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Afro-Ásia ISSN: 0002-0591 [email protected] Universidade Federal da Bahia Brasil Bivar Marquese, Rafael de Ideologia imperial, poder patriarcal e o governo dos escravos nas Américas, c. 1660-1720 Afro-Ásia, núm. 31, 2004, pp. 39-82 Universidade Federal da Bahia Bahía, Brasil Disponible en: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=77003102 Cómo citar el artículo Número completo Más información del artículo Página de la revista en redalyc.org Sistema de Información Científica Red de Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal Proyecto académico sin fines de lucro, desarrollado bajo la iniciativa de acceso abierto

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Universidade Federal da Bahia

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Bivar Marquese, Rafael de

Ideologia imperial, poder patriarcal e o governo dos escravos nas Américas, c. 1660-1720

Afro-Ásia, núm. 31, 2004, pp. 39-82

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IDEOLOGIA IMPERIAL, PODER PATRIARCALE O GOVERNO DOS ESCRAVOS NAS AMÉRICAS,

c. 1660-1720

Rafael de Bivar Marquese*

O século XVII foi marcado por um grande reordenamento dos pode-res imperiais europeus no espaço atlântico. As monarquias ibéricas, queno século anterior haviam dominado de forma incontestável suas posses-sões no Novo Mundo, viram suas rivais do norte da Europa avançaremsobre seus territórios ultramarinos. De fato, a crise espanhola e portu-guesa abriu caminho para o estabelecimento de outras potências euro-péias no cenário americano, como Inglaterra, França e Holanda. Os es-panhóis abandonaram as pretensões sobre a costa atlântica da Américado Norte e perderam grande parte de suas possessões antilhanas; poroutro lado, com a crise irremediável do Estado da Índia, o Atlântico Sulse tornou o eixo do império português, mas, mesmo aí, somente a muitocusto os colonos luso-brasileiros conseguiram manter o domínio portu-guês contra as investidas holandesas. Como decorrência dessas altera-ções de fundo, os projetos imperiais de cada um desses poderes foramigualmente reavaliados.1

* Professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas daUniversidade de São Paulo (USP). Agradeço os comentários e sugestões de João José Reis, CarlosAlberto Zeron, Fábio Duarte Joly e Tâmis Parron.

1 Para uma visão de conjunto das alterações nas configurações dos poderes coloniais europeus, verImmanuel Wallerstein, The Modern World-System II. Mercantilism and the Consolidation of theEuropean World-Economy, 1600-1750, Nova York, Academic Press, 1980, e Ralph Davis, LaEuropa Atlántica. Desde los descubrimientos hasta la industrialización, México, Siglo XXI,1976. Para os projetos imperiais, ver Anthony Pagden, Señores de todo el mundo: ideologías del

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Tais transformações adquiriram contornos mais definidos na se-gunda metade do século XVII, em especial com o avanço da agriculturaescravista altamente capitalizada das Antilhas inglesas e francesas. Oarranque das colônias caribenhas de plantation trouxe profunda criseeconômica para a América portuguesa, que seria contornada apenas comas descobertas auríferas no interior de seu território em fins do século.De todo modo, tanto na América portuguesa como nas Antilhas inglesase francesas, houve um aprofundamento na dependência do trabalho es-cravo. Para todas essas regiões, o tráfico negreiro transatlântico se ace-lerou na segunda metade do Seiscentos, o que, por sua vez, estimulou oaumento da resistência escrava, expressa em eventos como a guerra dosPalmares, as fugas nas Antilhas francesas, as ações dos maroons naJamaica ou os levantes dos coromantes (akans) nesta ilha e em Barbados.2

Em grande parte como resposta à reordenação imperial e ao avan-ço da escravidão negra, entre as décadas de 1660 e 1720 apareceu noespaço atlântico uma série de escritos sobre o governo dos escravos nasplantations americanas. O tema da escravidão no Novo Mundo, é certo,havia atraído a atenção de teólogos, juristas e homens de letras europeusdesde o início do século XVI; porém, a discussão versara basicamentesobre a legitimidade do cativeiro, com o foco voltado para a questão daescravidão indígena.3 A literatura que surgiu após a segunda metade doSeiscentos teve caráter distinto, pois se concentrou no comportamentodos senhores diante dos escravos e não na legitimidade do cativeiro. Re-digidos por missionários dominicanos, jesuítas e anglicanos, esses textos– de Jean Baptiste Du Tertre, Histoire générale des Ant-iles habitéespar les François (Paris, 1667); de Morgan Godwyn, The Negro´s &

imperio en España, Inglaterra y Francia (en los siglos XVI, XVII y XVIII), Barcelona, Penínsu-la, 1997. Para o caso português, ver a obra coletiva editada por Francisco Bethencourt & KirtiChaudhuri, História da expansão portuguesa, Lisboa, Círculo de Leitores, 1998, especialmen-te vol. 2, “Do Índico ao Atlântico (1570-1697)”.

2 Novamente, para uma visão de conjunto, ver Robin Blackburn, The Making of New WorldSlavery: from the Baroque to the Modern, 1492-1800, Londres, Verso, 1997.

3 Anthony Pagden, The Fall of Natural Man: The American Indian and the Origins of ComparativeEthnology, Cambridge, Cambridge University Press, 1982; David Brion Davis, The Problem ofSlavery in Western Culture (1ªed: 1966), Nova York, Oxford University Press, 1988, em especialpp.167-96; Carlos Alberto Zeron, “La Compagnie de Jésus et l’institution de l’esclavage au Brésil:les justifications d’ordre historique, théologique et juridique, et leur intégration par une mémoirehistorique (XVIe-XVIIe siècles)”, Tese de Doutorado, Paris, EHESS, 1998, 2 vols.

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Indians Advocate (Londres, 1680); de Jorge Benci, Economia Cristãdos senhores no governo dos escravos (Roma, 1705); de André JoãoAntonil, Cultura e opulência do Brasil (Lisboa, 1711); de Jean BaptisteLabat, Nouveau voyage aux isles de l’Amérique (Paris, 1722) – recorre-ram às convenções intelectuais da literatura grega sobre a oikonomia,dos escritos romanos sobre agricultura e do discurso bíblico sobre asobrigações recíprocas para tratar das sociedades escravistas coloniais.

Essa série de textos sobre o governo dos escravos já foi bastanteutilizada pela historiografia da escravidão negra nas Américas, mas emuma chave de leitura que os isolou uns dos outros, atrelando-os exclusi-vamente aos marcos territoriais de seus respectivos impérios coloniais.Ademais, exceto alguns poucos trabalhos no campo da história intelec-tual, a historiografia quase sempre os encarou como meros depositáriosde informações para a história social e econômica. Sente-se, sobretudo,a falta de uma análise política desses documentos, que os integre conjun-tamente a um quadro atlântico.

A partir do exame desses discursos, o artigo procurará verificarcomo a reflexão de seus autores sobre a relação escravista se vinculou aum debate mais amplo sobre a estrutura de poder imperial, em um con-texto de tensão crescente entre Igreja e Estado, e de progressiva secula-rização do pensamento político e econômico. A hipótese é que essa refle-xão usou como parâmetro o ideal clássico de senhor patriarcal e cristão.Decorrente do poder que Deus conferira a Adão e confirmara no QuintoMandamento, esse ideal marcava a autoridade do senhor sobre seus de-pendentes (mulheres, filhos e escravos) em um conjunto de relações quepressupunha rígida hierarquia entre comandantes e comandados, mastambém uma série de obrigações recíprocas entre eles.

A formulação do ideal, contudo, ocorreu de modo orgânico apenasnos escritos voltados para a América portuguesa, da lavra dos jesuítasitalianos Jorge Benci e André João Antonil, e isso a despeito de os inacianosnegarem com veemência a tese protestante do patriarcalismo político.4

4 Sobre a crítica jesuítica à tese do patriarcalismo político, ver Quentin Skinner, As fundações dopensamento político moderno, São Paulo, Companhia das Letras, 1996, pp. 433-434. Nessa pas-sagem, é importante seguir a distinção que Gordon Schochet estabelece entre ideologia e pensa-mento político patriarcal: em suas palavras, “a forma mais importante assumida pelo pensamento

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Morgan Godwyn, um anglicano, foi quem mais se aproximou dos textosdos jesuítas radicados na América portuguesa, ao passo que osdominicanos franceses Jean Baptiste Du Tertre e Jean Baptiste Labatforam os que mais se afastaram. O artigo pretende demonstrar que essasdiferenças ajudam a esclarecer algo a respeito da dinâmica histórica dosimpérios português, inglês e francês, em especial de seus quadros ideoló-gicos.

Antilhas inglesas

Em meados do século XVII, os colonos de Barbados, cuja ocupaçãodatava da década de 1620, deram início – com o auxílio de comerciantesholandeses expulsos de Pernambuco – à rápida transição para a econo-mia açucareira de plantation, base para a posterior expansão do produtopor todo o Caribe inglês.5 O avanço da produção de açúcar em Barbados,nas décadas de 1650-60, ao exigir provimento constante de mão-de-obra,acelerou a substituição dos servos por contrato brancos pelos escravosnegros, o que adquiriu contornos mais nítidos nas décadas subseqüentes,especialmente nos anos oitenta. Se, em 1655, a população branca de

político patriarcal foi a justificativa da obediência ao Estado com base na premissa de que aautoridade política havia pertencido originalmente aos pais. [...] Essa teoria defendia as preten-sões do absolutismo de direito divino a partir do argumento de que a monarquia absoluta gozavada sanção divina, pois havia sido a forma de governo que Deus elegera ao criar o homem.” Já aideologia patriarcal implicava simplesmente no uso da imagem do pai como base para a defesada obediência, sem recorrer a um conjunto elaborado de princípios históricos e morais. Sendoassim, os oponentes da teoria política patriarcal – como era o caso de jesuítas e demais seguido-res do constitucionalismo da Segunda Escolástica, para os quais havia uma diferença de fundoentre poder político e poder doméstico – não viam problemas em criticá-la, mantendo ao mesmotempo a idéia de que na esfera doméstica os subordinados deviam obediência absoluta ao pai porconta do preceito divino. Ver Schochet, Patriarcalism in Political Though: The AuthoritarianFamily and Political Speculation and Attitudes Especially in Seventeenth-Century England,Nova York, Basic Books, 1975, pp.12-15.

5 Ver Robert C Batie, “Why Sugar? Economic Cycles and the Changing of Staples in the Englishand French Antilles, 1624-1654”, in Hilary Beckles e Verene Shepherd (orgs.) Caribbean SlaveSociety and Economy (Kingston-Jamaica/Londres, Ian Randle-James Currey Publishers, 1991),pp. 37-55; Hilary Beckles, A History of Barbados: From Amerindian Settlement to Nation-State, Cambridge, Cambridge University Press, 1991, pp. 20-23; Richard B. Sheridan, Sugarand Slavery: An Economic History of the British West Indies, 1623-1775 (1ªed: 1974), Kingston-Jamaica, Canoe Press, 1994, pp. 262-263; Richard S. Dunn, Sugar and Slaves: The Rise of thePlanter Class in the English West Indies, 1624-1713, Nova York, W.W.Norton & Company,1973, pp. 49-67.

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Barbados girava em torno de 23.000 pessoas, suplantando o número deescravos em 15%, em 1684 havia 46.602 escravos negros na ilha, contraum total de 19.568 brancos. Em linhas gerais, tal seria a configuraçãodemográfica posterior de todo o Caribe inglês e francês, com um enormedesequilíbrio entre o número de brancos e de escravos negros. Aliás, omodelo econômico e social estabelecido por Barbados nos anos 1650, cal-cado no predomínio completo da produção de açúcar com o emprego emlarga escala da mão-de-obra escrava, espalhou-se com relativo sucessopor todas as outras ilhas inglesas na segunda metade do século XVII.6

A alteração da estrutura demográfica e social das Antilhas inglesasabriu novas oportunidades para a resistência escrava. Em Barbados, SãoCristóvão e Nevis, houve nas décadas de 1650 e 1660 um aumento sensí-vel na quantidade de notícias acerca das atividades de escravos fugitivos.Na década seguinte, a resistência escrava ganhou novo alento em todo oCaribe inglês, com levantes abortados ou mesmo com a ação concreta derevoltas organizadas, sobretudo por parte dos cativos coromantes deBarbados e Jamaica.7 Nesta última, as revoltas escravas adquiriram umadimensão muito mais séria do que no restante das Antilhas inglesas. Nosdoze primeiros anos após a conquista da Jamaica pelas tropas de OliverCromwell (1655-1667), os colonos estiveram em constante luta contra osescravos fugitivos espanhóis, núcleo das futuras comunidades quilombolasda ilha. Uma vez estabelecida em bases sólidas a escravidão nas plantationsjamaicanas, os colonos ingleses sufocaram seis revoltas escravas de di-mensões consideráveis entre 1673 e 1694.8

Para lidar com o problema da resistência escrava, as assembléiascoloniais dos diversos núcleos ingleses do Novo Mundo elaboraram, desdeo início da década de 1660, um conjunto de leis destinadas a controlar osnegros. De acordo com a tradição inglesa do governo representativo, queconferiu grande autonomia às assembléias caribenhas e continentais, asleis coloniais deveriam refletir as prioridades e necessidades locais. No

6 A exceção mais notável aqui foi a Jamaica, que, a despeito de várias tentativas das autoridadescoloniais inglesas, só verificou uma expansão em sua indústria açucareira após 1713. Ver Dunn,Sugar and Slaves, pp.149-165, e Sheridan, Sugar and Slavery, pp. 209-222.

7 Michael Craton, Testing the Chains: Resistance to Slavery in the British West Indies.Ithaca,Cornell University Press, 1982, pp.108-110.

8 Dunn, Sugar and Slaves, p. 259.

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caso específico da legislação escravista, essa característica facultou àclasse senhorial a construção de um corpo de normas legais que expres-sou seus interesses imediatos concernentes ao controle dos escravos.9 Oponto de partida da legislação escravista inglesa foi o Barbados Act forthe better ordering and governing of Negroes (Ato de Barbados paramelhor ordenamento e governo dos negros), aprovado pela assembléiacolonial desta ilha em setembro de 1661 e cujo conteúdo seria copiadoou adaptado no final do século XVII em todas as outras colônias ingle-sas do Novo Mundo com uma grande quantidade de escravos. Tanto oAto de Barbados quanto as leis subseqüentes aprovadas nas demais co-lônias tinham o propósito básico de controlar a insurreição negra, repri-mindo e inculcando o medo nos escravos.10

O princípio elementar das leis escravistas coloniais inglesas era atotal autonomia que os senhores tinham para governar seus escravos.Poucas as obrigações dos senhores perante seus escravos fixadas pelasleis coloniais. No Ato de Barbados, por exemplo, não foi regulamentadoo quantum máximo de trabalho semanal dos escravos, o limite das puni-ções, a quantidade da ração dos escravos ou a obrigatoriedade decristianizá-los; o que estava escrito no documento era tão-somente queos senhores deveriam alimentar, vestir e acomodar os escravos conforme“os costumes do país”, costumes estes que não eram explicitados nasletras da lei, ficando sujeitos à livre interpretação de cada senhor. Oobjetivo básico das leis escravistas era controlar o escravo no espaçoexterno à plantation, salvo nos casos em que a resistência cativa dentrodas fazendas pudesse comprometer os pilares da ordem social escravista.11

9 Sobre a autonomia dos colonos ingleses na elaboração das leis coloniais e a importância dissopara a consolidação do sistema escravista no Caribe, ver Michael Craton, “Property and Propriety:Land Tenure and Slave Property in the Creation of a British West Indian plantocracy, 1612-1740”, in John Brewer e Susan Staves (orgs.), Early Modern Conceptions of Property (Lon-dres, Routledge, 1996), pp. 497-529, e Jonathan Bush, “The British Constitution and the Creationof American Slavery”, in Paul Finkelman (org), Slavery & The Law (Madison, Madison House,1997). Sobre o caso específico da legislação escravista, ver Elsa Goveia, “The West Indian SlaveLaws of the Eighteenth Century”, in Beckles e Shepherd (orgs) Caribbean Slave Society andEconomy, pp. 346-362.

10 Dunn, Sugar and Slaves, pp. 239-240; Winthrop Jordan, White over Black: American AttitudesToward the Negro, 1550-1812, Baltimore, Penguin, 1969, pp. 110-111.

11 Ver Beckles, A History of Barbados, p. 33; Dunn, Sugar and Slaves, pp. 239-240; Jordan,White over Black, pp. 108-109.

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Não há dúvida que o reverendo anglicano Morgan Godwyn tinhaem mente a estrutura jurídica das colônias e as tensões entre senhores eescravos quando, além de criticar a prática senhorial de não cristianizaros negros, propôs uma alternativa para o controle dos cativos que não sebaseava apenas no terror. Godwyn havia ministrado os ofícios anglicanosna Virgínia e em Barbados durante as décadas de 1660 e 1670; calcadonesta experiência, dedicou praticamente todo o seu livro The Negro’s &Indians Advocate, publicado em Londres em 1680, a questionar a posi-ção contrária dos senhores ingleses à cristianização de seus escravos, oque instaurava o grave problema de tornar a evangelização das popula-ções negras nas Américas um monopólio dos católicos.12

A origem deste problema, segundo o anglicano, repousava no com-portamento dos senhores ingleses estabelecidos nas Antilhas e no Conti-nente: os colonos não conheciam “nenhum outro Deus senão o Dinheiro,ou Religião senão o Lucro”. O principal argumento que os senhores apre-sentavam para oporem-se ao batismo dos escravos era o de que estaprática subvertia a ordem e, conseqüentemente, os interesses da classesenhorial. Entretanto, este não era o único argumento apresentado: odesconhecimento da língua inglesa e a inumanidade dos negros, que aca-bavam por transformá-los em animais irracionais, compunham as de-mais justificativas dos senhores para não batizar os escravos. No enten-der de Godwyn, a resposta dos anglicanos aos senhores deveria estarescorada em três premissas básicas:

1) Que os negros (escravos ou não) tenham naturalmente igualdireito aos demais homens do exercício e privilégios da reli-gião, dos quais em qualquer lugar é injusto privar-lhes. 2) Quea profissão do Cristianismo, obrigando inteiramente sua pro-moção, nenhuma dificuldade ou inconveniência, quão grandessejam, podem desculpar a negligência, muito menos o impedi-mento ou oposição, que é, de fato, pior do que a renúncia da-quela profissão. 3) Que as inconveniências aqui apresentadas

12 Morgan Godwyn, The Negro’s & Indians Advocate, Londres, Printed for the Author by F. D.,1680.Para uma análise detida da biografia e do pensamento de Godwyn a respeito da escravidão negra,ver Alden T. Vaughan, “Slaveholders’ ‘Hellish Principles’: A Seventeenth-Century Critique”, inRoots of American Racism: Essays on the Colonial Experience (Nova York, Oxford UniversityPress, 1995), cap. 3.

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para essa negligência, sendo examinadas, não são tantas assim,mas justamente o contrário.13

Partindo dessas premissas, o tratado foi dividido em quatro capí-tulos. O capítulo I procurou defender a assertiva inicial baseando-se emtrês proposições gerais: “Primeiro, que naturalmente existe em todoHomem um direito equivalente à Religião. Segundo, que os Negros sãoHomens, e portanto são investidos do mesmo Direito. Terceiro, que sen-do assim qualificados e investidos, negar a eles esse Direito é a maiordas injustiças”.14 Deste modo, argumentou Godwyn, as característicasespecíficas do homem que indicavam a sua profunda diferença em rela-ção aos outros animais eram a razão e a alma imortal, elementos que ohabilitavam para o conhecimento da verdadeira religião. O negro, sendoum ser racional e portador de uma alma imortal, teria o direito naturalaos privilégios da religião.

Todavia, a idéia defendida pelos senhores ingleses era exatamentea inumanidade dos negros e, por conseqüência, a impossibilidade decristianizá-los. Nisso os escravocratas do Caribe não estavam sozinhos:era prática corrente entre as classes proprietárias e os letrados inglesesdos séculos XVII e XVIII classificar negros, índios, irlandeses, os po-bres e em alguns casos extremos até as mulheres e as crianças comoanimais destituídos de razão e, portanto, inumanos.15 No caso dos pro-prietários do Novo Mundo, a comparação mais recorrente era a do negrocom o macaco. Para desmontar a lógica senhorial, Godwyn alinhavouuma série de provas, algumas das quais retiradas do próprio cotidianodas fazendas. Serviram de evidência para derrubar os postulados dossenhores as características físicas e a capacidade dos negros para rir,articular discurso, comercializar, ler e escrever. Como prova adicional,o anglicano lembrou a habilidade dos negros na administração dos negó-cios: afinal, muitos escravos eram designados para desempenhar fun-ções diretivas nas propriedades.16

13 Godwyn, The Negro’s & Indians Advocate, p. 7.14 Idem, p. 9.15 Ver, sobre esta questão, Keith Thomas, O homem e o mundo natural: mudanças de atitudes em

relação às plantas e aos animais (1500-1800), São Paulo, Companhia das Letras, 1996, pp. 49-53.16 Godwyn, The Negro’s & Indians Advocate, pp. 12-13.

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Igualmente infundado era o argumento (esgrimido pelos senhoresque não defendiam a idéia da inumanidade inata do africano e seus des-cendentes) de que o cativeiro retirava a humanidade do negro. Seguindoa tradição dos estóicos e dos fundadores do cristianismo (em especialSão Paulo e Santo Agostinho),17 Godwyn afirmou que apenas o corpopoderia ser escravizado, não a alma. Todos os bens produzidos pelo ca-tivo pertenceriam ao senhor; a alma, no entanto, seria propriedade únicae exclusiva do escravo, e prova maior de sua existência como ser huma-no. Além do mais, o fato de o cativo ser portador de uma alma imortalimplicava uma série de obrigações recíprocas entre ele e seu amo, todaselas estipuladas pelas Sagradas Escrituras. Como retribuição ao traba-lho do escravo, o senhor tinha a obrigação de bem tratá-lo e de auxiliá-lona salvação da alma, instruindo-o nos preceitos do cristianismo.18

Para os proprietários, a evangelização traria três grandes incon-veniências: 1ª) ela tornaria os escravos “menos governáveis”, a exemplodos rebeldes de 1642, movidos pelo combustível do puritanismo; 2ª) elatraria prejuízo para os senhores em relação à perda de tempo, pois o diaa ser utilizado nos serviços divinos, o domingo, era reservado para osescravos cultivarem as roças de subsistência; 3ª) os termos do cristianis-mo, sendo incompatíveis com a “condição do cativeiro”, solapariam asbases da ordem escravista.19 Os senhores de Barbados chegaram a de-fender publicamente tais pontos de vista: num parecer de 1680 aoCommittee of Trade and Plantations de Londres,

Eles declaram que a conversão de seus escravos não apenasdestruirá sua propriedade, mas também colocará em risco a se-gurança da ilha, pois à medida que os negros forem converti-dos, tornar-se-ão mais perversos e intratáveis do que os outros enão estarão mais aptos ao trabalho e à venda como os outros, esendo que há uma grande desproporção entre negros e brancos,esses últimos não têm outra segurança do que a diversidade delínguas daqueles, já que são provenientes de vários países. Ade-

17 Peter Garnsey, Ideas of Slavery from Aristotle to Augustine, Cambridge, Cambridge UniversityPress, 1996, pp. 66-72.

18 Godwyn, The Negro’s & Indians Advocate, pp. 20-79.19 Idem, pp. 124-125.

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mais, para torná-los cristãos, será necessário ensiná-los inglês,o que lhes dará a oportunidade e facilidade de reunirem-se con-tra seus senhores e destrui-los.20

A exortação de Godwyn ao bom tratamento e à cristianização dosescravos não se escorou apenas em argumentos religiosos. No capítuloIII, em resposta às objeções pragmáticas dos senhores ao batismo dosnegros, Godwyn apresentou os ganhos materiais que poderiam ser obti-dos com a cristianização dos cativos, procurando inverter ponto a pontoos óbices levantados pelos senhores. Sobre a primeira inconveniência,ao invés de tornar o escravo rebelde, o cristianismo o tornaria mais obe-diente. Nas palavras do anglicano,

O [cristianismo] professa absoluta e total obediência agovernantes e superiores, como pode ser extraído de várias pas-sagens das Escrituras; [...] Ele estabelece a autoridade dos se-nhores sobre seus servidores e escravos, em grande medida, comoeles próprios fariam; colocando-os, em uma devida proporção,em um não menor grau absoluto de poder do que o anterior.Exigindo a mais estrita lealdade, e isso a despeito de suas qua-lidades ou condições, mas devido ao seu natural e verdadeirodireito de autoridade sobre eles. Requerendo serviço com fran-queza de coração, como ao Senhor, e não como aos homens,Efésios, 6: 5,7.21

Nesse trecho, é nítida a ressonância que a teoria política patriar-cal corrente na Inglaterra da Restauração Stuart encontrou nas prescri-ções de Godwyn sobre o governo dos escravos: os subordinados (súdi-tos, familiares, dependentes, servos, escravos) deviam obediência a seussuperiores (rei, pai, senhor) por conta do primado da autoridade patriar-cal fixado na Bíblia. No caso específico da relação escravista, argumen-tou Godwyn, o batismo e as práticas religiosas, ao tornarem o escravodisciplinado, mais que compensariam os gastos envolvidos na sua con-versão: sendo doutrinado nos ofícios divinos dos domingos, no princípioda obediência aos poderosos, o cativo desempenharia suas tarefas ao

20 Apud Jordan, White over Black, p. 185.21 Godwyn, The Negro’s & Indians Advocate, p. 128.

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longo da semana sem questioná-las. Por fim, concluiu Godwyn, em hi-pótese alguma o batismo implicaria a obrigação de libertar o escravo: osexemplos do Velho e do Novo Testamento demonstravam a plena com-patibilidade entre religião cristã e escravidão.22

Como se pode observar, todo o esforço de Godwyn visava conci-liar a busca do lucro (razão de ser do sistema escravista montado pelosingleses nas colônias do Novo Mundo) com os preceitos da moralidadecristã em sua vertente anglicana. No modelo de comportamento por eleprescrito, que combinava as normas éticas de Cícero (De Officiis) comas premissas do cristianismo para a construção da imagem de um senhorpatriarcal, os proprietários escravistas não poderiam deixar a religião delado em nome do lucro: o objetivo do ganho material deveria necessari-amente ser acompanhado pela busca da honestidade e da justiça, ou seja,pela propagação da fé cristã. No entanto, como o foco do autor se voltouinteiramente para a conversão dos escravos, a normatização do compor-tamento senhorial em campos outros como os cuidados materiais, a dis-ciplina ou o trabalho dos cativos não chamou sua atenção. O ponto éimportante, em vista do que os jesuítas da América portuguesa escreve-riam com base nas mesmas convenções intelectuais.

A explicação para tanto reside no projeto imperial que Godwynesposou. A entrada tardia da Inglaterra no processo de colonização tevepeso decisivo na conformação de sua ideologia imperial. Na passagemdo século XVI para o XVII, o império espanhol, conjugando conquista econversão dos povos indígenas a exploração de metais preciosos, forne-ceu o modelo de expansão para os primeiros colonizadores ingleses. Osescritos de Richard Hakluyt e Samuel Purchas e as ações de WalterRaleigh na Guiana e John Smith na Virgínia tinham o objetivo expressode atrelar a busca de metais preciosos à expansão da fé protestante comomeio para refrear o poderio católico no Novo Mundo. O fracasso dessesplanos transformou profundamente o quadro ideológico do imperialismoinglês. Doravante, a riqueza das colônias deveria estar fundada exclusi-vamente em sua produção agrícola e em suas atividades comerciais; aomesmo tempo, os projetos de incorporação dos povos subjugados ao

22 Idem, pp. 135-145.

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protestantismo foram abandonados. Tomando de empréstimo o princípioromano do res nullius – as “coisas vazias”, incluindo terras desocupa-das, permanecem como propriedade comum de todos os homens até se-rem efetivamente usadas – para justificar o direito sobre suas colôniasnas Américas, os ideólogos do império inglês passaram a argumentarque apenas o trabalho do solo, isto é, a atividade agrícola mercantil,legitimava a posse do território e, nesse sentido, o argumento se ajustavade forma estreita ao caráter comercial adquirido pela expansão inglesana segunda metade do século XVII.23

Os temas da expansão da fé e da conversão do gentio indígena eafricano, enfim, não mais faziam parte do ideário imperial inglês quandoGodwyn compôs seu tratado. Seu propósito consistiu exatamente emrecuperar os projetos elaborados no final do século XVI e que haviamsido silenciados pelo sucesso econômico das colônias de plantation. Paracontrabalançar o peso crescente do catolicismo no Novo Mundo e incor-porar a população colonial às estruturas do poder imperial, eis o quedizia Godwyn, era fundamental evangelizar os povos subjugados pelosingleses, em especial os escravos negros. Diante da fraqueza da posiçãodos anglicanos nas colônias e para não ferir as suscetibilidades dos pro-prietários escravistas, Godwyn se concentrou apenas no tema da conver-são, deixando de lado a normatização completa do comportamento se-nhorial. Noutras palavras, seu modelo de senhor patriarcal não abarcoua totalidade da relação escravista. Porém, mesmo com tal cautelaprescritiva, seu plano foi derrotado. Até o final do século XVIII, todosos esforços para cristianizar os escravos nas colônias inglesas esbarra-ram no profundo descaso ou na oposição aberta dos proprietários.24

23 Anthony Pagden, “The Struggle for Legitimacy and the Image of Empire in the Atlantic to c.1700”,in Nicholas Canny (org.), The Oxford History of the British Empire, vol i: The Origins of Empire:British Overseas Enterprise to the Close of the Seventeenth Century (Oxford, Oxford UniversityPress, 1998), pp. 41-48; David Armitage, The Ideological Origins of the British Empire,Cambridge, Cambridge University Press, 2000.

24 Davis, The Problem of Slavery, pp. 215-216; Jordan, White over Black, pp. 180-210; MarcusW. Jenergan, “Slavery and Conversion in the American Colonies”, The American HistoricalReview, vol. 21, nº 3 (1916), pp. 504-27; Herbert Klein, “Anglicanism, Catholicism and theNegro Slave”, Comparative Studies in Society and History, vol. 8, nº 3 (1966), pp. 295-327.

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América portuguesa

Algo bastante distinto ocorreu no império português. Desde o século XVo desígnio imperial lusitano teve na evangelização do gentio um de seuselementos estruturantes. Com o início efetivo da colonização da Améri-ca portuguesa, em meados do Quinhentos, esse encargo foi assumidoprincipalmente pela recém-criada Companhia de Jesus, no que foi segui-da pelo clero secular e pelas demais ordens religiosas que se estabelece-ram posteriormente (beneditinos, franciscanos, carmelitas e capuchinos).Pode-se afirmar sem equívoco que, ao menos na América, o plano portu-guês de conversão dos povos dominados – indígenas e africanos – foibem-sucedido, ainda que profundamente marcado por práticassincréticas.25

Para os presentes fins, importa ressaltar que a América portugue-sa se tornou o campo de atuação por excelência dos jesuítas já no séculoXVI. Dentre as demais ordens religiosas européias aqui presentes, osinacianos se notabilizaram por pautar sua ação de acordo com um planonitidamente missionário, imbuído do espírito da Reforma tridentina.Qualquer que fosse o objeto das atenções dos jesuítas no Brasil, o cará-ter missionário ficava por demais evidente, revelando um projeto de tute-la que pretendia abarcar todos os grupos humanos envolvidos no proces-so de colonização: população branca, índios cativos e livres, africanos eseus descendentes escravizados ou libertos. No caso das pregações paraos colonos brancos do litoral, por exemplo, o que estava em jogo eralevar a verdade de Cristo aos que corriam o risco de se afastar dela; paraíndios e negros, o propósito era integrá-los – ainda que em posição su-bordinada – à comunidade católica.

Todavia, se os jesuítas estavam radicados nos principais núcleoscoloniais da América portuguesa desde o século XVI, por que somente

25 Para uma síntese da política religiosa portuguesa, ver os trabalhos de Eduardo Hoornaert, “AIgreja Católica no Brasil Colonial”, in Leslie Bethell (org.), História da América Latina, vol. i:América Latina: Colônia (São Paulo, EDUSP-Fundação Alexandre de Gusmão, 1997), e CaioBoschi, “O enquadramento religioso”, in Bethencourt & Chaudhuri (orgs.), História da expan-são portuguesa, vol. 2, pp. 387-455. Sobre as práticas sincréticas de índios e africanos, ver,respectivamente, os trabalhos recentes de Ronaldo Vainfas, A heresia dos índios: catolicismo erebeldia no Brasil colonial, São Paulo, Companhia das Letras, 1995, e Marina de Mello eSouza, Reis negros no Brasil escravista: história da Festa de Coroação de Rei Congo, BeloHorizonte, EDUFMG, 2002.

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no início do século XVIII examinaram o tema do governo dos escravosem tratados como os de Jorge Benci e André João Antonil? De fato, ostextos redigidos anteriormente pelos inacianos – mesmo os que não sevoltaram à publicação – não haviam abordado o assunto, a despeito de aCompanhia ter várias propriedades rurais operadas por escravos e dotema da escravidão ter sido bastante discutido por seus membros.26 Aresposta para a pergunta, creio, deve ser buscada nas modificaçõesverificadas no contexto colonial e na própria situação da Companhia deJesus dentro do império ultramarino português.

O final do século XVII foi um período de aguçamento das tensõessociais no litoral açucareiro da América portuguesa, sobretudo as quepolarizavam senhores e escravos. Ainda que não se encontrasse em peri-go, a instituição do cativeiro na costa nordeste foi, na segunda metade doséculo XVII, abalada pela erupção de diversos atos de resistência escra-va, notadamente Palmares. O exemplo dos palmarinos acentuou o temordas autoridades luso-brasileiras a respeito das manifestações de contes-tação à ordem escravista, em especial a formação de novas comunidadesquilombolas. Em Pernambuco, por exemplo, o receio dos “holandeses deoutra cor”, nos dizeres de um governador colonial, desdobrou-se nummedo dos mocambos que se espalhavam por toda a zona da matacanavieira e que viviam da pilhagem dos lavradores e viajantes.27

A resistência escrava foi um dos elementos que motivou osurgimento de novidades na legislação lusa a respeito dos quilombos eda escravidão negra. A tradição legislativa portuguesa sobre a escravi-dão negra, composta desde o início da expansão ultramarina, não levoua uma codificação tal como a que ocorreu para o império francês. Aslinhas gerais estipuladas pelas Ordenações Manuelinas e Filipinas nãoregulavam de forma explícita a posse e o domínio senhorial sobre osescravos, indicando apenas os fundamentos que legitimavam o cativeiro

26 Sobre a discussão do problema da escravidão dentro da ordem, ver, além do trabalho citado deZeron, “La Compagnie de Jesus”, o livro de José Eisenberg, As missões jesuíticas e o pensa-mento político moderno: encontros culturais, aventuras teóricas, Belo Horizonte, EDUFMG,2000. Sobre as propriedades da Companhia, ver Paulo de Assunção, Negócios jesuíticos: ocotidiano da administração dos bens divinos, São Paulo, EDUSP, 2004.

27 Evaldo Cabral de Mello, A Fronda dos Mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco,1666-1715, São Paulo, Companhia das Letras, 1995, pp. 92-93.

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negro. Por sua vez, a legislação complementar às Ordenações cuidavabasicamente do fluxo do comércio negreiro e das receitas régias por elegeradas. Durante o governo de D. Pedro II (1667-1706), no entanto,houve uma modificação sensível nessa tradição. Ao lado de documentosconcebidos especificamente para combater os palmarinos, D. Pedro eseus representantes elaboraram, a partir de 1688, disposições legislativasque buscavam coibir os abusos senhoriais no trato dos escravos, enten-didos como uma das principais razões que levavam os cativos à fuga.28

Nesse quadro de aguçamento das tensões escravistas no espaçocolonial açucareiro, os jesuítas radicados no Brasil também passavampor um período turbulento. Em todo o império, a Companhia de Jesusvinha sendo duramente questionada pelo fato de possuir vastas proprie-dades (rurais e urbanas) e ao mesmo tempo estar isenta do pagamentodos dízimos. Desde a década de 1650, as câmaras municipais da Bahia edo Rio de Janeiro encaminharam petições contra os privilégios dosinacianos. Os colonos do Estado do Maranhão criticavam o uso que osjesuítas faziam dos índios que, segundo eles, contradizia a defesa daliberdade indígena feita pela Companhia. E, na década de 1690, a pró-pria Coroa ressoou tais clamores, ao tentar forçar a ordem a pagar osdízimos. O conjunto desses ataques à Companhia nada mais era do queuma expressão da perda de espaço dos jesuítas nas sociedades metropo-litana e colonial.29

É este o contexto que ajuda a compreender a gestação dos projetosjesuíticos para guiar a cristandade colonial e, particularmente, paranormatizar o governo dos escravos. Tendo por pano de fundo o proble-ma da revolta escrava e a legislação do reinado de D. Pedro II, os trata-

28 Veja-se, a respeito, a coleção de documentos editada por Silvia Hunold Lara, Legislação sobreescravos africanos na América portuguesa. In Nuevas aportaciones a la historia juridica deIberoamerica, Madri, Fundación Histórica Tavera-Digibis-Fundación Hernando de Laramendi,2000 (Cd-Rom), em especial sua introdução. Sobre a legislação setecentista acerca dos quilombosbrasileiros, ver, da mesma autora, o artigo “Do singular ao plural: Palmares, capitães-do-mato e ogoverno dos escravos”, in João José Reis e Flávio dos Santos Gomes (orgs), Liberdade por um fio:história dos quilombos no Brasil (São Paulo, Companhia das Letras, 1996), pp. 81-109.

29 Ver Dauril Alden, The Making of an Enterprise: The Society of Jesus in Portugal, its Empireand Beyond, 1540-1750, Stanford, Stanford University Press, 1996, pp. 439-460, 601-603;Luiz Koshiba, A honra e a cobiça: estudo sobre a origem da colonização, Tese de Doutorado,FFLCH/USP, 1988, p. 270.

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dos e sermões jesuíticos de fins do século XVII e inícios do XVIII, emespecial os de Benci e Antonil, procuraram responder aos ataques doscolonos apontando as falhas e os erros dos senhores escravistas luso-brasileiros no comando de seus cativos.30 A mensagem básica dos textosinacianos era a de que os proprietários da América portuguesa eramincapazes de governar corretamente seus escravos, pois haviam se afas-tado dos preceitos da moralidade católica.

De início, cabe examinar o livro de Jorge Benci, redigido na Cida-de da Bahia em forma de sermão em 1700, e impresso em Roma em1705. Dirigido tanto aos proprietários quanto aos não-proprietários deescravos, o livro era composto por uma introdução e quatro discursos.Na introdução, Benci expôs a idéia de que a origem da instituição docativeiro humano tinha raízes no pecado original. Com a rebelião dohomem contra Deus, seu criador, as paixões humanas deram origem aguerras e dissensões intermináveis. O cativeiro surgiu como forma depreservar a vida dos vencidos, que passavam assim ao “domínio e se-nhorio perpétuo” dos vencedores. “Sendo pois o senhorio filho do peca-do”, indagou Benci, “que maravilha é que nasçam dele culpas e resultemofensas de Deus, pelas sem-razões, injustiças, rigores e tiranias, que pra-ticam os senhores contra os servos?” Para obstar as culpas e ofensascometidas pelos senhores contra Deus é que Benci elaborou sua Econo-mia Cristã dos senhores no governo dos escravos, definida como a “re-gra, norma e modelo, por onde se devem governar os senhores Cristãospara satisfazerem a obrigação de verdadeiros senhores.”31

O fundamento da Economia Cristã residiu nos deveres recíprocosentre senhores e escravos, pois “assim como o servo está obrigado aosenhor, assim o senhor está obrigado ao servo”. Quais eram as obriga-

30 A conexão entre o tema da revolta escrava e o aparecimento dos textos jesuíticos sobre a escravi-dão negra no final do século XVII foi salientada por Ronaldo Vainfas no livro Ideologia e escra-vidão: os letrados e a sociedade escravista no Brasil colonial, Petrópolis, Vozes, 1986, pp. 84-91, e no artigo “Deus contra Palmares – representações senhoriais e idéias jesuíticas”, in Reis &Gomes (orgs), Liberdade por um fio, pp .60-80.

31 Jorge Benci, Economia cristã dos senhores no governo dos escravos (1700), São Paulo, Grijalbo,1977, pp. 49-50. A exposição e análise dos livros de Benci e Antonil efetuada doravante sebaseiam, em larga medida, em um outro trabalho meu. Ver Rafael de Bivar Marquese, Adminis-tração & escravidão: idéias sobre a gestão da agricultura escravista brasileira, São Paulo,Hucitec, 1999, pp. 57-85.

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ções que os senhores deviam aos escravos? A resposta, segundo Benci,havia sido fornecida pelo Espírito Santo no Eclesiástico e pela razãonatural na obra de Aristóteles. Noutros termos, Benci compôs seus dis-cursos calcado tanto numa conhecida passagem do Eclesiástico (33: 25-33), como nos Oikonomika atribuídos a Aristóteles. Para o jesuíta, am-bos os textos traziam o mesmo conjunto de prescrições, sob as luzes dosagrado e do profano, respectivamente, e tratavam do governo dos es-cravos no que se refere ao sustento, castigo e trabalho. O conteúdo daEconomia Cristã seguiu de perto este receituário: o primeiro discursocuidava do provimento do pão material, o segundo do doutrinamentoreligioso, o terceiro da administração dos castigos e o quarto do trabalhodos escravos.

Assim, segundo a fórmula bíblica panis, ne succumbat, a primei-ra obrigação dos senhores era a de fornecer pão aos cativos, para queeles não desfalecessem. O pão, neste caso, desdobrava-se no sustento,no vestido e nos cuidados nas enfermidades que os senhores deviam aosescravos. A prática usual dos proprietários luso-brasileiros de não dar osustento suficiente aos negros, ainda que criticada por Benci, poderia serobviada, de acordo com ele, se fosse concedido tempo aos escravos paragranjearem seus mantimentos. Entretanto, pecado grave era o de facul-tar aos escravos tempo para as roças autônomas apenas nos domingos edias santos. Como norma sobre a alimentação dos escravos, Benci pres-creveu que os proprietários, ou dessem o sustento condizente, ou conce-dessem alguns dias na semana – excetuando-se domingos e dias santos –para os cultivos das roças próprias dos cativos.32

O mesmo sentido de normatização do comportamento senhorialesteve presente em relação às vestimentas e aos cuidados nas enfermida-des. Sobre o primeiro ponto, o senhor deveria fornecer vestimentas cris-tãs que impedissem os escravos de andar “indecentemente vestidos”. Sobreo segundo ponto, o costume dos proprietários brasileiros de abandonarseus cativos enfermos foi severamente repreendido por Benci: o escravo,tendo por único bem natural a saúde, merecia, mais do que qualqueroutro enfermo, a piedade cristã. O uso corrente dos senhores luso-brasi-

32 Benci, Economia Cristã, p. 58.

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leiro nessa matéria, todavia, além de condená-los inelutavelmente ao In-ferno no dia do Juízo Final, estava trazendo, segundo Benci, a puniçãodivina em vida, como comprovavam as invasões holandesas.33

O método adotado por Benci no primeiro discurso foi seguido nosoutros três, ou seja, ao lado da crítica às práticas senhoriais, a elaboraçãode regras que as substituíssem. Deste modo, no segundo discurso, em quecuidou da doutrinação cristã dos escravos, Benci expôs a necessidade deos senhores se preocuparem com o provimento do pão espiritual. Esteconsistia basicamente no receituário da Reforma Tridentina, a saber, ainstrução na doutrina cristã, a observação dos sacramentos e o bom exem-plo da vida. A instrução religiosa dos negros era responsabilidade não sódos párocos, mas também dos senhores. Os dois argumentos utilizadospelos últimos como justificativa para não instruírem seus escravos eram,de acordo com o autor, carentes de fundamentação: por um lado, o argu-mento da boçalidade dos escravos não chegava a configurar um obstáculointransponível para instruí-los na religião cristã; por outro, a autoridadedos proprietários não diminuía pelo fato de serem responsáveis pela dou-trinação dos cativos. Em relação aos sacramentos, o que mais chamou aatenção de Benci foi o problema do casamento: conforme o DireitoCanônico, os senhores não podiam impedir nem dissolver o matrimôniodos servos, vendendo-os separadamente. Por fim, o comportamento exem-plar dos senhores seria a melhor forma de doutrinar corretamente os escra-vos no catolicismo romano, visto que as ações, e não as palavras, é queconstituíam o melhor modo de instruí-los nos ensinamentos da Igreja: nostermos de Benci, “os senhores, que querem persuadir aos escravos a exataobservância dos preceitos divinos, devem viver de sorte que vejam neles osmesmos escravos um exemplo e retrato de verdadeiro cristão.” 34

O terceiro discurso da Economia Cristã versou sobre as normascorretas para a aplicação dos castigos. Dado o caráter dos escravos,“rebeldes e viciosos” por natureza, o castigo era fundamental para mantê-los “domados e disciplinados”, pois “os pretos unicamente governamsuas ações pelo temor”. Entretanto, se a punição por vezes chegava aconfigurar-se como uma “misericórdia” do senhor para com seu escra-

33 Idem, p. 81.34 Idem, pp. 109-110.

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vo, o ato de castigá-lo sem que tivesse culpa era, além de tirania senho-rial, algo intolerável aos olhos dos escravos. Antes de punir o escravo,por conseguinte, fazia-se necessário ouvir sua versão sobre o ocorrido.Outrossim, como o castigo equivalia a um medicamento, era importanteque o senhor dosasse a punição, perdoando algumas faltas cometidaspelo cativo: “o escravo calejado com o castigo já não o teme”, escreveuBenci, “e porque o não teme, não lhe aproveita. É o castigo como aguerra. A guerra mais espanta, temida que experimentada”.35 Aliás, ofato de o senhor nunca perdoar os desvios dos escravos traria outro in-conveniente, o de aumentar a incidência de fugas. Igualmente importantepara dirimir as tensões entre proprietários escravistas e negros cativosera o modo a ser seguido na aplicação das punições. A sevícia, por exem-plo, sendo um atributo próprio aos animais, de maneira alguma poderiaser empregada contra os escravos. Todavia, admoestou Benci, “estamosem tempos que é necessário lembrar aos senhores e dizer-lhes que advir-tam que são homens; para que no castigo dos escravos não degeneremem brutos, que arrebatados de sua natural braveza só com o sanguesossegam a cólera”. Para evitar a sevícia, e julgar a culpa do escravocom a razão, e não com a ira, o senhor deveria deixar esfriar “o calor daindignação”, e dar “tempo para sossegar a paixão e a cólera.” Julgada afalta do cativo à luz da razão, o castigo não poderia ir além de açoites eprisões moderadas. Segundo a Lei dos Hebreus, os açoites não deveriamultrapassar a marca de quarenta; caso a culpa do escravo fosse merece-dora de maior punição, o senhor poderia escalonar a aplicação de qua-renta açoites a cada dois dias, agrilhoando o faltoso em seguida. Em setratando de um delito extremamente grave, merecedor da pena de morte,o senhor entregaria o escravo à Justiça, ou, caso isto ferisse seus brios de“nobre e fidalgo”, o venderia para outro senhor.36

A quarta obrigação dos senhores para com os escravos – o con-teúdo do último discurso da Economia Cristã – era a de dar-lhes o traba-lho, “para que com o ócio não se façam insolentes”. Na verdade, a pre-gação de Benci dirigiu-se aqui contra dois aspectos da prática senhorial:em primeiro lugar, contra o costume dos proprietários manterem um gran-

35 Idem, pp. 138-139.36 Idem, pp. 152-170.

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de número de escravos domésticos sem forçá-los ao trabalho na roça; emsegundo lugar, contra o uso senhorial de impor aos negros trabalhosexcessivos, o que para Benci era muito mais grave do que o primeiroponto. O alvo principal da crítica do jesuíta, neste caso, era a prática deobrigar os escravos a trabalhar nos domingos e dias santos, ferindo opreceito da Terceira Lei do Mandamento Divino. O trabalho imposto aoescravos, para se tornar virtuoso, deveria ser moderado, com o descansonecessário, e adequado às forças de cada cativo.37

Em última análise, as propostas de Benci para o governo dos es-cravos (redução da carga de trabalho, melhoria do sustento material,doutrinação religiosa para a obediência, aplicação equacionada da puni-ção), embora calcadas no princípio das obrigações recíprocas entre senho-res e escravos, centraram-se na busca da transformação do comportamen-to usual dos proprietários escravistas. O jesuíta pretendia tocar a consci-ência cristã dos senhores de escravos: somente por este meio, acreditava,seria possível implantar o ideal do patriarcalismo cristão, no qual todas asrelações seriam mediadas pelos preceitos das Sagradas Escrituras.

Em 1711, seis anos após a edição da obra de Jorge Benci, foi im-presso em Lisboa um outro livro que também tratou do tema do governodos escravos. Tal como Benci, João Antônio Andreoni era um jesuíta ita-liano radicado há longa data na Bahia. Entre 1693 e 1698, Andreoni escre-veu um tratado agronômico sobre a cultura da cana e o fabrico do açúcar,baseando-se em observações diretas feitas no engenho Sergipe do Conde,localizado no Recôncavo baiano e pertencente à Companhia de Jesus. Naprimeira década do século XVIII, ao perceber a necessidade de ampliar oescopo de seu texto original, por conta das novas condições coloniaisadvindas com a montagem do núcleo minerador no interior da Américaportuguesa, Andreoni redigiu mais três tratados, respectivamente sobre ofumo, as minas de ouro e a pecuária. Reunidos, os quatro tratados forampublicados, em 1711, com o título Cultura e opulência do Brasil por suasdrogas e minas, e sob o pseudônimo de André João Antonil.38

37 Idem, pp. 201-208.38 Estas informações foram obtidas na introdução de Andrée Mansuy à melhor edição crítica do

livro de Andreoni. Ver André João Antonil, Cultura e opulência do Brasil por suas drogas eminas, org. de Andrée Mansuy, Paris, IHEAH, 1968.

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O tópico do governo dos escravos foi abordado no primeiro trata-do da obra, referente ao fabrico do açúcar. As obras de Benci e Antonil,portanto, tiveram alvos distintos. O objeto de Antonil foi o governo dosengenhos de açúcar, e não apenas dos escravos. Benci, por seu turno,tinha em mente as relações entre senhores e escravos num quadro maior:suas prescrições destinavam-se tanto para as práticas escravistas no cam-po quanto para a escravidão urbana. É certo que os esquemas intelectu-ais de Benci e Antonil se escoraram largamente nos escritos da escolaaristotélica sobre a oikonomia. Todavia, enquanto Benci se prendeu àleitura tomista dessas convenções intelectuais, Antonil buscou combiná-las com a tradição dos agrônomos romanos, como veremos em seguida.

A questão do governo dos escravos foi analisada com vagar porAntonil em dois capítulos do tratado sobre o açúcar. No capítulo cinco,intitulado “Do feitor-mor do engenho, e dos outros feitores menores queassistem na moenda, fazendas e partidos de cana: suas obrigações e sol-dadas”, o jesuíta especificou quais eram as funções a serem desempe-nhadas pelos diversos feitores. Na formulação de Antonil, estes seriam“os braços de que se vale o senhor do engenho para o bom governo dagente e da fazenda”; porém, se cada um dos feitores quisesse ser cabeça,seria o governo do engenho “monstruoso e um verdadeiro retrato do cãoCérbero, a quem os poetas dão fabulosamente três cabeças.”39 Com es-tas palavras, o inaciano deu início à construção da imagem do engenhocomo um imenso organismo humano. Ronaldo Vainfas, detendo-se naimagem dos escravos como extensão do corpo do senhor (segundo Antonil,“os escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho”), atribuiu orecurso dessa metáfora à filiação aristotélica de Antonil, melhor dizen-do, à concepção de Aristóteles da propriedade como prolongamento físi-co do senhor.40 De fato, todo o engenho era concebido como um organis-mo humano, no qual não havia diferença entre propriedade e proprietá-rio. Entretanto, pelo que se pode ler acima, a imagem do corpo não sereduziu apenas aos escravos: estes eram os pés e as mãos do senhor, acabeça do engenho, que tinha como seus braços os feitores. Ora, a metá-

39 Idem, p.106.40 Vainfas, Ideologia e escravidão, p. 98.

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fora se inscrevia não só na linha de pensamento aristotélica, como indi-cou Vainfas, mas também em toda uma tradição cristã medieval.

Com efeito, baseando-se em São Paulo, diversos teólogos medievaishaviam recorrido à imagem do corpo para caracterizar a Igreja Cristã. Den-tre eles, destacou-se João de Salisbury, que no tratado Policratus, da segun-da metade do século XII, transferiu a metáfora do organismo humano daIgreja para a res publica. Deste modo, o príncipe era a cabeça do Estado; aalma do corpo pertencia aos religiosos; os cavaleiros eram representadospela mão direita do soberano; finalmente, os camponeses constituíam os pésda res publica.41 Como demonstrou Antônio Manuel Hespanha, as concep-ções de Salisbury, reelaboradas posteriormente por São Tomás de Aquino eoutros teólogos e juristas europeus, eram correntes na metrópole e no espaçocolonial português do século XVII. O mundo social e político era assimcompreendido como uma ordem universal que abrangia todos os seres, ori-entando-os para um objetivo último transcendente, qual seja, a salvaçãodivina. Essa ordem era naturalmente hierárquica, haja vista que a cada umde seus membros cabia um papel particular a ser obedecido semquestionamentos; daí o emprego da metáfora do corpo.42

Tendo-se em mente que Antonil encarou a comunidade do enge-nho de açúcar como um universo próprio e autônomo, torna-se perfeita-mente inteligível o fato de o jesuíta ter tomado emprestado, para caracte-rizar o corpo social do engenho, uma visão da política e da sociedadeque era disseminada em Portugal (e na Europa) do Antigo Regime. E,para um tratado sobre a administração das propriedades açucareiras,essa imagem desempenhava uma função essencial, ao apresentar a pos-

41 Ver Georges Duby, As Três Ordens, ou o imaginário do feudalismo, Lisboa, Estampa, 1994,pp. 288-293.

42 Nos termos de Hespanha e Xavier, “a função da cabeça (caput) não é, pois, a de destruir a autono-mia de cada corpo social (partium corporis operatio propria), mas a de, por um lado, representarexternamente a unidade do corpo e, por outro, manter a harmonia entre todos os seus membros,atribuindo a cada um aquilo que lhe é próprio (ius suum cuique tribuendi), garantindo a cada qualo seu estatuto (‘foro’, ‘direito’, ‘privilégio’); numa palavra, realizando a justiça. E assim é que arealização da justiça – finalidade que os juristas e politólogos tardomedievais e primomodernosconsideram como o primeiro ou até o único fim do poder político – se acaba por confundir com amanutenção da ordem social e política objetivamente estabelecida.” António Manuel Hespanha eÂngela Barreto Xavier, “A representação da sociedade e do poder”, in José Mattoso (org.), Histó-ria de Portugal. Vol. 4 (Coordenação de A. M. Hespanha): O Antigo Regime (1620-1807), Lis-boa, Editoral Estampa, 1993, p.115. Do mesmo Hespanha, ver Às vésperas do Leviathan: institui-ções e poder político, Portugal –século XVII, Coimbra, Almedina, 1994, pp. 297-307.

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sibilidade de expor alguns princípios doutrinários elementares sobre aordenação da autoridade, da hierarquia e dos deveres recíprocos entre osmembros da comunidade dos engenhos.

Na avaliação de Antonil, a autoridade que o senhor conferiria aofeitor para o trato com os escravos deveria ser dosada com muita acuidade.A função primeira de um feitor era a manutenção da ordem entre a escravariae, para tanto, os cativos deveriam reconhecer nele a figura da autoridade.A pretensão de Antonil era a de que esse atributo não fosse exercido deforma desmedida e, se porventura isto ocorresse, o escravo teria um canalpara se queixar ao senhor. Este deveria permanecer como o árbitro supre-mo de sua propriedade, tendo sob estrito controle todos os seus subordina-dos – fossem feitores ou escravos – por meio da correta distribuição dajustiça. Antonil defendeu, sem dúvida, uma concepção de hierarquiaescalonada, com papéis muito bem definidos, não distorcidos pela possibi-lidade de reclamação aberta ao escravo: ao punir o feitor por excesso deviolência, sem que o cativo presenciasse o fato, o senhor procuraria simul-taneamente reforçar sua ascendência sobre ambos e reafirmar, em basessólidas, a autoridade do feitor, indispensável à conservação da disciplinaentre a escravaria.43 Essas recomendações se aproximavam em muito doque havia prescrito Columella sobre a questão, como por exemplo ouvir aversão do escravo antes de puni-lo, ou não permitir que houvessediscordância entre o senhor e o feitor acerca da punição do cativo, mas, notratado de Antonil, tais advertências configuravam-se como necessárias àconstrução de “um feitor moderado e cristão”.44

O outro capítulo de Cultura e opulência do Brasil na lavra do açú-car que analisou a questão do governo dos escravos é, na verdade, o maisimportante nesta parte da obra. Intitulado “Como se há de haver o senhor deengenho com seus escravos”, ele se deteve na fixação das normas para ocorreto comando dos cativos. Tal como Benci, Antonil, antes de apresentarsuas prescrições, tratou das práticas de governo senhorial. Baseando-se emprincípios morais, já que, “como diz São Paulo, sendo os [senhores] cristãose descuidando-se dos seus escravos, se hão com eles pior do que se fossem

43 Antonil, Cultura e opulência, p.106.44 Ver Lucius Junius Moderatus Columella, On Agriculture, Cambridge MA., Harvard University

Press, 1948, vol. 1, pp. 91-95; Antonil, Cultura e opulência, p. 106.

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infiéis”, o jesuíta italiano criticou severamente o pouco caso que os proprie-tários baianos mantinham em relação à doutrinação cristã de seus negros.Sendo obrigação dos senhores fornecer aos escravos sustento e roupa condi-zentes, e equacionar o quantum de trabalho conforme as forças de cada um,novamente a prática corriqueira era objeto de duras repreensões. Fornecen-do parca alimentação, não permitindo que os escravos cultivassem suas ro-ças aos domingos e dias santos, forçando-os ao trabalho de sol a sol, casti-gando-os excessiva e freqüentemente, os senhores se afastavam em muito dopadrão ideal de conduta. A advertência de Antonil, porém, não era apenasmoral: os escravos, ante o governo tirano dos seus senhores, “ou se irãoembora fugindo para o mato, ou se matarão per si, como costumam, toman-do a respiração ou enforcando-se, ou procurarão tirar a vida aos que lha dãotão má, recorrendo (se for necessário) a artes diabólicas”. Portanto, a mu-dança de atitude dos senhores perante os escravos reduziria a incidência defugas e de rebelião dos negros. Ouvir a versão do escravo antes de puni-lo ecastigá-lo com moderação eram os procedimentos mais adequados em casode indisciplina. Em síntese, “se o senhor se houver com os escravos comopai”, de acordo com as palavras de Antonil, “dando-lhes o necessário para osustento e vestido, e algum descanso no trabalho, se poderá também depoishaver como senhor, e não estranharão, sendo convencidos das culpas quecometeram, de receberem com misericórdia o justo e merecido castigo.”45

A aplicação ao escravismo colonial do discurso das obrigações re-cíprocas permitiu a Benci e Antonil a composição de uma teoria sobre ogoverno dos escravos fundamentada em premissas da moralidade cristã.Os elementos básicos desta teoria postulavam que os deveres essenciaisdos cativos para com seus proprietários eram o trabalho e a obediência, aserem desempenhados sem nenhum questionamento. Os senhores, por seuturno, deviam aos escravos sustento material condizente (alimentos evestimentas), trabalho moderado, castigos equilibrados e, acima de tudo, oprovimento do pão espiritual, isto é, a educação dos escravos nos preceitosdo catolicismo romano. Assegurados os deveres mútuos entre proprietári-os e cativos, o ideal de uma família cristã patriarcal – pedra angular doprojeto missionário jesuítico – poderia finalmente ser posto em prática.

45 Antonil, Cultura e opulência, pp. 124-130.

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Somente seguindo esses preceitos é que os senhores garantiriam a conti-nuidade da dominação escravista e, portanto, da produção agrícola. Casocontrário, se governassem seus escravos sem freios, agindo exclusivamen-te de acordo com suas paixões, os senhores infringiriam a Ordem Divina ereceberiam desse modo as punições devidas. Segundo Benci, por conta dodesgoverno senhorial, a ira divina começava a se abater sobre o Brasil, naforma de guerras (invasões holandesas), fomes (carestia de víveres no lito-ral açucareiro) e pestes (epidemias de varíola e febre amarela).46 Antonillembrou os episódios do cativeiro dos judeus no Egito e na Babilônia: noprimeiro caso, Deus mandou as pragas para punir os egípcios contra osmaus-tratos infligidos aos hebreus; no segundo, puniu os hebreus, conde-nando-os ao cativeiro no oriente, por maltratarem seus escravos.47

Os jesuítas radicados na América portuguesa, portanto, foram osque mais longe levaram a reflexão sobre o governo dos escravos, cons-truindo nesse esforço uma imagem orgânica de senhor patriarcal. Talsistematização foi em parte grande tributária do peso político que exer-ceram no império português, sem termos de comparação com a poucaimportância relativa de anglicanos e dominicanos nas colônias inglesas efrancesas. A ideologia imperial portuguesa teve nas bulas papais do sé-culo XV – notadamente na Romanus Pontifex, de 1455 – o que os histo-riadores denominaram como as suas “cartas régias”: em nome da expan-são da fé cristã, os portugueses ficavam autorizados a submeter os po-vos pagãos que encontrassem nas regiões a serem exploradas comercial-mente.48 O topos da evangelização permaneceu como a justificativa bá-sica em toda a expansão posterior e, para tanto, os jesuítas muito tinhama oferecer: afinal, sua política de missionarização dos povos subjugadosajustava-se como uma luva ao desígnio imperial lusitano.

Afinados com o plano expansionista português, os jesuítas porta-vam no entanto projetos próprios para guiar a cristandade colonial, fun-dados nas concepções políticas da Segunda Escolástica. Para nossos fins,é de especial relevância a leitura que fizeram da teoria do poder indireto,

46 Benci, Economia Cristã, p. 97.47 Antonil, Cultura e opulência, p. 130.48 Ver C. R. Boxer, O império marítimo português (1415-1825), Lisboa, Edições 70, 2001, p. 38;

Francisco Bethencourt, “A Igreja”, in Bethencourt e Chaudhuri, História da expansão portu-guesa, vol.1: A formação do império (1415-1570), p. 370.

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formulada de início por Francisco de Vitória e desenvolvida posterior-mente por Francisco Suárez. Esses teólogos consideravam as esferas daautoridade eclesiástica e da autoridade secular como nitidamente sepa-radas; por essa razão, inferiam que não se poderia atribuir ao papa umpoder coercitivo direto sobre as repúblicas seculares. Contudo, nos as-suntos religiosos, o poder temporal deveria se submeter ao poder espiri-tual. Além do mais, quando problemas nodais de ordem espiritual esti-vessem em jogo, o papa (ou seus representantes) deveria exercer seupoder indireto sobre os poderes temporais.49

Já no século XVI a teoria do poder indireto havia sido aplicada àrealidade da América portuguesa, sobretudo na pena de Manuel daNóbrega: diante do descaminho de colonos e clero secular, competiriaaos jesuítas – com o aval da Coroa – tomarem a si o exercício da tutelapolítica e moral sobre a sociedade colonial.50 Benci e Antonil nada maisfizeram que atualizar Nóbrega e a teoria do poder indireto para um con-texto no qual a Companhia de Jesus estava sendo duramente criticadapor colonos e agentes metropolitanos. Desde o fim do Quinhentos, eraconsenso entre os inacianos que o fundamento econômico e mesmo reli-gioso da América portuguesa residia no cativeiro dos negros, o que per-mitia resgatá-los do paganismo na África e evangelizá-los na América.51

Aos membros da Companhia, caberia zelar pelo andamento da instruçãocristã dos cativos, a rigor um atributo senhorial, por conta do princípiodos deveres recíprocos fixado na Bíblia. O que Benci e Antonil afirma-vam em seus textos era que os senhores luso-brasileiros não estavamsabendo lidar com seus escravos – como o exemplo de Palmares bem odemonstrara – por terem se afastado dos preceitos do patriarcalismocristão. A resposta para a correção de rumo se encontrava exatamenteno ideal de senhor cristão veiculado pelos inacianos.

49 Ver, a respeito, Skinner, As fundações do pensamento político moderno, pp. 451-457, e LuísReis Torgal, Ideologia política e teoria do Estado na Restauração, Coimbra, Biblioteca Geralda Universidade, 1981-1982, vol. 2, pp.13-20.

50 Zeron, “La Compagnie de Jésus”, pp.72-73, passim.51 Ver Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul,

séculos XVI-XVII, São Paulo, Companhia das Letras, 2000, em especial o cap.5.

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Antilhas francesas

Ao longo do século XVII, o projeto colonial francês foi definido em suaslinhas gerais tal como o português. Nas palavras de um de seus ideólogos,os reis franceses sempre atuaram nas Américas com o propósito de criar“um império cristão, mais que ampliar as fronteiras de uma monarquiatemporal”. Houve, no entanto, uma particularidade importante no casofrancês, expressa com clareza durante o ministério de Jean-BaptisteColbert: todos os grupos não-europeus que vivessem nas colônias deve-riam passar por um processo de “afrancesamento” (francisation). Comobem esclarece o historiador Anthony Pagden, Colbert tinha com isso aintenção “de fazer extensível ao Canadá e ao Caribe o projeto de LuisXIV de um ‘état unifié’ atado pela língua, costumes, regilião e rei.”52

Tal diretriz se tornou evidente na política adotada para as Anti-lhas na segunda metade do Seiscentos. A base inicial da ocupação fran-cesa na região foi a ilha de São Cristóvão, colonizada por um grupoprivado em 1627. Os ingleses vinham ocupando essa ilha desde 1623;diante das ameaças constantes dos espanhóis e dos índios caraíbas, re-solveram dividir o seu domínio com os franceses. Na década seguinte, oscolonos franceses, inspirados pelo sucesso dos ingleses em Barbados,instalaram-se nas ilhas de Martinica e Guadalupe. A colonização destasfoi realizada sob os auspícios da Compagnie des îles d’Amérique, orga-nizada por Richelieu em 1635. Todavia, diante do fracasso econômico ede suas pesadas dívidas, a companhia vendeu em 1650 seus direitos so-bre as ilhas aos seus respectivos governadores, inaugurando o que MichelDevèze denominou de “regime senhorial de proprietários”.53

Nos quinze anos em que as ilhas francesas foram governadas pe-los “senhores-proprietários”, seus colonos mantiveram um intenso co-mércio com os mercadores holandeses, responsáveis pelos estímulos da-dos à produção açucareira na região. De fato, o decênio 1654-1664 re-

52 Pagden, Señores de todo el mundo, p. 194. Ver também Patricia Seed, Cerimônias de posse naconquista européia do Novo Mundo (1492-1640), São Paulo, Ed. da UNESP, 1999, em especi-al o cap. 2.

53 Michel Devèze, Antilles, Guyanes, La Mer des Caraïbes de 1492 à 1789, Paris, SEDES, 1977,pp.140-148, 176-178; Paul Butel, “Le temps des fondations: les Antilles avant Colbert”, in PierrePluchon (org), Histoire des Antilles et de la Guyane (Paris, Privat, 1982), pp. 53-78.

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presentou o ponto de virada na história açucareira dessas colônias fran-cesas: o número de engenhos, a quantidade de escravos e a produção doaçúcar cresceram rapidamente a partir desse período. As vantagens ofe-recidas pelos mercadores holandeses aos colonos franceses (regularida-de no fornecimento de escravos e outros insumos, garantia de mercadospara o açúcar produzido, isenção de direitos aduaneiros) permitiram orápido desenvolvimento da indústria em Guadalupe e na Martinica. Agrande autonomia das Antilhas francesas em relação à metrópole duran-te o regime dos senhores-proprietários facilitou ainda mais o controleholandês sobre o tráfico de escravos e sobre o financiamento e acomercialização das safras de açúcar.54 O controle holandês sobre o co-mércio com o Caribe francês era de tal monta que, no começo da décadade 1660, a França se via ante a necessidade de comprar no mercado deAmsterdã grandes quantidades de açúcar produzido por súditos france-ses. Para combater a hegemonia comercial holandesa no Caribe e emoutros setores do comércio internacional do período, a Coroa francesa(tal como vinha fazendo a Inglaterra desde o Ato de Navegação de 1651)pôs em prática políticas mercantilistas dirigidas contra o poderio econô-mico dos Países Baixos.55

Sobressaiu-se, neste caso, a ação do ministro das finanças de LuísXIV, Jean-Baptiste Colbert, empossado em 1661. Colbert procurou re-cuperar o controle sobre o comércio colonial por meio da criação, em1664, da Compagnie des Indes Occidentales. Ao obter o poder sobre asilhas nos planos judiciário, militar e econômico, a Companhia colbertiana,além de acabar com o “regime senhorial de proprietários”, asseguroupara si direitos de monopólio sobre o comércio com todas as Antilhasfrancesas, o que significava, entre outras coisas, o controle do tráfico deescravos e da comercialização do açúcar e dos demais gêneros agrícolas.Mas, diante da incapacidade em substituir a contento os mercadores ho-landeses, em especial no que se referia ao abastecimento da mão-de-obraescrava, a Companhia encontrou forte resistência dos colonos. Os

54 Charles Schnakenbourg, “Note sur les origines de l’industrie sucrière en Guadeloupe au XVIIésiècle (1640-1670)”, Revue Française d’Histoire d’Outre-Mer, vol. lv, nº 200 (1968), pp. 267-315; ver também Paul Butel, “Un nouvel age colonial: les Antilles sous Louis XIV,” , in Pluchon(org), Histoire des Antilles, pp. 79-80.

55 Wallerstein, The Modern World-System, vol. 2, pp. 75-80.

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habitants (termo francês para os colonos escravistas) de Guadalupe con-tinuaram a praticar contrabando com os comerciantes holandeses e in-gleses e, em 1666, os senhores da Martinica se levantaram contra o mo-nopólio da Companhia.56

Em sua história sobre as Antilhas francesas publicada entre 1667e 1671, o padre dominicano Jean-Baptiste Du Tertre apoiou firmementea política mercantilista estabelecida por Colbert; em suas palavras, tra-tava-se de um dirigente cuja “vigilância não deixa nada escapar de tudoo que pode contribuir à glória de Nosso Grande Monarca e à felicidadedo Reino”. Para o religioso, a Companhia das Índias Ocidentais fundadapelo ministro das finanças de Luís XIV tinha totais condições para “re-tirar todo o comércio desses locais das mãos dos Estrangeiros, e derestaurá-lo em nossos portos, para fazer lucrar os sujeitos desse Reino.”Mas não só isso: dada a presença abusiva de huguenotes e judeus nascolônias e o profundo laxismo em relação aos índios e escravos negros,à Companhia cabia uma missão religiosa da maior importância.

Como temos em mira, no estabelecimento das ditas colônias,principalmente a glória de Deus [...], a dita Companhia [...]será obrigada a enviar às terras acima concedidas o número deeclesiásticos necessários para pregar o santo Evangelho e ins-truir esses povos sobre a crença da religião católica e apostólicae romana, como também construir igrejas e nelas estabelecervigários e padres (asseguradas a elas as suas nomeações) pararealizar o serviço divino. 57

Portanto, o acentuado regalismo da política religiosa de Luís XIV,que estava sendo estendida ao ultramar por Colbert, foi esposado comardor por Du Tertre. Isso talvez se explique pela própria posição ocupa-da pelos dominicanos no império: como esclarece Läennec Hurbon,

56 Blackburn, The Making of New World Slavery, pp. 282-283; Devèze, Antilles, Guyanes, pp.209-211; Schnakenbourg, “Note sur l’industrie sucrière en Guadeloupe”, pp. 292-293; LilianeChauleau, Dans les îles du vent: La Martinique (XVIIe-XIXe siècle), Paris, Harmattan, 1993,pp. 20-22; Butel, “Un nouvel age colonial “, p. 80; Sobre o colbertismo como técnica de governoinspirada no modelo holandês, ver Pierre Pluchon, Histoire de la colonisation française, vol. 1:Le premier empire colonial, des origines à la Restauration, Paris, Fayard, 1991, pp. 84-85.

57 Jean-Baptiste Du Tertre, Histoire générale des Ant-iles habitées par les François, Paris, ChezThomas Iolly, 1671, vol. iii, pp. 36-37, p. 47.

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“exceto os jesuítas, de tendências ultramontanista, que pleiteiam oestreitamento das relações com Roma, a maior parte das ordens religio-sas (carmelitas, capuchinos, dominicanos) fica amarrada ao poder real:sua situação financeira depende disso e tudo contribui para mostrar queeles também se incluem na classe dos colonizadores.”58

Du Tertre compôs seu relato baseado numa estada de quase duasdécadas (1640-1658) como missionário nas ilhas francesas. A primeiraedição do livro foi publicada em 1654, e continha apenas um volume.59

Com a modificação da política colonial francesa em 1664, Du Tertreresolveu ampliar a obra: a segunda edição foi acrescida de mais trêsvolumes que narravam os eventos ocorridos após 1654, sendo que umdos tomos era dedicado à história natural das Antilhas. Neste volume,ele incluiu um longo tratado sobre os escravos negros utilizados naspropriedades francesas.60 Como eram os escravos que davam origem àsriquezas das Antilhas francesas e que formavam a maioria de sua popu-lação, anotou o missionário, tornava-se imperioso conceder-lhes um tra-tado específico para descrever “suas condutas e seus modos”.

Dividido em treze parágrafos, o tratado descreveu com pormeno-res as diversas práticas correntes nas colônias e plantations francesas, asaber, os métodos de escravização empregados na África e a organiza-ção do tráfico negreiro transatlântico, a pronta adoção da fé católicapelos negros e seus casamentos, a alimentação, moradia, vestuário, tra-balho, disciplina e lazer. O caráter eminentemente descritivo do tratadosobre os escravos derivou dos esquemas intelectuais que Du Tertre ado-tou para escrevê-lo. Como assinalou Michel Foucault, a história da na-tureza que se constituiu no século XVII baseava-se no princípio de “pousarpela primeira vez um olhar minucioso sobre as coisas e de transcrever,em seguida, o que ele recolhe em palavras lisas, neutralizadas e fiéis”;em outras palavras, o procedimento básico da história natural, tal como

58 L. Hurbon, “A Igreja Católica nas Antilhas Francesas no século XVII”, in CEHILA (org.), Es-cravidão negra e história da Igreja na América Latina e no Caribe (Petrópolis, Vozes, 1987),p. 95.

59 O título desta edição era ligeiramente diferente da edição posterior: Histoire Générale des islesde S. Christophe, de la Guadeloupe, de la Martinique, et autres dans l’Amérique.

60 Du Tertre, Histoire Générale des Antilles, 1667, vol. ii, Traité vii : Des Esclaves des Antillesde l’Amérique, pp. 483-537.

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praticada no Seiscentos, consistia em observar inicialmente a naturezapara, num segundo momento, classificar o que foi observado numa redetaxionômica.61 Tais procedimentos foram seguidos à risca por Du Tertre,que registrou numa ordem classificatória todos os aspectos ligados àvida dos escravos nas Antilhas francesas.

Contudo, o relato do dominicano francês não deixou de prescre-ver o que deveria ser seguido no governo dos escravos. Suas prescriçõesnão eram apresentadas de forma explícita, mas podiam ser observadasem cada um dos parágrafos do tratado. Dos vários exemplos que poderi-am ser lembrados, três merecem uma atenção especial. Em primeiro lu-gar, a defesa do bom tratamento como uma estratégia para manter adisciplina entre os escravos. Esta prescrição baseou-se na observação deque o “humor” dos escravos alterava-se conforme o tratamento dadopelo senhor: “quando são tratados com doçura e bem alimentados”, ano-tou Du Tertre, “eles se acham os mais felizes indivíduos do mundo, dis-põem-se a fazer tudo e observa-se em seus semblantes e em suas ações,as indubitáveis marcas de satisfação de seus espíritos. Mas, pelo contrá-rio, quando são tratados com rigor, percebe-se bem que a melancolia osatormenta.”62 O problema não era apenas a melancolia do escravo, mas,sobretudo, o fato de que o escravo maltratado era mais propenso ao furtoe à indisciplina. Tanto é assim que o “vício” do roubo, adquirido porquase todos os negros assim que eles eram introduzidos nas habitationsfrancesas, devia-se exatamente à má alimentação dada pelos senhores.Esta também foi a lógica da crítica de Du Tertre ao “modo do Brasil”,incapaz de garantir um provimento condizente ao cativo.

Na crítica feita à prática de deixar a alimentação do escravo aoseu próprio encargo cedendo-lhe uma pequena roça (ao “modo do Bra-sil”), subjazia a idéia de que era obrigação do senhor garantir o provi-mento material do cativo. Esta noção foi retirada do discurso das obriga-ções recíprocas entre senhores e escravos, reiterada tanto nos autoresclássicos (notadamente Aristóteles) quanto nas Sagradas Escrituras: emtroca do trabalho fornecido pelo escravo, era dever do senhor assegurar-

61 Michel Foucault, As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas, São Paulo,Martins Fontes, 1981, pp. 142-146.

62 Du Tertre, Histoire Générale, pp. 496-497.

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lhe o sustento material e, no caso da leitura bíblica, espiritual. O segun-do ponto cuidou exatamente deste último aspecto: os senhores católicosfranceses tinham a obrigação de cuidar da catequese dos seus cativos.Houve, aqui uma crítica velada ao comportamento dos protestantes. Aodemonstrar a compatibilidade entre cristianismo e escravidão e o ardorcom que os negros abraçavam a fé cristã, Du Tertre voltou-se contra oargumento protestante de que o batismo do escravo implicava necessari-amente sua libertação temporal.

Por fim, o terceiro exemplo reporta-se às punições físicas e suasconexões com o tópico da marronage (fuga de escravos). Du Tertre afir-mou, em certa passagem, que a “máxima fundamental no governo dosescravos” consistia em não perdoar nenhuma falta cometida pelos cati-vos. Entretanto, o dominicano não encampou acriticamente todas as nor-mas punitivas adotadas pelos senhores. Após discriminar os diferentestipos de castigos aplicados conforme cada insubordinação praticada, JeanBaptiste Du Tertre lançou uma exortação cristã aos senhores para quecontrolassem o destempero de seus feitores:

Não posso encerrar este parágrafo sem exortar os habitantesdas Antilhas com as belas palavras de Santo Ambrósio e depedir-lhes, como esse grande prelado fazia aos senhores cris-tãos de seu tempo, que tratem seus escravos com caridade, poisainda que a fortuna os tenha tornado seus servidores, esses po-bres miseráveis não deixam por isso de serem irmãos pela gra-ça do batismo, que os fez filhos de Deus, [...], rogando-lhestambém que vigiem seus capatazes, que freqüentemente abu-sam da autoridade que lhes foi conferida e que tratam os seusescravos com uma desumanidade que os leva freqüentementeao desespero e à fuga.63

A lembrança de Santo Ambrósio pelo dominicano não foi fortuita,pois os escritos deste patriarca cristão, juntamente com os textos dosestóicos, foram fundamentais na construção das concepções de Du Tertresobre a escravidão. A idéia central do trecho citado era a de que o trata-mento impiedoso por parte dos senhores e de seus prepostos gerava o

63 Idem, p. 534.

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desespero no escravo e, conseqüentemente, levava-o à evasão. Não poracaso, o tratado foi finalizado com a questão da marronage, particular-mente aguda no século inicial da colonização escravista da Martinica ede Guadalupe. Na avaliação do missionário, a maior razão para a fugado escravo era o desejo de liberdade, mas, se fosse bem tratado, o negronão encontraria motivos para fugir. Tanto é assim que existiam dois ti-pos de fugitivos. O primeiro era o escravo recém-introduzido na habitationque, após verificar a impossibilidade de retornar à África, voltava para apropriedade. O outro era o cativo já adaptado às Antilhas que, devidoaos maus-tratos ou à falta de mantimentos, escapava para as montanhas.Apenas o segundo fugitivo é que se tornava quilombola, por conta doconhecimento das técnicas agrícolas e do modo de vida nas ilhas.64 Por-tanto, bons tratos e disciplina rigorosa eram os elementos prescritos porDu Tertre para se evitar o problema da marronage.

Tais prescrições, organizadas e apresentadas de outra maneira,poderiam perfeitamente compor um tratado sobre o governo dos escra-vos. Du Tertre não o fez devido ao tipo de preocupação que o norteou eposição política que ocupou. Seu propósito foi a elaboração de um textosobre história natural dos escravos, com a descrição das práticas corren-tes nas plantations francesas, e não a composição de um tratado sobre ogoverno dos cativos. As prescrições inscritas no texto, por sua vez,direcionavam-se não tanto para os proprietários escravistas, mas pri-mordialmente para as audiências letradas e autoridades metropolitanas.Por este motivo, o livro de Du Tertre deve ser tomado como uma expres-são do poder metropolitano francês sobre o espaço antilhano. Afinal, anarrativa dos eventos da colonização francesa da região, a descrição doespaço natural onde ocorriam esses eventos e dos grupos humanos quedeles participavam foram acompanhadas pela defesa da política coloniale religiosa colbertiana. A Coroa francesa deveria normatizar as relaçõesentre os atores sociais envolvidos na colonização, notadamente senhorese escravos, cuidando para que os preceitos básicos do catolicismo fos-sem seguidos por todos – eis uma mensagem que perpassou todas asconsiderações de Du Tertre sobre os negros.

64 Idem, pp. 534-537.

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Nesse esforço, contudo, não houve qualquer tentativa de Du Tertrepara construir a imagem de um senhor patriarcal. Muito pelo contrário,pois em vários momentos de sua obra anotou sem recriminações o com-portamento comercial dos proprietários escravistas das Antilhas. Em certapassagem, por exemplo, Du Tertre se referiu à “forte paixão que nossoshabitantes demonstram em acumular bens [...]; eles vêm para as ilhassomente para isso”. Era exatamente esse caráter das colônias que serviade atrativo para os imigrantes franceses, por permitir atenuar a rígidaordem estamental que vigorava na metrópole: nelas, “não há ponto dediferença entre nobre e plebeu. Entre os colonos, aquele que tem maisbens é mais considerado, pois só os oficiais tem status. Desta forma asriquezas estabelecem distinção entre as pessoas.”65

É bom que se diga que tudo isso fez parte do cálculo imperial deColbert. Ao mesmo tempo em que buscou endurecer a ortodoxia política ereligiosa, o todo-poderoso ministro de Luís XIV acabou por flexibilizar aordem econômica imperial. Em 1674, diante do fracasso da Companhia dasÍndias Ocidentais, Colbert a suprimiu e transformou as colônias caribenhasem províncias do Reino, atreladas à Secretaria de Estado da Marinha, como objetivo de uniformizar sua administração. Neste sentido, foram criadosnovos cargos e instituições para fortalecer o poder real sobre as ilhas. Aolado do cargo de governador geral das ilhas, criou-se também o de intendente,responsável pela “justiça, polícia e finanças” das colônias. Esses dois admi-nistradores eram subordinados diretamente à Secretaria da Marinha. Paracontentar os interesses locais, as atribuições do Conselho soberano de cadailha, no qual os habitants estavam representados, foram modificadas: alémde julgar casos criminais em primeira instância, este orgão, dependendo daquestão, tinha o poder de obstruir as deliberações do intendente.66 No planoeconômico, Colbert decretou, com o fim do monopólio da Companhia dasÍndias Ocidentais, o livre comércio entre as Antilhas e os portos franceses deRochelle, Nantes e Bordeaux, mantendo, no entanto, o princípio do exclusif;tudo isso, no fim das contas, acabou por aproximar as Antilhas francesas dosentido comercial do império inglês .67

65 Du Tertre, Histoire Générale, vol. ii, p. 523, 474.66 Devèze, Antilles, Guyanes, pp. 224-226; Butel, “Un nouvel age colonial”, pp. 82-84.67 Blackburn, The Making of New World Slavery, p. 283.

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A política econômica adotada por Colbert após 1674, escorada naliberdade de comércio entre os portos atlânticos franceses e o Caribe,rendeu bons frutos nas décadas subseqüentes. A partir do último quartodo século XVII, a produção de açúcar e a população escrava aumenta-ram consideravelmente na Martinica e em Guadalupe. O complexo açu-careiro escravista francês ganharia um alento fundamental em 1697, coma incorporação definitiva da parte ocidental da ilha de São Domingos.Na década de 1720, os franceses conseguiram igualar a produção deaçúcar das Antilhas inglesas e, na década seguinte, ultrapassaram-na.68

Nesse contexto de arranque da economia escravista francesa, foipublicado o mais importante relato sobre as Antilhas francesas a surgiraté a segunda metade do século XVIII, a Nouveau voyage aux Isles del’Amerique, do também dominicano Jean-Baptiste Labat. Editado emParis no ano de 1722 em seis volumes, o livro se reportou ao período queo missionário viveu no Caribe, entre 1694 e 1705, quando foi responsávelpela administração do engenho de açúcar pertencente aos padresdominicanos na Martinica. A obra se inscrevia na tradição das narrativasde viagem ao Novo Mundo que combinavam a “história moral” com ahistória natural das ilhas. No julgamento de Labat, o livro mais importantedessa literatura era o de Du Tertre, um companheiro de ordem religiosaque ele tinha em alta conta. A maior justificativa para a composição daNouveau voyage residia no fato de as informações trazidas no livro de DuTertre estarem ultrapassadas, pois se reportavam à segunda metade doséculo XVII: a nova situação colonial das Antilhas francesas no início doséculo XVIII, com uma produção escravista em larga escala, notadamentea do açúcar, exigia a publicação de um novo relato de viagem.69

A obra de Labat trouxe uma modificação importante em relação àorganização formal que havia sido empregada por Du Tertre. No livrodeste, houve uma clara divisão entre os assuntos referentes à históriapolítica das ilhas e os que diziam respeito à história natural. O livro deLabat afastou-se deste padrão rígido: sua exposição assemelhou-se a umdiário de viagem, pois o encadeamento dos assuntos registrados obede-

68 Idem, p. 295; Devèze, Antilles, Guyanes, p. 256.69 Jean-Baptiste Labat, Nouveau voyage aux Isles de l’Amerique, Paris, Guillaume Cavelier, 1722,

vol. i, pp. ix-x.

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ceu à seqüência cronológica da vivência do autor nas Antilhas. Quandoos assuntos descritos mereceram “uma explicação longa e um amplodetalhe”, Labat interrompeu o fluxo da narrativa para abordá-los siste-maticamente. Seu livro trouxe assim desde capítulos reservados exclusi-vamente à história natural das ilhas até verdadeiros tratados agronômi-cos sobre as plantas de maior relevância econômica para a metrópole.

No início do século XVIII, a economia das Antilhas francesas jáera totalmente dependente do trabalho escravo. Um dos assuntos quemais chamaram a atenção de Labat foi justamente a escravidão negra: otema do governo dos escravos recebeu no livro do dominicano uma abor-dagem inédita até então. Contudo, o tópico foi tratado sob duas perspec-tivas distintas: a primeira concentrou-se em examinar os padrões de ad-ministração dos escravos no processo de fabrico do açúcar; a segunda,em traçar observações gerais sobre as práticas de governo dos cativosnas Antilhas.

A primeira perspectiva esteve presente no terceiro volume daNouveau voyage, mais especificamente no capítulo que cuidou do açú-car e de “tudo que se refere à sua fábrica e suas diferentes espécies”.Aqui, Labat descreveu os trabalhos efetuados nas várias etapas de feiturado açúcar nos engenhos antilhanos, as modalidades de organização dosescravos e as despesas em alimentação e vestuário para a manutenção deuma escravaria com 120 negros. Na parte agrícola do fabrico de açúcar,Labat demonstrou cuidado especial com o problema do controle dos es-cravos, recomendando o plantio alinhado dos canaviais e sua divisão emquadrados como meios para facilitar a supervisão da escravaria. Alémdo mais, deu grande atenção ao emprego racional da força de trabalho,ao sugerir a separação dos cativos em turmas conforme o sexo e a ida-de.70 Em relação às práticas de administração dos escravos na manufa-tura do açúcar, o autor também se preocupou em prescrever medidas quepossibilitassem um uso mais racional da mão-de-obra, como oescalonamento das horas de trabalho nas moendas e caldeiras. Com taisesquemas, acreditava Labat, o senhor teria “o direito de exigir de seusescravos um trabalho pronto, assíduo e vigoroso.”71

70 Idem, vol. iii, pp. 143-175.71 Idem, pp. 205-216.

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Em suas considerações sobre a administração dos escravos noprocesso de fabrico do açúcar, Labat teceu ainda alguns comentáriossobre a “despesa necessária para a alimentação e o cuidado de cento evinte escravos”. Neste ponto, o dominicano dialogou diretamente com asnormas do Code Noir (codificação das leis escravistas francesasestabelecida por Colbert, mas promulgada apenas dois anos após suamorte) sobre alimentação, vestimenta e demais cuidados devidos aos es-cravos, verificando a viabilidade delas na prática concreta da gestão dosengenhos de açúcar. O edito de 1685 havia estipulado que os senhorestinham a obrigação de fornecer semanalmente aos escravos uma raçãocontendo duas libras e meia de farinha de mandioca, duas de carne secaou três de peixe. Labat concordou com o quantum relativo à farinha demandioca, e recomendou que os proprietários tivessem uma abundânciade pés de mandioca plantados por toda a plantation, pois a aquisição defarinha no mercado custava caro. Sobre a ração de carne, poucos senho-res cumpriam a determinação do Code Noir. O problema, segundo odominicano, tinha três causas: 1) a negligência dos oficiais responsáveispelo cumprimento das ordenações régias; 2) a avareza dos senhores, “quetiram de seus escravos todo o trabalho que podem sem nada gastar porsua alimentação”; 3) os preços excessivos da carne salgada nos temposde guerra. Os senhores razoáveis, dispostos a garantir o provimento decarne, suplantavam a sua falta nos períodos de conflito plantando bata-tas e inhames. As rações deveriam ser distribuídas aos escravos no pri-meiro dia de trabalho da semana, e não aos domingos, pois neste dia osnegros recebiam visitas e poderiam acabar rapidamente com a raçãosemanal.

Os excessos que a maioria dos senhores franceses perpetravam,no entanto, não se limitavam à questão do provimento de carne seca.Dois abusos ainda mais graves eram por eles cometidos. O primeiroconsistia em dar uma quantidade semanal de aguardente para o escravoem substituição à farinha e à carne seca, o que forçava o negro a ter quetrocar – fora da plantation, nos mercados dominicais – a bebida pormantimentos. O segundo abuso referia-se ao “modo do Brasil”. O pontocriticado por Labat não foi a prática da cessão de roças para o cultivoautônomo dos escravos, mas o fato de que os senhores se desobrigavam,

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ao adotar este sistema, de fornecer qualquer vestimenta ou alimentaçãoàqueles.72

Comportando-se dessa forma, argumentou Labat, os senhores de-monstravam não entender nada sobre os seus “verdadeiros interesses”,quais fossem os de ter uma mão-de-obra vigorosa e ordenada. Contudo,a necessidade de bem alimentar e vestir os cativos não esteve escoradaapenas nos interesses materiais: “como cristãos”, os proprietários tinhama obrigação de “fornecer a seus escravos, que devem ser vistos comoseus filhos, tudo que é necessário à sua subsistência, sem os submeter,pela dureza, à necessidade próxima de perecerem pela miséria ou deofenderem Deus roubando para viver e se manter.”73

A síntese desta perspectiva foi apresentada no fechamento do ca-pítulo sobre o açúcar, num longo parágrafo em que Labat sugeriu algu-mas regras de conduta para os senhores seguirem no governo dos escra-vos e do engenho. O proprietário deveria verificar tudo pessoalmente,não confiando cegamente nas informações que lhe eram passadas porfeitores ou ecônomos. Os trabalhos precisavam ser planejados com bas-tante antecedência, para não serem executados com atropelo: ainda quemoderado, o trabalho deveria ser contínuo e regular para preservar osescravos. Por fim, o proprietário necessitava ter a exata medida do quesignificava ser senhor de escravos:

Ele deve, acima de tudo, lembrar que é senhor de seus escravose que é cristão. Essas duas qualidades lhe devem inspirar senti-mentos de justiça, eqüidade, brandura e moderação para comeles, de modo que ele jamais exija algo pela força e pela violên-cia dos castigos, quando o puder fazer pela brandura. Ele devemostrar uma preocupação contínua e toda particular em suainstrução e saúde e também alimentação e preservação, sejameles velhos ou jovens, sadios ou doentes, em idade de servir ouinválidos.74

Comportar-se como um verdadeiro cristão, expressando os senti-mentos de justiça, eqüidade, doçura e moderação: tais eram os mecanis-

72 Idem, pp. 438-442.73 Idem, pp. 442-443.74 Idem, pp. 458-459.

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mos ideais para se evitar ao máximo o uso da força física e da violênciacontra os escravos. O bom senhor de engenho era exatamente aquele queconseguia manter o domínio sobre os negros sem recorrer a todo momen-to às punições corporais.

O tema da administração dos escravos constituiu um dos princi-pais focos de atenção no capítulo que Labat dedicou ao açúcar. Entre-tanto, este não foi o único lugar da Nouveau voyage em que se discutiuo problema do governo dos escravos. No volume IV, o dominicano in-cluiu um capítulo com o título “Dos Escravos negros, de que se servemnas Ilhas. Sua religião, modos e danças. Como são comprados, tratadose instruídos”. Neste capítulo, que guardou uma série de pontos de conta-to com o tratado de Du Tertre, Labat teve por objetivo descrever – sob aslentes da história natural – os costumes dos negros e as práticas da es-cravidão nas Antilhas e traçar algumas prescrições sobre a administra-ção dos cativos. Tais prescrições cuidaram basicamente de três aspectosligados ao governo dos escravos, a saber, a compra de negros e negras eos cuidados iniciais na “aclimatação” dos mesmos, as punições físicas eo papel da economia própria dos cativos.

Antes de comprar os escravos, recomendou Labat, os senhoresdeveriam examiná-los minuciosamente, se possível na companhia de ummédico, com o objetivo de verificar o estado de saúde deles. Efetuada aaquisição, o escravo recém-comprado não poderia ser posto logo a tra-balhar: esta atitude avarenta e ambiciosa, além de atentar contra a cari-dade e a discrição, demonstrava que o senhor não entendia “nada de seuspróprios interesses.” Nos primeiros dias do escravo boçal na habitation,o proprietário deveria ter um cuidado todo especial para recompor suasforças, debilitadas ao extremo após a travessia atlântica no navio negrei-ro. Este tipo de tratamento não só recuperava as forças do corpo escravocomo também gerava no cativo sentimentos de afeição para com o se-nhor.75 Aos poucos, com a saúde recomposta, o escravo recém-adquiridoseria acostumado às duras condições de trabalho das Antilhas.

As instruções sobre os castigos foram bem sintéticas. No julga-mento de Labat, quando o governo senhorial se escorava no bom trata-

75 Idem, vol. iv, pp. 143-144.

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mento, os castigos aplicados em resposta às faltas cometidas eram acei-tos pelos escravos sem contestação; por outro lado, nos casos de fre-qüentes maus-tratos infligidos pelos proprietários, os negros não tolera-vam passivamente as punições. Uma máxima fundamental a ser obede-cida pelos senhores era a de nunca ameaçar com antecedência o escravo;caso o senhor decidisse aplicar o castigo físico, a escravaria deveria serreunida, sem aviso prévio, para que todos assistissem à punição; caso osenhor decidisse perdoar o escravo faltoso, isto deveria ser feito semestardalhaço. O escravo, sob a ameaça prévia da punição, poderia fugire passar a viver aquilombado. E, “quando eles gozam uma vez essa vidalibertina”, escreveu o dominicano, “tem-se todas as penas do mundo parafazê-los perder o hábito.”76

Na avaliação de Labat, o melhor mecanismo para reduzir a inci-dência de fugas consistia na permissão dada aos escravos para possuí-rem uma economia própria dentro da plantation. Essa economia era com-posta pela criação de porcos e galinhas junto às senzalas e pelas peque-nas roças, localizadas nas áreas periféricas ou de menor valor da propri-edade, nas quais os escravos cultivavam tabaco, batata, inhame, milho eoutros artigos. O produto dessas roças destinava-se à alimentação dosescravos ou à sua venda nos mercados dominicais das ilhas. É importan-te não confundir essas roças com o “modo do Brasil”: a proposta deLabat para a abertura de espaços econômicos autônomos aos escravosnão desobrigava os senhores de garantir a alimentação de seus trabalha-dores. Labat tinha em mente o caráter disciplinador das pequenas cria-ções e das roças. Permitindo o usufruto delas, pontificou o dominicano,o senhor tornaria seus escravos mais fiéis. Caso algum cativo fugisse enão retornasse em menos de vinte quatro horas, o proprietário lhe confis-caria a roça e as criações. Esta punição destinava-se não tanto ao fugiti-vo, mas principalmente ao restante da escravaria: o medo de perder aeconomia própria era muito mais eficaz para prevenir fugas do que aameaça do castigo físico.77

A despeito de ressaltar a importância de o proprietário se compor-tar como um “verdadeiro cristão” e de tratar os escravos como se fossem

76 Idem, pp. 150-151.77 Idem, pp. 151-152.

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seus “filhos”, a imagem de um senhor cristão patriarcal tal comoconstruída pelos jesuítas da América portuguesa esteve longe do texto deLabat. Um bom caminho para entender a mudança introduzida pelodominicano se encontra no emprego que deu ao vocábulo interesse. Comefeito, Labat buscou compatibilizar os ideais cristãos com a nascentelinguagem dos interesses. Como indicou o estudo de Albert Hirschmansobre o tema, a noção de interesse como domador de paixões tem umahistória relativamente longa, que remonta ao período do Renascimento,mas foi sobretudo na Inglaterra e na França dos séculos XVII e XVIIIque o vocábulo começou a ser relacionado com as aspirações econômi-cas, com a busca da vantagem material, anseios estes capazes de contro-lar as paixões. Se os preceitos cristãos ou a coerção estatal não conse-guiam sozinhos domar as paixões destrutivas dos súditos, o conhecimen-to dos verdadeiros interesses materiais serviria para alertá-los sobre oscomportamentos corretos a serem adotados.78 O texto de Labat esteveclaramente conectado com essas mutações nos esquemas mentais da co-munidade letrada francesa e inglesa. Foi por este motivo que concordoucom os pontos do Code Noir referentes à alimentação e ao vestuário, porexpressarem tanto a “razão dos interesses” dos senhores como um mode-lo de comportamento cristão e moderado.

Em Labat, portanto, a normatização do governo dos escravos ad-quiriu um caráter já secularizado. Em sua acepção, a má administraçãodos escravos atentava contra os interesses materiais dos senhores. Osideais do patriarcalismo cristão, ainda que presentes em suas considera-ções, passavam a ocupar uma posição ancilar: a exortação de Labat aossentimentos cristãos dos senhores, que encerrava o capítulo sobre o açú-car, procurava lembrá-los que a “justiça”, a “eqüidade”, a “doçura” e a“moderação” no trato com os escravos, ao serem aplicadas conforme os“verdadeiros interesses” dos senhores, facilitava a obtenção de uma mão-de-obra vigorosa e disciplinada.

Nada mais distinto do que ocorreu nos textos dos jesuítas radicadosna América portuguesa. Em Benci, o mau governo dos escravos, calcado

78 Albert O. Hirschman, As paixões e os interesses: argumentos políticos a favor do capitalismoantes de seu triunfo, Rio de Janeiro, Paz & Terra, 1979, pp. 36-45.

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nas paixões desregradas dos senhores e afastado dos preceitos cristãos,atentava, sobretudo, contra Deus. Dentro dessa cosmovisão, a acepçãode interesse tinha uma carga fortemente negativa. Benci, ao criticar ocostume dos senhores de engenho de designar seus escravos para certostrabalhos aos domingos, pregava que “os que antepõem, como devemantepor, os preceitos da Lei de Deus aos lucros e interesses temporais,não ocupam os escravos nos domingos e dias santos.”79 É certo que Antonillembrou as perdas materiais que eram causadas pelo desgoverno senho-rial, mas a sua lógica operou inegavelmente no mesmo campo que o deBenci. Afinal, se persistissem as práticas correntes, os senhores luso-brasileiros não só perderiam seus escravos por meio do suicídio ou dafuga, como poderiam ter destinos semelhantes aos dos hebreus e dosegípcios, narrados no Antigo Testamento. Por conseguinte, enquantoLabat laicizou o pensamento e incorporou a linguagem dos interessesnascente nas discussões filosóficas e políticas européias contemporâne-as, Benci e Antonil continuaram presos no discurso medieval sobre aspaixões.

A imagem que Labat construiu do proprietário de engenho afas-tou-se do patriarca cristão e aproximou-se mais do empresário moderno,vale dizer, do entrepreneur. Ainda que não tenha empregado o termo,sua figura do senhor como um agente econômico que deveria operarracionalmente atinando para seus interesses materiais guardou pontos decontato relevantes com o conceito que estava aparecendo no discursoeconômico coevo, em especial pela lavra de Boisguilbert e Cantillon.80 Aatitude positiva de Labat frente aos empreendimentos metódicos que vi-savam a obtenção de ganhos econômicos fica evidente em seu elogio àpolítica de Colbert, presente em suas considerações finais sobre a manu-fatura açucareira. Ali, Labat propôs a introdução em larga escala nasAntilhas de uma série de novos produtos, tais como o chá, o café, aoliva, a cochonilha e outros mais. Para tanto, a Coroa deveria enviar àsilhas – como já havia feito anteriormente com alguns naturalistas e as-trônomos – “homens sábios, hábeis, inteligentes e desinteressados” para

79 Benci, Economia Cristã, p. 197.80 Sobre o aparecimento do conceito moderno de entrepreneur nesses dois autores, ver Hélène

Vérin, Entrepreneurs, entreprise: histoire d´une idée, Paris, PUF, 1982, pp. 121-174.

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auxiliar no desenvolvimento das novas produções. O sucesso de tal políti-ca já havia sido comprovado nos tempos de Colbert. Afinal, por determi-nação do ministro das Finanças, o estabelecimento de manufaturas de vi-draças finas e de cristais na França rompeu o monopólio veneziano sobreesses produtos, o mesmo ocorrendo em relação aos turcos e persas com aprodução das tapeçarias de luxo nas manufaturas de Gobelins. Em passa-gem lapidar, Labat sintetizou seu ponto de vista sobre a questão:

nosso comércio aumentará à proporção da quantidade e diver-sidade das coisas que formos capazes de enviar ou vender aosestrangeiros, e por conseqüência de fazer florescer nossa Mari-nha a um estado inédito; ao que devo acrescentar que a abudânciade mercadorias nos colocará em posição de lhes dar melhorespreços que os dos concorrentes, nosso comércio se estabelecen-do sobre as ruínas dos seus, e nossos portos se tornando osentrepostos do comércio de todo o mundo.81

O trecho é de extrema relevância, pois evidencia a filiação de Labatàs linhas teóricas gerais do pensamento econômico do período. Em pri-meiro lugar, traz a idéia de que a abundância de mercadorias coloniaisfrancesas possibilitaria a queda dos preços dos artigos tropicais e, con-seqüentemente, o avanço do comércio francês “sobre as ruínas dos es-trangeiros”. Conforme indicou a clássica análise do historiador suecoEli Heckscher, há uma lógica em se procurar debilitar economicamenteos países inimigos: de acordo com os fundamentos do pensamentomercantilista, um Estado só é rico e poderoso se comparado com os seusvizinhos. Nos termos desse historiador, “tal ideologia inspirava-se naconcepção estática da vida econômica, na idéia de que no mundo sóexistia uma determinada quantidade de recursos econômicos, razão pelaqual um país podia acrescentar os seus unicamente à custa dos demais”.Entretanto, isto não significa que os teóricos do período renunciaram àbusca da abundância interna do Reino. Seguindo o mesmo caminho abertopor Jacob Viner em sua crítica à interpretação de Heckscher, CatherineLarrère demonstrou com muita propriedade a distinção que houve no

81 Labat, Nouveau voyage, vol. iii, p. 505.

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mercantilismo entre os princípios do comércio exterior, cujo objetivomaior era assegurar o poder político do Reino frente aos países inimigos,e os princípios do comércio interior, que tinha por objetivo garantir aabundância e o bem-estar aos súditos.82

Ora, as propostas de Labat para o governo dos escravos nasplantations açucareiras francesas se encaixavam perfeitamente nesseesquema mental, pois procuravam aumentar a abundância da produçãocolonial com vistas tanto ao fortalecimento do poder metropolitano noquadro europeu quanto ao crescimento da riqueza dos súditos franceses.Sendo assim, as Antilhas, mais do que campo de missionação, represen-tavam para Labat um campo de negócios e, por essa razão, a tradiçãomoralista clássica sobre a oikonomia e o discurso bíblico das obrigaçõesrecíprocas pouco lhe tinham a fornecer.

Enfim, os anglicanos, os jesuítas radicados na América portugue-sa e dominicanos franceses, por conta de seus diferentes projetos políti-cos e inserção em seus respectivos jogos imperiais, deram respostas dis-tintas ao movimento de mercantilização acelerada da esconomia escravistado Novo Mundo na passagem do século XVII para o XVIII. Enquantoos primeiros tentaram atualizar o ideal antigo do patriacalismo cristão,os últimos – em especial Jean-Baptiste Labat – adotaram o ponto devista dos agentes escravistas coloniais, mais afinados à imagem moder-na do entrepreneur.

82 Eli F. Heckscher, La época mercantilista, México, Fondo de Cultura Econômica, 1983, p. 470;Jacob Viner, “Poder versus abundância, como objetivos da política exterior nos séculos XVII eXVIII”, in Viner, Ensaios selecionados (Rio de Janeiro, FGV, 1972); Catherine Larrère, L’inventionde l’économie au XVIIIe siècle. Du droit naturel à la physiocratie, Paris, PUF, 1992, pp. 101-107. Nessa passagem, retomo a interpretação que apresentei em outro trabalho, “Inovações técni-cas e atitudes intelectuais na literatura açucareira francesa e luso-brasileira da primeira metade doséculo XVIII”, Anais do Museu Paulista, Nova Série, nº 5 (1997), pp. 131-161.