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1 Identidades religiosa e cultural no Brasil oitocentista: Um estudo a partir dos relatos de viagem de Auguste de Saint-Hilaire. Aparecido Barbosa 1 O estudo que propomos tem como objetivo pesquisar as expressões de identidades religiosa e cultural do brasileiro, nas festas religiosas e dias santos nos relatos de viagens de Saint-Hilaire, que esteve no Brasil nos anos de 1816 a 1822. Este catolicismo segundo os historiadores Ítalo D. Santirocchi e Thomas Bruneau deve ser analisado a partir da relação entre Igreja e Estado, que na sua trajetória histórica foi impactado pelos processos do regalismo, romanização e mais tarde pelo Ultramontanismo. Como método para a interpretação e avaliação dos trechos selecionados, enquanto representação” segundo Roger Chartier 2 , será feito uma análise qualitativa dos relatos produzidos pelo viajante. Ou seja, interpretações representativas dos relatos que dizem respeito ao fenômeno religioso no Brasil do período estudado. Da historiografia que até o momento pesquisou a literatura de viagem, percebemos uma lacuna temática nos estudos, pois não se deu a devida atenção sobre o fenômeno religioso como tema central. Em virtude dessa falta de pesquisas, pretendemos apontar essa literatura como fonte documental para os estudos e pesquisas futuras por parte dos cientistas da religião. Palavras chaves: Relatos de Viagem oitocentista Representação - Identidades Religiosa. 1 Bacharel em Filosofia e Teologia pela Puc-Campinas; graduando no campo da Licenciatura em História pela Universidade Metodista de Piracicaba; mestrando no programa de pós-graduação stricto sensu em Ciências da Religião da Puc-Campinas na área História das religiões e religiosidade no Brasil, vinculado na linha de pesquisa Fenômeno religioso: instituições e práticas discursivas, sob a orientação do Prof. Dr. João Miguel. 2 Tendo como base os trabalhos de Pierre Bourdieu em La distinction, critique sociale du jugemont, Paris, Minut, 1979. Roger Chartier entende o conceito de Representação como as classificações e divisões que organizam a apreensão do mundo social como categorias de percepção do real. As representações são variáveis segundo as disposições dos grupos ou classes sociais; aspiram à universalidade, mas são sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam. O poder e a dominação estão sempre presentes. As representações não são discursos neutros: produzem estratégias e práticas tendentes a impor uma autoridade, uma deferência, e mesmo a legitimar escolhas. Ora, é certo que elas colocam-se no campo da concorrência e da luta. Nas lutas de representações tenta-se impor a outro ou ao mesmo grupo sua concepção de mundo social: conflitos que são tão importantes quanto às lutas econômicas; são tão decisivos quanto menos imediatamente materiais (CHARTIER, 1990, p. 17).

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Identidades religiosa e cultural no Brasil oitocentista: Um estudo a partir dos relatos

de viagem de Auguste de Saint-Hilaire.

Aparecido Barbosa1

O estudo que propomos tem como objetivo pesquisar as expressões de identidades

religiosa e cultural do brasileiro, nas festas religiosas e dias santos nos relatos de viagens

de Saint-Hilaire, que esteve no Brasil nos anos de 1816 a 1822. Este catolicismo segundo

os historiadores Ítalo D. Santirocchi e Thomas Bruneau deve ser analisado a partir da

relação entre Igreja e Estado, que na sua trajetória histórica foi impactado pelos processos

do regalismo, romanização e mais tarde pelo Ultramontanismo. Como método para a

interpretação e avaliação dos trechos selecionados, enquanto “representação” segundo

Roger Chartier2, será feito uma análise qualitativa dos relatos produzidos pelo viajante. Ou

seja, interpretações representativas dos relatos que dizem respeito ao fenômeno religioso

no Brasil do período estudado. Da historiografia que até o momento pesquisou a literatura

de viagem, percebemos uma lacuna temática nos estudos, pois não se deu a devida atenção

sobre o fenômeno religioso como tema central. Em virtude dessa falta de pesquisas,

pretendemos apontar essa literatura como fonte documental para os estudos e pesquisas

futuras por parte dos cientistas da religião.

Palavras chaves: Relatos de Viagem oitocentista – Representação - Identidades Religiosa.

1 Bacharel em Filosofia e Teologia pela Puc-Campinas; graduando no campo da Licenciatura em História pela Universidade Metodista de Piracicaba; mestrando no programa de pós-graduação stricto sensu em Ciências da Religião da Puc-Campinas na área História das religiões e religiosidade no Brasil, vinculado na linha de pesquisa Fenômeno religioso: instituições e práticas discursivas, sob a orientação do Prof. Dr. João Miguel. 2 Tendo como base os trabalhos de Pierre Bourdieu em La distinction, critique sociale du jugemont, Paris,

Minut, 1979. Roger Chartier entende o conceito de Representação como as classificações e divisões que

organizam a apreensão do mundo social como categorias de percepção do real. As representações são

variáveis segundo as disposições dos grupos ou classes sociais; aspiram à universalidade, mas são sempre

determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam. O poder e a dominação estão sempre presentes. As

representações não são discursos neutros: produzem estratégias e práticas tendentes a impor uma autoridade,

uma deferência, e mesmo a legitimar escolhas. Ora, é certo que elas colocam-se no campo da concorrência e

da luta. Nas lutas de representações tenta-se impor a outro ou ao mesmo grupo sua concepção de mundo

social: conflitos que são tão importantes quanto às lutas econômicas; são tão decisivos quanto menos

imediatamente materiais (CHARTIER, 1990, p. 17).

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1. Literatura de Viagem e pesquisa histórica na análise do fenômeno religioso

Essa pesquisa nasceu de outro projeto, intitulado Relatos de Viajantes: Raça e

Civilização no Brasil Oitocentista, desenvolvido no âmbito do programa de Apoio à

Iniciação Científica da Universidade Metodista de Piracicaba, nos anos 2014/20153. Para

essa pesquisa selecionamos 17 autores; após uma análise mais precisa chegou-se a 9

viajantes. Nos relatos analisados naquela ocasião, encontramos muitos comentários sobre o

fenômeno religioso, como as festas e dias santos. Assim que definimos neste projeto

pesquisar esse fenômeno, acabamos excluindo 8 obras, e definimos o recorte temporal de

1816 a 1822, período que o viajante selecionado esteve no Brasil.

O Viajante é Auguste de Saint-Hilaire, francês; naturalista, botânico e zoólogo;

permaneceu no Brasil de 1816 á 1822. Viajou pelos estados do Rio de Janeiro, Minas

Gerais, Goiás, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Veio ao Brasil enviado pelo

governo francês, e comissionado pelo Museu de História Natural de Paris. Como botânico

seu principal objetivo era pesquisar e coletar amostras da fauna e da flora brasileira.

Porém, quase nada escapou em seus relatos, descreveu os costumes, a culinária, a cultura

social e religiosa dos negros, índios e brancos. Saint-Hilaire escreveu nove obras, destas

selecionamos sua primeira viagem para analisarmos suas descrições sobre as festas e dias

santos, a saber, a “Voyage dans les provinces de Rio de Janeiro et de Minas Geraes”,

publicada em Paris em 1830.

O contexto e o momento da entrada dos viajantes no Brasil foram à vinda da

família real (1808) e o decreto assinado em Salvador por D. João VI, que possibilitou a

abertura dos portos; o que acarretou o fim do exclusivismo português, e consequentemente,

impulsionou a entrada de muitos viajantes no país. O Viajante Saint-Hilaire descreve esse

momento: “Quando o Rei D. João VI mudou para o Rio de Janeiro a sede do seu império, o

Brasil abriu-se, finalmente, aos estrangeiros” (SAINT-HILAIRE, 2000, p. 17).

A literatura de viagem foi impulsionada pelo avanço cientifico do século XVIII e XIX,

por interesses econômicos e expansionistas dos estados, pela experiência social do grupo

de origem do viajante e pela própria viajem.

Segundo a historiadora Karen M. Lisboa chegaram ao Brasil: naturalistas,

comerciantes, diplomatas, mercenários, imigrantes e aventureiros. Os objetivos eram:

3 Projeto orientado pela historiadora Dra. Valéria Alves Esteves Lima.

3

“particulares, comerciais, científicos, literários ou de exploração dos recursos naturais,

interagindo com os objetivos da esfera pública” (LISBOA, 1997, p. 32). Estes estudaram a

fauna e a flora, observaram a vida social, tanto rural como urbana, avaliaram as relações de

trabalho, produção, a condição econômica, e se interessaram pelas questões culturais e

religiosas, dentre elas destacamos os relatos sobre as festas religiosas e dias santos.

Segundo a historiadora e antropóloga Ilka Boaventura Leite na Obra “Antropologia

da Viagem”, os relatos culturais e religiosos faz parte do estudo e do culto do “outro”, bem

como da busca e o desejo pelos povos e culturas “exóticas”, que vigorava na Europa

expansionista e colonialista. A literatura que relatava estas informações servia não só aos

governos e cientistas, mas abastecia um mercado por parte de pessoas que não podiam

viajar que buscavam conhecer tais povos e culturas, o “outro”, o “exótico”, do além-mar.

Dai a variabilidade temática dos relatos dos viajantes, e dentre estas estão às descrições, e

às vezes capítulos sobre o fenômeno religioso.

O estilo literário dos viajantes e suas manifestações históricas revelam inúmeras formas

de errância e inúmeros estilos de descrições, determinadas pelas condições históricas e

cientifico de sua época, bem como, pela dimensão subjetiva dos autores, que se apresentam

como detentores do saber, do progresso e da civilização. Segundo a historiadora Karen

“seus escritos estão entre crônicas, epistolas e os relatos científicos” (LISBOA,1997,p. 34).

Há um consenso entre os historiadores e pesquisadores da literatura de viagens que

esses escritos com algumas “ressalvas”4 são fontes para a pesquisa cientifica. Porém, para

uma análise e compreensão mais profunda é preciso pesquisar suas especificidades, como:

o contexto social, cultural, econômico e científico. Bem como, é necessário compreender

os pensamentos que iluminaram esses escritos e as características desse gênero literário, e

consequentemente o procedimento crítico e metodológico que é submetido essa literatura.

Segundo o historiador Adalberto Marson, o pesquisador não pode ser ingênuo, pois “o

documento não é isolado, mas existe em relação a outros que ampliam o seu sentido e

permitem maior aproximação da realidade” (MARSON, 1984, p.53).

Alguns filósofos e naturalistas estão presentes, de forma representativa, na matriz

intelectual e conceitual de Saint-Hilaire. Dentre eles, Jean Jacques Rousseau (1744-1803)

foi um defensor do pensamento iluminista. Refletiu sobre temas como: discurso sobre a

4 Segundo a historiadora Karen M. Lisboa e outros pesquisadores dessa literatura, é preciso ter uma olhar

crítico, criterioso e procedimento metodológico para com esses relatos, pois os mesmos são carregados de

preconceitos, superioridade racial, subjetivismo, emocionalismo e romantismo. Esses viajantes pensam de

acordo com as convenções de seu grupo e incorporam as contradições e ambivalências de sua época, como o

pertencimento a uma sociedade civilizada e detentora do progresso.

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desigualdade, contrato social, educação e religião do homem e do cidadão. Todos esses

temas influenciaram a formação dos viajantes, porém, o mais citado por eles é o da

“perfectibilidade”, neologismo criado por Rousseau para exprimir a capacidade que o

homem possui de aperfeiçoar-se, no caso da religião vale também para o aperfeiçoamento

da mesma.

Outra matriz de Saint-Hilaire e muitos viajantes é Alexander Von Humboldt (1769-

1859), geógrafo, naturalista e explorador, foi o primeiro estrangeiro que recebeu todo

apoio da coroa espanhola para viajar nas suas colônias e, entre outros feitos, elaborou o

conceito de “trópico”, utilizado nas navegações. Na sua viagem a Curitiba, Sant-Hilaire

utiliza as coordenadas deste naturalista: “Humboldt situa essa região vegetal entre 2.280 e

4.920 metros acima do nível do mar, nas terras vizinhas do equador” (SAINT-HILAIRE,

1978, p. 52).

Saint-Hilaire faz parte dos pesquisadores da História Natural, do qual o naturalista

Humboldt era um dos precursores. Para a literária Mary Pratt, a emergência desse

conhecimento científico na metade do século XVIII foi um impulso para “a exploração

continental” (PRATT, 1999, p. 35). Pois, dela adivinha as técnicas de navegação, os

conhecimentos de História, botânica, mineralogistas e geógrafos. Utilizados na busca de

ciência, bem como, de riquezas pessoais e institucionais.

No Brasil segundo a historiadora Ana Rosa Cloclet, os conhecimentos da História

Natural foram utilizados na reforma Luso-brasileira. Ou seja, quando Saint-Hilaire chegou

aqui ela já era utilizada, embora ele tenha criticado tal uso, pois para ele essa ciência era

utilizada aqui de forma muito precária e com poucos investimentos. Mas, segundo a

pesquisadora Ana Rosa, desde o fim do século XVII e inicio do XIX, a coroa portuguesa

“destinava-se a formar pesquisadores de recursos naturais, botânicos, metalurgistas, enfim,

homens capazes de identificar as riquezas do reino e explorá-las” (CLOCLET, 2000, p.

121).

Saint-Hilaire esteve no Brasil no governo de D. João VI, e no contexto da

independência do país por D. Pedro I. O viajante presenciou o conflito político e

institucional religioso entre Igreja, Estado, irmandade e religiosidade. Segundo o

historiador Thomas Bruneau, a análise desta época deve ter como ponto de partida, o

momento quando Sebastião de Carvalho e Mello, o Marquês de Pombal implantou uma

“monarquia absoluta” (1750-1777); deve ainda ser analisado o Regalismo; o projeto de

cristandade, que tinha como premissa chave “a integração da Igreja e do Estado”

5

(BRUNEAU, 1974, p. 30); o sistema do Padroado, domínio total do Estado Português sobre

a Igreja e o papado; o Ultramontanismo, movimento que defendia a superioridade do papa;

e o processo de Romanização que pretendia purificar a religiosidade popular (Ìtalo, 2010,

p. 24), que era celebrada a partir da devoção dos santos, nas procissões e dias de festas.

No contexto que Saint-Hilaire esteve no Brasil, o catolicismo era a única religião

oficialmente admitida no país, embora já houvesse certa tolerância religiosa nos lares, mas

não publicamente. Sendo assim, quando falamos de religião neste período, estamos nos

referindo ao catolicismo como à religião do Império, que tinha a função de sacralizar e

perpetuar o poder do Estado Português a partir dos sacramentos e da catequese formal

principalmente nos engenhos e nas fazendas. Porém, houve duas outras realizações

concretas do cristianismo dentro da cultura brasileira gestadas no período colonial, falamos

do Catolicismo Popular e da Religiosidade Popular5.

Diferentemente da religião católica do Império, que possui uma presença forte dos

eclesiásticos, o catolicismo popular, é um conjunto de representações e práticas religiosas

dos católicos que não dependiam da intervenção da autoridade civil e eclesiástica para

serem adotados e vividos pelos fiéis, pelo contrário, em muitos lugares como em Minas

Gerias era quase todo laical. Segundo o historiador Riolando Azzi, essa vivência é marcada

pela cruz, oratórios, ermidas, irmandades, santuários, procissões, devoções e festas. Quanto

a Religiosidade Popular é a socialização miscigenada da presença do divino ou do sagrado

na religião do negro, índio e do branco. Saint-Hilaire nos seus relatos descreve com

algumas criticas muito mais sobre o catolicismo popular.

Muitas pesquisas foram realizadas sobre essa literatura, no âmbito da história,

antropologia, sociologia e demais áreas do conhecimento. Apresento a seguir alguns

trabalhos que tomaram como fonte a literatura de viagem, porém nenhuma delas teve como

objeto de pesquisa as festas e os dias santos, enquanto fenômeno religioso no Brasil

oitocentista. Mas suas pesquisas são luzes para analise que vamos fazer a respeito desse

fenômeno.

Nas décadas de 30/40, do século passado, a sociologia através das obras de Gilberto

Freyre, utilizou das informações fornecidas pelos viajantes para suprir as falhas

decorrentes da escassez e /ou da dificuldade de acesso a outras fontes históricas, o autor

utilizou os escritos de Saint-Hilaire.

5 Tanto a Religião oficial do império, como o Catolicismo Popular podem ser analisados a partir dos seguintes autores: Maria Cecilia Domezi, in “Religiões na História do Brasil” e Riolando Azzi in “Elementos para a história do Catolicismo Popular.

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Na área da história é que destaco vários autores. Silvio Romero, ele cita os viajantes

como fonte fundamental para a descoberta dos componentes formadores da cultura

brasileira. O historiador Robert Slenes fez um estudo exemplar sobre a família escrava no

Sudeste oitocentista, afirma que “(...) os relatos dos oitocentos, quando lidos nas

‘entrelinhas’, revelam um olhar bem menos vazio do que parece à primeira vista”

(SLENES, 1999, p. 48).

Ressaltando a importância dos testemunhos e relatos dos viajantes, o historiador da

religião Hans Jurgen Greschat, na obra O que é Ciência da Religião, diz que esses relatos

trazem muito de curiosidades vistas pelos viajantes, e muitas vezes sem nenhuma

sistematização. Porém, segundo o pesquisador tais escritos “converteram-se em fontes de

informação não apenas para linguistas, mas também para cientistas da religião. Estes lhes

interrogavam sobre temas que guardavam relações com coisas do seu próprio mundo”

(GRESCHAT, 2005, p. 78).

Em Cientificismo e Sensibilidade Romântica. Em busca de um sentido explicativo

para o Brasil no século XIX (2004), Márcia Naxara faz exercício semelhante, ao buscar,

nos relatos de viajantes, chaves para compreender questões relativas à formação e

interpretações do Brasil no século XIX.

A historiadora Valéria Lima na Obra J. B. Debret, Historiador e Pintor – a Viagem

pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839). A autora investiga o sentido histórico e

cultural dessa obra, “acentua os aspectos formais e a superficialidade dos cultos no Brasil,

criticando o amor próprio que se sobrepõe á devoção verdadeira, a hierarquização nas

cerimônias religiosas e esvaziamento da própria experiência de fé” (LIMA, 2007, p. 302). A

autora não aborda o tema proposto, mas apresenta neste relato parte da crítica apontada

pelos viajantes que vamos estudar.

Compreendendo o valor das pesquisas científicas apresentadas acima, que trataram

de vários temas relatados pelos viajantes. Porém, esses trabalhos não tiveram como objeto

de pesquisa e por isso não aprofundaram os estudos sobre as festas e dias santos nos relatos

dos viajantes, mas como citei acima, todos esses estudos serão luzes para aprofundarmos a

pesquisa sobre o objeto proposto.

Quanto à metodologia que iremos utilizar nessa pesquisa, bem como, a

interpretação e análise dos textos selecionados seguirá o percurso metodológico de

trabalho com fontes primárias: identificação da fonte e do autor, contextualização da obra,

análise do potencial informativo do conteúdo selecionado e, por fim, avaliação dos trechos

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selecionados enquanto representações, ou seja, interpretações elaboradas pelo autor a

respeito das festas e dias santos no período estudado, compreendidos pela ciência da

religião como fenômeno religioso na primeira metade do século XIX.

2. Representação das festas religiosas e dias santos nos relatos de viagens de

Saint-Hilaire.

A representação que vamos analisar sobre as descrições das festas e dias santos, feitos

por Saint-Hilaire na sua viagem pelo Rio de janeiro e Minas Gerais, parte do conceito de

representação do historiador Roger Chartier, quando abordou sobre a História Cultural

dizendo que “ela procura entender os sentidos das palavras, das imagens e dos símbolos, e

busca também a reconstrução das práticas culturais em termos de recepção, de invenção e

de lutas de representação” (Colling/Losandro, 2015, p. 575).

A partir do olhar do europeu na busca pelo novo, o exótico, o diferente, Saint-Hilaire

representa nesta obra além das pesquisas sobre a fauna e flora brasileira, as devoções

católicas e populares; superstições, a vida e as propriedades do clero; arquiteturas sacras,

irmandades, ermidas, missas e devoções às almas; fonte milagrosa, a cavalhada, batismos

de índios, festas de pentecostes, semana santa, ausência de igrejas, procissões, devoção a

virgem Maria, oratórios e a devoção ao Sagrado Coração de Jesus.

Nas festas e dias santos, e consequentemente, através das procissões, que estão ligadas

a essas, vamos analisar a presença das identidades religiosa brasileira ou uma possível

construção delas nas representações de Saint-Hilaire. Desde já queremos destacar uma

quase ausência dessas descrições na província do Rio de Janeiro, será que a religiosidade

ou catolicidade nessa região não apresenta quase nada de diferente ou de “exótico” para ser

relatado? Pois, o viajante descreve pouco sobre festas e dias santos na sua passagem ou

estadia pelo Rio de Janeiro, o contrário de Minas Gerais, que como veremos há vários

relatos sobre esse fenômeno.

Iniciemos nossa análise pelo Rio de Janeiro onde o viajante iniciou a viagem com

destino a Minas Gerais no “dia 07 de Dezembro de 1816” (SAINT-HILAIRE, 2000, P. 35).

Num paróquia chamada Irajá o autor se depara com uma casa iluminada por várias

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lanternas de papel enfileiradas, e nessa residência iria celebrar uma festa a Nossa Senhora

da Conceição.

Era já noite quando chegamos a Irajá, e chamou-me a atenção uma casa

que estava iluminada por numerosas lanternas de papel enfileiradas em uma só linha. Disseram-me que o dono dessa casa possuía um pequeno

oratório consagrado à virgem, pela qual professava devoção particular, e,

como no dia seguinte era a festa da conceição, queria festejar sua padroeira (SAINT-HILAIRE, 2000, P. 36).

Nesta descrição presenciamos parte das características do catolicismo e a devoção

popular presente do cristianismo católico. A festa é laical, ou seja, sem a presença do clero

e da igreja. O local é uma casa, e não um templo, e nessa residência possui um oratório,

segundo Riolando Azzi, esse é um símbolo da religiosidade idenditária brasileira. A

devoção a virgem Maria estava sendo celebrada já na véspera, pois no dia seguinte seria a

festa da Imaculada Conceição, celebrada no dia 08 de Dezembro conforme o calendário

Romano. Embora seja essa uma solene festa no calendário da Igreja Romana, a mesma

estava sendo celebrada também de forma popular em uma simples casa no interior do

Brasil.

Num lugarejo chamado Vila do Príncipe Em Minas Gerais, o autor durante as festas

religiosas da Semana Santa, relata também vários momentos “profanos e exóticos” na

representação dele. Como citamos acima, percebe nas descrições parte do conflito religioso

entre Igreja e Estado, catolicismo oficial do Império com o catolicismo popular e as

irmandades, todos juntos celebrando a seu modo a semana santa e nesta mesma data a

Coroação do Rei de Portugal e do Brasil, segundo o autor aconteceu no dia 06 de Abril de

1817.

Estive em Vila do Príncipe durante a quaresma. Três vezes por semana ouvia passar pela rua uma dessas procissões que chamam procissão das

almas, e que tem por objetivo obter do céu a libertação das almas do

purgatório. São ordinariamente precedidas por uma matraca; nenhum sacerdote as acompanha, e são unicamente constituídas pelos habitantes

do lugar possuidores de voz mais agradável (SAINT-HILAIRE, 2000, pp.

150/151).

Como o viajante descreve, era o tempo da quaresma, tempo para os católicos de

Jejum, oração e penitência. Porém, além dessa forma comum de celebrar este tempo,

chama à atenção do viajante as procissões nas ruas, as orações exaustivas pelas almas do

purgatório, os instrumentos utilizados durante o trajeto; e Saint-Hilaire descreve algumas

das características do catolicismo popular, como a ausência dos sacerdotes, a condução

popular dos habitantes, e segundo o autor com uma espiritualidade agradável.

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Na abertura da Semana Santa, no Domingo de Ramos, o viajante durante a

procissão descreve a presença de um sacerdote, irmandade, negros livres, e uma multidão,

ou seja, o catolicismo institucional. Vemos neste relato a diferença do anterior, pois, no

catolicismo popular temos os símbolos da Igreja católica, sem a presença do clero,

enquanto na descrição abaixo temos o sacerdote e o Santíssimo.

No domingo de Ramos, após o por do Sol, houve uma procissão de penitentes da irmandade de São Francisco. Em seguida ás duas filas de

penitentes, que na maioria eram mulatos e negros livres, vinham um

andor sustentado por quatro pessoas, no qual estava uma imagem de tamanho natural representando Jesus Cristo carregando a cruz. Em

seguida a esse andor, caminhava um sacerdote que levava o Santíssimo, e

grande multidão caminhando sem ordem fechava o prestígio (SAINT-

HILAIRE, 2000, p. 151).

A Quinta-feira santa, segundo Saint-Hilaire é considerada uma das maiores festas

do ano, não se trabalha e se celebra na Igreja Matriz. Na missa se participa com traje de

gala, o autor elogia a boa música, dizendo que foi perfeitamente executada. Porém, o

diferente da citação abaixo é o comportamento do clero, o valor que são pagos aos mesmos

por celebrarem um missa solene, destaca ainda que a mesma foi paga pelos irmãos do

Santíssimo Sacramento. Como a irmandade do lugar era pobre ficou sem missa nesta

ocasião. Ou seja, a missa era assistida por quem pudesse pagar, o cristianismo era vivido

pelos pobres de forma popular e nas procissões. Como não podiam pagar, certamente, os

negros, mulatos, não participavam das missas festivas. O viajante descreve o conflito

político e econômico entre Igreja, Estado, Clero e Irmandades, sendo essa última nesses

relatos à força motriz do catolicismo popular neste contexto.

Os párocos, não sendo obrigados a oficiar em missas solenes,

recebem uma retribuição todas as vezes que celebram uma. Foram

os irmãos do Santíssimo Sacramento que custearam, em Vila do

Príncipe, a da quinta-feira santa; o vigário recebeu 4.000 réis (25

fr.), e os adjuntos que serviram de diácono e sub-diácono, foram

pagos na mesma proporção. Como a irmandade não era então rica,

não se celebrou nenhuma dessas cerimônias praticadas nessa época

em nossas igrejas, porque teria sido necessário pagá-las ao vigário (SAINT-HILAIRE, 2000, p. 151).

E por não poderem pagar a missa ao vigário, segundo Saint-Hilaire “na sexta-feira

santa os artífices trabalharam tão pouco como na véspera; a indigência, porém, das

irmandades, não permitiram realizar-se um único ofício (SAINT-HILAIRE, 2000, p.

151).”

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No domingo de Páscoa o autor descreve uma das características da miscigenada

religiosidade brasileira, quando em plena Páscoa os negros dançavam, cantavam suas

músicas e tocavam os seu batuques até de madrugada. Nesse mesmo dia foi celebrada em

Vila do Príncipe a coroação do Rei de Portugal e do Brasil pelos nobres, revelando por

outro lado a força do “padroado” na colônia.

Já se tinha anunciado, desde muito por toda província, que a coroação do Rei de Portugal e do Brasil teria lugar no Rio de Janeiro a 06 de Abril de

1817, que era o dia de Páscoa. Quis-se também celebrar, em Vila do

Príncipe, esse notável acontecimento... finalmente, os negros dançaram durante toda a noite (SAINT-HILAIRE, 2000, p. 151).

Em São Domingos Minas Gerais, o viajante descreve as festividades de

Pentecostes, essa festa revela parte da catolicidade brasileira relatado por Saint-Hilaire,

vinda de Portugal, com a presença do catolicismo popular e o institucional. A festa começa

na casa do Imperador, um membro da comunidade, escolhido naquele ano para as

festividades, segue uma multidão até a Igreja, que é acolhido pelo sacerdote, em seguida

inicia-se a missa, que termina com um jantar em frente à casa do Imperador.

(...) dirigi-me em companhia do comandante a casa daquele que, nesse

ano, representava o papel do imperador. Grande número de pessoas se

aglomerava diante da porta. O imperador apareceu, estava vestido de fraque e calções, mas levava um cetro e uma coroa de prata, e por traz de

seu traje estava, à maneira de manto, uma larga banda de veludo

carmesim. Saímos então da casa. Uma orquestra de músicos detestáveis, todos velhos mestiços, veio colocar-se à frente dos dois oficiais, e

executou um hino em honra ao Imperador. À frente desses músicos

alinharam-se alguns sacerdotes vestidos apenas com as batinas, e,

finalmente, uma considerável multidão de povo seguiu todo o cortejo. Chegando à porta da igreja, o Imperador ajoelhou-se. Um padre de

sobrepeliz veio apresentar-lhe o incenso, e um outro deu-lhe o crucifixo a

beijar. O imperador avançou até o santuário, colocou-se debaixo de um pálio, ao lado de um dos altares laterais, e seus três oficiais postaram-se

diante dele. Entoou-se então um Te Deum, e, em seguida, cantou-se uma

missa com música. Após a missa, formou-se o cortejo novamente; saímos

da igreja e dirimo-nos para a casa do Imperador. (SAINT-HILAIRE, 2000, p. 285).

Segundo o viajante essa festa foi “instituída por uma Rainha de Portugal, teve

originalmente por objeto a distribuição de esmolas; mas, pouco a pouco degenerou, e não é

mais hoje em dia senão oportunidade de regozijo público, em que se misturam a cerimonia

religiosa, de modo bizarro, outras ridículas e profanas” (SAINT-HILAIRE, 2000, p. 285).

Percebe-se que as considerações subjetivas de Saint-Hilaire estão imbuídas do pensamento católico

Romano, estaria ele com as ideias da romanização? Pois, segundo os historiadores Ítalo e Tomas

Bruneau, neste período já estava em curso no Brasil esse processo, que vai tomar corpo através de

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alguns bispos e padres na metade do século XIX. A romanização tinha como um dos seus objetivos

purificar o catolicismo popular.

Mesmo com muitos preconceitos, o viajante descreve uma das mais belas festas populares

brasileira, a festa do Divino Espirito Santo, que acontece em vários estados do País, e cada lugar

ela possui a sua configuração, nessa a presença do Espirito Santo esta na figura do Imperador. Esse

modelo descrito pelo autor se faz presente até hoje no interior de Minas Gerais e Goiás, pois o

processo de romanização que iniciou na metade do século XIX não atingiu seu objetivo, pelo

menos com essa festa popular.

Esse artigo faz parte de uma pesquisa de mestrado que esta em andamento, tem muito

trabalho para uma possível conclusão. Porém, podemos dizer que as descrições de Saint-Hilaire

revela a presença do catolicismo popular no período que esteve no país. Mostra ainda, parte do

conflito politico-religioso e o controle dessa ação por parte do Estado, Igreja, clero e irmandade. A

partir das representações do autor sobre o fenômeno religioso, há uma possiblidade do mesmo

trazer da Europa as ideias da romanização, embora o autor nada relate sobre esse movimento. Por

fim, fica claro na analise historiográfica a lacuna por parte de estudiosos da literatura de viagem

sobre o estudo ou pesquisas sobre o fenômeno religioso no Brasil oitocentista, de modo particular

sobre as festas e dias santos, um modo de viver a fé presente na identidade religiosa católica

brasileira.

Referência Bibliográfica:

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