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3994 IDENTIFICANDO A PRAXEOLOGIA DE ATIVIDADES DE CAMPO: ESTUDO DO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES Fausto de Oliveira Gomes (GEENF/FE-USP) Martha Marandino (Livre Docente em Educação, GEENF/FE-USP) Resumo A partir das análises sugeridas por Chevallard e reunidas com base da Teoria Antropológica do Didático (TAD) identificamos a praxeologia de uma atividade realizada durante um estudo do meio com as alunas do curso de pedagogia da Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, na disciplina Natureza, Cultura Científica e Educação, em 2015. Para construir a praxeologia dos sujeitos durante a atividade, identificamos os tipos de tarefas e as tarefas sugeridas pelas professoras e as técnicas, tecnologias e teorias acionadas por um grupo de alunas para resolução da atividade. A partir da Organização Praxeológica (OP) caracterizada, foi possível perceber elementos que explicitam o momento didático no qual há a interação entre os sujeitos e o objeto de estudo afim de produzirem novos conhecimentos. Palavras-chave: Teoria Antropológica do Didático, Praxeologia, Estudo do Meio, Formação de Professores. A investigação Assumimos que a experiência de estudo do meio é fundamental na formação de professores da educação básica, bem como na formação de pedagogos que irão atuar em diferentes instâncias de ensino. Como afirma Marandino et al (2010), a vivência de situações de aprendizagem em locais diferentes daqueles relacionados rotineiramente à escola, associada à reflexões das implicações culturais, sociais e científicas dessas saídas para os profissionais em formação pode levar ao desenvolvimento de um olhar crítico sobre a realidade social, cultural e a um contato mais próximo com elementos da ciência que favorecem a alfabetização científica dos sujeitos envolvidos, contribuindo na formação integral de cada um. Nesse estudo atentamos para uma atividade específica realizada durante um estudo do meio e acreditamos que as reflexões apresentadas podem colaborar para o planejamento de atividades que sejam mais eficientes na alfabetização científica dos alunos envolvidos. Revista da SBEnBio - Número 9 - 2016 VI Enebio e VIII Erebio Regional 3 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia

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IDENTIFICANDO A PRAXEOLOGIA DE ATIVIDADES DE CAMPO: ESTUDO DO

PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Fausto de Oliveira Gomes (GEENF/FE-USP)

Martha Marandino (Livre Docente em Educação, GEENF/FE-USP)

Resumo

A partir das análises sugeridas por Chevallard e reunidas com base da Teoria

Antropológica do Didático (TAD) identificamos a praxeologia de uma atividade realizada

durante um estudo do meio com as alunas do curso de pedagogia da Faculdade de Educação,

Universidade de São Paulo, na disciplina Natureza, Cultura Científica e Educação, em 2015.

Para construir a praxeologia dos sujeitos durante a atividade, identificamos os tipos de tarefas

e as tarefas sugeridas pelas professoras e as técnicas, tecnologias e teorias acionadas por um

grupo de alunas para resolução da atividade. A partir da Organização Praxeológica (OP)

caracterizada, foi possível perceber elementos que explicitam o momento didático no qual há

a interação entre os sujeitos e o objeto de estudo afim de produzirem novos conhecimentos.

Palavras-chave: Teoria Antropológica do Didático, Praxeologia, Estudo do Meio, Formação

de Professores.

A investigação

Assumimos que a experiência de estudo do meio é fundamental na formação de

professores da educação básica, bem como na formação de pedagogos que irão atuar em

diferentes instâncias de ensino. Como afirma Marandino et al (2010), a vivência de situações

de aprendizagem em locais diferentes daqueles relacionados rotineiramente à escola,

associada à reflexões das implicações culturais, sociais e científicas dessas saídas para os

profissionais em formação pode levar ao desenvolvimento de um olhar crítico sobre a

realidade social, cultural e a um contato mais próximo com elementos da ciência que

favorecem a alfabetização científica dos sujeitos envolvidos, contribuindo na formação

integral de cada um. Nesse estudo atentamos para uma atividade específica realizada durante

um estudo do meio e acreditamos que as reflexões apresentadas podem colaborar para o

planejamento de atividades que sejam mais eficientes na alfabetização científica dos alunos

envolvidos.

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Usamos como referencial teórico e de análise a Teoria Antropológica do Didático

(TAD) que vem sendo utilizada por muitos autores como ferramenta que privilegia processos

de ensino dos conteúdos conceituais e procedimentais de ciências na sala de aula, em grupos

de estudo e em museus. Esta pesquisa assume como foco de interesse outro aspecto da

formação científica dos sujeitos, a saber: o ensino de procedimentos em atividades de campo.

Privilegiaremos a análise praxeológica de procedimentos científicos escolarizados na

formação inicial de professores no curso de Pedagogia da USP. Mais precisamente, essa

pesquisa analisará a organização praxeológica de uma atividade do estudo do meio realizado

na Ilha de Anchieta, no litoral do Estado de São Paulo, na disciplina Natureza, Cultura

Científica e Educação da FEUSP (MARANDINO et al, 2010).

Analisamos a estrutura do encontro didático entre o saber ensinado e o aluno em

situações de trabalho de campo, bem como a atuação desses alunos sobre o objeto de saber no

meio didático criado pelos professores para a aquisição de conhecimentos relativos aos

procedimentos científicos produzidos e utilizados tradicionalmente nas ciências biológicas em

atividades de campo. Para tanto, primeiro registramos a ação das alunas no campo no

momento em que se mobilizam para resolver a atividade proposta, depois identificamos e

organizamos as interações das alunas identificadas no registro de forma a compor a

praxeologia das alunas durante a resolução da atividade.

Diante do alinhamento entre a teoria, as tarefas, os tipos de tarefas, as técnicas

utilizadas e as tecnologias envolvidas, temos como ponto de partida desta investigação a

seguinte questão: Como estão estruturados os processos de estudo de práticas científicas

escolarizadas em atividades de campo? Nossa intenção é a de que refletir sobre o ensino de

procedimentos em atividades de campo pode colaborar para planejar e desenvolver atividades

que sejam mais eficientes na alfabetização científica e, consequentemente, para a formação

integral do indivíduo.

Justificativa

Ancorados na Teoria Antropológica do Didático escolhemos analisar as ações dos

alunos durante uma atividade de campo a partir da praxeologia observada na resolução das

questões e desafios propostos. Com base na TAD é possível explicitar a estrutura do encontro

didático entre um grupo de alunas de pedagogia, e o objeto de estudo, no caso a identificação

da biodiversidade de uma parte da Ilha Anchieta em Ubatuba/SP. Considera-se que a proposta

de ensino analisada seja um dos meios desses sujeitos aprenderem conceitos de classificação

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biológica atrelados a procedimentos de identificação da biodiversidade de determinada região.

Ao explicitar a praxeologia dessa atividade contribuímos para as reflexões acerca da

elaboração de atividades de campo mais eficientes, ou seja, que alcancem os propósitos

pedagógicos almejados - a alfabetização científica. Neste sentido, a investigação proposta

ajuda a revelar os possíveis alcances e limites que as atividades de campo possuem para o

desenvolvimento da alfabetização cientifica dos alunos. Além disso, essa pesquisa também

contribui para ampliar os usos da TAD e da praxeologia na análise de situações didáticas

frequentes nas disciplinas de Ciências Naturais, os trabalhos de campo.

Fundamentação Teórica

A Teoria Antropológica do Didático

Sugerida por Chevallard (2007), a Teoria Antropológica do Didático (TAD)

manifestava-se já na Teoria da Transposição Didática (TTD) que tinha por objetivo distinguir

os diferentes saberes envolvidos no processo pedagógico e as instituições às quais esses

saberes estão relacionados. Na TTD, cada instituição produzia sua própria versão do

conhecimento, o resultado da interação entre os sujeitos dessa instituição e o objeto (saber).

Ao observar os conhecimentos que são ensinados nas escolas e o seus referenciais acadêmicos

a partir dos quais esses conhecimentos foram forjados, percebemos uma profunda diferença

entre os dois. Essa diferença existe para que o saber acadêmico (saber sábio) se torne

ensinável para os alunos (saber a ensinar) e possa ser aprendido por cada um deles (saber

aprendido), sendo esta a definição do conceito de transposição didática (MARANDINO,

2004).

A TAD, assim como a TTD, foi desenvolvida inicialmente na didática da matemática,

e sugere a praxeologia como postulado básico segundo o qual pode-se descrever qualquer

atividade humana que seja regularmente realizada (CHEVALLARD, 2007). Desse modo, a

praxeologia pode ser estendida a quaisquer outras atividades humanas, não se limitando à

didática da matemática. A TAD considera as atividades de aprendizagem, e aqui inclui-se a

aprendizagem em ciências, parte do conjunto das atividades humanas e inserida nas

instituições sociais e, por pertencer ao conjunto das atividades humanas, as atividades de

aprendizagem em ciências também podem ser descritas em termos da praxeologias

(CHEVALLARD, 2006).

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Nesta perspectiva, o saber assume diferentes formas em diferentes instituições. Para

cada instituição uma forma de saber existe como resultado das relações entre alguns

elementos fundamentais: a instituição, o objeto do saber e a pessoa. E essas relações, por

pertencerem ao conjunto de atividades humanas, também são descritas a partir de uma ótica

praxeológica.

Chevallard ainda propõe uma noção de conhecimento (1996). Assim, conhecer algo

(objeto) na TAD é estabelecer uma relação cognitiva com o objeto. E essa relação que os

alunos estabelecem com o objeto durante a resolução de uma atividade é chamada de estudo.

A TAD redefine o sentido da palavra estudo, caracterizando como qualquer ação humana que

tenha o objetivo de aprender algo (saber) ou aprender a fazer algo (saber fazer).

Segundo Machado (2011), o termo praxeologia pode ser traduzido por “prática calcada

em conhecimentos”. De fato, praxeologia é a junção das palavras gregas praxis e logos, que

significam, respectivamente, prática e lógica. Na TAD, a praxis constitui o bloco prático das

ações humanas e é identificada nas tarefas (questões/atividades) e nas técnicas (maneira de

fazer algo) e o logos é o bloco reflexivo que justifica e interpreta a prática - denominados

tecnologias e teorias (BOSCH e GASCÓN, 2014).

A praxeologia, então, é uma entidade formada por quatro componentes, denominados

usualmente de “quatro Ts”. Diante de um tipo de tarefa (T), um conjunto de técnicas (τ) é

mobilizado para resolver a questão. Da reflexão que se faz sobre a utilização das técnicas tem-

se a tecnologia e, em uma extrapolação mais difícil de ser alcançada pelos sujeitos sem

auxílio externo, a reflexão a respeito da tecnologia e de suas aplicações tem-se a teoria

(BUENO, 2015).

A praxeologia nos servirá, portanto, para analisar as ações dos sujeitos (x), ou de um

grupo de sujeitos (X) que deverão aprender determinado conhecimento, expresso como saber

ensinado (O), com a ajuda de outra pessoa, um “assistente de estudo” (Y) (CHEVALLARD,

2012; BOSCH e GASCÓN, 2014). Dessa forma, a estrutura do sistema didático analisado

S(X; Y; O) será descrito tendo o grupo de sujeitos que estuda (X) representados pelo grupo de

alunas que realiza a atividade, os “assistentes de estudo” (Y), tudo o que pode auxiliar as

alunas ao longo da atividade desenvolvida e o objeto de estudo (O), que em nossa pesquisa foi

a realização de um levantamento da biodiversidade da ilha Anchieta por amostragem de

espécies classificadas em morfotipos diferentes.

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Objetivos

Tendo como pano de fundo a alfabetização científica dos alunos em um contexto de

educação formal não podemos deixar de pensar que “… o ensino somente se realiza e merece

esse nome se for eficaz e fizer o aluno aprender. O trabalho do professor, portanto, deve

direcionar-se totalmente para a aprendizagem dos alunos. (…). O ensino e a aprendizagem

devem ser vistos como uma unidade.” (CARVALHO et al, 1998). Para Chevallard, contudo,

muita ênfase tem sido dada a análise da aprendizagem a partir de teorias advindas da

psicologia e pouca atenção ao estudo do “ensino”. A percepção de Chevallard sobre a didática

e a pedagogia é que esta última estaria “colonizada” pela psicologia, centrando seu olhar

sobre a relação professor-aluno e excluindo o saber, que não é problematizado. A TAD surge,

desse modo, como uma teoria que sugere a incorporação dos saberes envolvidos na relação de

ensino-aprendizagem na análise dos processos didáticos.

Alinhado com essa perspectiva a respeito do trabalho do professor e buscando analisar

como o ensino é estruturado, o objetivo da investigação aqui proposta é, em linhas gerais,

descrever a organização praxeológica (OP) dos alunos em sua atuação sobre o objeto do saber

durante o momento didático criado pelo professor.

Como objetivos mais específicos podemos apontar, primeiro, a identificação das

tarefas apresentadas nas aulas que antecederam a atividade de campo, no caderno de campo

que os alunos receberam e nas instruções fornecidas pelos professores e monitores; segundo, a

identificação das técnicas acionadas pelas alunas para resolver cada uma das tarefas e; por

fim, a identificação de momentos de reflexão sobre a prática que caracterizariam o alcance à

tecnologia e, quiçá, à teoria envolvida nessa atividade.

Metodologia Utilizada

A atividade selecionada como foco de interesse empírico desta investigação ocorreu

no âmbito da saída de campo da disciplina Natureza, Cultura Científica e Educação,

ministrada para estudantes do curso de pedagogia da Faculdade de Educação da USP. Esse

estudo do meio prevê uma série de atividades que envolvem visitas à instituições de

divulgação científica como o Aquário de Ubatuba e o Projeto Tamar, entrevistas aos

moradores da cidade de São Sebastião, construção de perfil de vegetação e visita a

ecossistemas costeiros com análise da diversidade e riqueza de espécies baseada em

morfotipos. Nesta pesquisa analisaremos especificamente a atividade de levantamento da

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diversidade e riqueza de espécies através da contagem de morfotipos vegetais em parcelas

quadradas construídas pelas alunas ao longo de uma trilha na Ilha de Anchieta, localizada em

Ubatuba.

Foram obtidos dados que justificam a formulação das técnicas, teorias e tipos de

teorias nos registros feitos em vídeo dos momentos de interação das alunas com o caderno de

campo. Na transcrição das falas do vídeo foram identificadas as sequências de diálogo

representativas (SDR) que indicavam a resolução da atividade pelas alunas. O caderno de

campo foi elaborado previamente pelas professoras e monitores responsáveis pela disciplina e

contém informações e instruções a respeito de todas as atividades realizadas no estudo do

meio, mas não podemos presumir que as mensagens do caderno sejam percebidas da mesma

forma por todas as alunas durante seu momento de estudo desse material.

Consideramos o estudo como a ação consciente de um indivíduo, ou grupo de

indivíduos, afim de aprender algo ou aprender a fazer algo (CHEVALLARD, 2012). A análise

das SDRs forneceu evidências sobre o processo de estudo das alunas, com vistas a uma

reflexão mais ampla da organização praxeológica da atividade de campo observada.

Resultados e Discussão

Este estudo encontra-se em desenvolvimento e apresentamos aqui parte das análises

realizadas até o momento. Das informações extraídas do caderno de campo que os alunos

receberam no início da disciplina pudemos identificar um Tipo de Tarefa que norteia a

atividade. Neste contexto, as alunas acionaram Técnicas que lhes permitiram solucionar cada

uma das Tarefas identificadas por elas no caderno de campo. Essas informações pertencem ao

nível prático (praxis) da praxeologia.

A exemplo de trabalhos realizados anteriormente utilizando a TAD, sobretudo da

Bueno (2015), apresentamos em uma tabela a praxeologia acionada pelas alunas durante a

realização de uma atividade. Em acordo com Bueno (2015), a praxeologia é formada por um

conjunto de tarefas a serem percebidas e realizadas pelas alunas usando uma técnica

correspondente ou pode, também, ocorrer em uma escala maior na qual um tipo de tarefa pode

estar relacionado a diversas tarefas a serem resolvidas com suas respectivas técnicas.

A tabela de praxeologia aqui apresentada contém informações retiradas das

observações do vídeo e da transcrição, a partir da qual são explicitados os momentos de

interação entre os três elementos dessa situação didática S (X, Y, O) (CHEVALLARD, 2012)

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O Tipo de Tarefa (T) é apresentado aos alunos antes da atividade de campo, em dois

momentos (na sala de aula dias antes da viagem e retomada na noite anterior a saída). Pela

leitura do caderno de campo retiramos que T é apresentado aos alunos na forma de questões

(Qn) disparadoras da atividade e que, segundo Chevallard (2012), se forem bem elaboradas,

podem desencadear uma situação na qual X estuda O, originando assim um sistema didático.

Da leitura do caderno de campo temos que:

Q1 = “Como poderíamos identificar a biodiversidade existente no Parque Estadual da Ilha

Anchieta?”;

Q2 = “Como poderíamos definir a diversidade da flora da Ilha Anchieta?”;

Q3 = “Como se compõem e se escolhem amostras representativas do que queremos estudar?”.

Além dessas questões o caderno de campo também trás o Tipo de Tarefa explicitando:

T = “Os grupos se dividirão nas áreas da trilha para estudar a diversidade vegetal da região.

Cada grupo irá levantar a diversidade de vegetais presentes em uma parcela de 0,64m2

(80cm x 80cm)” (grifo meu)

Podemos perceber a ação das alunas sobre o objeto de estudo no trecho selecionado da

transcrição e apresentado a seguir. Percebemos que nesse sistema didático as alunas compõem

o fator X, os materiais são o fator O e o caderno de campo compõe o fator y. Dessa forma

nosso sistema didático S(X, y, O) se apresenta como S(Alunas, caderno de campo, materiais

para o quadrante)."

Aluna 5 (A5) – (lendo) divida seu quadrado nos pontos

indicados, para isso utilize o elástico...

Aluna 4 (A4) – Aqui os pontos indicados, aqui também...

A1 – Que que tem esses pontos ai?

A4 – Acho que é pra prender o elástico assim (mostra

esticando o elástico de um ponto ao outro.”

Nesse trecho e na imagem 1, podemos ainda

identificar uma tarefa, nomeada como t2, no momento no qual elas leem as instruções

Imagem 1. Momento no qual uma das alunas interage com os materiais afim de construir o quadrante. Fonte: acervo próprio.

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presentes no caderno de campo: t2= Dividir o quadrado nos pontos indicados, usando para

isso o elástico. Ao longo da atividade outras tarefas foram identificadas e também são

apresentadas na tabela abaixo. Os Tipos de Tarefas (T), as Tarefas (tn), as Técnicas (τ) e as

Tecnologias identificadas na transcrição estão explicitados na tabela de praxeologia abaixo:

Tabela 1: Praxeologia da atividade de levantamento estatístico da biodiversidade de uma

determinada região.

Tipo de Tarefa (T) Tarefa (tn) Técnica (τ) Tecnologia

Levantar a diversidade de

vegetais presentes em

uma parcela de 0,64m2

(80cm x 80cm)

t1= Montar as peças de

maneira a obter um

quadrado e coloca-lo no

solo para limitar a área a

ser amostrada

Encaixam as peças de

cano para construírem um

quadrado

t2= Dividir o quadrado

nos pontos indicados,

usando para isso o

elástico.

Percebem as fissuras nos

canos e as utilizam para

prender os elásticos

t3= Definir os morfotipos

(m) que ocupam a área

amostrada.

Reconhecem o formato da

folha e o tamanho da

planta como

características

diagnósticas dos

morfotipos e os

identificam por

comparação direta entre

os indivíduos amostrados

Indivíduos que possuem

as mesmas características

são agrupados como

sendo da mesma espécie

t4= Registrar os

morfotipos identificados

e numera-los.

Fotografam da melhor

maneira encontrada de

registrar e numerar o

registro de cada um dos

morfotipos

t5= contar todos os

indivíduos de cada

morfotipo.

Para cada quadrante as

alunas reconhecem os

morfotipos por

semelhanças

morfológicas com as

fotografias e contam a

quantidade de ocorrências A biodiversidade pode ser

inferida a partir de

pequenas amostras

aleatórias do terreno

t6= Preencher a tabela do

caderno de campo.

Cada uma das células da

tabela foi preenchida

com o número de

corrências de cada

morfotipo para cada um

dos quadrantes

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Cada uma das tarefas (t) apontadas na tabela surgiu dos momentos de interação das

alunas com as questões (Q) propostas no caderno de campo. Pela sua função de mediar a ação

das alunas sobre o objeto de estudo é que podemos considerar o caderno de campo como

mediador (y) desse estudo da mesma forma que Bueno (2015) e Marandino (2004)

consideram os textos e imagens museográficas como mediadores do estudo do visitante sobre

o objeto.

Para identificar as técnicas observamos as estratégias de resolução das tarefas que são

acionadas pelas alunas de forma semelhante a Machado na construção de sua organização

praxeológica (MACHADO 2011). Como exemplo temos a tarefa 3 (t3=Definir os morfotipos

(m) que ocupam a área amostrada), em vários momentos da atividade percebe-se a ação das

alunas para resolver essa tarefa e é nesses momentos que as técnicas (τ) são acionadas, a

seguir um desses momentos:

“(…)

A5 – Esse aqui é o três [morfotipo 3] né?

A4 – É... tem que ser aberto nas folhas...

(…)

A4 – Não é... olha só como é os veios (sic)...

A2 – Acho que é desse daqui ó

A4 – É, desse daqui... Porque é parecida

essa folhinha pequena aqui com essa

daqui…” (grifos nossos)

Nota-se, na transcrição, que as alunas utilizaram características morfológicas para

diferenciar os morfotipos (“tem que ser aberto nas folhas” e “olha só como é os veios”) e

também utilizaram de comparações diretas entre os indivíduos para definir os limites de cada

um dos morfotipos (“é parecida essa folhinha pequena aqui com essa daqui”). Dessas ações

identificamos a técnica “Reconhecem o formato da folha e o tamanho da planta como

características diagnósticas dos morfotipos e os identificam por comparação direta entre os

indivíduos amostrados”. Percebemos uma retomada dessa técnica quase sempre que as alunas

começam a contagem de um novo morfotipo.

Nessa análise, fica evidente o papel dos “assistentes de estudo” (Y) na interação com

as alunas (X) que pode ser representado pelo próprio caderno de campo ou pelos monitores

que acompanharam a disciplina. Através de perguntas reflexivas, os monitores provocaram

nas alunas reflexões sobre suas dúvidas e questões, apoiando-as para que pudessem atingir o

bloco do logos dessa atividade, mais especificamente, o nível de tecnologia (relacionar as

características dos indivíduos com sua idade e a validade dessa informação para a

classificação dos organismos). Utilizando-se do que foi posto por Chevallard (2012) e Bosch

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e Gáscon (2014), o sistema didático S(X, y, O) para esse exemplo se apresenta como S(alunas,

monitor, características das plantas). Nota-se essa ação facilitadora do monitor (y) e a

expressão da tecnologia no discurso da aluna no seguinte trecho selecionado, como exemplo,

da transcrição. Nesse momento as alunas conversam com o monitor (M2) que lhes

proporciona um nível de reflexão que as faz alcançar a tecnologia da atividade:

"(…)

M2 – Por que você acha que é a mesma?

A1 – Porque tá no mesmo galho.

M2 – É mesmo uma evidência bem forte. Mas

por que, então elas podem aparecer tão

diferentes?

A1 – Porque elas são menores?

A4 – Pode ser o tamanho mesmo, porque elas

são novinhas?

M2 – Mas você percebe essa diferença nessas

outras aqui?

A1 – Ela é mais achatadinha, mas

arredondada...

M2 – Então você tá me dizendo que...

A4 – pode ser uma característica da planta

ser assim quando novinha e depois ela fica

mais fina e comprida.

A1 – Pode ser que ela seja assim e com o

passar do tempo vá ficando assim...

A4 – Eu acho que é a mesma.

(…)” (grifos nossos)

Nesse trecho percebemos que a partir de uma intervenção do monitor (“…por que,

então, elas podem parecer tão diferentes?”) as alunas buscam evidências no objeto (“Porque

elas são menores?" e “… o tamanho mesmo, porque elas são novinhas?) e, após outra

intervenção do monitor, parecendo querer guiar a reflexão delas (“Mas você percebe essa

diferença nessas outras aqui?), as alunas alcançam um nível de análise mais elaborado e

complexo que relaciona o que estão observando, o tamanho das folhas, com o que elas já

conhecem a respeito dos seres vivos e da variação de tamanho em função da idade da planta

(“Ela é mais achatadinha, mais arredondada…” e “pode ser uma característica da planta ser

assim quando novinha e depois ela fica mais fina e comprida” e ainda “Pode ser que ela seja

assim e com o passar do tempo vá ficando assim…"). De acordo com as definições

apresentadas por Bueno (2015) e Machado (2011), chamamos esse outro nível de interação

com o objeto de tecnologia e apresento-o na coluna da direita da tabela de praxeologia.

Percebemos, no exemplo indicado, que ao refletir sobre uma determinada técnica as

alunas adentram ao nível lógico da atividade. Mais especificamente, atingem o nível da

tecnologia no qual elas são capazes de extrair o significado da atividade ou explicação para o

que estão fazendo, o que concorda com Bueno (2015) quando diz que a tecnologia é “a

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justificativa ou a análise racional para a escolha da técnica. É a reflexão sobre um conceito e a

justificativa para a escolha da técnica” (p.43). Nesse caso a técnica envolve a distinção dos

formatos e estilos de folhas, assim, quando as alunas refletem sobre o que representam essas

diferenças podemos afirmar que adentraram no bloco lógico (logos) da praxeologia.

Conclusões

Retomando o sistema didático formado por S(X, Y, O), podemos afirmar que os textos

presentes em materiais de apoio aos estudantes podem servir de maneira tão eficiente quanto

monitores na função de mediação de uma atividade. E, dialogando com a TAD

(CHEVALLARD, 2012), apontamos que essa situação representa um momento no qual, a fim

de aprender algo a respeito de O, X tem que “estudar” (no sentido da TAD) O. Identifica-se,

desse modo, a estrutura do sistema didático analisado, cuja análise aponta para a importância

dos materiais de apoio e dos monitores no decorrer da atividade.

Acreditando na importância de refletir sobre as atividades práticas e dos estudos do

meio na formação de professores de ciências, situamos essa pesquisa, que ainda está em

andamento, no conjunto de estudos sobre atividades na formação de professores que

colaboram para refletir sobre a formação de docentes que estejam preparados para alfabetizar

cientificamente seus alunos.

Nossos resultados, ainda em processo de análise, já apontam a possibilidade de

envolver os alunos em atividades que lhes possibilitem alcançar o logos da atividade,

entrando em contato com os saberes envolvidos nessa atividade, na presença de um mediador

que pode ser tanto um monitor ou professor quanto um caderno de campo ou texto de apoio.

Referências

BOSCH, M. e GASCÓN, J. Introduction to the Antropological Theory of the Didactic (ATD).

In: BIKNER-AHSBAHS, A. e PREDIGER, S. (eds.) Networking of Theories as

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