na minha zona de conforto, acreditando que era uma

educadora (hoje vejo que não) que se resumia a lecionar em uma instituição de ensino superior

particular.

A cabeça começou a dar nó a partir do momento em que percebi que tudo aquilo que eu

vivia era uma grande falácia por conta dos conteúdos estudados sobre Educação Ambiental e

Diferenças e que, fortemente, começaram desconstruir tudo que estava posto em minha mente

em relação aos ensinamentos neoliberalistas/capitalistas do Marketing. Estes conceitos me

provocavam, me deixavam confusa, então, nesse momento, concluí que eu não era educadora.

Era tão somente massa de manobra de e para uma educação excludente, colonial e racista

voltada para o mercado de trabalho.

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A derradeira avalanche que fez descer ladeira a minha trajetória como pseudo-educadora

para o nascimento de uma “nova Claudia” se deu com um declínio da demanda pelos cursos de

Turismo, uma vez que muitos cursos fecharam as portas e os professores foram demitidos.

Também fiquei desempregada e não tive mais condições financeiras de arcar com as viagens e

com as mensalidades do mestrado, acabei tendo que me desligar do programa. Foram dois anos

de desemprego, à mingua financeira e depressão, por conta disso eu adoeci. No entanto, o

mestrado sempre foi algo que, desde sempre, foi muito almejado, desejado e eu havia lutado

por ele.

1.3.2. Cruzos

Em 2006, fui convidada por parentes para morar em Teixeira de Freitas e lá soube do

processo seletivo na Universidade do Estado da Bahia – UNEB, campus de Eunápolis. Passei

pela seleção e lá trabalhei no colegiado de Turismo. Nesta instituição, comecei a perceber sinais

do que é educar: estudantes e professores lutarem pelo direito a condições melhores de uma

educação pública de qualidade e esta foi uma fase de grande aprendizado, eu aprendia mais que

meus estudantes, por conta das trocas e pelos embates.

Ao concluir meu contrato com a UNEB, retornei ao Espírito Santo e ingressei na

educação profissional, no curso técnico de Guia de Turismo Nacional, pelo Governo do Estado

do Espírito Santo. Nos anos de 2008 a 2010 retornei com força total aos estudos: fiz

complementação pedagógica em Geografia, na Faculdade Capixaba de Nova Venécia –

UNIVEN, especializações latu sensu em Educação Ambiental e também em Educação de

Jovens e Adultos, ambas no Instituto Superior de Educação e Cultura Ulysses Boyd - CESAP.

Logo em seguida, ingressei em uma nova experiência: dar aulas de Geografia no Ensino

Médio do Colégio Estadual de Vitória, onde tive meu primeiro contato com a comunidade surda

e com o idioma Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS. Por conta desta vivência, tive a

oportunidade também de trabalhar a Diferença e a Inclusão. Na escola, eu trabalhava os

conceitos de racismo, homofobia, preconceito, estereótipos e intolerância religiosa; ficou

também sob a minha responsabilidade a Semana da Consciência Negra. A partir daquele

período, minha vida mudara completamente.

Lecionar na educação básica e pública, e também para negros e surdos, me fez enxergar

de perto a realidade de meus estudantes e a dificuldade deles em se manterem na escola

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mediante a sedução da criminalidade, pude perceber o quão é equivocada a leitura dos

professores de educação básica no trato com o “outro”, no que diz respeito à Diferença e a

Inclusão. Foi neste momento que pude me colocar no lugar do meu aluno e percebi o quanto é

necessário trabalhar a empatia e as relações de afeto para conseguir que meu trabalho desse

algum resultado e, com isso, fazer transformações na vida de cada um que atravessasse meu

caminho, nesse momento, me percebi como uma educadora de fato.

Aproveitei para fazer também minha segunda graduação, dessa vez em Pedagogia, na

Escola de Ensino Superior - FABRA e, a partir de 2011, atuei em escolas municipais e

estaduais, simultaneamente por sete anos, com duas cadeiras, um turno como professora de

Geografia e em outro como professora bilíngue de Libras/Português. Concluí outra

especialização latu sensu em LIBRAS, no Instituto Superior de Educação e Cultura Ulysses

Boyd – CESAP.

Depois disso, decidi que era o momento de ingressar novamente no Mestrado em

Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES, com um projeto voltado para

Libras e não obtive sucesso, os caminhos estavam fechados. Permito-me contar melhor sobre o

assunto quando relatar minha experiência espiritual mais adiante.

1.3.3. Encruzilhadas

Novamente passei por um processo seletivo da UNEB e, em 2016, retornei à Bahia,

depois de oito anos. Fui contratada para atuar em disciplinas relacionadas ao Colegiado de

Turismo, mas assim que as coordenações de outros colegiados tiveram ciência de que atuava

como professora de LIBRAS, fui convidada a ministrar aulas nos cursos de licenciatura em

História e Letras - Língua Portuguesa. Dentre as diversas disciplinas ministradas, as que mais

tinha prazer eram: Tópicos Avançados do Turismo; Tendências do Turismo Contemporâneo;

Turismo e Manifestações Culturais; Antropologia e o Turismo; Sociologia do Lazer e do

Turismo e Geografia e Turismo I e II.

Ao ministrar tais disciplinas na UNEB, tive a oportunidade de discutir com meus

estudantes categorias chave como “diferença”, “racismo estrutural”, “homofobia”, “racismo

religioso” e, principalmente, a “decolonização dos saberes escolares”. Produzi eventos,

colaborei com monitores de ensino e trabalhos de conclusão de curso e tive a oportunidade de

ministrar cursos de extensão, em especial, o curso “Pedagogia da Ancestralidade e Terreiro:

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práticas antirracistas, decoloniais e a aplicabilidade da Lei 10.639/2003”, como elemento-chave

para a produção de meu artefato final para o Programa de Pós Graduação de Ensino e Relações

Étnico-Raciais – PPGER, da Universidade Federal do Sul da Bahia – UFSB.

Ainda consegui, no segundo semestre de 2019, ser aprovada no processo seletivo para

professora substituta no Instituto Federal da Bahia - IFBA, em Porto Seguro, para dar aulas de

LIBRAS, assumi a vaga de 20h semanais, mas, infelizmente, tive que retornar para o Espírito

Santo. O vínculo que eu tinha com a UNEB se encerrou e como esta era minha maior fonte de

renda, isto me afetou diretamente no sentido de me manter na Bahia pagando aluguel e minhas

despesas pessoais.

Atualmente, resido em Vitória - ES, onde atuo como professora de LIBRAS (Prefeitura

Municipal da Serra), me dedico à escrita do presente memorial e à edição do documentário ora

apresentado em minha defesa de Mestrado, ambos artefatos para a obtenção de titulação

acadêmica.

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2. O TRAJETO DO MESTRADO E ATIVIDADES EXTRACLASSE

Em junho de 2018, ingressei na Universidade Federal do Sul da Bahia – UFSB, em Porto

Seguro, como aluna de mestrado do Programa de Pós Graduação de Ensino e Relações Étnico-

Raciais – PPGER, na linha Pós-colonialidade e Fundamentos da Educação nas Relações Étnico-

Raciais.

Ser selecionada para o mestrado provocou e ainda provoca uma grande transformação. A

queda livre de minha trajetória profissional (em 2004, com a demissão da Estácio de Sá e a

perda da seleção no Mestrado em Educação) transforma-se agora numa caminhada para o alto

do topo. Definitivamente, eu subi a mesma ladeira onde tinha caído. E, nesse momento, é assim

que me sinto, recuperando tantos anos de sofrimento, sem a sensação de fracasso, 14 anos

depois.

Agarrei a oportunidade, enfrentei desafios para planejar o tempo, pois além de trabalhar

40h semanais na UNEB, concomitantemente atuava como professora de LIBRAS, na Prefeitura

de Santa Cruz de Cabrália, com 20h semanais e como colaboradora de 10 trabalhos de

conclusão de curso, na pós graduação Educação à Distância em LIBRAS da UNEB. Foi com

muita disciplina, foco e determinação que encontrei tempo para me dedicar ao mestrado. Abri

mão dos fins de semana, de vida social, sentimental, familiar e espiritual para dar conta da rotina

de planejamento de meus estudos. Foram cinco meses sem folga aos sábados e, posteriormente,

nove meses sem folga aos sábados e domingos, até a apresentação de minha qualificação.

2.1. Primeiro ano no PPGER

No componente curricular obrigatório “Políticas Públicas e Relações Raciais”,

ministrado pela professora Eliana Póvoas, pude ter o real entendimento do que vem a ser a

educação pública desse país. O que me foi ensinado no curso de Licenciatura de Pedagogia não

chegava nem próximo do estado de caos que se instalou em minha mente, ao perceber nas

entrelinhas as graves fissuras que existem no sistema educacional brasileiro: excludente,

colonial, racista, sexista, intolerante e cristão.

Apresentei como trabalho final para este componente o artigo intitulado

“Neoliberalismo Racial e Políticas Públicas: Candomblé nas escolas e a aplicação da Lei

10.639”, no qual procurei discutir sobre as falhas existentes na aplicação desta lei. Apresentei

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uma breve explanação sobre o conceito de Rede de Políticas e dispositivos de poder para a

manutenção do status quo do capitalismo neoliberal, sobre o conceito e a organicidade do

neoliberalismo racial enraizado nas estruturas das esferas pública e privada, Estado e cidadãos.

Refletindo sobre isso, fiz o seguinte questionamento: Por que não levar os saberes do

candomblé para dentro dos espaços escolares? Estamos praticando o que preconiza a Lei

10.639/2003? Essa é uma das formas de descolonizar o saber escolar. O objetivo do estudo foi

criticar as políticas públicas e o atual currículo escolar onde a escola, infelizmente, é um espaço

legitimador de uma cultura incentivadora de práticas de intolerância. Os autores citados no

artigo foram os mesmos discutidos em sala: Stephen Ball (2004 e 2014), Gilles Deleuze (2000),

Michael Foucault (2008), Agustín Laó Montes (2018), Shiroma, Garcia e Campos (2011) e

Rachel Bakke (2011).

Falar sobre as sensações vividas com este componente curricular é particularmente

interessante; inicialmente porque dá uma sensação de desespero após repetidamente ler e não

entender as leituras de Stephen Ball (2006) sobre a Sociologia das políticas educacionais e

perceber que a turma toda compartilhava do mesmo problema. O resultado foi um grande

embate com a professora Eliana que, de maneira hábil e inteligente, modificou estrategicamente

sua metodologia para discussões ao ar livre, com rodízio de discussões abertas. Fiquei muito

realizada e feliz quando consegui transpor as barreiras que me impediam de enxergar as

engrenagens do sistema de políticas públicas educacionais, então, só a partir desse momento,

consegui partir para a escrita.

No componente curricular optativo “Educação e Estudos Culturais: Implicações para as

Práticas de Ensino”, ministrado por Alexandre Fernandes, várias discussões aconteceram,

dentre elas, “cultura e educação”, “estudos culturais e suas problemáticas”, “diálogos e

reflexões sobre Gênero”, “Currículo, Etnia, Raça e Nação”, como também sobre as “Diferenças

na Educação”.

Apresentei como trabalho final para este componente o artigo intitulado: “O

Candomblé, seus Saberes e a Contribuição dos Estudos Culturais”, no qual mergulhei no

universo dos terreiros de candomblé, valorizando a construção de seus aprendizados/saberes, a

pedagogia de terreiro, e isso tudo me levou a questionamento do motivo de não levar os saberes

do Candomblé para dentro dos espaços escolares. Estaríamos praticando o que preconiza a Lei

10.639/2003? Esta seria uma forma de descolonizar o saber escolar.

O objetivo do estudo foi criticar o atual currículo escolar onde a escola é um espaço

legitimador de uma cultura incentivadora de práticas de intolerância e propor que o componente

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Estudos Culturais, trabalhado na formação de professores, possa transformar o olhar daqueles

que podem modificar a realidade escolar trazendo os saberes dos orixás para dentro da escola

pela formação um currículo que contemple as diferenças, baseando-se, prioritariamente, no

respeito. Os autores utilizados para a produção deste artigo foram os mesmos discutidos em

sala de aula e outros: Muniz Sodré (1988), Stela Caputo (2012), Oliveira e Almirante (2014),

Marialda Silveira (2004), Rachel Oliveira (2014), Caputo e Alves (2012), Marisa Costa, Rosa

Silveira e Luís Sommer (2003), Anna Oliveira (2009), Dagmar Meyer (2005), Carlos Skliar

(2002), Tomaz Tadeu da Silva (1996), Stuart Hall (1997), Kelly Russo e Alessandra Almeida

(2016) e Catherine Walsh (2007).

Os aprendizados obtidos e conteúdos discutidos neste componente foram fundamentais

em minha vida, pois eu os considerei extremamente importantes para minha experiência pessoal

e como educadora, pois aproveitei toda a discussão no componente “Antropologia e o

Turismo”, ministrado na UNEB, onde montei uma “Mostra de Cinema Amador de

Antropologia, Turismo e Contemporaneidade” discutindo questões como: misoginia,

machismo, homofobia, transfobia, racismo, xenofobia, intolerância religiosa e ódio nas redes

sociais. A metodologia utilizada pelo professor Alexandre de utilização de apontamentos

impressos na forma de síntese dos textos lidos e divididos por grupos a cada aula, funcionou

tanto que adotei em minhas aulas e meus estudantes adoraram porque proporcionou um giro de

saberes e uma maior interação entre os participantes.

As atividades extraclasse, desenvolvidas neste período, se deram com a participação em

dois grandes eventos. O primeiro deles foi realizado pelo próprio PPGER, Campus Paulo Freire

– Teixeira de Freitas: “I Seminário Regional de Ensino e Relações Étnico-Raciais, Mulheres,

Culturas e Políticas: diálogos interseccionais, memória, poder e resistências no sul baiano”.

Nunca tinha participado de um evento acadêmico como participante de um Grupo de

Trabalho – GT. Isto significa dizer que nunca tinha passado pela experiência de escrever um

resumo para submissão aos moldes da organização de um evento acadêmico que, após

apreciação e aprovação, teria que apresentar oralmente e, posteriormente, por escrito o resumo

expandido para publicação nos anais. Tudo sob a supervisão e correção de meu professor-

colaborador. Foi uma experiência marcante, uma vez que foi o primeiro GT. No dia, fui vestida

a caráter, por conta da abordagem do meu artigo: “A vestimenta do candomblé: prática de

resistência e afirmação cultural? ”. Isso ia ao encontro do que eu apresentava como tema, sendo

essa uma maneira de defender que os adeptos do candomblé têm nas vestimentas uma forma de

enfrentamento das práticas de racismo religioso.

Page 19: IGBÁBÒ: Uma práxis pedagógica exuriana

19

O segundo evento teve o caráter dois em um, uma conferência internacional e um

seminário nacional, ambos realizados simultaneamente na Universidade Federal do Espírito

Santo - UFES. Esse evento foi surpreendente pela sua magnitude, o “World Conference on

Remedies to Racial and Ethinic Economic Inequality” – CORREEI – 5TH – “Conferência

Mundial em soluções para a Desigualdade Econômica, Racial e Étnica” - e o “Seminário

Nacional de Educação das Relações Étnico Raciais Brasileiras”.

Fiquei impressionada com a grandiosidade e a organização. Mais uma vez, assim como

o seminário que aconteceu em Teixeira de Freitas, o que mais ganhamos em participar de

eventos foram os conhecimentos nos momentos de troca ao ouvir outros colegas falarem nos

GT’s, e de fato compreender que o Outro tem muito a contribuir com suas falas em nossas

pesquisas. As palestras, oficinas e minicursos também foram fundamentais para fazer toda a

amarração do processo de pesquisa que estava desabrochando em mim.

Neste evento da UFES, participei de um GT, submeti um resumo expandido intitulado

“Candomblé e suas Práticas Culturais: para o desenvolvimento de espaços escolares que

contemplem as diferenças”. Procurei problematizar como as práticas religiosas poderiam ser

contempladas nos espaços escolares, ressignificando a comunidade escolar. Discuti que é

necessário ter um olhar sobre os adeptos das religiões de matrizes africanas em idade escolar

que sofrem com a intolerância religiosa, enraizada na sociedade e perpetuada pelo currículo

escolar hegemônico atual, apesar da implantação da Lei 10.639/03. A discussão foi analisada

por meio das leituras de Macedo (2006), Destro e Oliveira (2005) e Gonçalves e Silva (2000).

No componente curricular optativo “Currículo, Cultura, Diferença”, ministrado pela

professora Eliana Póvoas, foram discutidas questões que permeiam o currículo escolar,

principalmente porque meu objetivo-fim é a decolonização dos saberes escolares por meio da

discussão do currículo, e isto se deu por meio da proposta metodológica – Pedagogia de Terreiro

na formação de professores. Não tinha como fugir de uma discussão densa dentro deste

componente.

A discussões se deram na forma de seminários avaliativos individuais e a criação de

verbetes em cima dos textos propostos. Baseados nos autores Elisabeth Macedo, Tomaz Tadeu

da Silva, Stuart Hall, Michael Young, Sandra Mara Corazza e Rosângela Tenório de Carvalho

discutimos currículo, cultura, poder, alteridade, políticas educacionais, diferenças, gênero,

resistência, ruptura, representação e identidade, identidade e diferença, o papel das escolas,

currículo e educação, o discurso curricular intercultural e governamentabilidade.

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20

Em “Estágio e Residência”, iniciei encontros semanais com meu professor-colaborador

para estudos por meio do Grupo de pesquisa em Linguagens, Poder e Contemporaneidade -

GELPOC/IFBA. A cada encontro aconteciam novas leituras e discussões. Lembro-me de

comentar com Alexandre e colegas que é como se eu desse um “salto” num trampolim a cada

encontro, de tão enriquecedor. Por vezes, me causava frustação quando apresentava um texto

“não apresentável” e Alexandre não poupava palavras para me chamar a atenção, nessa

caminhada pelo aprendizado, mas valeu a pena.

Não foi fácil chegar à construção do que viria a ser meu artefato final. Na caminhada a

este processo, encontrei vários tropeços que criaram entraves no meu processo de criação.

Fatores de ordem profissional e pessoal foram difíceis de contornar, pois testavam a minha

capacidade de me dedicar aos estudos. Os problemas de ordem profissional dizem respeito a

uma rotina estafante de aulas como professora e os percalços de ordem pessoal vieram junto

com a notícia de um câncer de um grande amigo, Leandro Soares.

Existem pessoas que escolhemos na vida para serem nossos irmãos e Leandro faz parte

desse grupo, fui, inclusive, sua madrinha de casamento. Ele é professor da UNEB. Foi ele quem

passou horas de seu tempo me auxiliando sobre como seria a entrevista para o ingresso no

Mestrado do PPGER. Se obtive sucesso, foi graças a ele.

Além de admirá-lo como profissional, Leandro faz parte do seleto grupo de pessoas das

minhas relações pessoais aqui na Bahia e receber a notícia sobre um grave câncer de um de

meus melhores amigos me tirou do eixo emocionalmente e modificou minha rotina, pois que

Leandro e seu companheiro tiveram que ir às pressas para Salvador enfrentar exames e eu,

juntamente com um grupo de amigos, ficamos responsáveis por cuidar de sua casa e seus

animais; fizemos um ciclo de trabalhos espirituais pedindo que Xangô intercedesse para que a

cirurgia fosse um sucesso.

Foi muito difícil o processo de produção nestas condições. O tempo era escasso, me

encontrava fisicamente esgotada com todos os afazeres e quando parava para produzir minha

mente viajava para Salvador e eu chorava, não conseguia me conectar. A conexão se deu

somente após a notícia de que a cirurgia tinha sido um sucesso, mesmo com um susto no pós

operatório, mas Leandro estava bem, com a certeza de que poderia retornar, a salvo.

Nessas idas e vindas fui construindo a proposta de meu artefato final e participei de

atividades extraclasse neste quadrimestre que findava o ano de 2018. Submeti resumos

expandidos em dois eventos, sendo um deles o “VI Simpósio de Integração, Ensino, Pesquisa

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e Extensão: Novos Desafios para a Universidade – SINTEPE”, promovido pela UNEB –

Campus Eunápolis.

Apresentei o trabalho intitulado “Neoliberalismo Racial e Políticas Públicas:

Candomblé nas Escolas e Aplicação da Lei 10.639/03”, que foi meu trabalho final no

componente curricular de Políticas Públicas, ministrado pela professora Eliana Póvoas,

argumentei que existem falhas na aplicação e cumprimento dessa legislação, baseando-me em

autores como Oliveira (2014), Caputo (2012), Adorno (1995), Ball (2004 e 2014), Montes

(2018), Póvoas (2018), Bhabha (1989), Hall (2003), Foucault (2008), Sodré (2012), Caputo e

Alves (2012), Bakke (2011).

Defendi que para se ter um entendimento adequado sobre a exequibilidade de políticas

nacionais temos que fazer uma análise sobre a Lei e os contextos nos quais ela foi criada, sobre

o conceito e a organicidade do neoliberalismo racial enraizado nas estruturas das esferas pública

e privada. Apresentei breve explanação sobre a manutenção do status quo no capitalismo

neoliberal. O objetivo desse estudo foi o de criticar as políticas públicas e o atual currículo

escolar, defendendo que a escola ainda é um espaço legitimador de uma cultura incentivadora

de práticas de intolerância.

O segundo evento de que participei foi o “II Seminário de De(s)colonialidades –

Ancestralidade e Lugar de Fala: Outras Geografias de Olhares e Saberes”, promovido pelo

IFBA, Campus Eunápolis. Apresentei o trabalho intitulado “O Candomblé, seus Saberes e a

Contribuição dos Estudos Culturais”, que foi meu trabalho final no componente curricular

optativo, ministrado pelo professor Alexandre Fernandes.

Um elemento surpresa neste final 2018 que fez com que eu suspendesse todas as minhas

atividades laborais e acadêmicas foi uma cirurgia às pressas de retirada do ovário esquerdo, por

conta de uma endometriose que ocasionou uma crise. Tive que ser levada ao hospital em caráter

de emergência e após nove dias de internação fui operada. Participei desses eventos

convalescendo ainda da cirurgia.

2.2. Segundo ano no PPGER

No período de férias, no mês de Janeiro de 2019, aproveitei dez dias para ver minha

família no Espirito Santo e retornei para escrever o artigo intitulado: “Pedagogia de Terreiro:

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Pela Decolonização dos Saberes Escolares” que, posteriormente, publiquei na Revista

Vivências, juntamente com os colegas Mariana Fernandes dos Santos e Yuri Miguel Macedo.

Neste trabalho, defendo que os saberes construídos cotidianamente no universo de

terreiros de Candomblé, sua história oral, tradição, axé e ancestralidade afro-brasileira são

epistemologias decoloniais, uma Pedagogia de Terreiro que tem muito a contribuir para a

formação do sujeito e de sua identidade. O objetivo deste estudo é apresentar caminhos na

construção do conhecimento de saberes afro referenciados apresentando críticas ao atual

modelo escolar legitimador de uma cultura de intolerância e racismo em que a escola rejeita e

exclui a identidade ancestral e cultural que o estudante negro traz consigo. Defendo que a partir

dos Estudos Culturais é possível construir rupturas com o paradigma colonial racista judaico-

cristão, pela formação de uma cultura que contemple as diferenças, baseada no respeito.

Ainda faltava um componente curricular obrigatório a cumprir, “Fundamentos dos

Processos de Ensino-Aprendizagem nas relações Étnico-Raciais”, ministrado pela professora

Eliana Póvoas. Este componente teve uma característica especial, pois tive o prazer de conviver

com a nova turma que iniciava no programa do PPGER, no ano de 2019, eram 45 pessoas em

sala. Debruçar sobre Spivak, Foucault, Deleuze, Sueli Carneiro fizeram discussões necessárias

sobre ensino-aprendizagem no momento em que eu estava colocando em prática o curso de

extensão de formação de professores, ao mesmo tempo em que escrevia um texto sobre esta

prática para apresentar na qualificação.

Como forma avaliativa deste componente curricular os grupos apresentaram seminários

interativos com entrega dos textos-sínteses e a produção de artigo baseado nas discussões,

produzido individualmente. Apresentei o artigo que fala do curso de formação de professores

que apresentei na minha banca de qualificação e, para minha surpresa, a professora não ficou

satisfeita com a minha produção.

Com quatro dias de prazo para a nova entrega, escrevi o artigo intitulado “Tá Amarrado

em Nome de Jesus! A Escola e o Aluno Negro Adepto do Candomblé”, no qual apresento que

as crianças negras adeptas do candomblé, ao adentrarem as escolas, sofrem com relações

conflituosas de preconceito e racismo religioso, pois a escola é um espaço legitimador de uma

cultura branca que tenta reduzir e invisibilizar a identidade da cultura negra, feita de forma

intencional, legando apenas uma imagem folclórica e humilhante da riqueza cultural da

ancestralidade africana.

O objetivo do estudo foi trazer reflexões sobre o silenciamento do aluno e as relações

de poder sobre o currículo escolar hegemônico, no intuito de romper com o paradigma colonial

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racista judaico-cristão com uma análise sobre a Lei 10.639/2003. Os autores utilizados no

estudo sobre relação ensino-aprendizagem e pedagogia de terreiro foram: Carneiro (2005),

Caputo (2012), Oliveira e Almirante (2005), Spivak, (2010), Oliveira, (2014), Foucault, (2008)

e Veiga-Neto, (2007). Defendi, mais uma vez, que a educação tenha como formação uma

cultura e um currículo que contemplem as diferenças, baseadas no respeito. Apresentei resumo

expandido deste artigo no “III Seminário De(s)colonialidades: Ancestralidade, Educação e

Resistência”, promovido pela IFBA de Eunápolis, em 2019.

Neste segundo ano de PPGER, me inscrevi em “Orientação e Práticas de Pesquisa I e

II” e “Seminários Processuais I e II”; foram momentos intensos imersos na pesquisa, na leitura

e na escrita de meus textos para a qualificação e de planejamento do curso de extensão de

formação de professores: “Pedagogia da Ancestralidade e Terreiro: práticas antirracistas,

decoloniais e aplicabilidade da Lei 10.639/2003”.

Ficou acordado com meu colaborador1 a produção de três textos para minha

apresentação na banca de qualificação:

Um texto cujo gênero textual é o “estado da arte”, com uma pesquisa completa de todas as

produções que eu encontrasse sobre “Pedagogia de Terreiro”, para que eu pudesse me

inteirar sobre o que estava sendo produzido sobre a temática. Para isso, fez-se necessária

uma operação “pente-fino”, que foi fundamental para que eu me aprofundasse na temática.

Um texto inédito cujo gênero textual seria “artigo”, no qual, por meio das leituras, eu

pudesse também dar minha contribuição acadêmica enquanto nova pesquisadora;

Um texto sobre meu artefato final, explicando detalhadamente do que se trata o estudo-

intervenção, explicitando o planejamento das atividades.

Acredito que o segundo ano no PPGER foi ainda mais difícil, porque além de dar conta

de pesquisas, leituras, escritas de três textos para a qualificação e do componente obrigatório:

“Fundamentos dos Processos de Ensino-Aprendizagem nas relações Étnico-Raciais”, tinha que

dar conta também de 40 horas aulas semanais da UNEB, 20 horas semanais da Prefeitura de

Santa Cruz de Cabrália e da colaboração com dez Trabalhos de Conclusão de Curso – TCC’s,

da Pós em LIBRAS EAD da UNEB. A situação se agravou quando comecei a ministrar o curso

de formação de professores.

1 Trata-se de tentar lidar com a academia de modo decolonial, logo, não há “oriente” a ser seguido, mas sujeitos

que colaboram conosco em nossa pesquisa, assim, escrevo “colaborador” e não “orientador”.

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Houve momentos em que pensei em desistir de tudo e chorava muito. Pode parecer

piegas, eu sei, todo mundo que já passou por um mestrado ou doutorado passa por estas

situações. Trabalhar e fazer mestrado estava sendo um fardo muito pesado a carregar.

Foi quando recebi a notícia da internação de meu pai, em São Paulo, para a cirurgia do

coração. E, para piorar, a UNEB entra em greve neste período e eu fico sem salário durante três

meses. Sinceramente eu não sei se foi para o bem ou para o mal esta greve. Ficar sem trabalhar

me deu tempo para escrever: eram 10 a 12 horas diárias escrevendo sem parar para entregar os

textos da qualificação. Mas a pessoa mais importante de minha família ficou 30 dias internada,

justamente a que podia me ajudar financeiramente. A saúde reclamou, tive uma crise de coluna

e a síndrome da fibromialgia atacou, fui parar na emergência do hospital público de Cabrália

para tomar medicação intravenal, que não resolveu muito, por conta disso tive que tomar

medicações fortes à base de Tramal para combater as dores, remarquei minha qualificação por

causa disso.

Nunca podemos dizer que as coisas não podem piorar, pois elas podem. Além de toda a

situação de preocupação com meu pai da UTI em São Paulo e eu na Bahia, acompanhando à

distância, sem salário por conta da greve da UNEB, escrevendo 12 horas por dia, dando aula

em Cabrália, auxiliando na produção de TCC e ainda com crise de coluna, contraí anemia forte,

com tonturas, princípios de desmaios e hemorragias que chegavam a durar 30 dias; afinal, não

estava me alimentando adequadamente.

Minha mãe veio do Espírito Santo para me ajudar a cuidar de minha casa, de minha

alimentação e de minha saúde. Só que ela também estava com problemas financeiros, assim

como eu. Resumindo, tive que vender meu carro e ficar a pé depois de anos para conseguir

comprar um, e ainda nem havia conquistado a qualificação.

Por conta disso, pensei em abandonar tudo. Os processos de produção, as idas e vindas

de correção de meus textos cortavam em minha carne e eu não aguentava mais, estava

preocupada com a vida de meu pai, depressiva, anêmica, falida e cansada de tudo. E escrevendo.

Como sou feita de orixá, isso fez toda a diferença para seguir em frente. Mais uma vez

recorri a Xangô para que cuidasse de meu pai, que é filho de Xangô, e rodei um grande Amalá2

2 Amalá: alimento ritual oferendado ao Orixá Xangô, feito de quiabo picado refogado no camarão seco defumado,

cebola, azeite de dendê e sal, servido numa gamela forrada oval de madeira, com pirão de farinha de mandioca ou

acaçá. Por cima decora-se com 12 quiabos e a depender do contexto, leva bolas de arroz ou bolas de inhame pilado,

podendo ainda adornar com uma peça de carne de músculo inteira refogada. Fonte: a própria autora. (Notas

similares a essa encontram lastro em meu conhecimento empírico, haja vista que sou iniciada no Culto e Ialorixá.

Essas notas são um movimento contra-ABNT, a rasurar o pensamento autoritário europeu que separa sujeito-

objeto, respaldo-me, portanto, em meu lugar de fala, em meu conhecimento situado e na autoridade religiosa a

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em minha casa no momento de sua cirurgia. Este momento fez lembrar de uma música especial:

o “Canto de Xangô”:

Eu vim de bem longe

Eu vim, nem sei mais de onde é que eu vim

Sou filho de Rei

Muito lutei pra ser o que eu sou

Eu sou negro de cor

Mas tudo é só amor em mim

Tudo é só amor para mim

Xangô Agodô

Hoje é tempo de amor

Hoje é tempo de dor, em mim

Xangô Agodô

Salve, Xangô, meu Rei Senhor

Salve, meu orixá

Tem sete cores sua cor

Sete dias para a gente amar

Mas amar é sofrer

Mas amar é morrer de dor

Xangô meu Senhor, saravá!

Xangô meu Senhor!

Mas me faça sofrer

Mas me faça morrer de amor

Xangô meu Senhor, saravá!

Xangô Agodô!3

Quanto ao estado de desânimo em que me encontrava, quem me levantou foi LogunEdé,

que veio em meus sonhos e disse para confiar em meu colaborador, que as coisas dariam certo.

Fui ao jogo de búzios e perguntei o que poderia lhe ofertar em agradecimento e o jogo apontou

que eu ofertasse comida seca para toda a família: um Axoxô4 para Oxóssi, o pai; outro Axoxô

para LogunEdé, o filho e; um Omolocum5 para Oxum, a mãe. Preparei toda comida seca de

agrado, ornamentei com joias, toquei meu adjá6, cantei e dancei, e após 3 dias arriei no olho

d´água do Rio Yayá, em Santa Cruz de Cabrália, conforme determinado pelo jogo. Ao orixá

encantado, dedico o poema recitado por Caetano Veloso, “Logunedé”:

mim concedida por meus ancestrais e pela mão que me cobriu com Adoxô e banhou meu corpo com ervas e o

pintou com efum). 3 Vinicius de Moraes e Baden Powell 4 Axoxô: prato típico dos rituais ofertados aos orixás Oxóssi e LogunEdé, a base é milho vermelho cozido refogado

na cebola, azeite de dendê, camarão seco defumado e sal, decorando com lascas de côco. Ornamenta-se o prato

numa tigela de barro funda amarrada com panos coloridos. 5 Omolocum: prato típico ritual ofertado ao Orixá feminino Oxum, a base é feijão fradinho cozido refogado na

cebola, azeite, camarão seco defumado e sal, esse feijão é pilado, e esta pasta é servida numa vasilha normalmente

branca e redonda, adornada com 05 ovos cozidos e camarões secos inteiros. 6 Adjá: instrumento musical de metal, formado de uma, duas ou três sinetas, com badalos. Pode ser confeccionado

em alumínio, ferro, ou latão dourado. Sinaliza que quem o utiliza é pessoa com poder de autoridade e graduação

dentro da religião. Utilizado para invocar os orixás, que imediatamente responde ao seu som.

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Da profundeza da beleza do rio Oxum

Ibualama é quem chama o menino Logun

É de longe a flecha

Mecha dourada que infesta a floresta

Seta que aponta a certeza que resta

Nem duzentas e tantas contas dão conta

O pescoço de moço do caçador

Homem caroço do pomo maior

Príncipe caça o princípio que for

Dono da fome que mata o que come

Não some o teu nome de chefe senhor

Não dorme. Toma

Domina Ijexá

Camarão do abdômen de fogo. Orixá

Nativo na mão abebé de ipondá

Erinlé, Pai Odé, efusivo no Ofá

Altivo do peito bem feito

Se move do jeito do seu ancestral

Peixe do feixe vermelho

A mancha de sangue se deixa no sal

Bico de papagaio, pata de elefante

Elegante na frente do fronte

Não sente a patente de ser general7

Apesar da fé renovada, eu estava fisicamente e mentalmente cansada, queria que tudo

aquilo acabasse. Finalmente chegou o grande dia da qualificação, ao chegar na UFSB, me dei

a oportunidade de ficar a sós com Exu, onde pude cantar para ele, agradecer por ter chegado até

ali, pois acredito que foi o orixá que abriu meus caminhos para ingressar no PPGER, e era sobre

ele que falaria nos próximos vinte minutos de defesa do meu tema.

Fingi estar calma e tentei falar pausadamente dentro da ordem na qual me propus a

apresentar meu trabalho. Estava mais cansada do que com tesão pedagógico naquele momento.

Observei que começara a chover no momento de minha fala e agradeci aos céus, pois chuva é

sinal de bênçãos. Acabei ultrapassando alguns minutos do tempo permitido. Me sentei, ouvi e

anotei atentamente as falas dos professores que participaram da banca; o professor convidado

Marcelo Niel, a professora do programa, Joceneide Cunha e, por fim, as considerações de meu

colaborador, Alexandre Fernandes. Finalmente agradeci e chorei. Foi um choro de

agradecimento, mas também de alívio por todas a situações de tensão vivenciadas nos últimos

meses, um choro de colo onde coloquei para fora todo aquele cansaço acumulado e, só assim,

7 Texto de Eduardo Brechó. “Logunedé”. Disponível em: http://caetanoendetalle.blogspot.com/2017/02/2017-

logunede.html. Acesso em: 01/05/2020.

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finalmente pude respirar. Estava visivelmente abatida, queria ter tido muito mais sentimento de

alegria por aquele momento, mas o esgotamento não me permitia. Tentei não transparecer, mas,

mesmo assim, fui festejar com o grupo que lá estava, pois o momento era de festa.

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3. A PRÁTICA PEDAGÓGICA

Pude perceber um grande aprendizado dessas vivências que culminaram em minha

qualificação, ao sentir minha evolução no processo de escrita e pesquisa. Não tenho vergonha

de confessar aqui que fiquei com raiva de meu colaborador, mas vi que depois de passar por

todo processo, uma gratidão imensa cresceu dentro de mim ao ver o quanto evoluí, devido às

suas duras falas, exigência, e ao seu rigor científico.

Esses elementos me atravessaram e me transformaram e, de alguma maneira, consegui

servir de espelho e exemplo para meus estudantes na graduação em Turismo e na pós graduação

em Libras EAD, da UNEB. Ao término das produções, todos defenderam seus trabalhos e

tiveram muito êxito em suas apresentações, com isso percebi que repliquei nos meus estudantes

todo processo de aprendizado em pesquisa que aprendi com Alexandre. O conhecimento que

me atravessara, passou como uma flecha nos meus estudantes e todos nós obtivemos sucesso

em nossas pesquisas.

O Ofá8 de LogunEdé9 trouxe seu axé para todos nós. O sentimento de gratidão que

brotou em mim por Alexandre, também brotou nos meus estudantes por mim, e nesse ciclo,

outros estudantes começaram a me procurar para futuros estudos.

Uma vez feita a qualificação, dei início ao curso de extensão para professores. Diversas

considerações foram feitas pela banca na qualificação. As correções eram necessárias. Eu estava

ciente de que nem sempre tudo sai conforme o planejamento, que o elemento surpresa é um

fato, mas que a partir dali, faria de tudo para obter êxito e alcançar meus objetivos.

3.1. Trajetória Espiritual

Sou de uma criação em que nenhum de meus parentes eram praticantes de religião, pelo

menos que eu não saiba, nem pais, tios ou avós. Nenhum deles frequentava igreja ou templo.

8 Ofá: Instrumento de trabalho dos orixás que estão ligados à caça e as matas. Uso obrigatório nos rituais e nos

assentamentos de Oxóssi e o identifica como representante maior dos caçadores. Formado por arco e flecha, pode

ser confeccionado por madeira ou metal. Também atribuído a LogunEdé, caçador e pescador (MAURÍCIO, 2009,

p. 212). 9 Alexandre Fernandes, também conhecido como Alexandre Osaniiyi, meu colaborador nessa pesquisa, é iniciado

em LogunEdé.

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Até o dia em que presenciei minha tia receber uma entidade de erê10 , chamada, Sandrinha, que

veio conversar comigo e acariciou meus cabelos. Esse foi meu primeiro contato com a

Umbanda. Minha mãe me revelou que tinha uma tia benzedeira que recebia muitas pessoas em

casa para cuidar e que seu avô era curandeiro no sertão de Pernambuco. Aquilo não fazia muito

sentido para mim, pois eu era criança. Algo que foi marcante nesta época eram as constantes

dores de cabeça. Periodicamente era levada numa benzedeira que morava na rua da casa de

minha avó materna, após a reza a dor passava.

Aos 14 anos de idade minha mãe me levou pela primeira vez num centro de umbanda

e, paralelamente, comecei a ler toda a literatura de Allan Kardek para entender um pouco sobre

a espiritualidade que aflorava em mim. Muitos sonhos, avisos premonitórios, com situações

que viriam posteriormente a acontecer e, principalmente, sonhos com a morte de conhecidos,

que vinham me assombrar e eu não sabia lidar com aquela energia que se aproximara de mim.

Me foi dada a indicação de que precisava desenvolver minha mediunidade, mas minha mãe não

concordou, disse que eu era muito nova e nos afastamos do centro. Em contrapartida, ganhei

um baralho cigano, comecei a estudar as jogadas sozinha (sozinha não estava, mas sob a

influência de minha pomba gira Sete Saias que me acompanha) e até hoje jogo as cartas.

Os anos passaram e, mais tarde, como professora de Turismo da Faculdade Estácio de

Sá de Vitória, ganhando bem, namorando e feliz, encontrei com um amigo de adolescência que

me levou a ter contato com a Umbanda novamente, ao colocar o pé no terreiro a entidade me

pegou, era vovó Maria Conga, que disse para eu ficar ali. Resolvi desenvolver minha

mediunidade e fiquei por alguns anos e, nesse período, passei no mestrado.

Como relatei anteriormente, minha vida virou de ponta a cabeça: perdi emprego, perdi

o mestrado, perdi o namorado, perdi a saúde, perdi a dignidade. Eu tentava entender o que

estava acontecendo comigo e não conseguia, me questionava como que uma pessoa que é

trabalhadora, estudiosa, de boa índole, que está em dia com a vida espiritual, praticando a

caridade pode perder tudo? Foram dois anos prostrada numa cama, desempregada e doente.

Minha segunda ida para a Bahia não foi ao acaso. Acredito que foi um processo que me

conduziu a conhecer o Candomblé. O tempo todo o espiritual e o profissional se entrelaçavam

e eu não me dava conta disso. Trabalhando na UNEB, a amiga, Rosângela Nascimento, me

conduziu ao terreiro de Mãe Luziene de LogunEdé. Este local foi meu primeiro contato com o

10 Erê: é a divindade infantil que todos os Orixás possuem. É por intervenção do Erê que o Orixá se torna mais

próximo do iaô na sua iniciação, possibilitando que este iaô se torne receptivo e morada perfeita para seu Orixá

(MAURÍCIO, 2009, p. 328).

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Candomblé. Frequentei, fiz alguns trabalhos de limpeza e agrados, Yemanjá se manifestou pela

primeira vez. Estreitei laços e amizades, mas era hora de voltar a Vitória - ES.

O retorno para Vitória não foi nada fácil. Desde a demissão da Faculdade Estácio de Sá,

eu não conseguira retornar as aulas em ensino superior e tampouco retornar a um mestrado.

Nem empregada estava, os caminhos estavam fechados. Pelas mãos de uma amiga, fui levada

ao Ilê Axé Palácio de Oxalá, foi um jogo de misericórdia, pois tinha somente o dinheiro da

passagem. Foram seis meses como abiyán11 , morando dentro da roça, aprendendo os saberes

do Candomblé até a decisão por minha iniciação. Me iniciei pelas mãos de Pai Edson

D’Oxogyan, filho de Mãe Meninazinha D’Oxum Tade, no Ilê Axé Palácio de Oxalá, Rua das

Cegonhas, 499, Costa Bela, Jacaraípe – Serra/ES.

Após a iniciação, ainda no resguardo, consegui emprego para trabalhar numa escola do

Estado, no curso Técnico de Guia de Turismo Nacional. Ganhava pouco, pois a carga horaria

era pequena, mas me sentia feliz. Trabalhava toda vestida de branco, pano de cabeça e kelê12 no

pescoço. Foi a primeira Semana da Consciência Negra que organizei, a pedido do diretor da

escola. Montei exposições: uma de paramentas de orixás, com placas explicando sobre cada

paramenta e a que orixá pertencia; e outra exposição de cartazes impressos em grande tamanho,

com cada orixá e texto explicativo dizendo quem era, cor, comida, paramenta, dia da semana,

arquétipo de seus filhos, elementos da natureza e saudação. Foi um sucesso, recebemos a visita

de pais e mães-de santo e do secretário de educação.

Nessa época, sofri muito com o coordenador do curso que, bem diferente do diretor da

escola, era intolerante e me perseguiu por causa de minha religião e competência. Isso o

incomodava, daí eu não aguentei a perseguição e pedi para sair do curso. Orixá é tão

maravilhoso que, no ônibus de retorno ao barracão, ainda em lágrimas, recebi o telefonema da

Secretaria de Educação - SEDU, perguntando se eu tinha interesse em substituir um professor,

com uma carga horária cinco vezes maior que aquela que acabara de abrir mão. Não somente

estava empregada, mas meu salário quintuplicou.

Sob a nova condição, Xangô permitiu que, estando empregada, os trâmites de entrada

num apartamento do programa Minha Casa Minha Vida fossem feitos em tempo recorde, sem

11 Abiyán: em ioruba pode ser traduzido como “nascer para um novo caminho” (abi = aquele que nasce; iyán =

caminho novo). Traz a ideia de início, de nascimento, e ele representa realmente o começo, pois é um pré-iniciado,

o primeiro momento de um futuro yawô (MAURÍCIO, 2009, p.69). 12 Kelê: é um objeto sagrado para os praticantes do candomblé considerado a joia do orixá. É um "colar" usado

pelo iniciado na religião e em seu período de resguardo. Confeccionado com miçangas intercalado com firmas de

porcelana ou pedras.

Page 31: IGBÁBÒ: Uma práxis pedagógica exuriana

31

impedimentos burocráticos. Em menos de um mês estava com a aprovação do financiamento,

com a assinatura do contrato. Priorizei a morada perto do axé e aguardei a entrega das chaves,

sempre dormindo mais na “roça” do que em minha casa, que dista 28km.

A vivência no terreiro foi marcada por alegrias e dores, amizades e inimizades,

momentos de sublimação ao louvar os orixás e processos que me levaram a crescer enquanto

sujeito. No terreiro, assim como qualquer templo religioso, frequenta todo tipo de gente, não

podemos romantizar o Candomblé e achar que tudo é belo, não posso, não devo e não vou ter

a inocência de discutir sobre os saberes que aprendi dentro de terreiro e retratá-los de uma forma

que não demonstre que esse aprendizado não veio com uma carga de dores e frustrações que

fazem parte do crescimento.

Uma criança, ao aprender a andar, antes, leva muitas quedas, ela tudo quer ao seu

alcance e tudo pede, por isso ouve muitos nãos que levam à formação de seu caráter, a um

adulto com valores éticos e com preparo para enfrentar a vida, para saber lidar com a frustração

e com o medo. Assim eu me sentia no Candomblé, uma criança, uma yawô13 que acabara de

nascer, recomeçando e aprendendo valores novos. Ao adentrar no barracão há um ritual a se

cumprir: despachar água na porta, ir a cozinha, beber água para esfriar o corpo, ir para o banho,

após o asseio, bater paó14 agachado, esperar o irmão mais velho jogar o banho de abô15; virar

no orixá, desvirar no orixá, vestir a roupa de ração, bater cabeça na porta do barracão, bater

cabeça para os atabaques, bater cabeça para a cumeeira16, bater cabeça para o pai de santo, bater

cabeça para a mãe pequena, bater cabeça para a jibonan17, pedir benção aos mais velhos e mais

novos.

Na construção de saberes de um terreiro, a primeira coisa que aprendemos é a

importância da ancestralidade, o respeito aos mais velhos, àquele que veio antes você, não

importando sua idade biológica ou sua condição sócio financeira, o mais importante é a vivência

e experiência.

13 Yawô: iniciados/feitos no candomblé, que ainda não completaram o ciclo de 7 anos. 14 Paó: é o conjunto de palmas em cadência, feito nos momentos de saudação, nos agradecimentos, usado por

quase todas as nações (MAURÍCIO, 2009 p.169). 15 Abô: (agbô, em ioruba), é uma infusão preparada com ervas sagradas e outros elementos que são utilizados nos

rituais. É guardado nos porrões de barro e muito usado nas iniciações e nas limpezas (MAURÍCIO, 2009, p. 169). 16 Cumeeira: Parte mais alta de um telhado no terreiro de candomblé, é o local onde se planta o axé - a energia

vital que dá vida ao lugar. Ponto central de energia do barracão, precisa ser muito bem preparada para proporcionar

a defesa da comunidade (MAURÍCIO, 2009, p. 45). 17 Jibonan: (ji- dar/bí-nascer/onã-caminho) - “dá caminho ao nascimento”, é a mãe ou pai que cria e são

responsáveis pela reclusão do iyawô (MAURÍCIO, 2009, p. 66).

Page 32: IGBÁBÒ: Uma práxis pedagógica exuriana

32

Conhecimento e prática são indissociáveis dentro do candomblé, para se aprender dentro

de uma roça de santo, é fundamental estar presente. É nas práticas de convivência coletiva que

se aprende, coletivamente: rezar, cantar, dançar, macerar folhas, cozinhar a comida de quem

está recolhido, a comida sagrada, lavar roupa dos membros e a roupa dos orixás, fazer faxina

de todos os espaços internos e externos, cuidar das plantas e dos animais, preparar o ritual de

sacrifício dos animais, limpar galinha e cabrito.

Percebe-se pela orientação dos mais velhos que existe o tempo certo para se aprender as

coisas. Segue-se uma hierarquia de acordo com a idade de iniciação, na qual sua idade indica

seu grau de experiência e de responsabilidade. O que significa dizer que o tempo indica

conhecimento e por sua vez, indica poder. Essa hierarquização é respeitosamente seguida;

conforme o yawô passa pelos rituais de idade, pagando suas obrigações de 1 ano e depois de 3

anos, novas responsabilidades lhe são atribuídas, até que chega os 7 anos em que atinge a

maioridade.

Para elucidar sobre hierarquia e relação com o poder do axé, eu sempre escutei dos mais

velhos o seguinte: você não pode doar aquilo que você não tem. Portanto, como um yawô que

não tem obrigação de 7 anos tomadas pode doar axé a este mesmo ritual se ele não passou por

ele? Por isso, este yawô que não tem os 7 anos tomados não participa do ritual. Isso serve para

o yawô que não tem seus 3 anos tomados, este não participa do ritual, e assim sucessivamente.

Por isso existe o tempo certo de aprendizado e de atribuição de responsabilidades e aquisição

de conhecimentos de acordo com a idade de iniciação.

Outra característica marcante que tive dificuldade na construção dos meus saberes de

terreiro foi a oralidade. Como educadora, estou acostumada com a escrita, com os livros e a

internet, por isso tive que ressignificar meu olhar, pois era nas rodas de conversas coletivas que

os mais velhos relatavam, por meio da história oral, atos e feitos dos antepassados, na mitologia

dos orixás, todo o emaranhado de significados que agregam valores para a autoestima do povo

de terreiro.

Para além da oralidade, o silêncio também ensina, atrelado ao movimento dos corpos;

por vezes ao lançar uma pergunta, nem sempre obtive uma resposta. Era no ver fazer e a partir

da observação do movimento dos corpos coletivos das situações vividas; na dança, no canto, na

faxina, na cozinha, na ritualística, que eu adquiria conhecimento. Os anos foram passando, me

mudei para o meu apartamento, casei e tomei minhas obrigações de 1 ano e de 3 anos. Sempre

senti uma sensação de incompletude, de que minha vida estava estacionada.

Page 33: IGBÁBÒ: Uma práxis pedagógica exuriana

33

Já atuava há alguns anos na educação básica, tendo a percepção do que é ser educadora

neste país, já me formara pedagoga com diversas pós graduações latu sensu na área da

educação, mas sempre carreguei comigo um caráter transgressor e rebelde de poder fazer mais

pela educação. Já enxergava com ressalvas o atual currículo escolar onde a escola é um espaço

que legitima uma cultura incentivadora de práticas racistas, e isso me incomodava

profundamente.

Queria voltar a dar aulas na educação superior, voltar a fazer mestrado em educação.

Sempre que eu conversava com meu pai-de-santo sobre esse assunto, ele dizia que “isto não

está mais no meu caminho, que eu tinha que me conformar”. Não tenho como traço de minha

personalidade me conformar com situações que me incomodam. Ao mesmo tempo que

internamente me sentia insatisfeita profissionalmente, espiritualmente fui colecionando

dissabores que fizeram parte de meu aprendizado na construção de saberes. Rodas de fofocas e

intrigas, disputas por poder com os quais nunca me envolvi me segregaram dentro da roça de

santo. Isso durou anos, fui impedida muitas vezes de participar de preparação de comidas de

rituais, de ebós18, de orôs19 e, por fim, fui vítima de roubo e falas injustas de irmãos de santo,

isso gerou muitos conflitos.

Comecei a ter perseguições no trabalho por ser do candomblé, com falsa denúncia de

agressão a uma aluna, ato este planejado em conjunto entre a pedagoga e a mãe da aluna, ambas

evangélicas. Nada conseguiram provar, pois tive o apoio do diretor da escola e da professora

regente de sala, que sempre esteve ali presente e nunca fiquei em nenhum momento sozinha

com a aluna.

Tive depressão e me desliguei de um dos empregos, me endividei e meu casamento

acabou, o marido não deu apoio. Nesse período, um carro me fechou e quase caí de moto num

barranco. Às vésperas de fazer a seleção para o mestrado na UFES, tomei uma queda dentro de

um ônibus e, por fim, ainda machucada por conta da queda, fui atropelada numa faixa de

pedestres.

Resolvi, diplomaticamente, me desligar da roça, após o jogo de búzios de meu pai de

santo tudo confirmar sob as quatro paredes do quarto de Exu. Estava num momento de que toda

18 Ebós: (èbò) para o povo ioruba, significa presentear ou sacrificar. Rituais que permitem o fortalecimento do axé.

Podendo ser o próprio jogo de búzios, alimentos e sacrifício de animais, como forma de encontrar respostas, fazer

súplicas, oferendas, limpezas corporais e espirituais, agradecimentos, agrados ou comemorações (MAURÍCIO,

2009, p. 95). 19 Orôs: conjunto de cantigas sagradas, um ritual realizado sempre que são entregues oferendas aos Orixás

(MAURÍCIO, 2009, p.163).

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34

onda de má sorte que havia se abatido sobre mim por causa das injustiças de irmãos de santo;

irmãos estes que ele protegeu desmentindo o jogo que havia feito para mim.

Mesmo com a vida profissional e espiritual estacionada, sem dinheiro, sem marido, sem

pai de santo, eu tinha amparo em Exu, pois eu continuava a caminhar e nunca havia deixado de

acreditar que os Orixás estavam comigo, assim como nunca deixei de acreditar que tudo que

aprendi dentro do terreiro tinha me transformado numa pessoa melhor, pois aprendi o valor que

existe nos saberes da ancestralidade, oralidade, hierarquia, todas as práticas diárias feitas com

amor e, principalmente, com respeito aos orixás; tinha me tornado uma pessoa que trabalha a

empatia, que se coloca no lugar do “outro”. Depois desse tempo, vendi meu apartamento e

decidi voltar para a Bahia e tentar mestrado por lá, para poder transbordar tanto na área

profissional quanto na espiritual, pedindo que Exu e Yemanjá que me apontassem novos

horizontes.

Em 2016, retornando à Bahia e à UNEB, foi o período em que ingressei no Ilê Axé

Torrundê de Ajagun, que fica na Rua de Deus, nº 586, Paripe, Salvador, pelas mãos do

Babalorixá Dary Mota Giberewá D’Jagun. Tomei minha obrigação de 7 anos me tornando

yalorixá20, atendendo pela alcunha Odolessy. Os caminhos se abriram, eu tinha consciência de

que teria que passar por um processo de ressignificação de saberes, mas nada apaga todo

aprendizado adquirido no ilê em que Yemanjá nascera e hoje completo uma década de iniciada

no Candomblé. Para este momento dedico “A Força do Rumpi”:

O Rumpi que transpõe as cercas, Que rompe as mordaças do ignorar, Que o axé, Poder do orixá, Acumulada nos terreiros, Difundidas por alabês Na celebração/saudação. Só com a força do Rumpi, Os homenageados podem dançar. Ouvindo e sentindo o axé dos Rumpis, Batas, Tan-tans e Cotôs. Me envolve na profunda Magia do momento. E fui encontrar na África A benção e o louvor De meus inquices21

Na construção para projeto de seleção de mestrado, alguns colegas indagaram: “Por que

você, sendo uma educadora e pessoa de santo, não prepara um projeto de mestrado sobre suas

20 Yalorixá: figura central do candomblé, sacerdotisa, mãe que cuida do Orixá, chefe do axé. 21 Elque Santos, 2012.

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35

vivências? ”. De fato, todas as vezes em que tentei ingressar em mestrados, as temáticas eram

outras, entendi nesse tempo que, mais uma vez, os caminhos, espiritual e profissional, se

entrelaçavam. Então pensei que era a oportunidade de questionar o currículo escolar no qual eu

mesma tinha sido vítima de perseguições por ser do Candomblé. Essa era a oportunidade de

discutir as práticas encrustadas e cimentadas de racismo religioso estrutural que não permitem

que a Lei 10.639/2003 não seja efetivamente colocada em prática. Estava cansada de tentar

praticá-la e sofrer retaliações por pais de estudantes e professores racistas e intolerantes.

Finalmente, quando resolvi discutir sobre o que vivenciava, alinhando minha vida

espiritual com a profissional, os caminhos se abriram e ingressei no PPGER e, muito mais que

isso, com um colaborador/pesquisador de Exu e da educação decolonial. É como se ocorresse

o encaixe das peças do grande quebra-cabeças que é minha vida.

3.2. As Categorias de Análise da Práxis Pedagógica Exuriana

Antes de relatar o trajeto de minha prática pedagógica é preciso explicar por que foi

preciso ministrar um curso de formação de professores e produzir um filme que questione o

sistema educacional brasileiro, sendo este hegemônico, eurocentrado, colonizador, judaico-

cristão, fundamentado sob o racismo estrutural. Portanto, é preciso “enegrecer” a discussão

sobre educação, as relações de poder e decolonização dos saberes.

Aníbal Quijano (2000, p.121), em “Colonidad del poder, eurocentrismo y América

Latina”, argumenta que a Europa, ao impor seu domínio colonial sobre todas as regiões do

planeta, provocou “um processo de re-identificação histórica”, a colonialidade de novas

identidades. Um padrão de poder e controle de todas as experiências, histórias, subjetividade,

cultura, “articulados numa só ordem cultural global em torno da hegemonia europeia ou

ocidental” em que os colonizados aprendem a cultura e a religião dos seus dominadores, no

caso a religiosidade judaico-cristã.

Enfim, o êxito da Europa Ocidental em transformar-se no centro do moderno sistema-

mundo, segundo a apta formulação de Wallerstein, desenvolveu nos europeus um

traço comum a todos os dominadores coloniais e imperiais da história, o

etnocentrismo. Mas no caso europeu esse traço tinha um fundamento e uma

justificação peculiar: a classificação racial da população do mundo depois da

América. A associação entre ambos os fenômenos, o etnocentrismo colonial e a

classificação racial universal, ajudam a explicar por que os europeus foram levados a

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36

sentir-se não só superiores a todos os demais povos do mundo, mas, além disso,

naturalmente superiores (QUIJANO, 2000, p.121)

Essa violência, na tentativa de apagamento da subjetividade do Outro, legitima a cultura

Ocidental, acaba por dizimar toda e qualquer identidade que não seja europeia, branca, judaico-

cristã. Franz Fanon (2008), em “Pele negra, máscaras brancas”, discute esse processo afirmando

que:

Todo povo colonizado — isto é, todo povo no seio do qual nasceu um complexo de

inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural — toma posição

diante da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana. Quanto

mais assimilar os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da sua

selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será (FANON,

2000, p. 34).

Contra todo pensamento hegemônico, trago Paulo Freire (1987, p. 27) que, em sua obra

“Pedagogia do Oprimido”, discorre sobre como se sente o oprimido e diz que isso se dará na

convivência, afirma ainda que é na forma de ser e de se comportar que se refletem as estruturas

de dominação. Dentro da consciência oprimida é que se encontra o sofrimento, produto da

exploração do opressor:

De tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, que não sabem de nada, que não

podem saber, que são enfermos, indolentes, que não produzem em virtude de tudo

isto, terminam por se convencer de sua “incapacidade” [...] os oprimidos dificilmente

lutam, nem sequer confiam em si mesmos. Têm uma crença difusa, mágica, na

invulnerabilidade do opressor (FREIRE, 1987, p.27-28).

Para que haja uma ruptura desse padrão colonizador imposto de uma cultura

hegemônica é preciso fazer o que Luciana Ballestrin (2013, p.89) chama de “giro decolonial”.

A autora defende “a opção decolonial – epistêmica, teórica e política – para compreender e

atuar no mundo marcado pela permanência da colonialidade global nos diferentes níveis da vida

pessoal e coletiva”. E aqui se destaca a colonialidade do saber.

“Giro decolonial” é um termo cunhado originalmente por Nelson Maldonado-Torres

em 2005 e que basicamente significa o movimento de resistência teórico e prático,

político e epistemológico, à lógica da modernidade/colonialidade. A decolonialidade

aparece, portanto, como o terceiro elemento da modernidade/colonialidade

(BALLESTRIN, 2013, p. 105).

Enquanto a Ballestrin (2013, p.108) utiliza como estratégias para a decolonização

epistemológica os termos: “desprendimento, abertura, de-linking, desobediência, vigilância e

suspeição epistêmicas”; procuro utilizar como categorias de estudo para esta pesquisa, a

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37

“decolonização dos saberes, a pedagogia de terreiro e a pedagogia de terreiro exuriana”, em que

procuro trazer a tona, ações de “resistência, ruptura, transgressão e fazer coletivo”.

Walter D. Mignolo (2008), em seu artigo intitulado “Desobediência Epistêmica: a opção

descolonial e o significado de identidade em política”, defende que toda descolonização deve

suscitar uma desobediência política e epistêmica. Sem iniciar esse movimento, não será possível

um efeito em cadeia, portanto, permaneceremos estáticos diante do poder hegemônico de um

currículo escolar eurocentrado, sedimentado em bases racistas. É preciso resistência e

decolonizar a educação e a política:

Todas as outras formas de pensar (ou seja, que interferem com a organização do

conhecimento e da compreensão) e de agir politicamente, ou seja, formas que não são

descoloniais, significam permanecer na razão imperial; ou seja, dentro da política

imperial de identidades. A opção descolonial é epistêmica, ou seja, ela se desvincula

dos fundamentos genuínos dos conceitos ocidentais e da acumulação de conhecimento

(MIGNOLO, 2008, p. 290).

Sandra Haydée Petit (2015), em sua obra “Pretagogia”, traz como eixos principais o

corpo-dança afroancestral como elo para a busca do pertencimento ancestral africano e a

tradição oral através da literatura. Tal vertente se alinha à proposta do curso de Pedagogia de

Terreiro ministrado e objeto de estudo deste mestrado, uma vez que também se trata de um

referencial teórico metodológico direcionado para um trabalho de formação docente.

Numa análise da obra de Petit (2015), observa-se que apesar de apresentar eixos

temáticos diferentes daqueles trabalhados no curso de Pedagogia de Terreiro (apresentados

neste memorial), os saberes trabalhados pela autora na formação de seus docentes são os

mesmos, pois são saberes ancestrais afro referenciados, como ela demonstra a seguir:

Esse respeito à ancestralidade reforça a senhoridade (respeito às mais velhas e aos

mais velhos) e promove um forte senso de comunidade. Por isso, as reverências se

fazem no Corpo-Dança Afroancestral nas diversas manifestações afro-brasileiras

ativando a memória coletiva [...] não importa a diversidade de linguagens, festas e

formas de danças brincantes negra, todas promovem relação de pertencimento

comunitário em torno do ato de reverenciar os antepassados (PETIT, 2015, p. 97).

Na ideia de fazer um curso filmado de formação de professores, em que dois objetivos-

fim fossem atingidos, foram eles: fazer com que esses docentes replicassem saberes de terreiro

dentro de espaços escolares e transformar o vídeo da formação em material didático para futuras

formações, abraço a obra de Paulo Freire (1996), Pedagogia da Autonomia.

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38

O autor defende que “ensinar exige reflexão crítica sobre a prática”, esse foi o pontapé

inicial na primeira aula do curso, quando propus aos estudantes um pré-relato de experiência

em relação às suas vivências em sala de aula com a Lei 10.639/2003. Freire (1996) nos diz que

“ensinar exige reconhecimento e a assunção da identidade cultural”, fiz com que os docentes

do curso reconhecessem que o aluno negro deve ser o protagonista do espaço escolar e trazer à

tona a identidade ancestral; “Ensinar exige consciência de inacabamento”, é ter a consciência

de que apresentei uma proposta epistemológica em aberto, inacabada, um caminho que outros

possam seguir e abrir outras trincheiras, podendo enxergar outras possibilidades de diálogo.

E, por fim, “ensinar exige a convicção de que a mudança é possível”, por isso, acredito

na intervenção na realidade escolar, na transformação por meio da multiplicação de saberes de

terreiros e na decolonização do currículo escolar (Freire, 1996). Aponto caminhos para que Exu

interceda por todos aqueles que estão em pesquisa para que possam promover ações neste

sentido e tenham êxito.

A (s) Pedagogia (s) de Terreiro (s) são práticas sociais educativas, que fundamentam

valores e princípios dos conhecimentos aprendidos e ensinados dentro desses espaços, possuem

uma dinâmica interna própria, singular, diferenciando-se da pedagogia que é praticada em

espaços escolares.

Trago os saberes aprendidos e ensinados dentro dos Terreiros, por acreditar que

conhecimento se dá em diversos espaços formais e não formais, como é o caso, mas também

afirmo que estes saberes não devem ficar exclusivamente nestes espaços, estáticos, fechados,

limitados aos muros da roça, inertes, estanques. Eles devem transpor os limites geográficos e

territoriais desses espaços, atravessar as ruas e encruzilhadas e entrar nas escolas pela porta da

frente levados pelo Orixá Exu, que é quem dá o caminho, sendo este também o agente do

“caos”. Pois é no caos, o agente da mudança, onde teremos o processo de produção de

subjetividades já que a escola é um espaço, uma arena de luta e de disputa de conflitos

simbólicos.

Alexandre de Oliveira Fernandes e Emanoel Luís Roque Soares publicaram juntos o

capítulo “Asè: Enegrecendo as Filosofia nas Encruzilhadas de Exu”, dentro da coletânea

“Estudos Culturais: Diálogos entre Cultura e Educação”, um trabalho que nos traz o melhor

conceito de “Asè”, discussões sobre “pensamento preto” para marcar o processo de

empoderamento fazendo erigir a “filosofia negra”. Os autores argumentam que o tempo atual

exige uma nova epistemologia, uma pedagogia de terreiros, uma ecologia dos saberes exuriana

aberta, de movimentos circulares, que fecundam, retroalimentam, em todos os ambientes,

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39

movimentos devires na formação de um sujeito cuja a identidade híbrida e transitória em

constante transformação seja a via de acesso ao empoderamento. Por isso devemos pensar o

terreiro para além da fixidez (2018, p.433).

Quão belo seria se a energia vital do Axé extrapolasse os muros do Terreiro, e pudesse

ser produzida e movimentada nos espaços escolares. Teríamos sujeitos culturalmente mais

empoderados imbuídos de atitude para lutar com potência/poder de realização e acontecimento,

por uma sociedade mais justa, que respeite as diferenças. Infelizmente pouco aproveitada, a

energia do Axé vai a segundo plano quando esse sujeito atravessa o portão para fora da roça,

atravessa as encruzas e se depara com a porta da escola.

A escola pratica o racismo institucional quando toma uma postura reducionista em

relação aos seus alunos negros quando barra/rejeita valores, costumes que esses alunos trazem

em sua bagagem cultural, subjetividades estas aprendidas com seus mais velhos, sendo adeptos

de religiões afro-brasileiras ou não, práticas que ficam barradas “para fora do portão”.

O racismo institucionalizado, a pedagogia comercial e hegemônica tem essa capacidade

de não respeitar as identidades e as diferenças, a prova disso é a não efetivação satisfatória da

Lei 10.639/2003. Racismo, fanatismo, intolerância religiosa, somados transformam-se em

Racismo Religioso praticado nas escolas de todo país contra os alunos negros, num regime de

verdade, que os desqualifica, os humilha, os exclui, num padrão de normatização e

performatividade que absurdamente considera “normal” destratar um menino negro de

periferia. Ora, não deveria a escola acolher esse aluno negro?

Trata-se de trabalhar com as diferenças, dinâmica e movimento, próprios da rica

pluricultura afro-referenciada desses adeptos, valorização e sentimento de pertença de suas

identidades. Escola e Terreiro precisam dialogar, as Pedagogia (s) de Terreiro (s) Exuriana (s)

precisam adentrar os portões da escola, pedagogia (s) múltiplas, mostrar o que elas têm a ensinar

ao povo brasileiro, Exu precisa entrar.

Defendo que Exu seja o patrono da Educação, e que tem uma forma peculiar de ensinar

através da inversão, uma educação às avessas num movimento espiralado, provocativo,

transgressor.

Por que uma educação às avessas baseada no Movimento Espiralado de Exu? Para

explicar uma educação que anda no sentido invertido e ancorado por este orixá, é necessário

frisar que é primeiramente no caos que o orixá brincalhão e provocativo gosta de atuar para

fazer com que a ordem natural das coisas faça com que a harmonia se reestabeleça e todo o

entorno se ressignifique.

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Proponho o desafio do movimento inverso: que os saberes ancestrais aprendidos-

ensinados dentro dos Terreiros possam atravessar as encruzilhadas e, levados por Exu, possam

entrar nos espaços escolares, provocando uma transformação epistêmica curricular, decolonial

dos saberes. Este desafio de inversão se dá por conta da atual estrutura curricular que não tem

condições de enfrentar o problema do racismo estrutural, mesmo com a existência da Lei

10.639/2003.

Alexandre Fernandes (2018, p. 6), em seu artigo “Espirais da linguagem de Exu: por

uma filosofia òkòtó”, discute sobre narrativas divergentes acerca da filosofia da linguagem e

apresenta a filosofia exuriana como a mais distante possível da literatura dos colonizadores.

Neste texto o autor diz que “conversar é dar voltas no pensamento”, que não é fixo, inerte, pois

envolve movimento, que “é espiralado, a rodopiar e disseminar sentidos”. O autor ainda

questiona: “Pode uma filosofia exuriana na Academia? Tem lugar na Academia uma filosofia

Afrodiaspórica ou o espaço está constantemente tomado pelo pela servidão euro-estadunense?”.

Um pensamento que traz o movimento espiralado, como o rodopiar de Exu, sem início

nem fim, é antes de mais nada um pensamento negro, transgressor e decolonial que rompe com

as regras de “todo o sentido ocidental e religioso colocado sobre as energias negras

(FERNANDES, 2018, p. 8). O autor descreve a filosofia òkòtó e o pensamento decolonial:

Deus nagô, conhecido como Odara, o bondoso, tem como um de seus signos, o Òkòtó,

um pião que apoiado na ponta do cone rola em espiral até se converter numa

circunferência aberta para o infinito [...] Em uma palavra – que nunca é apenas única

senão rastros e borraduras (im) possíveis – Exu é “palavra” que comunica e posterga

a morte, porque permite à narrativa o relato do relato, articulando a vida. Símbolo de

um processo de crescimento, Exu conduz o pensamento à vertigem, marcando no

discurso da metafísica os limites de sua conceituação (FERNANDES,2018, p. 9).

Assim como Fernandes (2018) convoca a Exu no auxílio e acolhimento infinito de um

pensamento “sem margens”, um “pensamento-risco”; também convoco a Exu a compartilhar

seu movimento e pensamento espiralado “de resistência”, de “coletividade”, de “diálogo”. No

sentido de propor possíveis rupturas na construção e discussão de saberes que rompam com as

relações de poder já postas.

3.3. Exu leva aos homens o oráculo de Ifá

Em épocas remotas os deuses passaram fome.

Às vezes, por longos períodos,

Eles não recebiam bastante comida

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De seus filhos que viviam na Terra.

Os deuses cada vez mais se indispunham uns com os outros

E lutavam entre si guerras assombrosas.

Os descendentes dos deuses não pensavam mais neles

E os deuses se perguntavam o que poderiam fazer.

Como ser novamente alimentados pelos homens?

Os homens não faziam mais oferendas e os deuses tinham fome.

Sem a proteção dos deuses, a desgraça tinha se abatido sobre a Terra

E os homens viviam doentes, pobres, infelizes.

Um dia Exu pegou a estrada e foi em busca de solução.

Exu foi até Iemanjá em busca de algo

Que pudesse recuperar a boa vontade dos homens.

Iemanjá disse:

“Nada conseguirás.

Xapanã já tentou afligir os homens com doenças, mas eles vieram lhe oferecer sacrifícios”.

“Exu matará todos os homens,

Mas eles não lhe darão o que comer.

Xangô já lançou muitos raios e já matou muitos homens,

Mas eles nem se preocupam com ele.

Então é melhor que procures solução em outra direção.

O homem não tem medo de morrer.

Em vez de ameaçá-los com a morte,

Mostra a eles alguma coisa que seja tão boa

Que eles sintam vontade de tê-la.

E que, para tanto, desejem continuar vivos”.

Exu retomou o seu caminho e foi procurar Orungã.

Orungã lhe disse:

“Eu sei por que vieste.

Os dezesseis deuses têm fome.

É preciso dar aos homens

Alguma coisa que eles gostem,

Alguma coisa que os satisfaça.

Eu conheço algo que pode fazer isso.

É uma grande coisa que é feita de dezesseis caroços de dendê.

Arranja os cocos da palmeira e entenda seu significado.

Assim poderás reconquistar os homens”.

Exu foi ao local onde havia palmeiras

E conseguiu ganhar dos macacos dezesseis cocos.

Exu pensou e pensou, mas não atinava

No que fazer com eles.

Os macacos então lhe disseram:

“Exu, não sabes o que fazer

Com os dezesseis cocos de palmeira?

Vai andando pelo mundo

E em cada lugar pergunta

O que significam esses cocos de palmeira.

Deves ir a dezesseis lugares para saber o que significam

Esses cocos de palmeira.

Em cada um desses lugares recolherás dezesseis odus.

Recolherás dezesseis histórias, dezesseis oráculos.

Cada história tem a sua sabedoria,

Conselhos que podem ajudar aos homens.

Vai juntando os odus

E ao final de um ano terás aprendido o suficiente.

Aprenderás dezesseis vezes dezesseis odus.

Então volta para onde vivem os deuses.

Ensina aos homens o que terás aprendido

E os homens irão cuidar de Exu de novo”.

Exu fez o que lhe foi dito e retornou ao Orum, o Céu dos orixás.

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Exu mostrou aos deuses os odus que havia aprendido

E os deuses disseram:

“Isso é muito bom”.

Os deuses, então, ensinaram o novo saber

Aos seus descendentes, os homens.

Os homens então puderam saber todos os dias

Os desígnios dos deuses e os acontecimentos do porvir.

Quando jogavam os dezesseis cocos de dendê

E interpretavam o odu que eles indicavam,

Sabiam da grande quantidade de mal

Que havia no futuro.

Eles aprenderam a fazer sacrifícios aos orixás

Para afastar os males que os ameaçavam.

Eles recomeçaram a sacrificar animais

E a cozinhar suas carnes para os deuses.

Os orixás estavam satisfeitos e felizes.

Foi assim que Exu trouxe aos homens o Ifá.

(PRANDI, 2001, p. 78-80).

3.4. Interpretação do Itan

Partiu de Exu a iniciativa de encontrar a solução para o problema da fome e da guerra

entre os deuses, demostrando o caráter proativo de não se conformar e tampouco manter uma

postura inerte diante de situações difíceis, pelo contrário, aflora um comportamento inquieto e

transgressor para combater aos perigos.

Exu parte para o diálogo quando procura Yemanjá em busca de respostas e percebe que

não é punindo aos homens que irá conseguir atingir seu objetivo e, sim, fazer com que estes

voltem a agradar e alimentar aos deuses. A punição mais severa que seria a morte não os assusta

mais. O caminho para Exu alcançar o que queria seria inverso, por meio de estímulos, para

incentivar os homens através de algo que eles gostassem.

Exu é teimoso, sábio e bom ouvinte, procurou outros caminhos, se manteve aberto ao

diálogo através da oralidade e, em face disso, adquiriu as informações por meio de Orungã e os

macacos, de tudo que precisava saber sobre os segredos dos dezesseis cocos da palmeira do

dendê, que se transformariam em 256 histórias/oráculos de sabedoria que ajudariam aos deuses

e aos homens.

Sendo o próprio movimento e dono dos caminhos, Exu descortinou o segredo dos 256

odus, adquiriu novos saberes e os passou adiante para que pudessem ser multiplicados entre

homens e deuses, estabelecendo, assim, a harmonia no processo de adoração entre o Orun

(terra) e o Aiyê (Céu), por meio dos oráculos e oferendas a serem ofertadas para afastar todo

mal, toda fome e toda guerra.

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Ao adquirir o conhecimento dos 256 odus, Exu torna-se grande detentor do saber. Ao

transmitir esse saber a outros, pode-se dizer que é patrono da Educação. Sendo Ele o

responsável pela efetiva comunicação entre os homens e os deuses, ninguém melhor que este

orixá para fazer com que o conhecimento circule, se movimente, se propague e se multiplique,

por intermédio de seus pares, sendo replicado pela oralidade e envolvimento coletivo.

Replicar conhecimento: Assim defendo que Pedagogia de Terreiro Exuriana possa ser

multiplicada pelos estudantes participantes do curso e por aqueles a quem eles replicarem os

saberes. Que, por meio da oralidade e da construção do fazer coletivo, a exemplo de Exu, deuses

e homens, que os educadores também possam modificar a realidade escolar decolonizando os

saberes, dando espaço para as diferenças e para o respeito.

3.5. O Curso Produzido

Como artefato educacional propus um curso de extensão para a formação de professores

na UNEB. Meu objetivo era o de problematizar a Pedagogia de Terreiro como uma metodologia

possível de ensino e, por meio dela, decolonizar os saberes escolares, discutir o atual currículo

escolar. As discussões e relatos dos estudantes participantes deste curso foram filmados e o

material transformado em documentário para que, esse material didático possa servir para

apresentações em escolas e universidades, com vistas ao combate ao racismo religioso.

A ideia era que os professores participantes do curso se tornassem multiplicadores desta

metodologia de ensino e replicassem a valorização desses saberes dentro dos espaços escolares,

decolonizando e enegrecendo o currículo, atravessado pelo axé. A metodologia é pautada pela

tríade:

- Ancestralidade/memoria/pertencimento;

- Oralidade/história oral/mitos;

- Coletividade/resistência/decolonização dos saberes.

A proposta era fugir dos muros da Universidade, para isso fiz parceria com o Centro

Cultural Viola de Bolso, utilizando este espaço para as aulas e discussões. Tive grande apoio

neste espaço, um grupo engajado com a temática me deu o suporte que eu precisei. Alguns

imprevistos de ordem audiovisual ocorreram, mas rapidamente foram sanados por uma equipe

que me auxiliou no exercício deste trabalho.

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Fora este espaço, a ideia era fazer uma oficina de culinária no laboratório de alimentos

e bebidas da UNEB e visitas a barracões de candomblé da localidade de Eunápolis, onde estava

sendo ministrado o curso. A parceria com a UNEB se deu por meio do Núcleo de Pesquisa e

Extensão – NUPE, através de discussões quanto à elaboração do cartaz de divulgação do curso,

bem como a emissão dos certificados.

Infelizmente, não obtive o apoio que gostaria do Núcleo de Estudos Afro Brasileiros -

NEABI/UNEB, o qual solicitei que fizesse a ponte de contato com as secretarias de educação,

estadual e municipal, para a divulgação do curso. Era interessante o envio de um e-mail

institucional para as escolas, demonstrando uma parceria entre SEDU e UNEB para divulgação

do curso junto aos professores. Os representantes do NEABI se esquivaram na participação e

envolvimento com o curso, limitando-se a passar o telefone da secretária de educação que,

obviamente, não me retornou. Senti o peso da intolerância religiosa a partir daquele momento,

pois não queriam envolvimento nas discussões que tinham a ver com as questões de terreiro.

Apesar de rodar as escolas com os cartazes de divulgação, o fato de diretores e

professores não terem recebido um e-mail de parceria institucional pesou: apenas 10 estudantes

foram efetivamente inscritos, desses estudantes apenas 05 concluíram o curso. Ficou evidente

o quanto o município de Eunápolis é marcado por uma cultura racista e intolerante. Alguns

estudantes no primeiro dia de encontro desistiram ao ouvir a proposta do curso o que comprova

que o preconceito enraizado falou mais alto.

Outro ponto negativo foi a falta de apoio no uso do laboratório de alimentos e bebidas.

Em outro momento, produzi um evento na Universidade e precisei usá-lo, mas observei um

vazamento de gás. Com bastante antecedência da data agendada da Oficina de Culinária, avisei,

pelo e-mail institucional, sobre o problema e não obtive um retorno positivo, ficando, assim,

impedida de usar as instalações. Remarquei a aula, desta vez no Viola de Bolso, sob forma de

degustação, juntamente com palestra ao invés da oficina de culinária, mas não dei sorte. Desta

vez o palestrante teve problemas com uma pessoa doente na família e tive que cancelar a aula.

A oficina de vestimenta se realizou no espaço Viola de Bolso com os colaboradores,

Danilo D’Oxóssi e André D’LogunEdé, ambos historiadores. Estes também seriam os

responsáveis pela oficina sobre a importância das Folhas no Candomblé, com uma visita ao

terreiro de Pai Danilo, que é um grande conhecedor de folhas. A proposta surgiu mediante as

sugestões da banca no momento de minha qualificação, em substituição à discussão do filme

“Jardim das Folhas Sagradas”, no qual os professores apresentaram críticas construtivas a

respeito do uso ou não do filme em questão. Infelizmente, imprevistos acontecem e, na data

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prevista para a visita ao barracão, a maioria dos estudantes e o cinegrafista não podiam

comparecer e o encontro teve que ser desmarcado.

A Oficina de Dança dos Orixás foi planejada para acontecer no Espaço Viola de Bolso.

Para minha alegria, o Ilê Asé Silé Iná Tuntun Omo Torrundê, um dos terreiros a serem visitados

pelos estudantes do curso, também iria promover a mesma atividade com a própria

colaboradora, Lúcia Helena, conhecida como Ojuomim, ou Nena D’Oxum. Conversei com o

Doté Balegunan, babalorixá do terreiro, e, em comum acordo, transferimos a oficina para seu

espaço. Aproveitei a visita ao seu terreiro juntamente com as aulas de dança, divididos em dois

dias.

Outra visita muito proveitosa foi ao Terreiro de Mãe Luziene D’LogunEdé, que nos

recebeu com muito carinho, nos deu seu relato de vida e uma aula sobre saberes, a estrutura

física de terreiro, folhas e sobre resistência. É válido ressaltar que seu terreiro foi o primeiro a

chegar na cidade. A proposta com mãe Luziene era de duas visitas, sendo que a segunda seria

no evento de caruru e candomblé que acontece anualmente e é muito conhecido na cidade.

Infelizmente, com a notícia trágica de falecimento de um familiar, a yalorixá entrou de luto dias

antes da festa acontecer e tivemos que desmarcar a ida ao barracão.

Uma vez apresentados todos os fatos que saíram do controle devido aos imprevistos,

vou objetivamente apresentar o plano de aula, as atividades desenvolvidas, as discussões feitas

com os estudantes do curso e o amparo teórico dessas discussões.

3.6. Sobre o Plano de Curso

Na 1ª aula, que aconteceu no dia 01/08/2019, fiz a apresentação do curso e plano de

trabalho para todos os participantes e expliquei sobre a autorização do uso de imagem devido

às filmagens. Dadas as devidas explicações de como seria a metodologia do curso e o objetivo

do mesmo, apresentei a Lei 10.639/2003 e perguntei aos estudantes qual a experiência deles na

aplicação da história afro-brasileira e africana no espaço escolar. Esse, então, foi o ponto de

partida para que relatassem suas experiências.

Na 2ª aula, no dia 08/08/2019, trabalhei a temática Pedagogia de Terreiro, por meio da

leitura, discussão e síntese dos seguintes textos: Stela Caputo, “Educação nos Terreiros” (2012);

Amurabi Oliveira e Kleverton Almirante, “Aprendendo com o Axé: processos educativos no

terreiro e o que as crianças pensam sobre ele e a escola” (2014); Jorge Maurício, “Candomblé

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Bem Explicado” (2009). Nesse encontro, relatei minha experiência de iniciação, minha

construção dos saberes e como a Pedagogia de Candomblé tem como base estrutural a tríade já

relatada:

Uma vez feita a roda de conversa sobre hierarquia, sobre o aprender pela oralidade, pela

coletividade e pelos mitos e sobre o movimento de resistência que os adeptos do candomblé

enfrentam em espaços escolares, os estudantes se posicionaram:

Sabemos que a religião do candomblé, sempre foi à religião dos pretos, das minorias

e de todos aqueles que desejam fazer parte de suas manifestações. Os terreiros de

candomblé são acolhedores e estão sempre de portas abertas, no entanto, sabemos que

o candomblé não é aceito em todos os espaços sociais. É possível observar como nos

espaços escolares, que se fundamentam como espaços educativos, são palcos de

insultos diários contra os praticantes [...] os atos de preconceito ocorridos nas escolas

podem atingir esses religiosos, principalmente quando os insultos são contra as

crianças pertencentes à religião [...]. O curso ‘‘Pedagogia da Ancestralidade e

Terreiro’’, é uma formação que pode contribuir para o processo de aprendizagem do

professor e consequentemente do aluno. De modo igual, a formação pode preparar-

nos para o acolhimento de jovens e crianças, praticantes do candomblé, que sofrem

algum tipo de ataque (JÉSSICA SOARES, participante do curso, 2019).

Claudia Maria de Jesus Castro (2017), em sua dissertação de mestrado “Jovens e

tambores: preconceitos da religião afro-brasileira, pela Pontifícia Universidade Católica de

Goiás - PUC, discute sobre essa relação de jovens de terreiro no espaço escolar. A autora

argumenta que a escola, dita “laica”, é um espaço de disputas que abriga uma pluralidade de

culturas e credos religiosos, mas, ao falar em religião, ocorrem tensões e embates que geram

conflitos e desigualdades.

Castro (2017, p.66) questiona que, no interior do ambiente escolar existem diversos

agentes que pleiteiam apropriar-se da construção dos saberes, a exemplo dos neopentecostais.

E, quando os jovens de terreiro trazem consigo suas vivências e concepções de mundo, chocam

com a cultura legitimada pela escola que demonstra pouco ou nenhum interesse pelos saberes

desses jovens.

Ancestralidade

Memoria

Pertencimento

Oralidade

História oral

Mitos

Coletividade

Resistência

Decolonização dos

saberes

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O sistema educacional brasileiro é historicamente criado e voltado para o ensino nos

moldes tradicionais hegemônicos que nos foram impostos séculos a fio [...]. A

necessidade de se reconhecer e incluir a pedagogia de terreiro nos espaços escolares

convencionais tem se tornado uma tarefa árdua e difícil, mas que precisa ser executada

para romper com as barreiras do preconceito e da discriminação não só religiosa, mas

também racial que perseguem as comunidades e terreiros de candomblé há décadas

causando traumas, medos e diversos conflitos (FLÁVIO PRATES, participante do

curso, 2019).

A relação de conflito entre aluno e professor se apresenta a partir do momento em que

os saberes de terreiro adentram o espaço escolar com suas ritualísticas próprias e transforma-se

num embate enfrentando o muro do preconceito sedimentado sob bases racistas, principalmente

de intolerância ao Candomblé.

Os terreiros de candomblé figuram como espaços ou redes educativas, através das

quais as crianças aprendem de forma natural no seu cotidiano. A aprendizagem ocorre

com a observação dos movimentos, brincadeiras, rituais, linguagens, enfim de todas

as manifestações presentes no ambiente. [...] O respeito, a ancestralidade e a

hierarquia pautada na transmissão/ aquisição de saberes, estabelecem fortes laços de

convivência e respeito entre os adeptos do candomblé. É fundamental perceber que os

espaços ou redes de aprendizagem presentes nos terreiros promovem uma construção

da identidade cultural das crianças (KÉZIA MERLO, participante do curso, 2019).

A escola sinaliza dificuldades em lidar com as diferenças quando tenta silenciar os

saberes ancestrais desses jovens e estes, ao sentirem na pele a força do preconceito, camuflam-

se, porque, invisibilizados, não sofrem com os atos de violência simbólica. Esses jovens tentam

sufocar seus saberes identitários, sua história, sua memória e autoestima para se sentirem

aceitos socialmente nesse ambiente.

O ambiente escolar formal não está preparado para lidar com as múltiplas identidades

que circulam nos seus corredores, é um local gerador de desigualdade e discriminação, sua

organização curricular não está de acordo com a realidade dos seus estudantes, por isso torna-

se necessário conhecer e reconhecer tais sujeitos que trazem para o ambiente escolar suas

identidades, culturas, classes sociais, etnias e tantas outras questões que muitas das vezes

passam despercebidas.

Na 3ª aula, que aconteceu no dia 15/08/2019, foi ministrada a Oficina Mitologia e Itan:

a importância dos mitos para os adeptos das religiões afro-brasileiras. Quais aprendizados e

saberes os mitos nos trazem? O livro trabalhado neste encontro foi o de Reginaldo Prandi,

“Mitologia dos Orixás” (2001). Já os autores, Daniela Barreto de Souza e Adílio Júnior de

Souza (2018, p. 110), em “Itan: entre o mito e a lenda”, conceituam mito como sendo “uma

narração que protagoniza personagens sobrenaturais e heroicos, que procuram explicar a

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origem do mundo, os fenômenos naturais ou determinados aspectos religiosos vinculados a uma

comunidade ou civilização”.

O intuito da oficina, por meio do livro de Prandi, era trazer as narrativas/mitos dos feitos

dos orixás para a vivência pessoal dos estudantes e, a partir dessa vivência, fazermos as

discussões. A oficina de Mitologia dos Orixás aconteceu no Viola de Bolso e cada aluno fez a

leitura de um itan de um orixá diferente, uma leitura filmada, interpretada.

A palavra Itan é uma palavra de modo invariável mesmo quando for referida no plural.

O Itan é o conjunto de mitos e lendas do panteão africano que narra as histórias

envolvendo canções, danças, rituais e ensinamentos. Para os Yorubás é considerado

como verdade absoluta sobre a criação do mundo, possuindo grande respeito por ter

sido repassado oralmente como ensinamentos através dos mais velhos (SOUZA;

SOUZA, 2018, p. 102).

Após a leitura do itan, eu aprofundava a discussão sobre aquele orixá escolhido pelo

aluno com fotos, vídeos, histórias, experiências, por meio de uma roda de conversa. A respeito

da vivência desta oficina a aluna Kezia apresenta seu relato:

A oficina valorizou a mitologia dos orixás como uma ferramenta de informação e para

suprir um espaço que é pouco explorado nas nossas práticas em sala de aula. Através

da escuta desses relatos podemos proporcionar as crianças e jovens um melhor

entendimento de suas individualidades e também uma reflexão da sua identidade

cultural enquanto brasileiros. A identificação com algumas características de força,

coragem, honra e justiça, nos remetem a uma profunda reflexão sobre nossas

qualidades e fraquezas enquanto seres humanos. A aproximação com saberes que nos

ligam ao nosso passado cultural é mais significante do que a abordagem sobre

mitologia grega e romana. A oficina cumpriu o papel de incomodar sobre minhas

práticas, procurando levar a uma reformulação das temáticas buscando uma nova

abordagem para aprendizagem desses temas no espaço escolar (KÉZIA MERLO,

participante do curso, 2019).

É um assunto amplo, com gosto de quero mais, que não se esgotou em uma única aula,

obviamente. Um recorte sobre mitologia dos orixás poderia ser feito sob outro viés como, por

exemplo, a proposta de outros cursos sobre mitos e sua importância, o que daria 16 minicursos

baseados no xirê22, como proposta metodológica para se trabalhar a Pedagogia de Terreiro, mas

este assunto é uma proposta para meu doutorado.

Na 4ª aula, que aconteceu no dia 29/09/2019, foi ministrada a Oficina de Vestimenta,

pelo babalorixá Danilo D’Oxóssi e pelo egbomi André D’ LogunEdé, ambos historiadores com

22 Xirê: é uma sequência de cantigas para todos os orixás cultuados na casa de candomblé, começando por Exu e

indo até Oxalá.

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estudos na área e conhecedores da arte do richelieu23. Iniciei uma roda de conversa com a

apresentação de um artigo meu intitulado “A vestimenta do Candomblé: prática de resistência

e afirmação cultural? ”, no qual defendo que o vestir dos adeptos é uma forma de afirmação,

resistência e ressignificação cultural. Em seguida, os palestrantes trazem uma série de estudos

e imagens sobre vestimentas e indumentárias com a apresentação de diversas roupas que os

estudantes puderam ter uma percepção visual incrível sobre textura, tamanho, cor, a que tempo

se remete, questão hierárquica e de gênero quanto ao seu uso, o que deu margem para grandes

discussões e isto enriqueceu muito a aula.

A respeito da oficina de vestimenta, solicitei aos estudantes que produzissem sínteses

sobre essa vivência. Queria saber deles quais sensações essa oficina provocara e quais reflexões

poderiam fazer a partir do que aprenderam.

A cultura sempre esteve presente como forma de organização social e é por meio dela

que os costumes, tradições, festas, danças, ritos, vestimentas codificam grupos em

seus diferentes tempos e espaços. Essa diversidade cultural fornece um arsenal amplo

para fomentar debates que ajudem a termos melhor compreensão de como os grupos

se organizam e através de suas crenças se manifestam. Dessa maneira e

particularmente o candomblé, podemos destacar como a simbologia e as vestimentas

também são importantes para compreender as ações de suas divindades. Todo esse

conjunto formaliza aspectos cruciais para a religião, explicando assim como ela

canaliza, através das roupas e acessórios, toda ancestralidade mostrando a força,

beleza e poder (ANDREIA ENCARNAÇÃO, participante do curso, 2019).

É a mitologia que dá sentido e significação aos trajes e rituais através dos povos

africanos trazidos ao Brasil e as transformações culturais sofridas no decorrer do tempo. A partir

dos mitos identifica-se a importância da ornamentação e o cuidado na preparação de adereços

e trajes para agradar ao orixá. A busca pela beleza é notável na elaboração das vestimentas e

indumentárias, mesmo daqueles que não possuem boas condições financeiras para tal para

oferecer o que há de melhor para o sagrado e demonstrar sua devoção.

Penso que a roupa dentro de uma comunidade de candomblé é uma maneira das

pessoas compartilharem sua cultura, identidade e funciona como um meio de

integração entre os membros do grupo, fortalecendo assim os laços entre as pessoas

que ali convivem [...] a vestimenta é um dos elementos fundamentais para se entender

e o que é um terreiro de candomblé. Carrega em si elementos simbólicos que revela a

tradição, a cultura e a identidade dos povos africanos que foram escravizados. Traz as

representações de uma cultura que luta para se estabelecer, lutando todos os dias

contra a segregação, a intolerância religiosa, política e social. Cada detalhe que é

23 Richilieu: tipo de bordado de origem francesa em que predominam desenhos florais como tema decorativo, é

aplicado sobre o tecido branco, e também perfila as bordas de cada peça que compõe o traje da baiana do

candomblé (ARGOLO, 2019, p. 45).

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apresentado em uma peça de roupa conta um pouco da história do povo negro que até

hoje precisa se impor na luta por respeito e pela sua existência (SANDRO SOUZA,

participante do curso, 2019).

Anderson Almeida, Arlindo Cardoso e Jefferson Santos (2016, p. 31) em “Os trajes dos

orixás: design, plasticidade e símbolos do Candomblé”, pela Universidade Federal de Alagoas,

defendem que as vestimentas “dos adeptos e principalmente dos Orixás é o símbolo

característico e revelador da crença e dos aspectos mais importantes que revelam gostos,

temperamentos e regras individuais dos deuses para que eles possam realizar sua visita aos

humanos”.

Na 5ª aula, que aconteceu no dia 31/08/2019, fizemos a visita ao barracão da yalorixá

Luziene de LogunEdé, que fica no Bairro Juca Rosa, Eunápolis. Fomos muito bem recebidos e

muitos ali nunca tinham pisado dentro de um terreiro de candomblé. Feitos os devidos

cumprimentos, mãe Luziene nos encaminhou para o portão principal e ali nos mostrou os

assentamentos de Exu, Ogum, Kitempu e Oxóssi. Explicou por que Exu é guardião da porta de

todos os terreiros de candomblé, assim como explicou o que são os assentamentos24 e a sua

importância.

Em seguida, passamos pelo quarto de Omolu, um espaço pequeno de 2 metros

quadrados fechados por uma grade e cadeado, onde dentro ficam a imagem, assentamentos do

orixá e velas acesas, ali ela explicou a grande importância do Orixá e sua devoção. Em

homenagem por graças recebidas, ela oferta uma mesa farta de comidas e rezas anualmente, no

mês de maio.

O próximo quarto que foi visitado foi do assentamento de Oxóssi de pai Dedé, marido

de mãe Luziene e ogan25 da casa. Um quarto com tamanho similar, geminado ao quarto anterior,

com imagem do orixá, assentamento e objetos da entidade de pai Boiadeiro, como sela,

imagens, berrante, faca, chapéu e laço.

Adentramos o barracão e mãe Luziene explicou a importância dos atabaques, da

cumeeira, do sabaji26, do quarto de santo e do runkó27, que, inclusive, estava com yawô

recolhido. Não teve pudor em abrir o quarto de santo e deixou mostrar os assentamentos dos

24 Assentamentos: onde são colocados apetrechos e fetiches inerente a feitura de santo. Podendo ser de porcelana,

barro ou madeira. 25 Ogan: cargo masculino escolhido pelo orixá, permanece lúcido durante todas as funções mas provoca o transe

nos rodantes. Responsável por tocar e cantar. Fundamentais nos rituais de sacrifício. 26 Sabají: Sala intermediária que fica entre o barracão e o runkó, para onde são conduzidos os rodantes em transe

“virados no orixá” a serem vestidos, para que possam dançar em dias de celebração. 27 Runkó: quarto onde fica recolhido o futuro yawô para sua iniciação.

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orixás de seus filhos de santo, “não tenho problema em mostrar não, viu minha cumadi? Por

que tá tudo tapado com os panos” (Mãe Luziene D’LogunEdé, 2019).

Atravessamos o barracão e fomos para os fundos da casa, uma área central, arborizada,

contendo no meio o assentamento de Ossaim. Ali ela fala da importância das folhas. Mostrou

muitas, explicou para que serviam, algumas ela mesma plantou desde sua chegada, há 43 anos.

Rodamos diversos espaços da roça e ela continuou explicando os saberes de cada folha, a que

orixá pertence, para que serve: para acalmar, para apaziguar, para saúde, para atrair emprego,

para o amor, para atrair clientes, para cozinhar, para defumar a casa e até mesmo qual planta

não é boa para banho, dependendo do orixá de cabeça da pessoa e ainda disse que “tem que ter

folha debaixo da unha meu filho! Se não souber mexer com folha, não faz candomblé não! ”

(Mãe Luziene D’LogunEdé, 2019). A yalorixá, ao falar do orixá das folhas, nos lembra o itan

“Ossaim dá uma folha para cada orixá”:

Ossaim, filho de Nanã e irmão de Oxumarê, Euá e Obaluaê,

Era o senhor das folhas, da ciência e das ervas,

O orixá que conhece o segredo da cura e o mistério da vida.

Todos os orixás recorriam a Ossaim

Para curar qualquer moléstia, qualquer mal do corpo.

Todos dependiam de Ossaim na luta contra a doença.

Todos iam à casa de Ossaim oferecer seus sacrifícios.

Em troca Ossaim lhes dava preparados mágicos:

Banhos, chás, infusões, pomadas, abô, beberagens.

Curava as dores, as feridas, os sangramentos;

As disenterias, os inchaços e fraturas;

Curava as pestes, febres, órgãos corrompidos;

Limpava a pele purulenta e o sangue pisado;

Livrava o corpo de todos os males.

Um dia Xangô, que era o deus da justiça,

Julgou que todos os orixás deveriam compartilhar o poder de Ossaim,

Conhecendo o segredo das ervas e o dom da cura.

Xangô sentenciou

Que Ossaim dividisse suas folhas com outros orixás.

Mas Ossaim negou-se a dividir suas folhas com os outros orixás.

Xangô então ordenou

Que Iansã soltasse o vento e trouxesse ao seu palácio

Todas as folhas das matas de Ossaim

Para que fossem distribuídas aos orixás.

Iansã fez o que Xangô determinara.

Gerou um furacão que derrubou as folhas das plantas

E as arrastou pelo ar em direção ao palácio de Xangô.

Ossaim percebeu o que estava acontecendo e gritou:

“Euê uassá! ”.

“As folhas funcionam! ”

Ossaim ordenou às folhas que voltassem às suas matas

E as folhas obedeceram às ordens de Ossaim.

Quase todas as folhas retornaram para Ossaim.

As que já estavam em poder de Xangô perderam o axé,

Perderam o poder de cura.

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O orixá-rei, que era um orixá justo,

Admitiu a vitória de Ossaim.

Entendeu que o poder das folhas devia ser exclusivo de Ossaim

E que assim devia permanecer através dos séculos.

Ossaim, contudo, deu uma folha para cada orixá,

Deu uma euê para cada um deles.

Cada folha com seus axés e seus ofós,

Que são as cantigas de encantamento,

Sem as quais as folhas não funcionam.

Ossaim distribuiu as folhas aos orixás

Para que eles não mais os invejassem.

Eles também podiam realizar proezas com as ervas,

Mas os segredos mais profundos ele guardou para si.

Ossaim não conta seus segredos para ninguém,

Ossaim nem mesmo fala.

Fala por ele seu criado Aroni.

Os orixás ficaram gratos a Ossaim

E sempre o reverenciam quando usam as folhas.28

Ao fundo, mãe Luziene abriu uma outra porta de madeira com cadeado e grande

corrente, era o quarto de Exu. Um pouco maior que os outros quartos que já vira, em média 4

metros quadrados, mais escuro e abarrotado de imagens, velas, garrafas, taças, presentes e,

principalmente, assentamentos do orixá e os assentamentos de catiços e pombagiras.

O sino da igrejinha faz belem blem blom

Deu meia noite o galo já cantou

Seu Tranca Rua que é dono da Gira

O corre gira que Ogum mandou

(Domínio Público)

O conceito de Exu catiço se deu com o surgimento da Umbanda que do candomblé só

conservou o panteão dos orixás. Baseada pelo conceito cristão de caridade de espíritos que

ajudam os humanos em seus problemas, quais sejam, caboclos, pretos velhos e outros mortais

desencarnados que praticam essas ações de benevolência fazem com que esses espíritos entrem

num processo de evolução.

Todas as entidades trabalham para o bem, trazendo a relação de bem/mau envolvendo

também o conceito de pecado que, segundo Prandi (2001, p. 53), “ficou aprisionada numa

proposta umbandista de religião que desejava ser moderna, europeia, branca e ética, apesar das

raízes negras que, aliás, procurou apagar tanto quanto possível”. Com sua postura cristã, criou

dissimuladamente um universo paralelo rejeitado, de práticas do mal, demarcando fronteiras,

28 Prandi, 2001, p. 154.

Page 53: IGBÁBÒ: Uma práxis pedagógica exuriana

53

chamado Quimbanda. E nele colocou os espíritos do mau desencarnados: a Quimbanda passou

a ser domínio de Exu catiço.

Exu, que é fundamental no atendimento dos clientes e devotos, portanto peça básica

da dinâmica religiosa, assumiu na umbanda o aspecto de humano desencarnado que é

a marca dos caboclos e demais entidades da direita. Diabo sim, mas diabo que foi de

carne e osso, espírito, guia [...] agora no plural, foram homens de questionável

conduta: assaltantes, assassinos, ladrões, contrabandistas, traficantes, vagabundos,

malandros, aproveitadores, proxenetas, bandidos de toda laia, homens do diabo, por

certo, gente ruim, figuras do mal (PRANDI, 2001. p. 54).

O mesmo se deu quanto aos espíritos desencarnados de mulheres, originando, assim, as

pombagiras, que Prandi (2001, p. 54) conceituou como “mulheres perdidas, por certo:

prostitutas, cortesãs, companheiras bandidas dos bandidos amantes, alcoviteiras e cafetinas,

jogadoras de cassino e artistas de cabaré, atrizes de vida fácil, mulheres dissolutas, criaturas

sem família e sem honra”.

Eu caminhava pela alta madrugada,

Quando no clarão da lua eu ouvi uma gargalhada

Diga morena formosa, me diga quem você é

Ela é a dona da rosa, é pombagira de fé

Cigana diga seu nome, me mostre quem você é

Você é uma rosa encantada, só não conhece quem não quer

(Domínio Público)

Mãe Luziene fala da importância de agradar primeiramente a Exu, dizendo que Ele é o

começo de tudo. O “orixá que come primeiro dentro do candomblé é Exu. E porque ele come

primeiro? É pra poder a abrir as estradas, o que tiver de ruim ele vai afastando, pros fluidos

melhores virem pra roça” (Mãe Luziene D’LogunEdé, 2019).

Egba rà bó mojuba rà (tenho fé e peço licença para louvá-lo em minha casa)

Egba kose (tenho fé, amém)

Egba rà bó mojuba rà (tenho fé e peço licença para louvá-lo em minha casa)

E mó dé ko e ko (nossa casa está limpa. Proteja nossa terra)

Egba rà bó mojuba rà (tenho fé e peço licença para louvá-lo em minha casa)

Egba rà um be be (minha fé me alimenta, peço, peço)

Tiriri lona (Exu que nos dá coisas valorosas no caminho)

Ògó rum gò (te louvamos com o tambor para que não se confunda)

Rum gò (o tambor é inconfundível)

Laaròyé (dê-nos compreensão)

(Domínio Público)

Sendo Exu a conexão entre os dois mundos, deve ser o primeiro então a receber os

sacrifícios votivos, já que o sacrifício é a forma que os humanos se dirigem aos orixás para

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firmar laços de amor e devoção. Para os iorubás, os homens habitam a Terra, o Aiyê, e os deuses

orixás, o Orum. Os homens agradam os orixás e, em troca dessas oferendas, os orixás protegem

aos seus descendentes. Essa é razão do sacrifício: alimentar a família e os ancestrais, promover

o sagrado, restituir e fortalecer o axé. As oferendas devem ser transportadas até os deuses e

quem tem este encargo de transportador é Exu, o deus iorubano. Para saber se os orixás estão

satisfeitos com oferendas é necessário que haja comunicação. E para que as mensagens sejam

recebidas é necessário que Exu propicie essa comunicação, portanto Exu é o orixá mensageiro

das orientações que os deuses enviam do Aiyê, sendo o porta voz entre os homens e os deuses.

Sempre que um orixá é interpelado, Exu também o é, pois a interpelação de todos se

faz através dele. É preciso que ele receba oferenda, sem a qual a comunicação não se

realiza. Por isso é costume dizer que Exu não trabalha sem pagamento, o que acabou

por imputar-lhe (PRANDI, 2010, p. 50).

Vanda Machado (2010), em artigo intitulado “Exu: senhor dos caminhos e das alegrias”,

argumenta que “Exu é o princípio, o meio e o fim”, ainda diz que o orixá “é o que faz comunicar

no incessante fluxo das vivências cotidianas entre o Orun e o Aiyê, o mundo espiritual e o

mundo natural”.

A autora é educadora, acadêmica e filha de santo da Comunidade de Terreiro Ilê Axé

Opo Afonjá e criadora do Projeto Político Pedagógico Irê Ayó na Escola Municipal Eugenia

Anna dos Santos (escola que falarei mais adiante) pergunta como acontece o aprendizado que

se transmite com canto, danças, rezas e gestos carregados de significados e sutilezas.

Machado (2010) defende a oralidade, princípio base de sustentação da Pedagogia de

Terreiro, pois que reúne inúmeras histórias míticas e memórias de vivências criadas para fixar

ensinamentos de uma educação iniciática que forma o sujeito para ações voltadas para o cuidado

com o outro, para o movimento coletivo. A autora acredita ainda num diálogo filosófico onde

Exu possa ser incluído, pois não crê que a compreensão de princípios da tradição e cultura afro-

brasileira se dê somente por legislação, pela aplicação das leis.

Se uma Lei se impõe para educar o afrodescendente na consideração pela sua cultura,

mais importante ainda é a urgência de criar-se uma linha de fuga que possa acolher

outra epistemologia, um outro contorno para um jeito de educar para ser no mundo,

sendo diferente. Que pedagogia nos daria um caminho? Seria essa uma filosofia

exuniana no seu vigor originante? Ou uma pedagogia que permite ao educador e

educando perceber o seu entorno como tessitura das suas contradições?

(MACHADO, 2010, p. 13).

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O que Vanda Machado (2010) trata como Filosofia Exuniana, eu dou o nome de

Pedagogia de Terreiro Exuriana, uma epistemologia decolonial, que tem como marca o caráter

transgressor de Exu, indo na contramão, fazendo todo caminho inverso do que está posto pelo

sistema educacional colonizador, branco, eurocêntrico vigente.

Na 6ª aula, que aconteceu no dia 05/09/2019, apresentei aos estudantes um dos textos

de minha qualificação “Um Olhar Sob a Música Exu nas Escolas: Uma Pedagogia de Terreiro

Exuriana”. Iniciei os trabalhos apresentando a música, interpretada por Elza Soares, para, em

seguida, esmiuçar a temática do texto. Utilizei os mesmos slides que apresentei da qualificação

e relatei a experiência que vivi com a banca. Procurei limpar a imagem negativa instituída a

Exu, usada para disseminar racismo e intolerância. Por meio do recorte da música, defendi que

é necessário afastar o Orixá do estereótipo demoníaco, ressaltando que Pedagogia Exuriana é

fundamental nas ações escolares, pois favorece o trabalho com a história e a memória ancestral

dos estudantes, contribuindo para o empoderamento de grupos marginalizados historicamente

e fomentando relações pedagógicas baseadas no respeito às diferenças. Uma vez que apresentei

meu ponto de vista, partimos para uma calorosa discussão na qual os estudantes puderam se

posicionar em suas sínteses:

A representação estereotipada e mal trabalhada nas escolas leva estudantes a

subjugarem e desqualificarem o Candomblé, Umbanda, Batuque, culto aos Egungun,

entre outras. Esse processo faz com que Exu não apenas possua sua representação

simbólica ao diabo, mas traz elementos cruciais para pensarmos como a Lei

10.639/2003 está sendo implementada em sala, se a mesma tem sido de fato

introduzida nos espaços escolares, como essas discussões estão sendo

problematizadas e se houve medidas para adequar o currículo escolar na formação dos

sujeitos (ANDREIA ENCARNAÇÃO, participante do curso, 2019).

O catolicismo, durante muito tempo, fortificou e demonizou outras religiões com a

relação bem/mal. Essa fantasia política e colonizadora fundamentou uma repressão rótuladora

baseada num conceito no qual o diabo se manifesta através de entidades pertencentes das

religiões afro-brasileiras. Esses ataques incentivam a intolerância, preconceito e o sofrimento

para os adeptos a religião.

A escola é um lugar de socialização, de troca de saberes e, principalmente, de formação,

além disso, um espaço de construções históricas. Nessa perspectiva, é fundamental desconstruir

ideias colonizadoras, etnocêntricas, os conceitos maldosos que destroem culturas e fortalecem

o ódio. Sendo assim, é inaceitável invisibilizar nas escolas e outras instituições saberes voltados

para a preservação e conhecimento das religiões africanas e afro-brasileiras.

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É preciso compreender que existe um processo histórico e africano que foram

incorporados à cultura brasileira desde que os escravizados forçadamente desembarcaram no

continente e aqui encontraram em sua religiosidade maneiras de preservar suas tradições,

conhecimentos, valores, memórias, uma identidade enraizada. Infelizmente, é nas escolas que

práticas de racismo formam sujeitos excluídos de sua história e memória ancestral, por isso a

imagem de Exu está relacionada às ações demoníacas, mas não podemos deixar passar que

essas afirmações racistas estão carregadas de conceitos de cor, ao negro e todas suas ações,

estão remetidas ao ruim, ao perigoso, desconfigurando todo um povo e suas narrativas.

Essa ideia equivocada tem atribuído à sociedade a não assumir a dívida impagável aos

africanos o direito de pertencimento e identidade. Ainda se tem muita resistência das escolas e

professores em abordar a temática e a inseri-la nos currículos. Tal consequência implica numa

sociedade alienada, racista e preconceituosa.

Sendo assim, conhecemos as escolas que fazem do pensamento livre dos alunos, um

questionamento preso, por isso, a escola oprime, porque impõe as crenças baseadas

no cristianismo. Em consequência as histórias vinculadas à ancestralidade dos

estudantes negros são negadas. Oprime na medida em que demoniza as religiões de

matriz africana. Oprime a partir dos assuntos baseados nos livros didáticos, que

trazem pouca ou nenhuma referência a respeito da luta e resistência do povo negro.

Contudo é possível desenvolver um trabalho referente à Pedagogia de Terreiro,

tratando-se de forma criativa e lúdica, a fim de apresentar e conceituar elementos

pertencentes à cultura afrodescendente, do mesmo modo, desmistificar negativamente

os orixás, muito embora os mitos sejam as importantes referências (JÉSSICA

SOARES, participante do curso, 2019).

É necessário que sejam utilizadas ferramentas como as músicas, poemas, literaturas e

tantos outros para desconstruir esses estereótipos. Levar a Pedagogia de Terreiro às escolas é

fundamental para que os sujeitos compreendam a existência desses elementos e suas formas de

contribuição na religião e na história desses povos, é perceber na essência a simbologia e a

representação que cada orixá, pulseiras, vestimentas, cantos, plantas e rituais enriquecem as

culturas e deixa claro que o Brasil não é um país hegemônico, mas com variadas e belas culturas.

Que se tenha consciência da importância desses saberes, que os mesmos precisam estar

presentes nos espaços escolares, fazendo parte do currículo oficial destas instituições. Para

tanto, o corpo docente necessita passar por uma formação (reciclagem epistêmica) para que se

possa cogitar a possibilidade de introduzir estes conhecimentos como parte oficial do currículo.

Pensar em uma pedagogia exuriana é se libertar do manto do etnocentrismo e se abrir

para outras possibilidades de aquisição de saberes e novas práticas de ensino. A escola

é um espaço de socialização de saberes que se encontra presa numa ancestralidade

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epistêmica euro centrada [...] nesse sentido, ainda há de se travar inúmeras batalhas

para que consigamos desenvolver uma pedagogia que seja desenvolvida a partir da

valorização destes saberes (SANDRO SOUZA, participante do curso, 2019).

Pensar numa possibilidade de inserção de uma pedagogia exuriana nas escolas é uma

das formas de tornar esses saberes excluídos como parte dos componentes curriculares. Ou seja,

precisamos encontrar mecanismos que possibilitem uma rasura no denso muro epistêmico do

espaço escolar. Temos que condicionar a pedagogia exuriana para que coexista junto ao

currículo oficial.

A nossa formação identitária, cultural e social é atravessada por saberes tradicionais que

foram e são silenciados por uma cultura hegemônica que por séculos imperou como absoluta,

contudo, com todos os avanços dos estudos decoloniais, se busca a superação do

neocolonialismo, mas que ainda permanece operando nos dias de hoje em um padrão mundial

de poder.

Apesar de tantos avanços nas teorias quanto nas práticas educativas decoloniais, ainda

há muito que se enfrentar para que haja uma efetiva superação desse modelo eurocentrado de

ensino que hoje possuímos e saber correlacionar os saberes populares e tradicionais com os

oficiais é uma das formas de superação dessa dominação colonial disfarçada de modernidade.

Ainda nas discussões sobre a Pedagogia de Terreiro Exuriana, utilizei para fechar o ciclo

de discussões a respeito, a 7ª aula, que aconteceu no dia 19/09/2019, com a exibição do filme

“Besouro”, de João Daniel Tikhomiroff (2009). Estava interessada em que os estudantes

pudessem identificar no filme as relações de opressão, de poder, de racismo, de preconceito, de

intolerância, de fé, de luta pela liberdade, e de resistência; identificar os orixás, a importância e

interferência deles em relação ao personagem principal em cada momento do filme e extrair o

aprendizado que Exu nos traz quanto ao seu caráter polifônico, educador e transgressor. Neste

encontro, pedi para os estudantes refletirem sobre o uso de recursos audiovisuais no que tange

à aplicação da Lei 10.639/2003, uma vez que considero esse um excelente recurso, tanto que

me propus em meu mestrado, a apresentar um documentário como artefato.

A 8ª aula, que aconteceu no dia 26/09/2019, trabalhei os seguintes textos: “Tá Amarrado

em Nome de Jesus! A Escola e o Aluno Negro Adepto do Candomblé”, texto meu apresentado

ao PPGER, no componente Fundamentos nos Processos e Ensino e Aprendizagem, onde, mais

uma vez, apresento aos estudantes uma discussão sobre as relações conflituosas que crianças

adeptas do Candomblé sofrem ao adentrarem as escolas que são legitimadoras de uma cultura

branca e tentam reduzir e invisibilizar a identidade da cultura negra. O objetivo é trazer à tona

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o silenciamento do aluno e as relações de poder, o currículo escolar hegemônico, no intuito de

romper com o paradigma colonial racista judaico-cristão com uma análise sobre a Lei

10.639/2003.

Fizemos também a análise e discussão de trechos do artigo: “Mitos Afrobrasileiros: uma

proposta para a prática pedagógica”, de Danielle Milioli Ferreira e Leila Dupret (2012). As

autoras procuram trabalhar a Lei 10.639/2003 e ressaltar a relação de pertencimento e do viver

em comunidade que se busca a valorização dos mitos africanos nas práticas educativas em sala

de aula.

A discussão com os estudantes a respeito desses dois textos teve por objetivo fazer com

que pensassem quais ações deveriam ser tomadas no sentido de replicar a Pedagogia de Terreiro

baseando-se na Lei 10.639/2003, devido à proximidade com a reta final do curso e com o

calendário escolar da Semana da Consciência Negra nas escolas públicas onde a maioria atua.

Na 9ª aula, que aconteceu no dia 03/10/2019, fizemos a análise do livro “Pedagogia de

Terreiro: Experiências da Primeira Escola de Religião e Cultura de Matriz Africana do Baixo

Sul da Bahia – Escola Caxuté”, de Mam’etu Kafurengá, Maria Balbina dos Santos (2019).

Neste, a autora defende que:

Terreiro torna-se espaço de memória e valorização das tradições africanas

representadas pelos antepassados e que podem ser tomadas para enfrentar a

colonização dos saberes e relembrar as estratégias de resistência construídas pelo povo

negro e indígena no passado e vividas no presente. Assim temos um espaço político

de luta (SANTOS, 2019, p. 21).

A Mam’etu Kafurengá fala de suas experiências no Terreiro de Caxuté, fundado em

1994, que reúne convivência de descendentes de africanos e indígenas, que “não encontram na

escola uma forma de desenvolver auto estima, identidade e valorização de seu fazer/saber,

devido ao silenciamento e negação de seu modo de vida e de sua cultura” (Santos, 2019, p. 20).

A autora defende uma proposta de Pedagogia de Terreiro baseada em um “pensamento

bantu-indígena, demarcado na memória biocultural, ancestralidade, identidades, território e

resistências”, onde se alinha com a mesma base estrutural da pedagogia a qual apresento,

alicerçada na oralidade, no fazer coletivo e no movimento de resistência.

A 10ª e 11ª aulas aconteceram, respectivamente, nos dias 05/10/19 e 06/10/2019 com a

Oficina de Dança dos Orixás no Ilê Asé Silé Iná Tuntun Omo Torrundê, que fica na Estrada do

Alecrim, bairro Nacional, em Eunápolis, ministrada pela professora de dança, Ojuomim, Nena

D’Oxum. Como dito anteriormente, foi a junção de duas oficinas, a que seria ministrada no

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Viola de Bolso e a ofertada pelo próprio Ilê Asé, com certificação da UNEB/NUPE. Além dos

estudantes do curso, a “oficina dois em um” foi aberta ao público e começava às 9h da manhã

e terminava com um delicioso almoço de confraternização mediante o pagamento de uma taxa

simbólica para o custeio da refeição. Estavam presentes professores, universitários, médicos,

enfermeiros, babalorixás, yalorixás, yawôs, umbandistas, pesquisadores, adeptos da União do

Vegetal, artistas plásticos, esotéricos, músicos e cabeleireiros. Foi a oportunidade de todos

visitarem o Ilê Axé e de vivenciarem a experiência da dança como prática na construção dos

saberes dos povos de terreiro para a valorização de sua autoestima atrelada ao conhecimento de

história oral, do fazer coletivo, da hierarquia e do respeito, dos mitos dos orixás. É numa roda

de dança que se aprende tudo junto e misturado.

O objetivo da oficina de dança foi, mais uma vez, desmistificar crenças e medos sobre

a Mitologia dos Orixás. Acredito que somente por meio da informação e do conhecimento

poderemos romper com a barreira do preconceito, ou seja, conceito prévio. É válido registar

que essa oficina pode ser amplamente trabalhada nas escolas, a partir de uma experiência

estética sensorial de escuta, de narração das histórias e de movimentação corporal a fim de

valorizar as relações étnico-raciais nestes espaços.

As vivências das oficinas de dança devem ser acompanhadas de uma profunda discussão

e transformação do olhar de quem participa dessas experiências, seja para formação de

professores, seja diretamente com os estudantes da educação básica. Defendo que os indivíduos

sejam capazes de desconstruir preconceitos acerca de instrumentos, danças e cantigas em

ioruba, desfazendo o estereótipo do pacote “coisa de macumba”, tão erroneamente propagado

dentro dos espaços escolares.

Como a oficina possui um caráter pedagógico, as cantigas foram executadas de maneira

livre, mas com muito respeito à liturgia e aos orixás. Além disso, devido ao fato de a atividade

buscar homenagear e contar as histórias dos orixás, a ordem das cantigas também respeitou o

repertório de cada um deles, portanto o agueré29 foi executado para Oxóssi; o alujá30, para

Xangô, e assim por diante.

O Ilê Axé Silé Iná Tuntun Omo Torrundê naquele momento não contava com três ogans

para o toque dos instrumentos, optei por previamente fazer a gravação das cantigas de todo o

29 Agueré: é um toque para os Orixás, Oxóssi e LogunEdé, respectivamente. É reconhecido como um ritmo que

chama a vida e a movimentação, dançado de forma muito elegante, com porte refinado e majestoso (MAURÍCIO,

2009, p. 205). 30 Alujá: Toque de movimento rápido, que transmite muita energia, está relacionado ao Orixá Xangô. Demonstra

o caráter másculo e vigoroso desse Orixá, e é o ritmo principal da “roda de Xangô” (MAURÍCIO, 2009, p. 205).

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xirê, composto de três músicas de cada orixá, contabilizando um total das 48 cantigas mais

conhecidas para a realização da oficina, com o uso de uma caixa de som e meu notebook.

A ministrante da oficina, Nena D’Oxum, iniciou com uma música suave para que os

estudantes pudessem fazer alongamento e soltar o corpo. Devagar, começou a explicar sobre

mitologia de cada orixá junto com a dança, na ordem do xirê, sucessivamente de Exu a Oxalá.

Essa ação perdurou por dois dias, foi muito divertida, sempre finalizada com momentos de

relaxamento, almoço de confraternização, selfies e filmagens.

Aproveitei a oportunidade da oficina para conversar com os sacerdotes presentes sobre

a Pedagogia de Terreiro como forma de se trabalhar a Lei 10.639/2003 nas escolas. Quando

perguntado sobre a construção dos saberes ancestrais dentro do Candomblé, Pai Danilo

D’Oxóssi respondeu o seguinte:

O candomblé não tem uma cartilha a ser seguida, através da oralidade, tudo é passado

através dos mais velhos, todo iniciado tem acesso ao segredo, à medida que participa,

põe a mão de fato, esse segredo vai sendo passado através da preservação (PAI

DANILO D’OXÓSSI, 2019).

Quando lhe perguntei se dava para levar os saberes de terreiro para a escola e o que

deveria ser feito para combater o racismo religioso por meio da Pedagogia de Terreiro, Pai

Danilo respondeu:

Dá para levar, sim, os saberes para a escola. Através da religião, a construção

histórica, como se deu, de que forma essa religião chegou até aqui, de que forma ela

tem sido preservada, o próprio terreiro é uma escola, o cotidiano do terreiro é uma

escola, mostrar que de fato a duras penas os adeptos conseguiram preservar essa

religião, através da escola é o primeiro passo. Mostrar o que é a religião de fato, levar

alunos a visitações em terreiros é importante, independente da fé que você professa,

leve para conhecer, através de abordagens com filmes, hoje na mídia existe muito

material que pode estar sendo usado, existem diversas formas de abordagens, basta

querer (PAI DANILO D’OXÓSSI, 2019).

Ao egbomi André D’LogunEdé, perguntei sobre a importância da Pedagogia de Terreiro

e da construção dos saberes dentro de uma casa de santo.

A primeira coisa que a gente tem que ter é a construção de uma África dentro dos

terreiros. O terreiro de Candomblé agrega fatores históricos, fatores políticos, fatores

sociais, dentro de um único espaço que irá nos remeter as antigas sociedades africanas.

A visão das nações dentro do Candomblé, Ketu, Jeje, Fon, Angola, ela remete a essas

antigas sociedades. Dentro de um terreiro de Candomblé é possível você vislumbrar

territórios africanos, políticas africanas, toda uma identidade negra condensada dentro

de um único espaço (ANDRÉ D’LOGUNEDÉ, 2019).

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Enquanto historiador e mestrando em Ensino e Relações Étnico Raciais, como combater

o racismo religioso nas escolas?

A primeira ação a ser tomada dentro das escolas é desfolclorizar a cultura afro

religiosa. Porque quando vai se falar de cultura afro religiosa que é uma vertente da

culta afro-brasileira se coloca muito pelo lado do folclore, pelo lado da plástica, o

exótico, o diferente, é preciso entender que o Candomblé é uma religião, não é só uma

manifestação africana, e por ser uma religião ela tem seus dogmas, ela tem suas

tradições, ela tem sua história, ela tem os seus focos de resistência. Então é à partir da

desfolclorização dentro do trabalho educacional começar esse trabalho de combate a

intolerância, é um trabalho árduo, é um trabalho difícil, mas ele tem que ser começado

à partir desse pressuposto (ANDRÉ D’LOGUNEDÉ, 2019).

Mãe Luziene D’LogunEdé também fez questão de prestigiar a Oficina de Dança e se

sentou para conversar. Quando questionada sobre o ensinar e aprender dentro do Candomblé

ela respondeu:

É muito bom Claudia, saíram os mais velhos e ficaram os mais novos, então tem que

ter caminhos para esses que estão entrando na vida do Candomblé. Tem que ter

conhecimento e esse conhecimento tem que ir pra sala de aula, porque tem muitas

pessoas que enxergam o candomblé pelo outro lado, e o Candomblé é muito bonito

de se ver. Então tem que ir pra sala de aula para as crianças terem o conhecimento do

que é o candomblé (MÃE LUZIENE D’LOGUNEDÉ, 2019).

Por fim, consegui conversar com o babalorixá, responsável do terreiro, o Doté

Balegunan, meu pai pequeno, que durante toda oficina ficou ocupado com os afazeres da

cozinha, preparando o almoço de confraternização. Após a troca de bênçãos, lhe perguntei sobre

a construção dos saberes de terreiro e como podem ser trabalhados nas escolas, ao que ele

respondeu:

A gente considera que Candomblé é uma faculdade que ninguém se forma. Onde a

construção do saber é importante porque você vai reconstruir um processo de agregar

conhecimento e o conhecimento é algo libertador, e o saber funciona como agente

transformador. Eu falo sempre aos que me acompanham que eu quero pessoas

inteligentes, vivas e pensantes. O Candomblé traz essa coisa da oralidade como meio

de transmissão do saber e hoje a gente precisa perpetuar e partilhar esses saberes. Não

adianta eu ter conhecimento e não ensinar aos meus, porque esse saber irá se perder.

Então é necessário que essa troca aconteça (DOTÉ BALEGUNAN, 2019).

Quando perguntado se os saberes de terreiro podem contribuir para o combate ao

racismo religioso, ele respondeu que,

O racismo religioso sempre ocorreu porque nós fazemos parte de um segmento

religioso que historicamente sempre foi legado a preto, pobre e de periferia. E hoje

você consegue perceber a presença de doutores, de mestres, de pessoas com o nível,

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62

com o saber mais elitizado, e você percebe que no Candomblé não tem isso, porque

na religião vai ter esse doutor, mas vai ter também aquele que não tem nenhuma

formação, e dentro do segmento religioso os dois estão em pé de igualdade, então eu

vou ter em minha cozinha lavando prato a médica que é cirurgiã plástica, e vou ter

limpando o meu barracão o universitário ou aquela senhorinha que não tem nenhum

tipo de formação. Somos todos iguais nas funções do axé. Então o Candomblé permite

esse recorte de várias formações, de vários perfis financeiros, vai pegar o rico e o

pobre, o preto e o branco, e seremos todos iguais (DOTÉ BALEGUNAN, 2019).

Após o relato do zelador da casa, encerramos o último dia da oficina com um delicioso

almoço de confraternização com todos os presentes e muitas fotos, já com os estudantes

discutindo sobre suas apresentações para a próxima aula.

A 12ª aula, que aconteceu no dia 17/10/2019, foi uma Roda de Conversa sobre como

trabalhar a Lei 10.639/2003 nas escolas. Os estudantes entregaram seus relatos escritos,

baseados em todas as leituras, discussões e experiências vividas no decorrer do curso. Cada um

fez uma breve apresentação de seu projeto de como replicar a Pedagogia de Terreiro, mas a

discussão será feita no próximo capítulo.

A 13º aula, que aconteceu no dia 24/10/2019, foi o Relato de Pós Experiência do curso

filmado. Tudo que os estudantes leram, discutiram, aprenderam e vivenciaram nas oficinas, no

Viola de Bolso e nos terreiros visitados. No final das filmagens, fizemos uma confraternização.

A 14ª aula, que deveria acontecer no dia 31/10/2019, de degustação e palestra sobre

Culinária do Candomblé, trazendo como elemento principal o Acarajé, com Pai Danilo

D’Oxóssi e o egbomi André D’LogunEdé, como dito anteriormente, teve que ser cancelada.

3.7. Como os professores podem aplicar a Pedagogia de Terreiro?

Hoje me vejo numa situação interessante por ter retornado à educação básica, justamente

no momento em que escrevo o memorial de defesa do mestrado, porque me coloco na mesma

condição em que se encontram todas/os as/os professoras/es participantes do curso por mim

ministrado. Posso sentir na pele as angústias e dissabores de tentar praticar a Lei 10.639/2003,

em tempos tão sombrios.

3.7.1. Mas por que aplicar a Pedagogia de Terreiro?

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63

Trabalho numa escola de periferia, marcada pela criminalidade, a EMEF – Escola

Municipal de Ensino Fundamental Feu Rosa, no município de Serra, onde leciono Libras a um

aluno negro e surdo de 12 anos que, para além da surdez, utiliza prótese nas duas pernas por

conta de uma deficiência congênita e tem nas mãos o que se chamamos “garras de lagosta”, que

dificulta sua escrita. O garoto é um exemplo de superação, está sempre de bom humor, é

extremamente inteligente, proativo, interage com os colegas, encontrou no esporte seu meio de

superação, é para-atleta de jiu-jitsu, participa de campeonatos nacionais e, mesmo assim, apesar

da popularidade, enfrenta bullying por ser negro, surdo e usar prótese. Observo esse

comportamento segregador de estudantes e professores não somente com o meu aluno, mas uns

com os outros.

Essa semana, a professora de Língua Portuguesa chamou a coordenação em sala por

conta de ações de racismo em sala cometidas por dois estudantes ditos “quietinhos” contra um

menino negro, o qual o elegeram como o mais feio da sala. Todos riram dele, ele chorou de

desespero e saiu correndo pelo corredor da escola.

O professor de História me chamou na sala para dar minha opinião perante todos os que

ali estavam, pois um aluno estava depreciando o penteado black power da coleguinha, sendo

que este menino também é negro. Ele explicou historicamente sobre o movimento que deu

origem ao penteado e eu falei do empoderamento feminino através do cabelo para poder

desconstruir essas ações de preconceitos vindas de negro para negro. Este mesmo professor tem

medo de ter suas falas filmadas e postadas nas redes sociais sob a acusação de pregar ideologias.

Em vários momentos já presenciei os estudantes falando: “mas professor, isso é ideologia! Isso

é coisa de comunista! Você tá falando do meu presidente heim! ”, e ele devolve a provocação

retrucando: “eu tô brincando, tô falando da matéria, isso aqui não é dos dias de hoje não...”.

Esse mesmo professor de História inicia o conteúdo “Povos e Culturas Africanas” e, ao

fazermos uma análise do livro didático, ele pontua ser uma vitória que este esteja disposto à

frente do conteúdo europeu da “Idade Média”. No entanto, ao folhear as páginas pude perceber

o quão é raso e não contempla as religiões de matriz africana, que apresenta: os aspectos físicos

da África; o Império do Mali e sua formação e economia; os Bantos; o Reino do Congo; os

Bantos no Brasil; os Iorubás, sua política e economia; os Iorubás no Brasil, referenciando Pierre

Verger, voltando o recorte para música, com uma foto da cantora Margareth Menezes e do

Olodum; e um recorte para as artes, dando enfoque para Carybé, finalizando em Mestre Didi.

Em nenhum momento, o livro didático trabalhado pelo atual governo cita o Candomblé, que é

apagado da História.

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64

Mestre Didi, Deoscóredes Maximiliano dos Santos, guardião das tradições africanas,

sacerdote, escritor, ficou resumido ao “Didi artista”, nos livros didáticos oficiais. Foi um dos

visionários da Pedagogia de Terreiro, um representante da cultura afro-brasileira que passou a

vida tentando trazer reconhecimento ao Candomblé. Um de seus projetos mais agregadores foi

a Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos, dentro do Ilê Axé Opô Afonjá, uma mini

comunidade Infantil Oba Biyi, dedicada ao ensino, tendo como base as comunidades ao redor.

Desde a fundação, por Mãe Aninha, em 1910, o Ilê Axé Opo Afonjá é um dos principais

e mais antigos terreiros do Brasil. Por isso, quem assume a cadeira de yalorixá assume também

a responsabilidade, até o fim da vida, pelo resgate de uma história da ancestralidade e da própria

imagem do Afonjá fora dos limites da roça. Por ser um dos mais antigos, é referência para os

demais e representa movimento de preservação da identidade cultural, dos saberes e de

resistência. A escolhida para substituir Mãe Stela D’Oxóssi no Ilê Axé Opo Afonjá, Mãe Ana

D’Xangô, pedagoga de formação, concedeu sua primeira entrevista ao Correio da Bahia, no dia

04 de janeiro de 2020, logo após assumir o posto.

Sobre como ela enxerga os recentes casos de intolerância religiosa, a yalorixá diz que

“Ninguém é obrigado a seguir uma religião única, o mundo é eclético. Por isso, é uma questão

de conscientização. Quando as pessoas aprenderem a respeitar, isso será minimizado” (Mãe

Ana D’Xangô, Correio da Bahia, 2020). Quando lhe foi perguntado como ela percebe isso no

dia a dia, na sala de aula, ela respondeu:

Os alunos têm uma visão muito ampla. Eu dialogo com eles muito tranquilamente.

São questões que precisam ser divulgadas. Minha função sempre foi essa, formar

alunos questionadores. Tenho certeza que em alguns deles eu planto sementinhas.

Alguns não mudam, continuam pensando as mesmas coisas. Mas tenho certeza de

que, em alguns, eu consegui distorcer a imagem [preconceituosa] que tinham do

Candomblé (MÃE ANA D’XANGÔ, Correio da Bahia, 2020).

A Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos, dentro do Ilê Axé Opô Afonjá e a mini

comunidade infantil Oba Biyi, as varandas e o pátio trabalhavam atividades ao ar livre por meio

da oralidade, não havia a estrutura da chamada sala de aula. A Pedagogia de Terreiro foi

pensada na tradição africano-brasileira com o trabalho da autoestima e isso se dá há 30 anos.

Apesar de esforços do poder público e da nata intelectual da época, a escola sofreu

mudanças curriculares impostas pelo tempo. Municipalizada em 1998, hoje funciona

semelhante a outras escolas, mas há um legado que se mantém: trata-se de uma escola dentro

de um terreiro, o que, em si, facilita a relação de transmissão de conhecimento da cultura

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65

africana. Sobre o futuro, o neto de mestre Didi pretende continuar sua arte em esculturas por

meio da oralidade, poder trabalhar os saberes ancestrais com as crianças do entorno:

Mais de 80% da periferia é negra. Se você tem uma escola que fala direto com a

autoestima, você não tem tiro sendo dado à toa [...] nós, dos saberes ancestrais,

precisamos chegar a todas essas pessoas. Para que todas essas pessoas cheguem além

(TONHO, neto de Mestre Didi, Jornal A Tarde, 2017).

Apesar do merecido legado em facilitar a relação de transmissão de conhecimento da

cultura africana através da Pedagogia de Terreiro, a Escola Municipal Eugênia Anna dos

Santos, após o processo de municipalização, sofre com as modificações impostas pelo sistema

nacional de ensino e acabou por cair no enquadramento do cartesianismo curricular europeu

branco na forma de ensinar.

Ações no sentido de se criar terreiros-escola são positivas e devem continuar. Existem

exemplos como a escola criada dentro do Terreiro de Lembá, em Camaçari BA que, tendo

metodologia aplicada de respeito às tradições e costumes africanos-brasileiros, obteve nota 6,6

no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – IDEB31.

Outro ponto a favor é a criação de vagas para crianças, jovens e adultos que moram no

entorno dos terreiros e que podem estudar dentro dos espaços que são a sua realidade

sociocultural. No entanto, ainda assim, não seremos capazes de combater o sistema de ensino

que entrará “chutando a porta” dos barracões com sua cultura colonial europeia branca racista.

Proponho justamente o desafio do movimento inverso: que os saberes ancestrais

africanos-brasileiros aprendidos-ensinados dentro dos Terreiros possam atravessar as

encruzilhadas e entrar por todos os portais das escolas, provocando uma transformação

epistêmica curricular, decolonial dos saberes.

Justifico este desafio de inversão por causa da atual estrutura curricular que não tem

condições de enfrentar o problema e, por conta disso, cria barreiras, mesmo com a existência

da Lei 10.639/2003. Sueli Carneiro (2005, p. 96), chama de epistemicídio o “processo de

destituição da racionalidade, da cultura e da civilização do Outro”. É um dispositivo que nega

a capacidade intelectual que apaga os saberes, afeta a autoestima e, por fim, acaba sendo mais

um eficaz instrumento de dominação racial.

31 Escola em terreiro tem o maior Ideb de Camaçari. AÇÃO NOTÍCIAS, 13 set. 2018. Disponível em:

http://acaonoticias.com.br/index.php/giro/93-bahia/968-escola-em-terreiro-tem-o-maior-ideb-de-

camacari?fbclid=IwAR0Co1BFQAMTdJvFVoZGb3VbqHeuZ0SL0Kbb045zBQhoq2YGZZB3lPfKvlA. Acesso

em: 21 mar. 2020.

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66

Michel Foucault (2008) defende que vontade de poder é intencional, se produz no jogo

das práticas concretas que buscam satisfazer interesses e acabam por conferir legitimidades

(VEIGA-NETO, 2007) e a escola, enquanto espaço legitimador de cultura, é também um espaço

de poder intencional, normalizador, que legitima regras e condutas e, ao fazer isso, exclui

valores e culturas as quais não a interessa, barrando a cultura ancestral do aluno negro adepto

de religiões de matrizes africanas.

Ao legitimar a exclusão, a escola cria estereótipos para se encaixar. Um conjunto de

sujeitos “normalizados” que terão que se enquadrar nessas normas, docilizados, sujeitados, que

não se rebelam contra o modelo curricular hegemônico, fazendo com que o espaço para a

produção e o pensamento da “diferença” seja excluído da escola. Um regime de verdade é

trabalhado dentro das escolas por meio da internalização de convencimento, até que o

“conteúdo” imposto divulgado seja tomado como “verdade” absoluta e não questionável.

Defendo a Pedagogia de Terreiro como uma epistemologia de resistência. E Foucault

(2008) pensa nessa resistência de um modo diferente. O poder se dispõe numa rede, na qual há

pontos de resistência que são gerados dentro da própria rede, os quais são transitórios e

movediços. Nas malhas dessa rede, os indivíduos exercem o poder e sofrem com suas ações. O

poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles, atravessando-os. Onde há poder, há

resistência. Se, por um lado, novos saberes e tecnologias são criados no sentido de disciplinar,

controlar a sociedade, cada vez mais sujeitos lutam contra essas forças que tentam reduzi-lo a

um corpo dócil. Portanto, o poder não seria totalizador e as instituições, em face disso,

sequestram, proíbem e normalizam, mas sempre haverá alguém que escapa.

Na contramão do poder instituído como regime de verdade pelo racismo estrutural,

novamente trago as bases do pensamento da Pedagogia de Terreiro que acredito que devem ser

trabalhadas dentro das escolas, por meio de ações e valores comportamentais que devem ser

cultivados, replicados e multiplicados:

Defendo que terreiro de Candomblé é um espaço de aprendizado privilegiado para

transmitir seus saberes por meio da oralidade, do resgate da memória, do pertencimento, da

Ancestralidade

Memoria

Pertencimento

Oralidade

História oral

Mitos

Coletividade

Resistência

Decolonização dos

saberes

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ancestralidade, como também da conexão e preservação da natureza. O respeito à terra,

enxergá-la como lama sagrada a qual pertence nossos ancestrais e para onde retornaremos é

essencial nesse aprendizado. Para construir esses saberes ancestrais é necessário um trabalho

com a história oral, a mitologia e o fazer coletivo. Dessa forma, o modelo de Pedagogia de

Terreiro pode servir de inspiração para construir novas formas pedagógicas, com outros recortes

que não sejam fundamentados sob pensamentos coloniais onde o negro é excluído.

Terreiros trazem em sua bagagem não somente ritos litúrgicos, mas memórias

identitárias e resistência cultural, formas de pensar que desencadeiam novas concepções

epistêmicas sob uma perspectiva insurgente e decolonial que a escola precisa urgentemente

trabalhar, pois a pedagogia excludente com a qual reproduz padrões de preconceito precisa ser

quebrada (Santos, 2019, p. 18).

Assim, terreiros são espaços de memória cultural, memória essa que foi roubada do povo

brasileiro, mas que pode ser trabalhada de forma transversal pela Lei 10.639/2003, pois a

história pode e deve ser contada em espaços escolares, uma vez que estes são capazes de

ressignificá-la transformando atitudes em práticas de resistência às colonizações sofridas pelo

povo negro.

Na nossa comunidade, cultivamos o orgulho de construímos valores afirmativos e de

lutarmos como negros/as. Assim, o terreiro reúne valores, práticas, memórias,

tradições e vivências ancestrais, instituindo uma pedagogia que busca utilizar-se deste

reservatório negro ancestral para formar sujeitos (SANTOS, 2019, p. 21).

É preciso encontrar outras formas de produzir saberes e fazeres que fujam do

enquadramento etnocêntrico já superado como “a imposição de um modelo único, que não

contempla a diversidade humana” (SANTOS, 2019, p. 35). Trabalhar a oralidade e a

coletividade de comunidades de terreiro, comunidades ribeirinhas, valorizar as práticas

daqueles que vivem nas favelas ou no campo, bem como outras formas de produzir

conhecimentos para além dos muros da universidade. Essas vozes não podem ser mais

silenciadas e invisibilizadas.

Santos (2019, p.29) utiliza como referência Paulo Freire (1987) em sua obra Pedagogia

do Oprimido, quando “questiona os referenciais eurocêntricos, a partir dos quais, o

conhecimento no campo das ciências sociais é produzido” e vai além para defender uma

educação de resistência:

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68

Assim, para além da alfabetização, a educação é uma experiência cultural reflexiva,

critica e partilhada, com vistas à transformação. As pedagogias construídas a partir de

Freire devem ser capazes de fortalecer a comunidade por meio de valorização e

sistematização de seus saberes, reconhecendo-lhes a legitimidade. A educação

fortalece a capacidade de resistir e cultivar, além de propor uma existência com

parâmetros culturais de liberdade (SANTOS, 2019, p. 30).

A Pedagogia de Terreiro contribui para o fortalecimento da autonomia e autoestima do

povo negro, pois valoriza a memória e a resistência de um povo que é estigmatizado, haja vista

que a escola é um espaço que não foi feito para o aluno negro. Mediante essa inadequação,

esses estudantes são identificados como incapazes de aprender e acabam se tornando vítimas

da reprovação e, consequentemente, evasão. Quantas vezes vemos acontecer do aluno negro

deixar de frequentar a escola? Será que é por que a escola não faz o menor sentido para sua

vida?

Trabalhar a Pedagogia de Terreiro nas escolas é colocar o aluno negro como ator

protagonista do processo de aprendizagem, tomando este como referência, valorizando seus

saberes, como proposta no seu projeto político pedagógico. Ministrar o aprendizado da leitura

e escrita a partir de elementos construídos da cultura negra possibilita que os sujeitos recuperem

sua identidade. Trazer para a escola uma contextualização histórico-geográfica através do

acaçá, milho, banana, feijão fradinho, peixe, ovos, roupas, folhas, danças, mitologia, faz com

que haja a circulação de saberes (SANTOS, 2019, p. 43).

A tradição oral nos permite trabalhar ações coletivas procurando trazer à tona valores

ancestrais, nos quais o uso da palavra é gerador de compromisso firmado e uma ação moral,

uma vez que significa também expressão, acordo coletivo e respeito mútuo. Esse é o ponto de

partida para a ruptura do racismo estrutural e a base para a mudança comportamental em toda

estrutura preconceituosa e racista que irá ruir para dar espaço a uma nova forma de pensar e

agir.

Saberes e fazeres que reúnem sentimento, ritmo, dança, música, coletividade, troca,

espontaneidade, experiência, ancestralidade e muitas outras coisas são difíceis de

serem entendidos pelos recursos políticos da língua ocidental. Podemos afirmar sobre

a necessidade de sistematizar nossa pedagogia, mas também sobre a justaposição que

pode acontecer se não afirmarmos nosso legado “oral” (SANTOS, 2019, p.46).

Podemos afirmar que um dos princípios da Pedagogia de Terreiro é a tradição oral, que

potencializa os aprendizados ancestrais africanos e a melhor forma de se trabalhar a oralidade

nas escolas seria com rodas de conversas, por meio da contação de histórias, oficinas de

culinária, hortas, teatro, trabalhando elementos de música, dança e dramaturgia. Essas ações

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desencadeiam o estímulo sensorial do corpo e mente: audição, visão, faro, paladar, tato,

movimento, empatia e espírito de coletividade.

Por fim, acredito ser fundamental replicar a Pedagogia de Terreiro. Que os professores

participantes do curso que ministrei possam multiplicar essa metodologia em suas escolas e que

seus estudantes sejam também multiplicadores desses saberes. Mas como fazer isso? Não existe

receita pronta. Propor isso neste memorial seria cair no abismo do erro eurocêntrico de achar

que tenho nas mãos o poder de dizer que encontrei a solução para o combate ao racismo

estrutural.

O calendário escolar já foi discutido e nele consta a Semana da Consciência Negra, no

mês novembro, como algo obrigatório a se cumprir, mas ações transversais não são discutidas

entre pedagogas e professores para se trabalhar atitudes antirracistas no decorrer do ano, uma

vez que o racismo está presente em toda estrutura escolar.

Sei que tenho que apresentar um artefato final, mas como me propus a trabalhar

formação de professores por meio de novas metodologias, acredito que as ações devem ficar

sempre em aberto, móveis, passiveis, em devir, em transformação e abertas a novas discussões.

Como uma ruptura, uma ferida que não cicatriza, um novo percurso de um rio, um espaço onde

se possa enxergar o Outro e, mais que isso, sem ele não consigo ir além porque a coletividade

é necessária.

Apresento abaixo a proposta dos estudantes acerca de como trabalhar a Lei 10.639/2003

sob as bases metodológicas da Pedagogia de Terreiro. Pude observar nesta análise que, a

depender da proposta, tende a dar mais ênfase a um dos alicerces sustentadores a esta

pedagogia, o que não exclui os outros. Ora o recorte é maior para ancestralidade, memória,

pertencimento, ora para oralidade, história oral e mitologia, assim como outras propostas que

legam um recorte maior à coletividade, resistência e decolonização dos saberes.

3.7.2. Proposta de Andreia Silva Encarnação

A aluna Andreia é graduanda do curso de Licenciatura em História pela Universidade

do Estado da Bahia – UNEB Campus XVIII e atua como agente cultural no Espaço Cultural

Viola de Bolso. Ela traz a proposta: “O Aprendizado Escolar a partir da Lei 10.639/2003: um

olhar sobre a capoeira enquanto instrumento de resistência negra a partir do filme Besouro de

Daniel Tikhomiroff”. Ela vem problematizar a importância da Lei 10.639/2003, que trata da

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obrigatoriedade do ensino das relações étnico raciais nos currículos das escolas públicas, bem

como considerar sua relevância dentro dos conteúdos programáticos nas aulas de história por

meio do fazer pedagógico. Defende medidas voltadas para o reconhecimento e valorização da

educação dentro de uma perspectiva de inclusão e afirmação da identidade negra, por meio de

sua história e cultura.

Por mais que a cultura afro-brasileira venha reafirmando sua existência, ainda

perduram certas formas de pensar o negro como inferior na sociedade em geral; uma

sociedade que não reconhece os traços de sua própria cultura e ainda tenta camuflar a

existência da desigualdade étnico racial com o discurso da miscigenação

(FERREIRA; DUPRET, 2012, p. 29).

O discurso de ódio, a desvalorização das culturas de matriz africana e a demonização de

Exu nos faz pensar como a Lei está sendo trabalhada nas escolas, como os educadores pensam

metodologicamente a formação dos indivíduos e a forma de inseri-los numa sociedade que nega

o tempo todo o racismo, camuflado em brincadeiras preconceituosas.

A partir da Lei, o educador tem por finalidade implementar temáticas que visam a

compreensão acerca da cultura africana não mais a partir de uma relação de indivíduos passivos

em sua própria história, mas como sujeitos históricos ativos e construtores de estratégias de luta

e resistências.

Certamente o que se torna interessante a partir da promulgação da Lei é a percepção de

como a população negra é retratada nas escolas por meio dos livros didáticos, filmes e demais

suportes teóricos metodológicos ao longo do ensino, bem como ressaltar sobre a necessidade

de ressignificar os acontecimentos históricos que ao longo do período espaço-tempo esteve

pautada nos grandes atos de heróis eurocêntricos.

A Lei 10.639/2003 pressupõe-se novas maneiras do professor pensar a história das

relações étnico raciais por meio de novos temas e abordagens para além do livro didático, nesse

aspecto, deve-se considerar a importância dos recursos audiovisuais. Assim, o audiovisual é um

recurso que deve se fazer presente na operação historiográfica, o registro das imagens

propagadas deve ser usado como temas geradores de debates articulados com os conhecimentos

prévios obtidos a partir do olhar social dos estudantes.

Justifica-se assim o uso do filme Besouro, sob a direção de Daniel Tikhomiroff, e, como

ponto de partida, é importante compreender que uma das finalidades primordiais do audiovisual

é facilitar a percepção do indivíduo com o mundo em que o cerca por meio das experiências e

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71

reflexões que possam estabelecer a relação de alteridade do sujeito para com o presente e o

passado, partindo do princípio das suas múltiplas realidades.

É importante considerar que o audiovisual permite o aguçamento das percepções e do

equilíbrio entre visão e audição e contribui para o desenvolvimento do pensamento crítico dos

indivíduos. Desse modo, pode-se estabelecer de maneira dinâmica e criativa como instrumentos

de colaboração para o ensino de História em suas diversas vivências, seja nos aspectos

econômico, social, político, cultural. É necessário compreender que o filme, enquanto recurso

metodológico, necessita ser vinculado a uma proposta que seja eficaz, clara e objetiva.

Ainda sobre o filme, notoriamente o que se pode constatar é que a compreensão do que

é a capoeira passou por significativas mudanças, ora em determinado momento se concebeu

como um espaço de marginalizados, ora se ateve como uma prática de identidade cultural para

a formação da sociedade brasileira. Em tempos atuais, não foge ao conhecimento humano que

a mesma é considerada tanto uma prática de entretenimento e diversão, como também é um

trabalho que exige treino, rapidez e técnica, bem como:

A capoeira é uma manifestação cultural que tem característica de multiplicidade,

envolve luta, dança e jogo. “Dessa forma, mantém ligações com práticas de

sociedades tradicionais, nas quais não havia a separação das habilidades nas suas

celebrações, característica inerente à sociedade moderna” (BRASIL, 2008, p. 19).

Como toda aceitação é um processo de longa duração, por mais que a capoeira tenha

conseguido ganhar espaço e visibilidade em termos sociais, ainda é preciso que se dê passos

largos para que a mesma venha ser contemplada de maneira mais abrangente nos espaços do

cotidiano, uma vez que, enquanto representação simbólica, ocupa um lugar de destaque na

formação de identidades plurais.

Nesse caso, a capoeira pode ser analisada enquanto dispositivo agregador das

diferenças, além de contribuir para a afirmação da cultura afro-brasileira em seus múltiplos

aspectos, em termos nacionais, regionais e locais. Além disso, é fundamental sinalizar que o

ensino da capoeira fornece elementos históricos que caracterizam a luta e resistência, um dos

alicerces da Pedagogia de Terreiro, pois:

O ensino da Capoeira é um rico processo pedagógico que valoriza uma educação

libertadora e consciente. Durante o seu ensino serão discutidos elementos históricos

dessa manifestação cultural que a caracterizam enquanto luta pela libertação,

enquanto símbolo de resistência contra vários tipos de dominação, e também enquanto

espaço para o exercício da cidadania, de construção da identidade, autoestima e

autonomia por parte de seus praticantes (JUNIOR; ABIB; SOBRINHO, 2000).

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É importante destacar que, mesmo após a promulgação da Lei 10.639/2003, as temáticas

relacionadas às lutas dos movimentos negros, não são abordadas e discutidas de maneira

transversal no decorrer de todo ano escolar, restando-lhes a brecha de oportunidade na Semana

da Consciência Negra, que por vezes são trabalhadas com uma representação folclorizada e

estereotipada.

Os estudos voltados para a capoeira ou são escassos ou não existem, há uma dificuldade

de aceitação a respeito das tradições afro-brasileiras para se entender a formação da sociedade

brasileira, portanto, o objetivo é levar os sujeitos a compreenderem como a cultura de raízes

africanas faz parte do nosso cotidiano e da história do povo brasileiro, elencado a partir da

realidade social de cada indivíduo presente nos diversos ambientes.

Essa miscelânea cultural possibilita o diálogo com vários campos dos saberes-fazeres,

uma vez que a transdisciplinaridade enriquece o aprendizado. “A cultura brasileira que é

atravessada pela africana e precisa ser reconhecida e apreciada por todos, principalmente os

indivíduos ligados ou mesmo responsáveis pelo estabelecimento e desenvolvimento da

educação no país” (FERREIRA; DUPRET, 2012).

Andréia nos apresentou a introdução, os objetivos e justificou o porquê de trabalhar o

filme, conforme já explicado acima. Após explanação da sinopse, ela descreve o passo a passo

de seu trabalho metodológico, baseado nos alicerces da Pedagogia de Terreiro: “Ensinar e

Aprender através da Capoeira enquanto Símbolo de Resistência”.

De fato, a Lei proporciona uma tarefa muito importante, sabemos que o processo de

construção histórica nada mais é do que elencar uma cultura branca, elitista e que de

todas as formas tenta apagar a história de grandes povos e diversas culturas. No

entanto, trabalhar a Lei 10.639/2003 nos objetiva compreender que o Ensino de

História da África e das Culturas Africanas e Afro-Brasileiras é uma necessidade de

resgatar a identidade, problematizar os preconceitos e possibilitar novas

configurações das realidades plurais (ANDREIA ENCARNAÇÃO, participante do

curso, 2019).

No olhar de Andreia, ao pensar sobre a dimensão histórica da capoeira e sua importância

para o processo do ensinar-aprender em sala de aula, trabalha-se em diversos momentos/etapas:

● Primeiro momento - o docente começa a aula expositiva tendo como pano de fundo um

breve diálogo sobre a vinda dos povos africanos para o Brasil no período colonial,

considerando com suas práticas e hábitos culturais. “Junto com os africanos, aportaram

aqui no Brasil também sua rica cultura, que abrangia costumes, crenças, organização

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social, tradições, conhecimento e história; elementos enviesados pela religião de matriz

africana” (FERREIRA; DUPRET, 2012).

● Segundo momento - argumentar a respeito da capoeira enquanto um instrumento

cultural trazido pelos negros escravizados que vieram da África para o Brasil. Mas, o

que é a capoeira? O que ela representa? Após os conhecimentos prévios, o educador

poderá problematizar sobre a origem e a trajetória da capoeira enquanto luta e

resistência, para isso é necessária a utilização de textos para leitura em grupos, onde se

pode discutir sobre as origens da capoeira no Brasil.

● Terceiro momento – utiliza-se, então, a ferramenta metodológica audiovisual, com a

apresentação do filme Besouro, onde se pode refletir sobre tais questionamentos:

refletir sobre o lugar do negro e do branco a partir de um roteiro no qual os sujeitos

deverão analisar o figurino, as vestimentas, acessórios, a referência do culto aos deuses

africanos, a cultura, as expressões do corpo e também a fala de cada personagem, pois

o modo de expressão do diálogo do negro é diferente do branco. Isso, muitas vezes, é

colocado intencionalmente como forma de demonstrar a posição social dos sujeitos a

partir da roupa e da dialética, com isso, os estudantes deverão analisar o lugar social do

negro e do branco, levando em consideração o ambiente em que ocupa cada sujeito

envolvido no filme.

● Quarto momento - A reprodução fílmica também poderá fazer um paralelo com a

canção “Jogo de Angola”, de Clara Nunes, a qual faz referência à capoeira enquanto

luta e diversão e, por sua vez, o trabalho musical a diferencia do intelectual,

predominante no ambiente escolar, e provoca sensações diferentes daquelas que se tem

na escrita e na leitura. O professor terá como foco discutir a respeito da letra fazendo

uma comparação com o filme, a partir do seguinte trecho:

E a dança que era uma festa para o dono da terra Virou a principal defesa do negro na guerra Pelo que se chamou libertação. E por toda força coragem, rebeldia. Louvado será todo dia Esse povo cantar e lembrar o Jogo de Angola Na escravidão do Brasil.32

32 Canção: Jogo de Angola, Clara Nunes, 1978.

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74

A canção “Jogo de Angola” faz referência à adaptação da capoeira como espaço de

diversão, para um lugar de luta e resistência, nela podemos fazer alguns questionamentos em

sala, como: É possível fazer uma analogia que expressa a mesma opinião da canção? Quais os

atos de rebeldia praticados pelos jogadores de capoeira são presenciados no filme?

No filme, é possível identificar a capoeira como um ato de recreação, identificando em

que momento essa brincadeira se configura. A atividade poderá ser a elaboração de um texto

dissertativo e explicação do significado da capoeira enquanto resistência e sua importância para

a formação da identidade nacional, portanto é necessário compreender o seu papel social, além

dos conceitos que ela obtém como a história e cultura dos povos africanos. É crucial também

que os educadores tenham o conhecimento sobre a história afro-brasileira. Dessa forma, é

primordial que os saberes que vão além dos Griôs sobrevivam, garantindo a manutenção e

conservação da oralidade e memória das narrativas que correspondem à ancestralidade de povos

que aqui permaneceram reafirmando sua identidade étnica.

Podemos observar que a metodologia proposta por Andreia é atravessada pelos alicerces

de Pedagogia de Terreiro, uma vez que propõe nitidamente o uso da oralidade, da história oral,

da mitologia quando das discussões sobre o filme Besouro, que aborda sobre a ancestralidade,

memória e pertencimento. Estes são saberes que se misturam nos vários momentos propostos

pela aluna.

Nada mais justo que a Lei faça valer a obrigação de atuar como práticas pedagógicas

que desconstruam os preconceitos, que faça compreender a importância da Pedagogia

de Terreiro, e Exu nas escolas como valorização e respeito a outras religiões, em vista

que a história nada mais é que as narrativas do homem em seu tempo e espaço

(ANDREIA ENCARNAÇÃO, participante do curso, 2019).

Portanto, é preciso que haja uma relação direta entre Educador, Lei e Estado, firmando

um compromisso pelo qual a própria história seja capaz de fomentar, por meio da oralidade, da

memória, da identidade, sendo inegável suas presenças nos currículos.

Por fim, é necessário desfazer dos currículos o discurso desfasado que deslegitima a

cultura africana, eliminando o racismo, compreendendo a necessidade de fazer com que os

sujeitos sejam inseridos e respeitados em suas diferenças culturais.

3.7.3. Proposta de Sandro Leite Souza

Page 75: IGBÁBÒ: Uma práxis pedagógica exuriana

75

O aluno é graduado em História pela UNEB e faz pós graduação latu sensu em Educação

e Interculturalidade no Instituto Federal da Bahia - IFBA, Campus Porto Seguro. É professor

da Educação Básica no Colégio Estadual Eloyna Barradas e agente de saúde da prefeitura,

ambas instituições no município de Eunápolis - Bahia.

A proposta que Sandro traz é um plano de aula com o uso de filme como recurso didático

para decolonizar os saberes escolares. O tema é o racismo no ambiente escolar a partir do filme

“Vista minha pele”. É um curta-metragem de gênero ficcional educativo, com duração de 24

minutos, lançado em 2003 no Brasil, sob a direção de Joel Zito Araújo.

Sandro, por meio do curta-metragem, pretende compreender os mecanismos de

discriminação racial que afetam as crianças e jovens negros nos espaços educativos; discutir a

construção das relações raciais no Brasil; refletir acerca do papel da escola das representações

sociais positivas do segmento negro, bem como de sua história e cultura; e debater sobre os

preconceitos que ainda são presentes na sociedade brasileira para buscar suas raízes históricas.

O cinema, além de ser uma das grandes formas de arte, pode ser usado como um meio

educativo. Cada vez mais popular, transcendeu o lúdico e se fez presente em diferentes âmbitos,

como o acadêmico e na sala de aula. Nesse sentido, o filme é um importante recurso didático

que pode auxiliar o educador na hora de trabalhar conteúdos da temática africana e afro-

brasileira que se tornou, de maneira tardia, obrigatória no currículo escolar brasileiro.

O filme “Vista Minha Pele”, de direção de Joel Zito Araújo, conta uma história invertida

da realidade brasileira, na qual os negros são a classe dominante e os brancos são os dominados.

Os brancos foram os escravizados, os países europeus são subdesenvolvidos, enquanto os países

da África são desenvolvidos. Aborda, portanto, de forma invertida, propositalmente, uma

provocação para que faça brotar o espírito de empatia e coletividade em quem assiste o filme.

A escolha desse filme deu-se pelo fato de ter uma linguagem acessível, dialogar bem com a

realidade escolar, construir a inversão de situações e ainda guardar certo conteúdo de humor, o

que mantém os estudantes entretidos e atentos ao longo dos seus quase 24 minutos de duração,

aproximadamente.

A tratativa é sobre a questão do preconceito racial numa linha inversa para dar sentido

ao título. O autor trabalhou as duas “raças” (negros e bancos), como se uma vivesse a situação

de preconceito na pele da outra. As manifestações de preconceito refletidas são muito fortes

com relação aos brancos, numa demonstração do que realmente acontece em nossa sociedade

num sentido inverso. Por isso, Sandro propõe o uso do filme para debater estas questões na sala

de aula.

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76

Mais uma vez, o audiovisual é apresentado como recurso imbricado à proposta

metodológica de Pedagogia de Terreiro, uma vez que, após a apresentação, é feita a roda de

conversa para que as discussões comecem com a valorização da oralidade, pautadas nos

objetivos que Sandro apresenta, sob um olhar de defesa às práticas que conduzam à formação

do professor:

Assim, as reflexões desenvolvidas durante o curso pedagogia de terreiro denotam que

é preciso que haja uma formação continuada dos professores para que levem estas

práticas pedagógicas para sala de aula e que se conscientizem sobre o passado recente

de caráter colonizador. É fundamental para que se tenha uma humanização e

emancipação dos sujeitos oprimidos pela hegemonia epistêmica do sistema

educacional. Nesse sentido, não se pode pensar em uma decolonização das práticas

pedagógicas sem contemplar a formação continuada dos agentes diretos que estão à

frente no processo pedagógico (SANDRO SOUZA, participante do curso, 2019).

Deve-se levar em conta que para o professor conduzir a mediação dos debates, deve

estar imbuído de amplo arcabouço teórico de história afro-brasileira para fazer o caminho

invertido, relacionando-o ao tema do filme.

Sobre os métodos e procedimentos da ação, Sandro propõe:

● Apresentar o filme, contextualizando sua produção e o tema abordado;

● Os estudantes assistirem ao filme;

● Em roda, possibilitar que todos os estudantes possam expor suas percepções em relação

ao filme;

● O professor fará considerações acerca das teorias raciais engendradas no contexto

brasileiro, ou seja, abordará a ideologia da democracia racial e o ideal de

branqueamento.

● Após a contextualização o professor/mediador solicitará aos estudantes que tentem

identificar se e como a escola, retratada no filme, reproduz a ideologia do

branqueamento.

3.7.4. Proposta de Jéssica da Silva Soares

A aluna é graduada em Turismo, pela UNEB, e faz pós graduação latu sensu em

Educação, Cultura e Linguagens, no IFBA, atua no Espaço Cultural Viola de Bolso com

projetos culturais, oficinas periódicas de artes visuais e rodas de leituras e argumenta que as

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77

escolas são espaços de conhecimento, respeito e empatia, pelo menos é este o significado do

seu fundamento. No entanto, o contexto social transformou a escola em um dos espaços mais

oprimidos, omissos, de silenciamento, de torturas físicas e psicológicas.

O espaço escolar deveria ser o lugar de conforto e acolhimento, mas o seu modelo

eurocêntrico transforma a escola em um lugar de sofrimento. São muitos os estudantes

que relatam os episódios de ataques contra a cor da sua pele, seu cabelo e a sua

religião, especialmente de matriz africana, entre outros (JESSICA SOARES,

participante do curso, 2019).

Assim, observa-se que o espaço escolar não permite aos estudantes, o reconhecimento

de suas raízes culturais. Não permite que os estudantes iniciados no Candomblé utilizem fios

de conta e muito menos as vestimentas apropriadas para o seu resguardo. Muito além disso, o

modelo de escola eurocêntrica instalada no Brasil comporta educadores que não estão

preparados para defender os seus estudantes negros e de Terreiro dos ataques dos colegas

porque muitos desses educadores estão presos em padrões preconceituosos. Contudo, é possível

desenvolver um trabalho sob os moldes da Pedagogia de Terreiro, tratando-se de forma criativa

e lúdica, a fim de apresentar e conceituar elementos pertencentes à cultura afro-brasileira e, do

mesmo modo, desmistificar a imagem negativa atribuída aos orixás.

Nesta perspectiva, Jéssica aponta sua metodologia argumentando que é possível utilizar

a apresentação de imagens em power point de elementos da cultura afro-brasileira, sinalizando

a aparência dos elementos religiosos e sua ligação às histórias negadas dos povos africanos e

crioulos da época. “Histórias negadas ainda hoje! ” (JESSICA SOARES, participante do curso,

2019).

Como proposta pedagógica ela sugere a realização de rodas de conversa, por meio da

oralidade através do “Círculo de Cultura de Paulo Freire”, utilizado na pedagogia, sendo esta

uma importante estratégia de trabalhar as discussões. O desenvolvimento do trabalho com

aplicação do Círculo de Cultura requer um mediador para conduzir as dinâmicas em grupo,

baseadas em temas da comunidade. Nesta vivência, todos do grupo falam, pois valoriza-se a

construção coletiva do conhecimento, no qual os temas da realidade dos participantes, seu

universo vocabular e suas leituras de mundo são importantes na formação enquanto sujeitos

sociais críticos. O desenvolvimento do Círculo de Cultura consiste de três momentos:

a) A investigação temática, pela qual os componentes do círculo e o animador

buscam, no universo vocabular dos participantes e da sociedade onde eles(as) vivem,

as palavras e temas centrais de suas biografias; b) A tematização, mediante a qual

eles(as) codificam e decodificam esses temas; ambos buscam o seu significado social,

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78

tomando assim consciência do mundo vivido; e c) A problematização, por meio de

que eles(as) buscam superar a primeira visão mágica por uma visão crítica, partindo

para a transformação do contexto vivido (MONTEIRO; VIEIRA, 2010, p. 398).

O Círculo de cultura é uma dinâmica muito utilizada nas vivências da Pedagogia Griô,

que oportuniza aos participantes um diálogo empírico sobre temas da vida sociocultural,

econômica, ambiental, entre outros. A aplicação dessa dinâmica pode ocorrer após a

apresentação de filmes sobre temas relacionados à temática étnico racial.

Outra proposta, segundo vivências da própria Jéssica, é a de utilizar estratégia da pintura

temática, os estudantes podem desenhar e pintar as imagens dos elementos culturais. Ainda no

campo da produção visual, é possível realizar uma colagem sobre o papel com imagens de

orixás feitas de recortes de revistas e trabalhar a contação de história oral e mitológica.

A criação de histórias em quadrinhos sobre a intolerância religiosa e outros preconceitos

também é uma forma de despertar nos estudantes um sentimento de reconhecimento,

valorização, respeito e autoestima. Por fim, existem muitas estratégias no campo da arte para

se trabalhar a Pedagogia de Terreiro com estudantes de diferentes faixas etárias. Para isso, é

necessário que os educadores conheçam as propostas da Lei 10.639/2003 para compartilhar

com os seus estudantes, se despindo de preconceitos através de uma sólida formação antirracista

trabalhada no currículo, que precisa ser “preto” (JESSICA SOARES, participante do curso,

2019).

3.7.5. Proposta de Kezia Merlo

A aluna é graduada em História pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de

Colatina - FAFIC, ES. Fez suas pós graduações latu sensu em Gestão Educacional e em História

do Brasil na Faculdade de Nanuque - FANAN, MG. É professora na rede estadual de ensino da

Bahia, atuando no Ensino Médio no Colégio Estadual Professor Jairo Alves Pereira, em

Eunápolis, Bahia.

Deixei para apresentar a proposta da participante por último porque gostaria de ressaltar

que as sugestões anteriores podem ser trabalhadas de forma transversal no decorrer de todo ano

letivo escolar. O trabalho de Kezia é direcionado para os eventos que são realizados na Semana

da Consciência Negra ou Novembro Negro, exigido no calendário, pela Lei 10.639/2003.

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79

Kezia é idealizadora de um evento que acontece há vários anos neste espaço escolar,

com grande sucesso e me apresentou um projeto grande e estruturado que tentarei retratar aqui

momentos em que a Pedagogia de Terreiro os atravessa.

A proposta da Kezia tem como tema “África e Africanidades: cultura e memória na

construção da sociedade brasileira”, um evento que ocorre nos dias 20, 21 e 22 de novembro,

semana efetiva da data de comemoração ao Dia da Consciência Negra - 20 de novembro - nos

dois turnos, matutino e vespertino.

Considerando a Lei 10.639/03 que inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a

obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira" e no calendário escolar o dia

20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’ e, ainda, como efetivação da

proposta contida no Projeto Político Pedagógico do Colégio Estadual Professor Jairo Alves

Pereira, o projeto apresenta ações para reflexão e comemoração da identidade histórico-cultural.

Com isso, Kezia defende que os jovens e adolescentes brasileiros – e aqui estão inseridos

principalmente os estudantes do Ensino Médio – necessitam de intervenções que venham a

contribuir para a formação do cidadão crítico e principalmente transformador do espaço em que

está inserido. Os objetivos da proposta são:

● Resgatar e valorizar a identidade negra como um dos fatores da construção da cultura

brasileira;

● Entender a influência africana no Brasil na música, dança, arte, culinária, religiões e

linguagem e porque estes elementos são tão importantes na composição do panorama

cultural de nosso país;

● Discutir assuntos contemporâneos e pertinentes na sociedade brasileira como racismo,

intolerância religiosa e sistema de cotas, no sentido de compreender os processos

envolvidos em segundo plano, mostrando intervenções e mecanismos possíveis para

combatê-los.

Após a apresentação dos objetivos, o projeto detalha de forma pormenorizada um

calendário com os três dias de atividades para, em seguida, explicar a forma com que aos

estudantes serão avaliados, a decoração do evento e uma planilha de oficinas de palestrantes

convidados.

É no calendário das atividades propostas que Kezia apresenta sua metodologia que o

tempo todo é atravessada pelos alicerces da Pedagogia de Terreiro, como se verá a seguir.

Dia 20/11/2019

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Abertura do evento com a participação de palestrante convidado, que discorrerá sobre a

relevância do estudo da África e africanidades nos currículos escolares.

Roda de Conversa sobre a história e importância da capoeira, seguida de apresentação

cultural de roda de capoeira.

Atividades direcionadas com o professor-colaborador para as palestras temáticas, nos dois

últimos horários para o matutino e vespertino.

O primeiro saber epistêmico/base de Terreiro é a Oralidade. Um palestrante que venha

falar a jovens negros, no qual História Oral, Ancestralidade, Memória e Pertencimento para o

resgate de sua autoestima é o ponto de partida. No segundo momento é permitido que esse

jovem interaja, que tenha voz, com conversa e capoeira, que a coletividade seja trabalhada.

Igualmente ocorre no terceiro momento quanto às atividades desenvolvidas juntamente com o

professor-colaborador.

Dia 21/11/2019

Abertura do evento: um convidado que fará um diálogo sobre a temática do Projeto

juntamente com os professores de História, Geografia, Filosofia e Sociologia do turno

correspondente.

Os estudantes apresentarão, nas salas de aula, o resultado das pesquisas teóricas. As

apresentações seguirão a escala de rodízio, permitindo que todos tenham acesso às pesquisas

de outras turmas.

No primeiro momento, a Oralidade, a História Oral, a Ancestralidade, a Memória e o

sentimento de pertencimento estão sendo trabalhados pelo palestrante numa ação conjunta com

os professores da escola. Ação que será multiplicada no segundo momento, porque envolve

pesquisa por parte dos estudantes, planejamento na apresentação e o rodízio das turmas permite

que o conhecimento se propague.

É preciso ressaltar que é também neste segundo momento que há um aprofundamento

das temáticas e que conteúdos como intolerância religiosa e Candomblé são discutidos. É aí

que saberes, como a mitologia pode ser trabalhada por meio da culinária, também na literatura,

no cinema e no teatro.

Sobre as apresentações, seguirão as seguintes temáticas:

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Sociedades africanas, antes da invasão europeia: organização social, política e

econômica;

Escravidão em suas mais diversas formas dentro e fora de África;

Influência africana na formação sociocultural do Brasil;

Literatura Negra no Brasil;

Religião, Religiosidades e Intolerância religiosa;

Assuntos étnicos contemporâneos: Racismo, Cotas, papel do negro na mídia

brasileira, empoderamento da mulher negra.

Nas turmas de 1º Ano, serão trabalhadas as sociedades africanas antes da dominação

europeia, bem como sobre a escravidão dentro e fora do continente. Os estudantes irão

desenvolver um trabalho onde serão separados por grupos e terão que pesquisar, produzir

material de divulgação, material artístico para ornamentação e exposição relacionado ao

conteúdo que ficou dividido pelos seguintes assuntos:

Antigo Egito: sociedade e cultura/política e economia/religião/conhecimentos

matemáticos e astronômicos;

Reinos Africanos: destacar os aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais

dos seguintes reinos – Reino Iorubá/Reino do Benin/Reino do Congo/Gana/

Mali.

Cinema e História: Os filmes, documentários, séries ou animações escolhidas

deverão contemplar uma das temáticas indicadas: escravidão, racismo,

intolerância religiosa, empoderamento da mulher negra.

Nas turmas do 2º Ano serão abordados temas pertinentes à influência africana na

formação sociocultural do Brasil. As apresentações irão contemplar elementos que foram e são

de extrema importância para a formação da cultura nacional. Os estudantes podem se valer de

indumentária, comidas típicas, músicas, coreografias, exibição de vídeos, videoclipes. As

temáticas por sala ficaram divididas da seguinte forma:

Linguagem e Literatura: autores negros na literatura nacional; análise da

presença do negro na literatura brasileira; a “africanidade” de nosso idioma, por

meio da criação de um pequeno dicionário sobre termos africanos no português

do Brasil;

Gastronomia afro-baiana: acarajé, caruru da Bahia, o azeite de dendê como

elemento principal da culinária afro-baiana e pratos diversos desta;

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82

Música e Dança: O ritmo ijexá na MPB, o poder do axé music, o nascimento e

perpetuação do samba - permitidas apresentações de dança para todos os temas,

desde que precedidas de discussão teórica dentro do contexto que a apresentação

se pauta. Produção e apresentação por meio de exposição de instrumentos

musicais de origem africana;

Religião e Religiosidade: Candomblé, Umbanda, tambor de Mina - MA/

Batuque (RS).

Nas turmas de 3º Ano, os temas abordados tratarão das problemáticas e desafios étnicos

contemporâneos, tendo em vista que nestas turmas os estudantes estão aprendendo sobre a

história moderna e contemporânea do Brasil e da humanidade, observando que estes também

devem estar por dentro do mundo que os cerca por conta das possíveis temáticas de redação do

ENEM e outros vestibulares, entendendo, por sua vez, a grande relevância a discussão sobre

tais termas. Os estudantes irão desenvolver trabalhos para serem apresentados aos colegas,

professores e toda a comunidade externa visitante.

As temáticas por sala foram divididas da seguinte maneira:

Intolerância Religiosa;

Empoderamento da Mulher Negra;

Racismo.

Ficam abertos os métodos de apresentação: peça teatral, produção de documentário,

musical, apresentação de dança/coreografias, desde que estejam ligados ao tema de cada sala e

haja uma discussão prévia sobre o conteúdo abordado.

Na sexta-feira, dia 23/11/2019 serão realizadas as apresentações artístico-culturais. A

produção artística-cultural poderá ser individual ou em grupo e poderá ter um tema diferente da

pesquisa teórica realizada pela turma, desde que respeite a temática geral do projeto. A

apresentação poderá ser somente para sua turma ou no pátio para toda a escola, ficando o

professor-colaborador responsável pelo agendamento da apresentação.

Sugestões de Atividades Culturais a serem desenvolvidas pelos estudantes:

Desfile da Beleza Negra 2019 (Garoto e Garota Ébano 2019)

Os participantes deverão fazer uma pesquisa para caracterização de roupas e acessórios

voltados à temática africana, bem como fazer uma breve apresentação do caráter histórico de

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83

todo o simbolismo da construção da vestimenta e indumentária. Serão escolhidos por meio

de uma banca de jurados.

Apresentação de grupos de Capoeira

Evidenciando o esporte como vertente cultural de resistência ao longo da história do negro

no Brasil.

Apresentações de musicalidade, dança e coreografias

Relevantes ao tema da Consciência Negra, os estudantes apresentarão trabalhos que tratem

de musicalidade e/ou dança no dia anterior, podem reapresentar as partes coreografadas de

seus trabalhos.

Exposição de telas, fotografias, grafite, histórias em quadrinhos, poemas e teatro.

Apesar de não concordar com o uso de critérios avaliativos por acreditar que tal atitude

vem de uma postura curricular eurocêntrica engessada, o projeto de Kezia propõe, como forma

de incentivo da participação dos estudantes ao evento, com atribuição de pontuação. São eles:

Apresentação dos trabalhos: nas apresentações, os grupos deverão demonstrar domínio

do conteúdo abordado e clareza nas informações, bem como organização tanto do

trabalho, quanto do espaço em que vão apresentar. No caso de grupos com exposições

artísticas como danças, artesanatos, arte tribal africana e gastronomia, deverão trazer

folders, cartazes e informativos a serem entregues aos espectadores, bem como fazer

uma pequena apresentação teórica do tema abordado. Para os estudantes que irão

discutir problemas contemporâneos, além de domínio e clareza, é importante que se

mantenha a imparcialidade ao discutir determinados assuntos. Estes quesitos terão valor

total de 1 (um) ponto;

● Criatividade, originalidade e relevância com o tema central das apresentações culturais:

os estudantes deverão se valer de dotes artísticos e culturais para desenvolverem um

trabalho (dança, música, teatro, poema, telas, cerâmica, fotos, grafite, história em

quadrinhos etc.), tudo dentro da temática do Projeto Consciência Negra. Valor total: 1

(um) ponto.

Obviamente, a proposta de Kezia só tem condições de ser executada anualmente devido

à complexidade de sua organização, diferentemente das outras metodologias apresentadas

anteriormente por Andreia, Sandro e Jéssica, que podem ser trabalhados durante todo ano de

forma transversal. As ações atendem ao que diz a Lei 10.639/2003 que inclui no currículo

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oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira",

no calendário escolar o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’. Ainda

sobre as propostas apresentadas pelos estudantes, é preciso ressaltar que o aluno Flavio Prates

Cruz não entregou sua proposta.

3.7.6. Relato de Experiência dos Estudantes

Conforme consta no plano de ensino, no primeiro dia de encontro eu perguntei aos

estudantes qual era a experiência que eles tinham com a Lei 10.639/2003, como forma de relato

de pré-experiência. Ao final do curso, solicitei que fizessem o relato de pós-experiência,

digitado e filmado. Seguem abaixo pequenos recortes do que considero mais interessante nas

falas dos estudantes sobre as leituras que tiveram com as vivências do curso.

No curso experienciei o quanto é fantástica a Pedagogia de Terreiro, percebi a

necessidade que extrapõe a Lei 10.639/03, dando o lugar de fala aos povos que

trouxeram suas raízes e fizeram da historicidade dos fatos a mistura simbólica e étnica

para construção do Brasil [...] Cada encontro nos fez pensar acerca dos conflitos

existentes, discriminação, preconceito, e a Lei enquanto medida no processo de

afirmação política dos povos negros em seus movimentos de luta e resistência. Além

disso, foi bastante prazerosa a proposta de um curso diferenciado que a todo o

momento nos trouxe o quanto é importante e desafiador trabalhar as características

como: Exu nas escolas, a importância dos terreiros, dos rituais, das vestimentas,

acessórios, das cores, comidas, plantas, dos orixás, a cultura como um todo dentro das

suas especificidades, e a contribuição desse arsenal no processo identitário brasileiro.

Por fim, é preciso fortificar as culturas africanas levando conhecimento, informações

que desfaçam a ideia do bem e do mal. Que se criem e se mantenham grupos de

estudos que busquem novos ângulos para fomentar e desconstruir preconceitos raciais,

estéticos, éticos, e religiosos, em vista de trazer a sociedade o respeito as diferenças e

a valorização da história africana (ANDREIA ENCARNAÇÃO, participante do

curso, 2019).

Transgredir é uma das palavras chave para se pensar uma prática pedagógica a partir

de uma Pedagogia de Terreiro e dar autonomia para os sujeitos que aprendem e para

os que ensinam. É reconhecer a importância do outro e valorizá-lo por isso. Nós,

enquanto professores, estamos presos em um sistema de dominação econômica,

política, cultural e epistemológica, e precisamos reinventar nossa forma de dar aula,

necessitamos da criação de uma nova práxis pedagógica e que elas cheguem aos

docentes que já estão em sala de aula; e é esse o grande desafio que se impõe. É preciso

que haja uma formação continuada dos professores para que esses levem estas práticas

pedagógicas para sala de aula e que se conscientizem sobre o passado recente de

caráter colonizador. É fundamental para que se tenha uma humanização e

emancipação dos sujeitos oprimidos pela hegemonia epistêmica do sistema

educacional (SANDRO SOUZA, participante do curso, 2019).

O curso de extensão Pedagogia de Terreiro me permitiu compreender melhor como

funciona e como se aplica a pedagogia da oralidade trabalhada dentro dos terreiros de

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85

candomblé e principalmente como trazê-la para dentro do ambiente escolar. Ao longo

das aulas as experiências se mostraram cada vez mais enriquecedoras e

imprescindíveis para o aprendizado dos alunos e dos professores que com ela trabalha

ou dela se utiliza. O objetivo do curso foi preparar professores e membros da

comunidade civil para trabalhar com a Lei 10.639/03 de forma realmente eficaz dentro

da sala de aula, respeitando os costumes, a cultura, os hábitos e os conhecimentos

passados através da oralidade dentro das roças de candomblé, visando principalmente

o estreitamento entre o ambiente escolar convencional como conhecemos com o

ambiente de aprendizado por meio da oralidade que existe dentro das roças de

candomblé. Participar deste curso me fez perceber um mundo de possibilidades para

se trabalhar a história, a cultura, a língua e os dialetos, costumes e conhecimentos

tradicionais que só é possível conhecer através de estudos ou da participação dentro

de uma roça de candomblé. Trazer esses conhecimentos para a sala de aula nos

permitirá fazer com que os estudantes que compõem alguma comunidade afro se

sintam parte pertencente daquele ambiente e com que os demais conheçam e respeitem

as diferenças sociais, étnicas, culturais e religiosas dos demais (FLAVIO CRUZ,

participante do curso, 2019).

Esse curso formação de Pedagogia da Ancestralidade e Terreiro tem sido muito

importante para mim, para a minha formação enquanto mulher preta, estudante,

professora, agente cultural, isto é, enquanto pessoa. Essa formação me permitiu

construir uma bagagem de conhecimento sobre o candomblé, pois, tudo que eu sabia

era muito raso. Com essa formação eu conheci as dinâmicas das vestimentas, das

danças, dos rituais, dos alimentos, das canções. Eu pude entender sobre a fé, o

compromisso com a fé. Enquanto agente cultural, contudo, essa formação da

‘‘Pedagogia da Ancestralidade e Terreiro’’, me permitiu um conhecimento mais

aprofundado sobre o candomblé, me permitiu uma experiência muito significativa. É

lamentável que poucos educadores se interessem pela temática e são muitos que estão

presentes em sala de aula, com alunos negros e alunos pertencentes à religião do

candomblé. Ao falar do candomblé, eu acredito numa luta diária, muito antiga, jamais

vencida. É, sim, uma escola de significativa formação (JÉSSICA SOARES,

participante do curso, 2019).

Durante esse curso eu pude encontrar vários conhecimentos e debates, onde foi

relatado sobre ancestralidade, terreiro, oralidade, como as crianças adeptas do

candomblé sofrem preconceitos dentro do ambiente escolar, a gente pode observar

isso, que, de fato, existe intolerância religiosa nas escolas. Dentro do curso

aprendemos a tomar consciência sobre esse problema e reconhecer a riqueza que as

religiões de matriz africana têm para contribuir dentro do currículo da educação

formal. Trazer essa pedagogia de terreiro, trazer esse conhecimento e fazer com que

ele ganhe vida dentro das ações e das atividades que a gente realiza no dia a dia das

nossas escolas. Essa prática me inquietou muito, pois eu, enquanto educadora, procuro

trabalhar com os nossos alunos essa questão do respeito, do reconhecimento, dessas

religiões que existem na nossa cidade, para trabalhar a tolerância. E o curso me

possibilitou trazer ainda mais para minha prática, por meio da quebra de preconceitos,

buscando uma inserção real, porque a Lei em si não faz, quem realiza e realmente dá

vida a Lei somos nós, educadores de sala de aula. A proposta do curso foi muito boa

porque ela abriu o horizonte de inquietude e provocação. Esse ano eu inseri saberes

adquiridos no curso no projeto de Consciência Negra da escola, trabalhamos roda de

conversa, abordamos a religiosidade e intolerância religiosa (KEZIA MERLO,

participante do curso, 2019).

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86

4. O DOCUMENTÁRIO: Análise Fílmica – IGBÁBÒ (Resistência)

Por ser um método interpretativo que não possui uma fórmula a ser seguida, optei por

criar um caminho próprio e desenvolver categorizações para dar embasamento à análise que

compreende a narrativa do filme e a sua composição enquanto artefato final. É nesse caminho

próprio que preciso percorrer no sentido de expor os passos que tracei para realizar uma análise

da implantação da Pedagogia de Terreiro Exuriana. A ideia surge da dificuldade encontrada

para tecer os caminhos da análise fílmica, já que não há textos exclusivos que explicitem

exemplos de como a temática é empregada em determinadas pesquisas.

O documentário IGBÁBÒ (Resistência)33, é fruto de filmagens feitas do curso de

formação docente “Pedagogia da Ancestralidade e Terreiro: práticas antirracistas,

de(s)coloniais e a aplicabilidade da Lei 10.639/03”, que retrata os meandros dessa formação. A

escolha do nome representa a ideia das vivências do curso, que os saberes de terreiro aprendidos

e ensinados possam ser multiplicados pelos professores participantes do curso transformando a

realidade em que atuam, por isso é preciso resistir.

Destaco que, diante da ideia de trabalhar com uma educação exuriana e levar saberes

referenciados por essa pedagogia para espaços escolares, procurei meu mais velho, meu

sacerdote, Ifalola Eegungbade Akanmu, para que me aconselhasse sobre o nome para dar ao

título do documentário. Ele fez o mesmo caminho e procurou ao sacerdote dele. Um diálogo

foi estabelecido para que eu explicasse o objetivo da pesquisa e do documentário.

Não se chegava a um consenso quanto aos termos “educação às avessas” numa tradução

que pudesse dizer em iorubá o que eu queria dizer. Expliquei novamente meu objetivo, qual

seja, produzir uma educação que resistisse à sanha do pensamento único europeizante. Meu

interesse era o de colaborar na luta contra o racismo estruturado nas escolas. Uma vez que meu

oluwo entendeu o sentido do que eu queria dizer, que compreendeu o movimento às avessas e

espiralado ali presente, ele me disse, consultei o africano: é igbábò, é resistência!

Para realizar a análise fílmica, consideramos aspectos que se referem aos elementos da

linguagem audiovisual os quais dão forma ao produto. É preciso decompor os elementos

constitutivos do audiovisual para recomporem-se novamente, sob nova interpretação:

É despedaçar, descosturar, desunir, extrair, separar, destacar e denominar materiais

que não se percebem isoladamente “a olho nu”, pois se é tomado pela totalidade.

33 Link do documentário: https://www.youtube.com/watch?v=t8pQsy4mxPQ&t=655s.

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Parte-se, portanto, do texto fílmico para “desconstruí-lo” e obter um conjunto de

elementos distintos do próprio filme (VANOYE; GOLIOT- LÉTÉ, 2002, p.15).

O filme deve ser reconstruído, em seus planos e sequências, seus enquadramentos e

cenas, em seus ângulos e sons, porque somente pela compreensão dos elementos decompostos

se consegue fazer a interpretação. Esse processo de desconstrução/reconstrução audiovisual

“permite uma visão das partes em relação ao todo, o que faz a diferença na hora de analisar e

interpretar; no entanto, é preciso ter cuidado para que não se construa outro filme”

(MOMBELLI; TOMAIM, 2014, p. 3).

O documentário diz muito sobre seu realizador, principalmente sobre suas intenções

com a produção. O primeiro aspecto e ser observado é o áudio, com isso pode-se observar os

sons que compõem o filme, os momentos em que são ouvidos. Neste caso foi feito um

tratamento de ruídos ao fundo das cenas; o uso de áudio de algumas cenas foi sobreposto em

cima de outras; o uso de música de fundo que melhor pudesse exprimir o sentimento sobre cada

assunto abordado nas cenas de relatos e discussões.

O segundo aspecto a ser observado é o visual. Uma vez feitas as filmagens, iniciou-se a

fase de cortes, já que foram 30 horas de filmagens. Foi como cortar na carne, transformar essas

30 horas em um documentário que tenha em média 40 minutos. Foi preciso observar a posição

da câmera em relação ao objeto e pessoas filmadas. Era necessário que o pano de fundo, o

enquadramento, a proximidade ou distanciamento da câmera conseguissem transmitir uma boa

mensagem visual e se realmente se fazia entender, não havendo ruídos imagéticos dando

margem a interpretações outras.

A edição, neste momento, foi fundamental, e foi feito um trabalho de parceria com o

editor de imagens, que fez a leitura e discussão de meu memorial. Neste aspecto visual,

trabalhamos a arte para situar o espectador. Como dito anteriormente, a sobreposição de outros

áudios em cima de algumas cenas; a sobreposição de fotos em cima de algumas cenas; a

sobreposição de cenas em cima de outras cenas, para que melhor representassem a mensagem

a ser transmitida; janelas intermediárias padrão quando muda de um tema para outro para situar

o espectador; legendas, tratamento de imagem, efeitos visuais de transição entre as imagens,

dentre outros recursos.

O terceiro aspecto é o sentido ideológico, uma vez que a mensagem transmitida pelo

documentário tem como objetivo-fim transformar a realidade dos sujeitos que venham a assisti-

lo.

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Ainda, no que diz respeito aos métodos de análise fílmica, utilizamos a pesquisa

bibliográfica para a construção deste memorial, que foi instrumento imprescindível para

compreendermos as temáticas apresentadas no decorrer do filme, que estão imbricadas as

atividades produzidas no curso:

Quadro 1: Educação às avessas baseada no Movimento Espiralado de Exu: uma pedagogia

de terreiro decolonizadora Fonte: a própria autora.

Conforme apresentado no Quadro 1, o documentário retrata as atividades produzidas no

decorrer do curso de formação docente, no qual não há início nem fim, porque é envolvido no

movimento espiralado de Exu, que é dinâmico, uma vez que atividades decolonizadoras podem

levar à transformação da realidade escolar.

No curso ministrado, os temas propostos para que os saberes de terreiros pudessem ser

aprendidos/ensinados foram: Roda de conversa sobre Pedagogia de Terreiro Exuriana; visita a

Mãe Luziene de LogunEdé – o que é um Ilê; Oficina de Dança do Orixás no Ilê Asé Silé Iná

Tutun Omo Torrundê; Oficinas de Mitologia e Vestimenta, fechando com os Relatos Finais dos

estudantes participantes e sacerdotes do Candomblé.

Para situar o expectador em relação a cada um dos temas da Educação às avessas

baseada no movimento espiralado de Exu, o documentário apresenta, conforme o Quadro 2, um

recurso audiovisual ilustrativo de uma janela intermediária que traz o Orixá Exu em movimento,

vindo ao encontro do expectador, esvaindo-se num movimento espiralado de acordo com a

Pedagogia de Terreiro Exuriana

Mãe Luziene de LogunEdé

O que é um Ilê

Oficina de Dança

Ilê Asé

Silé Iná Tuntun Omo Torrundê

Oficinas de Mitologia e Vestimenta

Relatos Finais

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proposta do tema, formando a legenda do assunto a ser apresentado, com uma trilha sonora

padrão.

Quadro 2: Janela intermediária padrão:

Recurso audiovisual ilustrativo com a imagem de Exu, o movimento espiralado e a legenda. Fonte: a própria autora.

No documentário, há uma grande dependência de testemunhos na sua narrativa. Esse

uso massivo configura como lógica do fragmento, que nada mais é que, fracionar cenas do todo,

não contemplando a presença do inteiro. Assim, “o fragmento deixa-se ver pelo observador tal

como é, e não como um fruto de uma ação do sujeito”. O fragmento é um recorte, uma

reconstrução. Ao renunciar a pertença a um todo “o fragmento torna-se ele próprio sistema”,

compondo um novo inteiro (CALABRESE, 1987, p. 88-89).

A lógica do fragmento pode ser observada em vários momentos, principalmente nas

Oficinas de Mitologia e Vestimentas e nos Relatos Finais, nas quais os diálogos e contação de

histórias não são apresentados em sua versão integral, com início, meio e fim, mas sua

apresentação se dá por fragmentos sequenciados de cenas, onde a sua totalidade traz o

entendimento da mensagem que se quer transmitir.

O último aspecto de análise foi apoiar-se nos testemunhos das personagens por acreditar

que é necessário fazer ecoar as vozes através da oralidade, base da Pedagogia de Terreiro, diante

de dois grupos de vozes: os estudantes participantes do curso e os colaboradores. Sobre os

estudantes participantes foi primordial saber suas sensações por meio dos testemunhos sobre as

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vivências no curso; e quanto aos colaboradores, babalorixás e yalorixá, todos com legitimidade

de fala, foi fundamental que testemunhassem sobre suas experiências de vida no Candomblé.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por uma educação às avessas

O documentário “Igbábò” foi fruto de filmagens do curso de extensão para formação

de professores, através da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus Eunápolis, que

teve por objetivo trazer a Pedagogia de Terreiro Exuriana, e, por meio desta, decolonizar os

saberes. A ideia é que os professores participantes do curso se tornem multiplicadores e

repliquem a valorização desses saberes dentro dos espaços escolares, decolonizando e

enegrecendo o currículo, atravessado pelo axé. As discussões do curso se pautaram na tríade:

-Ancestralidade/memoria/pertencimento;

- Oralidade/história oral/mitos;

- Coletividade/resistência/decolonização dos saberes.

Para fugir dos muros da Universidade, as aulas do curso ocorreram:

- No Centro Cultural Viola de Bolso, com discussões de textos, oficina “Mitologia dos

Orixás”, Oficina de “Vestimenta”, e “Relatos Finais”.

- Visita ao barracão de Mãe Luziene de LogunEdé, sob a temática “ O que é um Ilê”;

- Visita ao Ilê Asé Silê Iná Tutun Omo Torrundê, com a “Oficina de Dança dos Orixás”.

É necessário enfatizar sobre o risco que uma categorização de trabalho traz, a

metodologia utilizada no curso não se reduz ao enquadramento proposto, está aberta e mostra-

se continuamente borrada, sem impedir que novas discussões sejam feitas, pelo contrário, são

bem vindas.

Durante o curso já era perceptível o quanto os saberes atravessavam os participantes.

Ideias borbulhantes emergiam, brotavam de suas bocas durante as discussões e o saber

circulava, enquanto colaboradora agi como um instrumento mediador, o conhecimento foi

circular, nunca vertical ou horizontal, aprendi mais do que ensinei e, principalmente, uma

explosão de novas propostas surgiram, o que fizemos foi um “ebó epistemológico”:

Tomo como efeito de um ebó epistemológico a presença de Exu encruzado no debate

educativo. À medida que Exu atravessa o debate, fundamentando uma pedagogia que

lhe é própria, emergem transformações que desmantelam completamente a

organização das estruturas dominantes [...] Toda e qualquer ação que mire a

transformação radical presume o conflito e o tem como potência [...] A noção de ebó

epistemológico vem a contribuir para enfatizar as questões dos conhecimentos como

parte também de uma problemática étnico-racial. De fato, existem instâncias dos

conhecimentos versados na esteira ocidental que não só negam, como também são

incapazes de pensar o mundo a partir de elementos assentes em outros modos de

racionalidade (RUFINO, 2018, p.80).

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Os participantes do curso apresentaram propostas que foram discutidas no decorrer do

curso, todas com possibilidade de realização. Duas já se concretizaram: o evento da participante

Kezia Merlo, na escola em que atua “África e Africanidades: cultura e memória na construção

da sociedade brasileira”, e o trabalho da participante Jéssica Soares no Espaço Cultural Viola

de Bolso, no qual ela trabalha com rodas de conversa e oralidade através do “círculo de cultura

de Paulo Freire”, a produção visual através de pintura temática, colagem sobre o papel com

imagens de orixás feitas de recortes de revistas, contação de história e mitos, criação de histórias

em quadrinhos sobre a racismo religioso para despertar nos estudantes um sentimento de

reconhecimento, valorização, respeito e autoestima.

Sobre o documentário Igbábò, que ele possa ter um grande alcance e possa ser visto por

muitas pessoas. Pelas redes sociais, através de palestras e aulas, que ele possa atravessar aos

olhos de quem assiste provocando uma transformação e ressignificação desse olhar. Que Exu

se encarregue de alargar os caminhos de contágio positivo e que a decolonização venha pela

educação às avessas. Que o filme tenha a função de material didático e sirva de inspiração para

futuros pesquisadores. Não descarto fazer uma edição em formato de série documental, para

diversas apresentações dentro de um curso de formação de professores, para provocar

discussões temáticas a cada nova aula.

Acredito que encontrarei diversas barreiras devido ao racismo religioso enraizado nas

almas de educadores “evangelizadores”. Não quero e não vou ter uma visão ingênua de achar

que conseguirei fazer com que sujeitos de crenças diferentes da minha (carregados de uma

bagagem pesada de preconceitos) assistam o filme, para esse público em especial, acredito que

terei mais êxito se trabalhar oficinas ministradas em curso de formação de professores. É um

desafio. Mais que ensinar a resistir – “Igbàbó”, é preciso ensinar para transgredir:

A academia não é o paraíso. Mas o aprendizado é um lugar onde o paraíso pode ser

criado. A sala de aula, com todas as suas limitações, continua sendo um ambiente de

possibilidades. Neste campo de possibilidades temos a oportunidade de trabalhar pela

liberdade, de exigir de nós e dos nossos camaradas uma abertura da mente e do

coração que nos permita encarar a realidade ao mesmo tempo em que, coletivamente,

imaginamos esquemas para cruzar fronteiras, para transgredir. Isso é a educação como

prática da liberdade (HOOKS, 2017, p. 273).

Sigo em frente numa atitude provocativa, a praticar os saberes de terreiro que aprendi,

plantando sementes, por acreditar que minhas ações atravessam e transformam o Outro, e que

essas sementes brotam num belo, florido e colorido jardim de conhecimentos decoloniais, em

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que a empatia é a base. Enxergar o Outro como um sujeito de amplas possibilidades, e que

somente numa ação coletiva poderemos transformar a realidade.

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