í=^'díj ;a J-c> 5 · o cordão de ouro da mãe não serviu para pagar a edição dos seus poemas...

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O que me custou foi tudo ter acabado como tinha começado como se nada se tivesse passado durante ora o que se passou durante ainda hoje me incomoda e portanto deve ter acontecido í=^'díj_;a J- c> 5 Tr ^ o POETA DE PONDICHÉRY ^ [l9cS6]

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O que me custoufoi tudo ter acabado

como tinha começado

como se nada se tivesse passadodurante

ora o que se passou duranteainda hoje me incomodaeportanto deve ter acontecido

í= '̂díj_;a J- c> 5

Tr

^ o POETA DE PONDICHÉRY ^

[l9cS6]

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Diderot (ou quem fala por ele cm Jaccjucs Ic Fataliste)recebe um jovem que escreve versos. Acha os versosmaus edi:/ ao jovem que ele há-de la/er sempie mausversos. Diderot preocupa-se com afortuna do maupoeta. Pergunta-lhe se tem pais eoque fazem. Ospais s.ão joalheiros. Aconselha-o apartir para Pondi-chéry eaenriquecer lá. Eaque sobretudo n.ão publique os versos. Doze anos mais tarde opoeta voltaaencontrar-se com Diderot. Enriqueceu em Pondi-chéry (juntou 100000 francos) econtinua aescrevermaus versos.

Porque 6que omau poeta deve ir para Pondichéry enão para outro lugar? Porque é que os seus pais saojoalheiros? Porque éque juntou 100 000 trancos? Eporque éque passou doze anos em Pondichéry? Nãosei explicar. Oque me atrai éprecisamente isto. Pon-dichéry, pais joalheiros, 100 000 francos, doze anos.

lO.l 1.1986

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Voltou de Pondichérv no meioJ

de sedas damascos diamantes e concubinas

o cordão de ouro da mãe

não serviu para pagara edição dos seus poemasmas para pagar a passagem

para Pondichéryonde veio a fazer fortuna

nenhuma musa teve a caridade

de gelar a tinta no seu tinteirotambém nunca lhe faltoti o pão com queijo branconem o papelcanto o papel para escrever poemascomo o papel de cartaescreveu cartas a Diderot

a que juntou poemasDiderot nunca lhe respondetino regresso recebeu-o com frieza

dei-lhe um conselho sensato

o que é c]ue queria mais?

a obstinação do poeta de Pondichéry

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em escrever poemas t]ue Dideror acha mausé como a de Sísifo

mas há uma diíerença

nos montes não há pedras boas e pedras máse nos livros há poemas bons e poemas mausas concubinas as sedas os damascos e os diamantesnão o consolam de escrever maus poemas

emenda muito os seus poemas

os papéis c[ue os herdeiros vão encontrardepois da sua morteparecem palimpsestosmas as emendas são como um eczema

sobre uma pele de que nunca se gostou

2.XI 1.1985

II

Para quê sacrificar mais uma página em branco?se ainda se escrevesse em peles de bezeiios

[recém-nascidos

atrevia-me a sacrificar bezerros recém-nascidos?

acho que sim

Vou dedicar todos os meus poemas a Diderotescrevo só A Denis

ele sabe c]ue é esse Deniseu também

as outras pessoas não

não há embaraços

Se não tivesse conhecido Diderot

dizia hoje coisas diferentes das que digo hojedevo-lhe ,1 minha fortuna e os meus desgostos

I

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Mercurocromo bofetadas café com leite ópiotoda Lima vida em vista de iim poemade L|Lie Ididerot não costa

9.XI 1.198 5

[36]

III

Parti para fazer fortunae para escrever poemas

V-IC Í-ZiL-ICIOl j 11 lOò

reli os poemas que escrevi em Pondichérynão gosto deles

de tudo o que escrevi em Pondichéryguardo um ou dois poemasesses poemas são a parte visível de um icebergde c|ue acho a parte submersa envergonhantee não ponho as mãos no fogo pela parte visíveluma metáfora que dura muito tempoleva a dizer disparates como esteLima metáfora permite aproximações mais

[vertiginosasdo que o bólide mter-galácticomas não deve durar muito tempopenso c|ue troquei diamantes por papelL]Lie agora rasgo sem furor

dediquei-me a um luxo que era um lixono cofre do tesouro em vez do tesouro

estava um ninho de víboras

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OLi cotão (qi-ic é mais desolador do qLic víbor.is)se escrevesse um poema sobre Diderotescrevia os teus ossos e os teus olhos

evito escrever

e VIVO como escrevo

26.XI 1.1 985

[38]

IIII

Tenho pelos metis poemasa ternura que a coruja tinha pelos íilhosmas nao tenho a sua cceucirci

D

porque sei que Diderot acha os meus poemas mausa coruja disse à águiapodes comer os passarinhos e]ue cjuiseresmas não comas os meus hlhos

os meus filhos são os passarinhos mais bonitosque encontrares na florestaa águia comeu os hlhos da corujacomi os teus hlhos porque eram leiosdisse a águia à corujaas comparações são muito perigosas

(como os diamantes)certas comparações valem fortunasnão vejo o que possa ser comer poemas

talvez lazer contas ou hieróglitos obscenosnos papéis onde estão os meus poemasnão vejo quem possa ser a águiaDiderot não é a águiamas Lima pessoa neste momento

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pode estar a hizer contas e hieróglifos obscenosnum dos meus poemasnão vejo uma águia a fazer contas e hieróglifos

[obscenosnos filhos de uma corujatalvez Walt Disney visse

29.XI 1.198 5

[40]

V

Em Pondichéry o poeta esteve quase a morrerfoi passear para ao pé de um templo em ruínase uma python começt a estranculá-Io

depois desistiue foi rastejar para as ruínas do templodurante o corpo a corpo com a pythono poeta lembrou-se de frasesque tinha ouvido ao longo do passeioolhe tem um sapato desapertadocuidado uma pythonos seus poemas não prestam

a frase de Diderot não a tinha ouvido

durante o passeiomas passava o tempo todo a ouvi-lanão queria que no dia seguinte dissessem delefoi o homem que foi estrangulado pela pythonporque gostava de pensar que depois da sua mortealguém (Diderot?) diria delefoi o homem que escreveu "As rosas de mármore"intrigava-o que a python tivesse desistido de o

[estrangular

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estava até envergonhadopara quê o aperto daqueles anéis medonhoscobertos de escamas e de baba amarela

se não tinha uma behscadura sequer?lembrava-se do aperto de mão seco de Diderotvoltou para o palácio com a roupa amarrotadanão disse nada a ninguém

O

escreveu um telegrama a Oídcrotmandei-lhe "As rosas de mármore '

por favor não as leiarasgue-as

D

reparei hoje que detesto esse poema

I.I .1986

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VI

Em Pondichéry tinha de pesar diamantes e satiraspara ter os livros de contas em ordempassa '̂a o dia sentado a, una a. mes.:iiluminada por umacom os vidros pintados de brancopara as pessoas de lora não veremos diamantes e as sahras

e assim não terem a tentação de roubar

os diamantes e as sahras

pesava e íazia contasmas não me saíam da cabeça versos

que se tornavam mais presentes do que a balançaeclipse nesse passo o Sol padeçasaura sinistro a alguns o astro baço

zahr pérola aver rubi diamantee eu que em Pondichéryvia tão bem os astros e as pedras preciosasparecia-me que via melhor os astros e as pedras

[preciosascjuando repetia esses versosdo que quando via os astros e ,is pedras preciosas

[43 I

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cnganava-me a pesar um diamanteporque quando dizia diamante diziamaravilhas em armas estremadas

Diderot tinha-me prevenidonão lei a versos

os versos podem ser perigosos como o logoleia romances policiais

j.l .1986

144]

VII

Tenho as gavetas cheias de papéis escritospoemas e cartas que não cheguei a mandar a Diderotos poemas escrevi-os num papel ba.ratonão sou capaz de escrever um poema num lequedepois do que Diderot me dissese quer ouvir dizer que os seus poemas são bonsprocure outra pessoa

há sempre cjuem diga de um poemac|ue ele é bompara ,i seguir lhe mostrar um poemae ouvir dizer que ele é bomconhece a expressão do ut des?cm espanhol também há uma expressão para issomas agora não me lembro

não mostrei os poemas a outra pessoa

nem eu próprio os leioporque tenho medoas cartas estão lechadas e tem selo

escrevi-as num papel nem muito caro nem muito[barato

para não constranger Diderot

1•m

ü1

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HLinca escrevi cartas de amor

mas costumo pensar que escrevi cartas ridículase por ter a m.inia de pôr o carro à írente dos boisacho que tod.is as cartas ridículas são cartas de amorespero que estes poemas e estas cartas

que não sei porc|uê guardonão vão parar a uma vitrine

espero e]ue vão parar às mãos dos trapeirosporcjue os trapeiros não são curiososjá vi um trapeiro acabar de roer um caroço de pêrosem pensar nos dentes e nos beiços que tinhamroído o c]ue faltava

6.1 .1986

|4fÇ

VIII

Soube hoje pelos jornais cjue Diderot morreunão vou ao enterro

nem irci mais tarde depositar floresno seu túmulo

c]uando ninguém estiver a olharde certo modo acho que devia ter sido elea anunciar-me a sua morte

não me admira que não o tenha feitonão me mandou Les Bijonx InJiscrctse eu estava em Paris

nem sec]uer estava em Pondichéryque vou fazer agora?posso escrever tudo e posso publicar tudopor isso escrever e piublicar dep>ois da morte de

[Dideroté-me indiferente

mesmo entre os braços das mais deliciosas huns de[Pondichéry

pensava em Diderotnão vale a pena pois procurar um bordel parisiensepara me consolar

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d,i morte de Dideror

e de escrever poemas de que Diderot não trostavapara mim o que Dideror me dissetem sido a ervilha debaixo dos cem édredons

que prova que a rapariga esfarrapada é urna princesaporque apesar dos cem édredonssente a ervilha

no meu caso não prova nada a ningUio criado que me abriu a portaquando Diderot me recebeunem se deve lembrar de mim

Diderot só me recebeu duas vezes

e ele recebia muita gentequando li a notícia no jornalpensei que não podia escrever mais nadamorreu o bicho acabou-se a peçonhamas agora não penso assim

talvez escreva um "Requiem por Diderot"ou "As deliciosas hiiris de Pondichéry "para quem? para Diderot claro

íU

9.1 .1986

|48t

IX

Os médicos disseram a um desmazelado

que ele la morrer

folgo muito por não me andara vestir e a despir todos os diasagora aqui no meu divã(tenho uma cama de dossel de damasco carmesimmas gosto mais de dormir

num divã de sumatima que trouxe de Pondichéryãpenso cjue sou esse desmazelac^onão porque esteja para morrermas porque Diderot morreu ontemnão me vou vestir de luto

não me vou vestir

vou andar de robe e de chinelos

e não ponho os meus anéisse o meu criado perguntar alguma coisadigo-lhe c|ue estou constipadocomo se a morte de Diderot e uma constipaçãofossem a mesma coisa

I l.l .1986

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Assaltaram a casa de Diderot

e tudo o c]ue levaram íoios meus poemas c as minhas cartasrecebi um bilhete anônimo

se ncão deixar um saquinho de veludo pretocom cinco diamantes sete satiras e doze rubis

no ossário das catacumbas de Paris

até ao meio-dia de hojeos seus poemas e as cartas que escreveu a Diderot

serão publicados nos jornais da tardedespejei gavetas à procura de veludo pretopara costurar à pressa o saquinhotive de pedir ao meu criadoque enhasse a agulha(disse-lhe que tinha de pregar um botão)piquei-me três vezes

não pedi ao meu criadoque costurasse ele o saquinho de veludo pretoporque ele é muito desconíiadoe o veludo preto muito suspeitonão íiii capaz de esperar por um fiacre

íui a p^é até às c.itacumbassentia-me tão inquietoa cumprir as instruções do chantagistacomc^ há mais de doze anos ac» bater à c<impainh;da casa chc Diderot

para lhe mostrar os meus poemascomprei todos os jornais da tardee liquei muito a.ln/ia.dopor ver que não traziam nada escrito por mimmas de noite tive um pesadeloengan,iva-me a contar os rubis

metia no saquinho de veludo preto treze rubise o chantagista publicava um postal ilustradoque eu escrevi a Diderot de Pondichérv

IZ.I .I9S6

1•m

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XI

A centena de mil írancos

que consegui juntar em Pondichéryperdi-a a jogar aos dadosnuma estalagemcom bancos pintados de verde(com bancos pintados de verde?como é hícil lazer versos!)

os maus versos as horas passadas a pesardiamantes rubis e sahras

a entrevista com Diderot

que ainda hoje me dói tantolevaram-me atinai cà miséria

posso vender os meus versosa um editor de livros escandalosos

porque é um escândalo ahrmardepois da morte de Diderotc|ue o poeta de Pondichéry perdeu toda a sua fortunae ptiblicou os seus versos

publicou até os seus versos para ganhar o seu pãocom queijo branco

]á pensei atirar ao Senaos meus versos

ou atirar-me eu próprio ao Senae deixar os meus versos na pontemas em c|ue ponte?

podia escolher uma ponte à sortepreferia pedir um conselho a Diderotsobre a pontenão sei sobreviver a Diderot

Diderot pouco se importava comigo

12.1 .1986

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XII

Dcixci crescer muiro a minha unha do indicador[direico

derpara po os meus poemas nas p

[da cela

porc|ue no asilo cande mc íecharamnão me dão tinca nem pape! para escreverescrevo durante a noite

porcjue durante o dia os asiladosque estão na cela comigoestão sempre a espiar-me

equando os outros se põem aolhar para mimdeixo de saber como me chamo

tenho saudades do meu quarto

no alto da torre de marhm

que mandei construir em Pondichérychamava o meu criado

com um sistema coinplicado de campainhasporque a torre tinha mil e sete degrauspensava que se Diderot Fosse a Pondicher^não podia deixar de me visitarmas Diderot ioi a Pondichéry

J

e não me visitoti

agora quando batem à porta da celapenso primeiro c|ue é Diderotc|ue me vem visitar

mas lembro-me de cjue Diderot morreue tico com medo de que seja alguémpara me cortar as unhas

13.1.1986