IDENTIDADES CRUZADAS: HISTÓRIA DO CERCO DE LISBOA … · 2015-05-09 · Cad. Trad.,...

37
Esta obra está licenciada com uma Licença: Creative Commons Atribuição- NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. http://dx.doi.org/10.5007/2175-7968.2015v35nesp1p109 IDENTIDADES CRUZADAS: HISTÓRIA DO CERCO DE LISBOA E GESCHICHTE DER BELAGERUNG VON LISSABON Orlando Grossegesse * Universidade do Minho Resumo: É sabido que o romance História do Cerco de Lisboa empreende uma revisão da origem da identidade portuguesa revelando a sua frágil base histórica, no sentido de hibridismo cultural. Este estudo mostra como a narração da procura problemática da origem histórica está cruzada com a procura da origem do texto. Ao analisar a densa rede intertextual, na qual se emaranha a revisão criativa de Raimundo Silva, fica patente que a questão central desta metaficção historiográfica é menos a revisão do que a tradução. Nesta base, a aventura da leitura / escrita torna-se uma questão de identidades cruzadas que se prolonga no leitor do romance: no caso da tradução para alemão, tem de lidar com a afinidade cultural do leitor com os Cruzados. Palavras-chave: Metaficção tradutológica. Hibridismo cultural em tra- dução. * Possui M.A. em Filologias Românicas e Ciências da Comunicação pela Lu- dwig-Maximilians-Universität (LMU) de Munique, Alemanha, e doutorou-se nes- tas áreas pela mesma universidade, em 1989. Desde 1990 é docente (atualmente, professor associado) do Departamento de Estudos Germanísticos e Eslavos, Insti- tuto de Letras e Ciências Humanas da Universidade do Minho, Braga, Portugal. E-mail: [email protected]

Transcript of IDENTIDADES CRUZADAS: HISTÓRIA DO CERCO DE LISBOA … · 2015-05-09 · Cad. Trad.,...

Esta obra estaacute licenciada com uma Licenccedila Creative Commons Atribuiccedilatildeo-

NatildeoComercial-SemDerivaccedilotildees 40 Internacional

httpdxdoiorg1050072175-79682015v35nesp1p109

IDENTIDADES CRUZADAS HISTOacuteRIA DO CERCO DE LISBOA E GESCHICHTE DER BELAGERUNG

VON LISSABON

Orlando Grossegesse Universidade do Minho

Resumo Eacute sabido que o romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa empreende uma revisatildeo da origem da identidade portuguesa revelando a sua fraacutegil base histoacuterica no sentido de hibridismo cultural Este estudo mostra como a narraccedilatildeo da procura problemaacutetica da origem histoacuterica estaacute cruzada com a procura da origem do texto Ao analisar a densa rede intertextual na qual se emaranha a revisatildeo criativa de Raimundo Silva fica patente que a questatildeo central desta metaficccedilatildeo historiograacutefica eacute menos a revisatildeo do que a traduccedilatildeo Nesta base a aventura da leitura escrita torna-se uma questatildeo de identidades cruzadas que se prolonga no leitor do romance no caso da traduccedilatildeo para alematildeo tem de lidar com a afinidade cultural do leitor com os CruzadosPalavras-chave Metaficccedilatildeo tradutoloacutegica Hibridismo cultural em tra-duccedilatildeo

Possui MA em Filologias Romacircnicas e Ciecircncias da Comunicaccedilatildeo pela Lu-dwig-Maximilians-Universitaumlt (LMU) de Munique Alemanha e doutorou-se nes-tas aacutereas pela mesma universidade em 1989 Desde 1990 eacute docente (atualmente professor associado) do Departamento de Estudos Germaniacutesticos e Eslavos Insti-tuto de Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade do Minho Braga Portugal E-mail ogroilchuminhopt

110Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

INTERSECTED IDENTITIES HISTOacuteRIA DO CERCO DE LISBOA AND GESCHICHTE DER BELAGERUNG

VON LISSABON

Abstract It is well known that the novel The History of the Siege of Lis-bon undertakes a revision of the origin of Portuguese identity by revealing the fragile historical fundament in the sense of a culturersquos hybridity This study argues that in this story the problematic search for lsquopurersquo historical origin is intertwined with the search for lsquopurersquo text By analyzing the dense intertextual net of Raimundo Silvarsquos doubtful and creative proof--reading it becomes evident that it is less a question of proof-reading than of translating that is at stake in this historiographic metafiction From this perspective the adventure of readingwriting turns out to be a question of criss-crossed identity that is extended to the novelrsquos reader in the case of its translation into German the new text has to tackle with the readerrsquos cultural affinity with the CrusadersKeywords Metafiction about translation Cultural hybridity in translation

ldquoEacute humilhante para os portugueses a percepccedilatildeo que o exterior tem de Portugal (hellip)rdquo Esta e outras afirmaccedilotildees recentemente proferidas pelo gestor norte-americano Jack Welsh num congresso em Lisboa1 mereceram para aleacutem de reaccedilotildees imediatas de indig-naccedilatildeo um artigo de opiniatildeo de Joseacute Pacheco Pereira

Welsh fez bem em dizecirc-lo e fazia-nos bem ouvir mais ver-dades como esta para substituirmos a nossa balofa e incom-petente auto-estima pela percepccedilatildeo de que a realidade natildeo eacute propriamente um espelho do nosso excesso identitaacuterio (Pereira 2006)

Pacheco Pereira reconhece que esta percepccedilatildeo natildeo eacute acolhida de bom grado e logo classificada de ldquoarrogacircncia do estrangeirordquo Em vez de assim ldquoesconjurar o que natildeo queremos verrdquo ele destaca a utilidade particular de sermos confrontados com a nossa imagem vista de fora quando nos entregamos agrave ldquotarefa permanente de nos

111Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

iludirmosrdquo (Pereira 2006) Nesta contraposiccedilatildeo predominam cate-gorias riacutegidas e relaccedilotildees claramente antagoacutenicas realidade e ilusatildeo visatildeo de fora e de dentro capacidade de percepccedilatildeo e respectiva incapacidade Contudo a conclusatildeo de os portugueses ficarem ldquomal amados mal lembrados pouco estimados no mundordquo e o senhor Welsh ter lembrado isto ldquocom crueldaderdquo natildeo vai muito aleacutem do citado ldquonegativismo dos intelectuais traccedilo tiacutepico desde os Vencidos da Vidardquo que tambeacutem natildeo satisfaz o proacuteprio comentarista apesar de preferir ldquouma boa dose de realidade cruel que sejardquo (Pereira 2006) De facto Pacheco Pereira opera com uma categoria de reali-dade difusa porque natildeo expressamente identificada como construccedilatildeo poliacutetica social e cultural responsaacutevel pela afirmaccedilatildeo das imagens seja de fora ou de dentro Portanto a habilidade portuguesa de apropriar-se ou ateacute de antecipar a imagem de fora2 natildeo questiona mas protege o excesso identitaacuterio Esta construccedilatildeo da lsquorealidade portuguesarsquo entre duas atitudes antagoacutenicas mas em termos discur-sivos no seu excesso anaacutelogas revela o desajuste da dicotomia entre a realidade cruel (de fora) e a doce ilusatildeo (de dentro)

Em resumo apesar da sua posiccedilatildeo auto-reflexiva o ensaio de Pacheco Pereira natildeo transcende uma tradiccedilatildeo discursiva bem de-finida a de absorver posiccedilotildees negativas lsquode forarsquo para preservar alguma identidade de Portugal entre a dramatizaccedilatildeo actual da sua perda total e a memoacuteria indeleacutevel da sua grandeza Com este tipo de anaacutelise afastamo-nos de posiccedilotildees substanciais de identidade em vez de caracteriacutesticas proacuteprias e inconfundiacuteveis bem demarcada face a outras identidades atraveacutes de territoacuterio sangue (povo) e liacuten-gua ela eacute entendida na sua dimensatildeo estrutural de relacionamento ou discurso seguindo o conceito de Wolfgang Welsch (1995) de transculturalidade como princiacutepio fundamental da praxis da vida3 Neste sentido a fala sobre o proacuteprio que se baseia nas lsquoverdades crueacuteisrsquo ditas (ou diziacuteveis) pelo outro revela-se uma forma portu-guesa de transposiccedilatildeo dramaacutetica ou coacutemica que afirma as relaccedilotildees desenhadas nas dicotomias inicialmente referidas

Ao contraacuterio da representaccedilatildeo de pureza cultural a transcul-turalidade baseia-se na consciecircncia de que somos em termos de

112Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

identidade cultural essencialmente ldquomesticcedilosrdquo (Welsch 43) Fala-mos de representaccedilatildeo da identidade cultural (nacional) para realccedilar a sua construccedilatildeo discursiva ao longo da histoacuteria no Renascimento e no Barroco portanto no alvor das naccedilotildees europeias modernas inauguraram-se modos de falar sobre o caraacutecter da naccedilatildeo ou do povo em termos comparativos No Romantismo estes discursos adquiriram maior forccedila atraveacutes da definiccedilatildeo do caraacutecter do povo (Volkscharakter) como essecircncia preacute-consciente sucessivamente reinterpretada e amalgamada com o conceito pseudo-cientiacutefico da raccedila a partir do fim do seacutec XIX Esta evoluccedilatildeo demonstra que natildeo existe um objectivismo desvinculado da evoluccedilatildeo da historiografia e etnografia Tal como natildeo existe uma substacircncia intemporal da obra de arte natildeo pode haver uma substacircncia intemporal do dis-curso historiograacutefico e etnograacutefico ou do discurso da identidade cultural (nacional) Conforme a criacutetica do platonismo subjacente nas filologias e na historiografia tradicionais o analista de um texto natildeo possui a priori uma posiccedilatildeo superior ao lsquoleitor normalrsquo mas deve ancorar a sua proacutepria anaacutelise ldquona consciecircncia de a sua posiccedilatildeo actual se integrar numa sequecircncia histoacuterica de leitoresrdquo4 A partir destas definiccedilotildees da cultura e do texto analisaremos os cruzamentos de identidades no romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) e na traduccedilatildeo alematilde Geschichte der Belagerung von Lissabon (1992)5

O romance saramaguiano subverte atraveacutes de uma represen-taccedilatildeo transcultural ou hiacutebrida6 a coesatildeo da identidade portuguesa perante o outro de definiccedilatildeo dupla por um lado os cruzados na maioria procedentes do Norte da Europa e por outro os mou-ros oriundos de um Sul longiacutenquo natildeo concretizado e senhores atuais do territoacuterio Satildeo representaccedilotildees estereotipadas e portanto ambivalentes tornando o outro ao mesmo tempo estranho e fa-miliar ldquothe ambivalence of colonial cultural textsrdquo daacute origem agrave ldquoproduction of hybridizationrdquo (Bhabha 1985 112-19) afirmando que ldquonational narrative is the site of an ambivalent identificationrdquo (1994 167) Precisamente a Tomada de Lisboa que na historio-grafia nacional se constitui como episoacutedio nuclear da geacutenese da naccedilatildeo eacute des-narrada (deacutenarreacutee Prince 1988) pelo revisor Rai-

113Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

mundo Silva o protagonista deste romance partindo de um ldquonatildeordquo ldquoOs cruzados Natildeo auxiliaratildeo os portugueses a conquistar Lisboardquo (Saramago 50) A atitude de des-narrar que produz a indeter-minaccedilatildeo relativamente agrave versatildeo supostamente veriacutedica dos factos manifesta-se na problematizaccedilatildeo das fontes e no uso do futuro ao falar sobre os acontecimentos do ano de 1147 partindo desta ne-gaccedilatildeo expliacutecita que o revisor introduz no livro de um historiador7 antes da sua publicaccedilatildeo sem possuir nenhuma autoridade para este acto (Grossegesse 1996 810) Portanto natildeo soacute o discurso mas tambeacutem a proacutepria acccedilatildeo deste romance questionam os conceitos de identidade cultural original e texto original

Assumindo aos poucos a tarefa de uma reescrita com base no ldquonatildeordquo Raimundo procura uma ldquofonte limpardquo lamentando a ldquoimprecisatildeo dos dadosrdquo e a ldquopropagaccedilatildeo alucinada das notiacuteciasrdquo dando-se a ldquoproliferaccedilatildeo das proacuteprias fontes segundas e terceirasrdquo que ele compara com a ldquomultiplicaccedilatildeo de esporosrdquo (124) e ndash numa analogia com a actualidade ndash com a ldquorepeticcedilatildeo variada nas notiacutecias dos jornaisrdquo (Saramago 125) A procura da origem da nacionali-dade entretece-se com a procura do texto da origem revelando-se cada vez mais a impossibilidade de encontrar pureza identitaacuteria nem existe uma identidade-fonte nem um texto-fonte porque am-bas as noccedilotildees colocariam cultura e escrita fora de uma evoluccedilatildeo ou discursividade histoacuterica Ora se a ldquoverdaderdquo da origem e o seu discurso uniacutevoco ficam desconstruiacutedos posiccedilatildeo jaacute anunciada pela epiacutegrafe tirada de um Livro dos Conselhos imaginaacuterio8 como pode haver entatildeo uma traduccedilatildeo deste romance no entendimento tradicional que se baseia na lsquoverdadersquo de um texto-fonte e procura a consistecircncia comparaacutevel de um texto-alvo

Eacute precisamente a alternativa imaginada de uma conquista de Lisboa sem recorrer ao auxiacutelio de estrangeiros que expotildee a vulne-rabilidade do lsquoexcesso identitaacuteriorsquo impliacutecita na Histoacuteria nacional quando se fala da ldquoajuda de cruzados dando agrave participaccedilatildeo deles um valor instrumental quando seria mais correcto dizer que Lis-boa foi conquistada com a ajuda dos portuguesesrdquo (Caragea 224) Na procura de minimizar o papel da participaccedilatildeo estrangeira jaacute

114Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

bem visiacutevel na Croacutenica de D Afonso Henriques (1632) de Frei Antoacutenio Brandatildeo atraveacutes de uma compilaccedilatildeo comentada de fon-tes chegou-se de facto no Estado Novo ateacute agrave sua negaccedilatildeo num texto de Joseacute Augusto de Oliveira (1940) No entanto esta revisatildeo nacionalista natildeo conseguiu alterar a presenccedila jaacute sedimentada dos cruzados no imaginaacuterio portuguecircs etnicamente heterogeacuteneos no entanto unidos aos portugueses por serem tambeacutem eles cristatildeos e hostis aos muccedilulmanos Neste sentido a representaccedilatildeo do encontro com os cruzados eacute significativa Na Croacutenica de Portugal de 1419 citada no romance sob o tiacutetulo anterior Croacutenica dos Cinco Reis de Portugal9 no capiacutetulo ldquoComo elrey dom Afonso se ordenou de ir ccedilerquar Lixboa e das jentes estrangeyras que levou em sua ajudardquo encontramos a seguinte descriccedilatildeo

(hellip) moverom em aquele tempo muytas jentes de Ingraterra e dAlemanha e de Framccedila e vierom em muyto grande frota pelo mar em guisa que achamos espiacuterito que erom oytenta velas E vindo todolas naos de mar em fora busquar terra agrave roqua de Syntra elrey que estava em ccedilima no castelo com seus fidalguos devisaram-nos e quando virom tatildeo grande frota como aquela foram muy espantados E elrey man-dou loguo quatro cavaleyros que fossem agrave ribeyra saber que gemtes erom aquelas (hellip) E os cavaleyros pergunta-ram que gemtes erom e os das naos lhe disserom que erom christatildeos que partirom de suas terras e vinhom agraves Espanhas para guerear contra os mouros por fazer serviccedilo a Deos (Croacutenica 47)

A chegada dos estrangeiros cuja forccedila militar espanta insinua uma espeacutecie de invasatildeo amigaacutevel nas ldquoEspanhasrdquo logo funciona-lizada pela Histoacuteria nacional como daacutediva divina para a geacutenese da identidade portuguesa de grande coesatildeo forccedila e predestinaccedilatildeo jaacute afirmadas pelo milagre de Ourique Atraveacutes da reinvenccedilatildeo dos actores histoacutericos e dos seus discursos o romance saramaguiano nega de uma forma paroacutedica o conceito de identidade cultural

115Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que se define na tradiccedilatildeo herderiana atraveacutes do antagonismo entre cultura proacutepria e alheia Como mostra a Croacutenica de 1419 a iden-tidade alematilde tambeacutem participa no Cerco de Lisboa integrando--se na categoria heterogeacutenea dos estrangeiros do lado colonizador superiores natildeo soacute relativamente aos mouros mas tambeacutem aos co-lonizadores autoacutectones que ao consentir ou adoptar a ideologia importada da cruzada se revelam em certa medida tambeacutem colo-nizados Na noccedilatildeo da milagrosa invasatildeo amigaacutevel de estrangeiros que vinham aqui ldquopara guerear contra os mourosrdquo daacute-se azo ao excesso identitaacuterio que se sobrepotildee agrave contra-imagem humilhante de um papel meramente secundaacuterio de anfitriatildeo e ajudante numa conquista de Lisboa liderada pelos cruzados por sua vez missatildeo menor e de passagem no seio de um contexto maior o da Segunda Cruzada (1147-49)10

Um romance que natildeo soacute reescreve de uma forma paroacutedica a origem da configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica res-ponsaacutevel do excesso identitaacuterio portuguecircs mas tambeacutem sugere lsquolei-turasrsquo anacroacutenicas da actualidade portuguesa ainda caracterizada pelo dilema deste mesmo excesso identitaacuterio como comprova o en-saio de Pacheco Pereira (2006) eacute difiacutecil de traduzir porque implica uma operaccedilatildeo complexa de mediaccedilatildeo cultural no sentido de ldquocross--linguistic cultural practice involving recontextualizationrdquo (House 2002 97) Ilustramos esta dificuldade com um episoacutedio do livro do historiador lido por Raimundo Silva antes de introduzir o ldquonatildeordquo

(hellip) agora o historiador embandeirou o estilo para tratar da grande discoacuterdia que se levantou entre os cruzados (hellip) sobre se deveriam ou natildeo ajudar os nossos portugueses a tomar Lisboa se ficariam aqui ou seguiram como previsto para a Terra Santa onde os estava esperando Nosso Senhor Jesus Cristo sob os ferros turcos Argumentavam aqueles a quem seduzia a ideia de ficar que lanccedilar fora da cidade a estes mouros e fazecirc-la cristatilde seria tambeacutem serviccedilo de Deus contestavam os contraacuterios que se esse era serviccedilo de Deus serviccedilo menor seria e que cavaleiros tatildeo principais como

116Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

ali todos se prezavam de ser tinham por obrigaccedilatildeo acudir aonde mais trabalhosa fosse a obra natildeo neste cu do mundo entre labregos e tinhosos que uns deviam ser os mouros e outros os portugueses poreacutem natildeo o averiguou o historia-dor talvez por natildeo valer a pena de escolher entre os dois insultos (Saramago 47)

(hellip) nun uumlbt sich der Historiker in hohem Stil um den gro-szligen Zwist darzulegen der sich unter den Kreuzfahrern () entspann stand doch die Frage ob sie unseren Portugiesen bei der Einnahme Lissabons helfen sollten oder nicht ob hier verbleiben oder aber wie vorgesehen weiterziehen ins Heilige Land wo in tuumlrkischen Fesseln Unser Herr Je-sus Christus ihrer harrte Es argumentierten jene die am liebsten hiergeblieben waumlren die Mauren aus dieser Stadt treiben und aus ihr einen Christenhort zu machen sei glei-chermaszligen ein gottdienliches Werk und die anderen hiel-ten dagegen wenn gottdienliches Werk dann doch wohl ein minderes so hehre Ritter wie alle hier es zu sein ver-meinten haumltten die Pflicht dorthin zu eilen wo das Werk muumlhevoller sei nicht wie in diesem Weltenwinkel unter Bauersleuten und Wichten gemeint waren wohl mit den ei-nen die Mauren und mit den anderen die Portugiesen doch unterlieszlig der Historiker weitere Ergruumlndung vielleicht weil beides Schmaumlhworte waren (55)

Seja por entender ldquoembandeirar o estilordquo num sentido estrito em vez de intuir a subversatildeo da escrita pelas vozes citadas no sentido da polifonia bakhtiniana11 seja por obedecer a um conceito do politicamente correcto a versatildeo alematilde ldquoWeltenwinkelrdquo evita o equivalente ldquoArsch der Weltrdquo da expressatildeo escatoloacutegica ldquocu do mundordquo estereotipada no discurso da identidade portuguesa do seacute-culo XX Tambeacutem suaviza os insultos que expressam a superiori-dade colonizadora dos cruzados natildeo soacute relativamente aos mouros mas tambeacutem aos portugueses a traduccedilatildeo inofensiva de ldquoBauers-leuterdquo e ldquoWichterdquo anula a semacircntica insultuosa de ldquolabregosrdquo12 e

117Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ldquotinhososrdquo Com isto atenua-se a atitude de arrogacircncia dos ldquoca-valeiros tatildeo principaisrdquo que natildeo acham necessidade de diferenciar entre portugueses e mouros A traduccedilatildeo natildeo consegue transferir a paroacutedia da identidade portuguesa que dialoga com o leitor impliacute-cito (Iser 1972) do original para o perfil do leitor da traduccedilatildeo de maior afinidade cultural com os cruzados Trata-se de um leitor desprovido (1) da ldquoenciclopeacutedia do mundo portuguecircsrdquo (Caragea 209) e (2) da socializaccedilatildeo no contexto da realidade poliacutetica e social portuguesa dos anos oitenta e noventa com a memoacuteria do 25 de Abril de 1974 (por exemplo impliacutecita no perfil da personagem Mogueime como preacute-figuraccedilatildeo de Salgado Maia)

Esta dupla dificuldade que ndash com o tempo ndash tambeacutem surgi-raacute cada vez mais para o texto-fonte conduz agrave questatildeo do texto comentado que discute Horst Turk (1992) exemplificando-a no romance La reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten de Juan Goytisolo (em reediccedilatildeo comentada a partir de 1985) e na sua traduccedilatildeo alematilde (natildeo comentada) No caso de Histoacuteria do Cerco de Lisboa ainda natildeo existe uma ediccedilatildeo comentada do original Entre as traduccedilotildees a alematilde de Andreas Klotsch (1992) prescinde de comentaacuterio tal como a inglesa de Giovanni Pontiero (1996) que se cinge a um bre-ve prefaacutecio no entanto a romena por exemplo eacute acompanhada por um proacutelogo extenso e notas explicativas da tradutora Mioara Caragea13 Pelo comentaacuterio e pela ausecircncia dele acentuam-se as duas caras de Iano (Januskoumlpfigkeit) da traduccedilatildeo ela representa o texto-fonte e substitui o texto-fonte na literatura-alvo Mais ainda a traduccedilatildeo eacute tambeacutem em todas as literaturas um lugar privilegiado para articular qualidades de diferenccedila14 Destas deliberaccedilotildees surge como questatildeo central a traduccedilatildeo alematilde natildeo comentada da Histoacuteria do Cerco de Lisboa eacute capaz de transmitir a paroacutedia de identidade alteridade cultural (nacional) do texto-fonte

Ao falar do handicap do leitor desprovido da ldquoenciclopeacutedia do mundo portuguecircsrdquo (Caragea 209) prolonga-se a abordagem purista em vez de se repensar tambeacutem esta enciclopeacutedia de forma transcultural Com isto evidencia-se o cruzamento de identidades em constante mudanccedila desde as fontes histoacutericas citadas no lsquolivro

118Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

do historiadorrsquo ateacute agrave proacutepria traduccedilatildeo do romance Jaacute o historiador cujo livro Raimundo Silva revisa concede destaque entre as fon-tes ao ldquoceacutelebre Osbernordquo (Saramago 124) privilegiando assim a narrativa epistolar de um cruzado oriundo da regiatildeo de Norfolk ou Suffolk que participou no Cerco Atualmente eacute considerada ldquotalvez a principal fonte histoacutericardquo (Alves 13) A carta dirigida a uma personalidade inglesa estaacute escrita em latim Por isso Cru-cesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis15 integra natildeo soacute uma visatildeo desde o exterior portanto afastada da construccedilatildeo da Histoacuteria nacional mas tambeacutem um texto noutra liacutengua A proacutepria narrativa marginaliza a identidade portuguesa natildeo soacute no contexto geral do antagonismo entre cruzados (identidade comum francos) e mouros16 mas tambeacutem pela divisatildeo entre por um lado norman-dos e ingleses (no texto a identidade proacutepria) e por outro colo-nenses e flamengos natildeo soacute desunidos na decisatildeo inicial (participar ou natildeo) mas tambeacutem com diferentes comportamentos durante o cerco e no saque da cidade conquistada (Conquista 83) Com estas caracteriacutesticas este texto fornece por um lado bases para uma narraccedilatildeo fundadora da identidade portuguesa desvalorizando sobretudo eticamente a colaboraccedilatildeo dos cruzados e por outro o preacute-texto de uma des-narraccedilatildeo transcultural aproximando-se da historiografia criacutetica mais recente na qual se procede a uma negaccedilatildeo da narrativa fundacional nacional17 As possiacuteveis releitu-ras fundamentam a paroacutedia do sbquoexcesso identitaacuteriorsquo portuguecircs no romance saramaguiano que se centra na retroprojeccedilatildeo anacroacutenica natildeo soacute da categoria de nacional mas tambeacutem da outra da cate-goria de estrangeiro Basta pensarmos no anacronismo das quinas de Portugal (soacute a partir de Sancho I) a substituir o crescente (na realidade invenccedilatildeo do impeacuterio otomano) que despertam a ira do revisor quando chega agraves paacuteginas finais do lsquolivro do historiadorrsquo (41-42) Nada disto se encontra nas fontes Tambeacutem a traduccedilatildeo ldquopassou a corrupta mesquita a puriacutessima igreja catoacutelicardquo (40) en-fatiza um antagonismo identitaacuterio (muccedilulmano cristatildeo) que no texto-fonte fica subentendido ldquopurificatum est templumrdquo ldquofoi purificado o templordquo (Conquista 85) Mais interessante relativa-

119Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

mente ao leitor impliacutecito de traduccedilotildees para as liacutenguas do Centro Norte da Europa eacute o seguinte trecho

O pessoal que veio a esta fala parlamentar eacute todo de portu-gueses natildeo pareceu bem a el-rei servir-se de estrangeiros para o reforccedilo do ultimatum ainda que diga-se de pas-sagem subsistam grandes duacutevidas de que o arcebispo de Braga pertenccedila de facto ao nosso sangue lusitano mas enfim jaacute nesses antigos tempos tinha principiado a fama que mantivemos ateacute hoje de receber bem a gente de fora distribuir-lhes cargos e prebendas e este D Joatildeo Peculiar vaacute laacute pagou-nos multiplicado em serviccedilos patrioacuteticos E se como tambeacutem se diz era mesmo portuguecircs e de Coimbra vejamo-lo como pioneiro da nossa vocaccedilatildeo migratoacuteria da magniacutefica diaacutespora pois toda a sua juventude a passou em Franccedila a estudar devendo notar-se aqui uma acentuada diferenccedila em relaccedilatildeo agraves tendecircncias recentes da nossa emig-raccedilatildeo para aquele paiacutes plutocirct adstrita aos trabalhos sujos e pesados (197-98)

O problema de transmitir o sentido paroacutedico na traduccedilatildeo18 por exemplo da eterna vocaccedilatildeo migratoacuteria bdquounserer migratoris-chen Berufung unserer wundervollen Diasporaldquo (240) culmina na dificuldade de incluir o leitor impliacutecito da traduccedilatildeo na situaccedilatildeo enunciativa isto eacute neste caso ele se deveria rever no lsquoestrangei-rorsquo vindo da Franccedila e indo aleacutem das dicotomias aperceber-se da relatividade das categorias

Eacute significativo que o revisor Raimundo Silva chegue a este tipo de des-narraccedilatildeo atraveacutes de uma criacutetica da traduccedilatildeo que fundamenta o proacuteprio acto de alterar o lsquolivro do historiadorrsquo a partir do ldquonatildeordquo Natildeo eacute tanto o ldquorigor da traduccedilatildeordquo (44) que estaacute em causa mas a sua verossimilhanccedila Precisamente por duvidar dos conhecimentos de latim das capacidades retoacutericas e em geral da cultura de Afon-so Henriques Raimundo Silva considera ldquoa primeira fala averigua-da do nosso rei fundadorrdquo nada menos do que ldquouma absurdidaderdquo

120Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

(43) negando de passagem tambeacutem o uso da liacutengua portuguesa que a tradicional narrativa fundacional de Portugal assume com naturalidade

(hellip) eacute de supor que o real menino aleacutem de explicar-se natu-ralmente em galego latinizaria o quantum satis para poder declamar chegada a hora perante tantos e tatildeo cultos cru-zados estrangeiros a arenga supracitada uma vez que eles de liacutenguas natildeo entenderiam entatildeo mais do que a sua de berccedilo e iguais rudimentos da outra com a ajuda dos frades inteacuterpretes (Saramago 44)

Esta duacutevida sobre a pureza do discurso reacutegio reproduzido na epiacutestola e traduzido pelo historiador torna-se em ldquoleitura paroacutedica (hellip) pela contextualizaccedilatildeo dramaacuteticardquo (Caragea 2003 235) O que Raimundo Silva ldquoem voz alta lecirc como um arauto lanccedilando as pro-clamasrdquo (P 45) ldquosituando portanto a sua reinterpretaccedilatildeo na zona pragmaacutetica da pronuntiatiordquo (Caragea 235) corresponde ipsis verbis com uma ou outra inversatildeo agrave traduccedilatildeo de JA de Oliveira (Conquista 44) A performance retoacuterica natildeo soacute ldquoacaba de inculcar no revisor um sentimento de distanciamento iroacutenico em relaccedilatildeo agraves palavras do reirdquo (Caragea 235) mas questiona sobretudo as noccedilotildees de texto-fonte e traduccedilatildeo fiel ao texto-fonte

Ao aprender que a invisibilidade do tradutor eacute falaz o revisor daacute o primeiro passo para a sua proacutepria visibilidade autoral Assim a ldquometaficccedilatildeo historiograacuteficardquo (Kaufman 1991) nasce directamen-te do dialogismo no sentido bakhtiniano com Joseacute Augusto de Oliveira simultaneamente ele eacute tradutor da epiacutestola publicada em ediccedilatildeo bilingue (1935) e autor da revisatildeo historiograacutefica intitulada ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem con-tar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo apresentada em 1940 Em vez de tomar a epiacutestola ldquodita de Osbernordquo como texto-fonte homogeacuteneo e traduzi-lo do latim como o fez o ldquoproacuteprio autor da Histoacuteriardquo (Saramago 43) facilmente reconheciacutevel como figuraccedilatildeo de Joseacute

121Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Augusto de Oliveira Raimundo Silva duvida natildeo soacute da pureza da fonte e subsequentemente da fidelidade da traduccedilatildeo mas tambeacutem da identidade do autor da epiacutestola Pelo tiacutetulo Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) Narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial da ediccedilatildeo bilingue esta identidade parece uniacutevoca mas natildeo eacute por exemplo Joseacute F Alves (2004) considera ldquobem coe-renterdquo que a primeira linha do texto latino ldquoOsb de Baldr R salutemrdquo indique um Osb de Baldr (Osberno ou Osberto ou Osborne) como destinataacuterio de ldquouma missiva mesmo sobrescrita apenas por um Rrdquo conjecturando-se o nome de Rogeacuterio19 Apor-tuguesando-se o nome Roger para Rogeiro o romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa assume esta suposiccedilatildeo ndash em oposiccedilatildeo ao lsquolivro do historiadorrsquo que considera Osberno um cruzado letrado O frade eacute apresentado na frase que continua a citaccedilatildeo anterior sobre a iden-tidade eacutetnica indefinida de D Joatildeo Peculiar arcebispo de Braga

Quem eacute indubitavelmente estrangeiro mas contado agrave parte por vir em missatildeo especial nem parlamentaacuterio nem homem de guerra eacute aquele frade ruivo e sardento ali a quem ago-ra mesmo ouvimos chamar Rogeiro mas que realmente tem por nome Roger o que deixaria em aberto a questatildeo de ser ele inglecircs ou normando (hellip) (198)

A identidade de Roger Rogeiro embora etnicamente indecisa oferece ndash na traduccedilatildeo para inglecircs e tambeacutem para alematildeo ndash uma afinidade cultural com o leitor impliacutecito reforccedilada pelo fiacutesico in-confundiacutevel noacuterdico ldquothat sandy-haired freckled friarrdquo (Sarama-go 1996 176) bdquojener blonde sommersprossige Paterldquo (241) No romance Frei Rogeiro cumpre o papel de ldquocronistardquo que transpotildee um conjunto multilingue de falas numa escrita coerente e homo-geacutenea Por exemplo no caso do discurso do arcebispo de Braga

Rogeiro logo em abreviado e taquigraacutefico o registou para mais tarde deixando os aformoseamentos oratoacuterios com que

122Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

brindaraacute aquele seu destinataacuterio distante Osberno chama-do laacute onde quer que esteja e quem quer que tenha sido poreacutem jaacute vai introduzindo redondeios de lavra proacutepria fru-tos de inspiraccedilatildeo estimulada (hellip) (200)

Significativamente Roger Rogeiro natildeo eacute tradutor mas ndash tal como o revisor Raimundo Silva ndash portador da consciecircncia de que tudo eacute traduccedilatildeo correspondendo ao latim o privileacutegio da liacutengua veicular

Este Rogeiro natildeo conhece uma palavra de araacutebigo nem de galego mas neste caso natildeo seraacute impedimento a ignoracircncia pois todo o debate vaacute por onde vaacute sempre iraacute dar ao latim graccedilas aos inteacuterpretes e aos tradutores simultacircneos (198)

De facto esta consciecircncia do plurilinguismo caracteriza Cruce-signati anglici epistola de expugnatione olisiponis desde o iniacutecio falando dos cruzados ldquoInter hos tot linguarum populos firmissima concordiae atque amititiaerdquo (Conquista 21) As falas de cruzados portugueses e mouros aparecem ou em citaccedilotildees traduzidas (de ou-tras liacutenguas para latim) ou em liacutengua latina para serem traduzidas no contexto do cerco Ambas satildeo adaptadas a um texto composto conforme as retoacutericas claacutessica e biacuteblica Eacute a proacutepria epiacutestola que refere a necessidade de traduccedilatildeo por exemplo do discurso do bispo do Porto proferido em latim perante a multidatildeo plurilingue dos cruzados reunidos20 Em contraste eacute significativo que o tradutor JA de Oliveira defenda ldquouma versatildeo que sem trair o pensamen-to se libertasse da escravidatildeo da letrardquo em vez de encher ldquoo texto portuguecircs com antigos vocaacutebulos forrageando-os nas velhas croacute-nicas conhecidas dos eruditosrdquo (Oliveira 1935 18) outorgando agrave sua traduccedilatildeo uma missatildeo nacionalista

Assim espero-o todos entenderatildeo este velho monumento da nossa histoacuteria e nesta hora de ressurgimento neste des-

123Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

pertar de energias e rasgar-se de horizontes novos faraacute bem aos portugueses de hoje ouvir falar a alma dos que agrave forccedila de braccedilo com persistecircncia com teimosia com obstinaccedilatildeo e com amor souberam ungir com o proacuteprio sangue os alic-erces desta nossa Paacutetria que eles nos deixaram para a con-servarmos amorosamente digna honrada e livre (Oliveira 1935 19)

Quem afirma assim uma leitura nacionalista de uma epiacutestola no fundo totalmente alheia ao objectivo de alicerccedilar a Histoacuteria nacional esconjura o que natildeo quer ver entregando-se agrave ldquotarefa permanente de nos iludirmosrdquo que critica Pacheco Pereira (2006) no caso das reacccedilotildees ao discurso de Jack Welsh Longe de com-preender a utilidade particular do confronto com a nossa imagem vista de fora JA de Oliveira concebe a sua traduccedilatildeo da epiacutestola estrangeira como contributo agrave legibilidade culturalmente coerente e homogeacutenea do ldquovelho monumento da nossa histoacuteriardquo A fideli-dade da traduccedilatildeo revela-se enganadora atraveacutes da leitura criacutetica de Raimundo Silva Assim a palavra aacuterabe ldquoalgazarrardquo que JA de Oliveira escolheu para traduzir ldquoconclamatiordquo na fala (por sua vez traduzida) de D Afonso Henriques21 evidencia natildeo soacute a homoge-neizaccedilatildeo do plurilinguismo tanto no texto-fonte como na traduccedilatildeo mas tambeacutem ndash numa leitura contraacuteria ndash a crioulizaccedilatildeo da identida-de portuguesa

Acertara D Afonso Henriques em cheio quando prognos-ticou que o exame da sua proposta acabaria em algazarra palavra que sendo aacuterabe de nacionalidade igualmente serve a qualquer gritar e vozear de colonenses flamengos bolon-heses bretotildees escoceses e normandos misturados (47-48)

Vollkommen recht hatte Dom Afonso Henriques mit der Voraussicht sein Vorschlag werde eine algazarra ausloumlsen dieses Wort obzwar arabischer Abkunft ist auch dienlich jedwedes ereiferndes Geschrei und Gekreisch der Koumllner

124Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Flamen Bologneser Bretonen Schotten und Normannen und aller durcheinander zu bezeichnen (56)

Portanto a palavra ldquoalgazarrardquo sugere nesta leitura transcul-tural do discurso reacutegio a relaccedilatildeo ambivalente galega aacuterabe como fundadora Esta insinuaccedilatildeo integra-se numa paroacutedia do discurso da identidade nacional nomeadamente na sua projecccedilatildeo anacroacutenica para a Idade Meacutedia ndash um aspecto que fica esbatido na traduccedilatildeo ale-matilde22 Uma leitura semelhante sugere a mensagem do rei de Eacutevora aos ldquoseus irmatildeos de Lisboardquo cuja traduccedilatildeo comentada ao portu-guecircs actual brinca com a identidade estereotipada de alentejanos

Aguentem aiacute os malvados que a minha tropa de alentejanos jaacute vai a caminho dizemo-lo assim por vir essa gente de aleacutem do Tejo ficando demonstrado de caminho que jaacute havia alentejanos antes de haver portugueses (176)

Para o leitor da traduccedilatildeo a existecircncia historicamente invertida de ldquoAlentejanerrdquo antes dos ldquoPortugiesenrdquo natildeo possui significado centrando-se a atenccedilatildeo na identificaccedilatildeo de ldquodiese Leute von jenseits des Tejordquo como ldquoAlentejanerrdquo (212) De facto a epiacutestola latina cita mensagens entre os mouros de Lisboa e o rei de Eacutevora desta-cando a ajuda de um inteacuterprete para poder incorporaacute-las no texto23 Obviamente a missiva reacutegia natildeo menciona alentejanos e transmite precisamente o contraacuterio a recusa do envio de tropas alegando a existecircncia de ldquotreacuteguas com o rei dos portuguesesrdquo (Conquista 64)

Estas manipulaccedilotildees mostram que Raimundo Silva eacute cada vez mais consciente da leitura escrita como cruzamento entre dimen-satildeo linguiacutestica e cultural no eixo temporal vaacutelido para a questatildeo da traduccedilatildeo24 no sentido das reflexotildees de Andreacute Lefevere (1992) Horst Turk (1992) e Susan Bassnett (1998) que analisam o texto tra-duzido ldquoembedded in its network of both source and target cultural signsrdquo (Bassnett9) Transcendo uma definiccedilatildeo estaacutetica de ldquocultural signsrdquo e da ldquohybridizationrdquo de Homi Bhabha podemos falar da

125Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

traduccedilatildeo como crioulizaccedilatildeo (Stoll 2005) com base em muacuteltiplos processos de mudanccedila sincroacutenicos e diacroacutenicos A paroacutedia da geacutenese da identidade portuguesa atraveacutes da criacutetica da pureza do texto-fonte (e da sua traduccedilatildeo) coincide com posiccedilotildees da historio-grafia moderna a conquista de Lisboa natildeo significa ndash conforme a Histoacuteria nacional tradicional ndash a vitoacuteria dos portugueses alcanccedilada com ajuda dos cruzados sobre os mouros significa isso sim a im-posiccedilatildeo militarmente bem sucedida do novo paradigma de pureza cristatilde implantada atraveacutes da ideologia colonizadora da Segunda Cruzada (114748) ao velho paradigma da convivecircncia segregada mais ou menos paciacutefica entre muccedilulmanos cristatildeos e judeus em estruturas poliacuteticas e sociais localmente autoacutenomas sob domiacutenio aacuterabe (Marques 68) O romance saramaguiano insinua esporadi-camente a crioulizaccedilatildeo da identidade portuguesa mas natildeo concede potencial identitaacuterio agraves populaccedilotildees cristatilde (moccedilaacuterabe) e judaica de Al-Usbuna sacrificadas por uma fracccedilatildeo dos cruzados ldquologo que o saque e o massacre exorbitaram das possibilidades de controlordquo (Marques 68) como conta em pormenor a epiacutestola Naturalmente destaca-se o bom comportamento dos ingleses e normandos (identi-dade de quem escreve) em contraste com o massacre e a devastaccedilatildeo perpetrados pelos colonenses e flamengos que ateacute matam o bispo da cidade moura25

Portanto o des-narrar saramaguiano natildeo empreende um deslo-camento transcultural tatildeo audaz como por exemplo La reivindi-cacioacuten del conde don Juliaacuten (1970) de Juan Goytisolo26 Naquele romance o narrador recupera atraveacutes da sua identificaccedilatildeo com o miacutetico lsquotraidorrsquo D Juliatildeo a identidade aacuterabe e moccedilaacuterabe termi-nando com o anuacutencio do lado aacuterabe ldquomantildeana seraacute otro diacutea la invasioacuten recomenzaraacuterdquo No entanto existe em Histoacuteria do Cerco um almuadem cego que preenche claramente o lugar do bispo anti-quiacutessimo a ser degolado como aquele por ldquoum soldado cristatildeo de mais zelosa feacuterdquo (348) A sua cegueira paradoxalmente visionaacuteria da Lisboa moura sitiada eacute contraacuteria daquela de ldquoira sanguinaacuteriardquo do seu assassino identificado como ldquoo cruzado Osberno soacute igual de nomerdquo (Saramago 40) introduzindo-se assim deliberadamente

126Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

uma homoniacutemia com o Osberno da epiacutestola (ainda tratado ndash errone-amente ndash como o seu autor) novamente recordada em ldquoo cruzado Osberno poreacutem natildeo o talrdquo27

Esta duplicaccedilatildeo de identidades com o mesmo nome adverte o leitor para ficar atento perante redefiniccedilotildees identitaacuterias como por exemplo dos sitiadores chamados ldquoos francos e os galegosrdquo28 sob comando dos cruzados e ldquoIbn Arrinque o Galegordquo (74) na perspetiva dos mouros recriada na mente de Raimundo Silva O almuadem na sua torre complementa ndash atraveacutes dos tempos ndash a posiccedilatildeo de Raimundo Silva ldquoque hoje quase tatildeo cego se vecirc como elerdquo (33) Significativamente o revisor apercebe-se ldquode que mora no preciso lugar onde antigamente se abria a Porta de Alfofardquo configurando-se assim topograficamente a incerteza (que corresponde ao des-narrar) ldquose Raimundo Silva eacute um si-tiado ou um sitiante vencedor futuro ou perdedor sem remeacutediordquo (75) Nos seus passeios por Lisboa ele revivifica uma cidade dividida entre zonas dos sitiados e dos atacantes entretecendo ldquodois temposrdquo (242) passado e presente29 A ambiguidade nos eixos de lugar e tempo transfere-se natildeo soacute agrave histoacuteria aplicando o tema da cegueira ateacute ao processo da sua recepccedilatildeo ldquo(hellip) esta [histoacuteria] de agora comeccedilada soacute poderaacute lecirc-la quem os olhos ti-ver luacutecidos e abertos natildeo um cegordquo (243) transfere-se tambeacutem agrave liacutengua na qual estaacute escrita o texto insinuando-se um regresso a outra fonte nas duas dimensotildees de identidade cultural e texto que evoca aquela transformaccedilatildeo da liacutengua castelhana em aacuterabe realizada nas uacuteltimas duas paacuteginas de Juan sin Tierra (1975) de Juan Goytisolo ldquo(hellip) as matildeos de Raimundo Silva pousam sobre a uacuteltima folha escrita umas linhas negras indecifraacuteveis talvez de araacutebiga liacutengua natildeo estivemos atentos agrave voz do almuademrdquo (Sara-mago 243) Na accedilatildeo mediadora do revisor confluem a voz aacuterabe do almuadem e a escrita latina do cleacuterigo Roger Na reescrita inicialmente soacute mental do lsquolivro do historiadorrsquo Raimundo Sil-va procura uma reconstruccedilatildeo contextualizada de ambos os lados (cristatildeos muccedilulmanos) por exemplo corrigindo o significado da cegueira do almuadem

127Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

() natildeo foi erro escrever porque enfim escrito estaacute que era cego o almuadem O historiador soacute fala de minarete e muezim talvez ignorasse que quase todos os almuadens naquele tempo e por muito tempo depois eram cegos (29

() es war kein Fehler und geschrieben ist es nun mal daszlig der Muezzin blind war Der Historiker der da lediglich von Minarett und Muezzin schreibt wuszligte vielleicht nicht daszlig fast alle Muezzins damals und noch lange danach blind waren (32)

O revisor identifica ldquominareterdquo e ldquomuezimrdquo como palavras li-gadas ao orientalismo dos seacuteculos XVIII e XIX Apesar de ser um fenoacutemeno transnacional europeu o orientalismo teve maior atracccedilatildeo na cultura francesa que espalhou para outras liacutenguas eu-ropeias as vozes aacuterabes importadas pela via oriental o Impeacuterio Otomano (Turquia) na sua expansatildeo europeia a partir do seacuteculo XIV (ponto alto conquista de Constantinopla em 1453) tinha dei-xado vestiacutegios nomeadamente na cultura austriacuteaca no acircmbito dos Tuumlrkenkriege (ponto de viragem Cerco de Viena em 1683) que serviram de base para o orientalismo francecircs Raimundo Silva pre-fere o uso da palavra ldquoalmuademrdquo de maior e mais antiga presen-ccedila na liacutengua portuguesa30 importada directamente e recuperada no Romantismo pelas Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano tal como ldquoalmaacutedenardquo em vez de ldquominareterdquo (Machado 62) A tra-duccedilatildeo alematilde natildeo assinala esta tentativa de maior lsquopurezarsquo histoacuterica no discurso sobre a identidade moura mantendo a denominaccedilatildeo invariaacutevel ldquoMuezzinrdquo embora exista a alternativa lexical menos usada de ldquoMuaddhinrdquo (Brockhaus 229)31

No contexto do pensamento poacutes-colonial esta reaquisiccedilatildeo dos processos de imaginaccedilatildeo depois das imposiccedilotildees coloniais europeias que comeccedila em princiacutepio pelo Romantismo (Herculano Garrett) revela a raiz histoacuterica da especificidade relacional portuguesa co-lonizada colonizadora isto eacute a harmonizaccedilatildeo mais ou menos voluntaacuteria da poliacutetica existente de poder regional na Peniacutensula Ibeacute-

128Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

rica com a ideologia colonizadora das cruzadas Para aleacutem de uma subtil reivindicaccedilatildeo da identidade moura Histoacuteria do Cerco de Lisboa se cinge quase unicamente agrave revisatildeo da identidade conquis-tadora na qual entra a identidade alematilde ndash um aspecto importante para a traduccedilatildeo Assim estabelece-se uma certa inversatildeo embora natildeo perfeita de identidade alteridade em geral o leitor alematildeo estaacute pouco familiarizado com a geacutenese da identidade portuguesa e ignora a configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica que eacute responsaacutevel pelo excesso identitaacuterio desconhecendo tambeacutem a participaccedilatildeo bem documentada de actores vindos de terras alematildes Eles aparecem no romance logo quando Raimundo Silva comeccedila a reler a epiacutestola na sua procura da ldquofonte limpardquo

(hellip) a informaccedilatildeo eacute de boa origem diz-se que directamente do ceacutelebre Osberno e assim podemos ficar a saber que es-tava o conde Arnoldo de Aarschot o qual comandava os guerreiros vindos de diversas partes do impeacuterio germacircni-co que estava Cristiano de Gistell chefe dos flamengos e bolonheses (hellip) (124)

Seguindo a teia intertextual regressamos ao texto-fonte que em contraste com a citada Croacutenica de Portugal de 1419 narra na perspectiva de uma expediccedilatildeo militar

Igitur apud portum de Dertemunde diversarum nationum et morum et linguarum gentes navibus cicrciter CLXIIII convenere Horum omnium trifariam partitur exercitus Sub comite Arnoldo de Arescot nepote Godefridi ducis a romani imperii partibus secedit exercitus Sub Christiano de Gistello flandrenses et bononenses32

A mudanccedila para ldquoimpeacuterio germacircnicordquo (124) corresponde agrave nota explicativa do tradutor JA de Oliveira33 No entanto natildeo se expli-

129Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ca a substituiccedilatildeo de ldquobononensesrdquo por ldquobolonhesesrdquo Naturalmen-te as duas mudanccedilas reflectem-se na traduccedilatildeo alematilde que toma o romance saramaguiano como texto-fonte

(hellip) Information aus verlaumlszliglicher Quelle dem Vernehmen nach direkt vom beruumlhmten Osberno persoumlnlich und also koumlnnen wir uns vergewissern daszlig da Graf Arnoldo de Aar-schot zugegen war der die aus verschiedenen Regionen des deutschen Kaiserreiches herbeigestroumlmten Krieger befehlig-te und Cristiano de Gistell der den Flamen und Bologne-sern vorstand (hellip) (150)

Na traduccedilatildeo alematilde nomes proacuteprios estrangeiros natildeo satildeo lsquore-patriadosrsquo nem o proacuteprio Osberne nem Arnold ou Christian que ficam todos na grafia romacircnica No entanto ldquoimpeacuterio germacircni-cordquo passa para ldquodeutsches Kaiserreichrdquo uma traduccedilatildeo que insinua uma projecccedilatildeo anacroacutenica do seacuteculo XIX (refundaccedilatildeo do Heiliges Roumlmisches Reich Deutscher Nation como Deutsches Kaiserreich em 1871) natildeo pretendida no texto-fonte Naturalmente a traduccedilatildeo alematilde ignora a possibilidade latente jaacute apagada no texto sarama-guiano de encontrar a identidade alematilde nos ldquobononensesrdquo mal transcritos em ldquobolonhesesrdquo34 Esta transcriccedilatildeo defeituosa surpre-ende porque eacute a personalidade do cavaleiro Henrique de Bona ausente na epiacutestola35 que teve o maior relevo individual na histo-riografia portuguesa entre os ldquosamtos cavaleyros martiresrdquo

Nesta tomada de Lisboa morerom alguns cavaleyros como martires e depois faziam muytos milagres amtre os quaes foy hum cavaleyro chamado Amriqe alematildeo o qual era de hũa vila que chamom Bona posta jumto de Colonha o qual foy enterado em Sam Viccedilemte honde fazia muytos milagres (hellip) (Croacutenica 50)

130Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Merecendo destaque na histoacuteria da fundaccedilatildeo do mosteiro de Satildeo Vicente com episoacutedios de acccedilatildeo milagrosa depois de morto (Indiculum 83-85 Croacutenica 50-52) Henrique de Bona torna-se uma personagem da Histoacuteria portuguesa digna de entrar nrsquo Os Lu-siacuteadas (VIII 18) Procede-se a uma apropriaccedilatildeo do estrangeiro colonizador o alematildeo Henrique torna-se depois de ter vertido ldquode gram voontade o seu sangue antre os mouros pola paixom do Nosso Salvador Jesu Cristordquo (Indiculum 83) no maior Santo Cavaleiro da Tomada de Lisboa Na Alemanha ele estaacute totalmente desconhecido a natildeo ser no acircmbito da retoacuterica diplomaacutetica bila-teral na qual aparece natildeo como maacutertir mas como fundador dos ldquolaccedilos da amizade secular que liga o povo da Alemanha ao de Por-tugalrdquo (Ehrhardt 11) projectando a ajuda dos cruzados na geacutenese do reino de Portugal numa lsquolenda de auxiacuteliorsquo para todas as eacutepocas posteriores

Numa abordagem criacutetica observamos um duplo branqueamen-to (1) da memoacuteria do saque cruel e devastador da Lisboa moura perpetrado pelos cruzados colonenses e flandrenses e (2) da rela-ccedilatildeo colonizadora entre aliados no contexto da Europa Cingimo--nos no acircmbito deste estudo agrave anaacutelise do episoacutedio da torre moacutevel No romance a ideia da sua construccedilatildeo eacute atribuiacuteda ao cavaleiro Henrique manipulando as fontes histoacutericas que falam de engenhos militares em competiccedilatildeo entre os diferentes grupos eacutetnicos ou destacam ldquoum engenheiro italiano natural de Pisardquo36 O discurso profeacutetico de superioridade cultural deste cavaleiro revela os moti-vos desta escolha

Grandes satildeo as vantagens que a Portugal adviratildeo de imitar neste como noutros casos o que na Europa se vai fazendo de mais moderno ainda que ao princiacutepio experimenteis dificuldades em meter na cabeccedila as tecnologias novas eu por mim sei da construccedilatildeo das tais torres o suficiente para os naturais daqui (hellip) (251)

131Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Groszlige Vorteile sind Portugal gewiszlig wenn es in diesem wie in anderen Faumlllen nachahmt was man in Europa an houmlchst modernen Dingen tut mag es euch anfaumlnglich auch schwerfallen die neuen Techniken in euren Kopf hinein-zukriegen ich meinerseits weiszlig vom Bau besagter Tuumlrme hinreichend viel um die hiesigen Eingeborenen zu unter-richten () (305)

Mesmo a traduccedilatildeo alematilde transmite a ideia de que a fala do cavaleiro Henrique perante o primeiro rei portuguecircs conteacutem uma paroacutedia do discurso poliacutetico actual que natildeo se cansa de propagar a imitaccedilatildeo da Europa avanccedilada representada pela capacidade eco-noacutemica e tecnoloacutegica de Alemanha em competiccedilatildeo com outras na-ccedilotildees Ao mesmo tempo projecta-se ndash apresentado como verdade de fora ndash a auto-imagem humilhante dos ldquonaturaisrdquo37 como matildeo-de--obra sem formaccedilatildeo agrave mercecirc das decisotildees de governantes que pac-tuam com os estrangeiros (252) como condiccedilatildeo da proacutepria geacutenese nacional No entanto a derrota da torre tatildeo bem construiacuteda que conduz ateacute agrave morte do seu construtor faz surgir a criacutetica dos ldquoen-genhos estrangeiros que tanto podem estar a favor como contrardquo (316) parodiando-se assim tanto a lsquolenda de auxiacuteliorsquo e a atitude colonizadora como o projecto portuguecircs de modernizaccedilatildeo europeia (Grossegesse 1995 228)

Reservando uma anaacutelise da constelaccedilatildeo transcultural entre o ca-valeiro alematildeo Henrique a sua ldquobarregatilderdquo Ouroana38 e o soldado Mogueime para outra ocasiatildeo centramo-nos num aspecto de jogo intertextual que ainda recebeu pouca atenccedilatildeo Face agrave ausecircncia do episoacutedio da torre moacutevel e da personalidade de Henrique de Bona na epiacutestola dirigida a Osberno eacute significativo que o romance sara-maguiano invente ldquoapontamentos para a carta de Osbernordquo (308) contendo estes em todo pormenor a histoacuteria do cavaleiro Henri-que A explicaccedilatildeo psicanaliacutetica de Ersatz para esta escrita do Frei Rogeiro39 tambeacutem eacute vaacutelida para o revisor Raimundo que insere na sua reescrita do Cerco de Lisboa a histoacuteria da conquista amorosa de Ouroana por Mogueime possibilitada pela morte do cavaleiro

132Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

alematildeo que espelha ndash atraveacutes dos tempos ndash a sua proacutepria lsquoconquis-tarsquo de Maria Sara

Com a ficccedilatildeo do texto apoacutecrifo inaugura-se uma hibridizaccedilatildeo transcultural das proacuteprias fontes histoacutericas possibilitando um amalgamar das narrativas dos cruzados com a Histoacuteria nacional e o lendaacuterio portuguecircs que culmina na releitura dos milagres do cava-leiro Henrique em simultacircneo com os milagres de Santo Antoacutenio o padroeiro mais popular de Lisboa A intersecccedilatildeo de milagres de ambos pelas leituras simultacircneas de Maria Sara e Raimundo eacute um acto que subverte tanto a procura da verdade histoacuterica como o conceito de identidades delimitadas por territoacuterio sangue e liacutengua Numa espeacutecie de metalepse o proacuteprio Frei Rogeiro apoacutes ter com-pilado ldquoos apontamentos que havia tomado durante uma volta que dera por todos os arraiaisrdquo (331) participa no episoacutedio milagroso ldquoComo o cavaleyro Amrique apareccedileo em sonhos a hum homem botildeo e como lhe disse que soterasem seu escudeiro a par delerdquo (Croacute-nica 51 cf Indiculum 84-85) cumprindo o papel daquele homem bom natildeo identificado

Mais significativo nesta leitura de milagres transformada em reescrita paroacutedica eacute o destaque atribuiacutedo agrave questatildeo de identida-des processos de deslocaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo culminando na trans-formaccedilatildeo de um milagre do cavaleiro Henrique numa espeacutecie de contra-mito da origem da liacutengua portuguesa ao narrar o milagre dos dois homens surdos-mudos que se deitaram ao lado do moi-mento do cavaleiro (Indiculum 83-84 Croacutenica 50-51) realccedila-se a incerteza da identidade deles ldquotinham vindo na frota poreacutem natildeo se sabe se ingleses aquitanos bretotildees flandrenses ou colonen-sesrdquo (335) Estando os dois homens assim jazendo ldquoadormeceram ambos e apareceu-lhes em sonho logo o cavaleiro Henrique (hellip) e falou agravequeles mancebosrdquo (336) ndash natildeo sabemos em que liacutengua ndash anunciando a sua cura de duvidoso efeito

(hellip) e eles acordando acharam que podiam ouvir e falar tambeacutem poreacutem falavam como gagos e de maneira que natildeo se entendia que liacutengua estavam falando se a dos ingleses

133Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ou aquitanos ou bretotildees ou flandrenses ou colonenses ou conforme natildeo poucos afirmavam a liacutengua dos portu-gueses (336)

Esta manipulaccedilatildeo natildeo de fontes histoacutericas mas de uma len-da convida para uma leitura metadiscursiva em vez de ldquocom voz chlara (hellip) contar a todo o povo o milagre que Deos em eles fizerardquo (Croacutenica 51) os dois ficam gagos No entanto o problema natildeo consiste em entender o que eacute que eles dizem mas em identificar a liacutengua que eles falam Nesta leitura o milagre reinterpretado enfa-tiza a visatildeo de uma hibridizaccedilatildeo das liacutenguas e das identidades no entanto consciente da imperfeita capacidade comunicativa que eacute aplicaacutevel agraves questotildees de revisatildeo e traduccedilatildeo

Tal como o revisor Raimundo Silva dentro da ficccedilatildeo o tradutor reescreve um texto anterior no entanto noutra liacutengua e para um leitor com outro horizonte cultural A procedecircncia das fontes histoacute-ricas e a apropriaccedilatildeo do cavaleiro Henrique pelo discurso da iden-tidade portuguesa demonstram a ineficaacutecia das definiccedilotildees puras de identidade e alteridade Em vez da tentativa de uma reproduccedilatildeo de uma liacutengua na outra no fundo irrealizaacutevel a visatildeo da hibridiza-ccedilatildeo das liacutenguas e identidades advoga uma recriaccedilatildeo naturalmente sempre parcial e imperfeita daquela heterogeneidade que Histoacuteria do Cerco de Lisboa exibe ao narrar a procura de uma ldquoverdaderdquo que ldquonatildeo pode ser mais do que uma cara sobreposta agraves infinitas maacutescaras variantes (hellip)rdquo (26) Para tal activa-se ldquooutro tipo de relaccedilotildees entre os elementos (hellip) porque as coerccedilotildees impostas pelas liacutenguas levam a diferentes possibilidades de contextualizaccedilotildees de remissotildees de encadeamentos de atribuiccedilatildeo de valores entre os elementosrdquo (Rodrigues 205) Se o romance reflecte claramente a diffeacuterance (Derrida 1967) como princiacutepio universal40 destacando os processos de traduccedilatildeo e reescrita este princiacutepio deve ser vaacutelido tambeacutem para a proacutepria traduccedilatildeo como propotildee Cristina Carneiro Rodrigues na continuaccedilatildeo de Rosemary Arojo (1993)

134Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

O original vive sobrevive na e pela sua proacutepria transfor-maccedilatildeo produzida pela leitura A traduccedilatildeo natildeo transporta uma essecircncia natildeo troca ou substitui significados dados prontos em um texto por significados equivalentes em outra liacutengua A traduccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo em que o laquotexto originalraquo se daacute por sua proacutepria modificaccedilatildeo em sua trans-formaccedilatildeo (Rodrigues 206)

O romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa interrelaciona esta con-diccedilatildeo de cada texto ser texto de textos transferidos traduzidos de outros textos em contextos histoacutericos sempre diferentes com a criacutetica da lsquoorigemrsquo da identidade individual e colectiva no sentido de transculturalidade e da ldquoculturersquos hibridityrdquo (Bhabha 1989 38) ambas com base expliacutecita na diffeacuterance Se reactivarmos a teoria de Jean Ricardou (1973) relativamente ao nouveau roman podemos dizer que a aventura da leitura escrita do revisor prefigura uma aventura semelhante do tradutor Tal como o revisor transformado em tradutor e autor ele transmite uma Histoacuteria do Cerco de Lis-boa recriada para outro leitor neste caso um leitor alheio natildeo soacute agrave narraccedilatildeo tradicional desta histoacuteria num discurso identitaacuterio mas tambeacutem agrave integraccedilatildeo da sua identidade cultural neste discurso Isto torna a traduccedilatildeo deste romance uma aventura de leitura e reescrita em certa medida jaacute prevista na Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Se no processo de traduccedilatildeo o tradutor ou tradutora tem que necessariamente tomar o lugar do autor e se apossar de seu texto para que esse possa sobreviver em outra liacutengua natildeo haacute como eliminar esse momento de usurpaccedilatildeo e con-quista que a reflexatildeo desconstrutivista flagra e desmascara (Arrojo 1993 82)

Curiosamente Rosemary Arrojo emprega a mesma metaacutefora de conquista utilizada para a aventura de Raimundo Silva que abrange a conquista amorosa de Maria Sara41 Eacute precisamente a mulher

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

110Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

INTERSECTED IDENTITIES HISTOacuteRIA DO CERCO DE LISBOA AND GESCHICHTE DER BELAGERUNG

VON LISSABON

Abstract It is well known that the novel The History of the Siege of Lis-bon undertakes a revision of the origin of Portuguese identity by revealing the fragile historical fundament in the sense of a culturersquos hybridity This study argues that in this story the problematic search for lsquopurersquo historical origin is intertwined with the search for lsquopurersquo text By analyzing the dense intertextual net of Raimundo Silvarsquos doubtful and creative proof--reading it becomes evident that it is less a question of proof-reading than of translating that is at stake in this historiographic metafiction From this perspective the adventure of readingwriting turns out to be a question of criss-crossed identity that is extended to the novelrsquos reader in the case of its translation into German the new text has to tackle with the readerrsquos cultural affinity with the CrusadersKeywords Metafiction about translation Cultural hybridity in translation

ldquoEacute humilhante para os portugueses a percepccedilatildeo que o exterior tem de Portugal (hellip)rdquo Esta e outras afirmaccedilotildees recentemente proferidas pelo gestor norte-americano Jack Welsh num congresso em Lisboa1 mereceram para aleacutem de reaccedilotildees imediatas de indig-naccedilatildeo um artigo de opiniatildeo de Joseacute Pacheco Pereira

Welsh fez bem em dizecirc-lo e fazia-nos bem ouvir mais ver-dades como esta para substituirmos a nossa balofa e incom-petente auto-estima pela percepccedilatildeo de que a realidade natildeo eacute propriamente um espelho do nosso excesso identitaacuterio (Pereira 2006)

Pacheco Pereira reconhece que esta percepccedilatildeo natildeo eacute acolhida de bom grado e logo classificada de ldquoarrogacircncia do estrangeirordquo Em vez de assim ldquoesconjurar o que natildeo queremos verrdquo ele destaca a utilidade particular de sermos confrontados com a nossa imagem vista de fora quando nos entregamos agrave ldquotarefa permanente de nos

111Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

iludirmosrdquo (Pereira 2006) Nesta contraposiccedilatildeo predominam cate-gorias riacutegidas e relaccedilotildees claramente antagoacutenicas realidade e ilusatildeo visatildeo de fora e de dentro capacidade de percepccedilatildeo e respectiva incapacidade Contudo a conclusatildeo de os portugueses ficarem ldquomal amados mal lembrados pouco estimados no mundordquo e o senhor Welsh ter lembrado isto ldquocom crueldaderdquo natildeo vai muito aleacutem do citado ldquonegativismo dos intelectuais traccedilo tiacutepico desde os Vencidos da Vidardquo que tambeacutem natildeo satisfaz o proacuteprio comentarista apesar de preferir ldquouma boa dose de realidade cruel que sejardquo (Pereira 2006) De facto Pacheco Pereira opera com uma categoria de reali-dade difusa porque natildeo expressamente identificada como construccedilatildeo poliacutetica social e cultural responsaacutevel pela afirmaccedilatildeo das imagens seja de fora ou de dentro Portanto a habilidade portuguesa de apropriar-se ou ateacute de antecipar a imagem de fora2 natildeo questiona mas protege o excesso identitaacuterio Esta construccedilatildeo da lsquorealidade portuguesarsquo entre duas atitudes antagoacutenicas mas em termos discur-sivos no seu excesso anaacutelogas revela o desajuste da dicotomia entre a realidade cruel (de fora) e a doce ilusatildeo (de dentro)

Em resumo apesar da sua posiccedilatildeo auto-reflexiva o ensaio de Pacheco Pereira natildeo transcende uma tradiccedilatildeo discursiva bem de-finida a de absorver posiccedilotildees negativas lsquode forarsquo para preservar alguma identidade de Portugal entre a dramatizaccedilatildeo actual da sua perda total e a memoacuteria indeleacutevel da sua grandeza Com este tipo de anaacutelise afastamo-nos de posiccedilotildees substanciais de identidade em vez de caracteriacutesticas proacuteprias e inconfundiacuteveis bem demarcada face a outras identidades atraveacutes de territoacuterio sangue (povo) e liacuten-gua ela eacute entendida na sua dimensatildeo estrutural de relacionamento ou discurso seguindo o conceito de Wolfgang Welsch (1995) de transculturalidade como princiacutepio fundamental da praxis da vida3 Neste sentido a fala sobre o proacuteprio que se baseia nas lsquoverdades crueacuteisrsquo ditas (ou diziacuteveis) pelo outro revela-se uma forma portu-guesa de transposiccedilatildeo dramaacutetica ou coacutemica que afirma as relaccedilotildees desenhadas nas dicotomias inicialmente referidas

Ao contraacuterio da representaccedilatildeo de pureza cultural a transcul-turalidade baseia-se na consciecircncia de que somos em termos de

112Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

identidade cultural essencialmente ldquomesticcedilosrdquo (Welsch 43) Fala-mos de representaccedilatildeo da identidade cultural (nacional) para realccedilar a sua construccedilatildeo discursiva ao longo da histoacuteria no Renascimento e no Barroco portanto no alvor das naccedilotildees europeias modernas inauguraram-se modos de falar sobre o caraacutecter da naccedilatildeo ou do povo em termos comparativos No Romantismo estes discursos adquiriram maior forccedila atraveacutes da definiccedilatildeo do caraacutecter do povo (Volkscharakter) como essecircncia preacute-consciente sucessivamente reinterpretada e amalgamada com o conceito pseudo-cientiacutefico da raccedila a partir do fim do seacutec XIX Esta evoluccedilatildeo demonstra que natildeo existe um objectivismo desvinculado da evoluccedilatildeo da historiografia e etnografia Tal como natildeo existe uma substacircncia intemporal da obra de arte natildeo pode haver uma substacircncia intemporal do dis-curso historiograacutefico e etnograacutefico ou do discurso da identidade cultural (nacional) Conforme a criacutetica do platonismo subjacente nas filologias e na historiografia tradicionais o analista de um texto natildeo possui a priori uma posiccedilatildeo superior ao lsquoleitor normalrsquo mas deve ancorar a sua proacutepria anaacutelise ldquona consciecircncia de a sua posiccedilatildeo actual se integrar numa sequecircncia histoacuterica de leitoresrdquo4 A partir destas definiccedilotildees da cultura e do texto analisaremos os cruzamentos de identidades no romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) e na traduccedilatildeo alematilde Geschichte der Belagerung von Lissabon (1992)5

O romance saramaguiano subverte atraveacutes de uma represen-taccedilatildeo transcultural ou hiacutebrida6 a coesatildeo da identidade portuguesa perante o outro de definiccedilatildeo dupla por um lado os cruzados na maioria procedentes do Norte da Europa e por outro os mou-ros oriundos de um Sul longiacutenquo natildeo concretizado e senhores atuais do territoacuterio Satildeo representaccedilotildees estereotipadas e portanto ambivalentes tornando o outro ao mesmo tempo estranho e fa-miliar ldquothe ambivalence of colonial cultural textsrdquo daacute origem agrave ldquoproduction of hybridizationrdquo (Bhabha 1985 112-19) afirmando que ldquonational narrative is the site of an ambivalent identificationrdquo (1994 167) Precisamente a Tomada de Lisboa que na historio-grafia nacional se constitui como episoacutedio nuclear da geacutenese da naccedilatildeo eacute des-narrada (deacutenarreacutee Prince 1988) pelo revisor Rai-

113Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

mundo Silva o protagonista deste romance partindo de um ldquonatildeordquo ldquoOs cruzados Natildeo auxiliaratildeo os portugueses a conquistar Lisboardquo (Saramago 50) A atitude de des-narrar que produz a indeter-minaccedilatildeo relativamente agrave versatildeo supostamente veriacutedica dos factos manifesta-se na problematizaccedilatildeo das fontes e no uso do futuro ao falar sobre os acontecimentos do ano de 1147 partindo desta ne-gaccedilatildeo expliacutecita que o revisor introduz no livro de um historiador7 antes da sua publicaccedilatildeo sem possuir nenhuma autoridade para este acto (Grossegesse 1996 810) Portanto natildeo soacute o discurso mas tambeacutem a proacutepria acccedilatildeo deste romance questionam os conceitos de identidade cultural original e texto original

Assumindo aos poucos a tarefa de uma reescrita com base no ldquonatildeordquo Raimundo procura uma ldquofonte limpardquo lamentando a ldquoimprecisatildeo dos dadosrdquo e a ldquopropagaccedilatildeo alucinada das notiacuteciasrdquo dando-se a ldquoproliferaccedilatildeo das proacuteprias fontes segundas e terceirasrdquo que ele compara com a ldquomultiplicaccedilatildeo de esporosrdquo (124) e ndash numa analogia com a actualidade ndash com a ldquorepeticcedilatildeo variada nas notiacutecias dos jornaisrdquo (Saramago 125) A procura da origem da nacionali-dade entretece-se com a procura do texto da origem revelando-se cada vez mais a impossibilidade de encontrar pureza identitaacuteria nem existe uma identidade-fonte nem um texto-fonte porque am-bas as noccedilotildees colocariam cultura e escrita fora de uma evoluccedilatildeo ou discursividade histoacuterica Ora se a ldquoverdaderdquo da origem e o seu discurso uniacutevoco ficam desconstruiacutedos posiccedilatildeo jaacute anunciada pela epiacutegrafe tirada de um Livro dos Conselhos imaginaacuterio8 como pode haver entatildeo uma traduccedilatildeo deste romance no entendimento tradicional que se baseia na lsquoverdadersquo de um texto-fonte e procura a consistecircncia comparaacutevel de um texto-alvo

Eacute precisamente a alternativa imaginada de uma conquista de Lisboa sem recorrer ao auxiacutelio de estrangeiros que expotildee a vulne-rabilidade do lsquoexcesso identitaacuteriorsquo impliacutecita na Histoacuteria nacional quando se fala da ldquoajuda de cruzados dando agrave participaccedilatildeo deles um valor instrumental quando seria mais correcto dizer que Lis-boa foi conquistada com a ajuda dos portuguesesrdquo (Caragea 224) Na procura de minimizar o papel da participaccedilatildeo estrangeira jaacute

114Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

bem visiacutevel na Croacutenica de D Afonso Henriques (1632) de Frei Antoacutenio Brandatildeo atraveacutes de uma compilaccedilatildeo comentada de fon-tes chegou-se de facto no Estado Novo ateacute agrave sua negaccedilatildeo num texto de Joseacute Augusto de Oliveira (1940) No entanto esta revisatildeo nacionalista natildeo conseguiu alterar a presenccedila jaacute sedimentada dos cruzados no imaginaacuterio portuguecircs etnicamente heterogeacuteneos no entanto unidos aos portugueses por serem tambeacutem eles cristatildeos e hostis aos muccedilulmanos Neste sentido a representaccedilatildeo do encontro com os cruzados eacute significativa Na Croacutenica de Portugal de 1419 citada no romance sob o tiacutetulo anterior Croacutenica dos Cinco Reis de Portugal9 no capiacutetulo ldquoComo elrey dom Afonso se ordenou de ir ccedilerquar Lixboa e das jentes estrangeyras que levou em sua ajudardquo encontramos a seguinte descriccedilatildeo

(hellip) moverom em aquele tempo muytas jentes de Ingraterra e dAlemanha e de Framccedila e vierom em muyto grande frota pelo mar em guisa que achamos espiacuterito que erom oytenta velas E vindo todolas naos de mar em fora busquar terra agrave roqua de Syntra elrey que estava em ccedilima no castelo com seus fidalguos devisaram-nos e quando virom tatildeo grande frota como aquela foram muy espantados E elrey man-dou loguo quatro cavaleyros que fossem agrave ribeyra saber que gemtes erom aquelas (hellip) E os cavaleyros pergunta-ram que gemtes erom e os das naos lhe disserom que erom christatildeos que partirom de suas terras e vinhom agraves Espanhas para guerear contra os mouros por fazer serviccedilo a Deos (Croacutenica 47)

A chegada dos estrangeiros cuja forccedila militar espanta insinua uma espeacutecie de invasatildeo amigaacutevel nas ldquoEspanhasrdquo logo funciona-lizada pela Histoacuteria nacional como daacutediva divina para a geacutenese da identidade portuguesa de grande coesatildeo forccedila e predestinaccedilatildeo jaacute afirmadas pelo milagre de Ourique Atraveacutes da reinvenccedilatildeo dos actores histoacutericos e dos seus discursos o romance saramaguiano nega de uma forma paroacutedica o conceito de identidade cultural

115Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que se define na tradiccedilatildeo herderiana atraveacutes do antagonismo entre cultura proacutepria e alheia Como mostra a Croacutenica de 1419 a iden-tidade alematilde tambeacutem participa no Cerco de Lisboa integrando--se na categoria heterogeacutenea dos estrangeiros do lado colonizador superiores natildeo soacute relativamente aos mouros mas tambeacutem aos co-lonizadores autoacutectones que ao consentir ou adoptar a ideologia importada da cruzada se revelam em certa medida tambeacutem colo-nizados Na noccedilatildeo da milagrosa invasatildeo amigaacutevel de estrangeiros que vinham aqui ldquopara guerear contra os mourosrdquo daacute-se azo ao excesso identitaacuterio que se sobrepotildee agrave contra-imagem humilhante de um papel meramente secundaacuterio de anfitriatildeo e ajudante numa conquista de Lisboa liderada pelos cruzados por sua vez missatildeo menor e de passagem no seio de um contexto maior o da Segunda Cruzada (1147-49)10

Um romance que natildeo soacute reescreve de uma forma paroacutedica a origem da configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica res-ponsaacutevel do excesso identitaacuterio portuguecircs mas tambeacutem sugere lsquolei-turasrsquo anacroacutenicas da actualidade portuguesa ainda caracterizada pelo dilema deste mesmo excesso identitaacuterio como comprova o en-saio de Pacheco Pereira (2006) eacute difiacutecil de traduzir porque implica uma operaccedilatildeo complexa de mediaccedilatildeo cultural no sentido de ldquocross--linguistic cultural practice involving recontextualizationrdquo (House 2002 97) Ilustramos esta dificuldade com um episoacutedio do livro do historiador lido por Raimundo Silva antes de introduzir o ldquonatildeordquo

(hellip) agora o historiador embandeirou o estilo para tratar da grande discoacuterdia que se levantou entre os cruzados (hellip) sobre se deveriam ou natildeo ajudar os nossos portugueses a tomar Lisboa se ficariam aqui ou seguiram como previsto para a Terra Santa onde os estava esperando Nosso Senhor Jesus Cristo sob os ferros turcos Argumentavam aqueles a quem seduzia a ideia de ficar que lanccedilar fora da cidade a estes mouros e fazecirc-la cristatilde seria tambeacutem serviccedilo de Deus contestavam os contraacuterios que se esse era serviccedilo de Deus serviccedilo menor seria e que cavaleiros tatildeo principais como

116Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

ali todos se prezavam de ser tinham por obrigaccedilatildeo acudir aonde mais trabalhosa fosse a obra natildeo neste cu do mundo entre labregos e tinhosos que uns deviam ser os mouros e outros os portugueses poreacutem natildeo o averiguou o historia-dor talvez por natildeo valer a pena de escolher entre os dois insultos (Saramago 47)

(hellip) nun uumlbt sich der Historiker in hohem Stil um den gro-szligen Zwist darzulegen der sich unter den Kreuzfahrern () entspann stand doch die Frage ob sie unseren Portugiesen bei der Einnahme Lissabons helfen sollten oder nicht ob hier verbleiben oder aber wie vorgesehen weiterziehen ins Heilige Land wo in tuumlrkischen Fesseln Unser Herr Je-sus Christus ihrer harrte Es argumentierten jene die am liebsten hiergeblieben waumlren die Mauren aus dieser Stadt treiben und aus ihr einen Christenhort zu machen sei glei-chermaszligen ein gottdienliches Werk und die anderen hiel-ten dagegen wenn gottdienliches Werk dann doch wohl ein minderes so hehre Ritter wie alle hier es zu sein ver-meinten haumltten die Pflicht dorthin zu eilen wo das Werk muumlhevoller sei nicht wie in diesem Weltenwinkel unter Bauersleuten und Wichten gemeint waren wohl mit den ei-nen die Mauren und mit den anderen die Portugiesen doch unterlieszlig der Historiker weitere Ergruumlndung vielleicht weil beides Schmaumlhworte waren (55)

Seja por entender ldquoembandeirar o estilordquo num sentido estrito em vez de intuir a subversatildeo da escrita pelas vozes citadas no sentido da polifonia bakhtiniana11 seja por obedecer a um conceito do politicamente correcto a versatildeo alematilde ldquoWeltenwinkelrdquo evita o equivalente ldquoArsch der Weltrdquo da expressatildeo escatoloacutegica ldquocu do mundordquo estereotipada no discurso da identidade portuguesa do seacute-culo XX Tambeacutem suaviza os insultos que expressam a superiori-dade colonizadora dos cruzados natildeo soacute relativamente aos mouros mas tambeacutem aos portugueses a traduccedilatildeo inofensiva de ldquoBauers-leuterdquo e ldquoWichterdquo anula a semacircntica insultuosa de ldquolabregosrdquo12 e

117Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ldquotinhososrdquo Com isto atenua-se a atitude de arrogacircncia dos ldquoca-valeiros tatildeo principaisrdquo que natildeo acham necessidade de diferenciar entre portugueses e mouros A traduccedilatildeo natildeo consegue transferir a paroacutedia da identidade portuguesa que dialoga com o leitor impliacute-cito (Iser 1972) do original para o perfil do leitor da traduccedilatildeo de maior afinidade cultural com os cruzados Trata-se de um leitor desprovido (1) da ldquoenciclopeacutedia do mundo portuguecircsrdquo (Caragea 209) e (2) da socializaccedilatildeo no contexto da realidade poliacutetica e social portuguesa dos anos oitenta e noventa com a memoacuteria do 25 de Abril de 1974 (por exemplo impliacutecita no perfil da personagem Mogueime como preacute-figuraccedilatildeo de Salgado Maia)

Esta dupla dificuldade que ndash com o tempo ndash tambeacutem surgi-raacute cada vez mais para o texto-fonte conduz agrave questatildeo do texto comentado que discute Horst Turk (1992) exemplificando-a no romance La reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten de Juan Goytisolo (em reediccedilatildeo comentada a partir de 1985) e na sua traduccedilatildeo alematilde (natildeo comentada) No caso de Histoacuteria do Cerco de Lisboa ainda natildeo existe uma ediccedilatildeo comentada do original Entre as traduccedilotildees a alematilde de Andreas Klotsch (1992) prescinde de comentaacuterio tal como a inglesa de Giovanni Pontiero (1996) que se cinge a um bre-ve prefaacutecio no entanto a romena por exemplo eacute acompanhada por um proacutelogo extenso e notas explicativas da tradutora Mioara Caragea13 Pelo comentaacuterio e pela ausecircncia dele acentuam-se as duas caras de Iano (Januskoumlpfigkeit) da traduccedilatildeo ela representa o texto-fonte e substitui o texto-fonte na literatura-alvo Mais ainda a traduccedilatildeo eacute tambeacutem em todas as literaturas um lugar privilegiado para articular qualidades de diferenccedila14 Destas deliberaccedilotildees surge como questatildeo central a traduccedilatildeo alematilde natildeo comentada da Histoacuteria do Cerco de Lisboa eacute capaz de transmitir a paroacutedia de identidade alteridade cultural (nacional) do texto-fonte

Ao falar do handicap do leitor desprovido da ldquoenciclopeacutedia do mundo portuguecircsrdquo (Caragea 209) prolonga-se a abordagem purista em vez de se repensar tambeacutem esta enciclopeacutedia de forma transcultural Com isto evidencia-se o cruzamento de identidades em constante mudanccedila desde as fontes histoacutericas citadas no lsquolivro

118Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

do historiadorrsquo ateacute agrave proacutepria traduccedilatildeo do romance Jaacute o historiador cujo livro Raimundo Silva revisa concede destaque entre as fon-tes ao ldquoceacutelebre Osbernordquo (Saramago 124) privilegiando assim a narrativa epistolar de um cruzado oriundo da regiatildeo de Norfolk ou Suffolk que participou no Cerco Atualmente eacute considerada ldquotalvez a principal fonte histoacutericardquo (Alves 13) A carta dirigida a uma personalidade inglesa estaacute escrita em latim Por isso Cru-cesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis15 integra natildeo soacute uma visatildeo desde o exterior portanto afastada da construccedilatildeo da Histoacuteria nacional mas tambeacutem um texto noutra liacutengua A proacutepria narrativa marginaliza a identidade portuguesa natildeo soacute no contexto geral do antagonismo entre cruzados (identidade comum francos) e mouros16 mas tambeacutem pela divisatildeo entre por um lado norman-dos e ingleses (no texto a identidade proacutepria) e por outro colo-nenses e flamengos natildeo soacute desunidos na decisatildeo inicial (participar ou natildeo) mas tambeacutem com diferentes comportamentos durante o cerco e no saque da cidade conquistada (Conquista 83) Com estas caracteriacutesticas este texto fornece por um lado bases para uma narraccedilatildeo fundadora da identidade portuguesa desvalorizando sobretudo eticamente a colaboraccedilatildeo dos cruzados e por outro o preacute-texto de uma des-narraccedilatildeo transcultural aproximando-se da historiografia criacutetica mais recente na qual se procede a uma negaccedilatildeo da narrativa fundacional nacional17 As possiacuteveis releitu-ras fundamentam a paroacutedia do sbquoexcesso identitaacuteriorsquo portuguecircs no romance saramaguiano que se centra na retroprojeccedilatildeo anacroacutenica natildeo soacute da categoria de nacional mas tambeacutem da outra da cate-goria de estrangeiro Basta pensarmos no anacronismo das quinas de Portugal (soacute a partir de Sancho I) a substituir o crescente (na realidade invenccedilatildeo do impeacuterio otomano) que despertam a ira do revisor quando chega agraves paacuteginas finais do lsquolivro do historiadorrsquo (41-42) Nada disto se encontra nas fontes Tambeacutem a traduccedilatildeo ldquopassou a corrupta mesquita a puriacutessima igreja catoacutelicardquo (40) en-fatiza um antagonismo identitaacuterio (muccedilulmano cristatildeo) que no texto-fonte fica subentendido ldquopurificatum est templumrdquo ldquofoi purificado o templordquo (Conquista 85) Mais interessante relativa-

119Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

mente ao leitor impliacutecito de traduccedilotildees para as liacutenguas do Centro Norte da Europa eacute o seguinte trecho

O pessoal que veio a esta fala parlamentar eacute todo de portu-gueses natildeo pareceu bem a el-rei servir-se de estrangeiros para o reforccedilo do ultimatum ainda que diga-se de pas-sagem subsistam grandes duacutevidas de que o arcebispo de Braga pertenccedila de facto ao nosso sangue lusitano mas enfim jaacute nesses antigos tempos tinha principiado a fama que mantivemos ateacute hoje de receber bem a gente de fora distribuir-lhes cargos e prebendas e este D Joatildeo Peculiar vaacute laacute pagou-nos multiplicado em serviccedilos patrioacuteticos E se como tambeacutem se diz era mesmo portuguecircs e de Coimbra vejamo-lo como pioneiro da nossa vocaccedilatildeo migratoacuteria da magniacutefica diaacutespora pois toda a sua juventude a passou em Franccedila a estudar devendo notar-se aqui uma acentuada diferenccedila em relaccedilatildeo agraves tendecircncias recentes da nossa emig-raccedilatildeo para aquele paiacutes plutocirct adstrita aos trabalhos sujos e pesados (197-98)

O problema de transmitir o sentido paroacutedico na traduccedilatildeo18 por exemplo da eterna vocaccedilatildeo migratoacuteria bdquounserer migratoris-chen Berufung unserer wundervollen Diasporaldquo (240) culmina na dificuldade de incluir o leitor impliacutecito da traduccedilatildeo na situaccedilatildeo enunciativa isto eacute neste caso ele se deveria rever no lsquoestrangei-rorsquo vindo da Franccedila e indo aleacutem das dicotomias aperceber-se da relatividade das categorias

Eacute significativo que o revisor Raimundo Silva chegue a este tipo de des-narraccedilatildeo atraveacutes de uma criacutetica da traduccedilatildeo que fundamenta o proacuteprio acto de alterar o lsquolivro do historiadorrsquo a partir do ldquonatildeordquo Natildeo eacute tanto o ldquorigor da traduccedilatildeordquo (44) que estaacute em causa mas a sua verossimilhanccedila Precisamente por duvidar dos conhecimentos de latim das capacidades retoacutericas e em geral da cultura de Afon-so Henriques Raimundo Silva considera ldquoa primeira fala averigua-da do nosso rei fundadorrdquo nada menos do que ldquouma absurdidaderdquo

120Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

(43) negando de passagem tambeacutem o uso da liacutengua portuguesa que a tradicional narrativa fundacional de Portugal assume com naturalidade

(hellip) eacute de supor que o real menino aleacutem de explicar-se natu-ralmente em galego latinizaria o quantum satis para poder declamar chegada a hora perante tantos e tatildeo cultos cru-zados estrangeiros a arenga supracitada uma vez que eles de liacutenguas natildeo entenderiam entatildeo mais do que a sua de berccedilo e iguais rudimentos da outra com a ajuda dos frades inteacuterpretes (Saramago 44)

Esta duacutevida sobre a pureza do discurso reacutegio reproduzido na epiacutestola e traduzido pelo historiador torna-se em ldquoleitura paroacutedica (hellip) pela contextualizaccedilatildeo dramaacuteticardquo (Caragea 2003 235) O que Raimundo Silva ldquoem voz alta lecirc como um arauto lanccedilando as pro-clamasrdquo (P 45) ldquosituando portanto a sua reinterpretaccedilatildeo na zona pragmaacutetica da pronuntiatiordquo (Caragea 235) corresponde ipsis verbis com uma ou outra inversatildeo agrave traduccedilatildeo de JA de Oliveira (Conquista 44) A performance retoacuterica natildeo soacute ldquoacaba de inculcar no revisor um sentimento de distanciamento iroacutenico em relaccedilatildeo agraves palavras do reirdquo (Caragea 235) mas questiona sobretudo as noccedilotildees de texto-fonte e traduccedilatildeo fiel ao texto-fonte

Ao aprender que a invisibilidade do tradutor eacute falaz o revisor daacute o primeiro passo para a sua proacutepria visibilidade autoral Assim a ldquometaficccedilatildeo historiograacuteficardquo (Kaufman 1991) nasce directamen-te do dialogismo no sentido bakhtiniano com Joseacute Augusto de Oliveira simultaneamente ele eacute tradutor da epiacutestola publicada em ediccedilatildeo bilingue (1935) e autor da revisatildeo historiograacutefica intitulada ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem con-tar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo apresentada em 1940 Em vez de tomar a epiacutestola ldquodita de Osbernordquo como texto-fonte homogeacuteneo e traduzi-lo do latim como o fez o ldquoproacuteprio autor da Histoacuteriardquo (Saramago 43) facilmente reconheciacutevel como figuraccedilatildeo de Joseacute

121Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Augusto de Oliveira Raimundo Silva duvida natildeo soacute da pureza da fonte e subsequentemente da fidelidade da traduccedilatildeo mas tambeacutem da identidade do autor da epiacutestola Pelo tiacutetulo Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) Narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial da ediccedilatildeo bilingue esta identidade parece uniacutevoca mas natildeo eacute por exemplo Joseacute F Alves (2004) considera ldquobem coe-renterdquo que a primeira linha do texto latino ldquoOsb de Baldr R salutemrdquo indique um Osb de Baldr (Osberno ou Osberto ou Osborne) como destinataacuterio de ldquouma missiva mesmo sobrescrita apenas por um Rrdquo conjecturando-se o nome de Rogeacuterio19 Apor-tuguesando-se o nome Roger para Rogeiro o romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa assume esta suposiccedilatildeo ndash em oposiccedilatildeo ao lsquolivro do historiadorrsquo que considera Osberno um cruzado letrado O frade eacute apresentado na frase que continua a citaccedilatildeo anterior sobre a iden-tidade eacutetnica indefinida de D Joatildeo Peculiar arcebispo de Braga

Quem eacute indubitavelmente estrangeiro mas contado agrave parte por vir em missatildeo especial nem parlamentaacuterio nem homem de guerra eacute aquele frade ruivo e sardento ali a quem ago-ra mesmo ouvimos chamar Rogeiro mas que realmente tem por nome Roger o que deixaria em aberto a questatildeo de ser ele inglecircs ou normando (hellip) (198)

A identidade de Roger Rogeiro embora etnicamente indecisa oferece ndash na traduccedilatildeo para inglecircs e tambeacutem para alematildeo ndash uma afinidade cultural com o leitor impliacutecito reforccedilada pelo fiacutesico in-confundiacutevel noacuterdico ldquothat sandy-haired freckled friarrdquo (Sarama-go 1996 176) bdquojener blonde sommersprossige Paterldquo (241) No romance Frei Rogeiro cumpre o papel de ldquocronistardquo que transpotildee um conjunto multilingue de falas numa escrita coerente e homo-geacutenea Por exemplo no caso do discurso do arcebispo de Braga

Rogeiro logo em abreviado e taquigraacutefico o registou para mais tarde deixando os aformoseamentos oratoacuterios com que

122Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

brindaraacute aquele seu destinataacuterio distante Osberno chama-do laacute onde quer que esteja e quem quer que tenha sido poreacutem jaacute vai introduzindo redondeios de lavra proacutepria fru-tos de inspiraccedilatildeo estimulada (hellip) (200)

Significativamente Roger Rogeiro natildeo eacute tradutor mas ndash tal como o revisor Raimundo Silva ndash portador da consciecircncia de que tudo eacute traduccedilatildeo correspondendo ao latim o privileacutegio da liacutengua veicular

Este Rogeiro natildeo conhece uma palavra de araacutebigo nem de galego mas neste caso natildeo seraacute impedimento a ignoracircncia pois todo o debate vaacute por onde vaacute sempre iraacute dar ao latim graccedilas aos inteacuterpretes e aos tradutores simultacircneos (198)

De facto esta consciecircncia do plurilinguismo caracteriza Cruce-signati anglici epistola de expugnatione olisiponis desde o iniacutecio falando dos cruzados ldquoInter hos tot linguarum populos firmissima concordiae atque amititiaerdquo (Conquista 21) As falas de cruzados portugueses e mouros aparecem ou em citaccedilotildees traduzidas (de ou-tras liacutenguas para latim) ou em liacutengua latina para serem traduzidas no contexto do cerco Ambas satildeo adaptadas a um texto composto conforme as retoacutericas claacutessica e biacuteblica Eacute a proacutepria epiacutestola que refere a necessidade de traduccedilatildeo por exemplo do discurso do bispo do Porto proferido em latim perante a multidatildeo plurilingue dos cruzados reunidos20 Em contraste eacute significativo que o tradutor JA de Oliveira defenda ldquouma versatildeo que sem trair o pensamen-to se libertasse da escravidatildeo da letrardquo em vez de encher ldquoo texto portuguecircs com antigos vocaacutebulos forrageando-os nas velhas croacute-nicas conhecidas dos eruditosrdquo (Oliveira 1935 18) outorgando agrave sua traduccedilatildeo uma missatildeo nacionalista

Assim espero-o todos entenderatildeo este velho monumento da nossa histoacuteria e nesta hora de ressurgimento neste des-

123Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

pertar de energias e rasgar-se de horizontes novos faraacute bem aos portugueses de hoje ouvir falar a alma dos que agrave forccedila de braccedilo com persistecircncia com teimosia com obstinaccedilatildeo e com amor souberam ungir com o proacuteprio sangue os alic-erces desta nossa Paacutetria que eles nos deixaram para a con-servarmos amorosamente digna honrada e livre (Oliveira 1935 19)

Quem afirma assim uma leitura nacionalista de uma epiacutestola no fundo totalmente alheia ao objectivo de alicerccedilar a Histoacuteria nacional esconjura o que natildeo quer ver entregando-se agrave ldquotarefa permanente de nos iludirmosrdquo que critica Pacheco Pereira (2006) no caso das reacccedilotildees ao discurso de Jack Welsh Longe de com-preender a utilidade particular do confronto com a nossa imagem vista de fora JA de Oliveira concebe a sua traduccedilatildeo da epiacutestola estrangeira como contributo agrave legibilidade culturalmente coerente e homogeacutenea do ldquovelho monumento da nossa histoacuteriardquo A fideli-dade da traduccedilatildeo revela-se enganadora atraveacutes da leitura criacutetica de Raimundo Silva Assim a palavra aacuterabe ldquoalgazarrardquo que JA de Oliveira escolheu para traduzir ldquoconclamatiordquo na fala (por sua vez traduzida) de D Afonso Henriques21 evidencia natildeo soacute a homoge-neizaccedilatildeo do plurilinguismo tanto no texto-fonte como na traduccedilatildeo mas tambeacutem ndash numa leitura contraacuteria ndash a crioulizaccedilatildeo da identida-de portuguesa

Acertara D Afonso Henriques em cheio quando prognos-ticou que o exame da sua proposta acabaria em algazarra palavra que sendo aacuterabe de nacionalidade igualmente serve a qualquer gritar e vozear de colonenses flamengos bolon-heses bretotildees escoceses e normandos misturados (47-48)

Vollkommen recht hatte Dom Afonso Henriques mit der Voraussicht sein Vorschlag werde eine algazarra ausloumlsen dieses Wort obzwar arabischer Abkunft ist auch dienlich jedwedes ereiferndes Geschrei und Gekreisch der Koumllner

124Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Flamen Bologneser Bretonen Schotten und Normannen und aller durcheinander zu bezeichnen (56)

Portanto a palavra ldquoalgazarrardquo sugere nesta leitura transcul-tural do discurso reacutegio a relaccedilatildeo ambivalente galega aacuterabe como fundadora Esta insinuaccedilatildeo integra-se numa paroacutedia do discurso da identidade nacional nomeadamente na sua projecccedilatildeo anacroacutenica para a Idade Meacutedia ndash um aspecto que fica esbatido na traduccedilatildeo ale-matilde22 Uma leitura semelhante sugere a mensagem do rei de Eacutevora aos ldquoseus irmatildeos de Lisboardquo cuja traduccedilatildeo comentada ao portu-guecircs actual brinca com a identidade estereotipada de alentejanos

Aguentem aiacute os malvados que a minha tropa de alentejanos jaacute vai a caminho dizemo-lo assim por vir essa gente de aleacutem do Tejo ficando demonstrado de caminho que jaacute havia alentejanos antes de haver portugueses (176)

Para o leitor da traduccedilatildeo a existecircncia historicamente invertida de ldquoAlentejanerrdquo antes dos ldquoPortugiesenrdquo natildeo possui significado centrando-se a atenccedilatildeo na identificaccedilatildeo de ldquodiese Leute von jenseits des Tejordquo como ldquoAlentejanerrdquo (212) De facto a epiacutestola latina cita mensagens entre os mouros de Lisboa e o rei de Eacutevora desta-cando a ajuda de um inteacuterprete para poder incorporaacute-las no texto23 Obviamente a missiva reacutegia natildeo menciona alentejanos e transmite precisamente o contraacuterio a recusa do envio de tropas alegando a existecircncia de ldquotreacuteguas com o rei dos portuguesesrdquo (Conquista 64)

Estas manipulaccedilotildees mostram que Raimundo Silva eacute cada vez mais consciente da leitura escrita como cruzamento entre dimen-satildeo linguiacutestica e cultural no eixo temporal vaacutelido para a questatildeo da traduccedilatildeo24 no sentido das reflexotildees de Andreacute Lefevere (1992) Horst Turk (1992) e Susan Bassnett (1998) que analisam o texto tra-duzido ldquoembedded in its network of both source and target cultural signsrdquo (Bassnett9) Transcendo uma definiccedilatildeo estaacutetica de ldquocultural signsrdquo e da ldquohybridizationrdquo de Homi Bhabha podemos falar da

125Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

traduccedilatildeo como crioulizaccedilatildeo (Stoll 2005) com base em muacuteltiplos processos de mudanccedila sincroacutenicos e diacroacutenicos A paroacutedia da geacutenese da identidade portuguesa atraveacutes da criacutetica da pureza do texto-fonte (e da sua traduccedilatildeo) coincide com posiccedilotildees da historio-grafia moderna a conquista de Lisboa natildeo significa ndash conforme a Histoacuteria nacional tradicional ndash a vitoacuteria dos portugueses alcanccedilada com ajuda dos cruzados sobre os mouros significa isso sim a im-posiccedilatildeo militarmente bem sucedida do novo paradigma de pureza cristatilde implantada atraveacutes da ideologia colonizadora da Segunda Cruzada (114748) ao velho paradigma da convivecircncia segregada mais ou menos paciacutefica entre muccedilulmanos cristatildeos e judeus em estruturas poliacuteticas e sociais localmente autoacutenomas sob domiacutenio aacuterabe (Marques 68) O romance saramaguiano insinua esporadi-camente a crioulizaccedilatildeo da identidade portuguesa mas natildeo concede potencial identitaacuterio agraves populaccedilotildees cristatilde (moccedilaacuterabe) e judaica de Al-Usbuna sacrificadas por uma fracccedilatildeo dos cruzados ldquologo que o saque e o massacre exorbitaram das possibilidades de controlordquo (Marques 68) como conta em pormenor a epiacutestola Naturalmente destaca-se o bom comportamento dos ingleses e normandos (identi-dade de quem escreve) em contraste com o massacre e a devastaccedilatildeo perpetrados pelos colonenses e flamengos que ateacute matam o bispo da cidade moura25

Portanto o des-narrar saramaguiano natildeo empreende um deslo-camento transcultural tatildeo audaz como por exemplo La reivindi-cacioacuten del conde don Juliaacuten (1970) de Juan Goytisolo26 Naquele romance o narrador recupera atraveacutes da sua identificaccedilatildeo com o miacutetico lsquotraidorrsquo D Juliatildeo a identidade aacuterabe e moccedilaacuterabe termi-nando com o anuacutencio do lado aacuterabe ldquomantildeana seraacute otro diacutea la invasioacuten recomenzaraacuterdquo No entanto existe em Histoacuteria do Cerco um almuadem cego que preenche claramente o lugar do bispo anti-quiacutessimo a ser degolado como aquele por ldquoum soldado cristatildeo de mais zelosa feacuterdquo (348) A sua cegueira paradoxalmente visionaacuteria da Lisboa moura sitiada eacute contraacuteria daquela de ldquoira sanguinaacuteriardquo do seu assassino identificado como ldquoo cruzado Osberno soacute igual de nomerdquo (Saramago 40) introduzindo-se assim deliberadamente

126Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

uma homoniacutemia com o Osberno da epiacutestola (ainda tratado ndash errone-amente ndash como o seu autor) novamente recordada em ldquoo cruzado Osberno poreacutem natildeo o talrdquo27

Esta duplicaccedilatildeo de identidades com o mesmo nome adverte o leitor para ficar atento perante redefiniccedilotildees identitaacuterias como por exemplo dos sitiadores chamados ldquoos francos e os galegosrdquo28 sob comando dos cruzados e ldquoIbn Arrinque o Galegordquo (74) na perspetiva dos mouros recriada na mente de Raimundo Silva O almuadem na sua torre complementa ndash atraveacutes dos tempos ndash a posiccedilatildeo de Raimundo Silva ldquoque hoje quase tatildeo cego se vecirc como elerdquo (33) Significativamente o revisor apercebe-se ldquode que mora no preciso lugar onde antigamente se abria a Porta de Alfofardquo configurando-se assim topograficamente a incerteza (que corresponde ao des-narrar) ldquose Raimundo Silva eacute um si-tiado ou um sitiante vencedor futuro ou perdedor sem remeacutediordquo (75) Nos seus passeios por Lisboa ele revivifica uma cidade dividida entre zonas dos sitiados e dos atacantes entretecendo ldquodois temposrdquo (242) passado e presente29 A ambiguidade nos eixos de lugar e tempo transfere-se natildeo soacute agrave histoacuteria aplicando o tema da cegueira ateacute ao processo da sua recepccedilatildeo ldquo(hellip) esta [histoacuteria] de agora comeccedilada soacute poderaacute lecirc-la quem os olhos ti-ver luacutecidos e abertos natildeo um cegordquo (243) transfere-se tambeacutem agrave liacutengua na qual estaacute escrita o texto insinuando-se um regresso a outra fonte nas duas dimensotildees de identidade cultural e texto que evoca aquela transformaccedilatildeo da liacutengua castelhana em aacuterabe realizada nas uacuteltimas duas paacuteginas de Juan sin Tierra (1975) de Juan Goytisolo ldquo(hellip) as matildeos de Raimundo Silva pousam sobre a uacuteltima folha escrita umas linhas negras indecifraacuteveis talvez de araacutebiga liacutengua natildeo estivemos atentos agrave voz do almuademrdquo (Sara-mago 243) Na accedilatildeo mediadora do revisor confluem a voz aacuterabe do almuadem e a escrita latina do cleacuterigo Roger Na reescrita inicialmente soacute mental do lsquolivro do historiadorrsquo Raimundo Sil-va procura uma reconstruccedilatildeo contextualizada de ambos os lados (cristatildeos muccedilulmanos) por exemplo corrigindo o significado da cegueira do almuadem

127Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

() natildeo foi erro escrever porque enfim escrito estaacute que era cego o almuadem O historiador soacute fala de minarete e muezim talvez ignorasse que quase todos os almuadens naquele tempo e por muito tempo depois eram cegos (29

() es war kein Fehler und geschrieben ist es nun mal daszlig der Muezzin blind war Der Historiker der da lediglich von Minarett und Muezzin schreibt wuszligte vielleicht nicht daszlig fast alle Muezzins damals und noch lange danach blind waren (32)

O revisor identifica ldquominareterdquo e ldquomuezimrdquo como palavras li-gadas ao orientalismo dos seacuteculos XVIII e XIX Apesar de ser um fenoacutemeno transnacional europeu o orientalismo teve maior atracccedilatildeo na cultura francesa que espalhou para outras liacutenguas eu-ropeias as vozes aacuterabes importadas pela via oriental o Impeacuterio Otomano (Turquia) na sua expansatildeo europeia a partir do seacuteculo XIV (ponto alto conquista de Constantinopla em 1453) tinha dei-xado vestiacutegios nomeadamente na cultura austriacuteaca no acircmbito dos Tuumlrkenkriege (ponto de viragem Cerco de Viena em 1683) que serviram de base para o orientalismo francecircs Raimundo Silva pre-fere o uso da palavra ldquoalmuademrdquo de maior e mais antiga presen-ccedila na liacutengua portuguesa30 importada directamente e recuperada no Romantismo pelas Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano tal como ldquoalmaacutedenardquo em vez de ldquominareterdquo (Machado 62) A tra-duccedilatildeo alematilde natildeo assinala esta tentativa de maior lsquopurezarsquo histoacuterica no discurso sobre a identidade moura mantendo a denominaccedilatildeo invariaacutevel ldquoMuezzinrdquo embora exista a alternativa lexical menos usada de ldquoMuaddhinrdquo (Brockhaus 229)31

No contexto do pensamento poacutes-colonial esta reaquisiccedilatildeo dos processos de imaginaccedilatildeo depois das imposiccedilotildees coloniais europeias que comeccedila em princiacutepio pelo Romantismo (Herculano Garrett) revela a raiz histoacuterica da especificidade relacional portuguesa co-lonizada colonizadora isto eacute a harmonizaccedilatildeo mais ou menos voluntaacuteria da poliacutetica existente de poder regional na Peniacutensula Ibeacute-

128Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

rica com a ideologia colonizadora das cruzadas Para aleacutem de uma subtil reivindicaccedilatildeo da identidade moura Histoacuteria do Cerco de Lisboa se cinge quase unicamente agrave revisatildeo da identidade conquis-tadora na qual entra a identidade alematilde ndash um aspecto importante para a traduccedilatildeo Assim estabelece-se uma certa inversatildeo embora natildeo perfeita de identidade alteridade em geral o leitor alematildeo estaacute pouco familiarizado com a geacutenese da identidade portuguesa e ignora a configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica que eacute responsaacutevel pelo excesso identitaacuterio desconhecendo tambeacutem a participaccedilatildeo bem documentada de actores vindos de terras alematildes Eles aparecem no romance logo quando Raimundo Silva comeccedila a reler a epiacutestola na sua procura da ldquofonte limpardquo

(hellip) a informaccedilatildeo eacute de boa origem diz-se que directamente do ceacutelebre Osberno e assim podemos ficar a saber que es-tava o conde Arnoldo de Aarschot o qual comandava os guerreiros vindos de diversas partes do impeacuterio germacircni-co que estava Cristiano de Gistell chefe dos flamengos e bolonheses (hellip) (124)

Seguindo a teia intertextual regressamos ao texto-fonte que em contraste com a citada Croacutenica de Portugal de 1419 narra na perspectiva de uma expediccedilatildeo militar

Igitur apud portum de Dertemunde diversarum nationum et morum et linguarum gentes navibus cicrciter CLXIIII convenere Horum omnium trifariam partitur exercitus Sub comite Arnoldo de Arescot nepote Godefridi ducis a romani imperii partibus secedit exercitus Sub Christiano de Gistello flandrenses et bononenses32

A mudanccedila para ldquoimpeacuterio germacircnicordquo (124) corresponde agrave nota explicativa do tradutor JA de Oliveira33 No entanto natildeo se expli-

129Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ca a substituiccedilatildeo de ldquobononensesrdquo por ldquobolonhesesrdquo Naturalmen-te as duas mudanccedilas reflectem-se na traduccedilatildeo alematilde que toma o romance saramaguiano como texto-fonte

(hellip) Information aus verlaumlszliglicher Quelle dem Vernehmen nach direkt vom beruumlhmten Osberno persoumlnlich und also koumlnnen wir uns vergewissern daszlig da Graf Arnoldo de Aar-schot zugegen war der die aus verschiedenen Regionen des deutschen Kaiserreiches herbeigestroumlmten Krieger befehlig-te und Cristiano de Gistell der den Flamen und Bologne-sern vorstand (hellip) (150)

Na traduccedilatildeo alematilde nomes proacuteprios estrangeiros natildeo satildeo lsquore-patriadosrsquo nem o proacuteprio Osberne nem Arnold ou Christian que ficam todos na grafia romacircnica No entanto ldquoimpeacuterio germacircni-cordquo passa para ldquodeutsches Kaiserreichrdquo uma traduccedilatildeo que insinua uma projecccedilatildeo anacroacutenica do seacuteculo XIX (refundaccedilatildeo do Heiliges Roumlmisches Reich Deutscher Nation como Deutsches Kaiserreich em 1871) natildeo pretendida no texto-fonte Naturalmente a traduccedilatildeo alematilde ignora a possibilidade latente jaacute apagada no texto sarama-guiano de encontrar a identidade alematilde nos ldquobononensesrdquo mal transcritos em ldquobolonhesesrdquo34 Esta transcriccedilatildeo defeituosa surpre-ende porque eacute a personalidade do cavaleiro Henrique de Bona ausente na epiacutestola35 que teve o maior relevo individual na histo-riografia portuguesa entre os ldquosamtos cavaleyros martiresrdquo

Nesta tomada de Lisboa morerom alguns cavaleyros como martires e depois faziam muytos milagres amtre os quaes foy hum cavaleyro chamado Amriqe alematildeo o qual era de hũa vila que chamom Bona posta jumto de Colonha o qual foy enterado em Sam Viccedilemte honde fazia muytos milagres (hellip) (Croacutenica 50)

130Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Merecendo destaque na histoacuteria da fundaccedilatildeo do mosteiro de Satildeo Vicente com episoacutedios de acccedilatildeo milagrosa depois de morto (Indiculum 83-85 Croacutenica 50-52) Henrique de Bona torna-se uma personagem da Histoacuteria portuguesa digna de entrar nrsquo Os Lu-siacuteadas (VIII 18) Procede-se a uma apropriaccedilatildeo do estrangeiro colonizador o alematildeo Henrique torna-se depois de ter vertido ldquode gram voontade o seu sangue antre os mouros pola paixom do Nosso Salvador Jesu Cristordquo (Indiculum 83) no maior Santo Cavaleiro da Tomada de Lisboa Na Alemanha ele estaacute totalmente desconhecido a natildeo ser no acircmbito da retoacuterica diplomaacutetica bila-teral na qual aparece natildeo como maacutertir mas como fundador dos ldquolaccedilos da amizade secular que liga o povo da Alemanha ao de Por-tugalrdquo (Ehrhardt 11) projectando a ajuda dos cruzados na geacutenese do reino de Portugal numa lsquolenda de auxiacuteliorsquo para todas as eacutepocas posteriores

Numa abordagem criacutetica observamos um duplo branqueamen-to (1) da memoacuteria do saque cruel e devastador da Lisboa moura perpetrado pelos cruzados colonenses e flandrenses e (2) da rela-ccedilatildeo colonizadora entre aliados no contexto da Europa Cingimo--nos no acircmbito deste estudo agrave anaacutelise do episoacutedio da torre moacutevel No romance a ideia da sua construccedilatildeo eacute atribuiacuteda ao cavaleiro Henrique manipulando as fontes histoacutericas que falam de engenhos militares em competiccedilatildeo entre os diferentes grupos eacutetnicos ou destacam ldquoum engenheiro italiano natural de Pisardquo36 O discurso profeacutetico de superioridade cultural deste cavaleiro revela os moti-vos desta escolha

Grandes satildeo as vantagens que a Portugal adviratildeo de imitar neste como noutros casos o que na Europa se vai fazendo de mais moderno ainda que ao princiacutepio experimenteis dificuldades em meter na cabeccedila as tecnologias novas eu por mim sei da construccedilatildeo das tais torres o suficiente para os naturais daqui (hellip) (251)

131Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Groszlige Vorteile sind Portugal gewiszlig wenn es in diesem wie in anderen Faumlllen nachahmt was man in Europa an houmlchst modernen Dingen tut mag es euch anfaumlnglich auch schwerfallen die neuen Techniken in euren Kopf hinein-zukriegen ich meinerseits weiszlig vom Bau besagter Tuumlrme hinreichend viel um die hiesigen Eingeborenen zu unter-richten () (305)

Mesmo a traduccedilatildeo alematilde transmite a ideia de que a fala do cavaleiro Henrique perante o primeiro rei portuguecircs conteacutem uma paroacutedia do discurso poliacutetico actual que natildeo se cansa de propagar a imitaccedilatildeo da Europa avanccedilada representada pela capacidade eco-noacutemica e tecnoloacutegica de Alemanha em competiccedilatildeo com outras na-ccedilotildees Ao mesmo tempo projecta-se ndash apresentado como verdade de fora ndash a auto-imagem humilhante dos ldquonaturaisrdquo37 como matildeo-de--obra sem formaccedilatildeo agrave mercecirc das decisotildees de governantes que pac-tuam com os estrangeiros (252) como condiccedilatildeo da proacutepria geacutenese nacional No entanto a derrota da torre tatildeo bem construiacuteda que conduz ateacute agrave morte do seu construtor faz surgir a criacutetica dos ldquoen-genhos estrangeiros que tanto podem estar a favor como contrardquo (316) parodiando-se assim tanto a lsquolenda de auxiacuteliorsquo e a atitude colonizadora como o projecto portuguecircs de modernizaccedilatildeo europeia (Grossegesse 1995 228)

Reservando uma anaacutelise da constelaccedilatildeo transcultural entre o ca-valeiro alematildeo Henrique a sua ldquobarregatilderdquo Ouroana38 e o soldado Mogueime para outra ocasiatildeo centramo-nos num aspecto de jogo intertextual que ainda recebeu pouca atenccedilatildeo Face agrave ausecircncia do episoacutedio da torre moacutevel e da personalidade de Henrique de Bona na epiacutestola dirigida a Osberno eacute significativo que o romance sara-maguiano invente ldquoapontamentos para a carta de Osbernordquo (308) contendo estes em todo pormenor a histoacuteria do cavaleiro Henri-que A explicaccedilatildeo psicanaliacutetica de Ersatz para esta escrita do Frei Rogeiro39 tambeacutem eacute vaacutelida para o revisor Raimundo que insere na sua reescrita do Cerco de Lisboa a histoacuteria da conquista amorosa de Ouroana por Mogueime possibilitada pela morte do cavaleiro

132Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

alematildeo que espelha ndash atraveacutes dos tempos ndash a sua proacutepria lsquoconquis-tarsquo de Maria Sara

Com a ficccedilatildeo do texto apoacutecrifo inaugura-se uma hibridizaccedilatildeo transcultural das proacuteprias fontes histoacutericas possibilitando um amalgamar das narrativas dos cruzados com a Histoacuteria nacional e o lendaacuterio portuguecircs que culmina na releitura dos milagres do cava-leiro Henrique em simultacircneo com os milagres de Santo Antoacutenio o padroeiro mais popular de Lisboa A intersecccedilatildeo de milagres de ambos pelas leituras simultacircneas de Maria Sara e Raimundo eacute um acto que subverte tanto a procura da verdade histoacuterica como o conceito de identidades delimitadas por territoacuterio sangue e liacutengua Numa espeacutecie de metalepse o proacuteprio Frei Rogeiro apoacutes ter com-pilado ldquoos apontamentos que havia tomado durante uma volta que dera por todos os arraiaisrdquo (331) participa no episoacutedio milagroso ldquoComo o cavaleyro Amrique apareccedileo em sonhos a hum homem botildeo e como lhe disse que soterasem seu escudeiro a par delerdquo (Croacute-nica 51 cf Indiculum 84-85) cumprindo o papel daquele homem bom natildeo identificado

Mais significativo nesta leitura de milagres transformada em reescrita paroacutedica eacute o destaque atribuiacutedo agrave questatildeo de identida-des processos de deslocaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo culminando na trans-formaccedilatildeo de um milagre do cavaleiro Henrique numa espeacutecie de contra-mito da origem da liacutengua portuguesa ao narrar o milagre dos dois homens surdos-mudos que se deitaram ao lado do moi-mento do cavaleiro (Indiculum 83-84 Croacutenica 50-51) realccedila-se a incerteza da identidade deles ldquotinham vindo na frota poreacutem natildeo se sabe se ingleses aquitanos bretotildees flandrenses ou colonen-sesrdquo (335) Estando os dois homens assim jazendo ldquoadormeceram ambos e apareceu-lhes em sonho logo o cavaleiro Henrique (hellip) e falou agravequeles mancebosrdquo (336) ndash natildeo sabemos em que liacutengua ndash anunciando a sua cura de duvidoso efeito

(hellip) e eles acordando acharam que podiam ouvir e falar tambeacutem poreacutem falavam como gagos e de maneira que natildeo se entendia que liacutengua estavam falando se a dos ingleses

133Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ou aquitanos ou bretotildees ou flandrenses ou colonenses ou conforme natildeo poucos afirmavam a liacutengua dos portu-gueses (336)

Esta manipulaccedilatildeo natildeo de fontes histoacutericas mas de uma len-da convida para uma leitura metadiscursiva em vez de ldquocom voz chlara (hellip) contar a todo o povo o milagre que Deos em eles fizerardquo (Croacutenica 51) os dois ficam gagos No entanto o problema natildeo consiste em entender o que eacute que eles dizem mas em identificar a liacutengua que eles falam Nesta leitura o milagre reinterpretado enfa-tiza a visatildeo de uma hibridizaccedilatildeo das liacutenguas e das identidades no entanto consciente da imperfeita capacidade comunicativa que eacute aplicaacutevel agraves questotildees de revisatildeo e traduccedilatildeo

Tal como o revisor Raimundo Silva dentro da ficccedilatildeo o tradutor reescreve um texto anterior no entanto noutra liacutengua e para um leitor com outro horizonte cultural A procedecircncia das fontes histoacute-ricas e a apropriaccedilatildeo do cavaleiro Henrique pelo discurso da iden-tidade portuguesa demonstram a ineficaacutecia das definiccedilotildees puras de identidade e alteridade Em vez da tentativa de uma reproduccedilatildeo de uma liacutengua na outra no fundo irrealizaacutevel a visatildeo da hibridiza-ccedilatildeo das liacutenguas e identidades advoga uma recriaccedilatildeo naturalmente sempre parcial e imperfeita daquela heterogeneidade que Histoacuteria do Cerco de Lisboa exibe ao narrar a procura de uma ldquoverdaderdquo que ldquonatildeo pode ser mais do que uma cara sobreposta agraves infinitas maacutescaras variantes (hellip)rdquo (26) Para tal activa-se ldquooutro tipo de relaccedilotildees entre os elementos (hellip) porque as coerccedilotildees impostas pelas liacutenguas levam a diferentes possibilidades de contextualizaccedilotildees de remissotildees de encadeamentos de atribuiccedilatildeo de valores entre os elementosrdquo (Rodrigues 205) Se o romance reflecte claramente a diffeacuterance (Derrida 1967) como princiacutepio universal40 destacando os processos de traduccedilatildeo e reescrita este princiacutepio deve ser vaacutelido tambeacutem para a proacutepria traduccedilatildeo como propotildee Cristina Carneiro Rodrigues na continuaccedilatildeo de Rosemary Arojo (1993)

134Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

O original vive sobrevive na e pela sua proacutepria transfor-maccedilatildeo produzida pela leitura A traduccedilatildeo natildeo transporta uma essecircncia natildeo troca ou substitui significados dados prontos em um texto por significados equivalentes em outra liacutengua A traduccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo em que o laquotexto originalraquo se daacute por sua proacutepria modificaccedilatildeo em sua trans-formaccedilatildeo (Rodrigues 206)

O romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa interrelaciona esta con-diccedilatildeo de cada texto ser texto de textos transferidos traduzidos de outros textos em contextos histoacutericos sempre diferentes com a criacutetica da lsquoorigemrsquo da identidade individual e colectiva no sentido de transculturalidade e da ldquoculturersquos hibridityrdquo (Bhabha 1989 38) ambas com base expliacutecita na diffeacuterance Se reactivarmos a teoria de Jean Ricardou (1973) relativamente ao nouveau roman podemos dizer que a aventura da leitura escrita do revisor prefigura uma aventura semelhante do tradutor Tal como o revisor transformado em tradutor e autor ele transmite uma Histoacuteria do Cerco de Lis-boa recriada para outro leitor neste caso um leitor alheio natildeo soacute agrave narraccedilatildeo tradicional desta histoacuteria num discurso identitaacuterio mas tambeacutem agrave integraccedilatildeo da sua identidade cultural neste discurso Isto torna a traduccedilatildeo deste romance uma aventura de leitura e reescrita em certa medida jaacute prevista na Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Se no processo de traduccedilatildeo o tradutor ou tradutora tem que necessariamente tomar o lugar do autor e se apossar de seu texto para que esse possa sobreviver em outra liacutengua natildeo haacute como eliminar esse momento de usurpaccedilatildeo e con-quista que a reflexatildeo desconstrutivista flagra e desmascara (Arrojo 1993 82)

Curiosamente Rosemary Arrojo emprega a mesma metaacutefora de conquista utilizada para a aventura de Raimundo Silva que abrange a conquista amorosa de Maria Sara41 Eacute precisamente a mulher

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

111Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

iludirmosrdquo (Pereira 2006) Nesta contraposiccedilatildeo predominam cate-gorias riacutegidas e relaccedilotildees claramente antagoacutenicas realidade e ilusatildeo visatildeo de fora e de dentro capacidade de percepccedilatildeo e respectiva incapacidade Contudo a conclusatildeo de os portugueses ficarem ldquomal amados mal lembrados pouco estimados no mundordquo e o senhor Welsh ter lembrado isto ldquocom crueldaderdquo natildeo vai muito aleacutem do citado ldquonegativismo dos intelectuais traccedilo tiacutepico desde os Vencidos da Vidardquo que tambeacutem natildeo satisfaz o proacuteprio comentarista apesar de preferir ldquouma boa dose de realidade cruel que sejardquo (Pereira 2006) De facto Pacheco Pereira opera com uma categoria de reali-dade difusa porque natildeo expressamente identificada como construccedilatildeo poliacutetica social e cultural responsaacutevel pela afirmaccedilatildeo das imagens seja de fora ou de dentro Portanto a habilidade portuguesa de apropriar-se ou ateacute de antecipar a imagem de fora2 natildeo questiona mas protege o excesso identitaacuterio Esta construccedilatildeo da lsquorealidade portuguesarsquo entre duas atitudes antagoacutenicas mas em termos discur-sivos no seu excesso anaacutelogas revela o desajuste da dicotomia entre a realidade cruel (de fora) e a doce ilusatildeo (de dentro)

Em resumo apesar da sua posiccedilatildeo auto-reflexiva o ensaio de Pacheco Pereira natildeo transcende uma tradiccedilatildeo discursiva bem de-finida a de absorver posiccedilotildees negativas lsquode forarsquo para preservar alguma identidade de Portugal entre a dramatizaccedilatildeo actual da sua perda total e a memoacuteria indeleacutevel da sua grandeza Com este tipo de anaacutelise afastamo-nos de posiccedilotildees substanciais de identidade em vez de caracteriacutesticas proacuteprias e inconfundiacuteveis bem demarcada face a outras identidades atraveacutes de territoacuterio sangue (povo) e liacuten-gua ela eacute entendida na sua dimensatildeo estrutural de relacionamento ou discurso seguindo o conceito de Wolfgang Welsch (1995) de transculturalidade como princiacutepio fundamental da praxis da vida3 Neste sentido a fala sobre o proacuteprio que se baseia nas lsquoverdades crueacuteisrsquo ditas (ou diziacuteveis) pelo outro revela-se uma forma portu-guesa de transposiccedilatildeo dramaacutetica ou coacutemica que afirma as relaccedilotildees desenhadas nas dicotomias inicialmente referidas

Ao contraacuterio da representaccedilatildeo de pureza cultural a transcul-turalidade baseia-se na consciecircncia de que somos em termos de

112Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

identidade cultural essencialmente ldquomesticcedilosrdquo (Welsch 43) Fala-mos de representaccedilatildeo da identidade cultural (nacional) para realccedilar a sua construccedilatildeo discursiva ao longo da histoacuteria no Renascimento e no Barroco portanto no alvor das naccedilotildees europeias modernas inauguraram-se modos de falar sobre o caraacutecter da naccedilatildeo ou do povo em termos comparativos No Romantismo estes discursos adquiriram maior forccedila atraveacutes da definiccedilatildeo do caraacutecter do povo (Volkscharakter) como essecircncia preacute-consciente sucessivamente reinterpretada e amalgamada com o conceito pseudo-cientiacutefico da raccedila a partir do fim do seacutec XIX Esta evoluccedilatildeo demonstra que natildeo existe um objectivismo desvinculado da evoluccedilatildeo da historiografia e etnografia Tal como natildeo existe uma substacircncia intemporal da obra de arte natildeo pode haver uma substacircncia intemporal do dis-curso historiograacutefico e etnograacutefico ou do discurso da identidade cultural (nacional) Conforme a criacutetica do platonismo subjacente nas filologias e na historiografia tradicionais o analista de um texto natildeo possui a priori uma posiccedilatildeo superior ao lsquoleitor normalrsquo mas deve ancorar a sua proacutepria anaacutelise ldquona consciecircncia de a sua posiccedilatildeo actual se integrar numa sequecircncia histoacuterica de leitoresrdquo4 A partir destas definiccedilotildees da cultura e do texto analisaremos os cruzamentos de identidades no romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) e na traduccedilatildeo alematilde Geschichte der Belagerung von Lissabon (1992)5

O romance saramaguiano subverte atraveacutes de uma represen-taccedilatildeo transcultural ou hiacutebrida6 a coesatildeo da identidade portuguesa perante o outro de definiccedilatildeo dupla por um lado os cruzados na maioria procedentes do Norte da Europa e por outro os mou-ros oriundos de um Sul longiacutenquo natildeo concretizado e senhores atuais do territoacuterio Satildeo representaccedilotildees estereotipadas e portanto ambivalentes tornando o outro ao mesmo tempo estranho e fa-miliar ldquothe ambivalence of colonial cultural textsrdquo daacute origem agrave ldquoproduction of hybridizationrdquo (Bhabha 1985 112-19) afirmando que ldquonational narrative is the site of an ambivalent identificationrdquo (1994 167) Precisamente a Tomada de Lisboa que na historio-grafia nacional se constitui como episoacutedio nuclear da geacutenese da naccedilatildeo eacute des-narrada (deacutenarreacutee Prince 1988) pelo revisor Rai-

113Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

mundo Silva o protagonista deste romance partindo de um ldquonatildeordquo ldquoOs cruzados Natildeo auxiliaratildeo os portugueses a conquistar Lisboardquo (Saramago 50) A atitude de des-narrar que produz a indeter-minaccedilatildeo relativamente agrave versatildeo supostamente veriacutedica dos factos manifesta-se na problematizaccedilatildeo das fontes e no uso do futuro ao falar sobre os acontecimentos do ano de 1147 partindo desta ne-gaccedilatildeo expliacutecita que o revisor introduz no livro de um historiador7 antes da sua publicaccedilatildeo sem possuir nenhuma autoridade para este acto (Grossegesse 1996 810) Portanto natildeo soacute o discurso mas tambeacutem a proacutepria acccedilatildeo deste romance questionam os conceitos de identidade cultural original e texto original

Assumindo aos poucos a tarefa de uma reescrita com base no ldquonatildeordquo Raimundo procura uma ldquofonte limpardquo lamentando a ldquoimprecisatildeo dos dadosrdquo e a ldquopropagaccedilatildeo alucinada das notiacuteciasrdquo dando-se a ldquoproliferaccedilatildeo das proacuteprias fontes segundas e terceirasrdquo que ele compara com a ldquomultiplicaccedilatildeo de esporosrdquo (124) e ndash numa analogia com a actualidade ndash com a ldquorepeticcedilatildeo variada nas notiacutecias dos jornaisrdquo (Saramago 125) A procura da origem da nacionali-dade entretece-se com a procura do texto da origem revelando-se cada vez mais a impossibilidade de encontrar pureza identitaacuteria nem existe uma identidade-fonte nem um texto-fonte porque am-bas as noccedilotildees colocariam cultura e escrita fora de uma evoluccedilatildeo ou discursividade histoacuterica Ora se a ldquoverdaderdquo da origem e o seu discurso uniacutevoco ficam desconstruiacutedos posiccedilatildeo jaacute anunciada pela epiacutegrafe tirada de um Livro dos Conselhos imaginaacuterio8 como pode haver entatildeo uma traduccedilatildeo deste romance no entendimento tradicional que se baseia na lsquoverdadersquo de um texto-fonte e procura a consistecircncia comparaacutevel de um texto-alvo

Eacute precisamente a alternativa imaginada de uma conquista de Lisboa sem recorrer ao auxiacutelio de estrangeiros que expotildee a vulne-rabilidade do lsquoexcesso identitaacuteriorsquo impliacutecita na Histoacuteria nacional quando se fala da ldquoajuda de cruzados dando agrave participaccedilatildeo deles um valor instrumental quando seria mais correcto dizer que Lis-boa foi conquistada com a ajuda dos portuguesesrdquo (Caragea 224) Na procura de minimizar o papel da participaccedilatildeo estrangeira jaacute

114Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

bem visiacutevel na Croacutenica de D Afonso Henriques (1632) de Frei Antoacutenio Brandatildeo atraveacutes de uma compilaccedilatildeo comentada de fon-tes chegou-se de facto no Estado Novo ateacute agrave sua negaccedilatildeo num texto de Joseacute Augusto de Oliveira (1940) No entanto esta revisatildeo nacionalista natildeo conseguiu alterar a presenccedila jaacute sedimentada dos cruzados no imaginaacuterio portuguecircs etnicamente heterogeacuteneos no entanto unidos aos portugueses por serem tambeacutem eles cristatildeos e hostis aos muccedilulmanos Neste sentido a representaccedilatildeo do encontro com os cruzados eacute significativa Na Croacutenica de Portugal de 1419 citada no romance sob o tiacutetulo anterior Croacutenica dos Cinco Reis de Portugal9 no capiacutetulo ldquoComo elrey dom Afonso se ordenou de ir ccedilerquar Lixboa e das jentes estrangeyras que levou em sua ajudardquo encontramos a seguinte descriccedilatildeo

(hellip) moverom em aquele tempo muytas jentes de Ingraterra e dAlemanha e de Framccedila e vierom em muyto grande frota pelo mar em guisa que achamos espiacuterito que erom oytenta velas E vindo todolas naos de mar em fora busquar terra agrave roqua de Syntra elrey que estava em ccedilima no castelo com seus fidalguos devisaram-nos e quando virom tatildeo grande frota como aquela foram muy espantados E elrey man-dou loguo quatro cavaleyros que fossem agrave ribeyra saber que gemtes erom aquelas (hellip) E os cavaleyros pergunta-ram que gemtes erom e os das naos lhe disserom que erom christatildeos que partirom de suas terras e vinhom agraves Espanhas para guerear contra os mouros por fazer serviccedilo a Deos (Croacutenica 47)

A chegada dos estrangeiros cuja forccedila militar espanta insinua uma espeacutecie de invasatildeo amigaacutevel nas ldquoEspanhasrdquo logo funciona-lizada pela Histoacuteria nacional como daacutediva divina para a geacutenese da identidade portuguesa de grande coesatildeo forccedila e predestinaccedilatildeo jaacute afirmadas pelo milagre de Ourique Atraveacutes da reinvenccedilatildeo dos actores histoacutericos e dos seus discursos o romance saramaguiano nega de uma forma paroacutedica o conceito de identidade cultural

115Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que se define na tradiccedilatildeo herderiana atraveacutes do antagonismo entre cultura proacutepria e alheia Como mostra a Croacutenica de 1419 a iden-tidade alematilde tambeacutem participa no Cerco de Lisboa integrando--se na categoria heterogeacutenea dos estrangeiros do lado colonizador superiores natildeo soacute relativamente aos mouros mas tambeacutem aos co-lonizadores autoacutectones que ao consentir ou adoptar a ideologia importada da cruzada se revelam em certa medida tambeacutem colo-nizados Na noccedilatildeo da milagrosa invasatildeo amigaacutevel de estrangeiros que vinham aqui ldquopara guerear contra os mourosrdquo daacute-se azo ao excesso identitaacuterio que se sobrepotildee agrave contra-imagem humilhante de um papel meramente secundaacuterio de anfitriatildeo e ajudante numa conquista de Lisboa liderada pelos cruzados por sua vez missatildeo menor e de passagem no seio de um contexto maior o da Segunda Cruzada (1147-49)10

Um romance que natildeo soacute reescreve de uma forma paroacutedica a origem da configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica res-ponsaacutevel do excesso identitaacuterio portuguecircs mas tambeacutem sugere lsquolei-turasrsquo anacroacutenicas da actualidade portuguesa ainda caracterizada pelo dilema deste mesmo excesso identitaacuterio como comprova o en-saio de Pacheco Pereira (2006) eacute difiacutecil de traduzir porque implica uma operaccedilatildeo complexa de mediaccedilatildeo cultural no sentido de ldquocross--linguistic cultural practice involving recontextualizationrdquo (House 2002 97) Ilustramos esta dificuldade com um episoacutedio do livro do historiador lido por Raimundo Silva antes de introduzir o ldquonatildeordquo

(hellip) agora o historiador embandeirou o estilo para tratar da grande discoacuterdia que se levantou entre os cruzados (hellip) sobre se deveriam ou natildeo ajudar os nossos portugueses a tomar Lisboa se ficariam aqui ou seguiram como previsto para a Terra Santa onde os estava esperando Nosso Senhor Jesus Cristo sob os ferros turcos Argumentavam aqueles a quem seduzia a ideia de ficar que lanccedilar fora da cidade a estes mouros e fazecirc-la cristatilde seria tambeacutem serviccedilo de Deus contestavam os contraacuterios que se esse era serviccedilo de Deus serviccedilo menor seria e que cavaleiros tatildeo principais como

116Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

ali todos se prezavam de ser tinham por obrigaccedilatildeo acudir aonde mais trabalhosa fosse a obra natildeo neste cu do mundo entre labregos e tinhosos que uns deviam ser os mouros e outros os portugueses poreacutem natildeo o averiguou o historia-dor talvez por natildeo valer a pena de escolher entre os dois insultos (Saramago 47)

(hellip) nun uumlbt sich der Historiker in hohem Stil um den gro-szligen Zwist darzulegen der sich unter den Kreuzfahrern () entspann stand doch die Frage ob sie unseren Portugiesen bei der Einnahme Lissabons helfen sollten oder nicht ob hier verbleiben oder aber wie vorgesehen weiterziehen ins Heilige Land wo in tuumlrkischen Fesseln Unser Herr Je-sus Christus ihrer harrte Es argumentierten jene die am liebsten hiergeblieben waumlren die Mauren aus dieser Stadt treiben und aus ihr einen Christenhort zu machen sei glei-chermaszligen ein gottdienliches Werk und die anderen hiel-ten dagegen wenn gottdienliches Werk dann doch wohl ein minderes so hehre Ritter wie alle hier es zu sein ver-meinten haumltten die Pflicht dorthin zu eilen wo das Werk muumlhevoller sei nicht wie in diesem Weltenwinkel unter Bauersleuten und Wichten gemeint waren wohl mit den ei-nen die Mauren und mit den anderen die Portugiesen doch unterlieszlig der Historiker weitere Ergruumlndung vielleicht weil beides Schmaumlhworte waren (55)

Seja por entender ldquoembandeirar o estilordquo num sentido estrito em vez de intuir a subversatildeo da escrita pelas vozes citadas no sentido da polifonia bakhtiniana11 seja por obedecer a um conceito do politicamente correcto a versatildeo alematilde ldquoWeltenwinkelrdquo evita o equivalente ldquoArsch der Weltrdquo da expressatildeo escatoloacutegica ldquocu do mundordquo estereotipada no discurso da identidade portuguesa do seacute-culo XX Tambeacutem suaviza os insultos que expressam a superiori-dade colonizadora dos cruzados natildeo soacute relativamente aos mouros mas tambeacutem aos portugueses a traduccedilatildeo inofensiva de ldquoBauers-leuterdquo e ldquoWichterdquo anula a semacircntica insultuosa de ldquolabregosrdquo12 e

117Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ldquotinhososrdquo Com isto atenua-se a atitude de arrogacircncia dos ldquoca-valeiros tatildeo principaisrdquo que natildeo acham necessidade de diferenciar entre portugueses e mouros A traduccedilatildeo natildeo consegue transferir a paroacutedia da identidade portuguesa que dialoga com o leitor impliacute-cito (Iser 1972) do original para o perfil do leitor da traduccedilatildeo de maior afinidade cultural com os cruzados Trata-se de um leitor desprovido (1) da ldquoenciclopeacutedia do mundo portuguecircsrdquo (Caragea 209) e (2) da socializaccedilatildeo no contexto da realidade poliacutetica e social portuguesa dos anos oitenta e noventa com a memoacuteria do 25 de Abril de 1974 (por exemplo impliacutecita no perfil da personagem Mogueime como preacute-figuraccedilatildeo de Salgado Maia)

Esta dupla dificuldade que ndash com o tempo ndash tambeacutem surgi-raacute cada vez mais para o texto-fonte conduz agrave questatildeo do texto comentado que discute Horst Turk (1992) exemplificando-a no romance La reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten de Juan Goytisolo (em reediccedilatildeo comentada a partir de 1985) e na sua traduccedilatildeo alematilde (natildeo comentada) No caso de Histoacuteria do Cerco de Lisboa ainda natildeo existe uma ediccedilatildeo comentada do original Entre as traduccedilotildees a alematilde de Andreas Klotsch (1992) prescinde de comentaacuterio tal como a inglesa de Giovanni Pontiero (1996) que se cinge a um bre-ve prefaacutecio no entanto a romena por exemplo eacute acompanhada por um proacutelogo extenso e notas explicativas da tradutora Mioara Caragea13 Pelo comentaacuterio e pela ausecircncia dele acentuam-se as duas caras de Iano (Januskoumlpfigkeit) da traduccedilatildeo ela representa o texto-fonte e substitui o texto-fonte na literatura-alvo Mais ainda a traduccedilatildeo eacute tambeacutem em todas as literaturas um lugar privilegiado para articular qualidades de diferenccedila14 Destas deliberaccedilotildees surge como questatildeo central a traduccedilatildeo alematilde natildeo comentada da Histoacuteria do Cerco de Lisboa eacute capaz de transmitir a paroacutedia de identidade alteridade cultural (nacional) do texto-fonte

Ao falar do handicap do leitor desprovido da ldquoenciclopeacutedia do mundo portuguecircsrdquo (Caragea 209) prolonga-se a abordagem purista em vez de se repensar tambeacutem esta enciclopeacutedia de forma transcultural Com isto evidencia-se o cruzamento de identidades em constante mudanccedila desde as fontes histoacutericas citadas no lsquolivro

118Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

do historiadorrsquo ateacute agrave proacutepria traduccedilatildeo do romance Jaacute o historiador cujo livro Raimundo Silva revisa concede destaque entre as fon-tes ao ldquoceacutelebre Osbernordquo (Saramago 124) privilegiando assim a narrativa epistolar de um cruzado oriundo da regiatildeo de Norfolk ou Suffolk que participou no Cerco Atualmente eacute considerada ldquotalvez a principal fonte histoacutericardquo (Alves 13) A carta dirigida a uma personalidade inglesa estaacute escrita em latim Por isso Cru-cesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis15 integra natildeo soacute uma visatildeo desde o exterior portanto afastada da construccedilatildeo da Histoacuteria nacional mas tambeacutem um texto noutra liacutengua A proacutepria narrativa marginaliza a identidade portuguesa natildeo soacute no contexto geral do antagonismo entre cruzados (identidade comum francos) e mouros16 mas tambeacutem pela divisatildeo entre por um lado norman-dos e ingleses (no texto a identidade proacutepria) e por outro colo-nenses e flamengos natildeo soacute desunidos na decisatildeo inicial (participar ou natildeo) mas tambeacutem com diferentes comportamentos durante o cerco e no saque da cidade conquistada (Conquista 83) Com estas caracteriacutesticas este texto fornece por um lado bases para uma narraccedilatildeo fundadora da identidade portuguesa desvalorizando sobretudo eticamente a colaboraccedilatildeo dos cruzados e por outro o preacute-texto de uma des-narraccedilatildeo transcultural aproximando-se da historiografia criacutetica mais recente na qual se procede a uma negaccedilatildeo da narrativa fundacional nacional17 As possiacuteveis releitu-ras fundamentam a paroacutedia do sbquoexcesso identitaacuteriorsquo portuguecircs no romance saramaguiano que se centra na retroprojeccedilatildeo anacroacutenica natildeo soacute da categoria de nacional mas tambeacutem da outra da cate-goria de estrangeiro Basta pensarmos no anacronismo das quinas de Portugal (soacute a partir de Sancho I) a substituir o crescente (na realidade invenccedilatildeo do impeacuterio otomano) que despertam a ira do revisor quando chega agraves paacuteginas finais do lsquolivro do historiadorrsquo (41-42) Nada disto se encontra nas fontes Tambeacutem a traduccedilatildeo ldquopassou a corrupta mesquita a puriacutessima igreja catoacutelicardquo (40) en-fatiza um antagonismo identitaacuterio (muccedilulmano cristatildeo) que no texto-fonte fica subentendido ldquopurificatum est templumrdquo ldquofoi purificado o templordquo (Conquista 85) Mais interessante relativa-

119Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

mente ao leitor impliacutecito de traduccedilotildees para as liacutenguas do Centro Norte da Europa eacute o seguinte trecho

O pessoal que veio a esta fala parlamentar eacute todo de portu-gueses natildeo pareceu bem a el-rei servir-se de estrangeiros para o reforccedilo do ultimatum ainda que diga-se de pas-sagem subsistam grandes duacutevidas de que o arcebispo de Braga pertenccedila de facto ao nosso sangue lusitano mas enfim jaacute nesses antigos tempos tinha principiado a fama que mantivemos ateacute hoje de receber bem a gente de fora distribuir-lhes cargos e prebendas e este D Joatildeo Peculiar vaacute laacute pagou-nos multiplicado em serviccedilos patrioacuteticos E se como tambeacutem se diz era mesmo portuguecircs e de Coimbra vejamo-lo como pioneiro da nossa vocaccedilatildeo migratoacuteria da magniacutefica diaacutespora pois toda a sua juventude a passou em Franccedila a estudar devendo notar-se aqui uma acentuada diferenccedila em relaccedilatildeo agraves tendecircncias recentes da nossa emig-raccedilatildeo para aquele paiacutes plutocirct adstrita aos trabalhos sujos e pesados (197-98)

O problema de transmitir o sentido paroacutedico na traduccedilatildeo18 por exemplo da eterna vocaccedilatildeo migratoacuteria bdquounserer migratoris-chen Berufung unserer wundervollen Diasporaldquo (240) culmina na dificuldade de incluir o leitor impliacutecito da traduccedilatildeo na situaccedilatildeo enunciativa isto eacute neste caso ele se deveria rever no lsquoestrangei-rorsquo vindo da Franccedila e indo aleacutem das dicotomias aperceber-se da relatividade das categorias

Eacute significativo que o revisor Raimundo Silva chegue a este tipo de des-narraccedilatildeo atraveacutes de uma criacutetica da traduccedilatildeo que fundamenta o proacuteprio acto de alterar o lsquolivro do historiadorrsquo a partir do ldquonatildeordquo Natildeo eacute tanto o ldquorigor da traduccedilatildeordquo (44) que estaacute em causa mas a sua verossimilhanccedila Precisamente por duvidar dos conhecimentos de latim das capacidades retoacutericas e em geral da cultura de Afon-so Henriques Raimundo Silva considera ldquoa primeira fala averigua-da do nosso rei fundadorrdquo nada menos do que ldquouma absurdidaderdquo

120Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

(43) negando de passagem tambeacutem o uso da liacutengua portuguesa que a tradicional narrativa fundacional de Portugal assume com naturalidade

(hellip) eacute de supor que o real menino aleacutem de explicar-se natu-ralmente em galego latinizaria o quantum satis para poder declamar chegada a hora perante tantos e tatildeo cultos cru-zados estrangeiros a arenga supracitada uma vez que eles de liacutenguas natildeo entenderiam entatildeo mais do que a sua de berccedilo e iguais rudimentos da outra com a ajuda dos frades inteacuterpretes (Saramago 44)

Esta duacutevida sobre a pureza do discurso reacutegio reproduzido na epiacutestola e traduzido pelo historiador torna-se em ldquoleitura paroacutedica (hellip) pela contextualizaccedilatildeo dramaacuteticardquo (Caragea 2003 235) O que Raimundo Silva ldquoem voz alta lecirc como um arauto lanccedilando as pro-clamasrdquo (P 45) ldquosituando portanto a sua reinterpretaccedilatildeo na zona pragmaacutetica da pronuntiatiordquo (Caragea 235) corresponde ipsis verbis com uma ou outra inversatildeo agrave traduccedilatildeo de JA de Oliveira (Conquista 44) A performance retoacuterica natildeo soacute ldquoacaba de inculcar no revisor um sentimento de distanciamento iroacutenico em relaccedilatildeo agraves palavras do reirdquo (Caragea 235) mas questiona sobretudo as noccedilotildees de texto-fonte e traduccedilatildeo fiel ao texto-fonte

Ao aprender que a invisibilidade do tradutor eacute falaz o revisor daacute o primeiro passo para a sua proacutepria visibilidade autoral Assim a ldquometaficccedilatildeo historiograacuteficardquo (Kaufman 1991) nasce directamen-te do dialogismo no sentido bakhtiniano com Joseacute Augusto de Oliveira simultaneamente ele eacute tradutor da epiacutestola publicada em ediccedilatildeo bilingue (1935) e autor da revisatildeo historiograacutefica intitulada ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem con-tar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo apresentada em 1940 Em vez de tomar a epiacutestola ldquodita de Osbernordquo como texto-fonte homogeacuteneo e traduzi-lo do latim como o fez o ldquoproacuteprio autor da Histoacuteriardquo (Saramago 43) facilmente reconheciacutevel como figuraccedilatildeo de Joseacute

121Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Augusto de Oliveira Raimundo Silva duvida natildeo soacute da pureza da fonte e subsequentemente da fidelidade da traduccedilatildeo mas tambeacutem da identidade do autor da epiacutestola Pelo tiacutetulo Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) Narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial da ediccedilatildeo bilingue esta identidade parece uniacutevoca mas natildeo eacute por exemplo Joseacute F Alves (2004) considera ldquobem coe-renterdquo que a primeira linha do texto latino ldquoOsb de Baldr R salutemrdquo indique um Osb de Baldr (Osberno ou Osberto ou Osborne) como destinataacuterio de ldquouma missiva mesmo sobrescrita apenas por um Rrdquo conjecturando-se o nome de Rogeacuterio19 Apor-tuguesando-se o nome Roger para Rogeiro o romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa assume esta suposiccedilatildeo ndash em oposiccedilatildeo ao lsquolivro do historiadorrsquo que considera Osberno um cruzado letrado O frade eacute apresentado na frase que continua a citaccedilatildeo anterior sobre a iden-tidade eacutetnica indefinida de D Joatildeo Peculiar arcebispo de Braga

Quem eacute indubitavelmente estrangeiro mas contado agrave parte por vir em missatildeo especial nem parlamentaacuterio nem homem de guerra eacute aquele frade ruivo e sardento ali a quem ago-ra mesmo ouvimos chamar Rogeiro mas que realmente tem por nome Roger o que deixaria em aberto a questatildeo de ser ele inglecircs ou normando (hellip) (198)

A identidade de Roger Rogeiro embora etnicamente indecisa oferece ndash na traduccedilatildeo para inglecircs e tambeacutem para alematildeo ndash uma afinidade cultural com o leitor impliacutecito reforccedilada pelo fiacutesico in-confundiacutevel noacuterdico ldquothat sandy-haired freckled friarrdquo (Sarama-go 1996 176) bdquojener blonde sommersprossige Paterldquo (241) No romance Frei Rogeiro cumpre o papel de ldquocronistardquo que transpotildee um conjunto multilingue de falas numa escrita coerente e homo-geacutenea Por exemplo no caso do discurso do arcebispo de Braga

Rogeiro logo em abreviado e taquigraacutefico o registou para mais tarde deixando os aformoseamentos oratoacuterios com que

122Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

brindaraacute aquele seu destinataacuterio distante Osberno chama-do laacute onde quer que esteja e quem quer que tenha sido poreacutem jaacute vai introduzindo redondeios de lavra proacutepria fru-tos de inspiraccedilatildeo estimulada (hellip) (200)

Significativamente Roger Rogeiro natildeo eacute tradutor mas ndash tal como o revisor Raimundo Silva ndash portador da consciecircncia de que tudo eacute traduccedilatildeo correspondendo ao latim o privileacutegio da liacutengua veicular

Este Rogeiro natildeo conhece uma palavra de araacutebigo nem de galego mas neste caso natildeo seraacute impedimento a ignoracircncia pois todo o debate vaacute por onde vaacute sempre iraacute dar ao latim graccedilas aos inteacuterpretes e aos tradutores simultacircneos (198)

De facto esta consciecircncia do plurilinguismo caracteriza Cruce-signati anglici epistola de expugnatione olisiponis desde o iniacutecio falando dos cruzados ldquoInter hos tot linguarum populos firmissima concordiae atque amititiaerdquo (Conquista 21) As falas de cruzados portugueses e mouros aparecem ou em citaccedilotildees traduzidas (de ou-tras liacutenguas para latim) ou em liacutengua latina para serem traduzidas no contexto do cerco Ambas satildeo adaptadas a um texto composto conforme as retoacutericas claacutessica e biacuteblica Eacute a proacutepria epiacutestola que refere a necessidade de traduccedilatildeo por exemplo do discurso do bispo do Porto proferido em latim perante a multidatildeo plurilingue dos cruzados reunidos20 Em contraste eacute significativo que o tradutor JA de Oliveira defenda ldquouma versatildeo que sem trair o pensamen-to se libertasse da escravidatildeo da letrardquo em vez de encher ldquoo texto portuguecircs com antigos vocaacutebulos forrageando-os nas velhas croacute-nicas conhecidas dos eruditosrdquo (Oliveira 1935 18) outorgando agrave sua traduccedilatildeo uma missatildeo nacionalista

Assim espero-o todos entenderatildeo este velho monumento da nossa histoacuteria e nesta hora de ressurgimento neste des-

123Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

pertar de energias e rasgar-se de horizontes novos faraacute bem aos portugueses de hoje ouvir falar a alma dos que agrave forccedila de braccedilo com persistecircncia com teimosia com obstinaccedilatildeo e com amor souberam ungir com o proacuteprio sangue os alic-erces desta nossa Paacutetria que eles nos deixaram para a con-servarmos amorosamente digna honrada e livre (Oliveira 1935 19)

Quem afirma assim uma leitura nacionalista de uma epiacutestola no fundo totalmente alheia ao objectivo de alicerccedilar a Histoacuteria nacional esconjura o que natildeo quer ver entregando-se agrave ldquotarefa permanente de nos iludirmosrdquo que critica Pacheco Pereira (2006) no caso das reacccedilotildees ao discurso de Jack Welsh Longe de com-preender a utilidade particular do confronto com a nossa imagem vista de fora JA de Oliveira concebe a sua traduccedilatildeo da epiacutestola estrangeira como contributo agrave legibilidade culturalmente coerente e homogeacutenea do ldquovelho monumento da nossa histoacuteriardquo A fideli-dade da traduccedilatildeo revela-se enganadora atraveacutes da leitura criacutetica de Raimundo Silva Assim a palavra aacuterabe ldquoalgazarrardquo que JA de Oliveira escolheu para traduzir ldquoconclamatiordquo na fala (por sua vez traduzida) de D Afonso Henriques21 evidencia natildeo soacute a homoge-neizaccedilatildeo do plurilinguismo tanto no texto-fonte como na traduccedilatildeo mas tambeacutem ndash numa leitura contraacuteria ndash a crioulizaccedilatildeo da identida-de portuguesa

Acertara D Afonso Henriques em cheio quando prognos-ticou que o exame da sua proposta acabaria em algazarra palavra que sendo aacuterabe de nacionalidade igualmente serve a qualquer gritar e vozear de colonenses flamengos bolon-heses bretotildees escoceses e normandos misturados (47-48)

Vollkommen recht hatte Dom Afonso Henriques mit der Voraussicht sein Vorschlag werde eine algazarra ausloumlsen dieses Wort obzwar arabischer Abkunft ist auch dienlich jedwedes ereiferndes Geschrei und Gekreisch der Koumllner

124Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Flamen Bologneser Bretonen Schotten und Normannen und aller durcheinander zu bezeichnen (56)

Portanto a palavra ldquoalgazarrardquo sugere nesta leitura transcul-tural do discurso reacutegio a relaccedilatildeo ambivalente galega aacuterabe como fundadora Esta insinuaccedilatildeo integra-se numa paroacutedia do discurso da identidade nacional nomeadamente na sua projecccedilatildeo anacroacutenica para a Idade Meacutedia ndash um aspecto que fica esbatido na traduccedilatildeo ale-matilde22 Uma leitura semelhante sugere a mensagem do rei de Eacutevora aos ldquoseus irmatildeos de Lisboardquo cuja traduccedilatildeo comentada ao portu-guecircs actual brinca com a identidade estereotipada de alentejanos

Aguentem aiacute os malvados que a minha tropa de alentejanos jaacute vai a caminho dizemo-lo assim por vir essa gente de aleacutem do Tejo ficando demonstrado de caminho que jaacute havia alentejanos antes de haver portugueses (176)

Para o leitor da traduccedilatildeo a existecircncia historicamente invertida de ldquoAlentejanerrdquo antes dos ldquoPortugiesenrdquo natildeo possui significado centrando-se a atenccedilatildeo na identificaccedilatildeo de ldquodiese Leute von jenseits des Tejordquo como ldquoAlentejanerrdquo (212) De facto a epiacutestola latina cita mensagens entre os mouros de Lisboa e o rei de Eacutevora desta-cando a ajuda de um inteacuterprete para poder incorporaacute-las no texto23 Obviamente a missiva reacutegia natildeo menciona alentejanos e transmite precisamente o contraacuterio a recusa do envio de tropas alegando a existecircncia de ldquotreacuteguas com o rei dos portuguesesrdquo (Conquista 64)

Estas manipulaccedilotildees mostram que Raimundo Silva eacute cada vez mais consciente da leitura escrita como cruzamento entre dimen-satildeo linguiacutestica e cultural no eixo temporal vaacutelido para a questatildeo da traduccedilatildeo24 no sentido das reflexotildees de Andreacute Lefevere (1992) Horst Turk (1992) e Susan Bassnett (1998) que analisam o texto tra-duzido ldquoembedded in its network of both source and target cultural signsrdquo (Bassnett9) Transcendo uma definiccedilatildeo estaacutetica de ldquocultural signsrdquo e da ldquohybridizationrdquo de Homi Bhabha podemos falar da

125Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

traduccedilatildeo como crioulizaccedilatildeo (Stoll 2005) com base em muacuteltiplos processos de mudanccedila sincroacutenicos e diacroacutenicos A paroacutedia da geacutenese da identidade portuguesa atraveacutes da criacutetica da pureza do texto-fonte (e da sua traduccedilatildeo) coincide com posiccedilotildees da historio-grafia moderna a conquista de Lisboa natildeo significa ndash conforme a Histoacuteria nacional tradicional ndash a vitoacuteria dos portugueses alcanccedilada com ajuda dos cruzados sobre os mouros significa isso sim a im-posiccedilatildeo militarmente bem sucedida do novo paradigma de pureza cristatilde implantada atraveacutes da ideologia colonizadora da Segunda Cruzada (114748) ao velho paradigma da convivecircncia segregada mais ou menos paciacutefica entre muccedilulmanos cristatildeos e judeus em estruturas poliacuteticas e sociais localmente autoacutenomas sob domiacutenio aacuterabe (Marques 68) O romance saramaguiano insinua esporadi-camente a crioulizaccedilatildeo da identidade portuguesa mas natildeo concede potencial identitaacuterio agraves populaccedilotildees cristatilde (moccedilaacuterabe) e judaica de Al-Usbuna sacrificadas por uma fracccedilatildeo dos cruzados ldquologo que o saque e o massacre exorbitaram das possibilidades de controlordquo (Marques 68) como conta em pormenor a epiacutestola Naturalmente destaca-se o bom comportamento dos ingleses e normandos (identi-dade de quem escreve) em contraste com o massacre e a devastaccedilatildeo perpetrados pelos colonenses e flamengos que ateacute matam o bispo da cidade moura25

Portanto o des-narrar saramaguiano natildeo empreende um deslo-camento transcultural tatildeo audaz como por exemplo La reivindi-cacioacuten del conde don Juliaacuten (1970) de Juan Goytisolo26 Naquele romance o narrador recupera atraveacutes da sua identificaccedilatildeo com o miacutetico lsquotraidorrsquo D Juliatildeo a identidade aacuterabe e moccedilaacuterabe termi-nando com o anuacutencio do lado aacuterabe ldquomantildeana seraacute otro diacutea la invasioacuten recomenzaraacuterdquo No entanto existe em Histoacuteria do Cerco um almuadem cego que preenche claramente o lugar do bispo anti-quiacutessimo a ser degolado como aquele por ldquoum soldado cristatildeo de mais zelosa feacuterdquo (348) A sua cegueira paradoxalmente visionaacuteria da Lisboa moura sitiada eacute contraacuteria daquela de ldquoira sanguinaacuteriardquo do seu assassino identificado como ldquoo cruzado Osberno soacute igual de nomerdquo (Saramago 40) introduzindo-se assim deliberadamente

126Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

uma homoniacutemia com o Osberno da epiacutestola (ainda tratado ndash errone-amente ndash como o seu autor) novamente recordada em ldquoo cruzado Osberno poreacutem natildeo o talrdquo27

Esta duplicaccedilatildeo de identidades com o mesmo nome adverte o leitor para ficar atento perante redefiniccedilotildees identitaacuterias como por exemplo dos sitiadores chamados ldquoos francos e os galegosrdquo28 sob comando dos cruzados e ldquoIbn Arrinque o Galegordquo (74) na perspetiva dos mouros recriada na mente de Raimundo Silva O almuadem na sua torre complementa ndash atraveacutes dos tempos ndash a posiccedilatildeo de Raimundo Silva ldquoque hoje quase tatildeo cego se vecirc como elerdquo (33) Significativamente o revisor apercebe-se ldquode que mora no preciso lugar onde antigamente se abria a Porta de Alfofardquo configurando-se assim topograficamente a incerteza (que corresponde ao des-narrar) ldquose Raimundo Silva eacute um si-tiado ou um sitiante vencedor futuro ou perdedor sem remeacutediordquo (75) Nos seus passeios por Lisboa ele revivifica uma cidade dividida entre zonas dos sitiados e dos atacantes entretecendo ldquodois temposrdquo (242) passado e presente29 A ambiguidade nos eixos de lugar e tempo transfere-se natildeo soacute agrave histoacuteria aplicando o tema da cegueira ateacute ao processo da sua recepccedilatildeo ldquo(hellip) esta [histoacuteria] de agora comeccedilada soacute poderaacute lecirc-la quem os olhos ti-ver luacutecidos e abertos natildeo um cegordquo (243) transfere-se tambeacutem agrave liacutengua na qual estaacute escrita o texto insinuando-se um regresso a outra fonte nas duas dimensotildees de identidade cultural e texto que evoca aquela transformaccedilatildeo da liacutengua castelhana em aacuterabe realizada nas uacuteltimas duas paacuteginas de Juan sin Tierra (1975) de Juan Goytisolo ldquo(hellip) as matildeos de Raimundo Silva pousam sobre a uacuteltima folha escrita umas linhas negras indecifraacuteveis talvez de araacutebiga liacutengua natildeo estivemos atentos agrave voz do almuademrdquo (Sara-mago 243) Na accedilatildeo mediadora do revisor confluem a voz aacuterabe do almuadem e a escrita latina do cleacuterigo Roger Na reescrita inicialmente soacute mental do lsquolivro do historiadorrsquo Raimundo Sil-va procura uma reconstruccedilatildeo contextualizada de ambos os lados (cristatildeos muccedilulmanos) por exemplo corrigindo o significado da cegueira do almuadem

127Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

() natildeo foi erro escrever porque enfim escrito estaacute que era cego o almuadem O historiador soacute fala de minarete e muezim talvez ignorasse que quase todos os almuadens naquele tempo e por muito tempo depois eram cegos (29

() es war kein Fehler und geschrieben ist es nun mal daszlig der Muezzin blind war Der Historiker der da lediglich von Minarett und Muezzin schreibt wuszligte vielleicht nicht daszlig fast alle Muezzins damals und noch lange danach blind waren (32)

O revisor identifica ldquominareterdquo e ldquomuezimrdquo como palavras li-gadas ao orientalismo dos seacuteculos XVIII e XIX Apesar de ser um fenoacutemeno transnacional europeu o orientalismo teve maior atracccedilatildeo na cultura francesa que espalhou para outras liacutenguas eu-ropeias as vozes aacuterabes importadas pela via oriental o Impeacuterio Otomano (Turquia) na sua expansatildeo europeia a partir do seacuteculo XIV (ponto alto conquista de Constantinopla em 1453) tinha dei-xado vestiacutegios nomeadamente na cultura austriacuteaca no acircmbito dos Tuumlrkenkriege (ponto de viragem Cerco de Viena em 1683) que serviram de base para o orientalismo francecircs Raimundo Silva pre-fere o uso da palavra ldquoalmuademrdquo de maior e mais antiga presen-ccedila na liacutengua portuguesa30 importada directamente e recuperada no Romantismo pelas Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano tal como ldquoalmaacutedenardquo em vez de ldquominareterdquo (Machado 62) A tra-duccedilatildeo alematilde natildeo assinala esta tentativa de maior lsquopurezarsquo histoacuterica no discurso sobre a identidade moura mantendo a denominaccedilatildeo invariaacutevel ldquoMuezzinrdquo embora exista a alternativa lexical menos usada de ldquoMuaddhinrdquo (Brockhaus 229)31

No contexto do pensamento poacutes-colonial esta reaquisiccedilatildeo dos processos de imaginaccedilatildeo depois das imposiccedilotildees coloniais europeias que comeccedila em princiacutepio pelo Romantismo (Herculano Garrett) revela a raiz histoacuterica da especificidade relacional portuguesa co-lonizada colonizadora isto eacute a harmonizaccedilatildeo mais ou menos voluntaacuteria da poliacutetica existente de poder regional na Peniacutensula Ibeacute-

128Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

rica com a ideologia colonizadora das cruzadas Para aleacutem de uma subtil reivindicaccedilatildeo da identidade moura Histoacuteria do Cerco de Lisboa se cinge quase unicamente agrave revisatildeo da identidade conquis-tadora na qual entra a identidade alematilde ndash um aspecto importante para a traduccedilatildeo Assim estabelece-se uma certa inversatildeo embora natildeo perfeita de identidade alteridade em geral o leitor alematildeo estaacute pouco familiarizado com a geacutenese da identidade portuguesa e ignora a configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica que eacute responsaacutevel pelo excesso identitaacuterio desconhecendo tambeacutem a participaccedilatildeo bem documentada de actores vindos de terras alematildes Eles aparecem no romance logo quando Raimundo Silva comeccedila a reler a epiacutestola na sua procura da ldquofonte limpardquo

(hellip) a informaccedilatildeo eacute de boa origem diz-se que directamente do ceacutelebre Osberno e assim podemos ficar a saber que es-tava o conde Arnoldo de Aarschot o qual comandava os guerreiros vindos de diversas partes do impeacuterio germacircni-co que estava Cristiano de Gistell chefe dos flamengos e bolonheses (hellip) (124)

Seguindo a teia intertextual regressamos ao texto-fonte que em contraste com a citada Croacutenica de Portugal de 1419 narra na perspectiva de uma expediccedilatildeo militar

Igitur apud portum de Dertemunde diversarum nationum et morum et linguarum gentes navibus cicrciter CLXIIII convenere Horum omnium trifariam partitur exercitus Sub comite Arnoldo de Arescot nepote Godefridi ducis a romani imperii partibus secedit exercitus Sub Christiano de Gistello flandrenses et bononenses32

A mudanccedila para ldquoimpeacuterio germacircnicordquo (124) corresponde agrave nota explicativa do tradutor JA de Oliveira33 No entanto natildeo se expli-

129Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ca a substituiccedilatildeo de ldquobononensesrdquo por ldquobolonhesesrdquo Naturalmen-te as duas mudanccedilas reflectem-se na traduccedilatildeo alematilde que toma o romance saramaguiano como texto-fonte

(hellip) Information aus verlaumlszliglicher Quelle dem Vernehmen nach direkt vom beruumlhmten Osberno persoumlnlich und also koumlnnen wir uns vergewissern daszlig da Graf Arnoldo de Aar-schot zugegen war der die aus verschiedenen Regionen des deutschen Kaiserreiches herbeigestroumlmten Krieger befehlig-te und Cristiano de Gistell der den Flamen und Bologne-sern vorstand (hellip) (150)

Na traduccedilatildeo alematilde nomes proacuteprios estrangeiros natildeo satildeo lsquore-patriadosrsquo nem o proacuteprio Osberne nem Arnold ou Christian que ficam todos na grafia romacircnica No entanto ldquoimpeacuterio germacircni-cordquo passa para ldquodeutsches Kaiserreichrdquo uma traduccedilatildeo que insinua uma projecccedilatildeo anacroacutenica do seacuteculo XIX (refundaccedilatildeo do Heiliges Roumlmisches Reich Deutscher Nation como Deutsches Kaiserreich em 1871) natildeo pretendida no texto-fonte Naturalmente a traduccedilatildeo alematilde ignora a possibilidade latente jaacute apagada no texto sarama-guiano de encontrar a identidade alematilde nos ldquobononensesrdquo mal transcritos em ldquobolonhesesrdquo34 Esta transcriccedilatildeo defeituosa surpre-ende porque eacute a personalidade do cavaleiro Henrique de Bona ausente na epiacutestola35 que teve o maior relevo individual na histo-riografia portuguesa entre os ldquosamtos cavaleyros martiresrdquo

Nesta tomada de Lisboa morerom alguns cavaleyros como martires e depois faziam muytos milagres amtre os quaes foy hum cavaleyro chamado Amriqe alematildeo o qual era de hũa vila que chamom Bona posta jumto de Colonha o qual foy enterado em Sam Viccedilemte honde fazia muytos milagres (hellip) (Croacutenica 50)

130Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Merecendo destaque na histoacuteria da fundaccedilatildeo do mosteiro de Satildeo Vicente com episoacutedios de acccedilatildeo milagrosa depois de morto (Indiculum 83-85 Croacutenica 50-52) Henrique de Bona torna-se uma personagem da Histoacuteria portuguesa digna de entrar nrsquo Os Lu-siacuteadas (VIII 18) Procede-se a uma apropriaccedilatildeo do estrangeiro colonizador o alematildeo Henrique torna-se depois de ter vertido ldquode gram voontade o seu sangue antre os mouros pola paixom do Nosso Salvador Jesu Cristordquo (Indiculum 83) no maior Santo Cavaleiro da Tomada de Lisboa Na Alemanha ele estaacute totalmente desconhecido a natildeo ser no acircmbito da retoacuterica diplomaacutetica bila-teral na qual aparece natildeo como maacutertir mas como fundador dos ldquolaccedilos da amizade secular que liga o povo da Alemanha ao de Por-tugalrdquo (Ehrhardt 11) projectando a ajuda dos cruzados na geacutenese do reino de Portugal numa lsquolenda de auxiacuteliorsquo para todas as eacutepocas posteriores

Numa abordagem criacutetica observamos um duplo branqueamen-to (1) da memoacuteria do saque cruel e devastador da Lisboa moura perpetrado pelos cruzados colonenses e flandrenses e (2) da rela-ccedilatildeo colonizadora entre aliados no contexto da Europa Cingimo--nos no acircmbito deste estudo agrave anaacutelise do episoacutedio da torre moacutevel No romance a ideia da sua construccedilatildeo eacute atribuiacuteda ao cavaleiro Henrique manipulando as fontes histoacutericas que falam de engenhos militares em competiccedilatildeo entre os diferentes grupos eacutetnicos ou destacam ldquoum engenheiro italiano natural de Pisardquo36 O discurso profeacutetico de superioridade cultural deste cavaleiro revela os moti-vos desta escolha

Grandes satildeo as vantagens que a Portugal adviratildeo de imitar neste como noutros casos o que na Europa se vai fazendo de mais moderno ainda que ao princiacutepio experimenteis dificuldades em meter na cabeccedila as tecnologias novas eu por mim sei da construccedilatildeo das tais torres o suficiente para os naturais daqui (hellip) (251)

131Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Groszlige Vorteile sind Portugal gewiszlig wenn es in diesem wie in anderen Faumlllen nachahmt was man in Europa an houmlchst modernen Dingen tut mag es euch anfaumlnglich auch schwerfallen die neuen Techniken in euren Kopf hinein-zukriegen ich meinerseits weiszlig vom Bau besagter Tuumlrme hinreichend viel um die hiesigen Eingeborenen zu unter-richten () (305)

Mesmo a traduccedilatildeo alematilde transmite a ideia de que a fala do cavaleiro Henrique perante o primeiro rei portuguecircs conteacutem uma paroacutedia do discurso poliacutetico actual que natildeo se cansa de propagar a imitaccedilatildeo da Europa avanccedilada representada pela capacidade eco-noacutemica e tecnoloacutegica de Alemanha em competiccedilatildeo com outras na-ccedilotildees Ao mesmo tempo projecta-se ndash apresentado como verdade de fora ndash a auto-imagem humilhante dos ldquonaturaisrdquo37 como matildeo-de--obra sem formaccedilatildeo agrave mercecirc das decisotildees de governantes que pac-tuam com os estrangeiros (252) como condiccedilatildeo da proacutepria geacutenese nacional No entanto a derrota da torre tatildeo bem construiacuteda que conduz ateacute agrave morte do seu construtor faz surgir a criacutetica dos ldquoen-genhos estrangeiros que tanto podem estar a favor como contrardquo (316) parodiando-se assim tanto a lsquolenda de auxiacuteliorsquo e a atitude colonizadora como o projecto portuguecircs de modernizaccedilatildeo europeia (Grossegesse 1995 228)

Reservando uma anaacutelise da constelaccedilatildeo transcultural entre o ca-valeiro alematildeo Henrique a sua ldquobarregatilderdquo Ouroana38 e o soldado Mogueime para outra ocasiatildeo centramo-nos num aspecto de jogo intertextual que ainda recebeu pouca atenccedilatildeo Face agrave ausecircncia do episoacutedio da torre moacutevel e da personalidade de Henrique de Bona na epiacutestola dirigida a Osberno eacute significativo que o romance sara-maguiano invente ldquoapontamentos para a carta de Osbernordquo (308) contendo estes em todo pormenor a histoacuteria do cavaleiro Henri-que A explicaccedilatildeo psicanaliacutetica de Ersatz para esta escrita do Frei Rogeiro39 tambeacutem eacute vaacutelida para o revisor Raimundo que insere na sua reescrita do Cerco de Lisboa a histoacuteria da conquista amorosa de Ouroana por Mogueime possibilitada pela morte do cavaleiro

132Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

alematildeo que espelha ndash atraveacutes dos tempos ndash a sua proacutepria lsquoconquis-tarsquo de Maria Sara

Com a ficccedilatildeo do texto apoacutecrifo inaugura-se uma hibridizaccedilatildeo transcultural das proacuteprias fontes histoacutericas possibilitando um amalgamar das narrativas dos cruzados com a Histoacuteria nacional e o lendaacuterio portuguecircs que culmina na releitura dos milagres do cava-leiro Henrique em simultacircneo com os milagres de Santo Antoacutenio o padroeiro mais popular de Lisboa A intersecccedilatildeo de milagres de ambos pelas leituras simultacircneas de Maria Sara e Raimundo eacute um acto que subverte tanto a procura da verdade histoacuterica como o conceito de identidades delimitadas por territoacuterio sangue e liacutengua Numa espeacutecie de metalepse o proacuteprio Frei Rogeiro apoacutes ter com-pilado ldquoos apontamentos que havia tomado durante uma volta que dera por todos os arraiaisrdquo (331) participa no episoacutedio milagroso ldquoComo o cavaleyro Amrique apareccedileo em sonhos a hum homem botildeo e como lhe disse que soterasem seu escudeiro a par delerdquo (Croacute-nica 51 cf Indiculum 84-85) cumprindo o papel daquele homem bom natildeo identificado

Mais significativo nesta leitura de milagres transformada em reescrita paroacutedica eacute o destaque atribuiacutedo agrave questatildeo de identida-des processos de deslocaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo culminando na trans-formaccedilatildeo de um milagre do cavaleiro Henrique numa espeacutecie de contra-mito da origem da liacutengua portuguesa ao narrar o milagre dos dois homens surdos-mudos que se deitaram ao lado do moi-mento do cavaleiro (Indiculum 83-84 Croacutenica 50-51) realccedila-se a incerteza da identidade deles ldquotinham vindo na frota poreacutem natildeo se sabe se ingleses aquitanos bretotildees flandrenses ou colonen-sesrdquo (335) Estando os dois homens assim jazendo ldquoadormeceram ambos e apareceu-lhes em sonho logo o cavaleiro Henrique (hellip) e falou agravequeles mancebosrdquo (336) ndash natildeo sabemos em que liacutengua ndash anunciando a sua cura de duvidoso efeito

(hellip) e eles acordando acharam que podiam ouvir e falar tambeacutem poreacutem falavam como gagos e de maneira que natildeo se entendia que liacutengua estavam falando se a dos ingleses

133Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ou aquitanos ou bretotildees ou flandrenses ou colonenses ou conforme natildeo poucos afirmavam a liacutengua dos portu-gueses (336)

Esta manipulaccedilatildeo natildeo de fontes histoacutericas mas de uma len-da convida para uma leitura metadiscursiva em vez de ldquocom voz chlara (hellip) contar a todo o povo o milagre que Deos em eles fizerardquo (Croacutenica 51) os dois ficam gagos No entanto o problema natildeo consiste em entender o que eacute que eles dizem mas em identificar a liacutengua que eles falam Nesta leitura o milagre reinterpretado enfa-tiza a visatildeo de uma hibridizaccedilatildeo das liacutenguas e das identidades no entanto consciente da imperfeita capacidade comunicativa que eacute aplicaacutevel agraves questotildees de revisatildeo e traduccedilatildeo

Tal como o revisor Raimundo Silva dentro da ficccedilatildeo o tradutor reescreve um texto anterior no entanto noutra liacutengua e para um leitor com outro horizonte cultural A procedecircncia das fontes histoacute-ricas e a apropriaccedilatildeo do cavaleiro Henrique pelo discurso da iden-tidade portuguesa demonstram a ineficaacutecia das definiccedilotildees puras de identidade e alteridade Em vez da tentativa de uma reproduccedilatildeo de uma liacutengua na outra no fundo irrealizaacutevel a visatildeo da hibridiza-ccedilatildeo das liacutenguas e identidades advoga uma recriaccedilatildeo naturalmente sempre parcial e imperfeita daquela heterogeneidade que Histoacuteria do Cerco de Lisboa exibe ao narrar a procura de uma ldquoverdaderdquo que ldquonatildeo pode ser mais do que uma cara sobreposta agraves infinitas maacutescaras variantes (hellip)rdquo (26) Para tal activa-se ldquooutro tipo de relaccedilotildees entre os elementos (hellip) porque as coerccedilotildees impostas pelas liacutenguas levam a diferentes possibilidades de contextualizaccedilotildees de remissotildees de encadeamentos de atribuiccedilatildeo de valores entre os elementosrdquo (Rodrigues 205) Se o romance reflecte claramente a diffeacuterance (Derrida 1967) como princiacutepio universal40 destacando os processos de traduccedilatildeo e reescrita este princiacutepio deve ser vaacutelido tambeacutem para a proacutepria traduccedilatildeo como propotildee Cristina Carneiro Rodrigues na continuaccedilatildeo de Rosemary Arojo (1993)

134Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

O original vive sobrevive na e pela sua proacutepria transfor-maccedilatildeo produzida pela leitura A traduccedilatildeo natildeo transporta uma essecircncia natildeo troca ou substitui significados dados prontos em um texto por significados equivalentes em outra liacutengua A traduccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo em que o laquotexto originalraquo se daacute por sua proacutepria modificaccedilatildeo em sua trans-formaccedilatildeo (Rodrigues 206)

O romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa interrelaciona esta con-diccedilatildeo de cada texto ser texto de textos transferidos traduzidos de outros textos em contextos histoacutericos sempre diferentes com a criacutetica da lsquoorigemrsquo da identidade individual e colectiva no sentido de transculturalidade e da ldquoculturersquos hibridityrdquo (Bhabha 1989 38) ambas com base expliacutecita na diffeacuterance Se reactivarmos a teoria de Jean Ricardou (1973) relativamente ao nouveau roman podemos dizer que a aventura da leitura escrita do revisor prefigura uma aventura semelhante do tradutor Tal como o revisor transformado em tradutor e autor ele transmite uma Histoacuteria do Cerco de Lis-boa recriada para outro leitor neste caso um leitor alheio natildeo soacute agrave narraccedilatildeo tradicional desta histoacuteria num discurso identitaacuterio mas tambeacutem agrave integraccedilatildeo da sua identidade cultural neste discurso Isto torna a traduccedilatildeo deste romance uma aventura de leitura e reescrita em certa medida jaacute prevista na Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Se no processo de traduccedilatildeo o tradutor ou tradutora tem que necessariamente tomar o lugar do autor e se apossar de seu texto para que esse possa sobreviver em outra liacutengua natildeo haacute como eliminar esse momento de usurpaccedilatildeo e con-quista que a reflexatildeo desconstrutivista flagra e desmascara (Arrojo 1993 82)

Curiosamente Rosemary Arrojo emprega a mesma metaacutefora de conquista utilizada para a aventura de Raimundo Silva que abrange a conquista amorosa de Maria Sara41 Eacute precisamente a mulher

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

112Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

identidade cultural essencialmente ldquomesticcedilosrdquo (Welsch 43) Fala-mos de representaccedilatildeo da identidade cultural (nacional) para realccedilar a sua construccedilatildeo discursiva ao longo da histoacuteria no Renascimento e no Barroco portanto no alvor das naccedilotildees europeias modernas inauguraram-se modos de falar sobre o caraacutecter da naccedilatildeo ou do povo em termos comparativos No Romantismo estes discursos adquiriram maior forccedila atraveacutes da definiccedilatildeo do caraacutecter do povo (Volkscharakter) como essecircncia preacute-consciente sucessivamente reinterpretada e amalgamada com o conceito pseudo-cientiacutefico da raccedila a partir do fim do seacutec XIX Esta evoluccedilatildeo demonstra que natildeo existe um objectivismo desvinculado da evoluccedilatildeo da historiografia e etnografia Tal como natildeo existe uma substacircncia intemporal da obra de arte natildeo pode haver uma substacircncia intemporal do dis-curso historiograacutefico e etnograacutefico ou do discurso da identidade cultural (nacional) Conforme a criacutetica do platonismo subjacente nas filologias e na historiografia tradicionais o analista de um texto natildeo possui a priori uma posiccedilatildeo superior ao lsquoleitor normalrsquo mas deve ancorar a sua proacutepria anaacutelise ldquona consciecircncia de a sua posiccedilatildeo actual se integrar numa sequecircncia histoacuterica de leitoresrdquo4 A partir destas definiccedilotildees da cultura e do texto analisaremos os cruzamentos de identidades no romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) e na traduccedilatildeo alematilde Geschichte der Belagerung von Lissabon (1992)5

O romance saramaguiano subverte atraveacutes de uma represen-taccedilatildeo transcultural ou hiacutebrida6 a coesatildeo da identidade portuguesa perante o outro de definiccedilatildeo dupla por um lado os cruzados na maioria procedentes do Norte da Europa e por outro os mou-ros oriundos de um Sul longiacutenquo natildeo concretizado e senhores atuais do territoacuterio Satildeo representaccedilotildees estereotipadas e portanto ambivalentes tornando o outro ao mesmo tempo estranho e fa-miliar ldquothe ambivalence of colonial cultural textsrdquo daacute origem agrave ldquoproduction of hybridizationrdquo (Bhabha 1985 112-19) afirmando que ldquonational narrative is the site of an ambivalent identificationrdquo (1994 167) Precisamente a Tomada de Lisboa que na historio-grafia nacional se constitui como episoacutedio nuclear da geacutenese da naccedilatildeo eacute des-narrada (deacutenarreacutee Prince 1988) pelo revisor Rai-

113Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

mundo Silva o protagonista deste romance partindo de um ldquonatildeordquo ldquoOs cruzados Natildeo auxiliaratildeo os portugueses a conquistar Lisboardquo (Saramago 50) A atitude de des-narrar que produz a indeter-minaccedilatildeo relativamente agrave versatildeo supostamente veriacutedica dos factos manifesta-se na problematizaccedilatildeo das fontes e no uso do futuro ao falar sobre os acontecimentos do ano de 1147 partindo desta ne-gaccedilatildeo expliacutecita que o revisor introduz no livro de um historiador7 antes da sua publicaccedilatildeo sem possuir nenhuma autoridade para este acto (Grossegesse 1996 810) Portanto natildeo soacute o discurso mas tambeacutem a proacutepria acccedilatildeo deste romance questionam os conceitos de identidade cultural original e texto original

Assumindo aos poucos a tarefa de uma reescrita com base no ldquonatildeordquo Raimundo procura uma ldquofonte limpardquo lamentando a ldquoimprecisatildeo dos dadosrdquo e a ldquopropagaccedilatildeo alucinada das notiacuteciasrdquo dando-se a ldquoproliferaccedilatildeo das proacuteprias fontes segundas e terceirasrdquo que ele compara com a ldquomultiplicaccedilatildeo de esporosrdquo (124) e ndash numa analogia com a actualidade ndash com a ldquorepeticcedilatildeo variada nas notiacutecias dos jornaisrdquo (Saramago 125) A procura da origem da nacionali-dade entretece-se com a procura do texto da origem revelando-se cada vez mais a impossibilidade de encontrar pureza identitaacuteria nem existe uma identidade-fonte nem um texto-fonte porque am-bas as noccedilotildees colocariam cultura e escrita fora de uma evoluccedilatildeo ou discursividade histoacuterica Ora se a ldquoverdaderdquo da origem e o seu discurso uniacutevoco ficam desconstruiacutedos posiccedilatildeo jaacute anunciada pela epiacutegrafe tirada de um Livro dos Conselhos imaginaacuterio8 como pode haver entatildeo uma traduccedilatildeo deste romance no entendimento tradicional que se baseia na lsquoverdadersquo de um texto-fonte e procura a consistecircncia comparaacutevel de um texto-alvo

Eacute precisamente a alternativa imaginada de uma conquista de Lisboa sem recorrer ao auxiacutelio de estrangeiros que expotildee a vulne-rabilidade do lsquoexcesso identitaacuteriorsquo impliacutecita na Histoacuteria nacional quando se fala da ldquoajuda de cruzados dando agrave participaccedilatildeo deles um valor instrumental quando seria mais correcto dizer que Lis-boa foi conquistada com a ajuda dos portuguesesrdquo (Caragea 224) Na procura de minimizar o papel da participaccedilatildeo estrangeira jaacute

114Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

bem visiacutevel na Croacutenica de D Afonso Henriques (1632) de Frei Antoacutenio Brandatildeo atraveacutes de uma compilaccedilatildeo comentada de fon-tes chegou-se de facto no Estado Novo ateacute agrave sua negaccedilatildeo num texto de Joseacute Augusto de Oliveira (1940) No entanto esta revisatildeo nacionalista natildeo conseguiu alterar a presenccedila jaacute sedimentada dos cruzados no imaginaacuterio portuguecircs etnicamente heterogeacuteneos no entanto unidos aos portugueses por serem tambeacutem eles cristatildeos e hostis aos muccedilulmanos Neste sentido a representaccedilatildeo do encontro com os cruzados eacute significativa Na Croacutenica de Portugal de 1419 citada no romance sob o tiacutetulo anterior Croacutenica dos Cinco Reis de Portugal9 no capiacutetulo ldquoComo elrey dom Afonso se ordenou de ir ccedilerquar Lixboa e das jentes estrangeyras que levou em sua ajudardquo encontramos a seguinte descriccedilatildeo

(hellip) moverom em aquele tempo muytas jentes de Ingraterra e dAlemanha e de Framccedila e vierom em muyto grande frota pelo mar em guisa que achamos espiacuterito que erom oytenta velas E vindo todolas naos de mar em fora busquar terra agrave roqua de Syntra elrey que estava em ccedilima no castelo com seus fidalguos devisaram-nos e quando virom tatildeo grande frota como aquela foram muy espantados E elrey man-dou loguo quatro cavaleyros que fossem agrave ribeyra saber que gemtes erom aquelas (hellip) E os cavaleyros pergunta-ram que gemtes erom e os das naos lhe disserom que erom christatildeos que partirom de suas terras e vinhom agraves Espanhas para guerear contra os mouros por fazer serviccedilo a Deos (Croacutenica 47)

A chegada dos estrangeiros cuja forccedila militar espanta insinua uma espeacutecie de invasatildeo amigaacutevel nas ldquoEspanhasrdquo logo funciona-lizada pela Histoacuteria nacional como daacutediva divina para a geacutenese da identidade portuguesa de grande coesatildeo forccedila e predestinaccedilatildeo jaacute afirmadas pelo milagre de Ourique Atraveacutes da reinvenccedilatildeo dos actores histoacutericos e dos seus discursos o romance saramaguiano nega de uma forma paroacutedica o conceito de identidade cultural

115Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que se define na tradiccedilatildeo herderiana atraveacutes do antagonismo entre cultura proacutepria e alheia Como mostra a Croacutenica de 1419 a iden-tidade alematilde tambeacutem participa no Cerco de Lisboa integrando--se na categoria heterogeacutenea dos estrangeiros do lado colonizador superiores natildeo soacute relativamente aos mouros mas tambeacutem aos co-lonizadores autoacutectones que ao consentir ou adoptar a ideologia importada da cruzada se revelam em certa medida tambeacutem colo-nizados Na noccedilatildeo da milagrosa invasatildeo amigaacutevel de estrangeiros que vinham aqui ldquopara guerear contra os mourosrdquo daacute-se azo ao excesso identitaacuterio que se sobrepotildee agrave contra-imagem humilhante de um papel meramente secundaacuterio de anfitriatildeo e ajudante numa conquista de Lisboa liderada pelos cruzados por sua vez missatildeo menor e de passagem no seio de um contexto maior o da Segunda Cruzada (1147-49)10

Um romance que natildeo soacute reescreve de uma forma paroacutedica a origem da configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica res-ponsaacutevel do excesso identitaacuterio portuguecircs mas tambeacutem sugere lsquolei-turasrsquo anacroacutenicas da actualidade portuguesa ainda caracterizada pelo dilema deste mesmo excesso identitaacuterio como comprova o en-saio de Pacheco Pereira (2006) eacute difiacutecil de traduzir porque implica uma operaccedilatildeo complexa de mediaccedilatildeo cultural no sentido de ldquocross--linguistic cultural practice involving recontextualizationrdquo (House 2002 97) Ilustramos esta dificuldade com um episoacutedio do livro do historiador lido por Raimundo Silva antes de introduzir o ldquonatildeordquo

(hellip) agora o historiador embandeirou o estilo para tratar da grande discoacuterdia que se levantou entre os cruzados (hellip) sobre se deveriam ou natildeo ajudar os nossos portugueses a tomar Lisboa se ficariam aqui ou seguiram como previsto para a Terra Santa onde os estava esperando Nosso Senhor Jesus Cristo sob os ferros turcos Argumentavam aqueles a quem seduzia a ideia de ficar que lanccedilar fora da cidade a estes mouros e fazecirc-la cristatilde seria tambeacutem serviccedilo de Deus contestavam os contraacuterios que se esse era serviccedilo de Deus serviccedilo menor seria e que cavaleiros tatildeo principais como

116Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

ali todos se prezavam de ser tinham por obrigaccedilatildeo acudir aonde mais trabalhosa fosse a obra natildeo neste cu do mundo entre labregos e tinhosos que uns deviam ser os mouros e outros os portugueses poreacutem natildeo o averiguou o historia-dor talvez por natildeo valer a pena de escolher entre os dois insultos (Saramago 47)

(hellip) nun uumlbt sich der Historiker in hohem Stil um den gro-szligen Zwist darzulegen der sich unter den Kreuzfahrern () entspann stand doch die Frage ob sie unseren Portugiesen bei der Einnahme Lissabons helfen sollten oder nicht ob hier verbleiben oder aber wie vorgesehen weiterziehen ins Heilige Land wo in tuumlrkischen Fesseln Unser Herr Je-sus Christus ihrer harrte Es argumentierten jene die am liebsten hiergeblieben waumlren die Mauren aus dieser Stadt treiben und aus ihr einen Christenhort zu machen sei glei-chermaszligen ein gottdienliches Werk und die anderen hiel-ten dagegen wenn gottdienliches Werk dann doch wohl ein minderes so hehre Ritter wie alle hier es zu sein ver-meinten haumltten die Pflicht dorthin zu eilen wo das Werk muumlhevoller sei nicht wie in diesem Weltenwinkel unter Bauersleuten und Wichten gemeint waren wohl mit den ei-nen die Mauren und mit den anderen die Portugiesen doch unterlieszlig der Historiker weitere Ergruumlndung vielleicht weil beides Schmaumlhworte waren (55)

Seja por entender ldquoembandeirar o estilordquo num sentido estrito em vez de intuir a subversatildeo da escrita pelas vozes citadas no sentido da polifonia bakhtiniana11 seja por obedecer a um conceito do politicamente correcto a versatildeo alematilde ldquoWeltenwinkelrdquo evita o equivalente ldquoArsch der Weltrdquo da expressatildeo escatoloacutegica ldquocu do mundordquo estereotipada no discurso da identidade portuguesa do seacute-culo XX Tambeacutem suaviza os insultos que expressam a superiori-dade colonizadora dos cruzados natildeo soacute relativamente aos mouros mas tambeacutem aos portugueses a traduccedilatildeo inofensiva de ldquoBauers-leuterdquo e ldquoWichterdquo anula a semacircntica insultuosa de ldquolabregosrdquo12 e

117Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ldquotinhososrdquo Com isto atenua-se a atitude de arrogacircncia dos ldquoca-valeiros tatildeo principaisrdquo que natildeo acham necessidade de diferenciar entre portugueses e mouros A traduccedilatildeo natildeo consegue transferir a paroacutedia da identidade portuguesa que dialoga com o leitor impliacute-cito (Iser 1972) do original para o perfil do leitor da traduccedilatildeo de maior afinidade cultural com os cruzados Trata-se de um leitor desprovido (1) da ldquoenciclopeacutedia do mundo portuguecircsrdquo (Caragea 209) e (2) da socializaccedilatildeo no contexto da realidade poliacutetica e social portuguesa dos anos oitenta e noventa com a memoacuteria do 25 de Abril de 1974 (por exemplo impliacutecita no perfil da personagem Mogueime como preacute-figuraccedilatildeo de Salgado Maia)

Esta dupla dificuldade que ndash com o tempo ndash tambeacutem surgi-raacute cada vez mais para o texto-fonte conduz agrave questatildeo do texto comentado que discute Horst Turk (1992) exemplificando-a no romance La reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten de Juan Goytisolo (em reediccedilatildeo comentada a partir de 1985) e na sua traduccedilatildeo alematilde (natildeo comentada) No caso de Histoacuteria do Cerco de Lisboa ainda natildeo existe uma ediccedilatildeo comentada do original Entre as traduccedilotildees a alematilde de Andreas Klotsch (1992) prescinde de comentaacuterio tal como a inglesa de Giovanni Pontiero (1996) que se cinge a um bre-ve prefaacutecio no entanto a romena por exemplo eacute acompanhada por um proacutelogo extenso e notas explicativas da tradutora Mioara Caragea13 Pelo comentaacuterio e pela ausecircncia dele acentuam-se as duas caras de Iano (Januskoumlpfigkeit) da traduccedilatildeo ela representa o texto-fonte e substitui o texto-fonte na literatura-alvo Mais ainda a traduccedilatildeo eacute tambeacutem em todas as literaturas um lugar privilegiado para articular qualidades de diferenccedila14 Destas deliberaccedilotildees surge como questatildeo central a traduccedilatildeo alematilde natildeo comentada da Histoacuteria do Cerco de Lisboa eacute capaz de transmitir a paroacutedia de identidade alteridade cultural (nacional) do texto-fonte

Ao falar do handicap do leitor desprovido da ldquoenciclopeacutedia do mundo portuguecircsrdquo (Caragea 209) prolonga-se a abordagem purista em vez de se repensar tambeacutem esta enciclopeacutedia de forma transcultural Com isto evidencia-se o cruzamento de identidades em constante mudanccedila desde as fontes histoacutericas citadas no lsquolivro

118Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

do historiadorrsquo ateacute agrave proacutepria traduccedilatildeo do romance Jaacute o historiador cujo livro Raimundo Silva revisa concede destaque entre as fon-tes ao ldquoceacutelebre Osbernordquo (Saramago 124) privilegiando assim a narrativa epistolar de um cruzado oriundo da regiatildeo de Norfolk ou Suffolk que participou no Cerco Atualmente eacute considerada ldquotalvez a principal fonte histoacutericardquo (Alves 13) A carta dirigida a uma personalidade inglesa estaacute escrita em latim Por isso Cru-cesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis15 integra natildeo soacute uma visatildeo desde o exterior portanto afastada da construccedilatildeo da Histoacuteria nacional mas tambeacutem um texto noutra liacutengua A proacutepria narrativa marginaliza a identidade portuguesa natildeo soacute no contexto geral do antagonismo entre cruzados (identidade comum francos) e mouros16 mas tambeacutem pela divisatildeo entre por um lado norman-dos e ingleses (no texto a identidade proacutepria) e por outro colo-nenses e flamengos natildeo soacute desunidos na decisatildeo inicial (participar ou natildeo) mas tambeacutem com diferentes comportamentos durante o cerco e no saque da cidade conquistada (Conquista 83) Com estas caracteriacutesticas este texto fornece por um lado bases para uma narraccedilatildeo fundadora da identidade portuguesa desvalorizando sobretudo eticamente a colaboraccedilatildeo dos cruzados e por outro o preacute-texto de uma des-narraccedilatildeo transcultural aproximando-se da historiografia criacutetica mais recente na qual se procede a uma negaccedilatildeo da narrativa fundacional nacional17 As possiacuteveis releitu-ras fundamentam a paroacutedia do sbquoexcesso identitaacuteriorsquo portuguecircs no romance saramaguiano que se centra na retroprojeccedilatildeo anacroacutenica natildeo soacute da categoria de nacional mas tambeacutem da outra da cate-goria de estrangeiro Basta pensarmos no anacronismo das quinas de Portugal (soacute a partir de Sancho I) a substituir o crescente (na realidade invenccedilatildeo do impeacuterio otomano) que despertam a ira do revisor quando chega agraves paacuteginas finais do lsquolivro do historiadorrsquo (41-42) Nada disto se encontra nas fontes Tambeacutem a traduccedilatildeo ldquopassou a corrupta mesquita a puriacutessima igreja catoacutelicardquo (40) en-fatiza um antagonismo identitaacuterio (muccedilulmano cristatildeo) que no texto-fonte fica subentendido ldquopurificatum est templumrdquo ldquofoi purificado o templordquo (Conquista 85) Mais interessante relativa-

119Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

mente ao leitor impliacutecito de traduccedilotildees para as liacutenguas do Centro Norte da Europa eacute o seguinte trecho

O pessoal que veio a esta fala parlamentar eacute todo de portu-gueses natildeo pareceu bem a el-rei servir-se de estrangeiros para o reforccedilo do ultimatum ainda que diga-se de pas-sagem subsistam grandes duacutevidas de que o arcebispo de Braga pertenccedila de facto ao nosso sangue lusitano mas enfim jaacute nesses antigos tempos tinha principiado a fama que mantivemos ateacute hoje de receber bem a gente de fora distribuir-lhes cargos e prebendas e este D Joatildeo Peculiar vaacute laacute pagou-nos multiplicado em serviccedilos patrioacuteticos E se como tambeacutem se diz era mesmo portuguecircs e de Coimbra vejamo-lo como pioneiro da nossa vocaccedilatildeo migratoacuteria da magniacutefica diaacutespora pois toda a sua juventude a passou em Franccedila a estudar devendo notar-se aqui uma acentuada diferenccedila em relaccedilatildeo agraves tendecircncias recentes da nossa emig-raccedilatildeo para aquele paiacutes plutocirct adstrita aos trabalhos sujos e pesados (197-98)

O problema de transmitir o sentido paroacutedico na traduccedilatildeo18 por exemplo da eterna vocaccedilatildeo migratoacuteria bdquounserer migratoris-chen Berufung unserer wundervollen Diasporaldquo (240) culmina na dificuldade de incluir o leitor impliacutecito da traduccedilatildeo na situaccedilatildeo enunciativa isto eacute neste caso ele se deveria rever no lsquoestrangei-rorsquo vindo da Franccedila e indo aleacutem das dicotomias aperceber-se da relatividade das categorias

Eacute significativo que o revisor Raimundo Silva chegue a este tipo de des-narraccedilatildeo atraveacutes de uma criacutetica da traduccedilatildeo que fundamenta o proacuteprio acto de alterar o lsquolivro do historiadorrsquo a partir do ldquonatildeordquo Natildeo eacute tanto o ldquorigor da traduccedilatildeordquo (44) que estaacute em causa mas a sua verossimilhanccedila Precisamente por duvidar dos conhecimentos de latim das capacidades retoacutericas e em geral da cultura de Afon-so Henriques Raimundo Silva considera ldquoa primeira fala averigua-da do nosso rei fundadorrdquo nada menos do que ldquouma absurdidaderdquo

120Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

(43) negando de passagem tambeacutem o uso da liacutengua portuguesa que a tradicional narrativa fundacional de Portugal assume com naturalidade

(hellip) eacute de supor que o real menino aleacutem de explicar-se natu-ralmente em galego latinizaria o quantum satis para poder declamar chegada a hora perante tantos e tatildeo cultos cru-zados estrangeiros a arenga supracitada uma vez que eles de liacutenguas natildeo entenderiam entatildeo mais do que a sua de berccedilo e iguais rudimentos da outra com a ajuda dos frades inteacuterpretes (Saramago 44)

Esta duacutevida sobre a pureza do discurso reacutegio reproduzido na epiacutestola e traduzido pelo historiador torna-se em ldquoleitura paroacutedica (hellip) pela contextualizaccedilatildeo dramaacuteticardquo (Caragea 2003 235) O que Raimundo Silva ldquoem voz alta lecirc como um arauto lanccedilando as pro-clamasrdquo (P 45) ldquosituando portanto a sua reinterpretaccedilatildeo na zona pragmaacutetica da pronuntiatiordquo (Caragea 235) corresponde ipsis verbis com uma ou outra inversatildeo agrave traduccedilatildeo de JA de Oliveira (Conquista 44) A performance retoacuterica natildeo soacute ldquoacaba de inculcar no revisor um sentimento de distanciamento iroacutenico em relaccedilatildeo agraves palavras do reirdquo (Caragea 235) mas questiona sobretudo as noccedilotildees de texto-fonte e traduccedilatildeo fiel ao texto-fonte

Ao aprender que a invisibilidade do tradutor eacute falaz o revisor daacute o primeiro passo para a sua proacutepria visibilidade autoral Assim a ldquometaficccedilatildeo historiograacuteficardquo (Kaufman 1991) nasce directamen-te do dialogismo no sentido bakhtiniano com Joseacute Augusto de Oliveira simultaneamente ele eacute tradutor da epiacutestola publicada em ediccedilatildeo bilingue (1935) e autor da revisatildeo historiograacutefica intitulada ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem con-tar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo apresentada em 1940 Em vez de tomar a epiacutestola ldquodita de Osbernordquo como texto-fonte homogeacuteneo e traduzi-lo do latim como o fez o ldquoproacuteprio autor da Histoacuteriardquo (Saramago 43) facilmente reconheciacutevel como figuraccedilatildeo de Joseacute

121Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Augusto de Oliveira Raimundo Silva duvida natildeo soacute da pureza da fonte e subsequentemente da fidelidade da traduccedilatildeo mas tambeacutem da identidade do autor da epiacutestola Pelo tiacutetulo Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) Narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial da ediccedilatildeo bilingue esta identidade parece uniacutevoca mas natildeo eacute por exemplo Joseacute F Alves (2004) considera ldquobem coe-renterdquo que a primeira linha do texto latino ldquoOsb de Baldr R salutemrdquo indique um Osb de Baldr (Osberno ou Osberto ou Osborne) como destinataacuterio de ldquouma missiva mesmo sobrescrita apenas por um Rrdquo conjecturando-se o nome de Rogeacuterio19 Apor-tuguesando-se o nome Roger para Rogeiro o romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa assume esta suposiccedilatildeo ndash em oposiccedilatildeo ao lsquolivro do historiadorrsquo que considera Osberno um cruzado letrado O frade eacute apresentado na frase que continua a citaccedilatildeo anterior sobre a iden-tidade eacutetnica indefinida de D Joatildeo Peculiar arcebispo de Braga

Quem eacute indubitavelmente estrangeiro mas contado agrave parte por vir em missatildeo especial nem parlamentaacuterio nem homem de guerra eacute aquele frade ruivo e sardento ali a quem ago-ra mesmo ouvimos chamar Rogeiro mas que realmente tem por nome Roger o que deixaria em aberto a questatildeo de ser ele inglecircs ou normando (hellip) (198)

A identidade de Roger Rogeiro embora etnicamente indecisa oferece ndash na traduccedilatildeo para inglecircs e tambeacutem para alematildeo ndash uma afinidade cultural com o leitor impliacutecito reforccedilada pelo fiacutesico in-confundiacutevel noacuterdico ldquothat sandy-haired freckled friarrdquo (Sarama-go 1996 176) bdquojener blonde sommersprossige Paterldquo (241) No romance Frei Rogeiro cumpre o papel de ldquocronistardquo que transpotildee um conjunto multilingue de falas numa escrita coerente e homo-geacutenea Por exemplo no caso do discurso do arcebispo de Braga

Rogeiro logo em abreviado e taquigraacutefico o registou para mais tarde deixando os aformoseamentos oratoacuterios com que

122Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

brindaraacute aquele seu destinataacuterio distante Osberno chama-do laacute onde quer que esteja e quem quer que tenha sido poreacutem jaacute vai introduzindo redondeios de lavra proacutepria fru-tos de inspiraccedilatildeo estimulada (hellip) (200)

Significativamente Roger Rogeiro natildeo eacute tradutor mas ndash tal como o revisor Raimundo Silva ndash portador da consciecircncia de que tudo eacute traduccedilatildeo correspondendo ao latim o privileacutegio da liacutengua veicular

Este Rogeiro natildeo conhece uma palavra de araacutebigo nem de galego mas neste caso natildeo seraacute impedimento a ignoracircncia pois todo o debate vaacute por onde vaacute sempre iraacute dar ao latim graccedilas aos inteacuterpretes e aos tradutores simultacircneos (198)

De facto esta consciecircncia do plurilinguismo caracteriza Cruce-signati anglici epistola de expugnatione olisiponis desde o iniacutecio falando dos cruzados ldquoInter hos tot linguarum populos firmissima concordiae atque amititiaerdquo (Conquista 21) As falas de cruzados portugueses e mouros aparecem ou em citaccedilotildees traduzidas (de ou-tras liacutenguas para latim) ou em liacutengua latina para serem traduzidas no contexto do cerco Ambas satildeo adaptadas a um texto composto conforme as retoacutericas claacutessica e biacuteblica Eacute a proacutepria epiacutestola que refere a necessidade de traduccedilatildeo por exemplo do discurso do bispo do Porto proferido em latim perante a multidatildeo plurilingue dos cruzados reunidos20 Em contraste eacute significativo que o tradutor JA de Oliveira defenda ldquouma versatildeo que sem trair o pensamen-to se libertasse da escravidatildeo da letrardquo em vez de encher ldquoo texto portuguecircs com antigos vocaacutebulos forrageando-os nas velhas croacute-nicas conhecidas dos eruditosrdquo (Oliveira 1935 18) outorgando agrave sua traduccedilatildeo uma missatildeo nacionalista

Assim espero-o todos entenderatildeo este velho monumento da nossa histoacuteria e nesta hora de ressurgimento neste des-

123Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

pertar de energias e rasgar-se de horizontes novos faraacute bem aos portugueses de hoje ouvir falar a alma dos que agrave forccedila de braccedilo com persistecircncia com teimosia com obstinaccedilatildeo e com amor souberam ungir com o proacuteprio sangue os alic-erces desta nossa Paacutetria que eles nos deixaram para a con-servarmos amorosamente digna honrada e livre (Oliveira 1935 19)

Quem afirma assim uma leitura nacionalista de uma epiacutestola no fundo totalmente alheia ao objectivo de alicerccedilar a Histoacuteria nacional esconjura o que natildeo quer ver entregando-se agrave ldquotarefa permanente de nos iludirmosrdquo que critica Pacheco Pereira (2006) no caso das reacccedilotildees ao discurso de Jack Welsh Longe de com-preender a utilidade particular do confronto com a nossa imagem vista de fora JA de Oliveira concebe a sua traduccedilatildeo da epiacutestola estrangeira como contributo agrave legibilidade culturalmente coerente e homogeacutenea do ldquovelho monumento da nossa histoacuteriardquo A fideli-dade da traduccedilatildeo revela-se enganadora atraveacutes da leitura criacutetica de Raimundo Silva Assim a palavra aacuterabe ldquoalgazarrardquo que JA de Oliveira escolheu para traduzir ldquoconclamatiordquo na fala (por sua vez traduzida) de D Afonso Henriques21 evidencia natildeo soacute a homoge-neizaccedilatildeo do plurilinguismo tanto no texto-fonte como na traduccedilatildeo mas tambeacutem ndash numa leitura contraacuteria ndash a crioulizaccedilatildeo da identida-de portuguesa

Acertara D Afonso Henriques em cheio quando prognos-ticou que o exame da sua proposta acabaria em algazarra palavra que sendo aacuterabe de nacionalidade igualmente serve a qualquer gritar e vozear de colonenses flamengos bolon-heses bretotildees escoceses e normandos misturados (47-48)

Vollkommen recht hatte Dom Afonso Henriques mit der Voraussicht sein Vorschlag werde eine algazarra ausloumlsen dieses Wort obzwar arabischer Abkunft ist auch dienlich jedwedes ereiferndes Geschrei und Gekreisch der Koumllner

124Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Flamen Bologneser Bretonen Schotten und Normannen und aller durcheinander zu bezeichnen (56)

Portanto a palavra ldquoalgazarrardquo sugere nesta leitura transcul-tural do discurso reacutegio a relaccedilatildeo ambivalente galega aacuterabe como fundadora Esta insinuaccedilatildeo integra-se numa paroacutedia do discurso da identidade nacional nomeadamente na sua projecccedilatildeo anacroacutenica para a Idade Meacutedia ndash um aspecto que fica esbatido na traduccedilatildeo ale-matilde22 Uma leitura semelhante sugere a mensagem do rei de Eacutevora aos ldquoseus irmatildeos de Lisboardquo cuja traduccedilatildeo comentada ao portu-guecircs actual brinca com a identidade estereotipada de alentejanos

Aguentem aiacute os malvados que a minha tropa de alentejanos jaacute vai a caminho dizemo-lo assim por vir essa gente de aleacutem do Tejo ficando demonstrado de caminho que jaacute havia alentejanos antes de haver portugueses (176)

Para o leitor da traduccedilatildeo a existecircncia historicamente invertida de ldquoAlentejanerrdquo antes dos ldquoPortugiesenrdquo natildeo possui significado centrando-se a atenccedilatildeo na identificaccedilatildeo de ldquodiese Leute von jenseits des Tejordquo como ldquoAlentejanerrdquo (212) De facto a epiacutestola latina cita mensagens entre os mouros de Lisboa e o rei de Eacutevora desta-cando a ajuda de um inteacuterprete para poder incorporaacute-las no texto23 Obviamente a missiva reacutegia natildeo menciona alentejanos e transmite precisamente o contraacuterio a recusa do envio de tropas alegando a existecircncia de ldquotreacuteguas com o rei dos portuguesesrdquo (Conquista 64)

Estas manipulaccedilotildees mostram que Raimundo Silva eacute cada vez mais consciente da leitura escrita como cruzamento entre dimen-satildeo linguiacutestica e cultural no eixo temporal vaacutelido para a questatildeo da traduccedilatildeo24 no sentido das reflexotildees de Andreacute Lefevere (1992) Horst Turk (1992) e Susan Bassnett (1998) que analisam o texto tra-duzido ldquoembedded in its network of both source and target cultural signsrdquo (Bassnett9) Transcendo uma definiccedilatildeo estaacutetica de ldquocultural signsrdquo e da ldquohybridizationrdquo de Homi Bhabha podemos falar da

125Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

traduccedilatildeo como crioulizaccedilatildeo (Stoll 2005) com base em muacuteltiplos processos de mudanccedila sincroacutenicos e diacroacutenicos A paroacutedia da geacutenese da identidade portuguesa atraveacutes da criacutetica da pureza do texto-fonte (e da sua traduccedilatildeo) coincide com posiccedilotildees da historio-grafia moderna a conquista de Lisboa natildeo significa ndash conforme a Histoacuteria nacional tradicional ndash a vitoacuteria dos portugueses alcanccedilada com ajuda dos cruzados sobre os mouros significa isso sim a im-posiccedilatildeo militarmente bem sucedida do novo paradigma de pureza cristatilde implantada atraveacutes da ideologia colonizadora da Segunda Cruzada (114748) ao velho paradigma da convivecircncia segregada mais ou menos paciacutefica entre muccedilulmanos cristatildeos e judeus em estruturas poliacuteticas e sociais localmente autoacutenomas sob domiacutenio aacuterabe (Marques 68) O romance saramaguiano insinua esporadi-camente a crioulizaccedilatildeo da identidade portuguesa mas natildeo concede potencial identitaacuterio agraves populaccedilotildees cristatilde (moccedilaacuterabe) e judaica de Al-Usbuna sacrificadas por uma fracccedilatildeo dos cruzados ldquologo que o saque e o massacre exorbitaram das possibilidades de controlordquo (Marques 68) como conta em pormenor a epiacutestola Naturalmente destaca-se o bom comportamento dos ingleses e normandos (identi-dade de quem escreve) em contraste com o massacre e a devastaccedilatildeo perpetrados pelos colonenses e flamengos que ateacute matam o bispo da cidade moura25

Portanto o des-narrar saramaguiano natildeo empreende um deslo-camento transcultural tatildeo audaz como por exemplo La reivindi-cacioacuten del conde don Juliaacuten (1970) de Juan Goytisolo26 Naquele romance o narrador recupera atraveacutes da sua identificaccedilatildeo com o miacutetico lsquotraidorrsquo D Juliatildeo a identidade aacuterabe e moccedilaacuterabe termi-nando com o anuacutencio do lado aacuterabe ldquomantildeana seraacute otro diacutea la invasioacuten recomenzaraacuterdquo No entanto existe em Histoacuteria do Cerco um almuadem cego que preenche claramente o lugar do bispo anti-quiacutessimo a ser degolado como aquele por ldquoum soldado cristatildeo de mais zelosa feacuterdquo (348) A sua cegueira paradoxalmente visionaacuteria da Lisboa moura sitiada eacute contraacuteria daquela de ldquoira sanguinaacuteriardquo do seu assassino identificado como ldquoo cruzado Osberno soacute igual de nomerdquo (Saramago 40) introduzindo-se assim deliberadamente

126Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

uma homoniacutemia com o Osberno da epiacutestola (ainda tratado ndash errone-amente ndash como o seu autor) novamente recordada em ldquoo cruzado Osberno poreacutem natildeo o talrdquo27

Esta duplicaccedilatildeo de identidades com o mesmo nome adverte o leitor para ficar atento perante redefiniccedilotildees identitaacuterias como por exemplo dos sitiadores chamados ldquoos francos e os galegosrdquo28 sob comando dos cruzados e ldquoIbn Arrinque o Galegordquo (74) na perspetiva dos mouros recriada na mente de Raimundo Silva O almuadem na sua torre complementa ndash atraveacutes dos tempos ndash a posiccedilatildeo de Raimundo Silva ldquoque hoje quase tatildeo cego se vecirc como elerdquo (33) Significativamente o revisor apercebe-se ldquode que mora no preciso lugar onde antigamente se abria a Porta de Alfofardquo configurando-se assim topograficamente a incerteza (que corresponde ao des-narrar) ldquose Raimundo Silva eacute um si-tiado ou um sitiante vencedor futuro ou perdedor sem remeacutediordquo (75) Nos seus passeios por Lisboa ele revivifica uma cidade dividida entre zonas dos sitiados e dos atacantes entretecendo ldquodois temposrdquo (242) passado e presente29 A ambiguidade nos eixos de lugar e tempo transfere-se natildeo soacute agrave histoacuteria aplicando o tema da cegueira ateacute ao processo da sua recepccedilatildeo ldquo(hellip) esta [histoacuteria] de agora comeccedilada soacute poderaacute lecirc-la quem os olhos ti-ver luacutecidos e abertos natildeo um cegordquo (243) transfere-se tambeacutem agrave liacutengua na qual estaacute escrita o texto insinuando-se um regresso a outra fonte nas duas dimensotildees de identidade cultural e texto que evoca aquela transformaccedilatildeo da liacutengua castelhana em aacuterabe realizada nas uacuteltimas duas paacuteginas de Juan sin Tierra (1975) de Juan Goytisolo ldquo(hellip) as matildeos de Raimundo Silva pousam sobre a uacuteltima folha escrita umas linhas negras indecifraacuteveis talvez de araacutebiga liacutengua natildeo estivemos atentos agrave voz do almuademrdquo (Sara-mago 243) Na accedilatildeo mediadora do revisor confluem a voz aacuterabe do almuadem e a escrita latina do cleacuterigo Roger Na reescrita inicialmente soacute mental do lsquolivro do historiadorrsquo Raimundo Sil-va procura uma reconstruccedilatildeo contextualizada de ambos os lados (cristatildeos muccedilulmanos) por exemplo corrigindo o significado da cegueira do almuadem

127Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

() natildeo foi erro escrever porque enfim escrito estaacute que era cego o almuadem O historiador soacute fala de minarete e muezim talvez ignorasse que quase todos os almuadens naquele tempo e por muito tempo depois eram cegos (29

() es war kein Fehler und geschrieben ist es nun mal daszlig der Muezzin blind war Der Historiker der da lediglich von Minarett und Muezzin schreibt wuszligte vielleicht nicht daszlig fast alle Muezzins damals und noch lange danach blind waren (32)

O revisor identifica ldquominareterdquo e ldquomuezimrdquo como palavras li-gadas ao orientalismo dos seacuteculos XVIII e XIX Apesar de ser um fenoacutemeno transnacional europeu o orientalismo teve maior atracccedilatildeo na cultura francesa que espalhou para outras liacutenguas eu-ropeias as vozes aacuterabes importadas pela via oriental o Impeacuterio Otomano (Turquia) na sua expansatildeo europeia a partir do seacuteculo XIV (ponto alto conquista de Constantinopla em 1453) tinha dei-xado vestiacutegios nomeadamente na cultura austriacuteaca no acircmbito dos Tuumlrkenkriege (ponto de viragem Cerco de Viena em 1683) que serviram de base para o orientalismo francecircs Raimundo Silva pre-fere o uso da palavra ldquoalmuademrdquo de maior e mais antiga presen-ccedila na liacutengua portuguesa30 importada directamente e recuperada no Romantismo pelas Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano tal como ldquoalmaacutedenardquo em vez de ldquominareterdquo (Machado 62) A tra-duccedilatildeo alematilde natildeo assinala esta tentativa de maior lsquopurezarsquo histoacuterica no discurso sobre a identidade moura mantendo a denominaccedilatildeo invariaacutevel ldquoMuezzinrdquo embora exista a alternativa lexical menos usada de ldquoMuaddhinrdquo (Brockhaus 229)31

No contexto do pensamento poacutes-colonial esta reaquisiccedilatildeo dos processos de imaginaccedilatildeo depois das imposiccedilotildees coloniais europeias que comeccedila em princiacutepio pelo Romantismo (Herculano Garrett) revela a raiz histoacuterica da especificidade relacional portuguesa co-lonizada colonizadora isto eacute a harmonizaccedilatildeo mais ou menos voluntaacuteria da poliacutetica existente de poder regional na Peniacutensula Ibeacute-

128Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

rica com a ideologia colonizadora das cruzadas Para aleacutem de uma subtil reivindicaccedilatildeo da identidade moura Histoacuteria do Cerco de Lisboa se cinge quase unicamente agrave revisatildeo da identidade conquis-tadora na qual entra a identidade alematilde ndash um aspecto importante para a traduccedilatildeo Assim estabelece-se uma certa inversatildeo embora natildeo perfeita de identidade alteridade em geral o leitor alematildeo estaacute pouco familiarizado com a geacutenese da identidade portuguesa e ignora a configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica que eacute responsaacutevel pelo excesso identitaacuterio desconhecendo tambeacutem a participaccedilatildeo bem documentada de actores vindos de terras alematildes Eles aparecem no romance logo quando Raimundo Silva comeccedila a reler a epiacutestola na sua procura da ldquofonte limpardquo

(hellip) a informaccedilatildeo eacute de boa origem diz-se que directamente do ceacutelebre Osberno e assim podemos ficar a saber que es-tava o conde Arnoldo de Aarschot o qual comandava os guerreiros vindos de diversas partes do impeacuterio germacircni-co que estava Cristiano de Gistell chefe dos flamengos e bolonheses (hellip) (124)

Seguindo a teia intertextual regressamos ao texto-fonte que em contraste com a citada Croacutenica de Portugal de 1419 narra na perspectiva de uma expediccedilatildeo militar

Igitur apud portum de Dertemunde diversarum nationum et morum et linguarum gentes navibus cicrciter CLXIIII convenere Horum omnium trifariam partitur exercitus Sub comite Arnoldo de Arescot nepote Godefridi ducis a romani imperii partibus secedit exercitus Sub Christiano de Gistello flandrenses et bononenses32

A mudanccedila para ldquoimpeacuterio germacircnicordquo (124) corresponde agrave nota explicativa do tradutor JA de Oliveira33 No entanto natildeo se expli-

129Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ca a substituiccedilatildeo de ldquobononensesrdquo por ldquobolonhesesrdquo Naturalmen-te as duas mudanccedilas reflectem-se na traduccedilatildeo alematilde que toma o romance saramaguiano como texto-fonte

(hellip) Information aus verlaumlszliglicher Quelle dem Vernehmen nach direkt vom beruumlhmten Osberno persoumlnlich und also koumlnnen wir uns vergewissern daszlig da Graf Arnoldo de Aar-schot zugegen war der die aus verschiedenen Regionen des deutschen Kaiserreiches herbeigestroumlmten Krieger befehlig-te und Cristiano de Gistell der den Flamen und Bologne-sern vorstand (hellip) (150)

Na traduccedilatildeo alematilde nomes proacuteprios estrangeiros natildeo satildeo lsquore-patriadosrsquo nem o proacuteprio Osberne nem Arnold ou Christian que ficam todos na grafia romacircnica No entanto ldquoimpeacuterio germacircni-cordquo passa para ldquodeutsches Kaiserreichrdquo uma traduccedilatildeo que insinua uma projecccedilatildeo anacroacutenica do seacuteculo XIX (refundaccedilatildeo do Heiliges Roumlmisches Reich Deutscher Nation como Deutsches Kaiserreich em 1871) natildeo pretendida no texto-fonte Naturalmente a traduccedilatildeo alematilde ignora a possibilidade latente jaacute apagada no texto sarama-guiano de encontrar a identidade alematilde nos ldquobononensesrdquo mal transcritos em ldquobolonhesesrdquo34 Esta transcriccedilatildeo defeituosa surpre-ende porque eacute a personalidade do cavaleiro Henrique de Bona ausente na epiacutestola35 que teve o maior relevo individual na histo-riografia portuguesa entre os ldquosamtos cavaleyros martiresrdquo

Nesta tomada de Lisboa morerom alguns cavaleyros como martires e depois faziam muytos milagres amtre os quaes foy hum cavaleyro chamado Amriqe alematildeo o qual era de hũa vila que chamom Bona posta jumto de Colonha o qual foy enterado em Sam Viccedilemte honde fazia muytos milagres (hellip) (Croacutenica 50)

130Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Merecendo destaque na histoacuteria da fundaccedilatildeo do mosteiro de Satildeo Vicente com episoacutedios de acccedilatildeo milagrosa depois de morto (Indiculum 83-85 Croacutenica 50-52) Henrique de Bona torna-se uma personagem da Histoacuteria portuguesa digna de entrar nrsquo Os Lu-siacuteadas (VIII 18) Procede-se a uma apropriaccedilatildeo do estrangeiro colonizador o alematildeo Henrique torna-se depois de ter vertido ldquode gram voontade o seu sangue antre os mouros pola paixom do Nosso Salvador Jesu Cristordquo (Indiculum 83) no maior Santo Cavaleiro da Tomada de Lisboa Na Alemanha ele estaacute totalmente desconhecido a natildeo ser no acircmbito da retoacuterica diplomaacutetica bila-teral na qual aparece natildeo como maacutertir mas como fundador dos ldquolaccedilos da amizade secular que liga o povo da Alemanha ao de Por-tugalrdquo (Ehrhardt 11) projectando a ajuda dos cruzados na geacutenese do reino de Portugal numa lsquolenda de auxiacuteliorsquo para todas as eacutepocas posteriores

Numa abordagem criacutetica observamos um duplo branqueamen-to (1) da memoacuteria do saque cruel e devastador da Lisboa moura perpetrado pelos cruzados colonenses e flandrenses e (2) da rela-ccedilatildeo colonizadora entre aliados no contexto da Europa Cingimo--nos no acircmbito deste estudo agrave anaacutelise do episoacutedio da torre moacutevel No romance a ideia da sua construccedilatildeo eacute atribuiacuteda ao cavaleiro Henrique manipulando as fontes histoacutericas que falam de engenhos militares em competiccedilatildeo entre os diferentes grupos eacutetnicos ou destacam ldquoum engenheiro italiano natural de Pisardquo36 O discurso profeacutetico de superioridade cultural deste cavaleiro revela os moti-vos desta escolha

Grandes satildeo as vantagens que a Portugal adviratildeo de imitar neste como noutros casos o que na Europa se vai fazendo de mais moderno ainda que ao princiacutepio experimenteis dificuldades em meter na cabeccedila as tecnologias novas eu por mim sei da construccedilatildeo das tais torres o suficiente para os naturais daqui (hellip) (251)

131Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Groszlige Vorteile sind Portugal gewiszlig wenn es in diesem wie in anderen Faumlllen nachahmt was man in Europa an houmlchst modernen Dingen tut mag es euch anfaumlnglich auch schwerfallen die neuen Techniken in euren Kopf hinein-zukriegen ich meinerseits weiszlig vom Bau besagter Tuumlrme hinreichend viel um die hiesigen Eingeborenen zu unter-richten () (305)

Mesmo a traduccedilatildeo alematilde transmite a ideia de que a fala do cavaleiro Henrique perante o primeiro rei portuguecircs conteacutem uma paroacutedia do discurso poliacutetico actual que natildeo se cansa de propagar a imitaccedilatildeo da Europa avanccedilada representada pela capacidade eco-noacutemica e tecnoloacutegica de Alemanha em competiccedilatildeo com outras na-ccedilotildees Ao mesmo tempo projecta-se ndash apresentado como verdade de fora ndash a auto-imagem humilhante dos ldquonaturaisrdquo37 como matildeo-de--obra sem formaccedilatildeo agrave mercecirc das decisotildees de governantes que pac-tuam com os estrangeiros (252) como condiccedilatildeo da proacutepria geacutenese nacional No entanto a derrota da torre tatildeo bem construiacuteda que conduz ateacute agrave morte do seu construtor faz surgir a criacutetica dos ldquoen-genhos estrangeiros que tanto podem estar a favor como contrardquo (316) parodiando-se assim tanto a lsquolenda de auxiacuteliorsquo e a atitude colonizadora como o projecto portuguecircs de modernizaccedilatildeo europeia (Grossegesse 1995 228)

Reservando uma anaacutelise da constelaccedilatildeo transcultural entre o ca-valeiro alematildeo Henrique a sua ldquobarregatilderdquo Ouroana38 e o soldado Mogueime para outra ocasiatildeo centramo-nos num aspecto de jogo intertextual que ainda recebeu pouca atenccedilatildeo Face agrave ausecircncia do episoacutedio da torre moacutevel e da personalidade de Henrique de Bona na epiacutestola dirigida a Osberno eacute significativo que o romance sara-maguiano invente ldquoapontamentos para a carta de Osbernordquo (308) contendo estes em todo pormenor a histoacuteria do cavaleiro Henri-que A explicaccedilatildeo psicanaliacutetica de Ersatz para esta escrita do Frei Rogeiro39 tambeacutem eacute vaacutelida para o revisor Raimundo que insere na sua reescrita do Cerco de Lisboa a histoacuteria da conquista amorosa de Ouroana por Mogueime possibilitada pela morte do cavaleiro

132Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

alematildeo que espelha ndash atraveacutes dos tempos ndash a sua proacutepria lsquoconquis-tarsquo de Maria Sara

Com a ficccedilatildeo do texto apoacutecrifo inaugura-se uma hibridizaccedilatildeo transcultural das proacuteprias fontes histoacutericas possibilitando um amalgamar das narrativas dos cruzados com a Histoacuteria nacional e o lendaacuterio portuguecircs que culmina na releitura dos milagres do cava-leiro Henrique em simultacircneo com os milagres de Santo Antoacutenio o padroeiro mais popular de Lisboa A intersecccedilatildeo de milagres de ambos pelas leituras simultacircneas de Maria Sara e Raimundo eacute um acto que subverte tanto a procura da verdade histoacuterica como o conceito de identidades delimitadas por territoacuterio sangue e liacutengua Numa espeacutecie de metalepse o proacuteprio Frei Rogeiro apoacutes ter com-pilado ldquoos apontamentos que havia tomado durante uma volta que dera por todos os arraiaisrdquo (331) participa no episoacutedio milagroso ldquoComo o cavaleyro Amrique apareccedileo em sonhos a hum homem botildeo e como lhe disse que soterasem seu escudeiro a par delerdquo (Croacute-nica 51 cf Indiculum 84-85) cumprindo o papel daquele homem bom natildeo identificado

Mais significativo nesta leitura de milagres transformada em reescrita paroacutedica eacute o destaque atribuiacutedo agrave questatildeo de identida-des processos de deslocaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo culminando na trans-formaccedilatildeo de um milagre do cavaleiro Henrique numa espeacutecie de contra-mito da origem da liacutengua portuguesa ao narrar o milagre dos dois homens surdos-mudos que se deitaram ao lado do moi-mento do cavaleiro (Indiculum 83-84 Croacutenica 50-51) realccedila-se a incerteza da identidade deles ldquotinham vindo na frota poreacutem natildeo se sabe se ingleses aquitanos bretotildees flandrenses ou colonen-sesrdquo (335) Estando os dois homens assim jazendo ldquoadormeceram ambos e apareceu-lhes em sonho logo o cavaleiro Henrique (hellip) e falou agravequeles mancebosrdquo (336) ndash natildeo sabemos em que liacutengua ndash anunciando a sua cura de duvidoso efeito

(hellip) e eles acordando acharam que podiam ouvir e falar tambeacutem poreacutem falavam como gagos e de maneira que natildeo se entendia que liacutengua estavam falando se a dos ingleses

133Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ou aquitanos ou bretotildees ou flandrenses ou colonenses ou conforme natildeo poucos afirmavam a liacutengua dos portu-gueses (336)

Esta manipulaccedilatildeo natildeo de fontes histoacutericas mas de uma len-da convida para uma leitura metadiscursiva em vez de ldquocom voz chlara (hellip) contar a todo o povo o milagre que Deos em eles fizerardquo (Croacutenica 51) os dois ficam gagos No entanto o problema natildeo consiste em entender o que eacute que eles dizem mas em identificar a liacutengua que eles falam Nesta leitura o milagre reinterpretado enfa-tiza a visatildeo de uma hibridizaccedilatildeo das liacutenguas e das identidades no entanto consciente da imperfeita capacidade comunicativa que eacute aplicaacutevel agraves questotildees de revisatildeo e traduccedilatildeo

Tal como o revisor Raimundo Silva dentro da ficccedilatildeo o tradutor reescreve um texto anterior no entanto noutra liacutengua e para um leitor com outro horizonte cultural A procedecircncia das fontes histoacute-ricas e a apropriaccedilatildeo do cavaleiro Henrique pelo discurso da iden-tidade portuguesa demonstram a ineficaacutecia das definiccedilotildees puras de identidade e alteridade Em vez da tentativa de uma reproduccedilatildeo de uma liacutengua na outra no fundo irrealizaacutevel a visatildeo da hibridiza-ccedilatildeo das liacutenguas e identidades advoga uma recriaccedilatildeo naturalmente sempre parcial e imperfeita daquela heterogeneidade que Histoacuteria do Cerco de Lisboa exibe ao narrar a procura de uma ldquoverdaderdquo que ldquonatildeo pode ser mais do que uma cara sobreposta agraves infinitas maacutescaras variantes (hellip)rdquo (26) Para tal activa-se ldquooutro tipo de relaccedilotildees entre os elementos (hellip) porque as coerccedilotildees impostas pelas liacutenguas levam a diferentes possibilidades de contextualizaccedilotildees de remissotildees de encadeamentos de atribuiccedilatildeo de valores entre os elementosrdquo (Rodrigues 205) Se o romance reflecte claramente a diffeacuterance (Derrida 1967) como princiacutepio universal40 destacando os processos de traduccedilatildeo e reescrita este princiacutepio deve ser vaacutelido tambeacutem para a proacutepria traduccedilatildeo como propotildee Cristina Carneiro Rodrigues na continuaccedilatildeo de Rosemary Arojo (1993)

134Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

O original vive sobrevive na e pela sua proacutepria transfor-maccedilatildeo produzida pela leitura A traduccedilatildeo natildeo transporta uma essecircncia natildeo troca ou substitui significados dados prontos em um texto por significados equivalentes em outra liacutengua A traduccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo em que o laquotexto originalraquo se daacute por sua proacutepria modificaccedilatildeo em sua trans-formaccedilatildeo (Rodrigues 206)

O romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa interrelaciona esta con-diccedilatildeo de cada texto ser texto de textos transferidos traduzidos de outros textos em contextos histoacutericos sempre diferentes com a criacutetica da lsquoorigemrsquo da identidade individual e colectiva no sentido de transculturalidade e da ldquoculturersquos hibridityrdquo (Bhabha 1989 38) ambas com base expliacutecita na diffeacuterance Se reactivarmos a teoria de Jean Ricardou (1973) relativamente ao nouveau roman podemos dizer que a aventura da leitura escrita do revisor prefigura uma aventura semelhante do tradutor Tal como o revisor transformado em tradutor e autor ele transmite uma Histoacuteria do Cerco de Lis-boa recriada para outro leitor neste caso um leitor alheio natildeo soacute agrave narraccedilatildeo tradicional desta histoacuteria num discurso identitaacuterio mas tambeacutem agrave integraccedilatildeo da sua identidade cultural neste discurso Isto torna a traduccedilatildeo deste romance uma aventura de leitura e reescrita em certa medida jaacute prevista na Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Se no processo de traduccedilatildeo o tradutor ou tradutora tem que necessariamente tomar o lugar do autor e se apossar de seu texto para que esse possa sobreviver em outra liacutengua natildeo haacute como eliminar esse momento de usurpaccedilatildeo e con-quista que a reflexatildeo desconstrutivista flagra e desmascara (Arrojo 1993 82)

Curiosamente Rosemary Arrojo emprega a mesma metaacutefora de conquista utilizada para a aventura de Raimundo Silva que abrange a conquista amorosa de Maria Sara41 Eacute precisamente a mulher

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

113Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

mundo Silva o protagonista deste romance partindo de um ldquonatildeordquo ldquoOs cruzados Natildeo auxiliaratildeo os portugueses a conquistar Lisboardquo (Saramago 50) A atitude de des-narrar que produz a indeter-minaccedilatildeo relativamente agrave versatildeo supostamente veriacutedica dos factos manifesta-se na problematizaccedilatildeo das fontes e no uso do futuro ao falar sobre os acontecimentos do ano de 1147 partindo desta ne-gaccedilatildeo expliacutecita que o revisor introduz no livro de um historiador7 antes da sua publicaccedilatildeo sem possuir nenhuma autoridade para este acto (Grossegesse 1996 810) Portanto natildeo soacute o discurso mas tambeacutem a proacutepria acccedilatildeo deste romance questionam os conceitos de identidade cultural original e texto original

Assumindo aos poucos a tarefa de uma reescrita com base no ldquonatildeordquo Raimundo procura uma ldquofonte limpardquo lamentando a ldquoimprecisatildeo dos dadosrdquo e a ldquopropagaccedilatildeo alucinada das notiacuteciasrdquo dando-se a ldquoproliferaccedilatildeo das proacuteprias fontes segundas e terceirasrdquo que ele compara com a ldquomultiplicaccedilatildeo de esporosrdquo (124) e ndash numa analogia com a actualidade ndash com a ldquorepeticcedilatildeo variada nas notiacutecias dos jornaisrdquo (Saramago 125) A procura da origem da nacionali-dade entretece-se com a procura do texto da origem revelando-se cada vez mais a impossibilidade de encontrar pureza identitaacuteria nem existe uma identidade-fonte nem um texto-fonte porque am-bas as noccedilotildees colocariam cultura e escrita fora de uma evoluccedilatildeo ou discursividade histoacuterica Ora se a ldquoverdaderdquo da origem e o seu discurso uniacutevoco ficam desconstruiacutedos posiccedilatildeo jaacute anunciada pela epiacutegrafe tirada de um Livro dos Conselhos imaginaacuterio8 como pode haver entatildeo uma traduccedilatildeo deste romance no entendimento tradicional que se baseia na lsquoverdadersquo de um texto-fonte e procura a consistecircncia comparaacutevel de um texto-alvo

Eacute precisamente a alternativa imaginada de uma conquista de Lisboa sem recorrer ao auxiacutelio de estrangeiros que expotildee a vulne-rabilidade do lsquoexcesso identitaacuteriorsquo impliacutecita na Histoacuteria nacional quando se fala da ldquoajuda de cruzados dando agrave participaccedilatildeo deles um valor instrumental quando seria mais correcto dizer que Lis-boa foi conquistada com a ajuda dos portuguesesrdquo (Caragea 224) Na procura de minimizar o papel da participaccedilatildeo estrangeira jaacute

114Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

bem visiacutevel na Croacutenica de D Afonso Henriques (1632) de Frei Antoacutenio Brandatildeo atraveacutes de uma compilaccedilatildeo comentada de fon-tes chegou-se de facto no Estado Novo ateacute agrave sua negaccedilatildeo num texto de Joseacute Augusto de Oliveira (1940) No entanto esta revisatildeo nacionalista natildeo conseguiu alterar a presenccedila jaacute sedimentada dos cruzados no imaginaacuterio portuguecircs etnicamente heterogeacuteneos no entanto unidos aos portugueses por serem tambeacutem eles cristatildeos e hostis aos muccedilulmanos Neste sentido a representaccedilatildeo do encontro com os cruzados eacute significativa Na Croacutenica de Portugal de 1419 citada no romance sob o tiacutetulo anterior Croacutenica dos Cinco Reis de Portugal9 no capiacutetulo ldquoComo elrey dom Afonso se ordenou de ir ccedilerquar Lixboa e das jentes estrangeyras que levou em sua ajudardquo encontramos a seguinte descriccedilatildeo

(hellip) moverom em aquele tempo muytas jentes de Ingraterra e dAlemanha e de Framccedila e vierom em muyto grande frota pelo mar em guisa que achamos espiacuterito que erom oytenta velas E vindo todolas naos de mar em fora busquar terra agrave roqua de Syntra elrey que estava em ccedilima no castelo com seus fidalguos devisaram-nos e quando virom tatildeo grande frota como aquela foram muy espantados E elrey man-dou loguo quatro cavaleyros que fossem agrave ribeyra saber que gemtes erom aquelas (hellip) E os cavaleyros pergunta-ram que gemtes erom e os das naos lhe disserom que erom christatildeos que partirom de suas terras e vinhom agraves Espanhas para guerear contra os mouros por fazer serviccedilo a Deos (Croacutenica 47)

A chegada dos estrangeiros cuja forccedila militar espanta insinua uma espeacutecie de invasatildeo amigaacutevel nas ldquoEspanhasrdquo logo funciona-lizada pela Histoacuteria nacional como daacutediva divina para a geacutenese da identidade portuguesa de grande coesatildeo forccedila e predestinaccedilatildeo jaacute afirmadas pelo milagre de Ourique Atraveacutes da reinvenccedilatildeo dos actores histoacutericos e dos seus discursos o romance saramaguiano nega de uma forma paroacutedica o conceito de identidade cultural

115Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que se define na tradiccedilatildeo herderiana atraveacutes do antagonismo entre cultura proacutepria e alheia Como mostra a Croacutenica de 1419 a iden-tidade alematilde tambeacutem participa no Cerco de Lisboa integrando--se na categoria heterogeacutenea dos estrangeiros do lado colonizador superiores natildeo soacute relativamente aos mouros mas tambeacutem aos co-lonizadores autoacutectones que ao consentir ou adoptar a ideologia importada da cruzada se revelam em certa medida tambeacutem colo-nizados Na noccedilatildeo da milagrosa invasatildeo amigaacutevel de estrangeiros que vinham aqui ldquopara guerear contra os mourosrdquo daacute-se azo ao excesso identitaacuterio que se sobrepotildee agrave contra-imagem humilhante de um papel meramente secundaacuterio de anfitriatildeo e ajudante numa conquista de Lisboa liderada pelos cruzados por sua vez missatildeo menor e de passagem no seio de um contexto maior o da Segunda Cruzada (1147-49)10

Um romance que natildeo soacute reescreve de uma forma paroacutedica a origem da configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica res-ponsaacutevel do excesso identitaacuterio portuguecircs mas tambeacutem sugere lsquolei-turasrsquo anacroacutenicas da actualidade portuguesa ainda caracterizada pelo dilema deste mesmo excesso identitaacuterio como comprova o en-saio de Pacheco Pereira (2006) eacute difiacutecil de traduzir porque implica uma operaccedilatildeo complexa de mediaccedilatildeo cultural no sentido de ldquocross--linguistic cultural practice involving recontextualizationrdquo (House 2002 97) Ilustramos esta dificuldade com um episoacutedio do livro do historiador lido por Raimundo Silva antes de introduzir o ldquonatildeordquo

(hellip) agora o historiador embandeirou o estilo para tratar da grande discoacuterdia que se levantou entre os cruzados (hellip) sobre se deveriam ou natildeo ajudar os nossos portugueses a tomar Lisboa se ficariam aqui ou seguiram como previsto para a Terra Santa onde os estava esperando Nosso Senhor Jesus Cristo sob os ferros turcos Argumentavam aqueles a quem seduzia a ideia de ficar que lanccedilar fora da cidade a estes mouros e fazecirc-la cristatilde seria tambeacutem serviccedilo de Deus contestavam os contraacuterios que se esse era serviccedilo de Deus serviccedilo menor seria e que cavaleiros tatildeo principais como

116Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

ali todos se prezavam de ser tinham por obrigaccedilatildeo acudir aonde mais trabalhosa fosse a obra natildeo neste cu do mundo entre labregos e tinhosos que uns deviam ser os mouros e outros os portugueses poreacutem natildeo o averiguou o historia-dor talvez por natildeo valer a pena de escolher entre os dois insultos (Saramago 47)

(hellip) nun uumlbt sich der Historiker in hohem Stil um den gro-szligen Zwist darzulegen der sich unter den Kreuzfahrern () entspann stand doch die Frage ob sie unseren Portugiesen bei der Einnahme Lissabons helfen sollten oder nicht ob hier verbleiben oder aber wie vorgesehen weiterziehen ins Heilige Land wo in tuumlrkischen Fesseln Unser Herr Je-sus Christus ihrer harrte Es argumentierten jene die am liebsten hiergeblieben waumlren die Mauren aus dieser Stadt treiben und aus ihr einen Christenhort zu machen sei glei-chermaszligen ein gottdienliches Werk und die anderen hiel-ten dagegen wenn gottdienliches Werk dann doch wohl ein minderes so hehre Ritter wie alle hier es zu sein ver-meinten haumltten die Pflicht dorthin zu eilen wo das Werk muumlhevoller sei nicht wie in diesem Weltenwinkel unter Bauersleuten und Wichten gemeint waren wohl mit den ei-nen die Mauren und mit den anderen die Portugiesen doch unterlieszlig der Historiker weitere Ergruumlndung vielleicht weil beides Schmaumlhworte waren (55)

Seja por entender ldquoembandeirar o estilordquo num sentido estrito em vez de intuir a subversatildeo da escrita pelas vozes citadas no sentido da polifonia bakhtiniana11 seja por obedecer a um conceito do politicamente correcto a versatildeo alematilde ldquoWeltenwinkelrdquo evita o equivalente ldquoArsch der Weltrdquo da expressatildeo escatoloacutegica ldquocu do mundordquo estereotipada no discurso da identidade portuguesa do seacute-culo XX Tambeacutem suaviza os insultos que expressam a superiori-dade colonizadora dos cruzados natildeo soacute relativamente aos mouros mas tambeacutem aos portugueses a traduccedilatildeo inofensiva de ldquoBauers-leuterdquo e ldquoWichterdquo anula a semacircntica insultuosa de ldquolabregosrdquo12 e

117Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ldquotinhososrdquo Com isto atenua-se a atitude de arrogacircncia dos ldquoca-valeiros tatildeo principaisrdquo que natildeo acham necessidade de diferenciar entre portugueses e mouros A traduccedilatildeo natildeo consegue transferir a paroacutedia da identidade portuguesa que dialoga com o leitor impliacute-cito (Iser 1972) do original para o perfil do leitor da traduccedilatildeo de maior afinidade cultural com os cruzados Trata-se de um leitor desprovido (1) da ldquoenciclopeacutedia do mundo portuguecircsrdquo (Caragea 209) e (2) da socializaccedilatildeo no contexto da realidade poliacutetica e social portuguesa dos anos oitenta e noventa com a memoacuteria do 25 de Abril de 1974 (por exemplo impliacutecita no perfil da personagem Mogueime como preacute-figuraccedilatildeo de Salgado Maia)

Esta dupla dificuldade que ndash com o tempo ndash tambeacutem surgi-raacute cada vez mais para o texto-fonte conduz agrave questatildeo do texto comentado que discute Horst Turk (1992) exemplificando-a no romance La reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten de Juan Goytisolo (em reediccedilatildeo comentada a partir de 1985) e na sua traduccedilatildeo alematilde (natildeo comentada) No caso de Histoacuteria do Cerco de Lisboa ainda natildeo existe uma ediccedilatildeo comentada do original Entre as traduccedilotildees a alematilde de Andreas Klotsch (1992) prescinde de comentaacuterio tal como a inglesa de Giovanni Pontiero (1996) que se cinge a um bre-ve prefaacutecio no entanto a romena por exemplo eacute acompanhada por um proacutelogo extenso e notas explicativas da tradutora Mioara Caragea13 Pelo comentaacuterio e pela ausecircncia dele acentuam-se as duas caras de Iano (Januskoumlpfigkeit) da traduccedilatildeo ela representa o texto-fonte e substitui o texto-fonte na literatura-alvo Mais ainda a traduccedilatildeo eacute tambeacutem em todas as literaturas um lugar privilegiado para articular qualidades de diferenccedila14 Destas deliberaccedilotildees surge como questatildeo central a traduccedilatildeo alematilde natildeo comentada da Histoacuteria do Cerco de Lisboa eacute capaz de transmitir a paroacutedia de identidade alteridade cultural (nacional) do texto-fonte

Ao falar do handicap do leitor desprovido da ldquoenciclopeacutedia do mundo portuguecircsrdquo (Caragea 209) prolonga-se a abordagem purista em vez de se repensar tambeacutem esta enciclopeacutedia de forma transcultural Com isto evidencia-se o cruzamento de identidades em constante mudanccedila desde as fontes histoacutericas citadas no lsquolivro

118Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

do historiadorrsquo ateacute agrave proacutepria traduccedilatildeo do romance Jaacute o historiador cujo livro Raimundo Silva revisa concede destaque entre as fon-tes ao ldquoceacutelebre Osbernordquo (Saramago 124) privilegiando assim a narrativa epistolar de um cruzado oriundo da regiatildeo de Norfolk ou Suffolk que participou no Cerco Atualmente eacute considerada ldquotalvez a principal fonte histoacutericardquo (Alves 13) A carta dirigida a uma personalidade inglesa estaacute escrita em latim Por isso Cru-cesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis15 integra natildeo soacute uma visatildeo desde o exterior portanto afastada da construccedilatildeo da Histoacuteria nacional mas tambeacutem um texto noutra liacutengua A proacutepria narrativa marginaliza a identidade portuguesa natildeo soacute no contexto geral do antagonismo entre cruzados (identidade comum francos) e mouros16 mas tambeacutem pela divisatildeo entre por um lado norman-dos e ingleses (no texto a identidade proacutepria) e por outro colo-nenses e flamengos natildeo soacute desunidos na decisatildeo inicial (participar ou natildeo) mas tambeacutem com diferentes comportamentos durante o cerco e no saque da cidade conquistada (Conquista 83) Com estas caracteriacutesticas este texto fornece por um lado bases para uma narraccedilatildeo fundadora da identidade portuguesa desvalorizando sobretudo eticamente a colaboraccedilatildeo dos cruzados e por outro o preacute-texto de uma des-narraccedilatildeo transcultural aproximando-se da historiografia criacutetica mais recente na qual se procede a uma negaccedilatildeo da narrativa fundacional nacional17 As possiacuteveis releitu-ras fundamentam a paroacutedia do sbquoexcesso identitaacuteriorsquo portuguecircs no romance saramaguiano que se centra na retroprojeccedilatildeo anacroacutenica natildeo soacute da categoria de nacional mas tambeacutem da outra da cate-goria de estrangeiro Basta pensarmos no anacronismo das quinas de Portugal (soacute a partir de Sancho I) a substituir o crescente (na realidade invenccedilatildeo do impeacuterio otomano) que despertam a ira do revisor quando chega agraves paacuteginas finais do lsquolivro do historiadorrsquo (41-42) Nada disto se encontra nas fontes Tambeacutem a traduccedilatildeo ldquopassou a corrupta mesquita a puriacutessima igreja catoacutelicardquo (40) en-fatiza um antagonismo identitaacuterio (muccedilulmano cristatildeo) que no texto-fonte fica subentendido ldquopurificatum est templumrdquo ldquofoi purificado o templordquo (Conquista 85) Mais interessante relativa-

119Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

mente ao leitor impliacutecito de traduccedilotildees para as liacutenguas do Centro Norte da Europa eacute o seguinte trecho

O pessoal que veio a esta fala parlamentar eacute todo de portu-gueses natildeo pareceu bem a el-rei servir-se de estrangeiros para o reforccedilo do ultimatum ainda que diga-se de pas-sagem subsistam grandes duacutevidas de que o arcebispo de Braga pertenccedila de facto ao nosso sangue lusitano mas enfim jaacute nesses antigos tempos tinha principiado a fama que mantivemos ateacute hoje de receber bem a gente de fora distribuir-lhes cargos e prebendas e este D Joatildeo Peculiar vaacute laacute pagou-nos multiplicado em serviccedilos patrioacuteticos E se como tambeacutem se diz era mesmo portuguecircs e de Coimbra vejamo-lo como pioneiro da nossa vocaccedilatildeo migratoacuteria da magniacutefica diaacutespora pois toda a sua juventude a passou em Franccedila a estudar devendo notar-se aqui uma acentuada diferenccedila em relaccedilatildeo agraves tendecircncias recentes da nossa emig-raccedilatildeo para aquele paiacutes plutocirct adstrita aos trabalhos sujos e pesados (197-98)

O problema de transmitir o sentido paroacutedico na traduccedilatildeo18 por exemplo da eterna vocaccedilatildeo migratoacuteria bdquounserer migratoris-chen Berufung unserer wundervollen Diasporaldquo (240) culmina na dificuldade de incluir o leitor impliacutecito da traduccedilatildeo na situaccedilatildeo enunciativa isto eacute neste caso ele se deveria rever no lsquoestrangei-rorsquo vindo da Franccedila e indo aleacutem das dicotomias aperceber-se da relatividade das categorias

Eacute significativo que o revisor Raimundo Silva chegue a este tipo de des-narraccedilatildeo atraveacutes de uma criacutetica da traduccedilatildeo que fundamenta o proacuteprio acto de alterar o lsquolivro do historiadorrsquo a partir do ldquonatildeordquo Natildeo eacute tanto o ldquorigor da traduccedilatildeordquo (44) que estaacute em causa mas a sua verossimilhanccedila Precisamente por duvidar dos conhecimentos de latim das capacidades retoacutericas e em geral da cultura de Afon-so Henriques Raimundo Silva considera ldquoa primeira fala averigua-da do nosso rei fundadorrdquo nada menos do que ldquouma absurdidaderdquo

120Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

(43) negando de passagem tambeacutem o uso da liacutengua portuguesa que a tradicional narrativa fundacional de Portugal assume com naturalidade

(hellip) eacute de supor que o real menino aleacutem de explicar-se natu-ralmente em galego latinizaria o quantum satis para poder declamar chegada a hora perante tantos e tatildeo cultos cru-zados estrangeiros a arenga supracitada uma vez que eles de liacutenguas natildeo entenderiam entatildeo mais do que a sua de berccedilo e iguais rudimentos da outra com a ajuda dos frades inteacuterpretes (Saramago 44)

Esta duacutevida sobre a pureza do discurso reacutegio reproduzido na epiacutestola e traduzido pelo historiador torna-se em ldquoleitura paroacutedica (hellip) pela contextualizaccedilatildeo dramaacuteticardquo (Caragea 2003 235) O que Raimundo Silva ldquoem voz alta lecirc como um arauto lanccedilando as pro-clamasrdquo (P 45) ldquosituando portanto a sua reinterpretaccedilatildeo na zona pragmaacutetica da pronuntiatiordquo (Caragea 235) corresponde ipsis verbis com uma ou outra inversatildeo agrave traduccedilatildeo de JA de Oliveira (Conquista 44) A performance retoacuterica natildeo soacute ldquoacaba de inculcar no revisor um sentimento de distanciamento iroacutenico em relaccedilatildeo agraves palavras do reirdquo (Caragea 235) mas questiona sobretudo as noccedilotildees de texto-fonte e traduccedilatildeo fiel ao texto-fonte

Ao aprender que a invisibilidade do tradutor eacute falaz o revisor daacute o primeiro passo para a sua proacutepria visibilidade autoral Assim a ldquometaficccedilatildeo historiograacuteficardquo (Kaufman 1991) nasce directamen-te do dialogismo no sentido bakhtiniano com Joseacute Augusto de Oliveira simultaneamente ele eacute tradutor da epiacutestola publicada em ediccedilatildeo bilingue (1935) e autor da revisatildeo historiograacutefica intitulada ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem con-tar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo apresentada em 1940 Em vez de tomar a epiacutestola ldquodita de Osbernordquo como texto-fonte homogeacuteneo e traduzi-lo do latim como o fez o ldquoproacuteprio autor da Histoacuteriardquo (Saramago 43) facilmente reconheciacutevel como figuraccedilatildeo de Joseacute

121Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Augusto de Oliveira Raimundo Silva duvida natildeo soacute da pureza da fonte e subsequentemente da fidelidade da traduccedilatildeo mas tambeacutem da identidade do autor da epiacutestola Pelo tiacutetulo Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) Narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial da ediccedilatildeo bilingue esta identidade parece uniacutevoca mas natildeo eacute por exemplo Joseacute F Alves (2004) considera ldquobem coe-renterdquo que a primeira linha do texto latino ldquoOsb de Baldr R salutemrdquo indique um Osb de Baldr (Osberno ou Osberto ou Osborne) como destinataacuterio de ldquouma missiva mesmo sobrescrita apenas por um Rrdquo conjecturando-se o nome de Rogeacuterio19 Apor-tuguesando-se o nome Roger para Rogeiro o romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa assume esta suposiccedilatildeo ndash em oposiccedilatildeo ao lsquolivro do historiadorrsquo que considera Osberno um cruzado letrado O frade eacute apresentado na frase que continua a citaccedilatildeo anterior sobre a iden-tidade eacutetnica indefinida de D Joatildeo Peculiar arcebispo de Braga

Quem eacute indubitavelmente estrangeiro mas contado agrave parte por vir em missatildeo especial nem parlamentaacuterio nem homem de guerra eacute aquele frade ruivo e sardento ali a quem ago-ra mesmo ouvimos chamar Rogeiro mas que realmente tem por nome Roger o que deixaria em aberto a questatildeo de ser ele inglecircs ou normando (hellip) (198)

A identidade de Roger Rogeiro embora etnicamente indecisa oferece ndash na traduccedilatildeo para inglecircs e tambeacutem para alematildeo ndash uma afinidade cultural com o leitor impliacutecito reforccedilada pelo fiacutesico in-confundiacutevel noacuterdico ldquothat sandy-haired freckled friarrdquo (Sarama-go 1996 176) bdquojener blonde sommersprossige Paterldquo (241) No romance Frei Rogeiro cumpre o papel de ldquocronistardquo que transpotildee um conjunto multilingue de falas numa escrita coerente e homo-geacutenea Por exemplo no caso do discurso do arcebispo de Braga

Rogeiro logo em abreviado e taquigraacutefico o registou para mais tarde deixando os aformoseamentos oratoacuterios com que

122Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

brindaraacute aquele seu destinataacuterio distante Osberno chama-do laacute onde quer que esteja e quem quer que tenha sido poreacutem jaacute vai introduzindo redondeios de lavra proacutepria fru-tos de inspiraccedilatildeo estimulada (hellip) (200)

Significativamente Roger Rogeiro natildeo eacute tradutor mas ndash tal como o revisor Raimundo Silva ndash portador da consciecircncia de que tudo eacute traduccedilatildeo correspondendo ao latim o privileacutegio da liacutengua veicular

Este Rogeiro natildeo conhece uma palavra de araacutebigo nem de galego mas neste caso natildeo seraacute impedimento a ignoracircncia pois todo o debate vaacute por onde vaacute sempre iraacute dar ao latim graccedilas aos inteacuterpretes e aos tradutores simultacircneos (198)

De facto esta consciecircncia do plurilinguismo caracteriza Cruce-signati anglici epistola de expugnatione olisiponis desde o iniacutecio falando dos cruzados ldquoInter hos tot linguarum populos firmissima concordiae atque amititiaerdquo (Conquista 21) As falas de cruzados portugueses e mouros aparecem ou em citaccedilotildees traduzidas (de ou-tras liacutenguas para latim) ou em liacutengua latina para serem traduzidas no contexto do cerco Ambas satildeo adaptadas a um texto composto conforme as retoacutericas claacutessica e biacuteblica Eacute a proacutepria epiacutestola que refere a necessidade de traduccedilatildeo por exemplo do discurso do bispo do Porto proferido em latim perante a multidatildeo plurilingue dos cruzados reunidos20 Em contraste eacute significativo que o tradutor JA de Oliveira defenda ldquouma versatildeo que sem trair o pensamen-to se libertasse da escravidatildeo da letrardquo em vez de encher ldquoo texto portuguecircs com antigos vocaacutebulos forrageando-os nas velhas croacute-nicas conhecidas dos eruditosrdquo (Oliveira 1935 18) outorgando agrave sua traduccedilatildeo uma missatildeo nacionalista

Assim espero-o todos entenderatildeo este velho monumento da nossa histoacuteria e nesta hora de ressurgimento neste des-

123Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

pertar de energias e rasgar-se de horizontes novos faraacute bem aos portugueses de hoje ouvir falar a alma dos que agrave forccedila de braccedilo com persistecircncia com teimosia com obstinaccedilatildeo e com amor souberam ungir com o proacuteprio sangue os alic-erces desta nossa Paacutetria que eles nos deixaram para a con-servarmos amorosamente digna honrada e livre (Oliveira 1935 19)

Quem afirma assim uma leitura nacionalista de uma epiacutestola no fundo totalmente alheia ao objectivo de alicerccedilar a Histoacuteria nacional esconjura o que natildeo quer ver entregando-se agrave ldquotarefa permanente de nos iludirmosrdquo que critica Pacheco Pereira (2006) no caso das reacccedilotildees ao discurso de Jack Welsh Longe de com-preender a utilidade particular do confronto com a nossa imagem vista de fora JA de Oliveira concebe a sua traduccedilatildeo da epiacutestola estrangeira como contributo agrave legibilidade culturalmente coerente e homogeacutenea do ldquovelho monumento da nossa histoacuteriardquo A fideli-dade da traduccedilatildeo revela-se enganadora atraveacutes da leitura criacutetica de Raimundo Silva Assim a palavra aacuterabe ldquoalgazarrardquo que JA de Oliveira escolheu para traduzir ldquoconclamatiordquo na fala (por sua vez traduzida) de D Afonso Henriques21 evidencia natildeo soacute a homoge-neizaccedilatildeo do plurilinguismo tanto no texto-fonte como na traduccedilatildeo mas tambeacutem ndash numa leitura contraacuteria ndash a crioulizaccedilatildeo da identida-de portuguesa

Acertara D Afonso Henriques em cheio quando prognos-ticou que o exame da sua proposta acabaria em algazarra palavra que sendo aacuterabe de nacionalidade igualmente serve a qualquer gritar e vozear de colonenses flamengos bolon-heses bretotildees escoceses e normandos misturados (47-48)

Vollkommen recht hatte Dom Afonso Henriques mit der Voraussicht sein Vorschlag werde eine algazarra ausloumlsen dieses Wort obzwar arabischer Abkunft ist auch dienlich jedwedes ereiferndes Geschrei und Gekreisch der Koumllner

124Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Flamen Bologneser Bretonen Schotten und Normannen und aller durcheinander zu bezeichnen (56)

Portanto a palavra ldquoalgazarrardquo sugere nesta leitura transcul-tural do discurso reacutegio a relaccedilatildeo ambivalente galega aacuterabe como fundadora Esta insinuaccedilatildeo integra-se numa paroacutedia do discurso da identidade nacional nomeadamente na sua projecccedilatildeo anacroacutenica para a Idade Meacutedia ndash um aspecto que fica esbatido na traduccedilatildeo ale-matilde22 Uma leitura semelhante sugere a mensagem do rei de Eacutevora aos ldquoseus irmatildeos de Lisboardquo cuja traduccedilatildeo comentada ao portu-guecircs actual brinca com a identidade estereotipada de alentejanos

Aguentem aiacute os malvados que a minha tropa de alentejanos jaacute vai a caminho dizemo-lo assim por vir essa gente de aleacutem do Tejo ficando demonstrado de caminho que jaacute havia alentejanos antes de haver portugueses (176)

Para o leitor da traduccedilatildeo a existecircncia historicamente invertida de ldquoAlentejanerrdquo antes dos ldquoPortugiesenrdquo natildeo possui significado centrando-se a atenccedilatildeo na identificaccedilatildeo de ldquodiese Leute von jenseits des Tejordquo como ldquoAlentejanerrdquo (212) De facto a epiacutestola latina cita mensagens entre os mouros de Lisboa e o rei de Eacutevora desta-cando a ajuda de um inteacuterprete para poder incorporaacute-las no texto23 Obviamente a missiva reacutegia natildeo menciona alentejanos e transmite precisamente o contraacuterio a recusa do envio de tropas alegando a existecircncia de ldquotreacuteguas com o rei dos portuguesesrdquo (Conquista 64)

Estas manipulaccedilotildees mostram que Raimundo Silva eacute cada vez mais consciente da leitura escrita como cruzamento entre dimen-satildeo linguiacutestica e cultural no eixo temporal vaacutelido para a questatildeo da traduccedilatildeo24 no sentido das reflexotildees de Andreacute Lefevere (1992) Horst Turk (1992) e Susan Bassnett (1998) que analisam o texto tra-duzido ldquoembedded in its network of both source and target cultural signsrdquo (Bassnett9) Transcendo uma definiccedilatildeo estaacutetica de ldquocultural signsrdquo e da ldquohybridizationrdquo de Homi Bhabha podemos falar da

125Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

traduccedilatildeo como crioulizaccedilatildeo (Stoll 2005) com base em muacuteltiplos processos de mudanccedila sincroacutenicos e diacroacutenicos A paroacutedia da geacutenese da identidade portuguesa atraveacutes da criacutetica da pureza do texto-fonte (e da sua traduccedilatildeo) coincide com posiccedilotildees da historio-grafia moderna a conquista de Lisboa natildeo significa ndash conforme a Histoacuteria nacional tradicional ndash a vitoacuteria dos portugueses alcanccedilada com ajuda dos cruzados sobre os mouros significa isso sim a im-posiccedilatildeo militarmente bem sucedida do novo paradigma de pureza cristatilde implantada atraveacutes da ideologia colonizadora da Segunda Cruzada (114748) ao velho paradigma da convivecircncia segregada mais ou menos paciacutefica entre muccedilulmanos cristatildeos e judeus em estruturas poliacuteticas e sociais localmente autoacutenomas sob domiacutenio aacuterabe (Marques 68) O romance saramaguiano insinua esporadi-camente a crioulizaccedilatildeo da identidade portuguesa mas natildeo concede potencial identitaacuterio agraves populaccedilotildees cristatilde (moccedilaacuterabe) e judaica de Al-Usbuna sacrificadas por uma fracccedilatildeo dos cruzados ldquologo que o saque e o massacre exorbitaram das possibilidades de controlordquo (Marques 68) como conta em pormenor a epiacutestola Naturalmente destaca-se o bom comportamento dos ingleses e normandos (identi-dade de quem escreve) em contraste com o massacre e a devastaccedilatildeo perpetrados pelos colonenses e flamengos que ateacute matam o bispo da cidade moura25

Portanto o des-narrar saramaguiano natildeo empreende um deslo-camento transcultural tatildeo audaz como por exemplo La reivindi-cacioacuten del conde don Juliaacuten (1970) de Juan Goytisolo26 Naquele romance o narrador recupera atraveacutes da sua identificaccedilatildeo com o miacutetico lsquotraidorrsquo D Juliatildeo a identidade aacuterabe e moccedilaacuterabe termi-nando com o anuacutencio do lado aacuterabe ldquomantildeana seraacute otro diacutea la invasioacuten recomenzaraacuterdquo No entanto existe em Histoacuteria do Cerco um almuadem cego que preenche claramente o lugar do bispo anti-quiacutessimo a ser degolado como aquele por ldquoum soldado cristatildeo de mais zelosa feacuterdquo (348) A sua cegueira paradoxalmente visionaacuteria da Lisboa moura sitiada eacute contraacuteria daquela de ldquoira sanguinaacuteriardquo do seu assassino identificado como ldquoo cruzado Osberno soacute igual de nomerdquo (Saramago 40) introduzindo-se assim deliberadamente

126Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

uma homoniacutemia com o Osberno da epiacutestola (ainda tratado ndash errone-amente ndash como o seu autor) novamente recordada em ldquoo cruzado Osberno poreacutem natildeo o talrdquo27

Esta duplicaccedilatildeo de identidades com o mesmo nome adverte o leitor para ficar atento perante redefiniccedilotildees identitaacuterias como por exemplo dos sitiadores chamados ldquoos francos e os galegosrdquo28 sob comando dos cruzados e ldquoIbn Arrinque o Galegordquo (74) na perspetiva dos mouros recriada na mente de Raimundo Silva O almuadem na sua torre complementa ndash atraveacutes dos tempos ndash a posiccedilatildeo de Raimundo Silva ldquoque hoje quase tatildeo cego se vecirc como elerdquo (33) Significativamente o revisor apercebe-se ldquode que mora no preciso lugar onde antigamente se abria a Porta de Alfofardquo configurando-se assim topograficamente a incerteza (que corresponde ao des-narrar) ldquose Raimundo Silva eacute um si-tiado ou um sitiante vencedor futuro ou perdedor sem remeacutediordquo (75) Nos seus passeios por Lisboa ele revivifica uma cidade dividida entre zonas dos sitiados e dos atacantes entretecendo ldquodois temposrdquo (242) passado e presente29 A ambiguidade nos eixos de lugar e tempo transfere-se natildeo soacute agrave histoacuteria aplicando o tema da cegueira ateacute ao processo da sua recepccedilatildeo ldquo(hellip) esta [histoacuteria] de agora comeccedilada soacute poderaacute lecirc-la quem os olhos ti-ver luacutecidos e abertos natildeo um cegordquo (243) transfere-se tambeacutem agrave liacutengua na qual estaacute escrita o texto insinuando-se um regresso a outra fonte nas duas dimensotildees de identidade cultural e texto que evoca aquela transformaccedilatildeo da liacutengua castelhana em aacuterabe realizada nas uacuteltimas duas paacuteginas de Juan sin Tierra (1975) de Juan Goytisolo ldquo(hellip) as matildeos de Raimundo Silva pousam sobre a uacuteltima folha escrita umas linhas negras indecifraacuteveis talvez de araacutebiga liacutengua natildeo estivemos atentos agrave voz do almuademrdquo (Sara-mago 243) Na accedilatildeo mediadora do revisor confluem a voz aacuterabe do almuadem e a escrita latina do cleacuterigo Roger Na reescrita inicialmente soacute mental do lsquolivro do historiadorrsquo Raimundo Sil-va procura uma reconstruccedilatildeo contextualizada de ambos os lados (cristatildeos muccedilulmanos) por exemplo corrigindo o significado da cegueira do almuadem

127Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

() natildeo foi erro escrever porque enfim escrito estaacute que era cego o almuadem O historiador soacute fala de minarete e muezim talvez ignorasse que quase todos os almuadens naquele tempo e por muito tempo depois eram cegos (29

() es war kein Fehler und geschrieben ist es nun mal daszlig der Muezzin blind war Der Historiker der da lediglich von Minarett und Muezzin schreibt wuszligte vielleicht nicht daszlig fast alle Muezzins damals und noch lange danach blind waren (32)

O revisor identifica ldquominareterdquo e ldquomuezimrdquo como palavras li-gadas ao orientalismo dos seacuteculos XVIII e XIX Apesar de ser um fenoacutemeno transnacional europeu o orientalismo teve maior atracccedilatildeo na cultura francesa que espalhou para outras liacutenguas eu-ropeias as vozes aacuterabes importadas pela via oriental o Impeacuterio Otomano (Turquia) na sua expansatildeo europeia a partir do seacuteculo XIV (ponto alto conquista de Constantinopla em 1453) tinha dei-xado vestiacutegios nomeadamente na cultura austriacuteaca no acircmbito dos Tuumlrkenkriege (ponto de viragem Cerco de Viena em 1683) que serviram de base para o orientalismo francecircs Raimundo Silva pre-fere o uso da palavra ldquoalmuademrdquo de maior e mais antiga presen-ccedila na liacutengua portuguesa30 importada directamente e recuperada no Romantismo pelas Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano tal como ldquoalmaacutedenardquo em vez de ldquominareterdquo (Machado 62) A tra-duccedilatildeo alematilde natildeo assinala esta tentativa de maior lsquopurezarsquo histoacuterica no discurso sobre a identidade moura mantendo a denominaccedilatildeo invariaacutevel ldquoMuezzinrdquo embora exista a alternativa lexical menos usada de ldquoMuaddhinrdquo (Brockhaus 229)31

No contexto do pensamento poacutes-colonial esta reaquisiccedilatildeo dos processos de imaginaccedilatildeo depois das imposiccedilotildees coloniais europeias que comeccedila em princiacutepio pelo Romantismo (Herculano Garrett) revela a raiz histoacuterica da especificidade relacional portuguesa co-lonizada colonizadora isto eacute a harmonizaccedilatildeo mais ou menos voluntaacuteria da poliacutetica existente de poder regional na Peniacutensula Ibeacute-

128Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

rica com a ideologia colonizadora das cruzadas Para aleacutem de uma subtil reivindicaccedilatildeo da identidade moura Histoacuteria do Cerco de Lisboa se cinge quase unicamente agrave revisatildeo da identidade conquis-tadora na qual entra a identidade alematilde ndash um aspecto importante para a traduccedilatildeo Assim estabelece-se uma certa inversatildeo embora natildeo perfeita de identidade alteridade em geral o leitor alematildeo estaacute pouco familiarizado com a geacutenese da identidade portuguesa e ignora a configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica que eacute responsaacutevel pelo excesso identitaacuterio desconhecendo tambeacutem a participaccedilatildeo bem documentada de actores vindos de terras alematildes Eles aparecem no romance logo quando Raimundo Silva comeccedila a reler a epiacutestola na sua procura da ldquofonte limpardquo

(hellip) a informaccedilatildeo eacute de boa origem diz-se que directamente do ceacutelebre Osberno e assim podemos ficar a saber que es-tava o conde Arnoldo de Aarschot o qual comandava os guerreiros vindos de diversas partes do impeacuterio germacircni-co que estava Cristiano de Gistell chefe dos flamengos e bolonheses (hellip) (124)

Seguindo a teia intertextual regressamos ao texto-fonte que em contraste com a citada Croacutenica de Portugal de 1419 narra na perspectiva de uma expediccedilatildeo militar

Igitur apud portum de Dertemunde diversarum nationum et morum et linguarum gentes navibus cicrciter CLXIIII convenere Horum omnium trifariam partitur exercitus Sub comite Arnoldo de Arescot nepote Godefridi ducis a romani imperii partibus secedit exercitus Sub Christiano de Gistello flandrenses et bononenses32

A mudanccedila para ldquoimpeacuterio germacircnicordquo (124) corresponde agrave nota explicativa do tradutor JA de Oliveira33 No entanto natildeo se expli-

129Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ca a substituiccedilatildeo de ldquobononensesrdquo por ldquobolonhesesrdquo Naturalmen-te as duas mudanccedilas reflectem-se na traduccedilatildeo alematilde que toma o romance saramaguiano como texto-fonte

(hellip) Information aus verlaumlszliglicher Quelle dem Vernehmen nach direkt vom beruumlhmten Osberno persoumlnlich und also koumlnnen wir uns vergewissern daszlig da Graf Arnoldo de Aar-schot zugegen war der die aus verschiedenen Regionen des deutschen Kaiserreiches herbeigestroumlmten Krieger befehlig-te und Cristiano de Gistell der den Flamen und Bologne-sern vorstand (hellip) (150)

Na traduccedilatildeo alematilde nomes proacuteprios estrangeiros natildeo satildeo lsquore-patriadosrsquo nem o proacuteprio Osberne nem Arnold ou Christian que ficam todos na grafia romacircnica No entanto ldquoimpeacuterio germacircni-cordquo passa para ldquodeutsches Kaiserreichrdquo uma traduccedilatildeo que insinua uma projecccedilatildeo anacroacutenica do seacuteculo XIX (refundaccedilatildeo do Heiliges Roumlmisches Reich Deutscher Nation como Deutsches Kaiserreich em 1871) natildeo pretendida no texto-fonte Naturalmente a traduccedilatildeo alematilde ignora a possibilidade latente jaacute apagada no texto sarama-guiano de encontrar a identidade alematilde nos ldquobononensesrdquo mal transcritos em ldquobolonhesesrdquo34 Esta transcriccedilatildeo defeituosa surpre-ende porque eacute a personalidade do cavaleiro Henrique de Bona ausente na epiacutestola35 que teve o maior relevo individual na histo-riografia portuguesa entre os ldquosamtos cavaleyros martiresrdquo

Nesta tomada de Lisboa morerom alguns cavaleyros como martires e depois faziam muytos milagres amtre os quaes foy hum cavaleyro chamado Amriqe alematildeo o qual era de hũa vila que chamom Bona posta jumto de Colonha o qual foy enterado em Sam Viccedilemte honde fazia muytos milagres (hellip) (Croacutenica 50)

130Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Merecendo destaque na histoacuteria da fundaccedilatildeo do mosteiro de Satildeo Vicente com episoacutedios de acccedilatildeo milagrosa depois de morto (Indiculum 83-85 Croacutenica 50-52) Henrique de Bona torna-se uma personagem da Histoacuteria portuguesa digna de entrar nrsquo Os Lu-siacuteadas (VIII 18) Procede-se a uma apropriaccedilatildeo do estrangeiro colonizador o alematildeo Henrique torna-se depois de ter vertido ldquode gram voontade o seu sangue antre os mouros pola paixom do Nosso Salvador Jesu Cristordquo (Indiculum 83) no maior Santo Cavaleiro da Tomada de Lisboa Na Alemanha ele estaacute totalmente desconhecido a natildeo ser no acircmbito da retoacuterica diplomaacutetica bila-teral na qual aparece natildeo como maacutertir mas como fundador dos ldquolaccedilos da amizade secular que liga o povo da Alemanha ao de Por-tugalrdquo (Ehrhardt 11) projectando a ajuda dos cruzados na geacutenese do reino de Portugal numa lsquolenda de auxiacuteliorsquo para todas as eacutepocas posteriores

Numa abordagem criacutetica observamos um duplo branqueamen-to (1) da memoacuteria do saque cruel e devastador da Lisboa moura perpetrado pelos cruzados colonenses e flandrenses e (2) da rela-ccedilatildeo colonizadora entre aliados no contexto da Europa Cingimo--nos no acircmbito deste estudo agrave anaacutelise do episoacutedio da torre moacutevel No romance a ideia da sua construccedilatildeo eacute atribuiacuteda ao cavaleiro Henrique manipulando as fontes histoacutericas que falam de engenhos militares em competiccedilatildeo entre os diferentes grupos eacutetnicos ou destacam ldquoum engenheiro italiano natural de Pisardquo36 O discurso profeacutetico de superioridade cultural deste cavaleiro revela os moti-vos desta escolha

Grandes satildeo as vantagens que a Portugal adviratildeo de imitar neste como noutros casos o que na Europa se vai fazendo de mais moderno ainda que ao princiacutepio experimenteis dificuldades em meter na cabeccedila as tecnologias novas eu por mim sei da construccedilatildeo das tais torres o suficiente para os naturais daqui (hellip) (251)

131Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Groszlige Vorteile sind Portugal gewiszlig wenn es in diesem wie in anderen Faumlllen nachahmt was man in Europa an houmlchst modernen Dingen tut mag es euch anfaumlnglich auch schwerfallen die neuen Techniken in euren Kopf hinein-zukriegen ich meinerseits weiszlig vom Bau besagter Tuumlrme hinreichend viel um die hiesigen Eingeborenen zu unter-richten () (305)

Mesmo a traduccedilatildeo alematilde transmite a ideia de que a fala do cavaleiro Henrique perante o primeiro rei portuguecircs conteacutem uma paroacutedia do discurso poliacutetico actual que natildeo se cansa de propagar a imitaccedilatildeo da Europa avanccedilada representada pela capacidade eco-noacutemica e tecnoloacutegica de Alemanha em competiccedilatildeo com outras na-ccedilotildees Ao mesmo tempo projecta-se ndash apresentado como verdade de fora ndash a auto-imagem humilhante dos ldquonaturaisrdquo37 como matildeo-de--obra sem formaccedilatildeo agrave mercecirc das decisotildees de governantes que pac-tuam com os estrangeiros (252) como condiccedilatildeo da proacutepria geacutenese nacional No entanto a derrota da torre tatildeo bem construiacuteda que conduz ateacute agrave morte do seu construtor faz surgir a criacutetica dos ldquoen-genhos estrangeiros que tanto podem estar a favor como contrardquo (316) parodiando-se assim tanto a lsquolenda de auxiacuteliorsquo e a atitude colonizadora como o projecto portuguecircs de modernizaccedilatildeo europeia (Grossegesse 1995 228)

Reservando uma anaacutelise da constelaccedilatildeo transcultural entre o ca-valeiro alematildeo Henrique a sua ldquobarregatilderdquo Ouroana38 e o soldado Mogueime para outra ocasiatildeo centramo-nos num aspecto de jogo intertextual que ainda recebeu pouca atenccedilatildeo Face agrave ausecircncia do episoacutedio da torre moacutevel e da personalidade de Henrique de Bona na epiacutestola dirigida a Osberno eacute significativo que o romance sara-maguiano invente ldquoapontamentos para a carta de Osbernordquo (308) contendo estes em todo pormenor a histoacuteria do cavaleiro Henri-que A explicaccedilatildeo psicanaliacutetica de Ersatz para esta escrita do Frei Rogeiro39 tambeacutem eacute vaacutelida para o revisor Raimundo que insere na sua reescrita do Cerco de Lisboa a histoacuteria da conquista amorosa de Ouroana por Mogueime possibilitada pela morte do cavaleiro

132Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

alematildeo que espelha ndash atraveacutes dos tempos ndash a sua proacutepria lsquoconquis-tarsquo de Maria Sara

Com a ficccedilatildeo do texto apoacutecrifo inaugura-se uma hibridizaccedilatildeo transcultural das proacuteprias fontes histoacutericas possibilitando um amalgamar das narrativas dos cruzados com a Histoacuteria nacional e o lendaacuterio portuguecircs que culmina na releitura dos milagres do cava-leiro Henrique em simultacircneo com os milagres de Santo Antoacutenio o padroeiro mais popular de Lisboa A intersecccedilatildeo de milagres de ambos pelas leituras simultacircneas de Maria Sara e Raimundo eacute um acto que subverte tanto a procura da verdade histoacuterica como o conceito de identidades delimitadas por territoacuterio sangue e liacutengua Numa espeacutecie de metalepse o proacuteprio Frei Rogeiro apoacutes ter com-pilado ldquoos apontamentos que havia tomado durante uma volta que dera por todos os arraiaisrdquo (331) participa no episoacutedio milagroso ldquoComo o cavaleyro Amrique apareccedileo em sonhos a hum homem botildeo e como lhe disse que soterasem seu escudeiro a par delerdquo (Croacute-nica 51 cf Indiculum 84-85) cumprindo o papel daquele homem bom natildeo identificado

Mais significativo nesta leitura de milagres transformada em reescrita paroacutedica eacute o destaque atribuiacutedo agrave questatildeo de identida-des processos de deslocaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo culminando na trans-formaccedilatildeo de um milagre do cavaleiro Henrique numa espeacutecie de contra-mito da origem da liacutengua portuguesa ao narrar o milagre dos dois homens surdos-mudos que se deitaram ao lado do moi-mento do cavaleiro (Indiculum 83-84 Croacutenica 50-51) realccedila-se a incerteza da identidade deles ldquotinham vindo na frota poreacutem natildeo se sabe se ingleses aquitanos bretotildees flandrenses ou colonen-sesrdquo (335) Estando os dois homens assim jazendo ldquoadormeceram ambos e apareceu-lhes em sonho logo o cavaleiro Henrique (hellip) e falou agravequeles mancebosrdquo (336) ndash natildeo sabemos em que liacutengua ndash anunciando a sua cura de duvidoso efeito

(hellip) e eles acordando acharam que podiam ouvir e falar tambeacutem poreacutem falavam como gagos e de maneira que natildeo se entendia que liacutengua estavam falando se a dos ingleses

133Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ou aquitanos ou bretotildees ou flandrenses ou colonenses ou conforme natildeo poucos afirmavam a liacutengua dos portu-gueses (336)

Esta manipulaccedilatildeo natildeo de fontes histoacutericas mas de uma len-da convida para uma leitura metadiscursiva em vez de ldquocom voz chlara (hellip) contar a todo o povo o milagre que Deos em eles fizerardquo (Croacutenica 51) os dois ficam gagos No entanto o problema natildeo consiste em entender o que eacute que eles dizem mas em identificar a liacutengua que eles falam Nesta leitura o milagre reinterpretado enfa-tiza a visatildeo de uma hibridizaccedilatildeo das liacutenguas e das identidades no entanto consciente da imperfeita capacidade comunicativa que eacute aplicaacutevel agraves questotildees de revisatildeo e traduccedilatildeo

Tal como o revisor Raimundo Silva dentro da ficccedilatildeo o tradutor reescreve um texto anterior no entanto noutra liacutengua e para um leitor com outro horizonte cultural A procedecircncia das fontes histoacute-ricas e a apropriaccedilatildeo do cavaleiro Henrique pelo discurso da iden-tidade portuguesa demonstram a ineficaacutecia das definiccedilotildees puras de identidade e alteridade Em vez da tentativa de uma reproduccedilatildeo de uma liacutengua na outra no fundo irrealizaacutevel a visatildeo da hibridiza-ccedilatildeo das liacutenguas e identidades advoga uma recriaccedilatildeo naturalmente sempre parcial e imperfeita daquela heterogeneidade que Histoacuteria do Cerco de Lisboa exibe ao narrar a procura de uma ldquoverdaderdquo que ldquonatildeo pode ser mais do que uma cara sobreposta agraves infinitas maacutescaras variantes (hellip)rdquo (26) Para tal activa-se ldquooutro tipo de relaccedilotildees entre os elementos (hellip) porque as coerccedilotildees impostas pelas liacutenguas levam a diferentes possibilidades de contextualizaccedilotildees de remissotildees de encadeamentos de atribuiccedilatildeo de valores entre os elementosrdquo (Rodrigues 205) Se o romance reflecte claramente a diffeacuterance (Derrida 1967) como princiacutepio universal40 destacando os processos de traduccedilatildeo e reescrita este princiacutepio deve ser vaacutelido tambeacutem para a proacutepria traduccedilatildeo como propotildee Cristina Carneiro Rodrigues na continuaccedilatildeo de Rosemary Arojo (1993)

134Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

O original vive sobrevive na e pela sua proacutepria transfor-maccedilatildeo produzida pela leitura A traduccedilatildeo natildeo transporta uma essecircncia natildeo troca ou substitui significados dados prontos em um texto por significados equivalentes em outra liacutengua A traduccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo em que o laquotexto originalraquo se daacute por sua proacutepria modificaccedilatildeo em sua trans-formaccedilatildeo (Rodrigues 206)

O romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa interrelaciona esta con-diccedilatildeo de cada texto ser texto de textos transferidos traduzidos de outros textos em contextos histoacutericos sempre diferentes com a criacutetica da lsquoorigemrsquo da identidade individual e colectiva no sentido de transculturalidade e da ldquoculturersquos hibridityrdquo (Bhabha 1989 38) ambas com base expliacutecita na diffeacuterance Se reactivarmos a teoria de Jean Ricardou (1973) relativamente ao nouveau roman podemos dizer que a aventura da leitura escrita do revisor prefigura uma aventura semelhante do tradutor Tal como o revisor transformado em tradutor e autor ele transmite uma Histoacuteria do Cerco de Lis-boa recriada para outro leitor neste caso um leitor alheio natildeo soacute agrave narraccedilatildeo tradicional desta histoacuteria num discurso identitaacuterio mas tambeacutem agrave integraccedilatildeo da sua identidade cultural neste discurso Isto torna a traduccedilatildeo deste romance uma aventura de leitura e reescrita em certa medida jaacute prevista na Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Se no processo de traduccedilatildeo o tradutor ou tradutora tem que necessariamente tomar o lugar do autor e se apossar de seu texto para que esse possa sobreviver em outra liacutengua natildeo haacute como eliminar esse momento de usurpaccedilatildeo e con-quista que a reflexatildeo desconstrutivista flagra e desmascara (Arrojo 1993 82)

Curiosamente Rosemary Arrojo emprega a mesma metaacutefora de conquista utilizada para a aventura de Raimundo Silva que abrange a conquista amorosa de Maria Sara41 Eacute precisamente a mulher

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

114Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

bem visiacutevel na Croacutenica de D Afonso Henriques (1632) de Frei Antoacutenio Brandatildeo atraveacutes de uma compilaccedilatildeo comentada de fon-tes chegou-se de facto no Estado Novo ateacute agrave sua negaccedilatildeo num texto de Joseacute Augusto de Oliveira (1940) No entanto esta revisatildeo nacionalista natildeo conseguiu alterar a presenccedila jaacute sedimentada dos cruzados no imaginaacuterio portuguecircs etnicamente heterogeacuteneos no entanto unidos aos portugueses por serem tambeacutem eles cristatildeos e hostis aos muccedilulmanos Neste sentido a representaccedilatildeo do encontro com os cruzados eacute significativa Na Croacutenica de Portugal de 1419 citada no romance sob o tiacutetulo anterior Croacutenica dos Cinco Reis de Portugal9 no capiacutetulo ldquoComo elrey dom Afonso se ordenou de ir ccedilerquar Lixboa e das jentes estrangeyras que levou em sua ajudardquo encontramos a seguinte descriccedilatildeo

(hellip) moverom em aquele tempo muytas jentes de Ingraterra e dAlemanha e de Framccedila e vierom em muyto grande frota pelo mar em guisa que achamos espiacuterito que erom oytenta velas E vindo todolas naos de mar em fora busquar terra agrave roqua de Syntra elrey que estava em ccedilima no castelo com seus fidalguos devisaram-nos e quando virom tatildeo grande frota como aquela foram muy espantados E elrey man-dou loguo quatro cavaleyros que fossem agrave ribeyra saber que gemtes erom aquelas (hellip) E os cavaleyros pergunta-ram que gemtes erom e os das naos lhe disserom que erom christatildeos que partirom de suas terras e vinhom agraves Espanhas para guerear contra os mouros por fazer serviccedilo a Deos (Croacutenica 47)

A chegada dos estrangeiros cuja forccedila militar espanta insinua uma espeacutecie de invasatildeo amigaacutevel nas ldquoEspanhasrdquo logo funciona-lizada pela Histoacuteria nacional como daacutediva divina para a geacutenese da identidade portuguesa de grande coesatildeo forccedila e predestinaccedilatildeo jaacute afirmadas pelo milagre de Ourique Atraveacutes da reinvenccedilatildeo dos actores histoacutericos e dos seus discursos o romance saramaguiano nega de uma forma paroacutedica o conceito de identidade cultural

115Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que se define na tradiccedilatildeo herderiana atraveacutes do antagonismo entre cultura proacutepria e alheia Como mostra a Croacutenica de 1419 a iden-tidade alematilde tambeacutem participa no Cerco de Lisboa integrando--se na categoria heterogeacutenea dos estrangeiros do lado colonizador superiores natildeo soacute relativamente aos mouros mas tambeacutem aos co-lonizadores autoacutectones que ao consentir ou adoptar a ideologia importada da cruzada se revelam em certa medida tambeacutem colo-nizados Na noccedilatildeo da milagrosa invasatildeo amigaacutevel de estrangeiros que vinham aqui ldquopara guerear contra os mourosrdquo daacute-se azo ao excesso identitaacuterio que se sobrepotildee agrave contra-imagem humilhante de um papel meramente secundaacuterio de anfitriatildeo e ajudante numa conquista de Lisboa liderada pelos cruzados por sua vez missatildeo menor e de passagem no seio de um contexto maior o da Segunda Cruzada (1147-49)10

Um romance que natildeo soacute reescreve de uma forma paroacutedica a origem da configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica res-ponsaacutevel do excesso identitaacuterio portuguecircs mas tambeacutem sugere lsquolei-turasrsquo anacroacutenicas da actualidade portuguesa ainda caracterizada pelo dilema deste mesmo excesso identitaacuterio como comprova o en-saio de Pacheco Pereira (2006) eacute difiacutecil de traduzir porque implica uma operaccedilatildeo complexa de mediaccedilatildeo cultural no sentido de ldquocross--linguistic cultural practice involving recontextualizationrdquo (House 2002 97) Ilustramos esta dificuldade com um episoacutedio do livro do historiador lido por Raimundo Silva antes de introduzir o ldquonatildeordquo

(hellip) agora o historiador embandeirou o estilo para tratar da grande discoacuterdia que se levantou entre os cruzados (hellip) sobre se deveriam ou natildeo ajudar os nossos portugueses a tomar Lisboa se ficariam aqui ou seguiram como previsto para a Terra Santa onde os estava esperando Nosso Senhor Jesus Cristo sob os ferros turcos Argumentavam aqueles a quem seduzia a ideia de ficar que lanccedilar fora da cidade a estes mouros e fazecirc-la cristatilde seria tambeacutem serviccedilo de Deus contestavam os contraacuterios que se esse era serviccedilo de Deus serviccedilo menor seria e que cavaleiros tatildeo principais como

116Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

ali todos se prezavam de ser tinham por obrigaccedilatildeo acudir aonde mais trabalhosa fosse a obra natildeo neste cu do mundo entre labregos e tinhosos que uns deviam ser os mouros e outros os portugueses poreacutem natildeo o averiguou o historia-dor talvez por natildeo valer a pena de escolher entre os dois insultos (Saramago 47)

(hellip) nun uumlbt sich der Historiker in hohem Stil um den gro-szligen Zwist darzulegen der sich unter den Kreuzfahrern () entspann stand doch die Frage ob sie unseren Portugiesen bei der Einnahme Lissabons helfen sollten oder nicht ob hier verbleiben oder aber wie vorgesehen weiterziehen ins Heilige Land wo in tuumlrkischen Fesseln Unser Herr Je-sus Christus ihrer harrte Es argumentierten jene die am liebsten hiergeblieben waumlren die Mauren aus dieser Stadt treiben und aus ihr einen Christenhort zu machen sei glei-chermaszligen ein gottdienliches Werk und die anderen hiel-ten dagegen wenn gottdienliches Werk dann doch wohl ein minderes so hehre Ritter wie alle hier es zu sein ver-meinten haumltten die Pflicht dorthin zu eilen wo das Werk muumlhevoller sei nicht wie in diesem Weltenwinkel unter Bauersleuten und Wichten gemeint waren wohl mit den ei-nen die Mauren und mit den anderen die Portugiesen doch unterlieszlig der Historiker weitere Ergruumlndung vielleicht weil beides Schmaumlhworte waren (55)

Seja por entender ldquoembandeirar o estilordquo num sentido estrito em vez de intuir a subversatildeo da escrita pelas vozes citadas no sentido da polifonia bakhtiniana11 seja por obedecer a um conceito do politicamente correcto a versatildeo alematilde ldquoWeltenwinkelrdquo evita o equivalente ldquoArsch der Weltrdquo da expressatildeo escatoloacutegica ldquocu do mundordquo estereotipada no discurso da identidade portuguesa do seacute-culo XX Tambeacutem suaviza os insultos que expressam a superiori-dade colonizadora dos cruzados natildeo soacute relativamente aos mouros mas tambeacutem aos portugueses a traduccedilatildeo inofensiva de ldquoBauers-leuterdquo e ldquoWichterdquo anula a semacircntica insultuosa de ldquolabregosrdquo12 e

117Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ldquotinhososrdquo Com isto atenua-se a atitude de arrogacircncia dos ldquoca-valeiros tatildeo principaisrdquo que natildeo acham necessidade de diferenciar entre portugueses e mouros A traduccedilatildeo natildeo consegue transferir a paroacutedia da identidade portuguesa que dialoga com o leitor impliacute-cito (Iser 1972) do original para o perfil do leitor da traduccedilatildeo de maior afinidade cultural com os cruzados Trata-se de um leitor desprovido (1) da ldquoenciclopeacutedia do mundo portuguecircsrdquo (Caragea 209) e (2) da socializaccedilatildeo no contexto da realidade poliacutetica e social portuguesa dos anos oitenta e noventa com a memoacuteria do 25 de Abril de 1974 (por exemplo impliacutecita no perfil da personagem Mogueime como preacute-figuraccedilatildeo de Salgado Maia)

Esta dupla dificuldade que ndash com o tempo ndash tambeacutem surgi-raacute cada vez mais para o texto-fonte conduz agrave questatildeo do texto comentado que discute Horst Turk (1992) exemplificando-a no romance La reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten de Juan Goytisolo (em reediccedilatildeo comentada a partir de 1985) e na sua traduccedilatildeo alematilde (natildeo comentada) No caso de Histoacuteria do Cerco de Lisboa ainda natildeo existe uma ediccedilatildeo comentada do original Entre as traduccedilotildees a alematilde de Andreas Klotsch (1992) prescinde de comentaacuterio tal como a inglesa de Giovanni Pontiero (1996) que se cinge a um bre-ve prefaacutecio no entanto a romena por exemplo eacute acompanhada por um proacutelogo extenso e notas explicativas da tradutora Mioara Caragea13 Pelo comentaacuterio e pela ausecircncia dele acentuam-se as duas caras de Iano (Januskoumlpfigkeit) da traduccedilatildeo ela representa o texto-fonte e substitui o texto-fonte na literatura-alvo Mais ainda a traduccedilatildeo eacute tambeacutem em todas as literaturas um lugar privilegiado para articular qualidades de diferenccedila14 Destas deliberaccedilotildees surge como questatildeo central a traduccedilatildeo alematilde natildeo comentada da Histoacuteria do Cerco de Lisboa eacute capaz de transmitir a paroacutedia de identidade alteridade cultural (nacional) do texto-fonte

Ao falar do handicap do leitor desprovido da ldquoenciclopeacutedia do mundo portuguecircsrdquo (Caragea 209) prolonga-se a abordagem purista em vez de se repensar tambeacutem esta enciclopeacutedia de forma transcultural Com isto evidencia-se o cruzamento de identidades em constante mudanccedila desde as fontes histoacutericas citadas no lsquolivro

118Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

do historiadorrsquo ateacute agrave proacutepria traduccedilatildeo do romance Jaacute o historiador cujo livro Raimundo Silva revisa concede destaque entre as fon-tes ao ldquoceacutelebre Osbernordquo (Saramago 124) privilegiando assim a narrativa epistolar de um cruzado oriundo da regiatildeo de Norfolk ou Suffolk que participou no Cerco Atualmente eacute considerada ldquotalvez a principal fonte histoacutericardquo (Alves 13) A carta dirigida a uma personalidade inglesa estaacute escrita em latim Por isso Cru-cesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis15 integra natildeo soacute uma visatildeo desde o exterior portanto afastada da construccedilatildeo da Histoacuteria nacional mas tambeacutem um texto noutra liacutengua A proacutepria narrativa marginaliza a identidade portuguesa natildeo soacute no contexto geral do antagonismo entre cruzados (identidade comum francos) e mouros16 mas tambeacutem pela divisatildeo entre por um lado norman-dos e ingleses (no texto a identidade proacutepria) e por outro colo-nenses e flamengos natildeo soacute desunidos na decisatildeo inicial (participar ou natildeo) mas tambeacutem com diferentes comportamentos durante o cerco e no saque da cidade conquistada (Conquista 83) Com estas caracteriacutesticas este texto fornece por um lado bases para uma narraccedilatildeo fundadora da identidade portuguesa desvalorizando sobretudo eticamente a colaboraccedilatildeo dos cruzados e por outro o preacute-texto de uma des-narraccedilatildeo transcultural aproximando-se da historiografia criacutetica mais recente na qual se procede a uma negaccedilatildeo da narrativa fundacional nacional17 As possiacuteveis releitu-ras fundamentam a paroacutedia do sbquoexcesso identitaacuteriorsquo portuguecircs no romance saramaguiano que se centra na retroprojeccedilatildeo anacroacutenica natildeo soacute da categoria de nacional mas tambeacutem da outra da cate-goria de estrangeiro Basta pensarmos no anacronismo das quinas de Portugal (soacute a partir de Sancho I) a substituir o crescente (na realidade invenccedilatildeo do impeacuterio otomano) que despertam a ira do revisor quando chega agraves paacuteginas finais do lsquolivro do historiadorrsquo (41-42) Nada disto se encontra nas fontes Tambeacutem a traduccedilatildeo ldquopassou a corrupta mesquita a puriacutessima igreja catoacutelicardquo (40) en-fatiza um antagonismo identitaacuterio (muccedilulmano cristatildeo) que no texto-fonte fica subentendido ldquopurificatum est templumrdquo ldquofoi purificado o templordquo (Conquista 85) Mais interessante relativa-

119Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

mente ao leitor impliacutecito de traduccedilotildees para as liacutenguas do Centro Norte da Europa eacute o seguinte trecho

O pessoal que veio a esta fala parlamentar eacute todo de portu-gueses natildeo pareceu bem a el-rei servir-se de estrangeiros para o reforccedilo do ultimatum ainda que diga-se de pas-sagem subsistam grandes duacutevidas de que o arcebispo de Braga pertenccedila de facto ao nosso sangue lusitano mas enfim jaacute nesses antigos tempos tinha principiado a fama que mantivemos ateacute hoje de receber bem a gente de fora distribuir-lhes cargos e prebendas e este D Joatildeo Peculiar vaacute laacute pagou-nos multiplicado em serviccedilos patrioacuteticos E se como tambeacutem se diz era mesmo portuguecircs e de Coimbra vejamo-lo como pioneiro da nossa vocaccedilatildeo migratoacuteria da magniacutefica diaacutespora pois toda a sua juventude a passou em Franccedila a estudar devendo notar-se aqui uma acentuada diferenccedila em relaccedilatildeo agraves tendecircncias recentes da nossa emig-raccedilatildeo para aquele paiacutes plutocirct adstrita aos trabalhos sujos e pesados (197-98)

O problema de transmitir o sentido paroacutedico na traduccedilatildeo18 por exemplo da eterna vocaccedilatildeo migratoacuteria bdquounserer migratoris-chen Berufung unserer wundervollen Diasporaldquo (240) culmina na dificuldade de incluir o leitor impliacutecito da traduccedilatildeo na situaccedilatildeo enunciativa isto eacute neste caso ele se deveria rever no lsquoestrangei-rorsquo vindo da Franccedila e indo aleacutem das dicotomias aperceber-se da relatividade das categorias

Eacute significativo que o revisor Raimundo Silva chegue a este tipo de des-narraccedilatildeo atraveacutes de uma criacutetica da traduccedilatildeo que fundamenta o proacuteprio acto de alterar o lsquolivro do historiadorrsquo a partir do ldquonatildeordquo Natildeo eacute tanto o ldquorigor da traduccedilatildeordquo (44) que estaacute em causa mas a sua verossimilhanccedila Precisamente por duvidar dos conhecimentos de latim das capacidades retoacutericas e em geral da cultura de Afon-so Henriques Raimundo Silva considera ldquoa primeira fala averigua-da do nosso rei fundadorrdquo nada menos do que ldquouma absurdidaderdquo

120Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

(43) negando de passagem tambeacutem o uso da liacutengua portuguesa que a tradicional narrativa fundacional de Portugal assume com naturalidade

(hellip) eacute de supor que o real menino aleacutem de explicar-se natu-ralmente em galego latinizaria o quantum satis para poder declamar chegada a hora perante tantos e tatildeo cultos cru-zados estrangeiros a arenga supracitada uma vez que eles de liacutenguas natildeo entenderiam entatildeo mais do que a sua de berccedilo e iguais rudimentos da outra com a ajuda dos frades inteacuterpretes (Saramago 44)

Esta duacutevida sobre a pureza do discurso reacutegio reproduzido na epiacutestola e traduzido pelo historiador torna-se em ldquoleitura paroacutedica (hellip) pela contextualizaccedilatildeo dramaacuteticardquo (Caragea 2003 235) O que Raimundo Silva ldquoem voz alta lecirc como um arauto lanccedilando as pro-clamasrdquo (P 45) ldquosituando portanto a sua reinterpretaccedilatildeo na zona pragmaacutetica da pronuntiatiordquo (Caragea 235) corresponde ipsis verbis com uma ou outra inversatildeo agrave traduccedilatildeo de JA de Oliveira (Conquista 44) A performance retoacuterica natildeo soacute ldquoacaba de inculcar no revisor um sentimento de distanciamento iroacutenico em relaccedilatildeo agraves palavras do reirdquo (Caragea 235) mas questiona sobretudo as noccedilotildees de texto-fonte e traduccedilatildeo fiel ao texto-fonte

Ao aprender que a invisibilidade do tradutor eacute falaz o revisor daacute o primeiro passo para a sua proacutepria visibilidade autoral Assim a ldquometaficccedilatildeo historiograacuteficardquo (Kaufman 1991) nasce directamen-te do dialogismo no sentido bakhtiniano com Joseacute Augusto de Oliveira simultaneamente ele eacute tradutor da epiacutestola publicada em ediccedilatildeo bilingue (1935) e autor da revisatildeo historiograacutefica intitulada ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem con-tar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo apresentada em 1940 Em vez de tomar a epiacutestola ldquodita de Osbernordquo como texto-fonte homogeacuteneo e traduzi-lo do latim como o fez o ldquoproacuteprio autor da Histoacuteriardquo (Saramago 43) facilmente reconheciacutevel como figuraccedilatildeo de Joseacute

121Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Augusto de Oliveira Raimundo Silva duvida natildeo soacute da pureza da fonte e subsequentemente da fidelidade da traduccedilatildeo mas tambeacutem da identidade do autor da epiacutestola Pelo tiacutetulo Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) Narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial da ediccedilatildeo bilingue esta identidade parece uniacutevoca mas natildeo eacute por exemplo Joseacute F Alves (2004) considera ldquobem coe-renterdquo que a primeira linha do texto latino ldquoOsb de Baldr R salutemrdquo indique um Osb de Baldr (Osberno ou Osberto ou Osborne) como destinataacuterio de ldquouma missiva mesmo sobrescrita apenas por um Rrdquo conjecturando-se o nome de Rogeacuterio19 Apor-tuguesando-se o nome Roger para Rogeiro o romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa assume esta suposiccedilatildeo ndash em oposiccedilatildeo ao lsquolivro do historiadorrsquo que considera Osberno um cruzado letrado O frade eacute apresentado na frase que continua a citaccedilatildeo anterior sobre a iden-tidade eacutetnica indefinida de D Joatildeo Peculiar arcebispo de Braga

Quem eacute indubitavelmente estrangeiro mas contado agrave parte por vir em missatildeo especial nem parlamentaacuterio nem homem de guerra eacute aquele frade ruivo e sardento ali a quem ago-ra mesmo ouvimos chamar Rogeiro mas que realmente tem por nome Roger o que deixaria em aberto a questatildeo de ser ele inglecircs ou normando (hellip) (198)

A identidade de Roger Rogeiro embora etnicamente indecisa oferece ndash na traduccedilatildeo para inglecircs e tambeacutem para alematildeo ndash uma afinidade cultural com o leitor impliacutecito reforccedilada pelo fiacutesico in-confundiacutevel noacuterdico ldquothat sandy-haired freckled friarrdquo (Sarama-go 1996 176) bdquojener blonde sommersprossige Paterldquo (241) No romance Frei Rogeiro cumpre o papel de ldquocronistardquo que transpotildee um conjunto multilingue de falas numa escrita coerente e homo-geacutenea Por exemplo no caso do discurso do arcebispo de Braga

Rogeiro logo em abreviado e taquigraacutefico o registou para mais tarde deixando os aformoseamentos oratoacuterios com que

122Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

brindaraacute aquele seu destinataacuterio distante Osberno chama-do laacute onde quer que esteja e quem quer que tenha sido poreacutem jaacute vai introduzindo redondeios de lavra proacutepria fru-tos de inspiraccedilatildeo estimulada (hellip) (200)

Significativamente Roger Rogeiro natildeo eacute tradutor mas ndash tal como o revisor Raimundo Silva ndash portador da consciecircncia de que tudo eacute traduccedilatildeo correspondendo ao latim o privileacutegio da liacutengua veicular

Este Rogeiro natildeo conhece uma palavra de araacutebigo nem de galego mas neste caso natildeo seraacute impedimento a ignoracircncia pois todo o debate vaacute por onde vaacute sempre iraacute dar ao latim graccedilas aos inteacuterpretes e aos tradutores simultacircneos (198)

De facto esta consciecircncia do plurilinguismo caracteriza Cruce-signati anglici epistola de expugnatione olisiponis desde o iniacutecio falando dos cruzados ldquoInter hos tot linguarum populos firmissima concordiae atque amititiaerdquo (Conquista 21) As falas de cruzados portugueses e mouros aparecem ou em citaccedilotildees traduzidas (de ou-tras liacutenguas para latim) ou em liacutengua latina para serem traduzidas no contexto do cerco Ambas satildeo adaptadas a um texto composto conforme as retoacutericas claacutessica e biacuteblica Eacute a proacutepria epiacutestola que refere a necessidade de traduccedilatildeo por exemplo do discurso do bispo do Porto proferido em latim perante a multidatildeo plurilingue dos cruzados reunidos20 Em contraste eacute significativo que o tradutor JA de Oliveira defenda ldquouma versatildeo que sem trair o pensamen-to se libertasse da escravidatildeo da letrardquo em vez de encher ldquoo texto portuguecircs com antigos vocaacutebulos forrageando-os nas velhas croacute-nicas conhecidas dos eruditosrdquo (Oliveira 1935 18) outorgando agrave sua traduccedilatildeo uma missatildeo nacionalista

Assim espero-o todos entenderatildeo este velho monumento da nossa histoacuteria e nesta hora de ressurgimento neste des-

123Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

pertar de energias e rasgar-se de horizontes novos faraacute bem aos portugueses de hoje ouvir falar a alma dos que agrave forccedila de braccedilo com persistecircncia com teimosia com obstinaccedilatildeo e com amor souberam ungir com o proacuteprio sangue os alic-erces desta nossa Paacutetria que eles nos deixaram para a con-servarmos amorosamente digna honrada e livre (Oliveira 1935 19)

Quem afirma assim uma leitura nacionalista de uma epiacutestola no fundo totalmente alheia ao objectivo de alicerccedilar a Histoacuteria nacional esconjura o que natildeo quer ver entregando-se agrave ldquotarefa permanente de nos iludirmosrdquo que critica Pacheco Pereira (2006) no caso das reacccedilotildees ao discurso de Jack Welsh Longe de com-preender a utilidade particular do confronto com a nossa imagem vista de fora JA de Oliveira concebe a sua traduccedilatildeo da epiacutestola estrangeira como contributo agrave legibilidade culturalmente coerente e homogeacutenea do ldquovelho monumento da nossa histoacuteriardquo A fideli-dade da traduccedilatildeo revela-se enganadora atraveacutes da leitura criacutetica de Raimundo Silva Assim a palavra aacuterabe ldquoalgazarrardquo que JA de Oliveira escolheu para traduzir ldquoconclamatiordquo na fala (por sua vez traduzida) de D Afonso Henriques21 evidencia natildeo soacute a homoge-neizaccedilatildeo do plurilinguismo tanto no texto-fonte como na traduccedilatildeo mas tambeacutem ndash numa leitura contraacuteria ndash a crioulizaccedilatildeo da identida-de portuguesa

Acertara D Afonso Henriques em cheio quando prognos-ticou que o exame da sua proposta acabaria em algazarra palavra que sendo aacuterabe de nacionalidade igualmente serve a qualquer gritar e vozear de colonenses flamengos bolon-heses bretotildees escoceses e normandos misturados (47-48)

Vollkommen recht hatte Dom Afonso Henriques mit der Voraussicht sein Vorschlag werde eine algazarra ausloumlsen dieses Wort obzwar arabischer Abkunft ist auch dienlich jedwedes ereiferndes Geschrei und Gekreisch der Koumllner

124Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Flamen Bologneser Bretonen Schotten und Normannen und aller durcheinander zu bezeichnen (56)

Portanto a palavra ldquoalgazarrardquo sugere nesta leitura transcul-tural do discurso reacutegio a relaccedilatildeo ambivalente galega aacuterabe como fundadora Esta insinuaccedilatildeo integra-se numa paroacutedia do discurso da identidade nacional nomeadamente na sua projecccedilatildeo anacroacutenica para a Idade Meacutedia ndash um aspecto que fica esbatido na traduccedilatildeo ale-matilde22 Uma leitura semelhante sugere a mensagem do rei de Eacutevora aos ldquoseus irmatildeos de Lisboardquo cuja traduccedilatildeo comentada ao portu-guecircs actual brinca com a identidade estereotipada de alentejanos

Aguentem aiacute os malvados que a minha tropa de alentejanos jaacute vai a caminho dizemo-lo assim por vir essa gente de aleacutem do Tejo ficando demonstrado de caminho que jaacute havia alentejanos antes de haver portugueses (176)

Para o leitor da traduccedilatildeo a existecircncia historicamente invertida de ldquoAlentejanerrdquo antes dos ldquoPortugiesenrdquo natildeo possui significado centrando-se a atenccedilatildeo na identificaccedilatildeo de ldquodiese Leute von jenseits des Tejordquo como ldquoAlentejanerrdquo (212) De facto a epiacutestola latina cita mensagens entre os mouros de Lisboa e o rei de Eacutevora desta-cando a ajuda de um inteacuterprete para poder incorporaacute-las no texto23 Obviamente a missiva reacutegia natildeo menciona alentejanos e transmite precisamente o contraacuterio a recusa do envio de tropas alegando a existecircncia de ldquotreacuteguas com o rei dos portuguesesrdquo (Conquista 64)

Estas manipulaccedilotildees mostram que Raimundo Silva eacute cada vez mais consciente da leitura escrita como cruzamento entre dimen-satildeo linguiacutestica e cultural no eixo temporal vaacutelido para a questatildeo da traduccedilatildeo24 no sentido das reflexotildees de Andreacute Lefevere (1992) Horst Turk (1992) e Susan Bassnett (1998) que analisam o texto tra-duzido ldquoembedded in its network of both source and target cultural signsrdquo (Bassnett9) Transcendo uma definiccedilatildeo estaacutetica de ldquocultural signsrdquo e da ldquohybridizationrdquo de Homi Bhabha podemos falar da

125Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

traduccedilatildeo como crioulizaccedilatildeo (Stoll 2005) com base em muacuteltiplos processos de mudanccedila sincroacutenicos e diacroacutenicos A paroacutedia da geacutenese da identidade portuguesa atraveacutes da criacutetica da pureza do texto-fonte (e da sua traduccedilatildeo) coincide com posiccedilotildees da historio-grafia moderna a conquista de Lisboa natildeo significa ndash conforme a Histoacuteria nacional tradicional ndash a vitoacuteria dos portugueses alcanccedilada com ajuda dos cruzados sobre os mouros significa isso sim a im-posiccedilatildeo militarmente bem sucedida do novo paradigma de pureza cristatilde implantada atraveacutes da ideologia colonizadora da Segunda Cruzada (114748) ao velho paradigma da convivecircncia segregada mais ou menos paciacutefica entre muccedilulmanos cristatildeos e judeus em estruturas poliacuteticas e sociais localmente autoacutenomas sob domiacutenio aacuterabe (Marques 68) O romance saramaguiano insinua esporadi-camente a crioulizaccedilatildeo da identidade portuguesa mas natildeo concede potencial identitaacuterio agraves populaccedilotildees cristatilde (moccedilaacuterabe) e judaica de Al-Usbuna sacrificadas por uma fracccedilatildeo dos cruzados ldquologo que o saque e o massacre exorbitaram das possibilidades de controlordquo (Marques 68) como conta em pormenor a epiacutestola Naturalmente destaca-se o bom comportamento dos ingleses e normandos (identi-dade de quem escreve) em contraste com o massacre e a devastaccedilatildeo perpetrados pelos colonenses e flamengos que ateacute matam o bispo da cidade moura25

Portanto o des-narrar saramaguiano natildeo empreende um deslo-camento transcultural tatildeo audaz como por exemplo La reivindi-cacioacuten del conde don Juliaacuten (1970) de Juan Goytisolo26 Naquele romance o narrador recupera atraveacutes da sua identificaccedilatildeo com o miacutetico lsquotraidorrsquo D Juliatildeo a identidade aacuterabe e moccedilaacuterabe termi-nando com o anuacutencio do lado aacuterabe ldquomantildeana seraacute otro diacutea la invasioacuten recomenzaraacuterdquo No entanto existe em Histoacuteria do Cerco um almuadem cego que preenche claramente o lugar do bispo anti-quiacutessimo a ser degolado como aquele por ldquoum soldado cristatildeo de mais zelosa feacuterdquo (348) A sua cegueira paradoxalmente visionaacuteria da Lisboa moura sitiada eacute contraacuteria daquela de ldquoira sanguinaacuteriardquo do seu assassino identificado como ldquoo cruzado Osberno soacute igual de nomerdquo (Saramago 40) introduzindo-se assim deliberadamente

126Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

uma homoniacutemia com o Osberno da epiacutestola (ainda tratado ndash errone-amente ndash como o seu autor) novamente recordada em ldquoo cruzado Osberno poreacutem natildeo o talrdquo27

Esta duplicaccedilatildeo de identidades com o mesmo nome adverte o leitor para ficar atento perante redefiniccedilotildees identitaacuterias como por exemplo dos sitiadores chamados ldquoos francos e os galegosrdquo28 sob comando dos cruzados e ldquoIbn Arrinque o Galegordquo (74) na perspetiva dos mouros recriada na mente de Raimundo Silva O almuadem na sua torre complementa ndash atraveacutes dos tempos ndash a posiccedilatildeo de Raimundo Silva ldquoque hoje quase tatildeo cego se vecirc como elerdquo (33) Significativamente o revisor apercebe-se ldquode que mora no preciso lugar onde antigamente se abria a Porta de Alfofardquo configurando-se assim topograficamente a incerteza (que corresponde ao des-narrar) ldquose Raimundo Silva eacute um si-tiado ou um sitiante vencedor futuro ou perdedor sem remeacutediordquo (75) Nos seus passeios por Lisboa ele revivifica uma cidade dividida entre zonas dos sitiados e dos atacantes entretecendo ldquodois temposrdquo (242) passado e presente29 A ambiguidade nos eixos de lugar e tempo transfere-se natildeo soacute agrave histoacuteria aplicando o tema da cegueira ateacute ao processo da sua recepccedilatildeo ldquo(hellip) esta [histoacuteria] de agora comeccedilada soacute poderaacute lecirc-la quem os olhos ti-ver luacutecidos e abertos natildeo um cegordquo (243) transfere-se tambeacutem agrave liacutengua na qual estaacute escrita o texto insinuando-se um regresso a outra fonte nas duas dimensotildees de identidade cultural e texto que evoca aquela transformaccedilatildeo da liacutengua castelhana em aacuterabe realizada nas uacuteltimas duas paacuteginas de Juan sin Tierra (1975) de Juan Goytisolo ldquo(hellip) as matildeos de Raimundo Silva pousam sobre a uacuteltima folha escrita umas linhas negras indecifraacuteveis talvez de araacutebiga liacutengua natildeo estivemos atentos agrave voz do almuademrdquo (Sara-mago 243) Na accedilatildeo mediadora do revisor confluem a voz aacuterabe do almuadem e a escrita latina do cleacuterigo Roger Na reescrita inicialmente soacute mental do lsquolivro do historiadorrsquo Raimundo Sil-va procura uma reconstruccedilatildeo contextualizada de ambos os lados (cristatildeos muccedilulmanos) por exemplo corrigindo o significado da cegueira do almuadem

127Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

() natildeo foi erro escrever porque enfim escrito estaacute que era cego o almuadem O historiador soacute fala de minarete e muezim talvez ignorasse que quase todos os almuadens naquele tempo e por muito tempo depois eram cegos (29

() es war kein Fehler und geschrieben ist es nun mal daszlig der Muezzin blind war Der Historiker der da lediglich von Minarett und Muezzin schreibt wuszligte vielleicht nicht daszlig fast alle Muezzins damals und noch lange danach blind waren (32)

O revisor identifica ldquominareterdquo e ldquomuezimrdquo como palavras li-gadas ao orientalismo dos seacuteculos XVIII e XIX Apesar de ser um fenoacutemeno transnacional europeu o orientalismo teve maior atracccedilatildeo na cultura francesa que espalhou para outras liacutenguas eu-ropeias as vozes aacuterabes importadas pela via oriental o Impeacuterio Otomano (Turquia) na sua expansatildeo europeia a partir do seacuteculo XIV (ponto alto conquista de Constantinopla em 1453) tinha dei-xado vestiacutegios nomeadamente na cultura austriacuteaca no acircmbito dos Tuumlrkenkriege (ponto de viragem Cerco de Viena em 1683) que serviram de base para o orientalismo francecircs Raimundo Silva pre-fere o uso da palavra ldquoalmuademrdquo de maior e mais antiga presen-ccedila na liacutengua portuguesa30 importada directamente e recuperada no Romantismo pelas Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano tal como ldquoalmaacutedenardquo em vez de ldquominareterdquo (Machado 62) A tra-duccedilatildeo alematilde natildeo assinala esta tentativa de maior lsquopurezarsquo histoacuterica no discurso sobre a identidade moura mantendo a denominaccedilatildeo invariaacutevel ldquoMuezzinrdquo embora exista a alternativa lexical menos usada de ldquoMuaddhinrdquo (Brockhaus 229)31

No contexto do pensamento poacutes-colonial esta reaquisiccedilatildeo dos processos de imaginaccedilatildeo depois das imposiccedilotildees coloniais europeias que comeccedila em princiacutepio pelo Romantismo (Herculano Garrett) revela a raiz histoacuterica da especificidade relacional portuguesa co-lonizada colonizadora isto eacute a harmonizaccedilatildeo mais ou menos voluntaacuteria da poliacutetica existente de poder regional na Peniacutensula Ibeacute-

128Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

rica com a ideologia colonizadora das cruzadas Para aleacutem de uma subtil reivindicaccedilatildeo da identidade moura Histoacuteria do Cerco de Lisboa se cinge quase unicamente agrave revisatildeo da identidade conquis-tadora na qual entra a identidade alematilde ndash um aspecto importante para a traduccedilatildeo Assim estabelece-se uma certa inversatildeo embora natildeo perfeita de identidade alteridade em geral o leitor alematildeo estaacute pouco familiarizado com a geacutenese da identidade portuguesa e ignora a configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica que eacute responsaacutevel pelo excesso identitaacuterio desconhecendo tambeacutem a participaccedilatildeo bem documentada de actores vindos de terras alematildes Eles aparecem no romance logo quando Raimundo Silva comeccedila a reler a epiacutestola na sua procura da ldquofonte limpardquo

(hellip) a informaccedilatildeo eacute de boa origem diz-se que directamente do ceacutelebre Osberno e assim podemos ficar a saber que es-tava o conde Arnoldo de Aarschot o qual comandava os guerreiros vindos de diversas partes do impeacuterio germacircni-co que estava Cristiano de Gistell chefe dos flamengos e bolonheses (hellip) (124)

Seguindo a teia intertextual regressamos ao texto-fonte que em contraste com a citada Croacutenica de Portugal de 1419 narra na perspectiva de uma expediccedilatildeo militar

Igitur apud portum de Dertemunde diversarum nationum et morum et linguarum gentes navibus cicrciter CLXIIII convenere Horum omnium trifariam partitur exercitus Sub comite Arnoldo de Arescot nepote Godefridi ducis a romani imperii partibus secedit exercitus Sub Christiano de Gistello flandrenses et bononenses32

A mudanccedila para ldquoimpeacuterio germacircnicordquo (124) corresponde agrave nota explicativa do tradutor JA de Oliveira33 No entanto natildeo se expli-

129Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ca a substituiccedilatildeo de ldquobononensesrdquo por ldquobolonhesesrdquo Naturalmen-te as duas mudanccedilas reflectem-se na traduccedilatildeo alematilde que toma o romance saramaguiano como texto-fonte

(hellip) Information aus verlaumlszliglicher Quelle dem Vernehmen nach direkt vom beruumlhmten Osberno persoumlnlich und also koumlnnen wir uns vergewissern daszlig da Graf Arnoldo de Aar-schot zugegen war der die aus verschiedenen Regionen des deutschen Kaiserreiches herbeigestroumlmten Krieger befehlig-te und Cristiano de Gistell der den Flamen und Bologne-sern vorstand (hellip) (150)

Na traduccedilatildeo alematilde nomes proacuteprios estrangeiros natildeo satildeo lsquore-patriadosrsquo nem o proacuteprio Osberne nem Arnold ou Christian que ficam todos na grafia romacircnica No entanto ldquoimpeacuterio germacircni-cordquo passa para ldquodeutsches Kaiserreichrdquo uma traduccedilatildeo que insinua uma projecccedilatildeo anacroacutenica do seacuteculo XIX (refundaccedilatildeo do Heiliges Roumlmisches Reich Deutscher Nation como Deutsches Kaiserreich em 1871) natildeo pretendida no texto-fonte Naturalmente a traduccedilatildeo alematilde ignora a possibilidade latente jaacute apagada no texto sarama-guiano de encontrar a identidade alematilde nos ldquobononensesrdquo mal transcritos em ldquobolonhesesrdquo34 Esta transcriccedilatildeo defeituosa surpre-ende porque eacute a personalidade do cavaleiro Henrique de Bona ausente na epiacutestola35 que teve o maior relevo individual na histo-riografia portuguesa entre os ldquosamtos cavaleyros martiresrdquo

Nesta tomada de Lisboa morerom alguns cavaleyros como martires e depois faziam muytos milagres amtre os quaes foy hum cavaleyro chamado Amriqe alematildeo o qual era de hũa vila que chamom Bona posta jumto de Colonha o qual foy enterado em Sam Viccedilemte honde fazia muytos milagres (hellip) (Croacutenica 50)

130Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Merecendo destaque na histoacuteria da fundaccedilatildeo do mosteiro de Satildeo Vicente com episoacutedios de acccedilatildeo milagrosa depois de morto (Indiculum 83-85 Croacutenica 50-52) Henrique de Bona torna-se uma personagem da Histoacuteria portuguesa digna de entrar nrsquo Os Lu-siacuteadas (VIII 18) Procede-se a uma apropriaccedilatildeo do estrangeiro colonizador o alematildeo Henrique torna-se depois de ter vertido ldquode gram voontade o seu sangue antre os mouros pola paixom do Nosso Salvador Jesu Cristordquo (Indiculum 83) no maior Santo Cavaleiro da Tomada de Lisboa Na Alemanha ele estaacute totalmente desconhecido a natildeo ser no acircmbito da retoacuterica diplomaacutetica bila-teral na qual aparece natildeo como maacutertir mas como fundador dos ldquolaccedilos da amizade secular que liga o povo da Alemanha ao de Por-tugalrdquo (Ehrhardt 11) projectando a ajuda dos cruzados na geacutenese do reino de Portugal numa lsquolenda de auxiacuteliorsquo para todas as eacutepocas posteriores

Numa abordagem criacutetica observamos um duplo branqueamen-to (1) da memoacuteria do saque cruel e devastador da Lisboa moura perpetrado pelos cruzados colonenses e flandrenses e (2) da rela-ccedilatildeo colonizadora entre aliados no contexto da Europa Cingimo--nos no acircmbito deste estudo agrave anaacutelise do episoacutedio da torre moacutevel No romance a ideia da sua construccedilatildeo eacute atribuiacuteda ao cavaleiro Henrique manipulando as fontes histoacutericas que falam de engenhos militares em competiccedilatildeo entre os diferentes grupos eacutetnicos ou destacam ldquoum engenheiro italiano natural de Pisardquo36 O discurso profeacutetico de superioridade cultural deste cavaleiro revela os moti-vos desta escolha

Grandes satildeo as vantagens que a Portugal adviratildeo de imitar neste como noutros casos o que na Europa se vai fazendo de mais moderno ainda que ao princiacutepio experimenteis dificuldades em meter na cabeccedila as tecnologias novas eu por mim sei da construccedilatildeo das tais torres o suficiente para os naturais daqui (hellip) (251)

131Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Groszlige Vorteile sind Portugal gewiszlig wenn es in diesem wie in anderen Faumlllen nachahmt was man in Europa an houmlchst modernen Dingen tut mag es euch anfaumlnglich auch schwerfallen die neuen Techniken in euren Kopf hinein-zukriegen ich meinerseits weiszlig vom Bau besagter Tuumlrme hinreichend viel um die hiesigen Eingeborenen zu unter-richten () (305)

Mesmo a traduccedilatildeo alematilde transmite a ideia de que a fala do cavaleiro Henrique perante o primeiro rei portuguecircs conteacutem uma paroacutedia do discurso poliacutetico actual que natildeo se cansa de propagar a imitaccedilatildeo da Europa avanccedilada representada pela capacidade eco-noacutemica e tecnoloacutegica de Alemanha em competiccedilatildeo com outras na-ccedilotildees Ao mesmo tempo projecta-se ndash apresentado como verdade de fora ndash a auto-imagem humilhante dos ldquonaturaisrdquo37 como matildeo-de--obra sem formaccedilatildeo agrave mercecirc das decisotildees de governantes que pac-tuam com os estrangeiros (252) como condiccedilatildeo da proacutepria geacutenese nacional No entanto a derrota da torre tatildeo bem construiacuteda que conduz ateacute agrave morte do seu construtor faz surgir a criacutetica dos ldquoen-genhos estrangeiros que tanto podem estar a favor como contrardquo (316) parodiando-se assim tanto a lsquolenda de auxiacuteliorsquo e a atitude colonizadora como o projecto portuguecircs de modernizaccedilatildeo europeia (Grossegesse 1995 228)

Reservando uma anaacutelise da constelaccedilatildeo transcultural entre o ca-valeiro alematildeo Henrique a sua ldquobarregatilderdquo Ouroana38 e o soldado Mogueime para outra ocasiatildeo centramo-nos num aspecto de jogo intertextual que ainda recebeu pouca atenccedilatildeo Face agrave ausecircncia do episoacutedio da torre moacutevel e da personalidade de Henrique de Bona na epiacutestola dirigida a Osberno eacute significativo que o romance sara-maguiano invente ldquoapontamentos para a carta de Osbernordquo (308) contendo estes em todo pormenor a histoacuteria do cavaleiro Henri-que A explicaccedilatildeo psicanaliacutetica de Ersatz para esta escrita do Frei Rogeiro39 tambeacutem eacute vaacutelida para o revisor Raimundo que insere na sua reescrita do Cerco de Lisboa a histoacuteria da conquista amorosa de Ouroana por Mogueime possibilitada pela morte do cavaleiro

132Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

alematildeo que espelha ndash atraveacutes dos tempos ndash a sua proacutepria lsquoconquis-tarsquo de Maria Sara

Com a ficccedilatildeo do texto apoacutecrifo inaugura-se uma hibridizaccedilatildeo transcultural das proacuteprias fontes histoacutericas possibilitando um amalgamar das narrativas dos cruzados com a Histoacuteria nacional e o lendaacuterio portuguecircs que culmina na releitura dos milagres do cava-leiro Henrique em simultacircneo com os milagres de Santo Antoacutenio o padroeiro mais popular de Lisboa A intersecccedilatildeo de milagres de ambos pelas leituras simultacircneas de Maria Sara e Raimundo eacute um acto que subverte tanto a procura da verdade histoacuterica como o conceito de identidades delimitadas por territoacuterio sangue e liacutengua Numa espeacutecie de metalepse o proacuteprio Frei Rogeiro apoacutes ter com-pilado ldquoos apontamentos que havia tomado durante uma volta que dera por todos os arraiaisrdquo (331) participa no episoacutedio milagroso ldquoComo o cavaleyro Amrique apareccedileo em sonhos a hum homem botildeo e como lhe disse que soterasem seu escudeiro a par delerdquo (Croacute-nica 51 cf Indiculum 84-85) cumprindo o papel daquele homem bom natildeo identificado

Mais significativo nesta leitura de milagres transformada em reescrita paroacutedica eacute o destaque atribuiacutedo agrave questatildeo de identida-des processos de deslocaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo culminando na trans-formaccedilatildeo de um milagre do cavaleiro Henrique numa espeacutecie de contra-mito da origem da liacutengua portuguesa ao narrar o milagre dos dois homens surdos-mudos que se deitaram ao lado do moi-mento do cavaleiro (Indiculum 83-84 Croacutenica 50-51) realccedila-se a incerteza da identidade deles ldquotinham vindo na frota poreacutem natildeo se sabe se ingleses aquitanos bretotildees flandrenses ou colonen-sesrdquo (335) Estando os dois homens assim jazendo ldquoadormeceram ambos e apareceu-lhes em sonho logo o cavaleiro Henrique (hellip) e falou agravequeles mancebosrdquo (336) ndash natildeo sabemos em que liacutengua ndash anunciando a sua cura de duvidoso efeito

(hellip) e eles acordando acharam que podiam ouvir e falar tambeacutem poreacutem falavam como gagos e de maneira que natildeo se entendia que liacutengua estavam falando se a dos ingleses

133Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ou aquitanos ou bretotildees ou flandrenses ou colonenses ou conforme natildeo poucos afirmavam a liacutengua dos portu-gueses (336)

Esta manipulaccedilatildeo natildeo de fontes histoacutericas mas de uma len-da convida para uma leitura metadiscursiva em vez de ldquocom voz chlara (hellip) contar a todo o povo o milagre que Deos em eles fizerardquo (Croacutenica 51) os dois ficam gagos No entanto o problema natildeo consiste em entender o que eacute que eles dizem mas em identificar a liacutengua que eles falam Nesta leitura o milagre reinterpretado enfa-tiza a visatildeo de uma hibridizaccedilatildeo das liacutenguas e das identidades no entanto consciente da imperfeita capacidade comunicativa que eacute aplicaacutevel agraves questotildees de revisatildeo e traduccedilatildeo

Tal como o revisor Raimundo Silva dentro da ficccedilatildeo o tradutor reescreve um texto anterior no entanto noutra liacutengua e para um leitor com outro horizonte cultural A procedecircncia das fontes histoacute-ricas e a apropriaccedilatildeo do cavaleiro Henrique pelo discurso da iden-tidade portuguesa demonstram a ineficaacutecia das definiccedilotildees puras de identidade e alteridade Em vez da tentativa de uma reproduccedilatildeo de uma liacutengua na outra no fundo irrealizaacutevel a visatildeo da hibridiza-ccedilatildeo das liacutenguas e identidades advoga uma recriaccedilatildeo naturalmente sempre parcial e imperfeita daquela heterogeneidade que Histoacuteria do Cerco de Lisboa exibe ao narrar a procura de uma ldquoverdaderdquo que ldquonatildeo pode ser mais do que uma cara sobreposta agraves infinitas maacutescaras variantes (hellip)rdquo (26) Para tal activa-se ldquooutro tipo de relaccedilotildees entre os elementos (hellip) porque as coerccedilotildees impostas pelas liacutenguas levam a diferentes possibilidades de contextualizaccedilotildees de remissotildees de encadeamentos de atribuiccedilatildeo de valores entre os elementosrdquo (Rodrigues 205) Se o romance reflecte claramente a diffeacuterance (Derrida 1967) como princiacutepio universal40 destacando os processos de traduccedilatildeo e reescrita este princiacutepio deve ser vaacutelido tambeacutem para a proacutepria traduccedilatildeo como propotildee Cristina Carneiro Rodrigues na continuaccedilatildeo de Rosemary Arojo (1993)

134Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

O original vive sobrevive na e pela sua proacutepria transfor-maccedilatildeo produzida pela leitura A traduccedilatildeo natildeo transporta uma essecircncia natildeo troca ou substitui significados dados prontos em um texto por significados equivalentes em outra liacutengua A traduccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo em que o laquotexto originalraquo se daacute por sua proacutepria modificaccedilatildeo em sua trans-formaccedilatildeo (Rodrigues 206)

O romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa interrelaciona esta con-diccedilatildeo de cada texto ser texto de textos transferidos traduzidos de outros textos em contextos histoacutericos sempre diferentes com a criacutetica da lsquoorigemrsquo da identidade individual e colectiva no sentido de transculturalidade e da ldquoculturersquos hibridityrdquo (Bhabha 1989 38) ambas com base expliacutecita na diffeacuterance Se reactivarmos a teoria de Jean Ricardou (1973) relativamente ao nouveau roman podemos dizer que a aventura da leitura escrita do revisor prefigura uma aventura semelhante do tradutor Tal como o revisor transformado em tradutor e autor ele transmite uma Histoacuteria do Cerco de Lis-boa recriada para outro leitor neste caso um leitor alheio natildeo soacute agrave narraccedilatildeo tradicional desta histoacuteria num discurso identitaacuterio mas tambeacutem agrave integraccedilatildeo da sua identidade cultural neste discurso Isto torna a traduccedilatildeo deste romance uma aventura de leitura e reescrita em certa medida jaacute prevista na Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Se no processo de traduccedilatildeo o tradutor ou tradutora tem que necessariamente tomar o lugar do autor e se apossar de seu texto para que esse possa sobreviver em outra liacutengua natildeo haacute como eliminar esse momento de usurpaccedilatildeo e con-quista que a reflexatildeo desconstrutivista flagra e desmascara (Arrojo 1993 82)

Curiosamente Rosemary Arrojo emprega a mesma metaacutefora de conquista utilizada para a aventura de Raimundo Silva que abrange a conquista amorosa de Maria Sara41 Eacute precisamente a mulher

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

115Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que se define na tradiccedilatildeo herderiana atraveacutes do antagonismo entre cultura proacutepria e alheia Como mostra a Croacutenica de 1419 a iden-tidade alematilde tambeacutem participa no Cerco de Lisboa integrando--se na categoria heterogeacutenea dos estrangeiros do lado colonizador superiores natildeo soacute relativamente aos mouros mas tambeacutem aos co-lonizadores autoacutectones que ao consentir ou adoptar a ideologia importada da cruzada se revelam em certa medida tambeacutem colo-nizados Na noccedilatildeo da milagrosa invasatildeo amigaacutevel de estrangeiros que vinham aqui ldquopara guerear contra os mourosrdquo daacute-se azo ao excesso identitaacuterio que se sobrepotildee agrave contra-imagem humilhante de um papel meramente secundaacuterio de anfitriatildeo e ajudante numa conquista de Lisboa liderada pelos cruzados por sua vez missatildeo menor e de passagem no seio de um contexto maior o da Segunda Cruzada (1147-49)10

Um romance que natildeo soacute reescreve de uma forma paroacutedica a origem da configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica res-ponsaacutevel do excesso identitaacuterio portuguecircs mas tambeacutem sugere lsquolei-turasrsquo anacroacutenicas da actualidade portuguesa ainda caracterizada pelo dilema deste mesmo excesso identitaacuterio como comprova o en-saio de Pacheco Pereira (2006) eacute difiacutecil de traduzir porque implica uma operaccedilatildeo complexa de mediaccedilatildeo cultural no sentido de ldquocross--linguistic cultural practice involving recontextualizationrdquo (House 2002 97) Ilustramos esta dificuldade com um episoacutedio do livro do historiador lido por Raimundo Silva antes de introduzir o ldquonatildeordquo

(hellip) agora o historiador embandeirou o estilo para tratar da grande discoacuterdia que se levantou entre os cruzados (hellip) sobre se deveriam ou natildeo ajudar os nossos portugueses a tomar Lisboa se ficariam aqui ou seguiram como previsto para a Terra Santa onde os estava esperando Nosso Senhor Jesus Cristo sob os ferros turcos Argumentavam aqueles a quem seduzia a ideia de ficar que lanccedilar fora da cidade a estes mouros e fazecirc-la cristatilde seria tambeacutem serviccedilo de Deus contestavam os contraacuterios que se esse era serviccedilo de Deus serviccedilo menor seria e que cavaleiros tatildeo principais como

116Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

ali todos se prezavam de ser tinham por obrigaccedilatildeo acudir aonde mais trabalhosa fosse a obra natildeo neste cu do mundo entre labregos e tinhosos que uns deviam ser os mouros e outros os portugueses poreacutem natildeo o averiguou o historia-dor talvez por natildeo valer a pena de escolher entre os dois insultos (Saramago 47)

(hellip) nun uumlbt sich der Historiker in hohem Stil um den gro-szligen Zwist darzulegen der sich unter den Kreuzfahrern () entspann stand doch die Frage ob sie unseren Portugiesen bei der Einnahme Lissabons helfen sollten oder nicht ob hier verbleiben oder aber wie vorgesehen weiterziehen ins Heilige Land wo in tuumlrkischen Fesseln Unser Herr Je-sus Christus ihrer harrte Es argumentierten jene die am liebsten hiergeblieben waumlren die Mauren aus dieser Stadt treiben und aus ihr einen Christenhort zu machen sei glei-chermaszligen ein gottdienliches Werk und die anderen hiel-ten dagegen wenn gottdienliches Werk dann doch wohl ein minderes so hehre Ritter wie alle hier es zu sein ver-meinten haumltten die Pflicht dorthin zu eilen wo das Werk muumlhevoller sei nicht wie in diesem Weltenwinkel unter Bauersleuten und Wichten gemeint waren wohl mit den ei-nen die Mauren und mit den anderen die Portugiesen doch unterlieszlig der Historiker weitere Ergruumlndung vielleicht weil beides Schmaumlhworte waren (55)

Seja por entender ldquoembandeirar o estilordquo num sentido estrito em vez de intuir a subversatildeo da escrita pelas vozes citadas no sentido da polifonia bakhtiniana11 seja por obedecer a um conceito do politicamente correcto a versatildeo alematilde ldquoWeltenwinkelrdquo evita o equivalente ldquoArsch der Weltrdquo da expressatildeo escatoloacutegica ldquocu do mundordquo estereotipada no discurso da identidade portuguesa do seacute-culo XX Tambeacutem suaviza os insultos que expressam a superiori-dade colonizadora dos cruzados natildeo soacute relativamente aos mouros mas tambeacutem aos portugueses a traduccedilatildeo inofensiva de ldquoBauers-leuterdquo e ldquoWichterdquo anula a semacircntica insultuosa de ldquolabregosrdquo12 e

117Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ldquotinhososrdquo Com isto atenua-se a atitude de arrogacircncia dos ldquoca-valeiros tatildeo principaisrdquo que natildeo acham necessidade de diferenciar entre portugueses e mouros A traduccedilatildeo natildeo consegue transferir a paroacutedia da identidade portuguesa que dialoga com o leitor impliacute-cito (Iser 1972) do original para o perfil do leitor da traduccedilatildeo de maior afinidade cultural com os cruzados Trata-se de um leitor desprovido (1) da ldquoenciclopeacutedia do mundo portuguecircsrdquo (Caragea 209) e (2) da socializaccedilatildeo no contexto da realidade poliacutetica e social portuguesa dos anos oitenta e noventa com a memoacuteria do 25 de Abril de 1974 (por exemplo impliacutecita no perfil da personagem Mogueime como preacute-figuraccedilatildeo de Salgado Maia)

Esta dupla dificuldade que ndash com o tempo ndash tambeacutem surgi-raacute cada vez mais para o texto-fonte conduz agrave questatildeo do texto comentado que discute Horst Turk (1992) exemplificando-a no romance La reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten de Juan Goytisolo (em reediccedilatildeo comentada a partir de 1985) e na sua traduccedilatildeo alematilde (natildeo comentada) No caso de Histoacuteria do Cerco de Lisboa ainda natildeo existe uma ediccedilatildeo comentada do original Entre as traduccedilotildees a alematilde de Andreas Klotsch (1992) prescinde de comentaacuterio tal como a inglesa de Giovanni Pontiero (1996) que se cinge a um bre-ve prefaacutecio no entanto a romena por exemplo eacute acompanhada por um proacutelogo extenso e notas explicativas da tradutora Mioara Caragea13 Pelo comentaacuterio e pela ausecircncia dele acentuam-se as duas caras de Iano (Januskoumlpfigkeit) da traduccedilatildeo ela representa o texto-fonte e substitui o texto-fonte na literatura-alvo Mais ainda a traduccedilatildeo eacute tambeacutem em todas as literaturas um lugar privilegiado para articular qualidades de diferenccedila14 Destas deliberaccedilotildees surge como questatildeo central a traduccedilatildeo alematilde natildeo comentada da Histoacuteria do Cerco de Lisboa eacute capaz de transmitir a paroacutedia de identidade alteridade cultural (nacional) do texto-fonte

Ao falar do handicap do leitor desprovido da ldquoenciclopeacutedia do mundo portuguecircsrdquo (Caragea 209) prolonga-se a abordagem purista em vez de se repensar tambeacutem esta enciclopeacutedia de forma transcultural Com isto evidencia-se o cruzamento de identidades em constante mudanccedila desde as fontes histoacutericas citadas no lsquolivro

118Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

do historiadorrsquo ateacute agrave proacutepria traduccedilatildeo do romance Jaacute o historiador cujo livro Raimundo Silva revisa concede destaque entre as fon-tes ao ldquoceacutelebre Osbernordquo (Saramago 124) privilegiando assim a narrativa epistolar de um cruzado oriundo da regiatildeo de Norfolk ou Suffolk que participou no Cerco Atualmente eacute considerada ldquotalvez a principal fonte histoacutericardquo (Alves 13) A carta dirigida a uma personalidade inglesa estaacute escrita em latim Por isso Cru-cesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis15 integra natildeo soacute uma visatildeo desde o exterior portanto afastada da construccedilatildeo da Histoacuteria nacional mas tambeacutem um texto noutra liacutengua A proacutepria narrativa marginaliza a identidade portuguesa natildeo soacute no contexto geral do antagonismo entre cruzados (identidade comum francos) e mouros16 mas tambeacutem pela divisatildeo entre por um lado norman-dos e ingleses (no texto a identidade proacutepria) e por outro colo-nenses e flamengos natildeo soacute desunidos na decisatildeo inicial (participar ou natildeo) mas tambeacutem com diferentes comportamentos durante o cerco e no saque da cidade conquistada (Conquista 83) Com estas caracteriacutesticas este texto fornece por um lado bases para uma narraccedilatildeo fundadora da identidade portuguesa desvalorizando sobretudo eticamente a colaboraccedilatildeo dos cruzados e por outro o preacute-texto de uma des-narraccedilatildeo transcultural aproximando-se da historiografia criacutetica mais recente na qual se procede a uma negaccedilatildeo da narrativa fundacional nacional17 As possiacuteveis releitu-ras fundamentam a paroacutedia do sbquoexcesso identitaacuteriorsquo portuguecircs no romance saramaguiano que se centra na retroprojeccedilatildeo anacroacutenica natildeo soacute da categoria de nacional mas tambeacutem da outra da cate-goria de estrangeiro Basta pensarmos no anacronismo das quinas de Portugal (soacute a partir de Sancho I) a substituir o crescente (na realidade invenccedilatildeo do impeacuterio otomano) que despertam a ira do revisor quando chega agraves paacuteginas finais do lsquolivro do historiadorrsquo (41-42) Nada disto se encontra nas fontes Tambeacutem a traduccedilatildeo ldquopassou a corrupta mesquita a puriacutessima igreja catoacutelicardquo (40) en-fatiza um antagonismo identitaacuterio (muccedilulmano cristatildeo) que no texto-fonte fica subentendido ldquopurificatum est templumrdquo ldquofoi purificado o templordquo (Conquista 85) Mais interessante relativa-

119Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

mente ao leitor impliacutecito de traduccedilotildees para as liacutenguas do Centro Norte da Europa eacute o seguinte trecho

O pessoal que veio a esta fala parlamentar eacute todo de portu-gueses natildeo pareceu bem a el-rei servir-se de estrangeiros para o reforccedilo do ultimatum ainda que diga-se de pas-sagem subsistam grandes duacutevidas de que o arcebispo de Braga pertenccedila de facto ao nosso sangue lusitano mas enfim jaacute nesses antigos tempos tinha principiado a fama que mantivemos ateacute hoje de receber bem a gente de fora distribuir-lhes cargos e prebendas e este D Joatildeo Peculiar vaacute laacute pagou-nos multiplicado em serviccedilos patrioacuteticos E se como tambeacutem se diz era mesmo portuguecircs e de Coimbra vejamo-lo como pioneiro da nossa vocaccedilatildeo migratoacuteria da magniacutefica diaacutespora pois toda a sua juventude a passou em Franccedila a estudar devendo notar-se aqui uma acentuada diferenccedila em relaccedilatildeo agraves tendecircncias recentes da nossa emig-raccedilatildeo para aquele paiacutes plutocirct adstrita aos trabalhos sujos e pesados (197-98)

O problema de transmitir o sentido paroacutedico na traduccedilatildeo18 por exemplo da eterna vocaccedilatildeo migratoacuteria bdquounserer migratoris-chen Berufung unserer wundervollen Diasporaldquo (240) culmina na dificuldade de incluir o leitor impliacutecito da traduccedilatildeo na situaccedilatildeo enunciativa isto eacute neste caso ele se deveria rever no lsquoestrangei-rorsquo vindo da Franccedila e indo aleacutem das dicotomias aperceber-se da relatividade das categorias

Eacute significativo que o revisor Raimundo Silva chegue a este tipo de des-narraccedilatildeo atraveacutes de uma criacutetica da traduccedilatildeo que fundamenta o proacuteprio acto de alterar o lsquolivro do historiadorrsquo a partir do ldquonatildeordquo Natildeo eacute tanto o ldquorigor da traduccedilatildeordquo (44) que estaacute em causa mas a sua verossimilhanccedila Precisamente por duvidar dos conhecimentos de latim das capacidades retoacutericas e em geral da cultura de Afon-so Henriques Raimundo Silva considera ldquoa primeira fala averigua-da do nosso rei fundadorrdquo nada menos do que ldquouma absurdidaderdquo

120Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

(43) negando de passagem tambeacutem o uso da liacutengua portuguesa que a tradicional narrativa fundacional de Portugal assume com naturalidade

(hellip) eacute de supor que o real menino aleacutem de explicar-se natu-ralmente em galego latinizaria o quantum satis para poder declamar chegada a hora perante tantos e tatildeo cultos cru-zados estrangeiros a arenga supracitada uma vez que eles de liacutenguas natildeo entenderiam entatildeo mais do que a sua de berccedilo e iguais rudimentos da outra com a ajuda dos frades inteacuterpretes (Saramago 44)

Esta duacutevida sobre a pureza do discurso reacutegio reproduzido na epiacutestola e traduzido pelo historiador torna-se em ldquoleitura paroacutedica (hellip) pela contextualizaccedilatildeo dramaacuteticardquo (Caragea 2003 235) O que Raimundo Silva ldquoem voz alta lecirc como um arauto lanccedilando as pro-clamasrdquo (P 45) ldquosituando portanto a sua reinterpretaccedilatildeo na zona pragmaacutetica da pronuntiatiordquo (Caragea 235) corresponde ipsis verbis com uma ou outra inversatildeo agrave traduccedilatildeo de JA de Oliveira (Conquista 44) A performance retoacuterica natildeo soacute ldquoacaba de inculcar no revisor um sentimento de distanciamento iroacutenico em relaccedilatildeo agraves palavras do reirdquo (Caragea 235) mas questiona sobretudo as noccedilotildees de texto-fonte e traduccedilatildeo fiel ao texto-fonte

Ao aprender que a invisibilidade do tradutor eacute falaz o revisor daacute o primeiro passo para a sua proacutepria visibilidade autoral Assim a ldquometaficccedilatildeo historiograacuteficardquo (Kaufman 1991) nasce directamen-te do dialogismo no sentido bakhtiniano com Joseacute Augusto de Oliveira simultaneamente ele eacute tradutor da epiacutestola publicada em ediccedilatildeo bilingue (1935) e autor da revisatildeo historiograacutefica intitulada ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem con-tar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo apresentada em 1940 Em vez de tomar a epiacutestola ldquodita de Osbernordquo como texto-fonte homogeacuteneo e traduzi-lo do latim como o fez o ldquoproacuteprio autor da Histoacuteriardquo (Saramago 43) facilmente reconheciacutevel como figuraccedilatildeo de Joseacute

121Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Augusto de Oliveira Raimundo Silva duvida natildeo soacute da pureza da fonte e subsequentemente da fidelidade da traduccedilatildeo mas tambeacutem da identidade do autor da epiacutestola Pelo tiacutetulo Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) Narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial da ediccedilatildeo bilingue esta identidade parece uniacutevoca mas natildeo eacute por exemplo Joseacute F Alves (2004) considera ldquobem coe-renterdquo que a primeira linha do texto latino ldquoOsb de Baldr R salutemrdquo indique um Osb de Baldr (Osberno ou Osberto ou Osborne) como destinataacuterio de ldquouma missiva mesmo sobrescrita apenas por um Rrdquo conjecturando-se o nome de Rogeacuterio19 Apor-tuguesando-se o nome Roger para Rogeiro o romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa assume esta suposiccedilatildeo ndash em oposiccedilatildeo ao lsquolivro do historiadorrsquo que considera Osberno um cruzado letrado O frade eacute apresentado na frase que continua a citaccedilatildeo anterior sobre a iden-tidade eacutetnica indefinida de D Joatildeo Peculiar arcebispo de Braga

Quem eacute indubitavelmente estrangeiro mas contado agrave parte por vir em missatildeo especial nem parlamentaacuterio nem homem de guerra eacute aquele frade ruivo e sardento ali a quem ago-ra mesmo ouvimos chamar Rogeiro mas que realmente tem por nome Roger o que deixaria em aberto a questatildeo de ser ele inglecircs ou normando (hellip) (198)

A identidade de Roger Rogeiro embora etnicamente indecisa oferece ndash na traduccedilatildeo para inglecircs e tambeacutem para alematildeo ndash uma afinidade cultural com o leitor impliacutecito reforccedilada pelo fiacutesico in-confundiacutevel noacuterdico ldquothat sandy-haired freckled friarrdquo (Sarama-go 1996 176) bdquojener blonde sommersprossige Paterldquo (241) No romance Frei Rogeiro cumpre o papel de ldquocronistardquo que transpotildee um conjunto multilingue de falas numa escrita coerente e homo-geacutenea Por exemplo no caso do discurso do arcebispo de Braga

Rogeiro logo em abreviado e taquigraacutefico o registou para mais tarde deixando os aformoseamentos oratoacuterios com que

122Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

brindaraacute aquele seu destinataacuterio distante Osberno chama-do laacute onde quer que esteja e quem quer que tenha sido poreacutem jaacute vai introduzindo redondeios de lavra proacutepria fru-tos de inspiraccedilatildeo estimulada (hellip) (200)

Significativamente Roger Rogeiro natildeo eacute tradutor mas ndash tal como o revisor Raimundo Silva ndash portador da consciecircncia de que tudo eacute traduccedilatildeo correspondendo ao latim o privileacutegio da liacutengua veicular

Este Rogeiro natildeo conhece uma palavra de araacutebigo nem de galego mas neste caso natildeo seraacute impedimento a ignoracircncia pois todo o debate vaacute por onde vaacute sempre iraacute dar ao latim graccedilas aos inteacuterpretes e aos tradutores simultacircneos (198)

De facto esta consciecircncia do plurilinguismo caracteriza Cruce-signati anglici epistola de expugnatione olisiponis desde o iniacutecio falando dos cruzados ldquoInter hos tot linguarum populos firmissima concordiae atque amititiaerdquo (Conquista 21) As falas de cruzados portugueses e mouros aparecem ou em citaccedilotildees traduzidas (de ou-tras liacutenguas para latim) ou em liacutengua latina para serem traduzidas no contexto do cerco Ambas satildeo adaptadas a um texto composto conforme as retoacutericas claacutessica e biacuteblica Eacute a proacutepria epiacutestola que refere a necessidade de traduccedilatildeo por exemplo do discurso do bispo do Porto proferido em latim perante a multidatildeo plurilingue dos cruzados reunidos20 Em contraste eacute significativo que o tradutor JA de Oliveira defenda ldquouma versatildeo que sem trair o pensamen-to se libertasse da escravidatildeo da letrardquo em vez de encher ldquoo texto portuguecircs com antigos vocaacutebulos forrageando-os nas velhas croacute-nicas conhecidas dos eruditosrdquo (Oliveira 1935 18) outorgando agrave sua traduccedilatildeo uma missatildeo nacionalista

Assim espero-o todos entenderatildeo este velho monumento da nossa histoacuteria e nesta hora de ressurgimento neste des-

123Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

pertar de energias e rasgar-se de horizontes novos faraacute bem aos portugueses de hoje ouvir falar a alma dos que agrave forccedila de braccedilo com persistecircncia com teimosia com obstinaccedilatildeo e com amor souberam ungir com o proacuteprio sangue os alic-erces desta nossa Paacutetria que eles nos deixaram para a con-servarmos amorosamente digna honrada e livre (Oliveira 1935 19)

Quem afirma assim uma leitura nacionalista de uma epiacutestola no fundo totalmente alheia ao objectivo de alicerccedilar a Histoacuteria nacional esconjura o que natildeo quer ver entregando-se agrave ldquotarefa permanente de nos iludirmosrdquo que critica Pacheco Pereira (2006) no caso das reacccedilotildees ao discurso de Jack Welsh Longe de com-preender a utilidade particular do confronto com a nossa imagem vista de fora JA de Oliveira concebe a sua traduccedilatildeo da epiacutestola estrangeira como contributo agrave legibilidade culturalmente coerente e homogeacutenea do ldquovelho monumento da nossa histoacuteriardquo A fideli-dade da traduccedilatildeo revela-se enganadora atraveacutes da leitura criacutetica de Raimundo Silva Assim a palavra aacuterabe ldquoalgazarrardquo que JA de Oliveira escolheu para traduzir ldquoconclamatiordquo na fala (por sua vez traduzida) de D Afonso Henriques21 evidencia natildeo soacute a homoge-neizaccedilatildeo do plurilinguismo tanto no texto-fonte como na traduccedilatildeo mas tambeacutem ndash numa leitura contraacuteria ndash a crioulizaccedilatildeo da identida-de portuguesa

Acertara D Afonso Henriques em cheio quando prognos-ticou que o exame da sua proposta acabaria em algazarra palavra que sendo aacuterabe de nacionalidade igualmente serve a qualquer gritar e vozear de colonenses flamengos bolon-heses bretotildees escoceses e normandos misturados (47-48)

Vollkommen recht hatte Dom Afonso Henriques mit der Voraussicht sein Vorschlag werde eine algazarra ausloumlsen dieses Wort obzwar arabischer Abkunft ist auch dienlich jedwedes ereiferndes Geschrei und Gekreisch der Koumllner

124Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Flamen Bologneser Bretonen Schotten und Normannen und aller durcheinander zu bezeichnen (56)

Portanto a palavra ldquoalgazarrardquo sugere nesta leitura transcul-tural do discurso reacutegio a relaccedilatildeo ambivalente galega aacuterabe como fundadora Esta insinuaccedilatildeo integra-se numa paroacutedia do discurso da identidade nacional nomeadamente na sua projecccedilatildeo anacroacutenica para a Idade Meacutedia ndash um aspecto que fica esbatido na traduccedilatildeo ale-matilde22 Uma leitura semelhante sugere a mensagem do rei de Eacutevora aos ldquoseus irmatildeos de Lisboardquo cuja traduccedilatildeo comentada ao portu-guecircs actual brinca com a identidade estereotipada de alentejanos

Aguentem aiacute os malvados que a minha tropa de alentejanos jaacute vai a caminho dizemo-lo assim por vir essa gente de aleacutem do Tejo ficando demonstrado de caminho que jaacute havia alentejanos antes de haver portugueses (176)

Para o leitor da traduccedilatildeo a existecircncia historicamente invertida de ldquoAlentejanerrdquo antes dos ldquoPortugiesenrdquo natildeo possui significado centrando-se a atenccedilatildeo na identificaccedilatildeo de ldquodiese Leute von jenseits des Tejordquo como ldquoAlentejanerrdquo (212) De facto a epiacutestola latina cita mensagens entre os mouros de Lisboa e o rei de Eacutevora desta-cando a ajuda de um inteacuterprete para poder incorporaacute-las no texto23 Obviamente a missiva reacutegia natildeo menciona alentejanos e transmite precisamente o contraacuterio a recusa do envio de tropas alegando a existecircncia de ldquotreacuteguas com o rei dos portuguesesrdquo (Conquista 64)

Estas manipulaccedilotildees mostram que Raimundo Silva eacute cada vez mais consciente da leitura escrita como cruzamento entre dimen-satildeo linguiacutestica e cultural no eixo temporal vaacutelido para a questatildeo da traduccedilatildeo24 no sentido das reflexotildees de Andreacute Lefevere (1992) Horst Turk (1992) e Susan Bassnett (1998) que analisam o texto tra-duzido ldquoembedded in its network of both source and target cultural signsrdquo (Bassnett9) Transcendo uma definiccedilatildeo estaacutetica de ldquocultural signsrdquo e da ldquohybridizationrdquo de Homi Bhabha podemos falar da

125Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

traduccedilatildeo como crioulizaccedilatildeo (Stoll 2005) com base em muacuteltiplos processos de mudanccedila sincroacutenicos e diacroacutenicos A paroacutedia da geacutenese da identidade portuguesa atraveacutes da criacutetica da pureza do texto-fonte (e da sua traduccedilatildeo) coincide com posiccedilotildees da historio-grafia moderna a conquista de Lisboa natildeo significa ndash conforme a Histoacuteria nacional tradicional ndash a vitoacuteria dos portugueses alcanccedilada com ajuda dos cruzados sobre os mouros significa isso sim a im-posiccedilatildeo militarmente bem sucedida do novo paradigma de pureza cristatilde implantada atraveacutes da ideologia colonizadora da Segunda Cruzada (114748) ao velho paradigma da convivecircncia segregada mais ou menos paciacutefica entre muccedilulmanos cristatildeos e judeus em estruturas poliacuteticas e sociais localmente autoacutenomas sob domiacutenio aacuterabe (Marques 68) O romance saramaguiano insinua esporadi-camente a crioulizaccedilatildeo da identidade portuguesa mas natildeo concede potencial identitaacuterio agraves populaccedilotildees cristatilde (moccedilaacuterabe) e judaica de Al-Usbuna sacrificadas por uma fracccedilatildeo dos cruzados ldquologo que o saque e o massacre exorbitaram das possibilidades de controlordquo (Marques 68) como conta em pormenor a epiacutestola Naturalmente destaca-se o bom comportamento dos ingleses e normandos (identi-dade de quem escreve) em contraste com o massacre e a devastaccedilatildeo perpetrados pelos colonenses e flamengos que ateacute matam o bispo da cidade moura25

Portanto o des-narrar saramaguiano natildeo empreende um deslo-camento transcultural tatildeo audaz como por exemplo La reivindi-cacioacuten del conde don Juliaacuten (1970) de Juan Goytisolo26 Naquele romance o narrador recupera atraveacutes da sua identificaccedilatildeo com o miacutetico lsquotraidorrsquo D Juliatildeo a identidade aacuterabe e moccedilaacuterabe termi-nando com o anuacutencio do lado aacuterabe ldquomantildeana seraacute otro diacutea la invasioacuten recomenzaraacuterdquo No entanto existe em Histoacuteria do Cerco um almuadem cego que preenche claramente o lugar do bispo anti-quiacutessimo a ser degolado como aquele por ldquoum soldado cristatildeo de mais zelosa feacuterdquo (348) A sua cegueira paradoxalmente visionaacuteria da Lisboa moura sitiada eacute contraacuteria daquela de ldquoira sanguinaacuteriardquo do seu assassino identificado como ldquoo cruzado Osberno soacute igual de nomerdquo (Saramago 40) introduzindo-se assim deliberadamente

126Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

uma homoniacutemia com o Osberno da epiacutestola (ainda tratado ndash errone-amente ndash como o seu autor) novamente recordada em ldquoo cruzado Osberno poreacutem natildeo o talrdquo27

Esta duplicaccedilatildeo de identidades com o mesmo nome adverte o leitor para ficar atento perante redefiniccedilotildees identitaacuterias como por exemplo dos sitiadores chamados ldquoos francos e os galegosrdquo28 sob comando dos cruzados e ldquoIbn Arrinque o Galegordquo (74) na perspetiva dos mouros recriada na mente de Raimundo Silva O almuadem na sua torre complementa ndash atraveacutes dos tempos ndash a posiccedilatildeo de Raimundo Silva ldquoque hoje quase tatildeo cego se vecirc como elerdquo (33) Significativamente o revisor apercebe-se ldquode que mora no preciso lugar onde antigamente se abria a Porta de Alfofardquo configurando-se assim topograficamente a incerteza (que corresponde ao des-narrar) ldquose Raimundo Silva eacute um si-tiado ou um sitiante vencedor futuro ou perdedor sem remeacutediordquo (75) Nos seus passeios por Lisboa ele revivifica uma cidade dividida entre zonas dos sitiados e dos atacantes entretecendo ldquodois temposrdquo (242) passado e presente29 A ambiguidade nos eixos de lugar e tempo transfere-se natildeo soacute agrave histoacuteria aplicando o tema da cegueira ateacute ao processo da sua recepccedilatildeo ldquo(hellip) esta [histoacuteria] de agora comeccedilada soacute poderaacute lecirc-la quem os olhos ti-ver luacutecidos e abertos natildeo um cegordquo (243) transfere-se tambeacutem agrave liacutengua na qual estaacute escrita o texto insinuando-se um regresso a outra fonte nas duas dimensotildees de identidade cultural e texto que evoca aquela transformaccedilatildeo da liacutengua castelhana em aacuterabe realizada nas uacuteltimas duas paacuteginas de Juan sin Tierra (1975) de Juan Goytisolo ldquo(hellip) as matildeos de Raimundo Silva pousam sobre a uacuteltima folha escrita umas linhas negras indecifraacuteveis talvez de araacutebiga liacutengua natildeo estivemos atentos agrave voz do almuademrdquo (Sara-mago 243) Na accedilatildeo mediadora do revisor confluem a voz aacuterabe do almuadem e a escrita latina do cleacuterigo Roger Na reescrita inicialmente soacute mental do lsquolivro do historiadorrsquo Raimundo Sil-va procura uma reconstruccedilatildeo contextualizada de ambos os lados (cristatildeos muccedilulmanos) por exemplo corrigindo o significado da cegueira do almuadem

127Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

() natildeo foi erro escrever porque enfim escrito estaacute que era cego o almuadem O historiador soacute fala de minarete e muezim talvez ignorasse que quase todos os almuadens naquele tempo e por muito tempo depois eram cegos (29

() es war kein Fehler und geschrieben ist es nun mal daszlig der Muezzin blind war Der Historiker der da lediglich von Minarett und Muezzin schreibt wuszligte vielleicht nicht daszlig fast alle Muezzins damals und noch lange danach blind waren (32)

O revisor identifica ldquominareterdquo e ldquomuezimrdquo como palavras li-gadas ao orientalismo dos seacuteculos XVIII e XIX Apesar de ser um fenoacutemeno transnacional europeu o orientalismo teve maior atracccedilatildeo na cultura francesa que espalhou para outras liacutenguas eu-ropeias as vozes aacuterabes importadas pela via oriental o Impeacuterio Otomano (Turquia) na sua expansatildeo europeia a partir do seacuteculo XIV (ponto alto conquista de Constantinopla em 1453) tinha dei-xado vestiacutegios nomeadamente na cultura austriacuteaca no acircmbito dos Tuumlrkenkriege (ponto de viragem Cerco de Viena em 1683) que serviram de base para o orientalismo francecircs Raimundo Silva pre-fere o uso da palavra ldquoalmuademrdquo de maior e mais antiga presen-ccedila na liacutengua portuguesa30 importada directamente e recuperada no Romantismo pelas Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano tal como ldquoalmaacutedenardquo em vez de ldquominareterdquo (Machado 62) A tra-duccedilatildeo alematilde natildeo assinala esta tentativa de maior lsquopurezarsquo histoacuterica no discurso sobre a identidade moura mantendo a denominaccedilatildeo invariaacutevel ldquoMuezzinrdquo embora exista a alternativa lexical menos usada de ldquoMuaddhinrdquo (Brockhaus 229)31

No contexto do pensamento poacutes-colonial esta reaquisiccedilatildeo dos processos de imaginaccedilatildeo depois das imposiccedilotildees coloniais europeias que comeccedila em princiacutepio pelo Romantismo (Herculano Garrett) revela a raiz histoacuterica da especificidade relacional portuguesa co-lonizada colonizadora isto eacute a harmonizaccedilatildeo mais ou menos voluntaacuteria da poliacutetica existente de poder regional na Peniacutensula Ibeacute-

128Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

rica com a ideologia colonizadora das cruzadas Para aleacutem de uma subtil reivindicaccedilatildeo da identidade moura Histoacuteria do Cerco de Lisboa se cinge quase unicamente agrave revisatildeo da identidade conquis-tadora na qual entra a identidade alematilde ndash um aspecto importante para a traduccedilatildeo Assim estabelece-se uma certa inversatildeo embora natildeo perfeita de identidade alteridade em geral o leitor alematildeo estaacute pouco familiarizado com a geacutenese da identidade portuguesa e ignora a configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica que eacute responsaacutevel pelo excesso identitaacuterio desconhecendo tambeacutem a participaccedilatildeo bem documentada de actores vindos de terras alematildes Eles aparecem no romance logo quando Raimundo Silva comeccedila a reler a epiacutestola na sua procura da ldquofonte limpardquo

(hellip) a informaccedilatildeo eacute de boa origem diz-se que directamente do ceacutelebre Osberno e assim podemos ficar a saber que es-tava o conde Arnoldo de Aarschot o qual comandava os guerreiros vindos de diversas partes do impeacuterio germacircni-co que estava Cristiano de Gistell chefe dos flamengos e bolonheses (hellip) (124)

Seguindo a teia intertextual regressamos ao texto-fonte que em contraste com a citada Croacutenica de Portugal de 1419 narra na perspectiva de uma expediccedilatildeo militar

Igitur apud portum de Dertemunde diversarum nationum et morum et linguarum gentes navibus cicrciter CLXIIII convenere Horum omnium trifariam partitur exercitus Sub comite Arnoldo de Arescot nepote Godefridi ducis a romani imperii partibus secedit exercitus Sub Christiano de Gistello flandrenses et bononenses32

A mudanccedila para ldquoimpeacuterio germacircnicordquo (124) corresponde agrave nota explicativa do tradutor JA de Oliveira33 No entanto natildeo se expli-

129Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ca a substituiccedilatildeo de ldquobononensesrdquo por ldquobolonhesesrdquo Naturalmen-te as duas mudanccedilas reflectem-se na traduccedilatildeo alematilde que toma o romance saramaguiano como texto-fonte

(hellip) Information aus verlaumlszliglicher Quelle dem Vernehmen nach direkt vom beruumlhmten Osberno persoumlnlich und also koumlnnen wir uns vergewissern daszlig da Graf Arnoldo de Aar-schot zugegen war der die aus verschiedenen Regionen des deutschen Kaiserreiches herbeigestroumlmten Krieger befehlig-te und Cristiano de Gistell der den Flamen und Bologne-sern vorstand (hellip) (150)

Na traduccedilatildeo alematilde nomes proacuteprios estrangeiros natildeo satildeo lsquore-patriadosrsquo nem o proacuteprio Osberne nem Arnold ou Christian que ficam todos na grafia romacircnica No entanto ldquoimpeacuterio germacircni-cordquo passa para ldquodeutsches Kaiserreichrdquo uma traduccedilatildeo que insinua uma projecccedilatildeo anacroacutenica do seacuteculo XIX (refundaccedilatildeo do Heiliges Roumlmisches Reich Deutscher Nation como Deutsches Kaiserreich em 1871) natildeo pretendida no texto-fonte Naturalmente a traduccedilatildeo alematilde ignora a possibilidade latente jaacute apagada no texto sarama-guiano de encontrar a identidade alematilde nos ldquobononensesrdquo mal transcritos em ldquobolonhesesrdquo34 Esta transcriccedilatildeo defeituosa surpre-ende porque eacute a personalidade do cavaleiro Henrique de Bona ausente na epiacutestola35 que teve o maior relevo individual na histo-riografia portuguesa entre os ldquosamtos cavaleyros martiresrdquo

Nesta tomada de Lisboa morerom alguns cavaleyros como martires e depois faziam muytos milagres amtre os quaes foy hum cavaleyro chamado Amriqe alematildeo o qual era de hũa vila que chamom Bona posta jumto de Colonha o qual foy enterado em Sam Viccedilemte honde fazia muytos milagres (hellip) (Croacutenica 50)

130Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Merecendo destaque na histoacuteria da fundaccedilatildeo do mosteiro de Satildeo Vicente com episoacutedios de acccedilatildeo milagrosa depois de morto (Indiculum 83-85 Croacutenica 50-52) Henrique de Bona torna-se uma personagem da Histoacuteria portuguesa digna de entrar nrsquo Os Lu-siacuteadas (VIII 18) Procede-se a uma apropriaccedilatildeo do estrangeiro colonizador o alematildeo Henrique torna-se depois de ter vertido ldquode gram voontade o seu sangue antre os mouros pola paixom do Nosso Salvador Jesu Cristordquo (Indiculum 83) no maior Santo Cavaleiro da Tomada de Lisboa Na Alemanha ele estaacute totalmente desconhecido a natildeo ser no acircmbito da retoacuterica diplomaacutetica bila-teral na qual aparece natildeo como maacutertir mas como fundador dos ldquolaccedilos da amizade secular que liga o povo da Alemanha ao de Por-tugalrdquo (Ehrhardt 11) projectando a ajuda dos cruzados na geacutenese do reino de Portugal numa lsquolenda de auxiacuteliorsquo para todas as eacutepocas posteriores

Numa abordagem criacutetica observamos um duplo branqueamen-to (1) da memoacuteria do saque cruel e devastador da Lisboa moura perpetrado pelos cruzados colonenses e flandrenses e (2) da rela-ccedilatildeo colonizadora entre aliados no contexto da Europa Cingimo--nos no acircmbito deste estudo agrave anaacutelise do episoacutedio da torre moacutevel No romance a ideia da sua construccedilatildeo eacute atribuiacuteda ao cavaleiro Henrique manipulando as fontes histoacutericas que falam de engenhos militares em competiccedilatildeo entre os diferentes grupos eacutetnicos ou destacam ldquoum engenheiro italiano natural de Pisardquo36 O discurso profeacutetico de superioridade cultural deste cavaleiro revela os moti-vos desta escolha

Grandes satildeo as vantagens que a Portugal adviratildeo de imitar neste como noutros casos o que na Europa se vai fazendo de mais moderno ainda que ao princiacutepio experimenteis dificuldades em meter na cabeccedila as tecnologias novas eu por mim sei da construccedilatildeo das tais torres o suficiente para os naturais daqui (hellip) (251)

131Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Groszlige Vorteile sind Portugal gewiszlig wenn es in diesem wie in anderen Faumlllen nachahmt was man in Europa an houmlchst modernen Dingen tut mag es euch anfaumlnglich auch schwerfallen die neuen Techniken in euren Kopf hinein-zukriegen ich meinerseits weiszlig vom Bau besagter Tuumlrme hinreichend viel um die hiesigen Eingeborenen zu unter-richten () (305)

Mesmo a traduccedilatildeo alematilde transmite a ideia de que a fala do cavaleiro Henrique perante o primeiro rei portuguecircs conteacutem uma paroacutedia do discurso poliacutetico actual que natildeo se cansa de propagar a imitaccedilatildeo da Europa avanccedilada representada pela capacidade eco-noacutemica e tecnoloacutegica de Alemanha em competiccedilatildeo com outras na-ccedilotildees Ao mesmo tempo projecta-se ndash apresentado como verdade de fora ndash a auto-imagem humilhante dos ldquonaturaisrdquo37 como matildeo-de--obra sem formaccedilatildeo agrave mercecirc das decisotildees de governantes que pac-tuam com os estrangeiros (252) como condiccedilatildeo da proacutepria geacutenese nacional No entanto a derrota da torre tatildeo bem construiacuteda que conduz ateacute agrave morte do seu construtor faz surgir a criacutetica dos ldquoen-genhos estrangeiros que tanto podem estar a favor como contrardquo (316) parodiando-se assim tanto a lsquolenda de auxiacuteliorsquo e a atitude colonizadora como o projecto portuguecircs de modernizaccedilatildeo europeia (Grossegesse 1995 228)

Reservando uma anaacutelise da constelaccedilatildeo transcultural entre o ca-valeiro alematildeo Henrique a sua ldquobarregatilderdquo Ouroana38 e o soldado Mogueime para outra ocasiatildeo centramo-nos num aspecto de jogo intertextual que ainda recebeu pouca atenccedilatildeo Face agrave ausecircncia do episoacutedio da torre moacutevel e da personalidade de Henrique de Bona na epiacutestola dirigida a Osberno eacute significativo que o romance sara-maguiano invente ldquoapontamentos para a carta de Osbernordquo (308) contendo estes em todo pormenor a histoacuteria do cavaleiro Henri-que A explicaccedilatildeo psicanaliacutetica de Ersatz para esta escrita do Frei Rogeiro39 tambeacutem eacute vaacutelida para o revisor Raimundo que insere na sua reescrita do Cerco de Lisboa a histoacuteria da conquista amorosa de Ouroana por Mogueime possibilitada pela morte do cavaleiro

132Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

alematildeo que espelha ndash atraveacutes dos tempos ndash a sua proacutepria lsquoconquis-tarsquo de Maria Sara

Com a ficccedilatildeo do texto apoacutecrifo inaugura-se uma hibridizaccedilatildeo transcultural das proacuteprias fontes histoacutericas possibilitando um amalgamar das narrativas dos cruzados com a Histoacuteria nacional e o lendaacuterio portuguecircs que culmina na releitura dos milagres do cava-leiro Henrique em simultacircneo com os milagres de Santo Antoacutenio o padroeiro mais popular de Lisboa A intersecccedilatildeo de milagres de ambos pelas leituras simultacircneas de Maria Sara e Raimundo eacute um acto que subverte tanto a procura da verdade histoacuterica como o conceito de identidades delimitadas por territoacuterio sangue e liacutengua Numa espeacutecie de metalepse o proacuteprio Frei Rogeiro apoacutes ter com-pilado ldquoos apontamentos que havia tomado durante uma volta que dera por todos os arraiaisrdquo (331) participa no episoacutedio milagroso ldquoComo o cavaleyro Amrique apareccedileo em sonhos a hum homem botildeo e como lhe disse que soterasem seu escudeiro a par delerdquo (Croacute-nica 51 cf Indiculum 84-85) cumprindo o papel daquele homem bom natildeo identificado

Mais significativo nesta leitura de milagres transformada em reescrita paroacutedica eacute o destaque atribuiacutedo agrave questatildeo de identida-des processos de deslocaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo culminando na trans-formaccedilatildeo de um milagre do cavaleiro Henrique numa espeacutecie de contra-mito da origem da liacutengua portuguesa ao narrar o milagre dos dois homens surdos-mudos que se deitaram ao lado do moi-mento do cavaleiro (Indiculum 83-84 Croacutenica 50-51) realccedila-se a incerteza da identidade deles ldquotinham vindo na frota poreacutem natildeo se sabe se ingleses aquitanos bretotildees flandrenses ou colonen-sesrdquo (335) Estando os dois homens assim jazendo ldquoadormeceram ambos e apareceu-lhes em sonho logo o cavaleiro Henrique (hellip) e falou agravequeles mancebosrdquo (336) ndash natildeo sabemos em que liacutengua ndash anunciando a sua cura de duvidoso efeito

(hellip) e eles acordando acharam que podiam ouvir e falar tambeacutem poreacutem falavam como gagos e de maneira que natildeo se entendia que liacutengua estavam falando se a dos ingleses

133Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ou aquitanos ou bretotildees ou flandrenses ou colonenses ou conforme natildeo poucos afirmavam a liacutengua dos portu-gueses (336)

Esta manipulaccedilatildeo natildeo de fontes histoacutericas mas de uma len-da convida para uma leitura metadiscursiva em vez de ldquocom voz chlara (hellip) contar a todo o povo o milagre que Deos em eles fizerardquo (Croacutenica 51) os dois ficam gagos No entanto o problema natildeo consiste em entender o que eacute que eles dizem mas em identificar a liacutengua que eles falam Nesta leitura o milagre reinterpretado enfa-tiza a visatildeo de uma hibridizaccedilatildeo das liacutenguas e das identidades no entanto consciente da imperfeita capacidade comunicativa que eacute aplicaacutevel agraves questotildees de revisatildeo e traduccedilatildeo

Tal como o revisor Raimundo Silva dentro da ficccedilatildeo o tradutor reescreve um texto anterior no entanto noutra liacutengua e para um leitor com outro horizonte cultural A procedecircncia das fontes histoacute-ricas e a apropriaccedilatildeo do cavaleiro Henrique pelo discurso da iden-tidade portuguesa demonstram a ineficaacutecia das definiccedilotildees puras de identidade e alteridade Em vez da tentativa de uma reproduccedilatildeo de uma liacutengua na outra no fundo irrealizaacutevel a visatildeo da hibridiza-ccedilatildeo das liacutenguas e identidades advoga uma recriaccedilatildeo naturalmente sempre parcial e imperfeita daquela heterogeneidade que Histoacuteria do Cerco de Lisboa exibe ao narrar a procura de uma ldquoverdaderdquo que ldquonatildeo pode ser mais do que uma cara sobreposta agraves infinitas maacutescaras variantes (hellip)rdquo (26) Para tal activa-se ldquooutro tipo de relaccedilotildees entre os elementos (hellip) porque as coerccedilotildees impostas pelas liacutenguas levam a diferentes possibilidades de contextualizaccedilotildees de remissotildees de encadeamentos de atribuiccedilatildeo de valores entre os elementosrdquo (Rodrigues 205) Se o romance reflecte claramente a diffeacuterance (Derrida 1967) como princiacutepio universal40 destacando os processos de traduccedilatildeo e reescrita este princiacutepio deve ser vaacutelido tambeacutem para a proacutepria traduccedilatildeo como propotildee Cristina Carneiro Rodrigues na continuaccedilatildeo de Rosemary Arojo (1993)

134Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

O original vive sobrevive na e pela sua proacutepria transfor-maccedilatildeo produzida pela leitura A traduccedilatildeo natildeo transporta uma essecircncia natildeo troca ou substitui significados dados prontos em um texto por significados equivalentes em outra liacutengua A traduccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo em que o laquotexto originalraquo se daacute por sua proacutepria modificaccedilatildeo em sua trans-formaccedilatildeo (Rodrigues 206)

O romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa interrelaciona esta con-diccedilatildeo de cada texto ser texto de textos transferidos traduzidos de outros textos em contextos histoacutericos sempre diferentes com a criacutetica da lsquoorigemrsquo da identidade individual e colectiva no sentido de transculturalidade e da ldquoculturersquos hibridityrdquo (Bhabha 1989 38) ambas com base expliacutecita na diffeacuterance Se reactivarmos a teoria de Jean Ricardou (1973) relativamente ao nouveau roman podemos dizer que a aventura da leitura escrita do revisor prefigura uma aventura semelhante do tradutor Tal como o revisor transformado em tradutor e autor ele transmite uma Histoacuteria do Cerco de Lis-boa recriada para outro leitor neste caso um leitor alheio natildeo soacute agrave narraccedilatildeo tradicional desta histoacuteria num discurso identitaacuterio mas tambeacutem agrave integraccedilatildeo da sua identidade cultural neste discurso Isto torna a traduccedilatildeo deste romance uma aventura de leitura e reescrita em certa medida jaacute prevista na Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Se no processo de traduccedilatildeo o tradutor ou tradutora tem que necessariamente tomar o lugar do autor e se apossar de seu texto para que esse possa sobreviver em outra liacutengua natildeo haacute como eliminar esse momento de usurpaccedilatildeo e con-quista que a reflexatildeo desconstrutivista flagra e desmascara (Arrojo 1993 82)

Curiosamente Rosemary Arrojo emprega a mesma metaacutefora de conquista utilizada para a aventura de Raimundo Silva que abrange a conquista amorosa de Maria Sara41 Eacute precisamente a mulher

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

116Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

ali todos se prezavam de ser tinham por obrigaccedilatildeo acudir aonde mais trabalhosa fosse a obra natildeo neste cu do mundo entre labregos e tinhosos que uns deviam ser os mouros e outros os portugueses poreacutem natildeo o averiguou o historia-dor talvez por natildeo valer a pena de escolher entre os dois insultos (Saramago 47)

(hellip) nun uumlbt sich der Historiker in hohem Stil um den gro-szligen Zwist darzulegen der sich unter den Kreuzfahrern () entspann stand doch die Frage ob sie unseren Portugiesen bei der Einnahme Lissabons helfen sollten oder nicht ob hier verbleiben oder aber wie vorgesehen weiterziehen ins Heilige Land wo in tuumlrkischen Fesseln Unser Herr Je-sus Christus ihrer harrte Es argumentierten jene die am liebsten hiergeblieben waumlren die Mauren aus dieser Stadt treiben und aus ihr einen Christenhort zu machen sei glei-chermaszligen ein gottdienliches Werk und die anderen hiel-ten dagegen wenn gottdienliches Werk dann doch wohl ein minderes so hehre Ritter wie alle hier es zu sein ver-meinten haumltten die Pflicht dorthin zu eilen wo das Werk muumlhevoller sei nicht wie in diesem Weltenwinkel unter Bauersleuten und Wichten gemeint waren wohl mit den ei-nen die Mauren und mit den anderen die Portugiesen doch unterlieszlig der Historiker weitere Ergruumlndung vielleicht weil beides Schmaumlhworte waren (55)

Seja por entender ldquoembandeirar o estilordquo num sentido estrito em vez de intuir a subversatildeo da escrita pelas vozes citadas no sentido da polifonia bakhtiniana11 seja por obedecer a um conceito do politicamente correcto a versatildeo alematilde ldquoWeltenwinkelrdquo evita o equivalente ldquoArsch der Weltrdquo da expressatildeo escatoloacutegica ldquocu do mundordquo estereotipada no discurso da identidade portuguesa do seacute-culo XX Tambeacutem suaviza os insultos que expressam a superiori-dade colonizadora dos cruzados natildeo soacute relativamente aos mouros mas tambeacutem aos portugueses a traduccedilatildeo inofensiva de ldquoBauers-leuterdquo e ldquoWichterdquo anula a semacircntica insultuosa de ldquolabregosrdquo12 e

117Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ldquotinhososrdquo Com isto atenua-se a atitude de arrogacircncia dos ldquoca-valeiros tatildeo principaisrdquo que natildeo acham necessidade de diferenciar entre portugueses e mouros A traduccedilatildeo natildeo consegue transferir a paroacutedia da identidade portuguesa que dialoga com o leitor impliacute-cito (Iser 1972) do original para o perfil do leitor da traduccedilatildeo de maior afinidade cultural com os cruzados Trata-se de um leitor desprovido (1) da ldquoenciclopeacutedia do mundo portuguecircsrdquo (Caragea 209) e (2) da socializaccedilatildeo no contexto da realidade poliacutetica e social portuguesa dos anos oitenta e noventa com a memoacuteria do 25 de Abril de 1974 (por exemplo impliacutecita no perfil da personagem Mogueime como preacute-figuraccedilatildeo de Salgado Maia)

Esta dupla dificuldade que ndash com o tempo ndash tambeacutem surgi-raacute cada vez mais para o texto-fonte conduz agrave questatildeo do texto comentado que discute Horst Turk (1992) exemplificando-a no romance La reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten de Juan Goytisolo (em reediccedilatildeo comentada a partir de 1985) e na sua traduccedilatildeo alematilde (natildeo comentada) No caso de Histoacuteria do Cerco de Lisboa ainda natildeo existe uma ediccedilatildeo comentada do original Entre as traduccedilotildees a alematilde de Andreas Klotsch (1992) prescinde de comentaacuterio tal como a inglesa de Giovanni Pontiero (1996) que se cinge a um bre-ve prefaacutecio no entanto a romena por exemplo eacute acompanhada por um proacutelogo extenso e notas explicativas da tradutora Mioara Caragea13 Pelo comentaacuterio e pela ausecircncia dele acentuam-se as duas caras de Iano (Januskoumlpfigkeit) da traduccedilatildeo ela representa o texto-fonte e substitui o texto-fonte na literatura-alvo Mais ainda a traduccedilatildeo eacute tambeacutem em todas as literaturas um lugar privilegiado para articular qualidades de diferenccedila14 Destas deliberaccedilotildees surge como questatildeo central a traduccedilatildeo alematilde natildeo comentada da Histoacuteria do Cerco de Lisboa eacute capaz de transmitir a paroacutedia de identidade alteridade cultural (nacional) do texto-fonte

Ao falar do handicap do leitor desprovido da ldquoenciclopeacutedia do mundo portuguecircsrdquo (Caragea 209) prolonga-se a abordagem purista em vez de se repensar tambeacutem esta enciclopeacutedia de forma transcultural Com isto evidencia-se o cruzamento de identidades em constante mudanccedila desde as fontes histoacutericas citadas no lsquolivro

118Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

do historiadorrsquo ateacute agrave proacutepria traduccedilatildeo do romance Jaacute o historiador cujo livro Raimundo Silva revisa concede destaque entre as fon-tes ao ldquoceacutelebre Osbernordquo (Saramago 124) privilegiando assim a narrativa epistolar de um cruzado oriundo da regiatildeo de Norfolk ou Suffolk que participou no Cerco Atualmente eacute considerada ldquotalvez a principal fonte histoacutericardquo (Alves 13) A carta dirigida a uma personalidade inglesa estaacute escrita em latim Por isso Cru-cesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis15 integra natildeo soacute uma visatildeo desde o exterior portanto afastada da construccedilatildeo da Histoacuteria nacional mas tambeacutem um texto noutra liacutengua A proacutepria narrativa marginaliza a identidade portuguesa natildeo soacute no contexto geral do antagonismo entre cruzados (identidade comum francos) e mouros16 mas tambeacutem pela divisatildeo entre por um lado norman-dos e ingleses (no texto a identidade proacutepria) e por outro colo-nenses e flamengos natildeo soacute desunidos na decisatildeo inicial (participar ou natildeo) mas tambeacutem com diferentes comportamentos durante o cerco e no saque da cidade conquistada (Conquista 83) Com estas caracteriacutesticas este texto fornece por um lado bases para uma narraccedilatildeo fundadora da identidade portuguesa desvalorizando sobretudo eticamente a colaboraccedilatildeo dos cruzados e por outro o preacute-texto de uma des-narraccedilatildeo transcultural aproximando-se da historiografia criacutetica mais recente na qual se procede a uma negaccedilatildeo da narrativa fundacional nacional17 As possiacuteveis releitu-ras fundamentam a paroacutedia do sbquoexcesso identitaacuteriorsquo portuguecircs no romance saramaguiano que se centra na retroprojeccedilatildeo anacroacutenica natildeo soacute da categoria de nacional mas tambeacutem da outra da cate-goria de estrangeiro Basta pensarmos no anacronismo das quinas de Portugal (soacute a partir de Sancho I) a substituir o crescente (na realidade invenccedilatildeo do impeacuterio otomano) que despertam a ira do revisor quando chega agraves paacuteginas finais do lsquolivro do historiadorrsquo (41-42) Nada disto se encontra nas fontes Tambeacutem a traduccedilatildeo ldquopassou a corrupta mesquita a puriacutessima igreja catoacutelicardquo (40) en-fatiza um antagonismo identitaacuterio (muccedilulmano cristatildeo) que no texto-fonte fica subentendido ldquopurificatum est templumrdquo ldquofoi purificado o templordquo (Conquista 85) Mais interessante relativa-

119Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

mente ao leitor impliacutecito de traduccedilotildees para as liacutenguas do Centro Norte da Europa eacute o seguinte trecho

O pessoal que veio a esta fala parlamentar eacute todo de portu-gueses natildeo pareceu bem a el-rei servir-se de estrangeiros para o reforccedilo do ultimatum ainda que diga-se de pas-sagem subsistam grandes duacutevidas de que o arcebispo de Braga pertenccedila de facto ao nosso sangue lusitano mas enfim jaacute nesses antigos tempos tinha principiado a fama que mantivemos ateacute hoje de receber bem a gente de fora distribuir-lhes cargos e prebendas e este D Joatildeo Peculiar vaacute laacute pagou-nos multiplicado em serviccedilos patrioacuteticos E se como tambeacutem se diz era mesmo portuguecircs e de Coimbra vejamo-lo como pioneiro da nossa vocaccedilatildeo migratoacuteria da magniacutefica diaacutespora pois toda a sua juventude a passou em Franccedila a estudar devendo notar-se aqui uma acentuada diferenccedila em relaccedilatildeo agraves tendecircncias recentes da nossa emig-raccedilatildeo para aquele paiacutes plutocirct adstrita aos trabalhos sujos e pesados (197-98)

O problema de transmitir o sentido paroacutedico na traduccedilatildeo18 por exemplo da eterna vocaccedilatildeo migratoacuteria bdquounserer migratoris-chen Berufung unserer wundervollen Diasporaldquo (240) culmina na dificuldade de incluir o leitor impliacutecito da traduccedilatildeo na situaccedilatildeo enunciativa isto eacute neste caso ele se deveria rever no lsquoestrangei-rorsquo vindo da Franccedila e indo aleacutem das dicotomias aperceber-se da relatividade das categorias

Eacute significativo que o revisor Raimundo Silva chegue a este tipo de des-narraccedilatildeo atraveacutes de uma criacutetica da traduccedilatildeo que fundamenta o proacuteprio acto de alterar o lsquolivro do historiadorrsquo a partir do ldquonatildeordquo Natildeo eacute tanto o ldquorigor da traduccedilatildeordquo (44) que estaacute em causa mas a sua verossimilhanccedila Precisamente por duvidar dos conhecimentos de latim das capacidades retoacutericas e em geral da cultura de Afon-so Henriques Raimundo Silva considera ldquoa primeira fala averigua-da do nosso rei fundadorrdquo nada menos do que ldquouma absurdidaderdquo

120Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

(43) negando de passagem tambeacutem o uso da liacutengua portuguesa que a tradicional narrativa fundacional de Portugal assume com naturalidade

(hellip) eacute de supor que o real menino aleacutem de explicar-se natu-ralmente em galego latinizaria o quantum satis para poder declamar chegada a hora perante tantos e tatildeo cultos cru-zados estrangeiros a arenga supracitada uma vez que eles de liacutenguas natildeo entenderiam entatildeo mais do que a sua de berccedilo e iguais rudimentos da outra com a ajuda dos frades inteacuterpretes (Saramago 44)

Esta duacutevida sobre a pureza do discurso reacutegio reproduzido na epiacutestola e traduzido pelo historiador torna-se em ldquoleitura paroacutedica (hellip) pela contextualizaccedilatildeo dramaacuteticardquo (Caragea 2003 235) O que Raimundo Silva ldquoem voz alta lecirc como um arauto lanccedilando as pro-clamasrdquo (P 45) ldquosituando portanto a sua reinterpretaccedilatildeo na zona pragmaacutetica da pronuntiatiordquo (Caragea 235) corresponde ipsis verbis com uma ou outra inversatildeo agrave traduccedilatildeo de JA de Oliveira (Conquista 44) A performance retoacuterica natildeo soacute ldquoacaba de inculcar no revisor um sentimento de distanciamento iroacutenico em relaccedilatildeo agraves palavras do reirdquo (Caragea 235) mas questiona sobretudo as noccedilotildees de texto-fonte e traduccedilatildeo fiel ao texto-fonte

Ao aprender que a invisibilidade do tradutor eacute falaz o revisor daacute o primeiro passo para a sua proacutepria visibilidade autoral Assim a ldquometaficccedilatildeo historiograacuteficardquo (Kaufman 1991) nasce directamen-te do dialogismo no sentido bakhtiniano com Joseacute Augusto de Oliveira simultaneamente ele eacute tradutor da epiacutestola publicada em ediccedilatildeo bilingue (1935) e autor da revisatildeo historiograacutefica intitulada ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem con-tar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo apresentada em 1940 Em vez de tomar a epiacutestola ldquodita de Osbernordquo como texto-fonte homogeacuteneo e traduzi-lo do latim como o fez o ldquoproacuteprio autor da Histoacuteriardquo (Saramago 43) facilmente reconheciacutevel como figuraccedilatildeo de Joseacute

121Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Augusto de Oliveira Raimundo Silva duvida natildeo soacute da pureza da fonte e subsequentemente da fidelidade da traduccedilatildeo mas tambeacutem da identidade do autor da epiacutestola Pelo tiacutetulo Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) Narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial da ediccedilatildeo bilingue esta identidade parece uniacutevoca mas natildeo eacute por exemplo Joseacute F Alves (2004) considera ldquobem coe-renterdquo que a primeira linha do texto latino ldquoOsb de Baldr R salutemrdquo indique um Osb de Baldr (Osberno ou Osberto ou Osborne) como destinataacuterio de ldquouma missiva mesmo sobrescrita apenas por um Rrdquo conjecturando-se o nome de Rogeacuterio19 Apor-tuguesando-se o nome Roger para Rogeiro o romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa assume esta suposiccedilatildeo ndash em oposiccedilatildeo ao lsquolivro do historiadorrsquo que considera Osberno um cruzado letrado O frade eacute apresentado na frase que continua a citaccedilatildeo anterior sobre a iden-tidade eacutetnica indefinida de D Joatildeo Peculiar arcebispo de Braga

Quem eacute indubitavelmente estrangeiro mas contado agrave parte por vir em missatildeo especial nem parlamentaacuterio nem homem de guerra eacute aquele frade ruivo e sardento ali a quem ago-ra mesmo ouvimos chamar Rogeiro mas que realmente tem por nome Roger o que deixaria em aberto a questatildeo de ser ele inglecircs ou normando (hellip) (198)

A identidade de Roger Rogeiro embora etnicamente indecisa oferece ndash na traduccedilatildeo para inglecircs e tambeacutem para alematildeo ndash uma afinidade cultural com o leitor impliacutecito reforccedilada pelo fiacutesico in-confundiacutevel noacuterdico ldquothat sandy-haired freckled friarrdquo (Sarama-go 1996 176) bdquojener blonde sommersprossige Paterldquo (241) No romance Frei Rogeiro cumpre o papel de ldquocronistardquo que transpotildee um conjunto multilingue de falas numa escrita coerente e homo-geacutenea Por exemplo no caso do discurso do arcebispo de Braga

Rogeiro logo em abreviado e taquigraacutefico o registou para mais tarde deixando os aformoseamentos oratoacuterios com que

122Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

brindaraacute aquele seu destinataacuterio distante Osberno chama-do laacute onde quer que esteja e quem quer que tenha sido poreacutem jaacute vai introduzindo redondeios de lavra proacutepria fru-tos de inspiraccedilatildeo estimulada (hellip) (200)

Significativamente Roger Rogeiro natildeo eacute tradutor mas ndash tal como o revisor Raimundo Silva ndash portador da consciecircncia de que tudo eacute traduccedilatildeo correspondendo ao latim o privileacutegio da liacutengua veicular

Este Rogeiro natildeo conhece uma palavra de araacutebigo nem de galego mas neste caso natildeo seraacute impedimento a ignoracircncia pois todo o debate vaacute por onde vaacute sempre iraacute dar ao latim graccedilas aos inteacuterpretes e aos tradutores simultacircneos (198)

De facto esta consciecircncia do plurilinguismo caracteriza Cruce-signati anglici epistola de expugnatione olisiponis desde o iniacutecio falando dos cruzados ldquoInter hos tot linguarum populos firmissima concordiae atque amititiaerdquo (Conquista 21) As falas de cruzados portugueses e mouros aparecem ou em citaccedilotildees traduzidas (de ou-tras liacutenguas para latim) ou em liacutengua latina para serem traduzidas no contexto do cerco Ambas satildeo adaptadas a um texto composto conforme as retoacutericas claacutessica e biacuteblica Eacute a proacutepria epiacutestola que refere a necessidade de traduccedilatildeo por exemplo do discurso do bispo do Porto proferido em latim perante a multidatildeo plurilingue dos cruzados reunidos20 Em contraste eacute significativo que o tradutor JA de Oliveira defenda ldquouma versatildeo que sem trair o pensamen-to se libertasse da escravidatildeo da letrardquo em vez de encher ldquoo texto portuguecircs com antigos vocaacutebulos forrageando-os nas velhas croacute-nicas conhecidas dos eruditosrdquo (Oliveira 1935 18) outorgando agrave sua traduccedilatildeo uma missatildeo nacionalista

Assim espero-o todos entenderatildeo este velho monumento da nossa histoacuteria e nesta hora de ressurgimento neste des-

123Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

pertar de energias e rasgar-se de horizontes novos faraacute bem aos portugueses de hoje ouvir falar a alma dos que agrave forccedila de braccedilo com persistecircncia com teimosia com obstinaccedilatildeo e com amor souberam ungir com o proacuteprio sangue os alic-erces desta nossa Paacutetria que eles nos deixaram para a con-servarmos amorosamente digna honrada e livre (Oliveira 1935 19)

Quem afirma assim uma leitura nacionalista de uma epiacutestola no fundo totalmente alheia ao objectivo de alicerccedilar a Histoacuteria nacional esconjura o que natildeo quer ver entregando-se agrave ldquotarefa permanente de nos iludirmosrdquo que critica Pacheco Pereira (2006) no caso das reacccedilotildees ao discurso de Jack Welsh Longe de com-preender a utilidade particular do confronto com a nossa imagem vista de fora JA de Oliveira concebe a sua traduccedilatildeo da epiacutestola estrangeira como contributo agrave legibilidade culturalmente coerente e homogeacutenea do ldquovelho monumento da nossa histoacuteriardquo A fideli-dade da traduccedilatildeo revela-se enganadora atraveacutes da leitura criacutetica de Raimundo Silva Assim a palavra aacuterabe ldquoalgazarrardquo que JA de Oliveira escolheu para traduzir ldquoconclamatiordquo na fala (por sua vez traduzida) de D Afonso Henriques21 evidencia natildeo soacute a homoge-neizaccedilatildeo do plurilinguismo tanto no texto-fonte como na traduccedilatildeo mas tambeacutem ndash numa leitura contraacuteria ndash a crioulizaccedilatildeo da identida-de portuguesa

Acertara D Afonso Henriques em cheio quando prognos-ticou que o exame da sua proposta acabaria em algazarra palavra que sendo aacuterabe de nacionalidade igualmente serve a qualquer gritar e vozear de colonenses flamengos bolon-heses bretotildees escoceses e normandos misturados (47-48)

Vollkommen recht hatte Dom Afonso Henriques mit der Voraussicht sein Vorschlag werde eine algazarra ausloumlsen dieses Wort obzwar arabischer Abkunft ist auch dienlich jedwedes ereiferndes Geschrei und Gekreisch der Koumllner

124Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Flamen Bologneser Bretonen Schotten und Normannen und aller durcheinander zu bezeichnen (56)

Portanto a palavra ldquoalgazarrardquo sugere nesta leitura transcul-tural do discurso reacutegio a relaccedilatildeo ambivalente galega aacuterabe como fundadora Esta insinuaccedilatildeo integra-se numa paroacutedia do discurso da identidade nacional nomeadamente na sua projecccedilatildeo anacroacutenica para a Idade Meacutedia ndash um aspecto que fica esbatido na traduccedilatildeo ale-matilde22 Uma leitura semelhante sugere a mensagem do rei de Eacutevora aos ldquoseus irmatildeos de Lisboardquo cuja traduccedilatildeo comentada ao portu-guecircs actual brinca com a identidade estereotipada de alentejanos

Aguentem aiacute os malvados que a minha tropa de alentejanos jaacute vai a caminho dizemo-lo assim por vir essa gente de aleacutem do Tejo ficando demonstrado de caminho que jaacute havia alentejanos antes de haver portugueses (176)

Para o leitor da traduccedilatildeo a existecircncia historicamente invertida de ldquoAlentejanerrdquo antes dos ldquoPortugiesenrdquo natildeo possui significado centrando-se a atenccedilatildeo na identificaccedilatildeo de ldquodiese Leute von jenseits des Tejordquo como ldquoAlentejanerrdquo (212) De facto a epiacutestola latina cita mensagens entre os mouros de Lisboa e o rei de Eacutevora desta-cando a ajuda de um inteacuterprete para poder incorporaacute-las no texto23 Obviamente a missiva reacutegia natildeo menciona alentejanos e transmite precisamente o contraacuterio a recusa do envio de tropas alegando a existecircncia de ldquotreacuteguas com o rei dos portuguesesrdquo (Conquista 64)

Estas manipulaccedilotildees mostram que Raimundo Silva eacute cada vez mais consciente da leitura escrita como cruzamento entre dimen-satildeo linguiacutestica e cultural no eixo temporal vaacutelido para a questatildeo da traduccedilatildeo24 no sentido das reflexotildees de Andreacute Lefevere (1992) Horst Turk (1992) e Susan Bassnett (1998) que analisam o texto tra-duzido ldquoembedded in its network of both source and target cultural signsrdquo (Bassnett9) Transcendo uma definiccedilatildeo estaacutetica de ldquocultural signsrdquo e da ldquohybridizationrdquo de Homi Bhabha podemos falar da

125Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

traduccedilatildeo como crioulizaccedilatildeo (Stoll 2005) com base em muacuteltiplos processos de mudanccedila sincroacutenicos e diacroacutenicos A paroacutedia da geacutenese da identidade portuguesa atraveacutes da criacutetica da pureza do texto-fonte (e da sua traduccedilatildeo) coincide com posiccedilotildees da historio-grafia moderna a conquista de Lisboa natildeo significa ndash conforme a Histoacuteria nacional tradicional ndash a vitoacuteria dos portugueses alcanccedilada com ajuda dos cruzados sobre os mouros significa isso sim a im-posiccedilatildeo militarmente bem sucedida do novo paradigma de pureza cristatilde implantada atraveacutes da ideologia colonizadora da Segunda Cruzada (114748) ao velho paradigma da convivecircncia segregada mais ou menos paciacutefica entre muccedilulmanos cristatildeos e judeus em estruturas poliacuteticas e sociais localmente autoacutenomas sob domiacutenio aacuterabe (Marques 68) O romance saramaguiano insinua esporadi-camente a crioulizaccedilatildeo da identidade portuguesa mas natildeo concede potencial identitaacuterio agraves populaccedilotildees cristatilde (moccedilaacuterabe) e judaica de Al-Usbuna sacrificadas por uma fracccedilatildeo dos cruzados ldquologo que o saque e o massacre exorbitaram das possibilidades de controlordquo (Marques 68) como conta em pormenor a epiacutestola Naturalmente destaca-se o bom comportamento dos ingleses e normandos (identi-dade de quem escreve) em contraste com o massacre e a devastaccedilatildeo perpetrados pelos colonenses e flamengos que ateacute matam o bispo da cidade moura25

Portanto o des-narrar saramaguiano natildeo empreende um deslo-camento transcultural tatildeo audaz como por exemplo La reivindi-cacioacuten del conde don Juliaacuten (1970) de Juan Goytisolo26 Naquele romance o narrador recupera atraveacutes da sua identificaccedilatildeo com o miacutetico lsquotraidorrsquo D Juliatildeo a identidade aacuterabe e moccedilaacuterabe termi-nando com o anuacutencio do lado aacuterabe ldquomantildeana seraacute otro diacutea la invasioacuten recomenzaraacuterdquo No entanto existe em Histoacuteria do Cerco um almuadem cego que preenche claramente o lugar do bispo anti-quiacutessimo a ser degolado como aquele por ldquoum soldado cristatildeo de mais zelosa feacuterdquo (348) A sua cegueira paradoxalmente visionaacuteria da Lisboa moura sitiada eacute contraacuteria daquela de ldquoira sanguinaacuteriardquo do seu assassino identificado como ldquoo cruzado Osberno soacute igual de nomerdquo (Saramago 40) introduzindo-se assim deliberadamente

126Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

uma homoniacutemia com o Osberno da epiacutestola (ainda tratado ndash errone-amente ndash como o seu autor) novamente recordada em ldquoo cruzado Osberno poreacutem natildeo o talrdquo27

Esta duplicaccedilatildeo de identidades com o mesmo nome adverte o leitor para ficar atento perante redefiniccedilotildees identitaacuterias como por exemplo dos sitiadores chamados ldquoos francos e os galegosrdquo28 sob comando dos cruzados e ldquoIbn Arrinque o Galegordquo (74) na perspetiva dos mouros recriada na mente de Raimundo Silva O almuadem na sua torre complementa ndash atraveacutes dos tempos ndash a posiccedilatildeo de Raimundo Silva ldquoque hoje quase tatildeo cego se vecirc como elerdquo (33) Significativamente o revisor apercebe-se ldquode que mora no preciso lugar onde antigamente se abria a Porta de Alfofardquo configurando-se assim topograficamente a incerteza (que corresponde ao des-narrar) ldquose Raimundo Silva eacute um si-tiado ou um sitiante vencedor futuro ou perdedor sem remeacutediordquo (75) Nos seus passeios por Lisboa ele revivifica uma cidade dividida entre zonas dos sitiados e dos atacantes entretecendo ldquodois temposrdquo (242) passado e presente29 A ambiguidade nos eixos de lugar e tempo transfere-se natildeo soacute agrave histoacuteria aplicando o tema da cegueira ateacute ao processo da sua recepccedilatildeo ldquo(hellip) esta [histoacuteria] de agora comeccedilada soacute poderaacute lecirc-la quem os olhos ti-ver luacutecidos e abertos natildeo um cegordquo (243) transfere-se tambeacutem agrave liacutengua na qual estaacute escrita o texto insinuando-se um regresso a outra fonte nas duas dimensotildees de identidade cultural e texto que evoca aquela transformaccedilatildeo da liacutengua castelhana em aacuterabe realizada nas uacuteltimas duas paacuteginas de Juan sin Tierra (1975) de Juan Goytisolo ldquo(hellip) as matildeos de Raimundo Silva pousam sobre a uacuteltima folha escrita umas linhas negras indecifraacuteveis talvez de araacutebiga liacutengua natildeo estivemos atentos agrave voz do almuademrdquo (Sara-mago 243) Na accedilatildeo mediadora do revisor confluem a voz aacuterabe do almuadem e a escrita latina do cleacuterigo Roger Na reescrita inicialmente soacute mental do lsquolivro do historiadorrsquo Raimundo Sil-va procura uma reconstruccedilatildeo contextualizada de ambos os lados (cristatildeos muccedilulmanos) por exemplo corrigindo o significado da cegueira do almuadem

127Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

() natildeo foi erro escrever porque enfim escrito estaacute que era cego o almuadem O historiador soacute fala de minarete e muezim talvez ignorasse que quase todos os almuadens naquele tempo e por muito tempo depois eram cegos (29

() es war kein Fehler und geschrieben ist es nun mal daszlig der Muezzin blind war Der Historiker der da lediglich von Minarett und Muezzin schreibt wuszligte vielleicht nicht daszlig fast alle Muezzins damals und noch lange danach blind waren (32)

O revisor identifica ldquominareterdquo e ldquomuezimrdquo como palavras li-gadas ao orientalismo dos seacuteculos XVIII e XIX Apesar de ser um fenoacutemeno transnacional europeu o orientalismo teve maior atracccedilatildeo na cultura francesa que espalhou para outras liacutenguas eu-ropeias as vozes aacuterabes importadas pela via oriental o Impeacuterio Otomano (Turquia) na sua expansatildeo europeia a partir do seacuteculo XIV (ponto alto conquista de Constantinopla em 1453) tinha dei-xado vestiacutegios nomeadamente na cultura austriacuteaca no acircmbito dos Tuumlrkenkriege (ponto de viragem Cerco de Viena em 1683) que serviram de base para o orientalismo francecircs Raimundo Silva pre-fere o uso da palavra ldquoalmuademrdquo de maior e mais antiga presen-ccedila na liacutengua portuguesa30 importada directamente e recuperada no Romantismo pelas Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano tal como ldquoalmaacutedenardquo em vez de ldquominareterdquo (Machado 62) A tra-duccedilatildeo alematilde natildeo assinala esta tentativa de maior lsquopurezarsquo histoacuterica no discurso sobre a identidade moura mantendo a denominaccedilatildeo invariaacutevel ldquoMuezzinrdquo embora exista a alternativa lexical menos usada de ldquoMuaddhinrdquo (Brockhaus 229)31

No contexto do pensamento poacutes-colonial esta reaquisiccedilatildeo dos processos de imaginaccedilatildeo depois das imposiccedilotildees coloniais europeias que comeccedila em princiacutepio pelo Romantismo (Herculano Garrett) revela a raiz histoacuterica da especificidade relacional portuguesa co-lonizada colonizadora isto eacute a harmonizaccedilatildeo mais ou menos voluntaacuteria da poliacutetica existente de poder regional na Peniacutensula Ibeacute-

128Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

rica com a ideologia colonizadora das cruzadas Para aleacutem de uma subtil reivindicaccedilatildeo da identidade moura Histoacuteria do Cerco de Lisboa se cinge quase unicamente agrave revisatildeo da identidade conquis-tadora na qual entra a identidade alematilde ndash um aspecto importante para a traduccedilatildeo Assim estabelece-se uma certa inversatildeo embora natildeo perfeita de identidade alteridade em geral o leitor alematildeo estaacute pouco familiarizado com a geacutenese da identidade portuguesa e ignora a configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica que eacute responsaacutevel pelo excesso identitaacuterio desconhecendo tambeacutem a participaccedilatildeo bem documentada de actores vindos de terras alematildes Eles aparecem no romance logo quando Raimundo Silva comeccedila a reler a epiacutestola na sua procura da ldquofonte limpardquo

(hellip) a informaccedilatildeo eacute de boa origem diz-se que directamente do ceacutelebre Osberno e assim podemos ficar a saber que es-tava o conde Arnoldo de Aarschot o qual comandava os guerreiros vindos de diversas partes do impeacuterio germacircni-co que estava Cristiano de Gistell chefe dos flamengos e bolonheses (hellip) (124)

Seguindo a teia intertextual regressamos ao texto-fonte que em contraste com a citada Croacutenica de Portugal de 1419 narra na perspectiva de uma expediccedilatildeo militar

Igitur apud portum de Dertemunde diversarum nationum et morum et linguarum gentes navibus cicrciter CLXIIII convenere Horum omnium trifariam partitur exercitus Sub comite Arnoldo de Arescot nepote Godefridi ducis a romani imperii partibus secedit exercitus Sub Christiano de Gistello flandrenses et bononenses32

A mudanccedila para ldquoimpeacuterio germacircnicordquo (124) corresponde agrave nota explicativa do tradutor JA de Oliveira33 No entanto natildeo se expli-

129Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ca a substituiccedilatildeo de ldquobononensesrdquo por ldquobolonhesesrdquo Naturalmen-te as duas mudanccedilas reflectem-se na traduccedilatildeo alematilde que toma o romance saramaguiano como texto-fonte

(hellip) Information aus verlaumlszliglicher Quelle dem Vernehmen nach direkt vom beruumlhmten Osberno persoumlnlich und also koumlnnen wir uns vergewissern daszlig da Graf Arnoldo de Aar-schot zugegen war der die aus verschiedenen Regionen des deutschen Kaiserreiches herbeigestroumlmten Krieger befehlig-te und Cristiano de Gistell der den Flamen und Bologne-sern vorstand (hellip) (150)

Na traduccedilatildeo alematilde nomes proacuteprios estrangeiros natildeo satildeo lsquore-patriadosrsquo nem o proacuteprio Osberne nem Arnold ou Christian que ficam todos na grafia romacircnica No entanto ldquoimpeacuterio germacircni-cordquo passa para ldquodeutsches Kaiserreichrdquo uma traduccedilatildeo que insinua uma projecccedilatildeo anacroacutenica do seacuteculo XIX (refundaccedilatildeo do Heiliges Roumlmisches Reich Deutscher Nation como Deutsches Kaiserreich em 1871) natildeo pretendida no texto-fonte Naturalmente a traduccedilatildeo alematilde ignora a possibilidade latente jaacute apagada no texto sarama-guiano de encontrar a identidade alematilde nos ldquobononensesrdquo mal transcritos em ldquobolonhesesrdquo34 Esta transcriccedilatildeo defeituosa surpre-ende porque eacute a personalidade do cavaleiro Henrique de Bona ausente na epiacutestola35 que teve o maior relevo individual na histo-riografia portuguesa entre os ldquosamtos cavaleyros martiresrdquo

Nesta tomada de Lisboa morerom alguns cavaleyros como martires e depois faziam muytos milagres amtre os quaes foy hum cavaleyro chamado Amriqe alematildeo o qual era de hũa vila que chamom Bona posta jumto de Colonha o qual foy enterado em Sam Viccedilemte honde fazia muytos milagres (hellip) (Croacutenica 50)

130Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Merecendo destaque na histoacuteria da fundaccedilatildeo do mosteiro de Satildeo Vicente com episoacutedios de acccedilatildeo milagrosa depois de morto (Indiculum 83-85 Croacutenica 50-52) Henrique de Bona torna-se uma personagem da Histoacuteria portuguesa digna de entrar nrsquo Os Lu-siacuteadas (VIII 18) Procede-se a uma apropriaccedilatildeo do estrangeiro colonizador o alematildeo Henrique torna-se depois de ter vertido ldquode gram voontade o seu sangue antre os mouros pola paixom do Nosso Salvador Jesu Cristordquo (Indiculum 83) no maior Santo Cavaleiro da Tomada de Lisboa Na Alemanha ele estaacute totalmente desconhecido a natildeo ser no acircmbito da retoacuterica diplomaacutetica bila-teral na qual aparece natildeo como maacutertir mas como fundador dos ldquolaccedilos da amizade secular que liga o povo da Alemanha ao de Por-tugalrdquo (Ehrhardt 11) projectando a ajuda dos cruzados na geacutenese do reino de Portugal numa lsquolenda de auxiacuteliorsquo para todas as eacutepocas posteriores

Numa abordagem criacutetica observamos um duplo branqueamen-to (1) da memoacuteria do saque cruel e devastador da Lisboa moura perpetrado pelos cruzados colonenses e flandrenses e (2) da rela-ccedilatildeo colonizadora entre aliados no contexto da Europa Cingimo--nos no acircmbito deste estudo agrave anaacutelise do episoacutedio da torre moacutevel No romance a ideia da sua construccedilatildeo eacute atribuiacuteda ao cavaleiro Henrique manipulando as fontes histoacutericas que falam de engenhos militares em competiccedilatildeo entre os diferentes grupos eacutetnicos ou destacam ldquoum engenheiro italiano natural de Pisardquo36 O discurso profeacutetico de superioridade cultural deste cavaleiro revela os moti-vos desta escolha

Grandes satildeo as vantagens que a Portugal adviratildeo de imitar neste como noutros casos o que na Europa se vai fazendo de mais moderno ainda que ao princiacutepio experimenteis dificuldades em meter na cabeccedila as tecnologias novas eu por mim sei da construccedilatildeo das tais torres o suficiente para os naturais daqui (hellip) (251)

131Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Groszlige Vorteile sind Portugal gewiszlig wenn es in diesem wie in anderen Faumlllen nachahmt was man in Europa an houmlchst modernen Dingen tut mag es euch anfaumlnglich auch schwerfallen die neuen Techniken in euren Kopf hinein-zukriegen ich meinerseits weiszlig vom Bau besagter Tuumlrme hinreichend viel um die hiesigen Eingeborenen zu unter-richten () (305)

Mesmo a traduccedilatildeo alematilde transmite a ideia de que a fala do cavaleiro Henrique perante o primeiro rei portuguecircs conteacutem uma paroacutedia do discurso poliacutetico actual que natildeo se cansa de propagar a imitaccedilatildeo da Europa avanccedilada representada pela capacidade eco-noacutemica e tecnoloacutegica de Alemanha em competiccedilatildeo com outras na-ccedilotildees Ao mesmo tempo projecta-se ndash apresentado como verdade de fora ndash a auto-imagem humilhante dos ldquonaturaisrdquo37 como matildeo-de--obra sem formaccedilatildeo agrave mercecirc das decisotildees de governantes que pac-tuam com os estrangeiros (252) como condiccedilatildeo da proacutepria geacutenese nacional No entanto a derrota da torre tatildeo bem construiacuteda que conduz ateacute agrave morte do seu construtor faz surgir a criacutetica dos ldquoen-genhos estrangeiros que tanto podem estar a favor como contrardquo (316) parodiando-se assim tanto a lsquolenda de auxiacuteliorsquo e a atitude colonizadora como o projecto portuguecircs de modernizaccedilatildeo europeia (Grossegesse 1995 228)

Reservando uma anaacutelise da constelaccedilatildeo transcultural entre o ca-valeiro alematildeo Henrique a sua ldquobarregatilderdquo Ouroana38 e o soldado Mogueime para outra ocasiatildeo centramo-nos num aspecto de jogo intertextual que ainda recebeu pouca atenccedilatildeo Face agrave ausecircncia do episoacutedio da torre moacutevel e da personalidade de Henrique de Bona na epiacutestola dirigida a Osberno eacute significativo que o romance sara-maguiano invente ldquoapontamentos para a carta de Osbernordquo (308) contendo estes em todo pormenor a histoacuteria do cavaleiro Henri-que A explicaccedilatildeo psicanaliacutetica de Ersatz para esta escrita do Frei Rogeiro39 tambeacutem eacute vaacutelida para o revisor Raimundo que insere na sua reescrita do Cerco de Lisboa a histoacuteria da conquista amorosa de Ouroana por Mogueime possibilitada pela morte do cavaleiro

132Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

alematildeo que espelha ndash atraveacutes dos tempos ndash a sua proacutepria lsquoconquis-tarsquo de Maria Sara

Com a ficccedilatildeo do texto apoacutecrifo inaugura-se uma hibridizaccedilatildeo transcultural das proacuteprias fontes histoacutericas possibilitando um amalgamar das narrativas dos cruzados com a Histoacuteria nacional e o lendaacuterio portuguecircs que culmina na releitura dos milagres do cava-leiro Henrique em simultacircneo com os milagres de Santo Antoacutenio o padroeiro mais popular de Lisboa A intersecccedilatildeo de milagres de ambos pelas leituras simultacircneas de Maria Sara e Raimundo eacute um acto que subverte tanto a procura da verdade histoacuterica como o conceito de identidades delimitadas por territoacuterio sangue e liacutengua Numa espeacutecie de metalepse o proacuteprio Frei Rogeiro apoacutes ter com-pilado ldquoos apontamentos que havia tomado durante uma volta que dera por todos os arraiaisrdquo (331) participa no episoacutedio milagroso ldquoComo o cavaleyro Amrique apareccedileo em sonhos a hum homem botildeo e como lhe disse que soterasem seu escudeiro a par delerdquo (Croacute-nica 51 cf Indiculum 84-85) cumprindo o papel daquele homem bom natildeo identificado

Mais significativo nesta leitura de milagres transformada em reescrita paroacutedica eacute o destaque atribuiacutedo agrave questatildeo de identida-des processos de deslocaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo culminando na trans-formaccedilatildeo de um milagre do cavaleiro Henrique numa espeacutecie de contra-mito da origem da liacutengua portuguesa ao narrar o milagre dos dois homens surdos-mudos que se deitaram ao lado do moi-mento do cavaleiro (Indiculum 83-84 Croacutenica 50-51) realccedila-se a incerteza da identidade deles ldquotinham vindo na frota poreacutem natildeo se sabe se ingleses aquitanos bretotildees flandrenses ou colonen-sesrdquo (335) Estando os dois homens assim jazendo ldquoadormeceram ambos e apareceu-lhes em sonho logo o cavaleiro Henrique (hellip) e falou agravequeles mancebosrdquo (336) ndash natildeo sabemos em que liacutengua ndash anunciando a sua cura de duvidoso efeito

(hellip) e eles acordando acharam que podiam ouvir e falar tambeacutem poreacutem falavam como gagos e de maneira que natildeo se entendia que liacutengua estavam falando se a dos ingleses

133Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ou aquitanos ou bretotildees ou flandrenses ou colonenses ou conforme natildeo poucos afirmavam a liacutengua dos portu-gueses (336)

Esta manipulaccedilatildeo natildeo de fontes histoacutericas mas de uma len-da convida para uma leitura metadiscursiva em vez de ldquocom voz chlara (hellip) contar a todo o povo o milagre que Deos em eles fizerardquo (Croacutenica 51) os dois ficam gagos No entanto o problema natildeo consiste em entender o que eacute que eles dizem mas em identificar a liacutengua que eles falam Nesta leitura o milagre reinterpretado enfa-tiza a visatildeo de uma hibridizaccedilatildeo das liacutenguas e das identidades no entanto consciente da imperfeita capacidade comunicativa que eacute aplicaacutevel agraves questotildees de revisatildeo e traduccedilatildeo

Tal como o revisor Raimundo Silva dentro da ficccedilatildeo o tradutor reescreve um texto anterior no entanto noutra liacutengua e para um leitor com outro horizonte cultural A procedecircncia das fontes histoacute-ricas e a apropriaccedilatildeo do cavaleiro Henrique pelo discurso da iden-tidade portuguesa demonstram a ineficaacutecia das definiccedilotildees puras de identidade e alteridade Em vez da tentativa de uma reproduccedilatildeo de uma liacutengua na outra no fundo irrealizaacutevel a visatildeo da hibridiza-ccedilatildeo das liacutenguas e identidades advoga uma recriaccedilatildeo naturalmente sempre parcial e imperfeita daquela heterogeneidade que Histoacuteria do Cerco de Lisboa exibe ao narrar a procura de uma ldquoverdaderdquo que ldquonatildeo pode ser mais do que uma cara sobreposta agraves infinitas maacutescaras variantes (hellip)rdquo (26) Para tal activa-se ldquooutro tipo de relaccedilotildees entre os elementos (hellip) porque as coerccedilotildees impostas pelas liacutenguas levam a diferentes possibilidades de contextualizaccedilotildees de remissotildees de encadeamentos de atribuiccedilatildeo de valores entre os elementosrdquo (Rodrigues 205) Se o romance reflecte claramente a diffeacuterance (Derrida 1967) como princiacutepio universal40 destacando os processos de traduccedilatildeo e reescrita este princiacutepio deve ser vaacutelido tambeacutem para a proacutepria traduccedilatildeo como propotildee Cristina Carneiro Rodrigues na continuaccedilatildeo de Rosemary Arojo (1993)

134Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

O original vive sobrevive na e pela sua proacutepria transfor-maccedilatildeo produzida pela leitura A traduccedilatildeo natildeo transporta uma essecircncia natildeo troca ou substitui significados dados prontos em um texto por significados equivalentes em outra liacutengua A traduccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo em que o laquotexto originalraquo se daacute por sua proacutepria modificaccedilatildeo em sua trans-formaccedilatildeo (Rodrigues 206)

O romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa interrelaciona esta con-diccedilatildeo de cada texto ser texto de textos transferidos traduzidos de outros textos em contextos histoacutericos sempre diferentes com a criacutetica da lsquoorigemrsquo da identidade individual e colectiva no sentido de transculturalidade e da ldquoculturersquos hibridityrdquo (Bhabha 1989 38) ambas com base expliacutecita na diffeacuterance Se reactivarmos a teoria de Jean Ricardou (1973) relativamente ao nouveau roman podemos dizer que a aventura da leitura escrita do revisor prefigura uma aventura semelhante do tradutor Tal como o revisor transformado em tradutor e autor ele transmite uma Histoacuteria do Cerco de Lis-boa recriada para outro leitor neste caso um leitor alheio natildeo soacute agrave narraccedilatildeo tradicional desta histoacuteria num discurso identitaacuterio mas tambeacutem agrave integraccedilatildeo da sua identidade cultural neste discurso Isto torna a traduccedilatildeo deste romance uma aventura de leitura e reescrita em certa medida jaacute prevista na Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Se no processo de traduccedilatildeo o tradutor ou tradutora tem que necessariamente tomar o lugar do autor e se apossar de seu texto para que esse possa sobreviver em outra liacutengua natildeo haacute como eliminar esse momento de usurpaccedilatildeo e con-quista que a reflexatildeo desconstrutivista flagra e desmascara (Arrojo 1993 82)

Curiosamente Rosemary Arrojo emprega a mesma metaacutefora de conquista utilizada para a aventura de Raimundo Silva que abrange a conquista amorosa de Maria Sara41 Eacute precisamente a mulher

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

117Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ldquotinhososrdquo Com isto atenua-se a atitude de arrogacircncia dos ldquoca-valeiros tatildeo principaisrdquo que natildeo acham necessidade de diferenciar entre portugueses e mouros A traduccedilatildeo natildeo consegue transferir a paroacutedia da identidade portuguesa que dialoga com o leitor impliacute-cito (Iser 1972) do original para o perfil do leitor da traduccedilatildeo de maior afinidade cultural com os cruzados Trata-se de um leitor desprovido (1) da ldquoenciclopeacutedia do mundo portuguecircsrdquo (Caragea 209) e (2) da socializaccedilatildeo no contexto da realidade poliacutetica e social portuguesa dos anos oitenta e noventa com a memoacuteria do 25 de Abril de 1974 (por exemplo impliacutecita no perfil da personagem Mogueime como preacute-figuraccedilatildeo de Salgado Maia)

Esta dupla dificuldade que ndash com o tempo ndash tambeacutem surgi-raacute cada vez mais para o texto-fonte conduz agrave questatildeo do texto comentado que discute Horst Turk (1992) exemplificando-a no romance La reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten de Juan Goytisolo (em reediccedilatildeo comentada a partir de 1985) e na sua traduccedilatildeo alematilde (natildeo comentada) No caso de Histoacuteria do Cerco de Lisboa ainda natildeo existe uma ediccedilatildeo comentada do original Entre as traduccedilotildees a alematilde de Andreas Klotsch (1992) prescinde de comentaacuterio tal como a inglesa de Giovanni Pontiero (1996) que se cinge a um bre-ve prefaacutecio no entanto a romena por exemplo eacute acompanhada por um proacutelogo extenso e notas explicativas da tradutora Mioara Caragea13 Pelo comentaacuterio e pela ausecircncia dele acentuam-se as duas caras de Iano (Januskoumlpfigkeit) da traduccedilatildeo ela representa o texto-fonte e substitui o texto-fonte na literatura-alvo Mais ainda a traduccedilatildeo eacute tambeacutem em todas as literaturas um lugar privilegiado para articular qualidades de diferenccedila14 Destas deliberaccedilotildees surge como questatildeo central a traduccedilatildeo alematilde natildeo comentada da Histoacuteria do Cerco de Lisboa eacute capaz de transmitir a paroacutedia de identidade alteridade cultural (nacional) do texto-fonte

Ao falar do handicap do leitor desprovido da ldquoenciclopeacutedia do mundo portuguecircsrdquo (Caragea 209) prolonga-se a abordagem purista em vez de se repensar tambeacutem esta enciclopeacutedia de forma transcultural Com isto evidencia-se o cruzamento de identidades em constante mudanccedila desde as fontes histoacutericas citadas no lsquolivro

118Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

do historiadorrsquo ateacute agrave proacutepria traduccedilatildeo do romance Jaacute o historiador cujo livro Raimundo Silva revisa concede destaque entre as fon-tes ao ldquoceacutelebre Osbernordquo (Saramago 124) privilegiando assim a narrativa epistolar de um cruzado oriundo da regiatildeo de Norfolk ou Suffolk que participou no Cerco Atualmente eacute considerada ldquotalvez a principal fonte histoacutericardquo (Alves 13) A carta dirigida a uma personalidade inglesa estaacute escrita em latim Por isso Cru-cesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis15 integra natildeo soacute uma visatildeo desde o exterior portanto afastada da construccedilatildeo da Histoacuteria nacional mas tambeacutem um texto noutra liacutengua A proacutepria narrativa marginaliza a identidade portuguesa natildeo soacute no contexto geral do antagonismo entre cruzados (identidade comum francos) e mouros16 mas tambeacutem pela divisatildeo entre por um lado norman-dos e ingleses (no texto a identidade proacutepria) e por outro colo-nenses e flamengos natildeo soacute desunidos na decisatildeo inicial (participar ou natildeo) mas tambeacutem com diferentes comportamentos durante o cerco e no saque da cidade conquistada (Conquista 83) Com estas caracteriacutesticas este texto fornece por um lado bases para uma narraccedilatildeo fundadora da identidade portuguesa desvalorizando sobretudo eticamente a colaboraccedilatildeo dos cruzados e por outro o preacute-texto de uma des-narraccedilatildeo transcultural aproximando-se da historiografia criacutetica mais recente na qual se procede a uma negaccedilatildeo da narrativa fundacional nacional17 As possiacuteveis releitu-ras fundamentam a paroacutedia do sbquoexcesso identitaacuteriorsquo portuguecircs no romance saramaguiano que se centra na retroprojeccedilatildeo anacroacutenica natildeo soacute da categoria de nacional mas tambeacutem da outra da cate-goria de estrangeiro Basta pensarmos no anacronismo das quinas de Portugal (soacute a partir de Sancho I) a substituir o crescente (na realidade invenccedilatildeo do impeacuterio otomano) que despertam a ira do revisor quando chega agraves paacuteginas finais do lsquolivro do historiadorrsquo (41-42) Nada disto se encontra nas fontes Tambeacutem a traduccedilatildeo ldquopassou a corrupta mesquita a puriacutessima igreja catoacutelicardquo (40) en-fatiza um antagonismo identitaacuterio (muccedilulmano cristatildeo) que no texto-fonte fica subentendido ldquopurificatum est templumrdquo ldquofoi purificado o templordquo (Conquista 85) Mais interessante relativa-

119Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

mente ao leitor impliacutecito de traduccedilotildees para as liacutenguas do Centro Norte da Europa eacute o seguinte trecho

O pessoal que veio a esta fala parlamentar eacute todo de portu-gueses natildeo pareceu bem a el-rei servir-se de estrangeiros para o reforccedilo do ultimatum ainda que diga-se de pas-sagem subsistam grandes duacutevidas de que o arcebispo de Braga pertenccedila de facto ao nosso sangue lusitano mas enfim jaacute nesses antigos tempos tinha principiado a fama que mantivemos ateacute hoje de receber bem a gente de fora distribuir-lhes cargos e prebendas e este D Joatildeo Peculiar vaacute laacute pagou-nos multiplicado em serviccedilos patrioacuteticos E se como tambeacutem se diz era mesmo portuguecircs e de Coimbra vejamo-lo como pioneiro da nossa vocaccedilatildeo migratoacuteria da magniacutefica diaacutespora pois toda a sua juventude a passou em Franccedila a estudar devendo notar-se aqui uma acentuada diferenccedila em relaccedilatildeo agraves tendecircncias recentes da nossa emig-raccedilatildeo para aquele paiacutes plutocirct adstrita aos trabalhos sujos e pesados (197-98)

O problema de transmitir o sentido paroacutedico na traduccedilatildeo18 por exemplo da eterna vocaccedilatildeo migratoacuteria bdquounserer migratoris-chen Berufung unserer wundervollen Diasporaldquo (240) culmina na dificuldade de incluir o leitor impliacutecito da traduccedilatildeo na situaccedilatildeo enunciativa isto eacute neste caso ele se deveria rever no lsquoestrangei-rorsquo vindo da Franccedila e indo aleacutem das dicotomias aperceber-se da relatividade das categorias

Eacute significativo que o revisor Raimundo Silva chegue a este tipo de des-narraccedilatildeo atraveacutes de uma criacutetica da traduccedilatildeo que fundamenta o proacuteprio acto de alterar o lsquolivro do historiadorrsquo a partir do ldquonatildeordquo Natildeo eacute tanto o ldquorigor da traduccedilatildeordquo (44) que estaacute em causa mas a sua verossimilhanccedila Precisamente por duvidar dos conhecimentos de latim das capacidades retoacutericas e em geral da cultura de Afon-so Henriques Raimundo Silva considera ldquoa primeira fala averigua-da do nosso rei fundadorrdquo nada menos do que ldquouma absurdidaderdquo

120Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

(43) negando de passagem tambeacutem o uso da liacutengua portuguesa que a tradicional narrativa fundacional de Portugal assume com naturalidade

(hellip) eacute de supor que o real menino aleacutem de explicar-se natu-ralmente em galego latinizaria o quantum satis para poder declamar chegada a hora perante tantos e tatildeo cultos cru-zados estrangeiros a arenga supracitada uma vez que eles de liacutenguas natildeo entenderiam entatildeo mais do que a sua de berccedilo e iguais rudimentos da outra com a ajuda dos frades inteacuterpretes (Saramago 44)

Esta duacutevida sobre a pureza do discurso reacutegio reproduzido na epiacutestola e traduzido pelo historiador torna-se em ldquoleitura paroacutedica (hellip) pela contextualizaccedilatildeo dramaacuteticardquo (Caragea 2003 235) O que Raimundo Silva ldquoem voz alta lecirc como um arauto lanccedilando as pro-clamasrdquo (P 45) ldquosituando portanto a sua reinterpretaccedilatildeo na zona pragmaacutetica da pronuntiatiordquo (Caragea 235) corresponde ipsis verbis com uma ou outra inversatildeo agrave traduccedilatildeo de JA de Oliveira (Conquista 44) A performance retoacuterica natildeo soacute ldquoacaba de inculcar no revisor um sentimento de distanciamento iroacutenico em relaccedilatildeo agraves palavras do reirdquo (Caragea 235) mas questiona sobretudo as noccedilotildees de texto-fonte e traduccedilatildeo fiel ao texto-fonte

Ao aprender que a invisibilidade do tradutor eacute falaz o revisor daacute o primeiro passo para a sua proacutepria visibilidade autoral Assim a ldquometaficccedilatildeo historiograacuteficardquo (Kaufman 1991) nasce directamen-te do dialogismo no sentido bakhtiniano com Joseacute Augusto de Oliveira simultaneamente ele eacute tradutor da epiacutestola publicada em ediccedilatildeo bilingue (1935) e autor da revisatildeo historiograacutefica intitulada ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem con-tar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo apresentada em 1940 Em vez de tomar a epiacutestola ldquodita de Osbernordquo como texto-fonte homogeacuteneo e traduzi-lo do latim como o fez o ldquoproacuteprio autor da Histoacuteriardquo (Saramago 43) facilmente reconheciacutevel como figuraccedilatildeo de Joseacute

121Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Augusto de Oliveira Raimundo Silva duvida natildeo soacute da pureza da fonte e subsequentemente da fidelidade da traduccedilatildeo mas tambeacutem da identidade do autor da epiacutestola Pelo tiacutetulo Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) Narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial da ediccedilatildeo bilingue esta identidade parece uniacutevoca mas natildeo eacute por exemplo Joseacute F Alves (2004) considera ldquobem coe-renterdquo que a primeira linha do texto latino ldquoOsb de Baldr R salutemrdquo indique um Osb de Baldr (Osberno ou Osberto ou Osborne) como destinataacuterio de ldquouma missiva mesmo sobrescrita apenas por um Rrdquo conjecturando-se o nome de Rogeacuterio19 Apor-tuguesando-se o nome Roger para Rogeiro o romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa assume esta suposiccedilatildeo ndash em oposiccedilatildeo ao lsquolivro do historiadorrsquo que considera Osberno um cruzado letrado O frade eacute apresentado na frase que continua a citaccedilatildeo anterior sobre a iden-tidade eacutetnica indefinida de D Joatildeo Peculiar arcebispo de Braga

Quem eacute indubitavelmente estrangeiro mas contado agrave parte por vir em missatildeo especial nem parlamentaacuterio nem homem de guerra eacute aquele frade ruivo e sardento ali a quem ago-ra mesmo ouvimos chamar Rogeiro mas que realmente tem por nome Roger o que deixaria em aberto a questatildeo de ser ele inglecircs ou normando (hellip) (198)

A identidade de Roger Rogeiro embora etnicamente indecisa oferece ndash na traduccedilatildeo para inglecircs e tambeacutem para alematildeo ndash uma afinidade cultural com o leitor impliacutecito reforccedilada pelo fiacutesico in-confundiacutevel noacuterdico ldquothat sandy-haired freckled friarrdquo (Sarama-go 1996 176) bdquojener blonde sommersprossige Paterldquo (241) No romance Frei Rogeiro cumpre o papel de ldquocronistardquo que transpotildee um conjunto multilingue de falas numa escrita coerente e homo-geacutenea Por exemplo no caso do discurso do arcebispo de Braga

Rogeiro logo em abreviado e taquigraacutefico o registou para mais tarde deixando os aformoseamentos oratoacuterios com que

122Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

brindaraacute aquele seu destinataacuterio distante Osberno chama-do laacute onde quer que esteja e quem quer que tenha sido poreacutem jaacute vai introduzindo redondeios de lavra proacutepria fru-tos de inspiraccedilatildeo estimulada (hellip) (200)

Significativamente Roger Rogeiro natildeo eacute tradutor mas ndash tal como o revisor Raimundo Silva ndash portador da consciecircncia de que tudo eacute traduccedilatildeo correspondendo ao latim o privileacutegio da liacutengua veicular

Este Rogeiro natildeo conhece uma palavra de araacutebigo nem de galego mas neste caso natildeo seraacute impedimento a ignoracircncia pois todo o debate vaacute por onde vaacute sempre iraacute dar ao latim graccedilas aos inteacuterpretes e aos tradutores simultacircneos (198)

De facto esta consciecircncia do plurilinguismo caracteriza Cruce-signati anglici epistola de expugnatione olisiponis desde o iniacutecio falando dos cruzados ldquoInter hos tot linguarum populos firmissima concordiae atque amititiaerdquo (Conquista 21) As falas de cruzados portugueses e mouros aparecem ou em citaccedilotildees traduzidas (de ou-tras liacutenguas para latim) ou em liacutengua latina para serem traduzidas no contexto do cerco Ambas satildeo adaptadas a um texto composto conforme as retoacutericas claacutessica e biacuteblica Eacute a proacutepria epiacutestola que refere a necessidade de traduccedilatildeo por exemplo do discurso do bispo do Porto proferido em latim perante a multidatildeo plurilingue dos cruzados reunidos20 Em contraste eacute significativo que o tradutor JA de Oliveira defenda ldquouma versatildeo que sem trair o pensamen-to se libertasse da escravidatildeo da letrardquo em vez de encher ldquoo texto portuguecircs com antigos vocaacutebulos forrageando-os nas velhas croacute-nicas conhecidas dos eruditosrdquo (Oliveira 1935 18) outorgando agrave sua traduccedilatildeo uma missatildeo nacionalista

Assim espero-o todos entenderatildeo este velho monumento da nossa histoacuteria e nesta hora de ressurgimento neste des-

123Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

pertar de energias e rasgar-se de horizontes novos faraacute bem aos portugueses de hoje ouvir falar a alma dos que agrave forccedila de braccedilo com persistecircncia com teimosia com obstinaccedilatildeo e com amor souberam ungir com o proacuteprio sangue os alic-erces desta nossa Paacutetria que eles nos deixaram para a con-servarmos amorosamente digna honrada e livre (Oliveira 1935 19)

Quem afirma assim uma leitura nacionalista de uma epiacutestola no fundo totalmente alheia ao objectivo de alicerccedilar a Histoacuteria nacional esconjura o que natildeo quer ver entregando-se agrave ldquotarefa permanente de nos iludirmosrdquo que critica Pacheco Pereira (2006) no caso das reacccedilotildees ao discurso de Jack Welsh Longe de com-preender a utilidade particular do confronto com a nossa imagem vista de fora JA de Oliveira concebe a sua traduccedilatildeo da epiacutestola estrangeira como contributo agrave legibilidade culturalmente coerente e homogeacutenea do ldquovelho monumento da nossa histoacuteriardquo A fideli-dade da traduccedilatildeo revela-se enganadora atraveacutes da leitura criacutetica de Raimundo Silva Assim a palavra aacuterabe ldquoalgazarrardquo que JA de Oliveira escolheu para traduzir ldquoconclamatiordquo na fala (por sua vez traduzida) de D Afonso Henriques21 evidencia natildeo soacute a homoge-neizaccedilatildeo do plurilinguismo tanto no texto-fonte como na traduccedilatildeo mas tambeacutem ndash numa leitura contraacuteria ndash a crioulizaccedilatildeo da identida-de portuguesa

Acertara D Afonso Henriques em cheio quando prognos-ticou que o exame da sua proposta acabaria em algazarra palavra que sendo aacuterabe de nacionalidade igualmente serve a qualquer gritar e vozear de colonenses flamengos bolon-heses bretotildees escoceses e normandos misturados (47-48)

Vollkommen recht hatte Dom Afonso Henriques mit der Voraussicht sein Vorschlag werde eine algazarra ausloumlsen dieses Wort obzwar arabischer Abkunft ist auch dienlich jedwedes ereiferndes Geschrei und Gekreisch der Koumllner

124Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Flamen Bologneser Bretonen Schotten und Normannen und aller durcheinander zu bezeichnen (56)

Portanto a palavra ldquoalgazarrardquo sugere nesta leitura transcul-tural do discurso reacutegio a relaccedilatildeo ambivalente galega aacuterabe como fundadora Esta insinuaccedilatildeo integra-se numa paroacutedia do discurso da identidade nacional nomeadamente na sua projecccedilatildeo anacroacutenica para a Idade Meacutedia ndash um aspecto que fica esbatido na traduccedilatildeo ale-matilde22 Uma leitura semelhante sugere a mensagem do rei de Eacutevora aos ldquoseus irmatildeos de Lisboardquo cuja traduccedilatildeo comentada ao portu-guecircs actual brinca com a identidade estereotipada de alentejanos

Aguentem aiacute os malvados que a minha tropa de alentejanos jaacute vai a caminho dizemo-lo assim por vir essa gente de aleacutem do Tejo ficando demonstrado de caminho que jaacute havia alentejanos antes de haver portugueses (176)

Para o leitor da traduccedilatildeo a existecircncia historicamente invertida de ldquoAlentejanerrdquo antes dos ldquoPortugiesenrdquo natildeo possui significado centrando-se a atenccedilatildeo na identificaccedilatildeo de ldquodiese Leute von jenseits des Tejordquo como ldquoAlentejanerrdquo (212) De facto a epiacutestola latina cita mensagens entre os mouros de Lisboa e o rei de Eacutevora desta-cando a ajuda de um inteacuterprete para poder incorporaacute-las no texto23 Obviamente a missiva reacutegia natildeo menciona alentejanos e transmite precisamente o contraacuterio a recusa do envio de tropas alegando a existecircncia de ldquotreacuteguas com o rei dos portuguesesrdquo (Conquista 64)

Estas manipulaccedilotildees mostram que Raimundo Silva eacute cada vez mais consciente da leitura escrita como cruzamento entre dimen-satildeo linguiacutestica e cultural no eixo temporal vaacutelido para a questatildeo da traduccedilatildeo24 no sentido das reflexotildees de Andreacute Lefevere (1992) Horst Turk (1992) e Susan Bassnett (1998) que analisam o texto tra-duzido ldquoembedded in its network of both source and target cultural signsrdquo (Bassnett9) Transcendo uma definiccedilatildeo estaacutetica de ldquocultural signsrdquo e da ldquohybridizationrdquo de Homi Bhabha podemos falar da

125Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

traduccedilatildeo como crioulizaccedilatildeo (Stoll 2005) com base em muacuteltiplos processos de mudanccedila sincroacutenicos e diacroacutenicos A paroacutedia da geacutenese da identidade portuguesa atraveacutes da criacutetica da pureza do texto-fonte (e da sua traduccedilatildeo) coincide com posiccedilotildees da historio-grafia moderna a conquista de Lisboa natildeo significa ndash conforme a Histoacuteria nacional tradicional ndash a vitoacuteria dos portugueses alcanccedilada com ajuda dos cruzados sobre os mouros significa isso sim a im-posiccedilatildeo militarmente bem sucedida do novo paradigma de pureza cristatilde implantada atraveacutes da ideologia colonizadora da Segunda Cruzada (114748) ao velho paradigma da convivecircncia segregada mais ou menos paciacutefica entre muccedilulmanos cristatildeos e judeus em estruturas poliacuteticas e sociais localmente autoacutenomas sob domiacutenio aacuterabe (Marques 68) O romance saramaguiano insinua esporadi-camente a crioulizaccedilatildeo da identidade portuguesa mas natildeo concede potencial identitaacuterio agraves populaccedilotildees cristatilde (moccedilaacuterabe) e judaica de Al-Usbuna sacrificadas por uma fracccedilatildeo dos cruzados ldquologo que o saque e o massacre exorbitaram das possibilidades de controlordquo (Marques 68) como conta em pormenor a epiacutestola Naturalmente destaca-se o bom comportamento dos ingleses e normandos (identi-dade de quem escreve) em contraste com o massacre e a devastaccedilatildeo perpetrados pelos colonenses e flamengos que ateacute matam o bispo da cidade moura25

Portanto o des-narrar saramaguiano natildeo empreende um deslo-camento transcultural tatildeo audaz como por exemplo La reivindi-cacioacuten del conde don Juliaacuten (1970) de Juan Goytisolo26 Naquele romance o narrador recupera atraveacutes da sua identificaccedilatildeo com o miacutetico lsquotraidorrsquo D Juliatildeo a identidade aacuterabe e moccedilaacuterabe termi-nando com o anuacutencio do lado aacuterabe ldquomantildeana seraacute otro diacutea la invasioacuten recomenzaraacuterdquo No entanto existe em Histoacuteria do Cerco um almuadem cego que preenche claramente o lugar do bispo anti-quiacutessimo a ser degolado como aquele por ldquoum soldado cristatildeo de mais zelosa feacuterdquo (348) A sua cegueira paradoxalmente visionaacuteria da Lisboa moura sitiada eacute contraacuteria daquela de ldquoira sanguinaacuteriardquo do seu assassino identificado como ldquoo cruzado Osberno soacute igual de nomerdquo (Saramago 40) introduzindo-se assim deliberadamente

126Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

uma homoniacutemia com o Osberno da epiacutestola (ainda tratado ndash errone-amente ndash como o seu autor) novamente recordada em ldquoo cruzado Osberno poreacutem natildeo o talrdquo27

Esta duplicaccedilatildeo de identidades com o mesmo nome adverte o leitor para ficar atento perante redefiniccedilotildees identitaacuterias como por exemplo dos sitiadores chamados ldquoos francos e os galegosrdquo28 sob comando dos cruzados e ldquoIbn Arrinque o Galegordquo (74) na perspetiva dos mouros recriada na mente de Raimundo Silva O almuadem na sua torre complementa ndash atraveacutes dos tempos ndash a posiccedilatildeo de Raimundo Silva ldquoque hoje quase tatildeo cego se vecirc como elerdquo (33) Significativamente o revisor apercebe-se ldquode que mora no preciso lugar onde antigamente se abria a Porta de Alfofardquo configurando-se assim topograficamente a incerteza (que corresponde ao des-narrar) ldquose Raimundo Silva eacute um si-tiado ou um sitiante vencedor futuro ou perdedor sem remeacutediordquo (75) Nos seus passeios por Lisboa ele revivifica uma cidade dividida entre zonas dos sitiados e dos atacantes entretecendo ldquodois temposrdquo (242) passado e presente29 A ambiguidade nos eixos de lugar e tempo transfere-se natildeo soacute agrave histoacuteria aplicando o tema da cegueira ateacute ao processo da sua recepccedilatildeo ldquo(hellip) esta [histoacuteria] de agora comeccedilada soacute poderaacute lecirc-la quem os olhos ti-ver luacutecidos e abertos natildeo um cegordquo (243) transfere-se tambeacutem agrave liacutengua na qual estaacute escrita o texto insinuando-se um regresso a outra fonte nas duas dimensotildees de identidade cultural e texto que evoca aquela transformaccedilatildeo da liacutengua castelhana em aacuterabe realizada nas uacuteltimas duas paacuteginas de Juan sin Tierra (1975) de Juan Goytisolo ldquo(hellip) as matildeos de Raimundo Silva pousam sobre a uacuteltima folha escrita umas linhas negras indecifraacuteveis talvez de araacutebiga liacutengua natildeo estivemos atentos agrave voz do almuademrdquo (Sara-mago 243) Na accedilatildeo mediadora do revisor confluem a voz aacuterabe do almuadem e a escrita latina do cleacuterigo Roger Na reescrita inicialmente soacute mental do lsquolivro do historiadorrsquo Raimundo Sil-va procura uma reconstruccedilatildeo contextualizada de ambos os lados (cristatildeos muccedilulmanos) por exemplo corrigindo o significado da cegueira do almuadem

127Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

() natildeo foi erro escrever porque enfim escrito estaacute que era cego o almuadem O historiador soacute fala de minarete e muezim talvez ignorasse que quase todos os almuadens naquele tempo e por muito tempo depois eram cegos (29

() es war kein Fehler und geschrieben ist es nun mal daszlig der Muezzin blind war Der Historiker der da lediglich von Minarett und Muezzin schreibt wuszligte vielleicht nicht daszlig fast alle Muezzins damals und noch lange danach blind waren (32)

O revisor identifica ldquominareterdquo e ldquomuezimrdquo como palavras li-gadas ao orientalismo dos seacuteculos XVIII e XIX Apesar de ser um fenoacutemeno transnacional europeu o orientalismo teve maior atracccedilatildeo na cultura francesa que espalhou para outras liacutenguas eu-ropeias as vozes aacuterabes importadas pela via oriental o Impeacuterio Otomano (Turquia) na sua expansatildeo europeia a partir do seacuteculo XIV (ponto alto conquista de Constantinopla em 1453) tinha dei-xado vestiacutegios nomeadamente na cultura austriacuteaca no acircmbito dos Tuumlrkenkriege (ponto de viragem Cerco de Viena em 1683) que serviram de base para o orientalismo francecircs Raimundo Silva pre-fere o uso da palavra ldquoalmuademrdquo de maior e mais antiga presen-ccedila na liacutengua portuguesa30 importada directamente e recuperada no Romantismo pelas Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano tal como ldquoalmaacutedenardquo em vez de ldquominareterdquo (Machado 62) A tra-duccedilatildeo alematilde natildeo assinala esta tentativa de maior lsquopurezarsquo histoacuterica no discurso sobre a identidade moura mantendo a denominaccedilatildeo invariaacutevel ldquoMuezzinrdquo embora exista a alternativa lexical menos usada de ldquoMuaddhinrdquo (Brockhaus 229)31

No contexto do pensamento poacutes-colonial esta reaquisiccedilatildeo dos processos de imaginaccedilatildeo depois das imposiccedilotildees coloniais europeias que comeccedila em princiacutepio pelo Romantismo (Herculano Garrett) revela a raiz histoacuterica da especificidade relacional portuguesa co-lonizada colonizadora isto eacute a harmonizaccedilatildeo mais ou menos voluntaacuteria da poliacutetica existente de poder regional na Peniacutensula Ibeacute-

128Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

rica com a ideologia colonizadora das cruzadas Para aleacutem de uma subtil reivindicaccedilatildeo da identidade moura Histoacuteria do Cerco de Lisboa se cinge quase unicamente agrave revisatildeo da identidade conquis-tadora na qual entra a identidade alematilde ndash um aspecto importante para a traduccedilatildeo Assim estabelece-se uma certa inversatildeo embora natildeo perfeita de identidade alteridade em geral o leitor alematildeo estaacute pouco familiarizado com a geacutenese da identidade portuguesa e ignora a configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica que eacute responsaacutevel pelo excesso identitaacuterio desconhecendo tambeacutem a participaccedilatildeo bem documentada de actores vindos de terras alematildes Eles aparecem no romance logo quando Raimundo Silva comeccedila a reler a epiacutestola na sua procura da ldquofonte limpardquo

(hellip) a informaccedilatildeo eacute de boa origem diz-se que directamente do ceacutelebre Osberno e assim podemos ficar a saber que es-tava o conde Arnoldo de Aarschot o qual comandava os guerreiros vindos de diversas partes do impeacuterio germacircni-co que estava Cristiano de Gistell chefe dos flamengos e bolonheses (hellip) (124)

Seguindo a teia intertextual regressamos ao texto-fonte que em contraste com a citada Croacutenica de Portugal de 1419 narra na perspectiva de uma expediccedilatildeo militar

Igitur apud portum de Dertemunde diversarum nationum et morum et linguarum gentes navibus cicrciter CLXIIII convenere Horum omnium trifariam partitur exercitus Sub comite Arnoldo de Arescot nepote Godefridi ducis a romani imperii partibus secedit exercitus Sub Christiano de Gistello flandrenses et bononenses32

A mudanccedila para ldquoimpeacuterio germacircnicordquo (124) corresponde agrave nota explicativa do tradutor JA de Oliveira33 No entanto natildeo se expli-

129Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ca a substituiccedilatildeo de ldquobononensesrdquo por ldquobolonhesesrdquo Naturalmen-te as duas mudanccedilas reflectem-se na traduccedilatildeo alematilde que toma o romance saramaguiano como texto-fonte

(hellip) Information aus verlaumlszliglicher Quelle dem Vernehmen nach direkt vom beruumlhmten Osberno persoumlnlich und also koumlnnen wir uns vergewissern daszlig da Graf Arnoldo de Aar-schot zugegen war der die aus verschiedenen Regionen des deutschen Kaiserreiches herbeigestroumlmten Krieger befehlig-te und Cristiano de Gistell der den Flamen und Bologne-sern vorstand (hellip) (150)

Na traduccedilatildeo alematilde nomes proacuteprios estrangeiros natildeo satildeo lsquore-patriadosrsquo nem o proacuteprio Osberne nem Arnold ou Christian que ficam todos na grafia romacircnica No entanto ldquoimpeacuterio germacircni-cordquo passa para ldquodeutsches Kaiserreichrdquo uma traduccedilatildeo que insinua uma projecccedilatildeo anacroacutenica do seacuteculo XIX (refundaccedilatildeo do Heiliges Roumlmisches Reich Deutscher Nation como Deutsches Kaiserreich em 1871) natildeo pretendida no texto-fonte Naturalmente a traduccedilatildeo alematilde ignora a possibilidade latente jaacute apagada no texto sarama-guiano de encontrar a identidade alematilde nos ldquobononensesrdquo mal transcritos em ldquobolonhesesrdquo34 Esta transcriccedilatildeo defeituosa surpre-ende porque eacute a personalidade do cavaleiro Henrique de Bona ausente na epiacutestola35 que teve o maior relevo individual na histo-riografia portuguesa entre os ldquosamtos cavaleyros martiresrdquo

Nesta tomada de Lisboa morerom alguns cavaleyros como martires e depois faziam muytos milagres amtre os quaes foy hum cavaleyro chamado Amriqe alematildeo o qual era de hũa vila que chamom Bona posta jumto de Colonha o qual foy enterado em Sam Viccedilemte honde fazia muytos milagres (hellip) (Croacutenica 50)

130Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Merecendo destaque na histoacuteria da fundaccedilatildeo do mosteiro de Satildeo Vicente com episoacutedios de acccedilatildeo milagrosa depois de morto (Indiculum 83-85 Croacutenica 50-52) Henrique de Bona torna-se uma personagem da Histoacuteria portuguesa digna de entrar nrsquo Os Lu-siacuteadas (VIII 18) Procede-se a uma apropriaccedilatildeo do estrangeiro colonizador o alematildeo Henrique torna-se depois de ter vertido ldquode gram voontade o seu sangue antre os mouros pola paixom do Nosso Salvador Jesu Cristordquo (Indiculum 83) no maior Santo Cavaleiro da Tomada de Lisboa Na Alemanha ele estaacute totalmente desconhecido a natildeo ser no acircmbito da retoacuterica diplomaacutetica bila-teral na qual aparece natildeo como maacutertir mas como fundador dos ldquolaccedilos da amizade secular que liga o povo da Alemanha ao de Por-tugalrdquo (Ehrhardt 11) projectando a ajuda dos cruzados na geacutenese do reino de Portugal numa lsquolenda de auxiacuteliorsquo para todas as eacutepocas posteriores

Numa abordagem criacutetica observamos um duplo branqueamen-to (1) da memoacuteria do saque cruel e devastador da Lisboa moura perpetrado pelos cruzados colonenses e flandrenses e (2) da rela-ccedilatildeo colonizadora entre aliados no contexto da Europa Cingimo--nos no acircmbito deste estudo agrave anaacutelise do episoacutedio da torre moacutevel No romance a ideia da sua construccedilatildeo eacute atribuiacuteda ao cavaleiro Henrique manipulando as fontes histoacutericas que falam de engenhos militares em competiccedilatildeo entre os diferentes grupos eacutetnicos ou destacam ldquoum engenheiro italiano natural de Pisardquo36 O discurso profeacutetico de superioridade cultural deste cavaleiro revela os moti-vos desta escolha

Grandes satildeo as vantagens que a Portugal adviratildeo de imitar neste como noutros casos o que na Europa se vai fazendo de mais moderno ainda que ao princiacutepio experimenteis dificuldades em meter na cabeccedila as tecnologias novas eu por mim sei da construccedilatildeo das tais torres o suficiente para os naturais daqui (hellip) (251)

131Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Groszlige Vorteile sind Portugal gewiszlig wenn es in diesem wie in anderen Faumlllen nachahmt was man in Europa an houmlchst modernen Dingen tut mag es euch anfaumlnglich auch schwerfallen die neuen Techniken in euren Kopf hinein-zukriegen ich meinerseits weiszlig vom Bau besagter Tuumlrme hinreichend viel um die hiesigen Eingeborenen zu unter-richten () (305)

Mesmo a traduccedilatildeo alematilde transmite a ideia de que a fala do cavaleiro Henrique perante o primeiro rei portuguecircs conteacutem uma paroacutedia do discurso poliacutetico actual que natildeo se cansa de propagar a imitaccedilatildeo da Europa avanccedilada representada pela capacidade eco-noacutemica e tecnoloacutegica de Alemanha em competiccedilatildeo com outras na-ccedilotildees Ao mesmo tempo projecta-se ndash apresentado como verdade de fora ndash a auto-imagem humilhante dos ldquonaturaisrdquo37 como matildeo-de--obra sem formaccedilatildeo agrave mercecirc das decisotildees de governantes que pac-tuam com os estrangeiros (252) como condiccedilatildeo da proacutepria geacutenese nacional No entanto a derrota da torre tatildeo bem construiacuteda que conduz ateacute agrave morte do seu construtor faz surgir a criacutetica dos ldquoen-genhos estrangeiros que tanto podem estar a favor como contrardquo (316) parodiando-se assim tanto a lsquolenda de auxiacuteliorsquo e a atitude colonizadora como o projecto portuguecircs de modernizaccedilatildeo europeia (Grossegesse 1995 228)

Reservando uma anaacutelise da constelaccedilatildeo transcultural entre o ca-valeiro alematildeo Henrique a sua ldquobarregatilderdquo Ouroana38 e o soldado Mogueime para outra ocasiatildeo centramo-nos num aspecto de jogo intertextual que ainda recebeu pouca atenccedilatildeo Face agrave ausecircncia do episoacutedio da torre moacutevel e da personalidade de Henrique de Bona na epiacutestola dirigida a Osberno eacute significativo que o romance sara-maguiano invente ldquoapontamentos para a carta de Osbernordquo (308) contendo estes em todo pormenor a histoacuteria do cavaleiro Henri-que A explicaccedilatildeo psicanaliacutetica de Ersatz para esta escrita do Frei Rogeiro39 tambeacutem eacute vaacutelida para o revisor Raimundo que insere na sua reescrita do Cerco de Lisboa a histoacuteria da conquista amorosa de Ouroana por Mogueime possibilitada pela morte do cavaleiro

132Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

alematildeo que espelha ndash atraveacutes dos tempos ndash a sua proacutepria lsquoconquis-tarsquo de Maria Sara

Com a ficccedilatildeo do texto apoacutecrifo inaugura-se uma hibridizaccedilatildeo transcultural das proacuteprias fontes histoacutericas possibilitando um amalgamar das narrativas dos cruzados com a Histoacuteria nacional e o lendaacuterio portuguecircs que culmina na releitura dos milagres do cava-leiro Henrique em simultacircneo com os milagres de Santo Antoacutenio o padroeiro mais popular de Lisboa A intersecccedilatildeo de milagres de ambos pelas leituras simultacircneas de Maria Sara e Raimundo eacute um acto que subverte tanto a procura da verdade histoacuterica como o conceito de identidades delimitadas por territoacuterio sangue e liacutengua Numa espeacutecie de metalepse o proacuteprio Frei Rogeiro apoacutes ter com-pilado ldquoos apontamentos que havia tomado durante uma volta que dera por todos os arraiaisrdquo (331) participa no episoacutedio milagroso ldquoComo o cavaleyro Amrique apareccedileo em sonhos a hum homem botildeo e como lhe disse que soterasem seu escudeiro a par delerdquo (Croacute-nica 51 cf Indiculum 84-85) cumprindo o papel daquele homem bom natildeo identificado

Mais significativo nesta leitura de milagres transformada em reescrita paroacutedica eacute o destaque atribuiacutedo agrave questatildeo de identida-des processos de deslocaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo culminando na trans-formaccedilatildeo de um milagre do cavaleiro Henrique numa espeacutecie de contra-mito da origem da liacutengua portuguesa ao narrar o milagre dos dois homens surdos-mudos que se deitaram ao lado do moi-mento do cavaleiro (Indiculum 83-84 Croacutenica 50-51) realccedila-se a incerteza da identidade deles ldquotinham vindo na frota poreacutem natildeo se sabe se ingleses aquitanos bretotildees flandrenses ou colonen-sesrdquo (335) Estando os dois homens assim jazendo ldquoadormeceram ambos e apareceu-lhes em sonho logo o cavaleiro Henrique (hellip) e falou agravequeles mancebosrdquo (336) ndash natildeo sabemos em que liacutengua ndash anunciando a sua cura de duvidoso efeito

(hellip) e eles acordando acharam que podiam ouvir e falar tambeacutem poreacutem falavam como gagos e de maneira que natildeo se entendia que liacutengua estavam falando se a dos ingleses

133Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ou aquitanos ou bretotildees ou flandrenses ou colonenses ou conforme natildeo poucos afirmavam a liacutengua dos portu-gueses (336)

Esta manipulaccedilatildeo natildeo de fontes histoacutericas mas de uma len-da convida para uma leitura metadiscursiva em vez de ldquocom voz chlara (hellip) contar a todo o povo o milagre que Deos em eles fizerardquo (Croacutenica 51) os dois ficam gagos No entanto o problema natildeo consiste em entender o que eacute que eles dizem mas em identificar a liacutengua que eles falam Nesta leitura o milagre reinterpretado enfa-tiza a visatildeo de uma hibridizaccedilatildeo das liacutenguas e das identidades no entanto consciente da imperfeita capacidade comunicativa que eacute aplicaacutevel agraves questotildees de revisatildeo e traduccedilatildeo

Tal como o revisor Raimundo Silva dentro da ficccedilatildeo o tradutor reescreve um texto anterior no entanto noutra liacutengua e para um leitor com outro horizonte cultural A procedecircncia das fontes histoacute-ricas e a apropriaccedilatildeo do cavaleiro Henrique pelo discurso da iden-tidade portuguesa demonstram a ineficaacutecia das definiccedilotildees puras de identidade e alteridade Em vez da tentativa de uma reproduccedilatildeo de uma liacutengua na outra no fundo irrealizaacutevel a visatildeo da hibridiza-ccedilatildeo das liacutenguas e identidades advoga uma recriaccedilatildeo naturalmente sempre parcial e imperfeita daquela heterogeneidade que Histoacuteria do Cerco de Lisboa exibe ao narrar a procura de uma ldquoverdaderdquo que ldquonatildeo pode ser mais do que uma cara sobreposta agraves infinitas maacutescaras variantes (hellip)rdquo (26) Para tal activa-se ldquooutro tipo de relaccedilotildees entre os elementos (hellip) porque as coerccedilotildees impostas pelas liacutenguas levam a diferentes possibilidades de contextualizaccedilotildees de remissotildees de encadeamentos de atribuiccedilatildeo de valores entre os elementosrdquo (Rodrigues 205) Se o romance reflecte claramente a diffeacuterance (Derrida 1967) como princiacutepio universal40 destacando os processos de traduccedilatildeo e reescrita este princiacutepio deve ser vaacutelido tambeacutem para a proacutepria traduccedilatildeo como propotildee Cristina Carneiro Rodrigues na continuaccedilatildeo de Rosemary Arojo (1993)

134Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

O original vive sobrevive na e pela sua proacutepria transfor-maccedilatildeo produzida pela leitura A traduccedilatildeo natildeo transporta uma essecircncia natildeo troca ou substitui significados dados prontos em um texto por significados equivalentes em outra liacutengua A traduccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo em que o laquotexto originalraquo se daacute por sua proacutepria modificaccedilatildeo em sua trans-formaccedilatildeo (Rodrigues 206)

O romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa interrelaciona esta con-diccedilatildeo de cada texto ser texto de textos transferidos traduzidos de outros textos em contextos histoacutericos sempre diferentes com a criacutetica da lsquoorigemrsquo da identidade individual e colectiva no sentido de transculturalidade e da ldquoculturersquos hibridityrdquo (Bhabha 1989 38) ambas com base expliacutecita na diffeacuterance Se reactivarmos a teoria de Jean Ricardou (1973) relativamente ao nouveau roman podemos dizer que a aventura da leitura escrita do revisor prefigura uma aventura semelhante do tradutor Tal como o revisor transformado em tradutor e autor ele transmite uma Histoacuteria do Cerco de Lis-boa recriada para outro leitor neste caso um leitor alheio natildeo soacute agrave narraccedilatildeo tradicional desta histoacuteria num discurso identitaacuterio mas tambeacutem agrave integraccedilatildeo da sua identidade cultural neste discurso Isto torna a traduccedilatildeo deste romance uma aventura de leitura e reescrita em certa medida jaacute prevista na Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Se no processo de traduccedilatildeo o tradutor ou tradutora tem que necessariamente tomar o lugar do autor e se apossar de seu texto para que esse possa sobreviver em outra liacutengua natildeo haacute como eliminar esse momento de usurpaccedilatildeo e con-quista que a reflexatildeo desconstrutivista flagra e desmascara (Arrojo 1993 82)

Curiosamente Rosemary Arrojo emprega a mesma metaacutefora de conquista utilizada para a aventura de Raimundo Silva que abrange a conquista amorosa de Maria Sara41 Eacute precisamente a mulher

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

118Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

do historiadorrsquo ateacute agrave proacutepria traduccedilatildeo do romance Jaacute o historiador cujo livro Raimundo Silva revisa concede destaque entre as fon-tes ao ldquoceacutelebre Osbernordquo (Saramago 124) privilegiando assim a narrativa epistolar de um cruzado oriundo da regiatildeo de Norfolk ou Suffolk que participou no Cerco Atualmente eacute considerada ldquotalvez a principal fonte histoacutericardquo (Alves 13) A carta dirigida a uma personalidade inglesa estaacute escrita em latim Por isso Cru-cesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis15 integra natildeo soacute uma visatildeo desde o exterior portanto afastada da construccedilatildeo da Histoacuteria nacional mas tambeacutem um texto noutra liacutengua A proacutepria narrativa marginaliza a identidade portuguesa natildeo soacute no contexto geral do antagonismo entre cruzados (identidade comum francos) e mouros16 mas tambeacutem pela divisatildeo entre por um lado norman-dos e ingleses (no texto a identidade proacutepria) e por outro colo-nenses e flamengos natildeo soacute desunidos na decisatildeo inicial (participar ou natildeo) mas tambeacutem com diferentes comportamentos durante o cerco e no saque da cidade conquistada (Conquista 83) Com estas caracteriacutesticas este texto fornece por um lado bases para uma narraccedilatildeo fundadora da identidade portuguesa desvalorizando sobretudo eticamente a colaboraccedilatildeo dos cruzados e por outro o preacute-texto de uma des-narraccedilatildeo transcultural aproximando-se da historiografia criacutetica mais recente na qual se procede a uma negaccedilatildeo da narrativa fundacional nacional17 As possiacuteveis releitu-ras fundamentam a paroacutedia do sbquoexcesso identitaacuteriorsquo portuguecircs no romance saramaguiano que se centra na retroprojeccedilatildeo anacroacutenica natildeo soacute da categoria de nacional mas tambeacutem da outra da cate-goria de estrangeiro Basta pensarmos no anacronismo das quinas de Portugal (soacute a partir de Sancho I) a substituir o crescente (na realidade invenccedilatildeo do impeacuterio otomano) que despertam a ira do revisor quando chega agraves paacuteginas finais do lsquolivro do historiadorrsquo (41-42) Nada disto se encontra nas fontes Tambeacutem a traduccedilatildeo ldquopassou a corrupta mesquita a puriacutessima igreja catoacutelicardquo (40) en-fatiza um antagonismo identitaacuterio (muccedilulmano cristatildeo) que no texto-fonte fica subentendido ldquopurificatum est templumrdquo ldquofoi purificado o templordquo (Conquista 85) Mais interessante relativa-

119Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

mente ao leitor impliacutecito de traduccedilotildees para as liacutenguas do Centro Norte da Europa eacute o seguinte trecho

O pessoal que veio a esta fala parlamentar eacute todo de portu-gueses natildeo pareceu bem a el-rei servir-se de estrangeiros para o reforccedilo do ultimatum ainda que diga-se de pas-sagem subsistam grandes duacutevidas de que o arcebispo de Braga pertenccedila de facto ao nosso sangue lusitano mas enfim jaacute nesses antigos tempos tinha principiado a fama que mantivemos ateacute hoje de receber bem a gente de fora distribuir-lhes cargos e prebendas e este D Joatildeo Peculiar vaacute laacute pagou-nos multiplicado em serviccedilos patrioacuteticos E se como tambeacutem se diz era mesmo portuguecircs e de Coimbra vejamo-lo como pioneiro da nossa vocaccedilatildeo migratoacuteria da magniacutefica diaacutespora pois toda a sua juventude a passou em Franccedila a estudar devendo notar-se aqui uma acentuada diferenccedila em relaccedilatildeo agraves tendecircncias recentes da nossa emig-raccedilatildeo para aquele paiacutes plutocirct adstrita aos trabalhos sujos e pesados (197-98)

O problema de transmitir o sentido paroacutedico na traduccedilatildeo18 por exemplo da eterna vocaccedilatildeo migratoacuteria bdquounserer migratoris-chen Berufung unserer wundervollen Diasporaldquo (240) culmina na dificuldade de incluir o leitor impliacutecito da traduccedilatildeo na situaccedilatildeo enunciativa isto eacute neste caso ele se deveria rever no lsquoestrangei-rorsquo vindo da Franccedila e indo aleacutem das dicotomias aperceber-se da relatividade das categorias

Eacute significativo que o revisor Raimundo Silva chegue a este tipo de des-narraccedilatildeo atraveacutes de uma criacutetica da traduccedilatildeo que fundamenta o proacuteprio acto de alterar o lsquolivro do historiadorrsquo a partir do ldquonatildeordquo Natildeo eacute tanto o ldquorigor da traduccedilatildeordquo (44) que estaacute em causa mas a sua verossimilhanccedila Precisamente por duvidar dos conhecimentos de latim das capacidades retoacutericas e em geral da cultura de Afon-so Henriques Raimundo Silva considera ldquoa primeira fala averigua-da do nosso rei fundadorrdquo nada menos do que ldquouma absurdidaderdquo

120Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

(43) negando de passagem tambeacutem o uso da liacutengua portuguesa que a tradicional narrativa fundacional de Portugal assume com naturalidade

(hellip) eacute de supor que o real menino aleacutem de explicar-se natu-ralmente em galego latinizaria o quantum satis para poder declamar chegada a hora perante tantos e tatildeo cultos cru-zados estrangeiros a arenga supracitada uma vez que eles de liacutenguas natildeo entenderiam entatildeo mais do que a sua de berccedilo e iguais rudimentos da outra com a ajuda dos frades inteacuterpretes (Saramago 44)

Esta duacutevida sobre a pureza do discurso reacutegio reproduzido na epiacutestola e traduzido pelo historiador torna-se em ldquoleitura paroacutedica (hellip) pela contextualizaccedilatildeo dramaacuteticardquo (Caragea 2003 235) O que Raimundo Silva ldquoem voz alta lecirc como um arauto lanccedilando as pro-clamasrdquo (P 45) ldquosituando portanto a sua reinterpretaccedilatildeo na zona pragmaacutetica da pronuntiatiordquo (Caragea 235) corresponde ipsis verbis com uma ou outra inversatildeo agrave traduccedilatildeo de JA de Oliveira (Conquista 44) A performance retoacuterica natildeo soacute ldquoacaba de inculcar no revisor um sentimento de distanciamento iroacutenico em relaccedilatildeo agraves palavras do reirdquo (Caragea 235) mas questiona sobretudo as noccedilotildees de texto-fonte e traduccedilatildeo fiel ao texto-fonte

Ao aprender que a invisibilidade do tradutor eacute falaz o revisor daacute o primeiro passo para a sua proacutepria visibilidade autoral Assim a ldquometaficccedilatildeo historiograacuteficardquo (Kaufman 1991) nasce directamen-te do dialogismo no sentido bakhtiniano com Joseacute Augusto de Oliveira simultaneamente ele eacute tradutor da epiacutestola publicada em ediccedilatildeo bilingue (1935) e autor da revisatildeo historiograacutefica intitulada ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem con-tar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo apresentada em 1940 Em vez de tomar a epiacutestola ldquodita de Osbernordquo como texto-fonte homogeacuteneo e traduzi-lo do latim como o fez o ldquoproacuteprio autor da Histoacuteriardquo (Saramago 43) facilmente reconheciacutevel como figuraccedilatildeo de Joseacute

121Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Augusto de Oliveira Raimundo Silva duvida natildeo soacute da pureza da fonte e subsequentemente da fidelidade da traduccedilatildeo mas tambeacutem da identidade do autor da epiacutestola Pelo tiacutetulo Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) Narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial da ediccedilatildeo bilingue esta identidade parece uniacutevoca mas natildeo eacute por exemplo Joseacute F Alves (2004) considera ldquobem coe-renterdquo que a primeira linha do texto latino ldquoOsb de Baldr R salutemrdquo indique um Osb de Baldr (Osberno ou Osberto ou Osborne) como destinataacuterio de ldquouma missiva mesmo sobrescrita apenas por um Rrdquo conjecturando-se o nome de Rogeacuterio19 Apor-tuguesando-se o nome Roger para Rogeiro o romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa assume esta suposiccedilatildeo ndash em oposiccedilatildeo ao lsquolivro do historiadorrsquo que considera Osberno um cruzado letrado O frade eacute apresentado na frase que continua a citaccedilatildeo anterior sobre a iden-tidade eacutetnica indefinida de D Joatildeo Peculiar arcebispo de Braga

Quem eacute indubitavelmente estrangeiro mas contado agrave parte por vir em missatildeo especial nem parlamentaacuterio nem homem de guerra eacute aquele frade ruivo e sardento ali a quem ago-ra mesmo ouvimos chamar Rogeiro mas que realmente tem por nome Roger o que deixaria em aberto a questatildeo de ser ele inglecircs ou normando (hellip) (198)

A identidade de Roger Rogeiro embora etnicamente indecisa oferece ndash na traduccedilatildeo para inglecircs e tambeacutem para alematildeo ndash uma afinidade cultural com o leitor impliacutecito reforccedilada pelo fiacutesico in-confundiacutevel noacuterdico ldquothat sandy-haired freckled friarrdquo (Sarama-go 1996 176) bdquojener blonde sommersprossige Paterldquo (241) No romance Frei Rogeiro cumpre o papel de ldquocronistardquo que transpotildee um conjunto multilingue de falas numa escrita coerente e homo-geacutenea Por exemplo no caso do discurso do arcebispo de Braga

Rogeiro logo em abreviado e taquigraacutefico o registou para mais tarde deixando os aformoseamentos oratoacuterios com que

122Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

brindaraacute aquele seu destinataacuterio distante Osberno chama-do laacute onde quer que esteja e quem quer que tenha sido poreacutem jaacute vai introduzindo redondeios de lavra proacutepria fru-tos de inspiraccedilatildeo estimulada (hellip) (200)

Significativamente Roger Rogeiro natildeo eacute tradutor mas ndash tal como o revisor Raimundo Silva ndash portador da consciecircncia de que tudo eacute traduccedilatildeo correspondendo ao latim o privileacutegio da liacutengua veicular

Este Rogeiro natildeo conhece uma palavra de araacutebigo nem de galego mas neste caso natildeo seraacute impedimento a ignoracircncia pois todo o debate vaacute por onde vaacute sempre iraacute dar ao latim graccedilas aos inteacuterpretes e aos tradutores simultacircneos (198)

De facto esta consciecircncia do plurilinguismo caracteriza Cruce-signati anglici epistola de expugnatione olisiponis desde o iniacutecio falando dos cruzados ldquoInter hos tot linguarum populos firmissima concordiae atque amititiaerdquo (Conquista 21) As falas de cruzados portugueses e mouros aparecem ou em citaccedilotildees traduzidas (de ou-tras liacutenguas para latim) ou em liacutengua latina para serem traduzidas no contexto do cerco Ambas satildeo adaptadas a um texto composto conforme as retoacutericas claacutessica e biacuteblica Eacute a proacutepria epiacutestola que refere a necessidade de traduccedilatildeo por exemplo do discurso do bispo do Porto proferido em latim perante a multidatildeo plurilingue dos cruzados reunidos20 Em contraste eacute significativo que o tradutor JA de Oliveira defenda ldquouma versatildeo que sem trair o pensamen-to se libertasse da escravidatildeo da letrardquo em vez de encher ldquoo texto portuguecircs com antigos vocaacutebulos forrageando-os nas velhas croacute-nicas conhecidas dos eruditosrdquo (Oliveira 1935 18) outorgando agrave sua traduccedilatildeo uma missatildeo nacionalista

Assim espero-o todos entenderatildeo este velho monumento da nossa histoacuteria e nesta hora de ressurgimento neste des-

123Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

pertar de energias e rasgar-se de horizontes novos faraacute bem aos portugueses de hoje ouvir falar a alma dos que agrave forccedila de braccedilo com persistecircncia com teimosia com obstinaccedilatildeo e com amor souberam ungir com o proacuteprio sangue os alic-erces desta nossa Paacutetria que eles nos deixaram para a con-servarmos amorosamente digna honrada e livre (Oliveira 1935 19)

Quem afirma assim uma leitura nacionalista de uma epiacutestola no fundo totalmente alheia ao objectivo de alicerccedilar a Histoacuteria nacional esconjura o que natildeo quer ver entregando-se agrave ldquotarefa permanente de nos iludirmosrdquo que critica Pacheco Pereira (2006) no caso das reacccedilotildees ao discurso de Jack Welsh Longe de com-preender a utilidade particular do confronto com a nossa imagem vista de fora JA de Oliveira concebe a sua traduccedilatildeo da epiacutestola estrangeira como contributo agrave legibilidade culturalmente coerente e homogeacutenea do ldquovelho monumento da nossa histoacuteriardquo A fideli-dade da traduccedilatildeo revela-se enganadora atraveacutes da leitura criacutetica de Raimundo Silva Assim a palavra aacuterabe ldquoalgazarrardquo que JA de Oliveira escolheu para traduzir ldquoconclamatiordquo na fala (por sua vez traduzida) de D Afonso Henriques21 evidencia natildeo soacute a homoge-neizaccedilatildeo do plurilinguismo tanto no texto-fonte como na traduccedilatildeo mas tambeacutem ndash numa leitura contraacuteria ndash a crioulizaccedilatildeo da identida-de portuguesa

Acertara D Afonso Henriques em cheio quando prognos-ticou que o exame da sua proposta acabaria em algazarra palavra que sendo aacuterabe de nacionalidade igualmente serve a qualquer gritar e vozear de colonenses flamengos bolon-heses bretotildees escoceses e normandos misturados (47-48)

Vollkommen recht hatte Dom Afonso Henriques mit der Voraussicht sein Vorschlag werde eine algazarra ausloumlsen dieses Wort obzwar arabischer Abkunft ist auch dienlich jedwedes ereiferndes Geschrei und Gekreisch der Koumllner

124Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Flamen Bologneser Bretonen Schotten und Normannen und aller durcheinander zu bezeichnen (56)

Portanto a palavra ldquoalgazarrardquo sugere nesta leitura transcul-tural do discurso reacutegio a relaccedilatildeo ambivalente galega aacuterabe como fundadora Esta insinuaccedilatildeo integra-se numa paroacutedia do discurso da identidade nacional nomeadamente na sua projecccedilatildeo anacroacutenica para a Idade Meacutedia ndash um aspecto que fica esbatido na traduccedilatildeo ale-matilde22 Uma leitura semelhante sugere a mensagem do rei de Eacutevora aos ldquoseus irmatildeos de Lisboardquo cuja traduccedilatildeo comentada ao portu-guecircs actual brinca com a identidade estereotipada de alentejanos

Aguentem aiacute os malvados que a minha tropa de alentejanos jaacute vai a caminho dizemo-lo assim por vir essa gente de aleacutem do Tejo ficando demonstrado de caminho que jaacute havia alentejanos antes de haver portugueses (176)

Para o leitor da traduccedilatildeo a existecircncia historicamente invertida de ldquoAlentejanerrdquo antes dos ldquoPortugiesenrdquo natildeo possui significado centrando-se a atenccedilatildeo na identificaccedilatildeo de ldquodiese Leute von jenseits des Tejordquo como ldquoAlentejanerrdquo (212) De facto a epiacutestola latina cita mensagens entre os mouros de Lisboa e o rei de Eacutevora desta-cando a ajuda de um inteacuterprete para poder incorporaacute-las no texto23 Obviamente a missiva reacutegia natildeo menciona alentejanos e transmite precisamente o contraacuterio a recusa do envio de tropas alegando a existecircncia de ldquotreacuteguas com o rei dos portuguesesrdquo (Conquista 64)

Estas manipulaccedilotildees mostram que Raimundo Silva eacute cada vez mais consciente da leitura escrita como cruzamento entre dimen-satildeo linguiacutestica e cultural no eixo temporal vaacutelido para a questatildeo da traduccedilatildeo24 no sentido das reflexotildees de Andreacute Lefevere (1992) Horst Turk (1992) e Susan Bassnett (1998) que analisam o texto tra-duzido ldquoembedded in its network of both source and target cultural signsrdquo (Bassnett9) Transcendo uma definiccedilatildeo estaacutetica de ldquocultural signsrdquo e da ldquohybridizationrdquo de Homi Bhabha podemos falar da

125Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

traduccedilatildeo como crioulizaccedilatildeo (Stoll 2005) com base em muacuteltiplos processos de mudanccedila sincroacutenicos e diacroacutenicos A paroacutedia da geacutenese da identidade portuguesa atraveacutes da criacutetica da pureza do texto-fonte (e da sua traduccedilatildeo) coincide com posiccedilotildees da historio-grafia moderna a conquista de Lisboa natildeo significa ndash conforme a Histoacuteria nacional tradicional ndash a vitoacuteria dos portugueses alcanccedilada com ajuda dos cruzados sobre os mouros significa isso sim a im-posiccedilatildeo militarmente bem sucedida do novo paradigma de pureza cristatilde implantada atraveacutes da ideologia colonizadora da Segunda Cruzada (114748) ao velho paradigma da convivecircncia segregada mais ou menos paciacutefica entre muccedilulmanos cristatildeos e judeus em estruturas poliacuteticas e sociais localmente autoacutenomas sob domiacutenio aacuterabe (Marques 68) O romance saramaguiano insinua esporadi-camente a crioulizaccedilatildeo da identidade portuguesa mas natildeo concede potencial identitaacuterio agraves populaccedilotildees cristatilde (moccedilaacuterabe) e judaica de Al-Usbuna sacrificadas por uma fracccedilatildeo dos cruzados ldquologo que o saque e o massacre exorbitaram das possibilidades de controlordquo (Marques 68) como conta em pormenor a epiacutestola Naturalmente destaca-se o bom comportamento dos ingleses e normandos (identi-dade de quem escreve) em contraste com o massacre e a devastaccedilatildeo perpetrados pelos colonenses e flamengos que ateacute matam o bispo da cidade moura25

Portanto o des-narrar saramaguiano natildeo empreende um deslo-camento transcultural tatildeo audaz como por exemplo La reivindi-cacioacuten del conde don Juliaacuten (1970) de Juan Goytisolo26 Naquele romance o narrador recupera atraveacutes da sua identificaccedilatildeo com o miacutetico lsquotraidorrsquo D Juliatildeo a identidade aacuterabe e moccedilaacuterabe termi-nando com o anuacutencio do lado aacuterabe ldquomantildeana seraacute otro diacutea la invasioacuten recomenzaraacuterdquo No entanto existe em Histoacuteria do Cerco um almuadem cego que preenche claramente o lugar do bispo anti-quiacutessimo a ser degolado como aquele por ldquoum soldado cristatildeo de mais zelosa feacuterdquo (348) A sua cegueira paradoxalmente visionaacuteria da Lisboa moura sitiada eacute contraacuteria daquela de ldquoira sanguinaacuteriardquo do seu assassino identificado como ldquoo cruzado Osberno soacute igual de nomerdquo (Saramago 40) introduzindo-se assim deliberadamente

126Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

uma homoniacutemia com o Osberno da epiacutestola (ainda tratado ndash errone-amente ndash como o seu autor) novamente recordada em ldquoo cruzado Osberno poreacutem natildeo o talrdquo27

Esta duplicaccedilatildeo de identidades com o mesmo nome adverte o leitor para ficar atento perante redefiniccedilotildees identitaacuterias como por exemplo dos sitiadores chamados ldquoos francos e os galegosrdquo28 sob comando dos cruzados e ldquoIbn Arrinque o Galegordquo (74) na perspetiva dos mouros recriada na mente de Raimundo Silva O almuadem na sua torre complementa ndash atraveacutes dos tempos ndash a posiccedilatildeo de Raimundo Silva ldquoque hoje quase tatildeo cego se vecirc como elerdquo (33) Significativamente o revisor apercebe-se ldquode que mora no preciso lugar onde antigamente se abria a Porta de Alfofardquo configurando-se assim topograficamente a incerteza (que corresponde ao des-narrar) ldquose Raimundo Silva eacute um si-tiado ou um sitiante vencedor futuro ou perdedor sem remeacutediordquo (75) Nos seus passeios por Lisboa ele revivifica uma cidade dividida entre zonas dos sitiados e dos atacantes entretecendo ldquodois temposrdquo (242) passado e presente29 A ambiguidade nos eixos de lugar e tempo transfere-se natildeo soacute agrave histoacuteria aplicando o tema da cegueira ateacute ao processo da sua recepccedilatildeo ldquo(hellip) esta [histoacuteria] de agora comeccedilada soacute poderaacute lecirc-la quem os olhos ti-ver luacutecidos e abertos natildeo um cegordquo (243) transfere-se tambeacutem agrave liacutengua na qual estaacute escrita o texto insinuando-se um regresso a outra fonte nas duas dimensotildees de identidade cultural e texto que evoca aquela transformaccedilatildeo da liacutengua castelhana em aacuterabe realizada nas uacuteltimas duas paacuteginas de Juan sin Tierra (1975) de Juan Goytisolo ldquo(hellip) as matildeos de Raimundo Silva pousam sobre a uacuteltima folha escrita umas linhas negras indecifraacuteveis talvez de araacutebiga liacutengua natildeo estivemos atentos agrave voz do almuademrdquo (Sara-mago 243) Na accedilatildeo mediadora do revisor confluem a voz aacuterabe do almuadem e a escrita latina do cleacuterigo Roger Na reescrita inicialmente soacute mental do lsquolivro do historiadorrsquo Raimundo Sil-va procura uma reconstruccedilatildeo contextualizada de ambos os lados (cristatildeos muccedilulmanos) por exemplo corrigindo o significado da cegueira do almuadem

127Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

() natildeo foi erro escrever porque enfim escrito estaacute que era cego o almuadem O historiador soacute fala de minarete e muezim talvez ignorasse que quase todos os almuadens naquele tempo e por muito tempo depois eram cegos (29

() es war kein Fehler und geschrieben ist es nun mal daszlig der Muezzin blind war Der Historiker der da lediglich von Minarett und Muezzin schreibt wuszligte vielleicht nicht daszlig fast alle Muezzins damals und noch lange danach blind waren (32)

O revisor identifica ldquominareterdquo e ldquomuezimrdquo como palavras li-gadas ao orientalismo dos seacuteculos XVIII e XIX Apesar de ser um fenoacutemeno transnacional europeu o orientalismo teve maior atracccedilatildeo na cultura francesa que espalhou para outras liacutenguas eu-ropeias as vozes aacuterabes importadas pela via oriental o Impeacuterio Otomano (Turquia) na sua expansatildeo europeia a partir do seacuteculo XIV (ponto alto conquista de Constantinopla em 1453) tinha dei-xado vestiacutegios nomeadamente na cultura austriacuteaca no acircmbito dos Tuumlrkenkriege (ponto de viragem Cerco de Viena em 1683) que serviram de base para o orientalismo francecircs Raimundo Silva pre-fere o uso da palavra ldquoalmuademrdquo de maior e mais antiga presen-ccedila na liacutengua portuguesa30 importada directamente e recuperada no Romantismo pelas Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano tal como ldquoalmaacutedenardquo em vez de ldquominareterdquo (Machado 62) A tra-duccedilatildeo alematilde natildeo assinala esta tentativa de maior lsquopurezarsquo histoacuterica no discurso sobre a identidade moura mantendo a denominaccedilatildeo invariaacutevel ldquoMuezzinrdquo embora exista a alternativa lexical menos usada de ldquoMuaddhinrdquo (Brockhaus 229)31

No contexto do pensamento poacutes-colonial esta reaquisiccedilatildeo dos processos de imaginaccedilatildeo depois das imposiccedilotildees coloniais europeias que comeccedila em princiacutepio pelo Romantismo (Herculano Garrett) revela a raiz histoacuterica da especificidade relacional portuguesa co-lonizada colonizadora isto eacute a harmonizaccedilatildeo mais ou menos voluntaacuteria da poliacutetica existente de poder regional na Peniacutensula Ibeacute-

128Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

rica com a ideologia colonizadora das cruzadas Para aleacutem de uma subtil reivindicaccedilatildeo da identidade moura Histoacuteria do Cerco de Lisboa se cinge quase unicamente agrave revisatildeo da identidade conquis-tadora na qual entra a identidade alematilde ndash um aspecto importante para a traduccedilatildeo Assim estabelece-se uma certa inversatildeo embora natildeo perfeita de identidade alteridade em geral o leitor alematildeo estaacute pouco familiarizado com a geacutenese da identidade portuguesa e ignora a configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica que eacute responsaacutevel pelo excesso identitaacuterio desconhecendo tambeacutem a participaccedilatildeo bem documentada de actores vindos de terras alematildes Eles aparecem no romance logo quando Raimundo Silva comeccedila a reler a epiacutestola na sua procura da ldquofonte limpardquo

(hellip) a informaccedilatildeo eacute de boa origem diz-se que directamente do ceacutelebre Osberno e assim podemos ficar a saber que es-tava o conde Arnoldo de Aarschot o qual comandava os guerreiros vindos de diversas partes do impeacuterio germacircni-co que estava Cristiano de Gistell chefe dos flamengos e bolonheses (hellip) (124)

Seguindo a teia intertextual regressamos ao texto-fonte que em contraste com a citada Croacutenica de Portugal de 1419 narra na perspectiva de uma expediccedilatildeo militar

Igitur apud portum de Dertemunde diversarum nationum et morum et linguarum gentes navibus cicrciter CLXIIII convenere Horum omnium trifariam partitur exercitus Sub comite Arnoldo de Arescot nepote Godefridi ducis a romani imperii partibus secedit exercitus Sub Christiano de Gistello flandrenses et bononenses32

A mudanccedila para ldquoimpeacuterio germacircnicordquo (124) corresponde agrave nota explicativa do tradutor JA de Oliveira33 No entanto natildeo se expli-

129Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ca a substituiccedilatildeo de ldquobononensesrdquo por ldquobolonhesesrdquo Naturalmen-te as duas mudanccedilas reflectem-se na traduccedilatildeo alematilde que toma o romance saramaguiano como texto-fonte

(hellip) Information aus verlaumlszliglicher Quelle dem Vernehmen nach direkt vom beruumlhmten Osberno persoumlnlich und also koumlnnen wir uns vergewissern daszlig da Graf Arnoldo de Aar-schot zugegen war der die aus verschiedenen Regionen des deutschen Kaiserreiches herbeigestroumlmten Krieger befehlig-te und Cristiano de Gistell der den Flamen und Bologne-sern vorstand (hellip) (150)

Na traduccedilatildeo alematilde nomes proacuteprios estrangeiros natildeo satildeo lsquore-patriadosrsquo nem o proacuteprio Osberne nem Arnold ou Christian que ficam todos na grafia romacircnica No entanto ldquoimpeacuterio germacircni-cordquo passa para ldquodeutsches Kaiserreichrdquo uma traduccedilatildeo que insinua uma projecccedilatildeo anacroacutenica do seacuteculo XIX (refundaccedilatildeo do Heiliges Roumlmisches Reich Deutscher Nation como Deutsches Kaiserreich em 1871) natildeo pretendida no texto-fonte Naturalmente a traduccedilatildeo alematilde ignora a possibilidade latente jaacute apagada no texto sarama-guiano de encontrar a identidade alematilde nos ldquobononensesrdquo mal transcritos em ldquobolonhesesrdquo34 Esta transcriccedilatildeo defeituosa surpre-ende porque eacute a personalidade do cavaleiro Henrique de Bona ausente na epiacutestola35 que teve o maior relevo individual na histo-riografia portuguesa entre os ldquosamtos cavaleyros martiresrdquo

Nesta tomada de Lisboa morerom alguns cavaleyros como martires e depois faziam muytos milagres amtre os quaes foy hum cavaleyro chamado Amriqe alematildeo o qual era de hũa vila que chamom Bona posta jumto de Colonha o qual foy enterado em Sam Viccedilemte honde fazia muytos milagres (hellip) (Croacutenica 50)

130Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Merecendo destaque na histoacuteria da fundaccedilatildeo do mosteiro de Satildeo Vicente com episoacutedios de acccedilatildeo milagrosa depois de morto (Indiculum 83-85 Croacutenica 50-52) Henrique de Bona torna-se uma personagem da Histoacuteria portuguesa digna de entrar nrsquo Os Lu-siacuteadas (VIII 18) Procede-se a uma apropriaccedilatildeo do estrangeiro colonizador o alematildeo Henrique torna-se depois de ter vertido ldquode gram voontade o seu sangue antre os mouros pola paixom do Nosso Salvador Jesu Cristordquo (Indiculum 83) no maior Santo Cavaleiro da Tomada de Lisboa Na Alemanha ele estaacute totalmente desconhecido a natildeo ser no acircmbito da retoacuterica diplomaacutetica bila-teral na qual aparece natildeo como maacutertir mas como fundador dos ldquolaccedilos da amizade secular que liga o povo da Alemanha ao de Por-tugalrdquo (Ehrhardt 11) projectando a ajuda dos cruzados na geacutenese do reino de Portugal numa lsquolenda de auxiacuteliorsquo para todas as eacutepocas posteriores

Numa abordagem criacutetica observamos um duplo branqueamen-to (1) da memoacuteria do saque cruel e devastador da Lisboa moura perpetrado pelos cruzados colonenses e flandrenses e (2) da rela-ccedilatildeo colonizadora entre aliados no contexto da Europa Cingimo--nos no acircmbito deste estudo agrave anaacutelise do episoacutedio da torre moacutevel No romance a ideia da sua construccedilatildeo eacute atribuiacuteda ao cavaleiro Henrique manipulando as fontes histoacutericas que falam de engenhos militares em competiccedilatildeo entre os diferentes grupos eacutetnicos ou destacam ldquoum engenheiro italiano natural de Pisardquo36 O discurso profeacutetico de superioridade cultural deste cavaleiro revela os moti-vos desta escolha

Grandes satildeo as vantagens que a Portugal adviratildeo de imitar neste como noutros casos o que na Europa se vai fazendo de mais moderno ainda que ao princiacutepio experimenteis dificuldades em meter na cabeccedila as tecnologias novas eu por mim sei da construccedilatildeo das tais torres o suficiente para os naturais daqui (hellip) (251)

131Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Groszlige Vorteile sind Portugal gewiszlig wenn es in diesem wie in anderen Faumlllen nachahmt was man in Europa an houmlchst modernen Dingen tut mag es euch anfaumlnglich auch schwerfallen die neuen Techniken in euren Kopf hinein-zukriegen ich meinerseits weiszlig vom Bau besagter Tuumlrme hinreichend viel um die hiesigen Eingeborenen zu unter-richten () (305)

Mesmo a traduccedilatildeo alematilde transmite a ideia de que a fala do cavaleiro Henrique perante o primeiro rei portuguecircs conteacutem uma paroacutedia do discurso poliacutetico actual que natildeo se cansa de propagar a imitaccedilatildeo da Europa avanccedilada representada pela capacidade eco-noacutemica e tecnoloacutegica de Alemanha em competiccedilatildeo com outras na-ccedilotildees Ao mesmo tempo projecta-se ndash apresentado como verdade de fora ndash a auto-imagem humilhante dos ldquonaturaisrdquo37 como matildeo-de--obra sem formaccedilatildeo agrave mercecirc das decisotildees de governantes que pac-tuam com os estrangeiros (252) como condiccedilatildeo da proacutepria geacutenese nacional No entanto a derrota da torre tatildeo bem construiacuteda que conduz ateacute agrave morte do seu construtor faz surgir a criacutetica dos ldquoen-genhos estrangeiros que tanto podem estar a favor como contrardquo (316) parodiando-se assim tanto a lsquolenda de auxiacuteliorsquo e a atitude colonizadora como o projecto portuguecircs de modernizaccedilatildeo europeia (Grossegesse 1995 228)

Reservando uma anaacutelise da constelaccedilatildeo transcultural entre o ca-valeiro alematildeo Henrique a sua ldquobarregatilderdquo Ouroana38 e o soldado Mogueime para outra ocasiatildeo centramo-nos num aspecto de jogo intertextual que ainda recebeu pouca atenccedilatildeo Face agrave ausecircncia do episoacutedio da torre moacutevel e da personalidade de Henrique de Bona na epiacutestola dirigida a Osberno eacute significativo que o romance sara-maguiano invente ldquoapontamentos para a carta de Osbernordquo (308) contendo estes em todo pormenor a histoacuteria do cavaleiro Henri-que A explicaccedilatildeo psicanaliacutetica de Ersatz para esta escrita do Frei Rogeiro39 tambeacutem eacute vaacutelida para o revisor Raimundo que insere na sua reescrita do Cerco de Lisboa a histoacuteria da conquista amorosa de Ouroana por Mogueime possibilitada pela morte do cavaleiro

132Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

alematildeo que espelha ndash atraveacutes dos tempos ndash a sua proacutepria lsquoconquis-tarsquo de Maria Sara

Com a ficccedilatildeo do texto apoacutecrifo inaugura-se uma hibridizaccedilatildeo transcultural das proacuteprias fontes histoacutericas possibilitando um amalgamar das narrativas dos cruzados com a Histoacuteria nacional e o lendaacuterio portuguecircs que culmina na releitura dos milagres do cava-leiro Henrique em simultacircneo com os milagres de Santo Antoacutenio o padroeiro mais popular de Lisboa A intersecccedilatildeo de milagres de ambos pelas leituras simultacircneas de Maria Sara e Raimundo eacute um acto que subverte tanto a procura da verdade histoacuterica como o conceito de identidades delimitadas por territoacuterio sangue e liacutengua Numa espeacutecie de metalepse o proacuteprio Frei Rogeiro apoacutes ter com-pilado ldquoos apontamentos que havia tomado durante uma volta que dera por todos os arraiaisrdquo (331) participa no episoacutedio milagroso ldquoComo o cavaleyro Amrique apareccedileo em sonhos a hum homem botildeo e como lhe disse que soterasem seu escudeiro a par delerdquo (Croacute-nica 51 cf Indiculum 84-85) cumprindo o papel daquele homem bom natildeo identificado

Mais significativo nesta leitura de milagres transformada em reescrita paroacutedica eacute o destaque atribuiacutedo agrave questatildeo de identida-des processos de deslocaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo culminando na trans-formaccedilatildeo de um milagre do cavaleiro Henrique numa espeacutecie de contra-mito da origem da liacutengua portuguesa ao narrar o milagre dos dois homens surdos-mudos que se deitaram ao lado do moi-mento do cavaleiro (Indiculum 83-84 Croacutenica 50-51) realccedila-se a incerteza da identidade deles ldquotinham vindo na frota poreacutem natildeo se sabe se ingleses aquitanos bretotildees flandrenses ou colonen-sesrdquo (335) Estando os dois homens assim jazendo ldquoadormeceram ambos e apareceu-lhes em sonho logo o cavaleiro Henrique (hellip) e falou agravequeles mancebosrdquo (336) ndash natildeo sabemos em que liacutengua ndash anunciando a sua cura de duvidoso efeito

(hellip) e eles acordando acharam que podiam ouvir e falar tambeacutem poreacutem falavam como gagos e de maneira que natildeo se entendia que liacutengua estavam falando se a dos ingleses

133Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ou aquitanos ou bretotildees ou flandrenses ou colonenses ou conforme natildeo poucos afirmavam a liacutengua dos portu-gueses (336)

Esta manipulaccedilatildeo natildeo de fontes histoacutericas mas de uma len-da convida para uma leitura metadiscursiva em vez de ldquocom voz chlara (hellip) contar a todo o povo o milagre que Deos em eles fizerardquo (Croacutenica 51) os dois ficam gagos No entanto o problema natildeo consiste em entender o que eacute que eles dizem mas em identificar a liacutengua que eles falam Nesta leitura o milagre reinterpretado enfa-tiza a visatildeo de uma hibridizaccedilatildeo das liacutenguas e das identidades no entanto consciente da imperfeita capacidade comunicativa que eacute aplicaacutevel agraves questotildees de revisatildeo e traduccedilatildeo

Tal como o revisor Raimundo Silva dentro da ficccedilatildeo o tradutor reescreve um texto anterior no entanto noutra liacutengua e para um leitor com outro horizonte cultural A procedecircncia das fontes histoacute-ricas e a apropriaccedilatildeo do cavaleiro Henrique pelo discurso da iden-tidade portuguesa demonstram a ineficaacutecia das definiccedilotildees puras de identidade e alteridade Em vez da tentativa de uma reproduccedilatildeo de uma liacutengua na outra no fundo irrealizaacutevel a visatildeo da hibridiza-ccedilatildeo das liacutenguas e identidades advoga uma recriaccedilatildeo naturalmente sempre parcial e imperfeita daquela heterogeneidade que Histoacuteria do Cerco de Lisboa exibe ao narrar a procura de uma ldquoverdaderdquo que ldquonatildeo pode ser mais do que uma cara sobreposta agraves infinitas maacutescaras variantes (hellip)rdquo (26) Para tal activa-se ldquooutro tipo de relaccedilotildees entre os elementos (hellip) porque as coerccedilotildees impostas pelas liacutenguas levam a diferentes possibilidades de contextualizaccedilotildees de remissotildees de encadeamentos de atribuiccedilatildeo de valores entre os elementosrdquo (Rodrigues 205) Se o romance reflecte claramente a diffeacuterance (Derrida 1967) como princiacutepio universal40 destacando os processos de traduccedilatildeo e reescrita este princiacutepio deve ser vaacutelido tambeacutem para a proacutepria traduccedilatildeo como propotildee Cristina Carneiro Rodrigues na continuaccedilatildeo de Rosemary Arojo (1993)

134Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

O original vive sobrevive na e pela sua proacutepria transfor-maccedilatildeo produzida pela leitura A traduccedilatildeo natildeo transporta uma essecircncia natildeo troca ou substitui significados dados prontos em um texto por significados equivalentes em outra liacutengua A traduccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo em que o laquotexto originalraquo se daacute por sua proacutepria modificaccedilatildeo em sua trans-formaccedilatildeo (Rodrigues 206)

O romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa interrelaciona esta con-diccedilatildeo de cada texto ser texto de textos transferidos traduzidos de outros textos em contextos histoacutericos sempre diferentes com a criacutetica da lsquoorigemrsquo da identidade individual e colectiva no sentido de transculturalidade e da ldquoculturersquos hibridityrdquo (Bhabha 1989 38) ambas com base expliacutecita na diffeacuterance Se reactivarmos a teoria de Jean Ricardou (1973) relativamente ao nouveau roman podemos dizer que a aventura da leitura escrita do revisor prefigura uma aventura semelhante do tradutor Tal como o revisor transformado em tradutor e autor ele transmite uma Histoacuteria do Cerco de Lis-boa recriada para outro leitor neste caso um leitor alheio natildeo soacute agrave narraccedilatildeo tradicional desta histoacuteria num discurso identitaacuterio mas tambeacutem agrave integraccedilatildeo da sua identidade cultural neste discurso Isto torna a traduccedilatildeo deste romance uma aventura de leitura e reescrita em certa medida jaacute prevista na Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Se no processo de traduccedilatildeo o tradutor ou tradutora tem que necessariamente tomar o lugar do autor e se apossar de seu texto para que esse possa sobreviver em outra liacutengua natildeo haacute como eliminar esse momento de usurpaccedilatildeo e con-quista que a reflexatildeo desconstrutivista flagra e desmascara (Arrojo 1993 82)

Curiosamente Rosemary Arrojo emprega a mesma metaacutefora de conquista utilizada para a aventura de Raimundo Silva que abrange a conquista amorosa de Maria Sara41 Eacute precisamente a mulher

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

119Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

mente ao leitor impliacutecito de traduccedilotildees para as liacutenguas do Centro Norte da Europa eacute o seguinte trecho

O pessoal que veio a esta fala parlamentar eacute todo de portu-gueses natildeo pareceu bem a el-rei servir-se de estrangeiros para o reforccedilo do ultimatum ainda que diga-se de pas-sagem subsistam grandes duacutevidas de que o arcebispo de Braga pertenccedila de facto ao nosso sangue lusitano mas enfim jaacute nesses antigos tempos tinha principiado a fama que mantivemos ateacute hoje de receber bem a gente de fora distribuir-lhes cargos e prebendas e este D Joatildeo Peculiar vaacute laacute pagou-nos multiplicado em serviccedilos patrioacuteticos E se como tambeacutem se diz era mesmo portuguecircs e de Coimbra vejamo-lo como pioneiro da nossa vocaccedilatildeo migratoacuteria da magniacutefica diaacutespora pois toda a sua juventude a passou em Franccedila a estudar devendo notar-se aqui uma acentuada diferenccedila em relaccedilatildeo agraves tendecircncias recentes da nossa emig-raccedilatildeo para aquele paiacutes plutocirct adstrita aos trabalhos sujos e pesados (197-98)

O problema de transmitir o sentido paroacutedico na traduccedilatildeo18 por exemplo da eterna vocaccedilatildeo migratoacuteria bdquounserer migratoris-chen Berufung unserer wundervollen Diasporaldquo (240) culmina na dificuldade de incluir o leitor impliacutecito da traduccedilatildeo na situaccedilatildeo enunciativa isto eacute neste caso ele se deveria rever no lsquoestrangei-rorsquo vindo da Franccedila e indo aleacutem das dicotomias aperceber-se da relatividade das categorias

Eacute significativo que o revisor Raimundo Silva chegue a este tipo de des-narraccedilatildeo atraveacutes de uma criacutetica da traduccedilatildeo que fundamenta o proacuteprio acto de alterar o lsquolivro do historiadorrsquo a partir do ldquonatildeordquo Natildeo eacute tanto o ldquorigor da traduccedilatildeordquo (44) que estaacute em causa mas a sua verossimilhanccedila Precisamente por duvidar dos conhecimentos de latim das capacidades retoacutericas e em geral da cultura de Afon-so Henriques Raimundo Silva considera ldquoa primeira fala averigua-da do nosso rei fundadorrdquo nada menos do que ldquouma absurdidaderdquo

120Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

(43) negando de passagem tambeacutem o uso da liacutengua portuguesa que a tradicional narrativa fundacional de Portugal assume com naturalidade

(hellip) eacute de supor que o real menino aleacutem de explicar-se natu-ralmente em galego latinizaria o quantum satis para poder declamar chegada a hora perante tantos e tatildeo cultos cru-zados estrangeiros a arenga supracitada uma vez que eles de liacutenguas natildeo entenderiam entatildeo mais do que a sua de berccedilo e iguais rudimentos da outra com a ajuda dos frades inteacuterpretes (Saramago 44)

Esta duacutevida sobre a pureza do discurso reacutegio reproduzido na epiacutestola e traduzido pelo historiador torna-se em ldquoleitura paroacutedica (hellip) pela contextualizaccedilatildeo dramaacuteticardquo (Caragea 2003 235) O que Raimundo Silva ldquoem voz alta lecirc como um arauto lanccedilando as pro-clamasrdquo (P 45) ldquosituando portanto a sua reinterpretaccedilatildeo na zona pragmaacutetica da pronuntiatiordquo (Caragea 235) corresponde ipsis verbis com uma ou outra inversatildeo agrave traduccedilatildeo de JA de Oliveira (Conquista 44) A performance retoacuterica natildeo soacute ldquoacaba de inculcar no revisor um sentimento de distanciamento iroacutenico em relaccedilatildeo agraves palavras do reirdquo (Caragea 235) mas questiona sobretudo as noccedilotildees de texto-fonte e traduccedilatildeo fiel ao texto-fonte

Ao aprender que a invisibilidade do tradutor eacute falaz o revisor daacute o primeiro passo para a sua proacutepria visibilidade autoral Assim a ldquometaficccedilatildeo historiograacuteficardquo (Kaufman 1991) nasce directamen-te do dialogismo no sentido bakhtiniano com Joseacute Augusto de Oliveira simultaneamente ele eacute tradutor da epiacutestola publicada em ediccedilatildeo bilingue (1935) e autor da revisatildeo historiograacutefica intitulada ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem con-tar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo apresentada em 1940 Em vez de tomar a epiacutestola ldquodita de Osbernordquo como texto-fonte homogeacuteneo e traduzi-lo do latim como o fez o ldquoproacuteprio autor da Histoacuteriardquo (Saramago 43) facilmente reconheciacutevel como figuraccedilatildeo de Joseacute

121Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Augusto de Oliveira Raimundo Silva duvida natildeo soacute da pureza da fonte e subsequentemente da fidelidade da traduccedilatildeo mas tambeacutem da identidade do autor da epiacutestola Pelo tiacutetulo Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) Narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial da ediccedilatildeo bilingue esta identidade parece uniacutevoca mas natildeo eacute por exemplo Joseacute F Alves (2004) considera ldquobem coe-renterdquo que a primeira linha do texto latino ldquoOsb de Baldr R salutemrdquo indique um Osb de Baldr (Osberno ou Osberto ou Osborne) como destinataacuterio de ldquouma missiva mesmo sobrescrita apenas por um Rrdquo conjecturando-se o nome de Rogeacuterio19 Apor-tuguesando-se o nome Roger para Rogeiro o romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa assume esta suposiccedilatildeo ndash em oposiccedilatildeo ao lsquolivro do historiadorrsquo que considera Osberno um cruzado letrado O frade eacute apresentado na frase que continua a citaccedilatildeo anterior sobre a iden-tidade eacutetnica indefinida de D Joatildeo Peculiar arcebispo de Braga

Quem eacute indubitavelmente estrangeiro mas contado agrave parte por vir em missatildeo especial nem parlamentaacuterio nem homem de guerra eacute aquele frade ruivo e sardento ali a quem ago-ra mesmo ouvimos chamar Rogeiro mas que realmente tem por nome Roger o que deixaria em aberto a questatildeo de ser ele inglecircs ou normando (hellip) (198)

A identidade de Roger Rogeiro embora etnicamente indecisa oferece ndash na traduccedilatildeo para inglecircs e tambeacutem para alematildeo ndash uma afinidade cultural com o leitor impliacutecito reforccedilada pelo fiacutesico in-confundiacutevel noacuterdico ldquothat sandy-haired freckled friarrdquo (Sarama-go 1996 176) bdquojener blonde sommersprossige Paterldquo (241) No romance Frei Rogeiro cumpre o papel de ldquocronistardquo que transpotildee um conjunto multilingue de falas numa escrita coerente e homo-geacutenea Por exemplo no caso do discurso do arcebispo de Braga

Rogeiro logo em abreviado e taquigraacutefico o registou para mais tarde deixando os aformoseamentos oratoacuterios com que

122Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

brindaraacute aquele seu destinataacuterio distante Osberno chama-do laacute onde quer que esteja e quem quer que tenha sido poreacutem jaacute vai introduzindo redondeios de lavra proacutepria fru-tos de inspiraccedilatildeo estimulada (hellip) (200)

Significativamente Roger Rogeiro natildeo eacute tradutor mas ndash tal como o revisor Raimundo Silva ndash portador da consciecircncia de que tudo eacute traduccedilatildeo correspondendo ao latim o privileacutegio da liacutengua veicular

Este Rogeiro natildeo conhece uma palavra de araacutebigo nem de galego mas neste caso natildeo seraacute impedimento a ignoracircncia pois todo o debate vaacute por onde vaacute sempre iraacute dar ao latim graccedilas aos inteacuterpretes e aos tradutores simultacircneos (198)

De facto esta consciecircncia do plurilinguismo caracteriza Cruce-signati anglici epistola de expugnatione olisiponis desde o iniacutecio falando dos cruzados ldquoInter hos tot linguarum populos firmissima concordiae atque amititiaerdquo (Conquista 21) As falas de cruzados portugueses e mouros aparecem ou em citaccedilotildees traduzidas (de ou-tras liacutenguas para latim) ou em liacutengua latina para serem traduzidas no contexto do cerco Ambas satildeo adaptadas a um texto composto conforme as retoacutericas claacutessica e biacuteblica Eacute a proacutepria epiacutestola que refere a necessidade de traduccedilatildeo por exemplo do discurso do bispo do Porto proferido em latim perante a multidatildeo plurilingue dos cruzados reunidos20 Em contraste eacute significativo que o tradutor JA de Oliveira defenda ldquouma versatildeo que sem trair o pensamen-to se libertasse da escravidatildeo da letrardquo em vez de encher ldquoo texto portuguecircs com antigos vocaacutebulos forrageando-os nas velhas croacute-nicas conhecidas dos eruditosrdquo (Oliveira 1935 18) outorgando agrave sua traduccedilatildeo uma missatildeo nacionalista

Assim espero-o todos entenderatildeo este velho monumento da nossa histoacuteria e nesta hora de ressurgimento neste des-

123Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

pertar de energias e rasgar-se de horizontes novos faraacute bem aos portugueses de hoje ouvir falar a alma dos que agrave forccedila de braccedilo com persistecircncia com teimosia com obstinaccedilatildeo e com amor souberam ungir com o proacuteprio sangue os alic-erces desta nossa Paacutetria que eles nos deixaram para a con-servarmos amorosamente digna honrada e livre (Oliveira 1935 19)

Quem afirma assim uma leitura nacionalista de uma epiacutestola no fundo totalmente alheia ao objectivo de alicerccedilar a Histoacuteria nacional esconjura o que natildeo quer ver entregando-se agrave ldquotarefa permanente de nos iludirmosrdquo que critica Pacheco Pereira (2006) no caso das reacccedilotildees ao discurso de Jack Welsh Longe de com-preender a utilidade particular do confronto com a nossa imagem vista de fora JA de Oliveira concebe a sua traduccedilatildeo da epiacutestola estrangeira como contributo agrave legibilidade culturalmente coerente e homogeacutenea do ldquovelho monumento da nossa histoacuteriardquo A fideli-dade da traduccedilatildeo revela-se enganadora atraveacutes da leitura criacutetica de Raimundo Silva Assim a palavra aacuterabe ldquoalgazarrardquo que JA de Oliveira escolheu para traduzir ldquoconclamatiordquo na fala (por sua vez traduzida) de D Afonso Henriques21 evidencia natildeo soacute a homoge-neizaccedilatildeo do plurilinguismo tanto no texto-fonte como na traduccedilatildeo mas tambeacutem ndash numa leitura contraacuteria ndash a crioulizaccedilatildeo da identida-de portuguesa

Acertara D Afonso Henriques em cheio quando prognos-ticou que o exame da sua proposta acabaria em algazarra palavra que sendo aacuterabe de nacionalidade igualmente serve a qualquer gritar e vozear de colonenses flamengos bolon-heses bretotildees escoceses e normandos misturados (47-48)

Vollkommen recht hatte Dom Afonso Henriques mit der Voraussicht sein Vorschlag werde eine algazarra ausloumlsen dieses Wort obzwar arabischer Abkunft ist auch dienlich jedwedes ereiferndes Geschrei und Gekreisch der Koumllner

124Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Flamen Bologneser Bretonen Schotten und Normannen und aller durcheinander zu bezeichnen (56)

Portanto a palavra ldquoalgazarrardquo sugere nesta leitura transcul-tural do discurso reacutegio a relaccedilatildeo ambivalente galega aacuterabe como fundadora Esta insinuaccedilatildeo integra-se numa paroacutedia do discurso da identidade nacional nomeadamente na sua projecccedilatildeo anacroacutenica para a Idade Meacutedia ndash um aspecto que fica esbatido na traduccedilatildeo ale-matilde22 Uma leitura semelhante sugere a mensagem do rei de Eacutevora aos ldquoseus irmatildeos de Lisboardquo cuja traduccedilatildeo comentada ao portu-guecircs actual brinca com a identidade estereotipada de alentejanos

Aguentem aiacute os malvados que a minha tropa de alentejanos jaacute vai a caminho dizemo-lo assim por vir essa gente de aleacutem do Tejo ficando demonstrado de caminho que jaacute havia alentejanos antes de haver portugueses (176)

Para o leitor da traduccedilatildeo a existecircncia historicamente invertida de ldquoAlentejanerrdquo antes dos ldquoPortugiesenrdquo natildeo possui significado centrando-se a atenccedilatildeo na identificaccedilatildeo de ldquodiese Leute von jenseits des Tejordquo como ldquoAlentejanerrdquo (212) De facto a epiacutestola latina cita mensagens entre os mouros de Lisboa e o rei de Eacutevora desta-cando a ajuda de um inteacuterprete para poder incorporaacute-las no texto23 Obviamente a missiva reacutegia natildeo menciona alentejanos e transmite precisamente o contraacuterio a recusa do envio de tropas alegando a existecircncia de ldquotreacuteguas com o rei dos portuguesesrdquo (Conquista 64)

Estas manipulaccedilotildees mostram que Raimundo Silva eacute cada vez mais consciente da leitura escrita como cruzamento entre dimen-satildeo linguiacutestica e cultural no eixo temporal vaacutelido para a questatildeo da traduccedilatildeo24 no sentido das reflexotildees de Andreacute Lefevere (1992) Horst Turk (1992) e Susan Bassnett (1998) que analisam o texto tra-duzido ldquoembedded in its network of both source and target cultural signsrdquo (Bassnett9) Transcendo uma definiccedilatildeo estaacutetica de ldquocultural signsrdquo e da ldquohybridizationrdquo de Homi Bhabha podemos falar da

125Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

traduccedilatildeo como crioulizaccedilatildeo (Stoll 2005) com base em muacuteltiplos processos de mudanccedila sincroacutenicos e diacroacutenicos A paroacutedia da geacutenese da identidade portuguesa atraveacutes da criacutetica da pureza do texto-fonte (e da sua traduccedilatildeo) coincide com posiccedilotildees da historio-grafia moderna a conquista de Lisboa natildeo significa ndash conforme a Histoacuteria nacional tradicional ndash a vitoacuteria dos portugueses alcanccedilada com ajuda dos cruzados sobre os mouros significa isso sim a im-posiccedilatildeo militarmente bem sucedida do novo paradigma de pureza cristatilde implantada atraveacutes da ideologia colonizadora da Segunda Cruzada (114748) ao velho paradigma da convivecircncia segregada mais ou menos paciacutefica entre muccedilulmanos cristatildeos e judeus em estruturas poliacuteticas e sociais localmente autoacutenomas sob domiacutenio aacuterabe (Marques 68) O romance saramaguiano insinua esporadi-camente a crioulizaccedilatildeo da identidade portuguesa mas natildeo concede potencial identitaacuterio agraves populaccedilotildees cristatilde (moccedilaacuterabe) e judaica de Al-Usbuna sacrificadas por uma fracccedilatildeo dos cruzados ldquologo que o saque e o massacre exorbitaram das possibilidades de controlordquo (Marques 68) como conta em pormenor a epiacutestola Naturalmente destaca-se o bom comportamento dos ingleses e normandos (identi-dade de quem escreve) em contraste com o massacre e a devastaccedilatildeo perpetrados pelos colonenses e flamengos que ateacute matam o bispo da cidade moura25

Portanto o des-narrar saramaguiano natildeo empreende um deslo-camento transcultural tatildeo audaz como por exemplo La reivindi-cacioacuten del conde don Juliaacuten (1970) de Juan Goytisolo26 Naquele romance o narrador recupera atraveacutes da sua identificaccedilatildeo com o miacutetico lsquotraidorrsquo D Juliatildeo a identidade aacuterabe e moccedilaacuterabe termi-nando com o anuacutencio do lado aacuterabe ldquomantildeana seraacute otro diacutea la invasioacuten recomenzaraacuterdquo No entanto existe em Histoacuteria do Cerco um almuadem cego que preenche claramente o lugar do bispo anti-quiacutessimo a ser degolado como aquele por ldquoum soldado cristatildeo de mais zelosa feacuterdquo (348) A sua cegueira paradoxalmente visionaacuteria da Lisboa moura sitiada eacute contraacuteria daquela de ldquoira sanguinaacuteriardquo do seu assassino identificado como ldquoo cruzado Osberno soacute igual de nomerdquo (Saramago 40) introduzindo-se assim deliberadamente

126Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

uma homoniacutemia com o Osberno da epiacutestola (ainda tratado ndash errone-amente ndash como o seu autor) novamente recordada em ldquoo cruzado Osberno poreacutem natildeo o talrdquo27

Esta duplicaccedilatildeo de identidades com o mesmo nome adverte o leitor para ficar atento perante redefiniccedilotildees identitaacuterias como por exemplo dos sitiadores chamados ldquoos francos e os galegosrdquo28 sob comando dos cruzados e ldquoIbn Arrinque o Galegordquo (74) na perspetiva dos mouros recriada na mente de Raimundo Silva O almuadem na sua torre complementa ndash atraveacutes dos tempos ndash a posiccedilatildeo de Raimundo Silva ldquoque hoje quase tatildeo cego se vecirc como elerdquo (33) Significativamente o revisor apercebe-se ldquode que mora no preciso lugar onde antigamente se abria a Porta de Alfofardquo configurando-se assim topograficamente a incerteza (que corresponde ao des-narrar) ldquose Raimundo Silva eacute um si-tiado ou um sitiante vencedor futuro ou perdedor sem remeacutediordquo (75) Nos seus passeios por Lisboa ele revivifica uma cidade dividida entre zonas dos sitiados e dos atacantes entretecendo ldquodois temposrdquo (242) passado e presente29 A ambiguidade nos eixos de lugar e tempo transfere-se natildeo soacute agrave histoacuteria aplicando o tema da cegueira ateacute ao processo da sua recepccedilatildeo ldquo(hellip) esta [histoacuteria] de agora comeccedilada soacute poderaacute lecirc-la quem os olhos ti-ver luacutecidos e abertos natildeo um cegordquo (243) transfere-se tambeacutem agrave liacutengua na qual estaacute escrita o texto insinuando-se um regresso a outra fonte nas duas dimensotildees de identidade cultural e texto que evoca aquela transformaccedilatildeo da liacutengua castelhana em aacuterabe realizada nas uacuteltimas duas paacuteginas de Juan sin Tierra (1975) de Juan Goytisolo ldquo(hellip) as matildeos de Raimundo Silva pousam sobre a uacuteltima folha escrita umas linhas negras indecifraacuteveis talvez de araacutebiga liacutengua natildeo estivemos atentos agrave voz do almuademrdquo (Sara-mago 243) Na accedilatildeo mediadora do revisor confluem a voz aacuterabe do almuadem e a escrita latina do cleacuterigo Roger Na reescrita inicialmente soacute mental do lsquolivro do historiadorrsquo Raimundo Sil-va procura uma reconstruccedilatildeo contextualizada de ambos os lados (cristatildeos muccedilulmanos) por exemplo corrigindo o significado da cegueira do almuadem

127Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

() natildeo foi erro escrever porque enfim escrito estaacute que era cego o almuadem O historiador soacute fala de minarete e muezim talvez ignorasse que quase todos os almuadens naquele tempo e por muito tempo depois eram cegos (29

() es war kein Fehler und geschrieben ist es nun mal daszlig der Muezzin blind war Der Historiker der da lediglich von Minarett und Muezzin schreibt wuszligte vielleicht nicht daszlig fast alle Muezzins damals und noch lange danach blind waren (32)

O revisor identifica ldquominareterdquo e ldquomuezimrdquo como palavras li-gadas ao orientalismo dos seacuteculos XVIII e XIX Apesar de ser um fenoacutemeno transnacional europeu o orientalismo teve maior atracccedilatildeo na cultura francesa que espalhou para outras liacutenguas eu-ropeias as vozes aacuterabes importadas pela via oriental o Impeacuterio Otomano (Turquia) na sua expansatildeo europeia a partir do seacuteculo XIV (ponto alto conquista de Constantinopla em 1453) tinha dei-xado vestiacutegios nomeadamente na cultura austriacuteaca no acircmbito dos Tuumlrkenkriege (ponto de viragem Cerco de Viena em 1683) que serviram de base para o orientalismo francecircs Raimundo Silva pre-fere o uso da palavra ldquoalmuademrdquo de maior e mais antiga presen-ccedila na liacutengua portuguesa30 importada directamente e recuperada no Romantismo pelas Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano tal como ldquoalmaacutedenardquo em vez de ldquominareterdquo (Machado 62) A tra-duccedilatildeo alematilde natildeo assinala esta tentativa de maior lsquopurezarsquo histoacuterica no discurso sobre a identidade moura mantendo a denominaccedilatildeo invariaacutevel ldquoMuezzinrdquo embora exista a alternativa lexical menos usada de ldquoMuaddhinrdquo (Brockhaus 229)31

No contexto do pensamento poacutes-colonial esta reaquisiccedilatildeo dos processos de imaginaccedilatildeo depois das imposiccedilotildees coloniais europeias que comeccedila em princiacutepio pelo Romantismo (Herculano Garrett) revela a raiz histoacuterica da especificidade relacional portuguesa co-lonizada colonizadora isto eacute a harmonizaccedilatildeo mais ou menos voluntaacuteria da poliacutetica existente de poder regional na Peniacutensula Ibeacute-

128Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

rica com a ideologia colonizadora das cruzadas Para aleacutem de uma subtil reivindicaccedilatildeo da identidade moura Histoacuteria do Cerco de Lisboa se cinge quase unicamente agrave revisatildeo da identidade conquis-tadora na qual entra a identidade alematilde ndash um aspecto importante para a traduccedilatildeo Assim estabelece-se uma certa inversatildeo embora natildeo perfeita de identidade alteridade em geral o leitor alematildeo estaacute pouco familiarizado com a geacutenese da identidade portuguesa e ignora a configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica que eacute responsaacutevel pelo excesso identitaacuterio desconhecendo tambeacutem a participaccedilatildeo bem documentada de actores vindos de terras alematildes Eles aparecem no romance logo quando Raimundo Silva comeccedila a reler a epiacutestola na sua procura da ldquofonte limpardquo

(hellip) a informaccedilatildeo eacute de boa origem diz-se que directamente do ceacutelebre Osberno e assim podemos ficar a saber que es-tava o conde Arnoldo de Aarschot o qual comandava os guerreiros vindos de diversas partes do impeacuterio germacircni-co que estava Cristiano de Gistell chefe dos flamengos e bolonheses (hellip) (124)

Seguindo a teia intertextual regressamos ao texto-fonte que em contraste com a citada Croacutenica de Portugal de 1419 narra na perspectiva de uma expediccedilatildeo militar

Igitur apud portum de Dertemunde diversarum nationum et morum et linguarum gentes navibus cicrciter CLXIIII convenere Horum omnium trifariam partitur exercitus Sub comite Arnoldo de Arescot nepote Godefridi ducis a romani imperii partibus secedit exercitus Sub Christiano de Gistello flandrenses et bononenses32

A mudanccedila para ldquoimpeacuterio germacircnicordquo (124) corresponde agrave nota explicativa do tradutor JA de Oliveira33 No entanto natildeo se expli-

129Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ca a substituiccedilatildeo de ldquobononensesrdquo por ldquobolonhesesrdquo Naturalmen-te as duas mudanccedilas reflectem-se na traduccedilatildeo alematilde que toma o romance saramaguiano como texto-fonte

(hellip) Information aus verlaumlszliglicher Quelle dem Vernehmen nach direkt vom beruumlhmten Osberno persoumlnlich und also koumlnnen wir uns vergewissern daszlig da Graf Arnoldo de Aar-schot zugegen war der die aus verschiedenen Regionen des deutschen Kaiserreiches herbeigestroumlmten Krieger befehlig-te und Cristiano de Gistell der den Flamen und Bologne-sern vorstand (hellip) (150)

Na traduccedilatildeo alematilde nomes proacuteprios estrangeiros natildeo satildeo lsquore-patriadosrsquo nem o proacuteprio Osberne nem Arnold ou Christian que ficam todos na grafia romacircnica No entanto ldquoimpeacuterio germacircni-cordquo passa para ldquodeutsches Kaiserreichrdquo uma traduccedilatildeo que insinua uma projecccedilatildeo anacroacutenica do seacuteculo XIX (refundaccedilatildeo do Heiliges Roumlmisches Reich Deutscher Nation como Deutsches Kaiserreich em 1871) natildeo pretendida no texto-fonte Naturalmente a traduccedilatildeo alematilde ignora a possibilidade latente jaacute apagada no texto sarama-guiano de encontrar a identidade alematilde nos ldquobononensesrdquo mal transcritos em ldquobolonhesesrdquo34 Esta transcriccedilatildeo defeituosa surpre-ende porque eacute a personalidade do cavaleiro Henrique de Bona ausente na epiacutestola35 que teve o maior relevo individual na histo-riografia portuguesa entre os ldquosamtos cavaleyros martiresrdquo

Nesta tomada de Lisboa morerom alguns cavaleyros como martires e depois faziam muytos milagres amtre os quaes foy hum cavaleyro chamado Amriqe alematildeo o qual era de hũa vila que chamom Bona posta jumto de Colonha o qual foy enterado em Sam Viccedilemte honde fazia muytos milagres (hellip) (Croacutenica 50)

130Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Merecendo destaque na histoacuteria da fundaccedilatildeo do mosteiro de Satildeo Vicente com episoacutedios de acccedilatildeo milagrosa depois de morto (Indiculum 83-85 Croacutenica 50-52) Henrique de Bona torna-se uma personagem da Histoacuteria portuguesa digna de entrar nrsquo Os Lu-siacuteadas (VIII 18) Procede-se a uma apropriaccedilatildeo do estrangeiro colonizador o alematildeo Henrique torna-se depois de ter vertido ldquode gram voontade o seu sangue antre os mouros pola paixom do Nosso Salvador Jesu Cristordquo (Indiculum 83) no maior Santo Cavaleiro da Tomada de Lisboa Na Alemanha ele estaacute totalmente desconhecido a natildeo ser no acircmbito da retoacuterica diplomaacutetica bila-teral na qual aparece natildeo como maacutertir mas como fundador dos ldquolaccedilos da amizade secular que liga o povo da Alemanha ao de Por-tugalrdquo (Ehrhardt 11) projectando a ajuda dos cruzados na geacutenese do reino de Portugal numa lsquolenda de auxiacuteliorsquo para todas as eacutepocas posteriores

Numa abordagem criacutetica observamos um duplo branqueamen-to (1) da memoacuteria do saque cruel e devastador da Lisboa moura perpetrado pelos cruzados colonenses e flandrenses e (2) da rela-ccedilatildeo colonizadora entre aliados no contexto da Europa Cingimo--nos no acircmbito deste estudo agrave anaacutelise do episoacutedio da torre moacutevel No romance a ideia da sua construccedilatildeo eacute atribuiacuteda ao cavaleiro Henrique manipulando as fontes histoacutericas que falam de engenhos militares em competiccedilatildeo entre os diferentes grupos eacutetnicos ou destacam ldquoum engenheiro italiano natural de Pisardquo36 O discurso profeacutetico de superioridade cultural deste cavaleiro revela os moti-vos desta escolha

Grandes satildeo as vantagens que a Portugal adviratildeo de imitar neste como noutros casos o que na Europa se vai fazendo de mais moderno ainda que ao princiacutepio experimenteis dificuldades em meter na cabeccedila as tecnologias novas eu por mim sei da construccedilatildeo das tais torres o suficiente para os naturais daqui (hellip) (251)

131Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Groszlige Vorteile sind Portugal gewiszlig wenn es in diesem wie in anderen Faumlllen nachahmt was man in Europa an houmlchst modernen Dingen tut mag es euch anfaumlnglich auch schwerfallen die neuen Techniken in euren Kopf hinein-zukriegen ich meinerseits weiszlig vom Bau besagter Tuumlrme hinreichend viel um die hiesigen Eingeborenen zu unter-richten () (305)

Mesmo a traduccedilatildeo alematilde transmite a ideia de que a fala do cavaleiro Henrique perante o primeiro rei portuguecircs conteacutem uma paroacutedia do discurso poliacutetico actual que natildeo se cansa de propagar a imitaccedilatildeo da Europa avanccedilada representada pela capacidade eco-noacutemica e tecnoloacutegica de Alemanha em competiccedilatildeo com outras na-ccedilotildees Ao mesmo tempo projecta-se ndash apresentado como verdade de fora ndash a auto-imagem humilhante dos ldquonaturaisrdquo37 como matildeo-de--obra sem formaccedilatildeo agrave mercecirc das decisotildees de governantes que pac-tuam com os estrangeiros (252) como condiccedilatildeo da proacutepria geacutenese nacional No entanto a derrota da torre tatildeo bem construiacuteda que conduz ateacute agrave morte do seu construtor faz surgir a criacutetica dos ldquoen-genhos estrangeiros que tanto podem estar a favor como contrardquo (316) parodiando-se assim tanto a lsquolenda de auxiacuteliorsquo e a atitude colonizadora como o projecto portuguecircs de modernizaccedilatildeo europeia (Grossegesse 1995 228)

Reservando uma anaacutelise da constelaccedilatildeo transcultural entre o ca-valeiro alematildeo Henrique a sua ldquobarregatilderdquo Ouroana38 e o soldado Mogueime para outra ocasiatildeo centramo-nos num aspecto de jogo intertextual que ainda recebeu pouca atenccedilatildeo Face agrave ausecircncia do episoacutedio da torre moacutevel e da personalidade de Henrique de Bona na epiacutestola dirigida a Osberno eacute significativo que o romance sara-maguiano invente ldquoapontamentos para a carta de Osbernordquo (308) contendo estes em todo pormenor a histoacuteria do cavaleiro Henri-que A explicaccedilatildeo psicanaliacutetica de Ersatz para esta escrita do Frei Rogeiro39 tambeacutem eacute vaacutelida para o revisor Raimundo que insere na sua reescrita do Cerco de Lisboa a histoacuteria da conquista amorosa de Ouroana por Mogueime possibilitada pela morte do cavaleiro

132Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

alematildeo que espelha ndash atraveacutes dos tempos ndash a sua proacutepria lsquoconquis-tarsquo de Maria Sara

Com a ficccedilatildeo do texto apoacutecrifo inaugura-se uma hibridizaccedilatildeo transcultural das proacuteprias fontes histoacutericas possibilitando um amalgamar das narrativas dos cruzados com a Histoacuteria nacional e o lendaacuterio portuguecircs que culmina na releitura dos milagres do cava-leiro Henrique em simultacircneo com os milagres de Santo Antoacutenio o padroeiro mais popular de Lisboa A intersecccedilatildeo de milagres de ambos pelas leituras simultacircneas de Maria Sara e Raimundo eacute um acto que subverte tanto a procura da verdade histoacuterica como o conceito de identidades delimitadas por territoacuterio sangue e liacutengua Numa espeacutecie de metalepse o proacuteprio Frei Rogeiro apoacutes ter com-pilado ldquoos apontamentos que havia tomado durante uma volta que dera por todos os arraiaisrdquo (331) participa no episoacutedio milagroso ldquoComo o cavaleyro Amrique apareccedileo em sonhos a hum homem botildeo e como lhe disse que soterasem seu escudeiro a par delerdquo (Croacute-nica 51 cf Indiculum 84-85) cumprindo o papel daquele homem bom natildeo identificado

Mais significativo nesta leitura de milagres transformada em reescrita paroacutedica eacute o destaque atribuiacutedo agrave questatildeo de identida-des processos de deslocaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo culminando na trans-formaccedilatildeo de um milagre do cavaleiro Henrique numa espeacutecie de contra-mito da origem da liacutengua portuguesa ao narrar o milagre dos dois homens surdos-mudos que se deitaram ao lado do moi-mento do cavaleiro (Indiculum 83-84 Croacutenica 50-51) realccedila-se a incerteza da identidade deles ldquotinham vindo na frota poreacutem natildeo se sabe se ingleses aquitanos bretotildees flandrenses ou colonen-sesrdquo (335) Estando os dois homens assim jazendo ldquoadormeceram ambos e apareceu-lhes em sonho logo o cavaleiro Henrique (hellip) e falou agravequeles mancebosrdquo (336) ndash natildeo sabemos em que liacutengua ndash anunciando a sua cura de duvidoso efeito

(hellip) e eles acordando acharam que podiam ouvir e falar tambeacutem poreacutem falavam como gagos e de maneira que natildeo se entendia que liacutengua estavam falando se a dos ingleses

133Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ou aquitanos ou bretotildees ou flandrenses ou colonenses ou conforme natildeo poucos afirmavam a liacutengua dos portu-gueses (336)

Esta manipulaccedilatildeo natildeo de fontes histoacutericas mas de uma len-da convida para uma leitura metadiscursiva em vez de ldquocom voz chlara (hellip) contar a todo o povo o milagre que Deos em eles fizerardquo (Croacutenica 51) os dois ficam gagos No entanto o problema natildeo consiste em entender o que eacute que eles dizem mas em identificar a liacutengua que eles falam Nesta leitura o milagre reinterpretado enfa-tiza a visatildeo de uma hibridizaccedilatildeo das liacutenguas e das identidades no entanto consciente da imperfeita capacidade comunicativa que eacute aplicaacutevel agraves questotildees de revisatildeo e traduccedilatildeo

Tal como o revisor Raimundo Silva dentro da ficccedilatildeo o tradutor reescreve um texto anterior no entanto noutra liacutengua e para um leitor com outro horizonte cultural A procedecircncia das fontes histoacute-ricas e a apropriaccedilatildeo do cavaleiro Henrique pelo discurso da iden-tidade portuguesa demonstram a ineficaacutecia das definiccedilotildees puras de identidade e alteridade Em vez da tentativa de uma reproduccedilatildeo de uma liacutengua na outra no fundo irrealizaacutevel a visatildeo da hibridiza-ccedilatildeo das liacutenguas e identidades advoga uma recriaccedilatildeo naturalmente sempre parcial e imperfeita daquela heterogeneidade que Histoacuteria do Cerco de Lisboa exibe ao narrar a procura de uma ldquoverdaderdquo que ldquonatildeo pode ser mais do que uma cara sobreposta agraves infinitas maacutescaras variantes (hellip)rdquo (26) Para tal activa-se ldquooutro tipo de relaccedilotildees entre os elementos (hellip) porque as coerccedilotildees impostas pelas liacutenguas levam a diferentes possibilidades de contextualizaccedilotildees de remissotildees de encadeamentos de atribuiccedilatildeo de valores entre os elementosrdquo (Rodrigues 205) Se o romance reflecte claramente a diffeacuterance (Derrida 1967) como princiacutepio universal40 destacando os processos de traduccedilatildeo e reescrita este princiacutepio deve ser vaacutelido tambeacutem para a proacutepria traduccedilatildeo como propotildee Cristina Carneiro Rodrigues na continuaccedilatildeo de Rosemary Arojo (1993)

134Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

O original vive sobrevive na e pela sua proacutepria transfor-maccedilatildeo produzida pela leitura A traduccedilatildeo natildeo transporta uma essecircncia natildeo troca ou substitui significados dados prontos em um texto por significados equivalentes em outra liacutengua A traduccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo em que o laquotexto originalraquo se daacute por sua proacutepria modificaccedilatildeo em sua trans-formaccedilatildeo (Rodrigues 206)

O romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa interrelaciona esta con-diccedilatildeo de cada texto ser texto de textos transferidos traduzidos de outros textos em contextos histoacutericos sempre diferentes com a criacutetica da lsquoorigemrsquo da identidade individual e colectiva no sentido de transculturalidade e da ldquoculturersquos hibridityrdquo (Bhabha 1989 38) ambas com base expliacutecita na diffeacuterance Se reactivarmos a teoria de Jean Ricardou (1973) relativamente ao nouveau roman podemos dizer que a aventura da leitura escrita do revisor prefigura uma aventura semelhante do tradutor Tal como o revisor transformado em tradutor e autor ele transmite uma Histoacuteria do Cerco de Lis-boa recriada para outro leitor neste caso um leitor alheio natildeo soacute agrave narraccedilatildeo tradicional desta histoacuteria num discurso identitaacuterio mas tambeacutem agrave integraccedilatildeo da sua identidade cultural neste discurso Isto torna a traduccedilatildeo deste romance uma aventura de leitura e reescrita em certa medida jaacute prevista na Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Se no processo de traduccedilatildeo o tradutor ou tradutora tem que necessariamente tomar o lugar do autor e se apossar de seu texto para que esse possa sobreviver em outra liacutengua natildeo haacute como eliminar esse momento de usurpaccedilatildeo e con-quista que a reflexatildeo desconstrutivista flagra e desmascara (Arrojo 1993 82)

Curiosamente Rosemary Arrojo emprega a mesma metaacutefora de conquista utilizada para a aventura de Raimundo Silva que abrange a conquista amorosa de Maria Sara41 Eacute precisamente a mulher

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

120Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

(43) negando de passagem tambeacutem o uso da liacutengua portuguesa que a tradicional narrativa fundacional de Portugal assume com naturalidade

(hellip) eacute de supor que o real menino aleacutem de explicar-se natu-ralmente em galego latinizaria o quantum satis para poder declamar chegada a hora perante tantos e tatildeo cultos cru-zados estrangeiros a arenga supracitada uma vez que eles de liacutenguas natildeo entenderiam entatildeo mais do que a sua de berccedilo e iguais rudimentos da outra com a ajuda dos frades inteacuterpretes (Saramago 44)

Esta duacutevida sobre a pureza do discurso reacutegio reproduzido na epiacutestola e traduzido pelo historiador torna-se em ldquoleitura paroacutedica (hellip) pela contextualizaccedilatildeo dramaacuteticardquo (Caragea 2003 235) O que Raimundo Silva ldquoem voz alta lecirc como um arauto lanccedilando as pro-clamasrdquo (P 45) ldquosituando portanto a sua reinterpretaccedilatildeo na zona pragmaacutetica da pronuntiatiordquo (Caragea 235) corresponde ipsis verbis com uma ou outra inversatildeo agrave traduccedilatildeo de JA de Oliveira (Conquista 44) A performance retoacuterica natildeo soacute ldquoacaba de inculcar no revisor um sentimento de distanciamento iroacutenico em relaccedilatildeo agraves palavras do reirdquo (Caragea 235) mas questiona sobretudo as noccedilotildees de texto-fonte e traduccedilatildeo fiel ao texto-fonte

Ao aprender que a invisibilidade do tradutor eacute falaz o revisor daacute o primeiro passo para a sua proacutepria visibilidade autoral Assim a ldquometaficccedilatildeo historiograacuteficardquo (Kaufman 1991) nasce directamen-te do dialogismo no sentido bakhtiniano com Joseacute Augusto de Oliveira simultaneamente ele eacute tradutor da epiacutestola publicada em ediccedilatildeo bilingue (1935) e autor da revisatildeo historiograacutefica intitulada ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem con-tar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo apresentada em 1940 Em vez de tomar a epiacutestola ldquodita de Osbernordquo como texto-fonte homogeacuteneo e traduzi-lo do latim como o fez o ldquoproacuteprio autor da Histoacuteriardquo (Saramago 43) facilmente reconheciacutevel como figuraccedilatildeo de Joseacute

121Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Augusto de Oliveira Raimundo Silva duvida natildeo soacute da pureza da fonte e subsequentemente da fidelidade da traduccedilatildeo mas tambeacutem da identidade do autor da epiacutestola Pelo tiacutetulo Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) Narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial da ediccedilatildeo bilingue esta identidade parece uniacutevoca mas natildeo eacute por exemplo Joseacute F Alves (2004) considera ldquobem coe-renterdquo que a primeira linha do texto latino ldquoOsb de Baldr R salutemrdquo indique um Osb de Baldr (Osberno ou Osberto ou Osborne) como destinataacuterio de ldquouma missiva mesmo sobrescrita apenas por um Rrdquo conjecturando-se o nome de Rogeacuterio19 Apor-tuguesando-se o nome Roger para Rogeiro o romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa assume esta suposiccedilatildeo ndash em oposiccedilatildeo ao lsquolivro do historiadorrsquo que considera Osberno um cruzado letrado O frade eacute apresentado na frase que continua a citaccedilatildeo anterior sobre a iden-tidade eacutetnica indefinida de D Joatildeo Peculiar arcebispo de Braga

Quem eacute indubitavelmente estrangeiro mas contado agrave parte por vir em missatildeo especial nem parlamentaacuterio nem homem de guerra eacute aquele frade ruivo e sardento ali a quem ago-ra mesmo ouvimos chamar Rogeiro mas que realmente tem por nome Roger o que deixaria em aberto a questatildeo de ser ele inglecircs ou normando (hellip) (198)

A identidade de Roger Rogeiro embora etnicamente indecisa oferece ndash na traduccedilatildeo para inglecircs e tambeacutem para alematildeo ndash uma afinidade cultural com o leitor impliacutecito reforccedilada pelo fiacutesico in-confundiacutevel noacuterdico ldquothat sandy-haired freckled friarrdquo (Sarama-go 1996 176) bdquojener blonde sommersprossige Paterldquo (241) No romance Frei Rogeiro cumpre o papel de ldquocronistardquo que transpotildee um conjunto multilingue de falas numa escrita coerente e homo-geacutenea Por exemplo no caso do discurso do arcebispo de Braga

Rogeiro logo em abreviado e taquigraacutefico o registou para mais tarde deixando os aformoseamentos oratoacuterios com que

122Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

brindaraacute aquele seu destinataacuterio distante Osberno chama-do laacute onde quer que esteja e quem quer que tenha sido poreacutem jaacute vai introduzindo redondeios de lavra proacutepria fru-tos de inspiraccedilatildeo estimulada (hellip) (200)

Significativamente Roger Rogeiro natildeo eacute tradutor mas ndash tal como o revisor Raimundo Silva ndash portador da consciecircncia de que tudo eacute traduccedilatildeo correspondendo ao latim o privileacutegio da liacutengua veicular

Este Rogeiro natildeo conhece uma palavra de araacutebigo nem de galego mas neste caso natildeo seraacute impedimento a ignoracircncia pois todo o debate vaacute por onde vaacute sempre iraacute dar ao latim graccedilas aos inteacuterpretes e aos tradutores simultacircneos (198)

De facto esta consciecircncia do plurilinguismo caracteriza Cruce-signati anglici epistola de expugnatione olisiponis desde o iniacutecio falando dos cruzados ldquoInter hos tot linguarum populos firmissima concordiae atque amititiaerdquo (Conquista 21) As falas de cruzados portugueses e mouros aparecem ou em citaccedilotildees traduzidas (de ou-tras liacutenguas para latim) ou em liacutengua latina para serem traduzidas no contexto do cerco Ambas satildeo adaptadas a um texto composto conforme as retoacutericas claacutessica e biacuteblica Eacute a proacutepria epiacutestola que refere a necessidade de traduccedilatildeo por exemplo do discurso do bispo do Porto proferido em latim perante a multidatildeo plurilingue dos cruzados reunidos20 Em contraste eacute significativo que o tradutor JA de Oliveira defenda ldquouma versatildeo que sem trair o pensamen-to se libertasse da escravidatildeo da letrardquo em vez de encher ldquoo texto portuguecircs com antigos vocaacutebulos forrageando-os nas velhas croacute-nicas conhecidas dos eruditosrdquo (Oliveira 1935 18) outorgando agrave sua traduccedilatildeo uma missatildeo nacionalista

Assim espero-o todos entenderatildeo este velho monumento da nossa histoacuteria e nesta hora de ressurgimento neste des-

123Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

pertar de energias e rasgar-se de horizontes novos faraacute bem aos portugueses de hoje ouvir falar a alma dos que agrave forccedila de braccedilo com persistecircncia com teimosia com obstinaccedilatildeo e com amor souberam ungir com o proacuteprio sangue os alic-erces desta nossa Paacutetria que eles nos deixaram para a con-servarmos amorosamente digna honrada e livre (Oliveira 1935 19)

Quem afirma assim uma leitura nacionalista de uma epiacutestola no fundo totalmente alheia ao objectivo de alicerccedilar a Histoacuteria nacional esconjura o que natildeo quer ver entregando-se agrave ldquotarefa permanente de nos iludirmosrdquo que critica Pacheco Pereira (2006) no caso das reacccedilotildees ao discurso de Jack Welsh Longe de com-preender a utilidade particular do confronto com a nossa imagem vista de fora JA de Oliveira concebe a sua traduccedilatildeo da epiacutestola estrangeira como contributo agrave legibilidade culturalmente coerente e homogeacutenea do ldquovelho monumento da nossa histoacuteriardquo A fideli-dade da traduccedilatildeo revela-se enganadora atraveacutes da leitura criacutetica de Raimundo Silva Assim a palavra aacuterabe ldquoalgazarrardquo que JA de Oliveira escolheu para traduzir ldquoconclamatiordquo na fala (por sua vez traduzida) de D Afonso Henriques21 evidencia natildeo soacute a homoge-neizaccedilatildeo do plurilinguismo tanto no texto-fonte como na traduccedilatildeo mas tambeacutem ndash numa leitura contraacuteria ndash a crioulizaccedilatildeo da identida-de portuguesa

Acertara D Afonso Henriques em cheio quando prognos-ticou que o exame da sua proposta acabaria em algazarra palavra que sendo aacuterabe de nacionalidade igualmente serve a qualquer gritar e vozear de colonenses flamengos bolon-heses bretotildees escoceses e normandos misturados (47-48)

Vollkommen recht hatte Dom Afonso Henriques mit der Voraussicht sein Vorschlag werde eine algazarra ausloumlsen dieses Wort obzwar arabischer Abkunft ist auch dienlich jedwedes ereiferndes Geschrei und Gekreisch der Koumllner

124Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Flamen Bologneser Bretonen Schotten und Normannen und aller durcheinander zu bezeichnen (56)

Portanto a palavra ldquoalgazarrardquo sugere nesta leitura transcul-tural do discurso reacutegio a relaccedilatildeo ambivalente galega aacuterabe como fundadora Esta insinuaccedilatildeo integra-se numa paroacutedia do discurso da identidade nacional nomeadamente na sua projecccedilatildeo anacroacutenica para a Idade Meacutedia ndash um aspecto que fica esbatido na traduccedilatildeo ale-matilde22 Uma leitura semelhante sugere a mensagem do rei de Eacutevora aos ldquoseus irmatildeos de Lisboardquo cuja traduccedilatildeo comentada ao portu-guecircs actual brinca com a identidade estereotipada de alentejanos

Aguentem aiacute os malvados que a minha tropa de alentejanos jaacute vai a caminho dizemo-lo assim por vir essa gente de aleacutem do Tejo ficando demonstrado de caminho que jaacute havia alentejanos antes de haver portugueses (176)

Para o leitor da traduccedilatildeo a existecircncia historicamente invertida de ldquoAlentejanerrdquo antes dos ldquoPortugiesenrdquo natildeo possui significado centrando-se a atenccedilatildeo na identificaccedilatildeo de ldquodiese Leute von jenseits des Tejordquo como ldquoAlentejanerrdquo (212) De facto a epiacutestola latina cita mensagens entre os mouros de Lisboa e o rei de Eacutevora desta-cando a ajuda de um inteacuterprete para poder incorporaacute-las no texto23 Obviamente a missiva reacutegia natildeo menciona alentejanos e transmite precisamente o contraacuterio a recusa do envio de tropas alegando a existecircncia de ldquotreacuteguas com o rei dos portuguesesrdquo (Conquista 64)

Estas manipulaccedilotildees mostram que Raimundo Silva eacute cada vez mais consciente da leitura escrita como cruzamento entre dimen-satildeo linguiacutestica e cultural no eixo temporal vaacutelido para a questatildeo da traduccedilatildeo24 no sentido das reflexotildees de Andreacute Lefevere (1992) Horst Turk (1992) e Susan Bassnett (1998) que analisam o texto tra-duzido ldquoembedded in its network of both source and target cultural signsrdquo (Bassnett9) Transcendo uma definiccedilatildeo estaacutetica de ldquocultural signsrdquo e da ldquohybridizationrdquo de Homi Bhabha podemos falar da

125Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

traduccedilatildeo como crioulizaccedilatildeo (Stoll 2005) com base em muacuteltiplos processos de mudanccedila sincroacutenicos e diacroacutenicos A paroacutedia da geacutenese da identidade portuguesa atraveacutes da criacutetica da pureza do texto-fonte (e da sua traduccedilatildeo) coincide com posiccedilotildees da historio-grafia moderna a conquista de Lisboa natildeo significa ndash conforme a Histoacuteria nacional tradicional ndash a vitoacuteria dos portugueses alcanccedilada com ajuda dos cruzados sobre os mouros significa isso sim a im-posiccedilatildeo militarmente bem sucedida do novo paradigma de pureza cristatilde implantada atraveacutes da ideologia colonizadora da Segunda Cruzada (114748) ao velho paradigma da convivecircncia segregada mais ou menos paciacutefica entre muccedilulmanos cristatildeos e judeus em estruturas poliacuteticas e sociais localmente autoacutenomas sob domiacutenio aacuterabe (Marques 68) O romance saramaguiano insinua esporadi-camente a crioulizaccedilatildeo da identidade portuguesa mas natildeo concede potencial identitaacuterio agraves populaccedilotildees cristatilde (moccedilaacuterabe) e judaica de Al-Usbuna sacrificadas por uma fracccedilatildeo dos cruzados ldquologo que o saque e o massacre exorbitaram das possibilidades de controlordquo (Marques 68) como conta em pormenor a epiacutestola Naturalmente destaca-se o bom comportamento dos ingleses e normandos (identi-dade de quem escreve) em contraste com o massacre e a devastaccedilatildeo perpetrados pelos colonenses e flamengos que ateacute matam o bispo da cidade moura25

Portanto o des-narrar saramaguiano natildeo empreende um deslo-camento transcultural tatildeo audaz como por exemplo La reivindi-cacioacuten del conde don Juliaacuten (1970) de Juan Goytisolo26 Naquele romance o narrador recupera atraveacutes da sua identificaccedilatildeo com o miacutetico lsquotraidorrsquo D Juliatildeo a identidade aacuterabe e moccedilaacuterabe termi-nando com o anuacutencio do lado aacuterabe ldquomantildeana seraacute otro diacutea la invasioacuten recomenzaraacuterdquo No entanto existe em Histoacuteria do Cerco um almuadem cego que preenche claramente o lugar do bispo anti-quiacutessimo a ser degolado como aquele por ldquoum soldado cristatildeo de mais zelosa feacuterdquo (348) A sua cegueira paradoxalmente visionaacuteria da Lisboa moura sitiada eacute contraacuteria daquela de ldquoira sanguinaacuteriardquo do seu assassino identificado como ldquoo cruzado Osberno soacute igual de nomerdquo (Saramago 40) introduzindo-se assim deliberadamente

126Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

uma homoniacutemia com o Osberno da epiacutestola (ainda tratado ndash errone-amente ndash como o seu autor) novamente recordada em ldquoo cruzado Osberno poreacutem natildeo o talrdquo27

Esta duplicaccedilatildeo de identidades com o mesmo nome adverte o leitor para ficar atento perante redefiniccedilotildees identitaacuterias como por exemplo dos sitiadores chamados ldquoos francos e os galegosrdquo28 sob comando dos cruzados e ldquoIbn Arrinque o Galegordquo (74) na perspetiva dos mouros recriada na mente de Raimundo Silva O almuadem na sua torre complementa ndash atraveacutes dos tempos ndash a posiccedilatildeo de Raimundo Silva ldquoque hoje quase tatildeo cego se vecirc como elerdquo (33) Significativamente o revisor apercebe-se ldquode que mora no preciso lugar onde antigamente se abria a Porta de Alfofardquo configurando-se assim topograficamente a incerteza (que corresponde ao des-narrar) ldquose Raimundo Silva eacute um si-tiado ou um sitiante vencedor futuro ou perdedor sem remeacutediordquo (75) Nos seus passeios por Lisboa ele revivifica uma cidade dividida entre zonas dos sitiados e dos atacantes entretecendo ldquodois temposrdquo (242) passado e presente29 A ambiguidade nos eixos de lugar e tempo transfere-se natildeo soacute agrave histoacuteria aplicando o tema da cegueira ateacute ao processo da sua recepccedilatildeo ldquo(hellip) esta [histoacuteria] de agora comeccedilada soacute poderaacute lecirc-la quem os olhos ti-ver luacutecidos e abertos natildeo um cegordquo (243) transfere-se tambeacutem agrave liacutengua na qual estaacute escrita o texto insinuando-se um regresso a outra fonte nas duas dimensotildees de identidade cultural e texto que evoca aquela transformaccedilatildeo da liacutengua castelhana em aacuterabe realizada nas uacuteltimas duas paacuteginas de Juan sin Tierra (1975) de Juan Goytisolo ldquo(hellip) as matildeos de Raimundo Silva pousam sobre a uacuteltima folha escrita umas linhas negras indecifraacuteveis talvez de araacutebiga liacutengua natildeo estivemos atentos agrave voz do almuademrdquo (Sara-mago 243) Na accedilatildeo mediadora do revisor confluem a voz aacuterabe do almuadem e a escrita latina do cleacuterigo Roger Na reescrita inicialmente soacute mental do lsquolivro do historiadorrsquo Raimundo Sil-va procura uma reconstruccedilatildeo contextualizada de ambos os lados (cristatildeos muccedilulmanos) por exemplo corrigindo o significado da cegueira do almuadem

127Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

() natildeo foi erro escrever porque enfim escrito estaacute que era cego o almuadem O historiador soacute fala de minarete e muezim talvez ignorasse que quase todos os almuadens naquele tempo e por muito tempo depois eram cegos (29

() es war kein Fehler und geschrieben ist es nun mal daszlig der Muezzin blind war Der Historiker der da lediglich von Minarett und Muezzin schreibt wuszligte vielleicht nicht daszlig fast alle Muezzins damals und noch lange danach blind waren (32)

O revisor identifica ldquominareterdquo e ldquomuezimrdquo como palavras li-gadas ao orientalismo dos seacuteculos XVIII e XIX Apesar de ser um fenoacutemeno transnacional europeu o orientalismo teve maior atracccedilatildeo na cultura francesa que espalhou para outras liacutenguas eu-ropeias as vozes aacuterabes importadas pela via oriental o Impeacuterio Otomano (Turquia) na sua expansatildeo europeia a partir do seacuteculo XIV (ponto alto conquista de Constantinopla em 1453) tinha dei-xado vestiacutegios nomeadamente na cultura austriacuteaca no acircmbito dos Tuumlrkenkriege (ponto de viragem Cerco de Viena em 1683) que serviram de base para o orientalismo francecircs Raimundo Silva pre-fere o uso da palavra ldquoalmuademrdquo de maior e mais antiga presen-ccedila na liacutengua portuguesa30 importada directamente e recuperada no Romantismo pelas Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano tal como ldquoalmaacutedenardquo em vez de ldquominareterdquo (Machado 62) A tra-duccedilatildeo alematilde natildeo assinala esta tentativa de maior lsquopurezarsquo histoacuterica no discurso sobre a identidade moura mantendo a denominaccedilatildeo invariaacutevel ldquoMuezzinrdquo embora exista a alternativa lexical menos usada de ldquoMuaddhinrdquo (Brockhaus 229)31

No contexto do pensamento poacutes-colonial esta reaquisiccedilatildeo dos processos de imaginaccedilatildeo depois das imposiccedilotildees coloniais europeias que comeccedila em princiacutepio pelo Romantismo (Herculano Garrett) revela a raiz histoacuterica da especificidade relacional portuguesa co-lonizada colonizadora isto eacute a harmonizaccedilatildeo mais ou menos voluntaacuteria da poliacutetica existente de poder regional na Peniacutensula Ibeacute-

128Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

rica com a ideologia colonizadora das cruzadas Para aleacutem de uma subtil reivindicaccedilatildeo da identidade moura Histoacuteria do Cerco de Lisboa se cinge quase unicamente agrave revisatildeo da identidade conquis-tadora na qual entra a identidade alematilde ndash um aspecto importante para a traduccedilatildeo Assim estabelece-se uma certa inversatildeo embora natildeo perfeita de identidade alteridade em geral o leitor alematildeo estaacute pouco familiarizado com a geacutenese da identidade portuguesa e ignora a configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica que eacute responsaacutevel pelo excesso identitaacuterio desconhecendo tambeacutem a participaccedilatildeo bem documentada de actores vindos de terras alematildes Eles aparecem no romance logo quando Raimundo Silva comeccedila a reler a epiacutestola na sua procura da ldquofonte limpardquo

(hellip) a informaccedilatildeo eacute de boa origem diz-se que directamente do ceacutelebre Osberno e assim podemos ficar a saber que es-tava o conde Arnoldo de Aarschot o qual comandava os guerreiros vindos de diversas partes do impeacuterio germacircni-co que estava Cristiano de Gistell chefe dos flamengos e bolonheses (hellip) (124)

Seguindo a teia intertextual regressamos ao texto-fonte que em contraste com a citada Croacutenica de Portugal de 1419 narra na perspectiva de uma expediccedilatildeo militar

Igitur apud portum de Dertemunde diversarum nationum et morum et linguarum gentes navibus cicrciter CLXIIII convenere Horum omnium trifariam partitur exercitus Sub comite Arnoldo de Arescot nepote Godefridi ducis a romani imperii partibus secedit exercitus Sub Christiano de Gistello flandrenses et bononenses32

A mudanccedila para ldquoimpeacuterio germacircnicordquo (124) corresponde agrave nota explicativa do tradutor JA de Oliveira33 No entanto natildeo se expli-

129Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ca a substituiccedilatildeo de ldquobononensesrdquo por ldquobolonhesesrdquo Naturalmen-te as duas mudanccedilas reflectem-se na traduccedilatildeo alematilde que toma o romance saramaguiano como texto-fonte

(hellip) Information aus verlaumlszliglicher Quelle dem Vernehmen nach direkt vom beruumlhmten Osberno persoumlnlich und also koumlnnen wir uns vergewissern daszlig da Graf Arnoldo de Aar-schot zugegen war der die aus verschiedenen Regionen des deutschen Kaiserreiches herbeigestroumlmten Krieger befehlig-te und Cristiano de Gistell der den Flamen und Bologne-sern vorstand (hellip) (150)

Na traduccedilatildeo alematilde nomes proacuteprios estrangeiros natildeo satildeo lsquore-patriadosrsquo nem o proacuteprio Osberne nem Arnold ou Christian que ficam todos na grafia romacircnica No entanto ldquoimpeacuterio germacircni-cordquo passa para ldquodeutsches Kaiserreichrdquo uma traduccedilatildeo que insinua uma projecccedilatildeo anacroacutenica do seacuteculo XIX (refundaccedilatildeo do Heiliges Roumlmisches Reich Deutscher Nation como Deutsches Kaiserreich em 1871) natildeo pretendida no texto-fonte Naturalmente a traduccedilatildeo alematilde ignora a possibilidade latente jaacute apagada no texto sarama-guiano de encontrar a identidade alematilde nos ldquobononensesrdquo mal transcritos em ldquobolonhesesrdquo34 Esta transcriccedilatildeo defeituosa surpre-ende porque eacute a personalidade do cavaleiro Henrique de Bona ausente na epiacutestola35 que teve o maior relevo individual na histo-riografia portuguesa entre os ldquosamtos cavaleyros martiresrdquo

Nesta tomada de Lisboa morerom alguns cavaleyros como martires e depois faziam muytos milagres amtre os quaes foy hum cavaleyro chamado Amriqe alematildeo o qual era de hũa vila que chamom Bona posta jumto de Colonha o qual foy enterado em Sam Viccedilemte honde fazia muytos milagres (hellip) (Croacutenica 50)

130Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Merecendo destaque na histoacuteria da fundaccedilatildeo do mosteiro de Satildeo Vicente com episoacutedios de acccedilatildeo milagrosa depois de morto (Indiculum 83-85 Croacutenica 50-52) Henrique de Bona torna-se uma personagem da Histoacuteria portuguesa digna de entrar nrsquo Os Lu-siacuteadas (VIII 18) Procede-se a uma apropriaccedilatildeo do estrangeiro colonizador o alematildeo Henrique torna-se depois de ter vertido ldquode gram voontade o seu sangue antre os mouros pola paixom do Nosso Salvador Jesu Cristordquo (Indiculum 83) no maior Santo Cavaleiro da Tomada de Lisboa Na Alemanha ele estaacute totalmente desconhecido a natildeo ser no acircmbito da retoacuterica diplomaacutetica bila-teral na qual aparece natildeo como maacutertir mas como fundador dos ldquolaccedilos da amizade secular que liga o povo da Alemanha ao de Por-tugalrdquo (Ehrhardt 11) projectando a ajuda dos cruzados na geacutenese do reino de Portugal numa lsquolenda de auxiacuteliorsquo para todas as eacutepocas posteriores

Numa abordagem criacutetica observamos um duplo branqueamen-to (1) da memoacuteria do saque cruel e devastador da Lisboa moura perpetrado pelos cruzados colonenses e flandrenses e (2) da rela-ccedilatildeo colonizadora entre aliados no contexto da Europa Cingimo--nos no acircmbito deste estudo agrave anaacutelise do episoacutedio da torre moacutevel No romance a ideia da sua construccedilatildeo eacute atribuiacuteda ao cavaleiro Henrique manipulando as fontes histoacutericas que falam de engenhos militares em competiccedilatildeo entre os diferentes grupos eacutetnicos ou destacam ldquoum engenheiro italiano natural de Pisardquo36 O discurso profeacutetico de superioridade cultural deste cavaleiro revela os moti-vos desta escolha

Grandes satildeo as vantagens que a Portugal adviratildeo de imitar neste como noutros casos o que na Europa se vai fazendo de mais moderno ainda que ao princiacutepio experimenteis dificuldades em meter na cabeccedila as tecnologias novas eu por mim sei da construccedilatildeo das tais torres o suficiente para os naturais daqui (hellip) (251)

131Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Groszlige Vorteile sind Portugal gewiszlig wenn es in diesem wie in anderen Faumlllen nachahmt was man in Europa an houmlchst modernen Dingen tut mag es euch anfaumlnglich auch schwerfallen die neuen Techniken in euren Kopf hinein-zukriegen ich meinerseits weiszlig vom Bau besagter Tuumlrme hinreichend viel um die hiesigen Eingeborenen zu unter-richten () (305)

Mesmo a traduccedilatildeo alematilde transmite a ideia de que a fala do cavaleiro Henrique perante o primeiro rei portuguecircs conteacutem uma paroacutedia do discurso poliacutetico actual que natildeo se cansa de propagar a imitaccedilatildeo da Europa avanccedilada representada pela capacidade eco-noacutemica e tecnoloacutegica de Alemanha em competiccedilatildeo com outras na-ccedilotildees Ao mesmo tempo projecta-se ndash apresentado como verdade de fora ndash a auto-imagem humilhante dos ldquonaturaisrdquo37 como matildeo-de--obra sem formaccedilatildeo agrave mercecirc das decisotildees de governantes que pac-tuam com os estrangeiros (252) como condiccedilatildeo da proacutepria geacutenese nacional No entanto a derrota da torre tatildeo bem construiacuteda que conduz ateacute agrave morte do seu construtor faz surgir a criacutetica dos ldquoen-genhos estrangeiros que tanto podem estar a favor como contrardquo (316) parodiando-se assim tanto a lsquolenda de auxiacuteliorsquo e a atitude colonizadora como o projecto portuguecircs de modernizaccedilatildeo europeia (Grossegesse 1995 228)

Reservando uma anaacutelise da constelaccedilatildeo transcultural entre o ca-valeiro alematildeo Henrique a sua ldquobarregatilderdquo Ouroana38 e o soldado Mogueime para outra ocasiatildeo centramo-nos num aspecto de jogo intertextual que ainda recebeu pouca atenccedilatildeo Face agrave ausecircncia do episoacutedio da torre moacutevel e da personalidade de Henrique de Bona na epiacutestola dirigida a Osberno eacute significativo que o romance sara-maguiano invente ldquoapontamentos para a carta de Osbernordquo (308) contendo estes em todo pormenor a histoacuteria do cavaleiro Henri-que A explicaccedilatildeo psicanaliacutetica de Ersatz para esta escrita do Frei Rogeiro39 tambeacutem eacute vaacutelida para o revisor Raimundo que insere na sua reescrita do Cerco de Lisboa a histoacuteria da conquista amorosa de Ouroana por Mogueime possibilitada pela morte do cavaleiro

132Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

alematildeo que espelha ndash atraveacutes dos tempos ndash a sua proacutepria lsquoconquis-tarsquo de Maria Sara

Com a ficccedilatildeo do texto apoacutecrifo inaugura-se uma hibridizaccedilatildeo transcultural das proacuteprias fontes histoacutericas possibilitando um amalgamar das narrativas dos cruzados com a Histoacuteria nacional e o lendaacuterio portuguecircs que culmina na releitura dos milagres do cava-leiro Henrique em simultacircneo com os milagres de Santo Antoacutenio o padroeiro mais popular de Lisboa A intersecccedilatildeo de milagres de ambos pelas leituras simultacircneas de Maria Sara e Raimundo eacute um acto que subverte tanto a procura da verdade histoacuterica como o conceito de identidades delimitadas por territoacuterio sangue e liacutengua Numa espeacutecie de metalepse o proacuteprio Frei Rogeiro apoacutes ter com-pilado ldquoos apontamentos que havia tomado durante uma volta que dera por todos os arraiaisrdquo (331) participa no episoacutedio milagroso ldquoComo o cavaleyro Amrique apareccedileo em sonhos a hum homem botildeo e como lhe disse que soterasem seu escudeiro a par delerdquo (Croacute-nica 51 cf Indiculum 84-85) cumprindo o papel daquele homem bom natildeo identificado

Mais significativo nesta leitura de milagres transformada em reescrita paroacutedica eacute o destaque atribuiacutedo agrave questatildeo de identida-des processos de deslocaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo culminando na trans-formaccedilatildeo de um milagre do cavaleiro Henrique numa espeacutecie de contra-mito da origem da liacutengua portuguesa ao narrar o milagre dos dois homens surdos-mudos que se deitaram ao lado do moi-mento do cavaleiro (Indiculum 83-84 Croacutenica 50-51) realccedila-se a incerteza da identidade deles ldquotinham vindo na frota poreacutem natildeo se sabe se ingleses aquitanos bretotildees flandrenses ou colonen-sesrdquo (335) Estando os dois homens assim jazendo ldquoadormeceram ambos e apareceu-lhes em sonho logo o cavaleiro Henrique (hellip) e falou agravequeles mancebosrdquo (336) ndash natildeo sabemos em que liacutengua ndash anunciando a sua cura de duvidoso efeito

(hellip) e eles acordando acharam que podiam ouvir e falar tambeacutem poreacutem falavam como gagos e de maneira que natildeo se entendia que liacutengua estavam falando se a dos ingleses

133Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ou aquitanos ou bretotildees ou flandrenses ou colonenses ou conforme natildeo poucos afirmavam a liacutengua dos portu-gueses (336)

Esta manipulaccedilatildeo natildeo de fontes histoacutericas mas de uma len-da convida para uma leitura metadiscursiva em vez de ldquocom voz chlara (hellip) contar a todo o povo o milagre que Deos em eles fizerardquo (Croacutenica 51) os dois ficam gagos No entanto o problema natildeo consiste em entender o que eacute que eles dizem mas em identificar a liacutengua que eles falam Nesta leitura o milagre reinterpretado enfa-tiza a visatildeo de uma hibridizaccedilatildeo das liacutenguas e das identidades no entanto consciente da imperfeita capacidade comunicativa que eacute aplicaacutevel agraves questotildees de revisatildeo e traduccedilatildeo

Tal como o revisor Raimundo Silva dentro da ficccedilatildeo o tradutor reescreve um texto anterior no entanto noutra liacutengua e para um leitor com outro horizonte cultural A procedecircncia das fontes histoacute-ricas e a apropriaccedilatildeo do cavaleiro Henrique pelo discurso da iden-tidade portuguesa demonstram a ineficaacutecia das definiccedilotildees puras de identidade e alteridade Em vez da tentativa de uma reproduccedilatildeo de uma liacutengua na outra no fundo irrealizaacutevel a visatildeo da hibridiza-ccedilatildeo das liacutenguas e identidades advoga uma recriaccedilatildeo naturalmente sempre parcial e imperfeita daquela heterogeneidade que Histoacuteria do Cerco de Lisboa exibe ao narrar a procura de uma ldquoverdaderdquo que ldquonatildeo pode ser mais do que uma cara sobreposta agraves infinitas maacutescaras variantes (hellip)rdquo (26) Para tal activa-se ldquooutro tipo de relaccedilotildees entre os elementos (hellip) porque as coerccedilotildees impostas pelas liacutenguas levam a diferentes possibilidades de contextualizaccedilotildees de remissotildees de encadeamentos de atribuiccedilatildeo de valores entre os elementosrdquo (Rodrigues 205) Se o romance reflecte claramente a diffeacuterance (Derrida 1967) como princiacutepio universal40 destacando os processos de traduccedilatildeo e reescrita este princiacutepio deve ser vaacutelido tambeacutem para a proacutepria traduccedilatildeo como propotildee Cristina Carneiro Rodrigues na continuaccedilatildeo de Rosemary Arojo (1993)

134Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

O original vive sobrevive na e pela sua proacutepria transfor-maccedilatildeo produzida pela leitura A traduccedilatildeo natildeo transporta uma essecircncia natildeo troca ou substitui significados dados prontos em um texto por significados equivalentes em outra liacutengua A traduccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo em que o laquotexto originalraquo se daacute por sua proacutepria modificaccedilatildeo em sua trans-formaccedilatildeo (Rodrigues 206)

O romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa interrelaciona esta con-diccedilatildeo de cada texto ser texto de textos transferidos traduzidos de outros textos em contextos histoacutericos sempre diferentes com a criacutetica da lsquoorigemrsquo da identidade individual e colectiva no sentido de transculturalidade e da ldquoculturersquos hibridityrdquo (Bhabha 1989 38) ambas com base expliacutecita na diffeacuterance Se reactivarmos a teoria de Jean Ricardou (1973) relativamente ao nouveau roman podemos dizer que a aventura da leitura escrita do revisor prefigura uma aventura semelhante do tradutor Tal como o revisor transformado em tradutor e autor ele transmite uma Histoacuteria do Cerco de Lis-boa recriada para outro leitor neste caso um leitor alheio natildeo soacute agrave narraccedilatildeo tradicional desta histoacuteria num discurso identitaacuterio mas tambeacutem agrave integraccedilatildeo da sua identidade cultural neste discurso Isto torna a traduccedilatildeo deste romance uma aventura de leitura e reescrita em certa medida jaacute prevista na Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Se no processo de traduccedilatildeo o tradutor ou tradutora tem que necessariamente tomar o lugar do autor e se apossar de seu texto para que esse possa sobreviver em outra liacutengua natildeo haacute como eliminar esse momento de usurpaccedilatildeo e con-quista que a reflexatildeo desconstrutivista flagra e desmascara (Arrojo 1993 82)

Curiosamente Rosemary Arrojo emprega a mesma metaacutefora de conquista utilizada para a aventura de Raimundo Silva que abrange a conquista amorosa de Maria Sara41 Eacute precisamente a mulher

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

121Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Augusto de Oliveira Raimundo Silva duvida natildeo soacute da pureza da fonte e subsequentemente da fidelidade da traduccedilatildeo mas tambeacutem da identidade do autor da epiacutestola Pelo tiacutetulo Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) Narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial da ediccedilatildeo bilingue esta identidade parece uniacutevoca mas natildeo eacute por exemplo Joseacute F Alves (2004) considera ldquobem coe-renterdquo que a primeira linha do texto latino ldquoOsb de Baldr R salutemrdquo indique um Osb de Baldr (Osberno ou Osberto ou Osborne) como destinataacuterio de ldquouma missiva mesmo sobrescrita apenas por um Rrdquo conjecturando-se o nome de Rogeacuterio19 Apor-tuguesando-se o nome Roger para Rogeiro o romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa assume esta suposiccedilatildeo ndash em oposiccedilatildeo ao lsquolivro do historiadorrsquo que considera Osberno um cruzado letrado O frade eacute apresentado na frase que continua a citaccedilatildeo anterior sobre a iden-tidade eacutetnica indefinida de D Joatildeo Peculiar arcebispo de Braga

Quem eacute indubitavelmente estrangeiro mas contado agrave parte por vir em missatildeo especial nem parlamentaacuterio nem homem de guerra eacute aquele frade ruivo e sardento ali a quem ago-ra mesmo ouvimos chamar Rogeiro mas que realmente tem por nome Roger o que deixaria em aberto a questatildeo de ser ele inglecircs ou normando (hellip) (198)

A identidade de Roger Rogeiro embora etnicamente indecisa oferece ndash na traduccedilatildeo para inglecircs e tambeacutem para alematildeo ndash uma afinidade cultural com o leitor impliacutecito reforccedilada pelo fiacutesico in-confundiacutevel noacuterdico ldquothat sandy-haired freckled friarrdquo (Sarama-go 1996 176) bdquojener blonde sommersprossige Paterldquo (241) No romance Frei Rogeiro cumpre o papel de ldquocronistardquo que transpotildee um conjunto multilingue de falas numa escrita coerente e homo-geacutenea Por exemplo no caso do discurso do arcebispo de Braga

Rogeiro logo em abreviado e taquigraacutefico o registou para mais tarde deixando os aformoseamentos oratoacuterios com que

122Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

brindaraacute aquele seu destinataacuterio distante Osberno chama-do laacute onde quer que esteja e quem quer que tenha sido poreacutem jaacute vai introduzindo redondeios de lavra proacutepria fru-tos de inspiraccedilatildeo estimulada (hellip) (200)

Significativamente Roger Rogeiro natildeo eacute tradutor mas ndash tal como o revisor Raimundo Silva ndash portador da consciecircncia de que tudo eacute traduccedilatildeo correspondendo ao latim o privileacutegio da liacutengua veicular

Este Rogeiro natildeo conhece uma palavra de araacutebigo nem de galego mas neste caso natildeo seraacute impedimento a ignoracircncia pois todo o debate vaacute por onde vaacute sempre iraacute dar ao latim graccedilas aos inteacuterpretes e aos tradutores simultacircneos (198)

De facto esta consciecircncia do plurilinguismo caracteriza Cruce-signati anglici epistola de expugnatione olisiponis desde o iniacutecio falando dos cruzados ldquoInter hos tot linguarum populos firmissima concordiae atque amititiaerdquo (Conquista 21) As falas de cruzados portugueses e mouros aparecem ou em citaccedilotildees traduzidas (de ou-tras liacutenguas para latim) ou em liacutengua latina para serem traduzidas no contexto do cerco Ambas satildeo adaptadas a um texto composto conforme as retoacutericas claacutessica e biacuteblica Eacute a proacutepria epiacutestola que refere a necessidade de traduccedilatildeo por exemplo do discurso do bispo do Porto proferido em latim perante a multidatildeo plurilingue dos cruzados reunidos20 Em contraste eacute significativo que o tradutor JA de Oliveira defenda ldquouma versatildeo que sem trair o pensamen-to se libertasse da escravidatildeo da letrardquo em vez de encher ldquoo texto portuguecircs com antigos vocaacutebulos forrageando-os nas velhas croacute-nicas conhecidas dos eruditosrdquo (Oliveira 1935 18) outorgando agrave sua traduccedilatildeo uma missatildeo nacionalista

Assim espero-o todos entenderatildeo este velho monumento da nossa histoacuteria e nesta hora de ressurgimento neste des-

123Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

pertar de energias e rasgar-se de horizontes novos faraacute bem aos portugueses de hoje ouvir falar a alma dos que agrave forccedila de braccedilo com persistecircncia com teimosia com obstinaccedilatildeo e com amor souberam ungir com o proacuteprio sangue os alic-erces desta nossa Paacutetria que eles nos deixaram para a con-servarmos amorosamente digna honrada e livre (Oliveira 1935 19)

Quem afirma assim uma leitura nacionalista de uma epiacutestola no fundo totalmente alheia ao objectivo de alicerccedilar a Histoacuteria nacional esconjura o que natildeo quer ver entregando-se agrave ldquotarefa permanente de nos iludirmosrdquo que critica Pacheco Pereira (2006) no caso das reacccedilotildees ao discurso de Jack Welsh Longe de com-preender a utilidade particular do confronto com a nossa imagem vista de fora JA de Oliveira concebe a sua traduccedilatildeo da epiacutestola estrangeira como contributo agrave legibilidade culturalmente coerente e homogeacutenea do ldquovelho monumento da nossa histoacuteriardquo A fideli-dade da traduccedilatildeo revela-se enganadora atraveacutes da leitura criacutetica de Raimundo Silva Assim a palavra aacuterabe ldquoalgazarrardquo que JA de Oliveira escolheu para traduzir ldquoconclamatiordquo na fala (por sua vez traduzida) de D Afonso Henriques21 evidencia natildeo soacute a homoge-neizaccedilatildeo do plurilinguismo tanto no texto-fonte como na traduccedilatildeo mas tambeacutem ndash numa leitura contraacuteria ndash a crioulizaccedilatildeo da identida-de portuguesa

Acertara D Afonso Henriques em cheio quando prognos-ticou que o exame da sua proposta acabaria em algazarra palavra que sendo aacuterabe de nacionalidade igualmente serve a qualquer gritar e vozear de colonenses flamengos bolon-heses bretotildees escoceses e normandos misturados (47-48)

Vollkommen recht hatte Dom Afonso Henriques mit der Voraussicht sein Vorschlag werde eine algazarra ausloumlsen dieses Wort obzwar arabischer Abkunft ist auch dienlich jedwedes ereiferndes Geschrei und Gekreisch der Koumllner

124Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Flamen Bologneser Bretonen Schotten und Normannen und aller durcheinander zu bezeichnen (56)

Portanto a palavra ldquoalgazarrardquo sugere nesta leitura transcul-tural do discurso reacutegio a relaccedilatildeo ambivalente galega aacuterabe como fundadora Esta insinuaccedilatildeo integra-se numa paroacutedia do discurso da identidade nacional nomeadamente na sua projecccedilatildeo anacroacutenica para a Idade Meacutedia ndash um aspecto que fica esbatido na traduccedilatildeo ale-matilde22 Uma leitura semelhante sugere a mensagem do rei de Eacutevora aos ldquoseus irmatildeos de Lisboardquo cuja traduccedilatildeo comentada ao portu-guecircs actual brinca com a identidade estereotipada de alentejanos

Aguentem aiacute os malvados que a minha tropa de alentejanos jaacute vai a caminho dizemo-lo assim por vir essa gente de aleacutem do Tejo ficando demonstrado de caminho que jaacute havia alentejanos antes de haver portugueses (176)

Para o leitor da traduccedilatildeo a existecircncia historicamente invertida de ldquoAlentejanerrdquo antes dos ldquoPortugiesenrdquo natildeo possui significado centrando-se a atenccedilatildeo na identificaccedilatildeo de ldquodiese Leute von jenseits des Tejordquo como ldquoAlentejanerrdquo (212) De facto a epiacutestola latina cita mensagens entre os mouros de Lisboa e o rei de Eacutevora desta-cando a ajuda de um inteacuterprete para poder incorporaacute-las no texto23 Obviamente a missiva reacutegia natildeo menciona alentejanos e transmite precisamente o contraacuterio a recusa do envio de tropas alegando a existecircncia de ldquotreacuteguas com o rei dos portuguesesrdquo (Conquista 64)

Estas manipulaccedilotildees mostram que Raimundo Silva eacute cada vez mais consciente da leitura escrita como cruzamento entre dimen-satildeo linguiacutestica e cultural no eixo temporal vaacutelido para a questatildeo da traduccedilatildeo24 no sentido das reflexotildees de Andreacute Lefevere (1992) Horst Turk (1992) e Susan Bassnett (1998) que analisam o texto tra-duzido ldquoembedded in its network of both source and target cultural signsrdquo (Bassnett9) Transcendo uma definiccedilatildeo estaacutetica de ldquocultural signsrdquo e da ldquohybridizationrdquo de Homi Bhabha podemos falar da

125Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

traduccedilatildeo como crioulizaccedilatildeo (Stoll 2005) com base em muacuteltiplos processos de mudanccedila sincroacutenicos e diacroacutenicos A paroacutedia da geacutenese da identidade portuguesa atraveacutes da criacutetica da pureza do texto-fonte (e da sua traduccedilatildeo) coincide com posiccedilotildees da historio-grafia moderna a conquista de Lisboa natildeo significa ndash conforme a Histoacuteria nacional tradicional ndash a vitoacuteria dos portugueses alcanccedilada com ajuda dos cruzados sobre os mouros significa isso sim a im-posiccedilatildeo militarmente bem sucedida do novo paradigma de pureza cristatilde implantada atraveacutes da ideologia colonizadora da Segunda Cruzada (114748) ao velho paradigma da convivecircncia segregada mais ou menos paciacutefica entre muccedilulmanos cristatildeos e judeus em estruturas poliacuteticas e sociais localmente autoacutenomas sob domiacutenio aacuterabe (Marques 68) O romance saramaguiano insinua esporadi-camente a crioulizaccedilatildeo da identidade portuguesa mas natildeo concede potencial identitaacuterio agraves populaccedilotildees cristatilde (moccedilaacuterabe) e judaica de Al-Usbuna sacrificadas por uma fracccedilatildeo dos cruzados ldquologo que o saque e o massacre exorbitaram das possibilidades de controlordquo (Marques 68) como conta em pormenor a epiacutestola Naturalmente destaca-se o bom comportamento dos ingleses e normandos (identi-dade de quem escreve) em contraste com o massacre e a devastaccedilatildeo perpetrados pelos colonenses e flamengos que ateacute matam o bispo da cidade moura25

Portanto o des-narrar saramaguiano natildeo empreende um deslo-camento transcultural tatildeo audaz como por exemplo La reivindi-cacioacuten del conde don Juliaacuten (1970) de Juan Goytisolo26 Naquele romance o narrador recupera atraveacutes da sua identificaccedilatildeo com o miacutetico lsquotraidorrsquo D Juliatildeo a identidade aacuterabe e moccedilaacuterabe termi-nando com o anuacutencio do lado aacuterabe ldquomantildeana seraacute otro diacutea la invasioacuten recomenzaraacuterdquo No entanto existe em Histoacuteria do Cerco um almuadem cego que preenche claramente o lugar do bispo anti-quiacutessimo a ser degolado como aquele por ldquoum soldado cristatildeo de mais zelosa feacuterdquo (348) A sua cegueira paradoxalmente visionaacuteria da Lisboa moura sitiada eacute contraacuteria daquela de ldquoira sanguinaacuteriardquo do seu assassino identificado como ldquoo cruzado Osberno soacute igual de nomerdquo (Saramago 40) introduzindo-se assim deliberadamente

126Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

uma homoniacutemia com o Osberno da epiacutestola (ainda tratado ndash errone-amente ndash como o seu autor) novamente recordada em ldquoo cruzado Osberno poreacutem natildeo o talrdquo27

Esta duplicaccedilatildeo de identidades com o mesmo nome adverte o leitor para ficar atento perante redefiniccedilotildees identitaacuterias como por exemplo dos sitiadores chamados ldquoos francos e os galegosrdquo28 sob comando dos cruzados e ldquoIbn Arrinque o Galegordquo (74) na perspetiva dos mouros recriada na mente de Raimundo Silva O almuadem na sua torre complementa ndash atraveacutes dos tempos ndash a posiccedilatildeo de Raimundo Silva ldquoque hoje quase tatildeo cego se vecirc como elerdquo (33) Significativamente o revisor apercebe-se ldquode que mora no preciso lugar onde antigamente se abria a Porta de Alfofardquo configurando-se assim topograficamente a incerteza (que corresponde ao des-narrar) ldquose Raimundo Silva eacute um si-tiado ou um sitiante vencedor futuro ou perdedor sem remeacutediordquo (75) Nos seus passeios por Lisboa ele revivifica uma cidade dividida entre zonas dos sitiados e dos atacantes entretecendo ldquodois temposrdquo (242) passado e presente29 A ambiguidade nos eixos de lugar e tempo transfere-se natildeo soacute agrave histoacuteria aplicando o tema da cegueira ateacute ao processo da sua recepccedilatildeo ldquo(hellip) esta [histoacuteria] de agora comeccedilada soacute poderaacute lecirc-la quem os olhos ti-ver luacutecidos e abertos natildeo um cegordquo (243) transfere-se tambeacutem agrave liacutengua na qual estaacute escrita o texto insinuando-se um regresso a outra fonte nas duas dimensotildees de identidade cultural e texto que evoca aquela transformaccedilatildeo da liacutengua castelhana em aacuterabe realizada nas uacuteltimas duas paacuteginas de Juan sin Tierra (1975) de Juan Goytisolo ldquo(hellip) as matildeos de Raimundo Silva pousam sobre a uacuteltima folha escrita umas linhas negras indecifraacuteveis talvez de araacutebiga liacutengua natildeo estivemos atentos agrave voz do almuademrdquo (Sara-mago 243) Na accedilatildeo mediadora do revisor confluem a voz aacuterabe do almuadem e a escrita latina do cleacuterigo Roger Na reescrita inicialmente soacute mental do lsquolivro do historiadorrsquo Raimundo Sil-va procura uma reconstruccedilatildeo contextualizada de ambos os lados (cristatildeos muccedilulmanos) por exemplo corrigindo o significado da cegueira do almuadem

127Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

() natildeo foi erro escrever porque enfim escrito estaacute que era cego o almuadem O historiador soacute fala de minarete e muezim talvez ignorasse que quase todos os almuadens naquele tempo e por muito tempo depois eram cegos (29

() es war kein Fehler und geschrieben ist es nun mal daszlig der Muezzin blind war Der Historiker der da lediglich von Minarett und Muezzin schreibt wuszligte vielleicht nicht daszlig fast alle Muezzins damals und noch lange danach blind waren (32)

O revisor identifica ldquominareterdquo e ldquomuezimrdquo como palavras li-gadas ao orientalismo dos seacuteculos XVIII e XIX Apesar de ser um fenoacutemeno transnacional europeu o orientalismo teve maior atracccedilatildeo na cultura francesa que espalhou para outras liacutenguas eu-ropeias as vozes aacuterabes importadas pela via oriental o Impeacuterio Otomano (Turquia) na sua expansatildeo europeia a partir do seacuteculo XIV (ponto alto conquista de Constantinopla em 1453) tinha dei-xado vestiacutegios nomeadamente na cultura austriacuteaca no acircmbito dos Tuumlrkenkriege (ponto de viragem Cerco de Viena em 1683) que serviram de base para o orientalismo francecircs Raimundo Silva pre-fere o uso da palavra ldquoalmuademrdquo de maior e mais antiga presen-ccedila na liacutengua portuguesa30 importada directamente e recuperada no Romantismo pelas Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano tal como ldquoalmaacutedenardquo em vez de ldquominareterdquo (Machado 62) A tra-duccedilatildeo alematilde natildeo assinala esta tentativa de maior lsquopurezarsquo histoacuterica no discurso sobre a identidade moura mantendo a denominaccedilatildeo invariaacutevel ldquoMuezzinrdquo embora exista a alternativa lexical menos usada de ldquoMuaddhinrdquo (Brockhaus 229)31

No contexto do pensamento poacutes-colonial esta reaquisiccedilatildeo dos processos de imaginaccedilatildeo depois das imposiccedilotildees coloniais europeias que comeccedila em princiacutepio pelo Romantismo (Herculano Garrett) revela a raiz histoacuterica da especificidade relacional portuguesa co-lonizada colonizadora isto eacute a harmonizaccedilatildeo mais ou menos voluntaacuteria da poliacutetica existente de poder regional na Peniacutensula Ibeacute-

128Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

rica com a ideologia colonizadora das cruzadas Para aleacutem de uma subtil reivindicaccedilatildeo da identidade moura Histoacuteria do Cerco de Lisboa se cinge quase unicamente agrave revisatildeo da identidade conquis-tadora na qual entra a identidade alematilde ndash um aspecto importante para a traduccedilatildeo Assim estabelece-se uma certa inversatildeo embora natildeo perfeita de identidade alteridade em geral o leitor alematildeo estaacute pouco familiarizado com a geacutenese da identidade portuguesa e ignora a configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica que eacute responsaacutevel pelo excesso identitaacuterio desconhecendo tambeacutem a participaccedilatildeo bem documentada de actores vindos de terras alematildes Eles aparecem no romance logo quando Raimundo Silva comeccedila a reler a epiacutestola na sua procura da ldquofonte limpardquo

(hellip) a informaccedilatildeo eacute de boa origem diz-se que directamente do ceacutelebre Osberno e assim podemos ficar a saber que es-tava o conde Arnoldo de Aarschot o qual comandava os guerreiros vindos de diversas partes do impeacuterio germacircni-co que estava Cristiano de Gistell chefe dos flamengos e bolonheses (hellip) (124)

Seguindo a teia intertextual regressamos ao texto-fonte que em contraste com a citada Croacutenica de Portugal de 1419 narra na perspectiva de uma expediccedilatildeo militar

Igitur apud portum de Dertemunde diversarum nationum et morum et linguarum gentes navibus cicrciter CLXIIII convenere Horum omnium trifariam partitur exercitus Sub comite Arnoldo de Arescot nepote Godefridi ducis a romani imperii partibus secedit exercitus Sub Christiano de Gistello flandrenses et bononenses32

A mudanccedila para ldquoimpeacuterio germacircnicordquo (124) corresponde agrave nota explicativa do tradutor JA de Oliveira33 No entanto natildeo se expli-

129Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ca a substituiccedilatildeo de ldquobononensesrdquo por ldquobolonhesesrdquo Naturalmen-te as duas mudanccedilas reflectem-se na traduccedilatildeo alematilde que toma o romance saramaguiano como texto-fonte

(hellip) Information aus verlaumlszliglicher Quelle dem Vernehmen nach direkt vom beruumlhmten Osberno persoumlnlich und also koumlnnen wir uns vergewissern daszlig da Graf Arnoldo de Aar-schot zugegen war der die aus verschiedenen Regionen des deutschen Kaiserreiches herbeigestroumlmten Krieger befehlig-te und Cristiano de Gistell der den Flamen und Bologne-sern vorstand (hellip) (150)

Na traduccedilatildeo alematilde nomes proacuteprios estrangeiros natildeo satildeo lsquore-patriadosrsquo nem o proacuteprio Osberne nem Arnold ou Christian que ficam todos na grafia romacircnica No entanto ldquoimpeacuterio germacircni-cordquo passa para ldquodeutsches Kaiserreichrdquo uma traduccedilatildeo que insinua uma projecccedilatildeo anacroacutenica do seacuteculo XIX (refundaccedilatildeo do Heiliges Roumlmisches Reich Deutscher Nation como Deutsches Kaiserreich em 1871) natildeo pretendida no texto-fonte Naturalmente a traduccedilatildeo alematilde ignora a possibilidade latente jaacute apagada no texto sarama-guiano de encontrar a identidade alematilde nos ldquobononensesrdquo mal transcritos em ldquobolonhesesrdquo34 Esta transcriccedilatildeo defeituosa surpre-ende porque eacute a personalidade do cavaleiro Henrique de Bona ausente na epiacutestola35 que teve o maior relevo individual na histo-riografia portuguesa entre os ldquosamtos cavaleyros martiresrdquo

Nesta tomada de Lisboa morerom alguns cavaleyros como martires e depois faziam muytos milagres amtre os quaes foy hum cavaleyro chamado Amriqe alematildeo o qual era de hũa vila que chamom Bona posta jumto de Colonha o qual foy enterado em Sam Viccedilemte honde fazia muytos milagres (hellip) (Croacutenica 50)

130Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Merecendo destaque na histoacuteria da fundaccedilatildeo do mosteiro de Satildeo Vicente com episoacutedios de acccedilatildeo milagrosa depois de morto (Indiculum 83-85 Croacutenica 50-52) Henrique de Bona torna-se uma personagem da Histoacuteria portuguesa digna de entrar nrsquo Os Lu-siacuteadas (VIII 18) Procede-se a uma apropriaccedilatildeo do estrangeiro colonizador o alematildeo Henrique torna-se depois de ter vertido ldquode gram voontade o seu sangue antre os mouros pola paixom do Nosso Salvador Jesu Cristordquo (Indiculum 83) no maior Santo Cavaleiro da Tomada de Lisboa Na Alemanha ele estaacute totalmente desconhecido a natildeo ser no acircmbito da retoacuterica diplomaacutetica bila-teral na qual aparece natildeo como maacutertir mas como fundador dos ldquolaccedilos da amizade secular que liga o povo da Alemanha ao de Por-tugalrdquo (Ehrhardt 11) projectando a ajuda dos cruzados na geacutenese do reino de Portugal numa lsquolenda de auxiacuteliorsquo para todas as eacutepocas posteriores

Numa abordagem criacutetica observamos um duplo branqueamen-to (1) da memoacuteria do saque cruel e devastador da Lisboa moura perpetrado pelos cruzados colonenses e flandrenses e (2) da rela-ccedilatildeo colonizadora entre aliados no contexto da Europa Cingimo--nos no acircmbito deste estudo agrave anaacutelise do episoacutedio da torre moacutevel No romance a ideia da sua construccedilatildeo eacute atribuiacuteda ao cavaleiro Henrique manipulando as fontes histoacutericas que falam de engenhos militares em competiccedilatildeo entre os diferentes grupos eacutetnicos ou destacam ldquoum engenheiro italiano natural de Pisardquo36 O discurso profeacutetico de superioridade cultural deste cavaleiro revela os moti-vos desta escolha

Grandes satildeo as vantagens que a Portugal adviratildeo de imitar neste como noutros casos o que na Europa se vai fazendo de mais moderno ainda que ao princiacutepio experimenteis dificuldades em meter na cabeccedila as tecnologias novas eu por mim sei da construccedilatildeo das tais torres o suficiente para os naturais daqui (hellip) (251)

131Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Groszlige Vorteile sind Portugal gewiszlig wenn es in diesem wie in anderen Faumlllen nachahmt was man in Europa an houmlchst modernen Dingen tut mag es euch anfaumlnglich auch schwerfallen die neuen Techniken in euren Kopf hinein-zukriegen ich meinerseits weiszlig vom Bau besagter Tuumlrme hinreichend viel um die hiesigen Eingeborenen zu unter-richten () (305)

Mesmo a traduccedilatildeo alematilde transmite a ideia de que a fala do cavaleiro Henrique perante o primeiro rei portuguecircs conteacutem uma paroacutedia do discurso poliacutetico actual que natildeo se cansa de propagar a imitaccedilatildeo da Europa avanccedilada representada pela capacidade eco-noacutemica e tecnoloacutegica de Alemanha em competiccedilatildeo com outras na-ccedilotildees Ao mesmo tempo projecta-se ndash apresentado como verdade de fora ndash a auto-imagem humilhante dos ldquonaturaisrdquo37 como matildeo-de--obra sem formaccedilatildeo agrave mercecirc das decisotildees de governantes que pac-tuam com os estrangeiros (252) como condiccedilatildeo da proacutepria geacutenese nacional No entanto a derrota da torre tatildeo bem construiacuteda que conduz ateacute agrave morte do seu construtor faz surgir a criacutetica dos ldquoen-genhos estrangeiros que tanto podem estar a favor como contrardquo (316) parodiando-se assim tanto a lsquolenda de auxiacuteliorsquo e a atitude colonizadora como o projecto portuguecircs de modernizaccedilatildeo europeia (Grossegesse 1995 228)

Reservando uma anaacutelise da constelaccedilatildeo transcultural entre o ca-valeiro alematildeo Henrique a sua ldquobarregatilderdquo Ouroana38 e o soldado Mogueime para outra ocasiatildeo centramo-nos num aspecto de jogo intertextual que ainda recebeu pouca atenccedilatildeo Face agrave ausecircncia do episoacutedio da torre moacutevel e da personalidade de Henrique de Bona na epiacutestola dirigida a Osberno eacute significativo que o romance sara-maguiano invente ldquoapontamentos para a carta de Osbernordquo (308) contendo estes em todo pormenor a histoacuteria do cavaleiro Henri-que A explicaccedilatildeo psicanaliacutetica de Ersatz para esta escrita do Frei Rogeiro39 tambeacutem eacute vaacutelida para o revisor Raimundo que insere na sua reescrita do Cerco de Lisboa a histoacuteria da conquista amorosa de Ouroana por Mogueime possibilitada pela morte do cavaleiro

132Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

alematildeo que espelha ndash atraveacutes dos tempos ndash a sua proacutepria lsquoconquis-tarsquo de Maria Sara

Com a ficccedilatildeo do texto apoacutecrifo inaugura-se uma hibridizaccedilatildeo transcultural das proacuteprias fontes histoacutericas possibilitando um amalgamar das narrativas dos cruzados com a Histoacuteria nacional e o lendaacuterio portuguecircs que culmina na releitura dos milagres do cava-leiro Henrique em simultacircneo com os milagres de Santo Antoacutenio o padroeiro mais popular de Lisboa A intersecccedilatildeo de milagres de ambos pelas leituras simultacircneas de Maria Sara e Raimundo eacute um acto que subverte tanto a procura da verdade histoacuterica como o conceito de identidades delimitadas por territoacuterio sangue e liacutengua Numa espeacutecie de metalepse o proacuteprio Frei Rogeiro apoacutes ter com-pilado ldquoos apontamentos que havia tomado durante uma volta que dera por todos os arraiaisrdquo (331) participa no episoacutedio milagroso ldquoComo o cavaleyro Amrique apareccedileo em sonhos a hum homem botildeo e como lhe disse que soterasem seu escudeiro a par delerdquo (Croacute-nica 51 cf Indiculum 84-85) cumprindo o papel daquele homem bom natildeo identificado

Mais significativo nesta leitura de milagres transformada em reescrita paroacutedica eacute o destaque atribuiacutedo agrave questatildeo de identida-des processos de deslocaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo culminando na trans-formaccedilatildeo de um milagre do cavaleiro Henrique numa espeacutecie de contra-mito da origem da liacutengua portuguesa ao narrar o milagre dos dois homens surdos-mudos que se deitaram ao lado do moi-mento do cavaleiro (Indiculum 83-84 Croacutenica 50-51) realccedila-se a incerteza da identidade deles ldquotinham vindo na frota poreacutem natildeo se sabe se ingleses aquitanos bretotildees flandrenses ou colonen-sesrdquo (335) Estando os dois homens assim jazendo ldquoadormeceram ambos e apareceu-lhes em sonho logo o cavaleiro Henrique (hellip) e falou agravequeles mancebosrdquo (336) ndash natildeo sabemos em que liacutengua ndash anunciando a sua cura de duvidoso efeito

(hellip) e eles acordando acharam que podiam ouvir e falar tambeacutem poreacutem falavam como gagos e de maneira que natildeo se entendia que liacutengua estavam falando se a dos ingleses

133Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ou aquitanos ou bretotildees ou flandrenses ou colonenses ou conforme natildeo poucos afirmavam a liacutengua dos portu-gueses (336)

Esta manipulaccedilatildeo natildeo de fontes histoacutericas mas de uma len-da convida para uma leitura metadiscursiva em vez de ldquocom voz chlara (hellip) contar a todo o povo o milagre que Deos em eles fizerardquo (Croacutenica 51) os dois ficam gagos No entanto o problema natildeo consiste em entender o que eacute que eles dizem mas em identificar a liacutengua que eles falam Nesta leitura o milagre reinterpretado enfa-tiza a visatildeo de uma hibridizaccedilatildeo das liacutenguas e das identidades no entanto consciente da imperfeita capacidade comunicativa que eacute aplicaacutevel agraves questotildees de revisatildeo e traduccedilatildeo

Tal como o revisor Raimundo Silva dentro da ficccedilatildeo o tradutor reescreve um texto anterior no entanto noutra liacutengua e para um leitor com outro horizonte cultural A procedecircncia das fontes histoacute-ricas e a apropriaccedilatildeo do cavaleiro Henrique pelo discurso da iden-tidade portuguesa demonstram a ineficaacutecia das definiccedilotildees puras de identidade e alteridade Em vez da tentativa de uma reproduccedilatildeo de uma liacutengua na outra no fundo irrealizaacutevel a visatildeo da hibridiza-ccedilatildeo das liacutenguas e identidades advoga uma recriaccedilatildeo naturalmente sempre parcial e imperfeita daquela heterogeneidade que Histoacuteria do Cerco de Lisboa exibe ao narrar a procura de uma ldquoverdaderdquo que ldquonatildeo pode ser mais do que uma cara sobreposta agraves infinitas maacutescaras variantes (hellip)rdquo (26) Para tal activa-se ldquooutro tipo de relaccedilotildees entre os elementos (hellip) porque as coerccedilotildees impostas pelas liacutenguas levam a diferentes possibilidades de contextualizaccedilotildees de remissotildees de encadeamentos de atribuiccedilatildeo de valores entre os elementosrdquo (Rodrigues 205) Se o romance reflecte claramente a diffeacuterance (Derrida 1967) como princiacutepio universal40 destacando os processos de traduccedilatildeo e reescrita este princiacutepio deve ser vaacutelido tambeacutem para a proacutepria traduccedilatildeo como propotildee Cristina Carneiro Rodrigues na continuaccedilatildeo de Rosemary Arojo (1993)

134Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

O original vive sobrevive na e pela sua proacutepria transfor-maccedilatildeo produzida pela leitura A traduccedilatildeo natildeo transporta uma essecircncia natildeo troca ou substitui significados dados prontos em um texto por significados equivalentes em outra liacutengua A traduccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo em que o laquotexto originalraquo se daacute por sua proacutepria modificaccedilatildeo em sua trans-formaccedilatildeo (Rodrigues 206)

O romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa interrelaciona esta con-diccedilatildeo de cada texto ser texto de textos transferidos traduzidos de outros textos em contextos histoacutericos sempre diferentes com a criacutetica da lsquoorigemrsquo da identidade individual e colectiva no sentido de transculturalidade e da ldquoculturersquos hibridityrdquo (Bhabha 1989 38) ambas com base expliacutecita na diffeacuterance Se reactivarmos a teoria de Jean Ricardou (1973) relativamente ao nouveau roman podemos dizer que a aventura da leitura escrita do revisor prefigura uma aventura semelhante do tradutor Tal como o revisor transformado em tradutor e autor ele transmite uma Histoacuteria do Cerco de Lis-boa recriada para outro leitor neste caso um leitor alheio natildeo soacute agrave narraccedilatildeo tradicional desta histoacuteria num discurso identitaacuterio mas tambeacutem agrave integraccedilatildeo da sua identidade cultural neste discurso Isto torna a traduccedilatildeo deste romance uma aventura de leitura e reescrita em certa medida jaacute prevista na Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Se no processo de traduccedilatildeo o tradutor ou tradutora tem que necessariamente tomar o lugar do autor e se apossar de seu texto para que esse possa sobreviver em outra liacutengua natildeo haacute como eliminar esse momento de usurpaccedilatildeo e con-quista que a reflexatildeo desconstrutivista flagra e desmascara (Arrojo 1993 82)

Curiosamente Rosemary Arrojo emprega a mesma metaacutefora de conquista utilizada para a aventura de Raimundo Silva que abrange a conquista amorosa de Maria Sara41 Eacute precisamente a mulher

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

122Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

brindaraacute aquele seu destinataacuterio distante Osberno chama-do laacute onde quer que esteja e quem quer que tenha sido poreacutem jaacute vai introduzindo redondeios de lavra proacutepria fru-tos de inspiraccedilatildeo estimulada (hellip) (200)

Significativamente Roger Rogeiro natildeo eacute tradutor mas ndash tal como o revisor Raimundo Silva ndash portador da consciecircncia de que tudo eacute traduccedilatildeo correspondendo ao latim o privileacutegio da liacutengua veicular

Este Rogeiro natildeo conhece uma palavra de araacutebigo nem de galego mas neste caso natildeo seraacute impedimento a ignoracircncia pois todo o debate vaacute por onde vaacute sempre iraacute dar ao latim graccedilas aos inteacuterpretes e aos tradutores simultacircneos (198)

De facto esta consciecircncia do plurilinguismo caracteriza Cruce-signati anglici epistola de expugnatione olisiponis desde o iniacutecio falando dos cruzados ldquoInter hos tot linguarum populos firmissima concordiae atque amititiaerdquo (Conquista 21) As falas de cruzados portugueses e mouros aparecem ou em citaccedilotildees traduzidas (de ou-tras liacutenguas para latim) ou em liacutengua latina para serem traduzidas no contexto do cerco Ambas satildeo adaptadas a um texto composto conforme as retoacutericas claacutessica e biacuteblica Eacute a proacutepria epiacutestola que refere a necessidade de traduccedilatildeo por exemplo do discurso do bispo do Porto proferido em latim perante a multidatildeo plurilingue dos cruzados reunidos20 Em contraste eacute significativo que o tradutor JA de Oliveira defenda ldquouma versatildeo que sem trair o pensamen-to se libertasse da escravidatildeo da letrardquo em vez de encher ldquoo texto portuguecircs com antigos vocaacutebulos forrageando-os nas velhas croacute-nicas conhecidas dos eruditosrdquo (Oliveira 1935 18) outorgando agrave sua traduccedilatildeo uma missatildeo nacionalista

Assim espero-o todos entenderatildeo este velho monumento da nossa histoacuteria e nesta hora de ressurgimento neste des-

123Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

pertar de energias e rasgar-se de horizontes novos faraacute bem aos portugueses de hoje ouvir falar a alma dos que agrave forccedila de braccedilo com persistecircncia com teimosia com obstinaccedilatildeo e com amor souberam ungir com o proacuteprio sangue os alic-erces desta nossa Paacutetria que eles nos deixaram para a con-servarmos amorosamente digna honrada e livre (Oliveira 1935 19)

Quem afirma assim uma leitura nacionalista de uma epiacutestola no fundo totalmente alheia ao objectivo de alicerccedilar a Histoacuteria nacional esconjura o que natildeo quer ver entregando-se agrave ldquotarefa permanente de nos iludirmosrdquo que critica Pacheco Pereira (2006) no caso das reacccedilotildees ao discurso de Jack Welsh Longe de com-preender a utilidade particular do confronto com a nossa imagem vista de fora JA de Oliveira concebe a sua traduccedilatildeo da epiacutestola estrangeira como contributo agrave legibilidade culturalmente coerente e homogeacutenea do ldquovelho monumento da nossa histoacuteriardquo A fideli-dade da traduccedilatildeo revela-se enganadora atraveacutes da leitura criacutetica de Raimundo Silva Assim a palavra aacuterabe ldquoalgazarrardquo que JA de Oliveira escolheu para traduzir ldquoconclamatiordquo na fala (por sua vez traduzida) de D Afonso Henriques21 evidencia natildeo soacute a homoge-neizaccedilatildeo do plurilinguismo tanto no texto-fonte como na traduccedilatildeo mas tambeacutem ndash numa leitura contraacuteria ndash a crioulizaccedilatildeo da identida-de portuguesa

Acertara D Afonso Henriques em cheio quando prognos-ticou que o exame da sua proposta acabaria em algazarra palavra que sendo aacuterabe de nacionalidade igualmente serve a qualquer gritar e vozear de colonenses flamengos bolon-heses bretotildees escoceses e normandos misturados (47-48)

Vollkommen recht hatte Dom Afonso Henriques mit der Voraussicht sein Vorschlag werde eine algazarra ausloumlsen dieses Wort obzwar arabischer Abkunft ist auch dienlich jedwedes ereiferndes Geschrei und Gekreisch der Koumllner

124Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Flamen Bologneser Bretonen Schotten und Normannen und aller durcheinander zu bezeichnen (56)

Portanto a palavra ldquoalgazarrardquo sugere nesta leitura transcul-tural do discurso reacutegio a relaccedilatildeo ambivalente galega aacuterabe como fundadora Esta insinuaccedilatildeo integra-se numa paroacutedia do discurso da identidade nacional nomeadamente na sua projecccedilatildeo anacroacutenica para a Idade Meacutedia ndash um aspecto que fica esbatido na traduccedilatildeo ale-matilde22 Uma leitura semelhante sugere a mensagem do rei de Eacutevora aos ldquoseus irmatildeos de Lisboardquo cuja traduccedilatildeo comentada ao portu-guecircs actual brinca com a identidade estereotipada de alentejanos

Aguentem aiacute os malvados que a minha tropa de alentejanos jaacute vai a caminho dizemo-lo assim por vir essa gente de aleacutem do Tejo ficando demonstrado de caminho que jaacute havia alentejanos antes de haver portugueses (176)

Para o leitor da traduccedilatildeo a existecircncia historicamente invertida de ldquoAlentejanerrdquo antes dos ldquoPortugiesenrdquo natildeo possui significado centrando-se a atenccedilatildeo na identificaccedilatildeo de ldquodiese Leute von jenseits des Tejordquo como ldquoAlentejanerrdquo (212) De facto a epiacutestola latina cita mensagens entre os mouros de Lisboa e o rei de Eacutevora desta-cando a ajuda de um inteacuterprete para poder incorporaacute-las no texto23 Obviamente a missiva reacutegia natildeo menciona alentejanos e transmite precisamente o contraacuterio a recusa do envio de tropas alegando a existecircncia de ldquotreacuteguas com o rei dos portuguesesrdquo (Conquista 64)

Estas manipulaccedilotildees mostram que Raimundo Silva eacute cada vez mais consciente da leitura escrita como cruzamento entre dimen-satildeo linguiacutestica e cultural no eixo temporal vaacutelido para a questatildeo da traduccedilatildeo24 no sentido das reflexotildees de Andreacute Lefevere (1992) Horst Turk (1992) e Susan Bassnett (1998) que analisam o texto tra-duzido ldquoembedded in its network of both source and target cultural signsrdquo (Bassnett9) Transcendo uma definiccedilatildeo estaacutetica de ldquocultural signsrdquo e da ldquohybridizationrdquo de Homi Bhabha podemos falar da

125Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

traduccedilatildeo como crioulizaccedilatildeo (Stoll 2005) com base em muacuteltiplos processos de mudanccedila sincroacutenicos e diacroacutenicos A paroacutedia da geacutenese da identidade portuguesa atraveacutes da criacutetica da pureza do texto-fonte (e da sua traduccedilatildeo) coincide com posiccedilotildees da historio-grafia moderna a conquista de Lisboa natildeo significa ndash conforme a Histoacuteria nacional tradicional ndash a vitoacuteria dos portugueses alcanccedilada com ajuda dos cruzados sobre os mouros significa isso sim a im-posiccedilatildeo militarmente bem sucedida do novo paradigma de pureza cristatilde implantada atraveacutes da ideologia colonizadora da Segunda Cruzada (114748) ao velho paradigma da convivecircncia segregada mais ou menos paciacutefica entre muccedilulmanos cristatildeos e judeus em estruturas poliacuteticas e sociais localmente autoacutenomas sob domiacutenio aacuterabe (Marques 68) O romance saramaguiano insinua esporadi-camente a crioulizaccedilatildeo da identidade portuguesa mas natildeo concede potencial identitaacuterio agraves populaccedilotildees cristatilde (moccedilaacuterabe) e judaica de Al-Usbuna sacrificadas por uma fracccedilatildeo dos cruzados ldquologo que o saque e o massacre exorbitaram das possibilidades de controlordquo (Marques 68) como conta em pormenor a epiacutestola Naturalmente destaca-se o bom comportamento dos ingleses e normandos (identi-dade de quem escreve) em contraste com o massacre e a devastaccedilatildeo perpetrados pelos colonenses e flamengos que ateacute matam o bispo da cidade moura25

Portanto o des-narrar saramaguiano natildeo empreende um deslo-camento transcultural tatildeo audaz como por exemplo La reivindi-cacioacuten del conde don Juliaacuten (1970) de Juan Goytisolo26 Naquele romance o narrador recupera atraveacutes da sua identificaccedilatildeo com o miacutetico lsquotraidorrsquo D Juliatildeo a identidade aacuterabe e moccedilaacuterabe termi-nando com o anuacutencio do lado aacuterabe ldquomantildeana seraacute otro diacutea la invasioacuten recomenzaraacuterdquo No entanto existe em Histoacuteria do Cerco um almuadem cego que preenche claramente o lugar do bispo anti-quiacutessimo a ser degolado como aquele por ldquoum soldado cristatildeo de mais zelosa feacuterdquo (348) A sua cegueira paradoxalmente visionaacuteria da Lisboa moura sitiada eacute contraacuteria daquela de ldquoira sanguinaacuteriardquo do seu assassino identificado como ldquoo cruzado Osberno soacute igual de nomerdquo (Saramago 40) introduzindo-se assim deliberadamente

126Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

uma homoniacutemia com o Osberno da epiacutestola (ainda tratado ndash errone-amente ndash como o seu autor) novamente recordada em ldquoo cruzado Osberno poreacutem natildeo o talrdquo27

Esta duplicaccedilatildeo de identidades com o mesmo nome adverte o leitor para ficar atento perante redefiniccedilotildees identitaacuterias como por exemplo dos sitiadores chamados ldquoos francos e os galegosrdquo28 sob comando dos cruzados e ldquoIbn Arrinque o Galegordquo (74) na perspetiva dos mouros recriada na mente de Raimundo Silva O almuadem na sua torre complementa ndash atraveacutes dos tempos ndash a posiccedilatildeo de Raimundo Silva ldquoque hoje quase tatildeo cego se vecirc como elerdquo (33) Significativamente o revisor apercebe-se ldquode que mora no preciso lugar onde antigamente se abria a Porta de Alfofardquo configurando-se assim topograficamente a incerteza (que corresponde ao des-narrar) ldquose Raimundo Silva eacute um si-tiado ou um sitiante vencedor futuro ou perdedor sem remeacutediordquo (75) Nos seus passeios por Lisboa ele revivifica uma cidade dividida entre zonas dos sitiados e dos atacantes entretecendo ldquodois temposrdquo (242) passado e presente29 A ambiguidade nos eixos de lugar e tempo transfere-se natildeo soacute agrave histoacuteria aplicando o tema da cegueira ateacute ao processo da sua recepccedilatildeo ldquo(hellip) esta [histoacuteria] de agora comeccedilada soacute poderaacute lecirc-la quem os olhos ti-ver luacutecidos e abertos natildeo um cegordquo (243) transfere-se tambeacutem agrave liacutengua na qual estaacute escrita o texto insinuando-se um regresso a outra fonte nas duas dimensotildees de identidade cultural e texto que evoca aquela transformaccedilatildeo da liacutengua castelhana em aacuterabe realizada nas uacuteltimas duas paacuteginas de Juan sin Tierra (1975) de Juan Goytisolo ldquo(hellip) as matildeos de Raimundo Silva pousam sobre a uacuteltima folha escrita umas linhas negras indecifraacuteveis talvez de araacutebiga liacutengua natildeo estivemos atentos agrave voz do almuademrdquo (Sara-mago 243) Na accedilatildeo mediadora do revisor confluem a voz aacuterabe do almuadem e a escrita latina do cleacuterigo Roger Na reescrita inicialmente soacute mental do lsquolivro do historiadorrsquo Raimundo Sil-va procura uma reconstruccedilatildeo contextualizada de ambos os lados (cristatildeos muccedilulmanos) por exemplo corrigindo o significado da cegueira do almuadem

127Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

() natildeo foi erro escrever porque enfim escrito estaacute que era cego o almuadem O historiador soacute fala de minarete e muezim talvez ignorasse que quase todos os almuadens naquele tempo e por muito tempo depois eram cegos (29

() es war kein Fehler und geschrieben ist es nun mal daszlig der Muezzin blind war Der Historiker der da lediglich von Minarett und Muezzin schreibt wuszligte vielleicht nicht daszlig fast alle Muezzins damals und noch lange danach blind waren (32)

O revisor identifica ldquominareterdquo e ldquomuezimrdquo como palavras li-gadas ao orientalismo dos seacuteculos XVIII e XIX Apesar de ser um fenoacutemeno transnacional europeu o orientalismo teve maior atracccedilatildeo na cultura francesa que espalhou para outras liacutenguas eu-ropeias as vozes aacuterabes importadas pela via oriental o Impeacuterio Otomano (Turquia) na sua expansatildeo europeia a partir do seacuteculo XIV (ponto alto conquista de Constantinopla em 1453) tinha dei-xado vestiacutegios nomeadamente na cultura austriacuteaca no acircmbito dos Tuumlrkenkriege (ponto de viragem Cerco de Viena em 1683) que serviram de base para o orientalismo francecircs Raimundo Silva pre-fere o uso da palavra ldquoalmuademrdquo de maior e mais antiga presen-ccedila na liacutengua portuguesa30 importada directamente e recuperada no Romantismo pelas Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano tal como ldquoalmaacutedenardquo em vez de ldquominareterdquo (Machado 62) A tra-duccedilatildeo alematilde natildeo assinala esta tentativa de maior lsquopurezarsquo histoacuterica no discurso sobre a identidade moura mantendo a denominaccedilatildeo invariaacutevel ldquoMuezzinrdquo embora exista a alternativa lexical menos usada de ldquoMuaddhinrdquo (Brockhaus 229)31

No contexto do pensamento poacutes-colonial esta reaquisiccedilatildeo dos processos de imaginaccedilatildeo depois das imposiccedilotildees coloniais europeias que comeccedila em princiacutepio pelo Romantismo (Herculano Garrett) revela a raiz histoacuterica da especificidade relacional portuguesa co-lonizada colonizadora isto eacute a harmonizaccedilatildeo mais ou menos voluntaacuteria da poliacutetica existente de poder regional na Peniacutensula Ibeacute-

128Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

rica com a ideologia colonizadora das cruzadas Para aleacutem de uma subtil reivindicaccedilatildeo da identidade moura Histoacuteria do Cerco de Lisboa se cinge quase unicamente agrave revisatildeo da identidade conquis-tadora na qual entra a identidade alematilde ndash um aspecto importante para a traduccedilatildeo Assim estabelece-se uma certa inversatildeo embora natildeo perfeita de identidade alteridade em geral o leitor alematildeo estaacute pouco familiarizado com a geacutenese da identidade portuguesa e ignora a configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica que eacute responsaacutevel pelo excesso identitaacuterio desconhecendo tambeacutem a participaccedilatildeo bem documentada de actores vindos de terras alematildes Eles aparecem no romance logo quando Raimundo Silva comeccedila a reler a epiacutestola na sua procura da ldquofonte limpardquo

(hellip) a informaccedilatildeo eacute de boa origem diz-se que directamente do ceacutelebre Osberno e assim podemos ficar a saber que es-tava o conde Arnoldo de Aarschot o qual comandava os guerreiros vindos de diversas partes do impeacuterio germacircni-co que estava Cristiano de Gistell chefe dos flamengos e bolonheses (hellip) (124)

Seguindo a teia intertextual regressamos ao texto-fonte que em contraste com a citada Croacutenica de Portugal de 1419 narra na perspectiva de uma expediccedilatildeo militar

Igitur apud portum de Dertemunde diversarum nationum et morum et linguarum gentes navibus cicrciter CLXIIII convenere Horum omnium trifariam partitur exercitus Sub comite Arnoldo de Arescot nepote Godefridi ducis a romani imperii partibus secedit exercitus Sub Christiano de Gistello flandrenses et bononenses32

A mudanccedila para ldquoimpeacuterio germacircnicordquo (124) corresponde agrave nota explicativa do tradutor JA de Oliveira33 No entanto natildeo se expli-

129Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ca a substituiccedilatildeo de ldquobononensesrdquo por ldquobolonhesesrdquo Naturalmen-te as duas mudanccedilas reflectem-se na traduccedilatildeo alematilde que toma o romance saramaguiano como texto-fonte

(hellip) Information aus verlaumlszliglicher Quelle dem Vernehmen nach direkt vom beruumlhmten Osberno persoumlnlich und also koumlnnen wir uns vergewissern daszlig da Graf Arnoldo de Aar-schot zugegen war der die aus verschiedenen Regionen des deutschen Kaiserreiches herbeigestroumlmten Krieger befehlig-te und Cristiano de Gistell der den Flamen und Bologne-sern vorstand (hellip) (150)

Na traduccedilatildeo alematilde nomes proacuteprios estrangeiros natildeo satildeo lsquore-patriadosrsquo nem o proacuteprio Osberne nem Arnold ou Christian que ficam todos na grafia romacircnica No entanto ldquoimpeacuterio germacircni-cordquo passa para ldquodeutsches Kaiserreichrdquo uma traduccedilatildeo que insinua uma projecccedilatildeo anacroacutenica do seacuteculo XIX (refundaccedilatildeo do Heiliges Roumlmisches Reich Deutscher Nation como Deutsches Kaiserreich em 1871) natildeo pretendida no texto-fonte Naturalmente a traduccedilatildeo alematilde ignora a possibilidade latente jaacute apagada no texto sarama-guiano de encontrar a identidade alematilde nos ldquobononensesrdquo mal transcritos em ldquobolonhesesrdquo34 Esta transcriccedilatildeo defeituosa surpre-ende porque eacute a personalidade do cavaleiro Henrique de Bona ausente na epiacutestola35 que teve o maior relevo individual na histo-riografia portuguesa entre os ldquosamtos cavaleyros martiresrdquo

Nesta tomada de Lisboa morerom alguns cavaleyros como martires e depois faziam muytos milagres amtre os quaes foy hum cavaleyro chamado Amriqe alematildeo o qual era de hũa vila que chamom Bona posta jumto de Colonha o qual foy enterado em Sam Viccedilemte honde fazia muytos milagres (hellip) (Croacutenica 50)

130Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Merecendo destaque na histoacuteria da fundaccedilatildeo do mosteiro de Satildeo Vicente com episoacutedios de acccedilatildeo milagrosa depois de morto (Indiculum 83-85 Croacutenica 50-52) Henrique de Bona torna-se uma personagem da Histoacuteria portuguesa digna de entrar nrsquo Os Lu-siacuteadas (VIII 18) Procede-se a uma apropriaccedilatildeo do estrangeiro colonizador o alematildeo Henrique torna-se depois de ter vertido ldquode gram voontade o seu sangue antre os mouros pola paixom do Nosso Salvador Jesu Cristordquo (Indiculum 83) no maior Santo Cavaleiro da Tomada de Lisboa Na Alemanha ele estaacute totalmente desconhecido a natildeo ser no acircmbito da retoacuterica diplomaacutetica bila-teral na qual aparece natildeo como maacutertir mas como fundador dos ldquolaccedilos da amizade secular que liga o povo da Alemanha ao de Por-tugalrdquo (Ehrhardt 11) projectando a ajuda dos cruzados na geacutenese do reino de Portugal numa lsquolenda de auxiacuteliorsquo para todas as eacutepocas posteriores

Numa abordagem criacutetica observamos um duplo branqueamen-to (1) da memoacuteria do saque cruel e devastador da Lisboa moura perpetrado pelos cruzados colonenses e flandrenses e (2) da rela-ccedilatildeo colonizadora entre aliados no contexto da Europa Cingimo--nos no acircmbito deste estudo agrave anaacutelise do episoacutedio da torre moacutevel No romance a ideia da sua construccedilatildeo eacute atribuiacuteda ao cavaleiro Henrique manipulando as fontes histoacutericas que falam de engenhos militares em competiccedilatildeo entre os diferentes grupos eacutetnicos ou destacam ldquoum engenheiro italiano natural de Pisardquo36 O discurso profeacutetico de superioridade cultural deste cavaleiro revela os moti-vos desta escolha

Grandes satildeo as vantagens que a Portugal adviratildeo de imitar neste como noutros casos o que na Europa se vai fazendo de mais moderno ainda que ao princiacutepio experimenteis dificuldades em meter na cabeccedila as tecnologias novas eu por mim sei da construccedilatildeo das tais torres o suficiente para os naturais daqui (hellip) (251)

131Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Groszlige Vorteile sind Portugal gewiszlig wenn es in diesem wie in anderen Faumlllen nachahmt was man in Europa an houmlchst modernen Dingen tut mag es euch anfaumlnglich auch schwerfallen die neuen Techniken in euren Kopf hinein-zukriegen ich meinerseits weiszlig vom Bau besagter Tuumlrme hinreichend viel um die hiesigen Eingeborenen zu unter-richten () (305)

Mesmo a traduccedilatildeo alematilde transmite a ideia de que a fala do cavaleiro Henrique perante o primeiro rei portuguecircs conteacutem uma paroacutedia do discurso poliacutetico actual que natildeo se cansa de propagar a imitaccedilatildeo da Europa avanccedilada representada pela capacidade eco-noacutemica e tecnoloacutegica de Alemanha em competiccedilatildeo com outras na-ccedilotildees Ao mesmo tempo projecta-se ndash apresentado como verdade de fora ndash a auto-imagem humilhante dos ldquonaturaisrdquo37 como matildeo-de--obra sem formaccedilatildeo agrave mercecirc das decisotildees de governantes que pac-tuam com os estrangeiros (252) como condiccedilatildeo da proacutepria geacutenese nacional No entanto a derrota da torre tatildeo bem construiacuteda que conduz ateacute agrave morte do seu construtor faz surgir a criacutetica dos ldquoen-genhos estrangeiros que tanto podem estar a favor como contrardquo (316) parodiando-se assim tanto a lsquolenda de auxiacuteliorsquo e a atitude colonizadora como o projecto portuguecircs de modernizaccedilatildeo europeia (Grossegesse 1995 228)

Reservando uma anaacutelise da constelaccedilatildeo transcultural entre o ca-valeiro alematildeo Henrique a sua ldquobarregatilderdquo Ouroana38 e o soldado Mogueime para outra ocasiatildeo centramo-nos num aspecto de jogo intertextual que ainda recebeu pouca atenccedilatildeo Face agrave ausecircncia do episoacutedio da torre moacutevel e da personalidade de Henrique de Bona na epiacutestola dirigida a Osberno eacute significativo que o romance sara-maguiano invente ldquoapontamentos para a carta de Osbernordquo (308) contendo estes em todo pormenor a histoacuteria do cavaleiro Henri-que A explicaccedilatildeo psicanaliacutetica de Ersatz para esta escrita do Frei Rogeiro39 tambeacutem eacute vaacutelida para o revisor Raimundo que insere na sua reescrita do Cerco de Lisboa a histoacuteria da conquista amorosa de Ouroana por Mogueime possibilitada pela morte do cavaleiro

132Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

alematildeo que espelha ndash atraveacutes dos tempos ndash a sua proacutepria lsquoconquis-tarsquo de Maria Sara

Com a ficccedilatildeo do texto apoacutecrifo inaugura-se uma hibridizaccedilatildeo transcultural das proacuteprias fontes histoacutericas possibilitando um amalgamar das narrativas dos cruzados com a Histoacuteria nacional e o lendaacuterio portuguecircs que culmina na releitura dos milagres do cava-leiro Henrique em simultacircneo com os milagres de Santo Antoacutenio o padroeiro mais popular de Lisboa A intersecccedilatildeo de milagres de ambos pelas leituras simultacircneas de Maria Sara e Raimundo eacute um acto que subverte tanto a procura da verdade histoacuterica como o conceito de identidades delimitadas por territoacuterio sangue e liacutengua Numa espeacutecie de metalepse o proacuteprio Frei Rogeiro apoacutes ter com-pilado ldquoos apontamentos que havia tomado durante uma volta que dera por todos os arraiaisrdquo (331) participa no episoacutedio milagroso ldquoComo o cavaleyro Amrique apareccedileo em sonhos a hum homem botildeo e como lhe disse que soterasem seu escudeiro a par delerdquo (Croacute-nica 51 cf Indiculum 84-85) cumprindo o papel daquele homem bom natildeo identificado

Mais significativo nesta leitura de milagres transformada em reescrita paroacutedica eacute o destaque atribuiacutedo agrave questatildeo de identida-des processos de deslocaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo culminando na trans-formaccedilatildeo de um milagre do cavaleiro Henrique numa espeacutecie de contra-mito da origem da liacutengua portuguesa ao narrar o milagre dos dois homens surdos-mudos que se deitaram ao lado do moi-mento do cavaleiro (Indiculum 83-84 Croacutenica 50-51) realccedila-se a incerteza da identidade deles ldquotinham vindo na frota poreacutem natildeo se sabe se ingleses aquitanos bretotildees flandrenses ou colonen-sesrdquo (335) Estando os dois homens assim jazendo ldquoadormeceram ambos e apareceu-lhes em sonho logo o cavaleiro Henrique (hellip) e falou agravequeles mancebosrdquo (336) ndash natildeo sabemos em que liacutengua ndash anunciando a sua cura de duvidoso efeito

(hellip) e eles acordando acharam que podiam ouvir e falar tambeacutem poreacutem falavam como gagos e de maneira que natildeo se entendia que liacutengua estavam falando se a dos ingleses

133Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ou aquitanos ou bretotildees ou flandrenses ou colonenses ou conforme natildeo poucos afirmavam a liacutengua dos portu-gueses (336)

Esta manipulaccedilatildeo natildeo de fontes histoacutericas mas de uma len-da convida para uma leitura metadiscursiva em vez de ldquocom voz chlara (hellip) contar a todo o povo o milagre que Deos em eles fizerardquo (Croacutenica 51) os dois ficam gagos No entanto o problema natildeo consiste em entender o que eacute que eles dizem mas em identificar a liacutengua que eles falam Nesta leitura o milagre reinterpretado enfa-tiza a visatildeo de uma hibridizaccedilatildeo das liacutenguas e das identidades no entanto consciente da imperfeita capacidade comunicativa que eacute aplicaacutevel agraves questotildees de revisatildeo e traduccedilatildeo

Tal como o revisor Raimundo Silva dentro da ficccedilatildeo o tradutor reescreve um texto anterior no entanto noutra liacutengua e para um leitor com outro horizonte cultural A procedecircncia das fontes histoacute-ricas e a apropriaccedilatildeo do cavaleiro Henrique pelo discurso da iden-tidade portuguesa demonstram a ineficaacutecia das definiccedilotildees puras de identidade e alteridade Em vez da tentativa de uma reproduccedilatildeo de uma liacutengua na outra no fundo irrealizaacutevel a visatildeo da hibridiza-ccedilatildeo das liacutenguas e identidades advoga uma recriaccedilatildeo naturalmente sempre parcial e imperfeita daquela heterogeneidade que Histoacuteria do Cerco de Lisboa exibe ao narrar a procura de uma ldquoverdaderdquo que ldquonatildeo pode ser mais do que uma cara sobreposta agraves infinitas maacutescaras variantes (hellip)rdquo (26) Para tal activa-se ldquooutro tipo de relaccedilotildees entre os elementos (hellip) porque as coerccedilotildees impostas pelas liacutenguas levam a diferentes possibilidades de contextualizaccedilotildees de remissotildees de encadeamentos de atribuiccedilatildeo de valores entre os elementosrdquo (Rodrigues 205) Se o romance reflecte claramente a diffeacuterance (Derrida 1967) como princiacutepio universal40 destacando os processos de traduccedilatildeo e reescrita este princiacutepio deve ser vaacutelido tambeacutem para a proacutepria traduccedilatildeo como propotildee Cristina Carneiro Rodrigues na continuaccedilatildeo de Rosemary Arojo (1993)

134Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

O original vive sobrevive na e pela sua proacutepria transfor-maccedilatildeo produzida pela leitura A traduccedilatildeo natildeo transporta uma essecircncia natildeo troca ou substitui significados dados prontos em um texto por significados equivalentes em outra liacutengua A traduccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo em que o laquotexto originalraquo se daacute por sua proacutepria modificaccedilatildeo em sua trans-formaccedilatildeo (Rodrigues 206)

O romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa interrelaciona esta con-diccedilatildeo de cada texto ser texto de textos transferidos traduzidos de outros textos em contextos histoacutericos sempre diferentes com a criacutetica da lsquoorigemrsquo da identidade individual e colectiva no sentido de transculturalidade e da ldquoculturersquos hibridityrdquo (Bhabha 1989 38) ambas com base expliacutecita na diffeacuterance Se reactivarmos a teoria de Jean Ricardou (1973) relativamente ao nouveau roman podemos dizer que a aventura da leitura escrita do revisor prefigura uma aventura semelhante do tradutor Tal como o revisor transformado em tradutor e autor ele transmite uma Histoacuteria do Cerco de Lis-boa recriada para outro leitor neste caso um leitor alheio natildeo soacute agrave narraccedilatildeo tradicional desta histoacuteria num discurso identitaacuterio mas tambeacutem agrave integraccedilatildeo da sua identidade cultural neste discurso Isto torna a traduccedilatildeo deste romance uma aventura de leitura e reescrita em certa medida jaacute prevista na Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Se no processo de traduccedilatildeo o tradutor ou tradutora tem que necessariamente tomar o lugar do autor e se apossar de seu texto para que esse possa sobreviver em outra liacutengua natildeo haacute como eliminar esse momento de usurpaccedilatildeo e con-quista que a reflexatildeo desconstrutivista flagra e desmascara (Arrojo 1993 82)

Curiosamente Rosemary Arrojo emprega a mesma metaacutefora de conquista utilizada para a aventura de Raimundo Silva que abrange a conquista amorosa de Maria Sara41 Eacute precisamente a mulher

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

123Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

pertar de energias e rasgar-se de horizontes novos faraacute bem aos portugueses de hoje ouvir falar a alma dos que agrave forccedila de braccedilo com persistecircncia com teimosia com obstinaccedilatildeo e com amor souberam ungir com o proacuteprio sangue os alic-erces desta nossa Paacutetria que eles nos deixaram para a con-servarmos amorosamente digna honrada e livre (Oliveira 1935 19)

Quem afirma assim uma leitura nacionalista de uma epiacutestola no fundo totalmente alheia ao objectivo de alicerccedilar a Histoacuteria nacional esconjura o que natildeo quer ver entregando-se agrave ldquotarefa permanente de nos iludirmosrdquo que critica Pacheco Pereira (2006) no caso das reacccedilotildees ao discurso de Jack Welsh Longe de com-preender a utilidade particular do confronto com a nossa imagem vista de fora JA de Oliveira concebe a sua traduccedilatildeo da epiacutestola estrangeira como contributo agrave legibilidade culturalmente coerente e homogeacutenea do ldquovelho monumento da nossa histoacuteriardquo A fideli-dade da traduccedilatildeo revela-se enganadora atraveacutes da leitura criacutetica de Raimundo Silva Assim a palavra aacuterabe ldquoalgazarrardquo que JA de Oliveira escolheu para traduzir ldquoconclamatiordquo na fala (por sua vez traduzida) de D Afonso Henriques21 evidencia natildeo soacute a homoge-neizaccedilatildeo do plurilinguismo tanto no texto-fonte como na traduccedilatildeo mas tambeacutem ndash numa leitura contraacuteria ndash a crioulizaccedilatildeo da identida-de portuguesa

Acertara D Afonso Henriques em cheio quando prognos-ticou que o exame da sua proposta acabaria em algazarra palavra que sendo aacuterabe de nacionalidade igualmente serve a qualquer gritar e vozear de colonenses flamengos bolon-heses bretotildees escoceses e normandos misturados (47-48)

Vollkommen recht hatte Dom Afonso Henriques mit der Voraussicht sein Vorschlag werde eine algazarra ausloumlsen dieses Wort obzwar arabischer Abkunft ist auch dienlich jedwedes ereiferndes Geschrei und Gekreisch der Koumllner

124Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Flamen Bologneser Bretonen Schotten und Normannen und aller durcheinander zu bezeichnen (56)

Portanto a palavra ldquoalgazarrardquo sugere nesta leitura transcul-tural do discurso reacutegio a relaccedilatildeo ambivalente galega aacuterabe como fundadora Esta insinuaccedilatildeo integra-se numa paroacutedia do discurso da identidade nacional nomeadamente na sua projecccedilatildeo anacroacutenica para a Idade Meacutedia ndash um aspecto que fica esbatido na traduccedilatildeo ale-matilde22 Uma leitura semelhante sugere a mensagem do rei de Eacutevora aos ldquoseus irmatildeos de Lisboardquo cuja traduccedilatildeo comentada ao portu-guecircs actual brinca com a identidade estereotipada de alentejanos

Aguentem aiacute os malvados que a minha tropa de alentejanos jaacute vai a caminho dizemo-lo assim por vir essa gente de aleacutem do Tejo ficando demonstrado de caminho que jaacute havia alentejanos antes de haver portugueses (176)

Para o leitor da traduccedilatildeo a existecircncia historicamente invertida de ldquoAlentejanerrdquo antes dos ldquoPortugiesenrdquo natildeo possui significado centrando-se a atenccedilatildeo na identificaccedilatildeo de ldquodiese Leute von jenseits des Tejordquo como ldquoAlentejanerrdquo (212) De facto a epiacutestola latina cita mensagens entre os mouros de Lisboa e o rei de Eacutevora desta-cando a ajuda de um inteacuterprete para poder incorporaacute-las no texto23 Obviamente a missiva reacutegia natildeo menciona alentejanos e transmite precisamente o contraacuterio a recusa do envio de tropas alegando a existecircncia de ldquotreacuteguas com o rei dos portuguesesrdquo (Conquista 64)

Estas manipulaccedilotildees mostram que Raimundo Silva eacute cada vez mais consciente da leitura escrita como cruzamento entre dimen-satildeo linguiacutestica e cultural no eixo temporal vaacutelido para a questatildeo da traduccedilatildeo24 no sentido das reflexotildees de Andreacute Lefevere (1992) Horst Turk (1992) e Susan Bassnett (1998) que analisam o texto tra-duzido ldquoembedded in its network of both source and target cultural signsrdquo (Bassnett9) Transcendo uma definiccedilatildeo estaacutetica de ldquocultural signsrdquo e da ldquohybridizationrdquo de Homi Bhabha podemos falar da

125Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

traduccedilatildeo como crioulizaccedilatildeo (Stoll 2005) com base em muacuteltiplos processos de mudanccedila sincroacutenicos e diacroacutenicos A paroacutedia da geacutenese da identidade portuguesa atraveacutes da criacutetica da pureza do texto-fonte (e da sua traduccedilatildeo) coincide com posiccedilotildees da historio-grafia moderna a conquista de Lisboa natildeo significa ndash conforme a Histoacuteria nacional tradicional ndash a vitoacuteria dos portugueses alcanccedilada com ajuda dos cruzados sobre os mouros significa isso sim a im-posiccedilatildeo militarmente bem sucedida do novo paradigma de pureza cristatilde implantada atraveacutes da ideologia colonizadora da Segunda Cruzada (114748) ao velho paradigma da convivecircncia segregada mais ou menos paciacutefica entre muccedilulmanos cristatildeos e judeus em estruturas poliacuteticas e sociais localmente autoacutenomas sob domiacutenio aacuterabe (Marques 68) O romance saramaguiano insinua esporadi-camente a crioulizaccedilatildeo da identidade portuguesa mas natildeo concede potencial identitaacuterio agraves populaccedilotildees cristatilde (moccedilaacuterabe) e judaica de Al-Usbuna sacrificadas por uma fracccedilatildeo dos cruzados ldquologo que o saque e o massacre exorbitaram das possibilidades de controlordquo (Marques 68) como conta em pormenor a epiacutestola Naturalmente destaca-se o bom comportamento dos ingleses e normandos (identi-dade de quem escreve) em contraste com o massacre e a devastaccedilatildeo perpetrados pelos colonenses e flamengos que ateacute matam o bispo da cidade moura25

Portanto o des-narrar saramaguiano natildeo empreende um deslo-camento transcultural tatildeo audaz como por exemplo La reivindi-cacioacuten del conde don Juliaacuten (1970) de Juan Goytisolo26 Naquele romance o narrador recupera atraveacutes da sua identificaccedilatildeo com o miacutetico lsquotraidorrsquo D Juliatildeo a identidade aacuterabe e moccedilaacuterabe termi-nando com o anuacutencio do lado aacuterabe ldquomantildeana seraacute otro diacutea la invasioacuten recomenzaraacuterdquo No entanto existe em Histoacuteria do Cerco um almuadem cego que preenche claramente o lugar do bispo anti-quiacutessimo a ser degolado como aquele por ldquoum soldado cristatildeo de mais zelosa feacuterdquo (348) A sua cegueira paradoxalmente visionaacuteria da Lisboa moura sitiada eacute contraacuteria daquela de ldquoira sanguinaacuteriardquo do seu assassino identificado como ldquoo cruzado Osberno soacute igual de nomerdquo (Saramago 40) introduzindo-se assim deliberadamente

126Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

uma homoniacutemia com o Osberno da epiacutestola (ainda tratado ndash errone-amente ndash como o seu autor) novamente recordada em ldquoo cruzado Osberno poreacutem natildeo o talrdquo27

Esta duplicaccedilatildeo de identidades com o mesmo nome adverte o leitor para ficar atento perante redefiniccedilotildees identitaacuterias como por exemplo dos sitiadores chamados ldquoos francos e os galegosrdquo28 sob comando dos cruzados e ldquoIbn Arrinque o Galegordquo (74) na perspetiva dos mouros recriada na mente de Raimundo Silva O almuadem na sua torre complementa ndash atraveacutes dos tempos ndash a posiccedilatildeo de Raimundo Silva ldquoque hoje quase tatildeo cego se vecirc como elerdquo (33) Significativamente o revisor apercebe-se ldquode que mora no preciso lugar onde antigamente se abria a Porta de Alfofardquo configurando-se assim topograficamente a incerteza (que corresponde ao des-narrar) ldquose Raimundo Silva eacute um si-tiado ou um sitiante vencedor futuro ou perdedor sem remeacutediordquo (75) Nos seus passeios por Lisboa ele revivifica uma cidade dividida entre zonas dos sitiados e dos atacantes entretecendo ldquodois temposrdquo (242) passado e presente29 A ambiguidade nos eixos de lugar e tempo transfere-se natildeo soacute agrave histoacuteria aplicando o tema da cegueira ateacute ao processo da sua recepccedilatildeo ldquo(hellip) esta [histoacuteria] de agora comeccedilada soacute poderaacute lecirc-la quem os olhos ti-ver luacutecidos e abertos natildeo um cegordquo (243) transfere-se tambeacutem agrave liacutengua na qual estaacute escrita o texto insinuando-se um regresso a outra fonte nas duas dimensotildees de identidade cultural e texto que evoca aquela transformaccedilatildeo da liacutengua castelhana em aacuterabe realizada nas uacuteltimas duas paacuteginas de Juan sin Tierra (1975) de Juan Goytisolo ldquo(hellip) as matildeos de Raimundo Silva pousam sobre a uacuteltima folha escrita umas linhas negras indecifraacuteveis talvez de araacutebiga liacutengua natildeo estivemos atentos agrave voz do almuademrdquo (Sara-mago 243) Na accedilatildeo mediadora do revisor confluem a voz aacuterabe do almuadem e a escrita latina do cleacuterigo Roger Na reescrita inicialmente soacute mental do lsquolivro do historiadorrsquo Raimundo Sil-va procura uma reconstruccedilatildeo contextualizada de ambos os lados (cristatildeos muccedilulmanos) por exemplo corrigindo o significado da cegueira do almuadem

127Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

() natildeo foi erro escrever porque enfim escrito estaacute que era cego o almuadem O historiador soacute fala de minarete e muezim talvez ignorasse que quase todos os almuadens naquele tempo e por muito tempo depois eram cegos (29

() es war kein Fehler und geschrieben ist es nun mal daszlig der Muezzin blind war Der Historiker der da lediglich von Minarett und Muezzin schreibt wuszligte vielleicht nicht daszlig fast alle Muezzins damals und noch lange danach blind waren (32)

O revisor identifica ldquominareterdquo e ldquomuezimrdquo como palavras li-gadas ao orientalismo dos seacuteculos XVIII e XIX Apesar de ser um fenoacutemeno transnacional europeu o orientalismo teve maior atracccedilatildeo na cultura francesa que espalhou para outras liacutenguas eu-ropeias as vozes aacuterabes importadas pela via oriental o Impeacuterio Otomano (Turquia) na sua expansatildeo europeia a partir do seacuteculo XIV (ponto alto conquista de Constantinopla em 1453) tinha dei-xado vestiacutegios nomeadamente na cultura austriacuteaca no acircmbito dos Tuumlrkenkriege (ponto de viragem Cerco de Viena em 1683) que serviram de base para o orientalismo francecircs Raimundo Silva pre-fere o uso da palavra ldquoalmuademrdquo de maior e mais antiga presen-ccedila na liacutengua portuguesa30 importada directamente e recuperada no Romantismo pelas Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano tal como ldquoalmaacutedenardquo em vez de ldquominareterdquo (Machado 62) A tra-duccedilatildeo alematilde natildeo assinala esta tentativa de maior lsquopurezarsquo histoacuterica no discurso sobre a identidade moura mantendo a denominaccedilatildeo invariaacutevel ldquoMuezzinrdquo embora exista a alternativa lexical menos usada de ldquoMuaddhinrdquo (Brockhaus 229)31

No contexto do pensamento poacutes-colonial esta reaquisiccedilatildeo dos processos de imaginaccedilatildeo depois das imposiccedilotildees coloniais europeias que comeccedila em princiacutepio pelo Romantismo (Herculano Garrett) revela a raiz histoacuterica da especificidade relacional portuguesa co-lonizada colonizadora isto eacute a harmonizaccedilatildeo mais ou menos voluntaacuteria da poliacutetica existente de poder regional na Peniacutensula Ibeacute-

128Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

rica com a ideologia colonizadora das cruzadas Para aleacutem de uma subtil reivindicaccedilatildeo da identidade moura Histoacuteria do Cerco de Lisboa se cinge quase unicamente agrave revisatildeo da identidade conquis-tadora na qual entra a identidade alematilde ndash um aspecto importante para a traduccedilatildeo Assim estabelece-se uma certa inversatildeo embora natildeo perfeita de identidade alteridade em geral o leitor alematildeo estaacute pouco familiarizado com a geacutenese da identidade portuguesa e ignora a configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica que eacute responsaacutevel pelo excesso identitaacuterio desconhecendo tambeacutem a participaccedilatildeo bem documentada de actores vindos de terras alematildes Eles aparecem no romance logo quando Raimundo Silva comeccedila a reler a epiacutestola na sua procura da ldquofonte limpardquo

(hellip) a informaccedilatildeo eacute de boa origem diz-se que directamente do ceacutelebre Osberno e assim podemos ficar a saber que es-tava o conde Arnoldo de Aarschot o qual comandava os guerreiros vindos de diversas partes do impeacuterio germacircni-co que estava Cristiano de Gistell chefe dos flamengos e bolonheses (hellip) (124)

Seguindo a teia intertextual regressamos ao texto-fonte que em contraste com a citada Croacutenica de Portugal de 1419 narra na perspectiva de uma expediccedilatildeo militar

Igitur apud portum de Dertemunde diversarum nationum et morum et linguarum gentes navibus cicrciter CLXIIII convenere Horum omnium trifariam partitur exercitus Sub comite Arnoldo de Arescot nepote Godefridi ducis a romani imperii partibus secedit exercitus Sub Christiano de Gistello flandrenses et bononenses32

A mudanccedila para ldquoimpeacuterio germacircnicordquo (124) corresponde agrave nota explicativa do tradutor JA de Oliveira33 No entanto natildeo se expli-

129Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ca a substituiccedilatildeo de ldquobononensesrdquo por ldquobolonhesesrdquo Naturalmen-te as duas mudanccedilas reflectem-se na traduccedilatildeo alematilde que toma o romance saramaguiano como texto-fonte

(hellip) Information aus verlaumlszliglicher Quelle dem Vernehmen nach direkt vom beruumlhmten Osberno persoumlnlich und also koumlnnen wir uns vergewissern daszlig da Graf Arnoldo de Aar-schot zugegen war der die aus verschiedenen Regionen des deutschen Kaiserreiches herbeigestroumlmten Krieger befehlig-te und Cristiano de Gistell der den Flamen und Bologne-sern vorstand (hellip) (150)

Na traduccedilatildeo alematilde nomes proacuteprios estrangeiros natildeo satildeo lsquore-patriadosrsquo nem o proacuteprio Osberne nem Arnold ou Christian que ficam todos na grafia romacircnica No entanto ldquoimpeacuterio germacircni-cordquo passa para ldquodeutsches Kaiserreichrdquo uma traduccedilatildeo que insinua uma projecccedilatildeo anacroacutenica do seacuteculo XIX (refundaccedilatildeo do Heiliges Roumlmisches Reich Deutscher Nation como Deutsches Kaiserreich em 1871) natildeo pretendida no texto-fonte Naturalmente a traduccedilatildeo alematilde ignora a possibilidade latente jaacute apagada no texto sarama-guiano de encontrar a identidade alematilde nos ldquobononensesrdquo mal transcritos em ldquobolonhesesrdquo34 Esta transcriccedilatildeo defeituosa surpre-ende porque eacute a personalidade do cavaleiro Henrique de Bona ausente na epiacutestola35 que teve o maior relevo individual na histo-riografia portuguesa entre os ldquosamtos cavaleyros martiresrdquo

Nesta tomada de Lisboa morerom alguns cavaleyros como martires e depois faziam muytos milagres amtre os quaes foy hum cavaleyro chamado Amriqe alematildeo o qual era de hũa vila que chamom Bona posta jumto de Colonha o qual foy enterado em Sam Viccedilemte honde fazia muytos milagres (hellip) (Croacutenica 50)

130Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Merecendo destaque na histoacuteria da fundaccedilatildeo do mosteiro de Satildeo Vicente com episoacutedios de acccedilatildeo milagrosa depois de morto (Indiculum 83-85 Croacutenica 50-52) Henrique de Bona torna-se uma personagem da Histoacuteria portuguesa digna de entrar nrsquo Os Lu-siacuteadas (VIII 18) Procede-se a uma apropriaccedilatildeo do estrangeiro colonizador o alematildeo Henrique torna-se depois de ter vertido ldquode gram voontade o seu sangue antre os mouros pola paixom do Nosso Salvador Jesu Cristordquo (Indiculum 83) no maior Santo Cavaleiro da Tomada de Lisboa Na Alemanha ele estaacute totalmente desconhecido a natildeo ser no acircmbito da retoacuterica diplomaacutetica bila-teral na qual aparece natildeo como maacutertir mas como fundador dos ldquolaccedilos da amizade secular que liga o povo da Alemanha ao de Por-tugalrdquo (Ehrhardt 11) projectando a ajuda dos cruzados na geacutenese do reino de Portugal numa lsquolenda de auxiacuteliorsquo para todas as eacutepocas posteriores

Numa abordagem criacutetica observamos um duplo branqueamen-to (1) da memoacuteria do saque cruel e devastador da Lisboa moura perpetrado pelos cruzados colonenses e flandrenses e (2) da rela-ccedilatildeo colonizadora entre aliados no contexto da Europa Cingimo--nos no acircmbito deste estudo agrave anaacutelise do episoacutedio da torre moacutevel No romance a ideia da sua construccedilatildeo eacute atribuiacuteda ao cavaleiro Henrique manipulando as fontes histoacutericas que falam de engenhos militares em competiccedilatildeo entre os diferentes grupos eacutetnicos ou destacam ldquoum engenheiro italiano natural de Pisardquo36 O discurso profeacutetico de superioridade cultural deste cavaleiro revela os moti-vos desta escolha

Grandes satildeo as vantagens que a Portugal adviratildeo de imitar neste como noutros casos o que na Europa se vai fazendo de mais moderno ainda que ao princiacutepio experimenteis dificuldades em meter na cabeccedila as tecnologias novas eu por mim sei da construccedilatildeo das tais torres o suficiente para os naturais daqui (hellip) (251)

131Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Groszlige Vorteile sind Portugal gewiszlig wenn es in diesem wie in anderen Faumlllen nachahmt was man in Europa an houmlchst modernen Dingen tut mag es euch anfaumlnglich auch schwerfallen die neuen Techniken in euren Kopf hinein-zukriegen ich meinerseits weiszlig vom Bau besagter Tuumlrme hinreichend viel um die hiesigen Eingeborenen zu unter-richten () (305)

Mesmo a traduccedilatildeo alematilde transmite a ideia de que a fala do cavaleiro Henrique perante o primeiro rei portuguecircs conteacutem uma paroacutedia do discurso poliacutetico actual que natildeo se cansa de propagar a imitaccedilatildeo da Europa avanccedilada representada pela capacidade eco-noacutemica e tecnoloacutegica de Alemanha em competiccedilatildeo com outras na-ccedilotildees Ao mesmo tempo projecta-se ndash apresentado como verdade de fora ndash a auto-imagem humilhante dos ldquonaturaisrdquo37 como matildeo-de--obra sem formaccedilatildeo agrave mercecirc das decisotildees de governantes que pac-tuam com os estrangeiros (252) como condiccedilatildeo da proacutepria geacutenese nacional No entanto a derrota da torre tatildeo bem construiacuteda que conduz ateacute agrave morte do seu construtor faz surgir a criacutetica dos ldquoen-genhos estrangeiros que tanto podem estar a favor como contrardquo (316) parodiando-se assim tanto a lsquolenda de auxiacuteliorsquo e a atitude colonizadora como o projecto portuguecircs de modernizaccedilatildeo europeia (Grossegesse 1995 228)

Reservando uma anaacutelise da constelaccedilatildeo transcultural entre o ca-valeiro alematildeo Henrique a sua ldquobarregatilderdquo Ouroana38 e o soldado Mogueime para outra ocasiatildeo centramo-nos num aspecto de jogo intertextual que ainda recebeu pouca atenccedilatildeo Face agrave ausecircncia do episoacutedio da torre moacutevel e da personalidade de Henrique de Bona na epiacutestola dirigida a Osberno eacute significativo que o romance sara-maguiano invente ldquoapontamentos para a carta de Osbernordquo (308) contendo estes em todo pormenor a histoacuteria do cavaleiro Henri-que A explicaccedilatildeo psicanaliacutetica de Ersatz para esta escrita do Frei Rogeiro39 tambeacutem eacute vaacutelida para o revisor Raimundo que insere na sua reescrita do Cerco de Lisboa a histoacuteria da conquista amorosa de Ouroana por Mogueime possibilitada pela morte do cavaleiro

132Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

alematildeo que espelha ndash atraveacutes dos tempos ndash a sua proacutepria lsquoconquis-tarsquo de Maria Sara

Com a ficccedilatildeo do texto apoacutecrifo inaugura-se uma hibridizaccedilatildeo transcultural das proacuteprias fontes histoacutericas possibilitando um amalgamar das narrativas dos cruzados com a Histoacuteria nacional e o lendaacuterio portuguecircs que culmina na releitura dos milagres do cava-leiro Henrique em simultacircneo com os milagres de Santo Antoacutenio o padroeiro mais popular de Lisboa A intersecccedilatildeo de milagres de ambos pelas leituras simultacircneas de Maria Sara e Raimundo eacute um acto que subverte tanto a procura da verdade histoacuterica como o conceito de identidades delimitadas por territoacuterio sangue e liacutengua Numa espeacutecie de metalepse o proacuteprio Frei Rogeiro apoacutes ter com-pilado ldquoos apontamentos que havia tomado durante uma volta que dera por todos os arraiaisrdquo (331) participa no episoacutedio milagroso ldquoComo o cavaleyro Amrique apareccedileo em sonhos a hum homem botildeo e como lhe disse que soterasem seu escudeiro a par delerdquo (Croacute-nica 51 cf Indiculum 84-85) cumprindo o papel daquele homem bom natildeo identificado

Mais significativo nesta leitura de milagres transformada em reescrita paroacutedica eacute o destaque atribuiacutedo agrave questatildeo de identida-des processos de deslocaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo culminando na trans-formaccedilatildeo de um milagre do cavaleiro Henrique numa espeacutecie de contra-mito da origem da liacutengua portuguesa ao narrar o milagre dos dois homens surdos-mudos que se deitaram ao lado do moi-mento do cavaleiro (Indiculum 83-84 Croacutenica 50-51) realccedila-se a incerteza da identidade deles ldquotinham vindo na frota poreacutem natildeo se sabe se ingleses aquitanos bretotildees flandrenses ou colonen-sesrdquo (335) Estando os dois homens assim jazendo ldquoadormeceram ambos e apareceu-lhes em sonho logo o cavaleiro Henrique (hellip) e falou agravequeles mancebosrdquo (336) ndash natildeo sabemos em que liacutengua ndash anunciando a sua cura de duvidoso efeito

(hellip) e eles acordando acharam que podiam ouvir e falar tambeacutem poreacutem falavam como gagos e de maneira que natildeo se entendia que liacutengua estavam falando se a dos ingleses

133Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ou aquitanos ou bretotildees ou flandrenses ou colonenses ou conforme natildeo poucos afirmavam a liacutengua dos portu-gueses (336)

Esta manipulaccedilatildeo natildeo de fontes histoacutericas mas de uma len-da convida para uma leitura metadiscursiva em vez de ldquocom voz chlara (hellip) contar a todo o povo o milagre que Deos em eles fizerardquo (Croacutenica 51) os dois ficam gagos No entanto o problema natildeo consiste em entender o que eacute que eles dizem mas em identificar a liacutengua que eles falam Nesta leitura o milagre reinterpretado enfa-tiza a visatildeo de uma hibridizaccedilatildeo das liacutenguas e das identidades no entanto consciente da imperfeita capacidade comunicativa que eacute aplicaacutevel agraves questotildees de revisatildeo e traduccedilatildeo

Tal como o revisor Raimundo Silva dentro da ficccedilatildeo o tradutor reescreve um texto anterior no entanto noutra liacutengua e para um leitor com outro horizonte cultural A procedecircncia das fontes histoacute-ricas e a apropriaccedilatildeo do cavaleiro Henrique pelo discurso da iden-tidade portuguesa demonstram a ineficaacutecia das definiccedilotildees puras de identidade e alteridade Em vez da tentativa de uma reproduccedilatildeo de uma liacutengua na outra no fundo irrealizaacutevel a visatildeo da hibridiza-ccedilatildeo das liacutenguas e identidades advoga uma recriaccedilatildeo naturalmente sempre parcial e imperfeita daquela heterogeneidade que Histoacuteria do Cerco de Lisboa exibe ao narrar a procura de uma ldquoverdaderdquo que ldquonatildeo pode ser mais do que uma cara sobreposta agraves infinitas maacutescaras variantes (hellip)rdquo (26) Para tal activa-se ldquooutro tipo de relaccedilotildees entre os elementos (hellip) porque as coerccedilotildees impostas pelas liacutenguas levam a diferentes possibilidades de contextualizaccedilotildees de remissotildees de encadeamentos de atribuiccedilatildeo de valores entre os elementosrdquo (Rodrigues 205) Se o romance reflecte claramente a diffeacuterance (Derrida 1967) como princiacutepio universal40 destacando os processos de traduccedilatildeo e reescrita este princiacutepio deve ser vaacutelido tambeacutem para a proacutepria traduccedilatildeo como propotildee Cristina Carneiro Rodrigues na continuaccedilatildeo de Rosemary Arojo (1993)

134Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

O original vive sobrevive na e pela sua proacutepria transfor-maccedilatildeo produzida pela leitura A traduccedilatildeo natildeo transporta uma essecircncia natildeo troca ou substitui significados dados prontos em um texto por significados equivalentes em outra liacutengua A traduccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo em que o laquotexto originalraquo se daacute por sua proacutepria modificaccedilatildeo em sua trans-formaccedilatildeo (Rodrigues 206)

O romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa interrelaciona esta con-diccedilatildeo de cada texto ser texto de textos transferidos traduzidos de outros textos em contextos histoacutericos sempre diferentes com a criacutetica da lsquoorigemrsquo da identidade individual e colectiva no sentido de transculturalidade e da ldquoculturersquos hibridityrdquo (Bhabha 1989 38) ambas com base expliacutecita na diffeacuterance Se reactivarmos a teoria de Jean Ricardou (1973) relativamente ao nouveau roman podemos dizer que a aventura da leitura escrita do revisor prefigura uma aventura semelhante do tradutor Tal como o revisor transformado em tradutor e autor ele transmite uma Histoacuteria do Cerco de Lis-boa recriada para outro leitor neste caso um leitor alheio natildeo soacute agrave narraccedilatildeo tradicional desta histoacuteria num discurso identitaacuterio mas tambeacutem agrave integraccedilatildeo da sua identidade cultural neste discurso Isto torna a traduccedilatildeo deste romance uma aventura de leitura e reescrita em certa medida jaacute prevista na Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Se no processo de traduccedilatildeo o tradutor ou tradutora tem que necessariamente tomar o lugar do autor e se apossar de seu texto para que esse possa sobreviver em outra liacutengua natildeo haacute como eliminar esse momento de usurpaccedilatildeo e con-quista que a reflexatildeo desconstrutivista flagra e desmascara (Arrojo 1993 82)

Curiosamente Rosemary Arrojo emprega a mesma metaacutefora de conquista utilizada para a aventura de Raimundo Silva que abrange a conquista amorosa de Maria Sara41 Eacute precisamente a mulher

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

124Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Flamen Bologneser Bretonen Schotten und Normannen und aller durcheinander zu bezeichnen (56)

Portanto a palavra ldquoalgazarrardquo sugere nesta leitura transcul-tural do discurso reacutegio a relaccedilatildeo ambivalente galega aacuterabe como fundadora Esta insinuaccedilatildeo integra-se numa paroacutedia do discurso da identidade nacional nomeadamente na sua projecccedilatildeo anacroacutenica para a Idade Meacutedia ndash um aspecto que fica esbatido na traduccedilatildeo ale-matilde22 Uma leitura semelhante sugere a mensagem do rei de Eacutevora aos ldquoseus irmatildeos de Lisboardquo cuja traduccedilatildeo comentada ao portu-guecircs actual brinca com a identidade estereotipada de alentejanos

Aguentem aiacute os malvados que a minha tropa de alentejanos jaacute vai a caminho dizemo-lo assim por vir essa gente de aleacutem do Tejo ficando demonstrado de caminho que jaacute havia alentejanos antes de haver portugueses (176)

Para o leitor da traduccedilatildeo a existecircncia historicamente invertida de ldquoAlentejanerrdquo antes dos ldquoPortugiesenrdquo natildeo possui significado centrando-se a atenccedilatildeo na identificaccedilatildeo de ldquodiese Leute von jenseits des Tejordquo como ldquoAlentejanerrdquo (212) De facto a epiacutestola latina cita mensagens entre os mouros de Lisboa e o rei de Eacutevora desta-cando a ajuda de um inteacuterprete para poder incorporaacute-las no texto23 Obviamente a missiva reacutegia natildeo menciona alentejanos e transmite precisamente o contraacuterio a recusa do envio de tropas alegando a existecircncia de ldquotreacuteguas com o rei dos portuguesesrdquo (Conquista 64)

Estas manipulaccedilotildees mostram que Raimundo Silva eacute cada vez mais consciente da leitura escrita como cruzamento entre dimen-satildeo linguiacutestica e cultural no eixo temporal vaacutelido para a questatildeo da traduccedilatildeo24 no sentido das reflexotildees de Andreacute Lefevere (1992) Horst Turk (1992) e Susan Bassnett (1998) que analisam o texto tra-duzido ldquoembedded in its network of both source and target cultural signsrdquo (Bassnett9) Transcendo uma definiccedilatildeo estaacutetica de ldquocultural signsrdquo e da ldquohybridizationrdquo de Homi Bhabha podemos falar da

125Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

traduccedilatildeo como crioulizaccedilatildeo (Stoll 2005) com base em muacuteltiplos processos de mudanccedila sincroacutenicos e diacroacutenicos A paroacutedia da geacutenese da identidade portuguesa atraveacutes da criacutetica da pureza do texto-fonte (e da sua traduccedilatildeo) coincide com posiccedilotildees da historio-grafia moderna a conquista de Lisboa natildeo significa ndash conforme a Histoacuteria nacional tradicional ndash a vitoacuteria dos portugueses alcanccedilada com ajuda dos cruzados sobre os mouros significa isso sim a im-posiccedilatildeo militarmente bem sucedida do novo paradigma de pureza cristatilde implantada atraveacutes da ideologia colonizadora da Segunda Cruzada (114748) ao velho paradigma da convivecircncia segregada mais ou menos paciacutefica entre muccedilulmanos cristatildeos e judeus em estruturas poliacuteticas e sociais localmente autoacutenomas sob domiacutenio aacuterabe (Marques 68) O romance saramaguiano insinua esporadi-camente a crioulizaccedilatildeo da identidade portuguesa mas natildeo concede potencial identitaacuterio agraves populaccedilotildees cristatilde (moccedilaacuterabe) e judaica de Al-Usbuna sacrificadas por uma fracccedilatildeo dos cruzados ldquologo que o saque e o massacre exorbitaram das possibilidades de controlordquo (Marques 68) como conta em pormenor a epiacutestola Naturalmente destaca-se o bom comportamento dos ingleses e normandos (identi-dade de quem escreve) em contraste com o massacre e a devastaccedilatildeo perpetrados pelos colonenses e flamengos que ateacute matam o bispo da cidade moura25

Portanto o des-narrar saramaguiano natildeo empreende um deslo-camento transcultural tatildeo audaz como por exemplo La reivindi-cacioacuten del conde don Juliaacuten (1970) de Juan Goytisolo26 Naquele romance o narrador recupera atraveacutes da sua identificaccedilatildeo com o miacutetico lsquotraidorrsquo D Juliatildeo a identidade aacuterabe e moccedilaacuterabe termi-nando com o anuacutencio do lado aacuterabe ldquomantildeana seraacute otro diacutea la invasioacuten recomenzaraacuterdquo No entanto existe em Histoacuteria do Cerco um almuadem cego que preenche claramente o lugar do bispo anti-quiacutessimo a ser degolado como aquele por ldquoum soldado cristatildeo de mais zelosa feacuterdquo (348) A sua cegueira paradoxalmente visionaacuteria da Lisboa moura sitiada eacute contraacuteria daquela de ldquoira sanguinaacuteriardquo do seu assassino identificado como ldquoo cruzado Osberno soacute igual de nomerdquo (Saramago 40) introduzindo-se assim deliberadamente

126Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

uma homoniacutemia com o Osberno da epiacutestola (ainda tratado ndash errone-amente ndash como o seu autor) novamente recordada em ldquoo cruzado Osberno poreacutem natildeo o talrdquo27

Esta duplicaccedilatildeo de identidades com o mesmo nome adverte o leitor para ficar atento perante redefiniccedilotildees identitaacuterias como por exemplo dos sitiadores chamados ldquoos francos e os galegosrdquo28 sob comando dos cruzados e ldquoIbn Arrinque o Galegordquo (74) na perspetiva dos mouros recriada na mente de Raimundo Silva O almuadem na sua torre complementa ndash atraveacutes dos tempos ndash a posiccedilatildeo de Raimundo Silva ldquoque hoje quase tatildeo cego se vecirc como elerdquo (33) Significativamente o revisor apercebe-se ldquode que mora no preciso lugar onde antigamente se abria a Porta de Alfofardquo configurando-se assim topograficamente a incerteza (que corresponde ao des-narrar) ldquose Raimundo Silva eacute um si-tiado ou um sitiante vencedor futuro ou perdedor sem remeacutediordquo (75) Nos seus passeios por Lisboa ele revivifica uma cidade dividida entre zonas dos sitiados e dos atacantes entretecendo ldquodois temposrdquo (242) passado e presente29 A ambiguidade nos eixos de lugar e tempo transfere-se natildeo soacute agrave histoacuteria aplicando o tema da cegueira ateacute ao processo da sua recepccedilatildeo ldquo(hellip) esta [histoacuteria] de agora comeccedilada soacute poderaacute lecirc-la quem os olhos ti-ver luacutecidos e abertos natildeo um cegordquo (243) transfere-se tambeacutem agrave liacutengua na qual estaacute escrita o texto insinuando-se um regresso a outra fonte nas duas dimensotildees de identidade cultural e texto que evoca aquela transformaccedilatildeo da liacutengua castelhana em aacuterabe realizada nas uacuteltimas duas paacuteginas de Juan sin Tierra (1975) de Juan Goytisolo ldquo(hellip) as matildeos de Raimundo Silva pousam sobre a uacuteltima folha escrita umas linhas negras indecifraacuteveis talvez de araacutebiga liacutengua natildeo estivemos atentos agrave voz do almuademrdquo (Sara-mago 243) Na accedilatildeo mediadora do revisor confluem a voz aacuterabe do almuadem e a escrita latina do cleacuterigo Roger Na reescrita inicialmente soacute mental do lsquolivro do historiadorrsquo Raimundo Sil-va procura uma reconstruccedilatildeo contextualizada de ambos os lados (cristatildeos muccedilulmanos) por exemplo corrigindo o significado da cegueira do almuadem

127Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

() natildeo foi erro escrever porque enfim escrito estaacute que era cego o almuadem O historiador soacute fala de minarete e muezim talvez ignorasse que quase todos os almuadens naquele tempo e por muito tempo depois eram cegos (29

() es war kein Fehler und geschrieben ist es nun mal daszlig der Muezzin blind war Der Historiker der da lediglich von Minarett und Muezzin schreibt wuszligte vielleicht nicht daszlig fast alle Muezzins damals und noch lange danach blind waren (32)

O revisor identifica ldquominareterdquo e ldquomuezimrdquo como palavras li-gadas ao orientalismo dos seacuteculos XVIII e XIX Apesar de ser um fenoacutemeno transnacional europeu o orientalismo teve maior atracccedilatildeo na cultura francesa que espalhou para outras liacutenguas eu-ropeias as vozes aacuterabes importadas pela via oriental o Impeacuterio Otomano (Turquia) na sua expansatildeo europeia a partir do seacuteculo XIV (ponto alto conquista de Constantinopla em 1453) tinha dei-xado vestiacutegios nomeadamente na cultura austriacuteaca no acircmbito dos Tuumlrkenkriege (ponto de viragem Cerco de Viena em 1683) que serviram de base para o orientalismo francecircs Raimundo Silva pre-fere o uso da palavra ldquoalmuademrdquo de maior e mais antiga presen-ccedila na liacutengua portuguesa30 importada directamente e recuperada no Romantismo pelas Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano tal como ldquoalmaacutedenardquo em vez de ldquominareterdquo (Machado 62) A tra-duccedilatildeo alematilde natildeo assinala esta tentativa de maior lsquopurezarsquo histoacuterica no discurso sobre a identidade moura mantendo a denominaccedilatildeo invariaacutevel ldquoMuezzinrdquo embora exista a alternativa lexical menos usada de ldquoMuaddhinrdquo (Brockhaus 229)31

No contexto do pensamento poacutes-colonial esta reaquisiccedilatildeo dos processos de imaginaccedilatildeo depois das imposiccedilotildees coloniais europeias que comeccedila em princiacutepio pelo Romantismo (Herculano Garrett) revela a raiz histoacuterica da especificidade relacional portuguesa co-lonizada colonizadora isto eacute a harmonizaccedilatildeo mais ou menos voluntaacuteria da poliacutetica existente de poder regional na Peniacutensula Ibeacute-

128Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

rica com a ideologia colonizadora das cruzadas Para aleacutem de uma subtil reivindicaccedilatildeo da identidade moura Histoacuteria do Cerco de Lisboa se cinge quase unicamente agrave revisatildeo da identidade conquis-tadora na qual entra a identidade alematilde ndash um aspecto importante para a traduccedilatildeo Assim estabelece-se uma certa inversatildeo embora natildeo perfeita de identidade alteridade em geral o leitor alematildeo estaacute pouco familiarizado com a geacutenese da identidade portuguesa e ignora a configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica que eacute responsaacutevel pelo excesso identitaacuterio desconhecendo tambeacutem a participaccedilatildeo bem documentada de actores vindos de terras alematildes Eles aparecem no romance logo quando Raimundo Silva comeccedila a reler a epiacutestola na sua procura da ldquofonte limpardquo

(hellip) a informaccedilatildeo eacute de boa origem diz-se que directamente do ceacutelebre Osberno e assim podemos ficar a saber que es-tava o conde Arnoldo de Aarschot o qual comandava os guerreiros vindos de diversas partes do impeacuterio germacircni-co que estava Cristiano de Gistell chefe dos flamengos e bolonheses (hellip) (124)

Seguindo a teia intertextual regressamos ao texto-fonte que em contraste com a citada Croacutenica de Portugal de 1419 narra na perspectiva de uma expediccedilatildeo militar

Igitur apud portum de Dertemunde diversarum nationum et morum et linguarum gentes navibus cicrciter CLXIIII convenere Horum omnium trifariam partitur exercitus Sub comite Arnoldo de Arescot nepote Godefridi ducis a romani imperii partibus secedit exercitus Sub Christiano de Gistello flandrenses et bononenses32

A mudanccedila para ldquoimpeacuterio germacircnicordquo (124) corresponde agrave nota explicativa do tradutor JA de Oliveira33 No entanto natildeo se expli-

129Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ca a substituiccedilatildeo de ldquobononensesrdquo por ldquobolonhesesrdquo Naturalmen-te as duas mudanccedilas reflectem-se na traduccedilatildeo alematilde que toma o romance saramaguiano como texto-fonte

(hellip) Information aus verlaumlszliglicher Quelle dem Vernehmen nach direkt vom beruumlhmten Osberno persoumlnlich und also koumlnnen wir uns vergewissern daszlig da Graf Arnoldo de Aar-schot zugegen war der die aus verschiedenen Regionen des deutschen Kaiserreiches herbeigestroumlmten Krieger befehlig-te und Cristiano de Gistell der den Flamen und Bologne-sern vorstand (hellip) (150)

Na traduccedilatildeo alematilde nomes proacuteprios estrangeiros natildeo satildeo lsquore-patriadosrsquo nem o proacuteprio Osberne nem Arnold ou Christian que ficam todos na grafia romacircnica No entanto ldquoimpeacuterio germacircni-cordquo passa para ldquodeutsches Kaiserreichrdquo uma traduccedilatildeo que insinua uma projecccedilatildeo anacroacutenica do seacuteculo XIX (refundaccedilatildeo do Heiliges Roumlmisches Reich Deutscher Nation como Deutsches Kaiserreich em 1871) natildeo pretendida no texto-fonte Naturalmente a traduccedilatildeo alematilde ignora a possibilidade latente jaacute apagada no texto sarama-guiano de encontrar a identidade alematilde nos ldquobononensesrdquo mal transcritos em ldquobolonhesesrdquo34 Esta transcriccedilatildeo defeituosa surpre-ende porque eacute a personalidade do cavaleiro Henrique de Bona ausente na epiacutestola35 que teve o maior relevo individual na histo-riografia portuguesa entre os ldquosamtos cavaleyros martiresrdquo

Nesta tomada de Lisboa morerom alguns cavaleyros como martires e depois faziam muytos milagres amtre os quaes foy hum cavaleyro chamado Amriqe alematildeo o qual era de hũa vila que chamom Bona posta jumto de Colonha o qual foy enterado em Sam Viccedilemte honde fazia muytos milagres (hellip) (Croacutenica 50)

130Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Merecendo destaque na histoacuteria da fundaccedilatildeo do mosteiro de Satildeo Vicente com episoacutedios de acccedilatildeo milagrosa depois de morto (Indiculum 83-85 Croacutenica 50-52) Henrique de Bona torna-se uma personagem da Histoacuteria portuguesa digna de entrar nrsquo Os Lu-siacuteadas (VIII 18) Procede-se a uma apropriaccedilatildeo do estrangeiro colonizador o alematildeo Henrique torna-se depois de ter vertido ldquode gram voontade o seu sangue antre os mouros pola paixom do Nosso Salvador Jesu Cristordquo (Indiculum 83) no maior Santo Cavaleiro da Tomada de Lisboa Na Alemanha ele estaacute totalmente desconhecido a natildeo ser no acircmbito da retoacuterica diplomaacutetica bila-teral na qual aparece natildeo como maacutertir mas como fundador dos ldquolaccedilos da amizade secular que liga o povo da Alemanha ao de Por-tugalrdquo (Ehrhardt 11) projectando a ajuda dos cruzados na geacutenese do reino de Portugal numa lsquolenda de auxiacuteliorsquo para todas as eacutepocas posteriores

Numa abordagem criacutetica observamos um duplo branqueamen-to (1) da memoacuteria do saque cruel e devastador da Lisboa moura perpetrado pelos cruzados colonenses e flandrenses e (2) da rela-ccedilatildeo colonizadora entre aliados no contexto da Europa Cingimo--nos no acircmbito deste estudo agrave anaacutelise do episoacutedio da torre moacutevel No romance a ideia da sua construccedilatildeo eacute atribuiacuteda ao cavaleiro Henrique manipulando as fontes histoacutericas que falam de engenhos militares em competiccedilatildeo entre os diferentes grupos eacutetnicos ou destacam ldquoum engenheiro italiano natural de Pisardquo36 O discurso profeacutetico de superioridade cultural deste cavaleiro revela os moti-vos desta escolha

Grandes satildeo as vantagens que a Portugal adviratildeo de imitar neste como noutros casos o que na Europa se vai fazendo de mais moderno ainda que ao princiacutepio experimenteis dificuldades em meter na cabeccedila as tecnologias novas eu por mim sei da construccedilatildeo das tais torres o suficiente para os naturais daqui (hellip) (251)

131Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Groszlige Vorteile sind Portugal gewiszlig wenn es in diesem wie in anderen Faumlllen nachahmt was man in Europa an houmlchst modernen Dingen tut mag es euch anfaumlnglich auch schwerfallen die neuen Techniken in euren Kopf hinein-zukriegen ich meinerseits weiszlig vom Bau besagter Tuumlrme hinreichend viel um die hiesigen Eingeborenen zu unter-richten () (305)

Mesmo a traduccedilatildeo alematilde transmite a ideia de que a fala do cavaleiro Henrique perante o primeiro rei portuguecircs conteacutem uma paroacutedia do discurso poliacutetico actual que natildeo se cansa de propagar a imitaccedilatildeo da Europa avanccedilada representada pela capacidade eco-noacutemica e tecnoloacutegica de Alemanha em competiccedilatildeo com outras na-ccedilotildees Ao mesmo tempo projecta-se ndash apresentado como verdade de fora ndash a auto-imagem humilhante dos ldquonaturaisrdquo37 como matildeo-de--obra sem formaccedilatildeo agrave mercecirc das decisotildees de governantes que pac-tuam com os estrangeiros (252) como condiccedilatildeo da proacutepria geacutenese nacional No entanto a derrota da torre tatildeo bem construiacuteda que conduz ateacute agrave morte do seu construtor faz surgir a criacutetica dos ldquoen-genhos estrangeiros que tanto podem estar a favor como contrardquo (316) parodiando-se assim tanto a lsquolenda de auxiacuteliorsquo e a atitude colonizadora como o projecto portuguecircs de modernizaccedilatildeo europeia (Grossegesse 1995 228)

Reservando uma anaacutelise da constelaccedilatildeo transcultural entre o ca-valeiro alematildeo Henrique a sua ldquobarregatilderdquo Ouroana38 e o soldado Mogueime para outra ocasiatildeo centramo-nos num aspecto de jogo intertextual que ainda recebeu pouca atenccedilatildeo Face agrave ausecircncia do episoacutedio da torre moacutevel e da personalidade de Henrique de Bona na epiacutestola dirigida a Osberno eacute significativo que o romance sara-maguiano invente ldquoapontamentos para a carta de Osbernordquo (308) contendo estes em todo pormenor a histoacuteria do cavaleiro Henri-que A explicaccedilatildeo psicanaliacutetica de Ersatz para esta escrita do Frei Rogeiro39 tambeacutem eacute vaacutelida para o revisor Raimundo que insere na sua reescrita do Cerco de Lisboa a histoacuteria da conquista amorosa de Ouroana por Mogueime possibilitada pela morte do cavaleiro

132Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

alematildeo que espelha ndash atraveacutes dos tempos ndash a sua proacutepria lsquoconquis-tarsquo de Maria Sara

Com a ficccedilatildeo do texto apoacutecrifo inaugura-se uma hibridizaccedilatildeo transcultural das proacuteprias fontes histoacutericas possibilitando um amalgamar das narrativas dos cruzados com a Histoacuteria nacional e o lendaacuterio portuguecircs que culmina na releitura dos milagres do cava-leiro Henrique em simultacircneo com os milagres de Santo Antoacutenio o padroeiro mais popular de Lisboa A intersecccedilatildeo de milagres de ambos pelas leituras simultacircneas de Maria Sara e Raimundo eacute um acto que subverte tanto a procura da verdade histoacuterica como o conceito de identidades delimitadas por territoacuterio sangue e liacutengua Numa espeacutecie de metalepse o proacuteprio Frei Rogeiro apoacutes ter com-pilado ldquoos apontamentos que havia tomado durante uma volta que dera por todos os arraiaisrdquo (331) participa no episoacutedio milagroso ldquoComo o cavaleyro Amrique apareccedileo em sonhos a hum homem botildeo e como lhe disse que soterasem seu escudeiro a par delerdquo (Croacute-nica 51 cf Indiculum 84-85) cumprindo o papel daquele homem bom natildeo identificado

Mais significativo nesta leitura de milagres transformada em reescrita paroacutedica eacute o destaque atribuiacutedo agrave questatildeo de identida-des processos de deslocaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo culminando na trans-formaccedilatildeo de um milagre do cavaleiro Henrique numa espeacutecie de contra-mito da origem da liacutengua portuguesa ao narrar o milagre dos dois homens surdos-mudos que se deitaram ao lado do moi-mento do cavaleiro (Indiculum 83-84 Croacutenica 50-51) realccedila-se a incerteza da identidade deles ldquotinham vindo na frota poreacutem natildeo se sabe se ingleses aquitanos bretotildees flandrenses ou colonen-sesrdquo (335) Estando os dois homens assim jazendo ldquoadormeceram ambos e apareceu-lhes em sonho logo o cavaleiro Henrique (hellip) e falou agravequeles mancebosrdquo (336) ndash natildeo sabemos em que liacutengua ndash anunciando a sua cura de duvidoso efeito

(hellip) e eles acordando acharam que podiam ouvir e falar tambeacutem poreacutem falavam como gagos e de maneira que natildeo se entendia que liacutengua estavam falando se a dos ingleses

133Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ou aquitanos ou bretotildees ou flandrenses ou colonenses ou conforme natildeo poucos afirmavam a liacutengua dos portu-gueses (336)

Esta manipulaccedilatildeo natildeo de fontes histoacutericas mas de uma len-da convida para uma leitura metadiscursiva em vez de ldquocom voz chlara (hellip) contar a todo o povo o milagre que Deos em eles fizerardquo (Croacutenica 51) os dois ficam gagos No entanto o problema natildeo consiste em entender o que eacute que eles dizem mas em identificar a liacutengua que eles falam Nesta leitura o milagre reinterpretado enfa-tiza a visatildeo de uma hibridizaccedilatildeo das liacutenguas e das identidades no entanto consciente da imperfeita capacidade comunicativa que eacute aplicaacutevel agraves questotildees de revisatildeo e traduccedilatildeo

Tal como o revisor Raimundo Silva dentro da ficccedilatildeo o tradutor reescreve um texto anterior no entanto noutra liacutengua e para um leitor com outro horizonte cultural A procedecircncia das fontes histoacute-ricas e a apropriaccedilatildeo do cavaleiro Henrique pelo discurso da iden-tidade portuguesa demonstram a ineficaacutecia das definiccedilotildees puras de identidade e alteridade Em vez da tentativa de uma reproduccedilatildeo de uma liacutengua na outra no fundo irrealizaacutevel a visatildeo da hibridiza-ccedilatildeo das liacutenguas e identidades advoga uma recriaccedilatildeo naturalmente sempre parcial e imperfeita daquela heterogeneidade que Histoacuteria do Cerco de Lisboa exibe ao narrar a procura de uma ldquoverdaderdquo que ldquonatildeo pode ser mais do que uma cara sobreposta agraves infinitas maacutescaras variantes (hellip)rdquo (26) Para tal activa-se ldquooutro tipo de relaccedilotildees entre os elementos (hellip) porque as coerccedilotildees impostas pelas liacutenguas levam a diferentes possibilidades de contextualizaccedilotildees de remissotildees de encadeamentos de atribuiccedilatildeo de valores entre os elementosrdquo (Rodrigues 205) Se o romance reflecte claramente a diffeacuterance (Derrida 1967) como princiacutepio universal40 destacando os processos de traduccedilatildeo e reescrita este princiacutepio deve ser vaacutelido tambeacutem para a proacutepria traduccedilatildeo como propotildee Cristina Carneiro Rodrigues na continuaccedilatildeo de Rosemary Arojo (1993)

134Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

O original vive sobrevive na e pela sua proacutepria transfor-maccedilatildeo produzida pela leitura A traduccedilatildeo natildeo transporta uma essecircncia natildeo troca ou substitui significados dados prontos em um texto por significados equivalentes em outra liacutengua A traduccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo em que o laquotexto originalraquo se daacute por sua proacutepria modificaccedilatildeo em sua trans-formaccedilatildeo (Rodrigues 206)

O romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa interrelaciona esta con-diccedilatildeo de cada texto ser texto de textos transferidos traduzidos de outros textos em contextos histoacutericos sempre diferentes com a criacutetica da lsquoorigemrsquo da identidade individual e colectiva no sentido de transculturalidade e da ldquoculturersquos hibridityrdquo (Bhabha 1989 38) ambas com base expliacutecita na diffeacuterance Se reactivarmos a teoria de Jean Ricardou (1973) relativamente ao nouveau roman podemos dizer que a aventura da leitura escrita do revisor prefigura uma aventura semelhante do tradutor Tal como o revisor transformado em tradutor e autor ele transmite uma Histoacuteria do Cerco de Lis-boa recriada para outro leitor neste caso um leitor alheio natildeo soacute agrave narraccedilatildeo tradicional desta histoacuteria num discurso identitaacuterio mas tambeacutem agrave integraccedilatildeo da sua identidade cultural neste discurso Isto torna a traduccedilatildeo deste romance uma aventura de leitura e reescrita em certa medida jaacute prevista na Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Se no processo de traduccedilatildeo o tradutor ou tradutora tem que necessariamente tomar o lugar do autor e se apossar de seu texto para que esse possa sobreviver em outra liacutengua natildeo haacute como eliminar esse momento de usurpaccedilatildeo e con-quista que a reflexatildeo desconstrutivista flagra e desmascara (Arrojo 1993 82)

Curiosamente Rosemary Arrojo emprega a mesma metaacutefora de conquista utilizada para a aventura de Raimundo Silva que abrange a conquista amorosa de Maria Sara41 Eacute precisamente a mulher

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

125Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

traduccedilatildeo como crioulizaccedilatildeo (Stoll 2005) com base em muacuteltiplos processos de mudanccedila sincroacutenicos e diacroacutenicos A paroacutedia da geacutenese da identidade portuguesa atraveacutes da criacutetica da pureza do texto-fonte (e da sua traduccedilatildeo) coincide com posiccedilotildees da historio-grafia moderna a conquista de Lisboa natildeo significa ndash conforme a Histoacuteria nacional tradicional ndash a vitoacuteria dos portugueses alcanccedilada com ajuda dos cruzados sobre os mouros significa isso sim a im-posiccedilatildeo militarmente bem sucedida do novo paradigma de pureza cristatilde implantada atraveacutes da ideologia colonizadora da Segunda Cruzada (114748) ao velho paradigma da convivecircncia segregada mais ou menos paciacutefica entre muccedilulmanos cristatildeos e judeus em estruturas poliacuteticas e sociais localmente autoacutenomas sob domiacutenio aacuterabe (Marques 68) O romance saramaguiano insinua esporadi-camente a crioulizaccedilatildeo da identidade portuguesa mas natildeo concede potencial identitaacuterio agraves populaccedilotildees cristatilde (moccedilaacuterabe) e judaica de Al-Usbuna sacrificadas por uma fracccedilatildeo dos cruzados ldquologo que o saque e o massacre exorbitaram das possibilidades de controlordquo (Marques 68) como conta em pormenor a epiacutestola Naturalmente destaca-se o bom comportamento dos ingleses e normandos (identi-dade de quem escreve) em contraste com o massacre e a devastaccedilatildeo perpetrados pelos colonenses e flamengos que ateacute matam o bispo da cidade moura25

Portanto o des-narrar saramaguiano natildeo empreende um deslo-camento transcultural tatildeo audaz como por exemplo La reivindi-cacioacuten del conde don Juliaacuten (1970) de Juan Goytisolo26 Naquele romance o narrador recupera atraveacutes da sua identificaccedilatildeo com o miacutetico lsquotraidorrsquo D Juliatildeo a identidade aacuterabe e moccedilaacuterabe termi-nando com o anuacutencio do lado aacuterabe ldquomantildeana seraacute otro diacutea la invasioacuten recomenzaraacuterdquo No entanto existe em Histoacuteria do Cerco um almuadem cego que preenche claramente o lugar do bispo anti-quiacutessimo a ser degolado como aquele por ldquoum soldado cristatildeo de mais zelosa feacuterdquo (348) A sua cegueira paradoxalmente visionaacuteria da Lisboa moura sitiada eacute contraacuteria daquela de ldquoira sanguinaacuteriardquo do seu assassino identificado como ldquoo cruzado Osberno soacute igual de nomerdquo (Saramago 40) introduzindo-se assim deliberadamente

126Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

uma homoniacutemia com o Osberno da epiacutestola (ainda tratado ndash errone-amente ndash como o seu autor) novamente recordada em ldquoo cruzado Osberno poreacutem natildeo o talrdquo27

Esta duplicaccedilatildeo de identidades com o mesmo nome adverte o leitor para ficar atento perante redefiniccedilotildees identitaacuterias como por exemplo dos sitiadores chamados ldquoos francos e os galegosrdquo28 sob comando dos cruzados e ldquoIbn Arrinque o Galegordquo (74) na perspetiva dos mouros recriada na mente de Raimundo Silva O almuadem na sua torre complementa ndash atraveacutes dos tempos ndash a posiccedilatildeo de Raimundo Silva ldquoque hoje quase tatildeo cego se vecirc como elerdquo (33) Significativamente o revisor apercebe-se ldquode que mora no preciso lugar onde antigamente se abria a Porta de Alfofardquo configurando-se assim topograficamente a incerteza (que corresponde ao des-narrar) ldquose Raimundo Silva eacute um si-tiado ou um sitiante vencedor futuro ou perdedor sem remeacutediordquo (75) Nos seus passeios por Lisboa ele revivifica uma cidade dividida entre zonas dos sitiados e dos atacantes entretecendo ldquodois temposrdquo (242) passado e presente29 A ambiguidade nos eixos de lugar e tempo transfere-se natildeo soacute agrave histoacuteria aplicando o tema da cegueira ateacute ao processo da sua recepccedilatildeo ldquo(hellip) esta [histoacuteria] de agora comeccedilada soacute poderaacute lecirc-la quem os olhos ti-ver luacutecidos e abertos natildeo um cegordquo (243) transfere-se tambeacutem agrave liacutengua na qual estaacute escrita o texto insinuando-se um regresso a outra fonte nas duas dimensotildees de identidade cultural e texto que evoca aquela transformaccedilatildeo da liacutengua castelhana em aacuterabe realizada nas uacuteltimas duas paacuteginas de Juan sin Tierra (1975) de Juan Goytisolo ldquo(hellip) as matildeos de Raimundo Silva pousam sobre a uacuteltima folha escrita umas linhas negras indecifraacuteveis talvez de araacutebiga liacutengua natildeo estivemos atentos agrave voz do almuademrdquo (Sara-mago 243) Na accedilatildeo mediadora do revisor confluem a voz aacuterabe do almuadem e a escrita latina do cleacuterigo Roger Na reescrita inicialmente soacute mental do lsquolivro do historiadorrsquo Raimundo Sil-va procura uma reconstruccedilatildeo contextualizada de ambos os lados (cristatildeos muccedilulmanos) por exemplo corrigindo o significado da cegueira do almuadem

127Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

() natildeo foi erro escrever porque enfim escrito estaacute que era cego o almuadem O historiador soacute fala de minarete e muezim talvez ignorasse que quase todos os almuadens naquele tempo e por muito tempo depois eram cegos (29

() es war kein Fehler und geschrieben ist es nun mal daszlig der Muezzin blind war Der Historiker der da lediglich von Minarett und Muezzin schreibt wuszligte vielleicht nicht daszlig fast alle Muezzins damals und noch lange danach blind waren (32)

O revisor identifica ldquominareterdquo e ldquomuezimrdquo como palavras li-gadas ao orientalismo dos seacuteculos XVIII e XIX Apesar de ser um fenoacutemeno transnacional europeu o orientalismo teve maior atracccedilatildeo na cultura francesa que espalhou para outras liacutenguas eu-ropeias as vozes aacuterabes importadas pela via oriental o Impeacuterio Otomano (Turquia) na sua expansatildeo europeia a partir do seacuteculo XIV (ponto alto conquista de Constantinopla em 1453) tinha dei-xado vestiacutegios nomeadamente na cultura austriacuteaca no acircmbito dos Tuumlrkenkriege (ponto de viragem Cerco de Viena em 1683) que serviram de base para o orientalismo francecircs Raimundo Silva pre-fere o uso da palavra ldquoalmuademrdquo de maior e mais antiga presen-ccedila na liacutengua portuguesa30 importada directamente e recuperada no Romantismo pelas Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano tal como ldquoalmaacutedenardquo em vez de ldquominareterdquo (Machado 62) A tra-duccedilatildeo alematilde natildeo assinala esta tentativa de maior lsquopurezarsquo histoacuterica no discurso sobre a identidade moura mantendo a denominaccedilatildeo invariaacutevel ldquoMuezzinrdquo embora exista a alternativa lexical menos usada de ldquoMuaddhinrdquo (Brockhaus 229)31

No contexto do pensamento poacutes-colonial esta reaquisiccedilatildeo dos processos de imaginaccedilatildeo depois das imposiccedilotildees coloniais europeias que comeccedila em princiacutepio pelo Romantismo (Herculano Garrett) revela a raiz histoacuterica da especificidade relacional portuguesa co-lonizada colonizadora isto eacute a harmonizaccedilatildeo mais ou menos voluntaacuteria da poliacutetica existente de poder regional na Peniacutensula Ibeacute-

128Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

rica com a ideologia colonizadora das cruzadas Para aleacutem de uma subtil reivindicaccedilatildeo da identidade moura Histoacuteria do Cerco de Lisboa se cinge quase unicamente agrave revisatildeo da identidade conquis-tadora na qual entra a identidade alematilde ndash um aspecto importante para a traduccedilatildeo Assim estabelece-se uma certa inversatildeo embora natildeo perfeita de identidade alteridade em geral o leitor alematildeo estaacute pouco familiarizado com a geacutenese da identidade portuguesa e ignora a configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica que eacute responsaacutevel pelo excesso identitaacuterio desconhecendo tambeacutem a participaccedilatildeo bem documentada de actores vindos de terras alematildes Eles aparecem no romance logo quando Raimundo Silva comeccedila a reler a epiacutestola na sua procura da ldquofonte limpardquo

(hellip) a informaccedilatildeo eacute de boa origem diz-se que directamente do ceacutelebre Osberno e assim podemos ficar a saber que es-tava o conde Arnoldo de Aarschot o qual comandava os guerreiros vindos de diversas partes do impeacuterio germacircni-co que estava Cristiano de Gistell chefe dos flamengos e bolonheses (hellip) (124)

Seguindo a teia intertextual regressamos ao texto-fonte que em contraste com a citada Croacutenica de Portugal de 1419 narra na perspectiva de uma expediccedilatildeo militar

Igitur apud portum de Dertemunde diversarum nationum et morum et linguarum gentes navibus cicrciter CLXIIII convenere Horum omnium trifariam partitur exercitus Sub comite Arnoldo de Arescot nepote Godefridi ducis a romani imperii partibus secedit exercitus Sub Christiano de Gistello flandrenses et bononenses32

A mudanccedila para ldquoimpeacuterio germacircnicordquo (124) corresponde agrave nota explicativa do tradutor JA de Oliveira33 No entanto natildeo se expli-

129Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ca a substituiccedilatildeo de ldquobononensesrdquo por ldquobolonhesesrdquo Naturalmen-te as duas mudanccedilas reflectem-se na traduccedilatildeo alematilde que toma o romance saramaguiano como texto-fonte

(hellip) Information aus verlaumlszliglicher Quelle dem Vernehmen nach direkt vom beruumlhmten Osberno persoumlnlich und also koumlnnen wir uns vergewissern daszlig da Graf Arnoldo de Aar-schot zugegen war der die aus verschiedenen Regionen des deutschen Kaiserreiches herbeigestroumlmten Krieger befehlig-te und Cristiano de Gistell der den Flamen und Bologne-sern vorstand (hellip) (150)

Na traduccedilatildeo alematilde nomes proacuteprios estrangeiros natildeo satildeo lsquore-patriadosrsquo nem o proacuteprio Osberne nem Arnold ou Christian que ficam todos na grafia romacircnica No entanto ldquoimpeacuterio germacircni-cordquo passa para ldquodeutsches Kaiserreichrdquo uma traduccedilatildeo que insinua uma projecccedilatildeo anacroacutenica do seacuteculo XIX (refundaccedilatildeo do Heiliges Roumlmisches Reich Deutscher Nation como Deutsches Kaiserreich em 1871) natildeo pretendida no texto-fonte Naturalmente a traduccedilatildeo alematilde ignora a possibilidade latente jaacute apagada no texto sarama-guiano de encontrar a identidade alematilde nos ldquobononensesrdquo mal transcritos em ldquobolonhesesrdquo34 Esta transcriccedilatildeo defeituosa surpre-ende porque eacute a personalidade do cavaleiro Henrique de Bona ausente na epiacutestola35 que teve o maior relevo individual na histo-riografia portuguesa entre os ldquosamtos cavaleyros martiresrdquo

Nesta tomada de Lisboa morerom alguns cavaleyros como martires e depois faziam muytos milagres amtre os quaes foy hum cavaleyro chamado Amriqe alematildeo o qual era de hũa vila que chamom Bona posta jumto de Colonha o qual foy enterado em Sam Viccedilemte honde fazia muytos milagres (hellip) (Croacutenica 50)

130Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Merecendo destaque na histoacuteria da fundaccedilatildeo do mosteiro de Satildeo Vicente com episoacutedios de acccedilatildeo milagrosa depois de morto (Indiculum 83-85 Croacutenica 50-52) Henrique de Bona torna-se uma personagem da Histoacuteria portuguesa digna de entrar nrsquo Os Lu-siacuteadas (VIII 18) Procede-se a uma apropriaccedilatildeo do estrangeiro colonizador o alematildeo Henrique torna-se depois de ter vertido ldquode gram voontade o seu sangue antre os mouros pola paixom do Nosso Salvador Jesu Cristordquo (Indiculum 83) no maior Santo Cavaleiro da Tomada de Lisboa Na Alemanha ele estaacute totalmente desconhecido a natildeo ser no acircmbito da retoacuterica diplomaacutetica bila-teral na qual aparece natildeo como maacutertir mas como fundador dos ldquolaccedilos da amizade secular que liga o povo da Alemanha ao de Por-tugalrdquo (Ehrhardt 11) projectando a ajuda dos cruzados na geacutenese do reino de Portugal numa lsquolenda de auxiacuteliorsquo para todas as eacutepocas posteriores

Numa abordagem criacutetica observamos um duplo branqueamen-to (1) da memoacuteria do saque cruel e devastador da Lisboa moura perpetrado pelos cruzados colonenses e flandrenses e (2) da rela-ccedilatildeo colonizadora entre aliados no contexto da Europa Cingimo--nos no acircmbito deste estudo agrave anaacutelise do episoacutedio da torre moacutevel No romance a ideia da sua construccedilatildeo eacute atribuiacuteda ao cavaleiro Henrique manipulando as fontes histoacutericas que falam de engenhos militares em competiccedilatildeo entre os diferentes grupos eacutetnicos ou destacam ldquoum engenheiro italiano natural de Pisardquo36 O discurso profeacutetico de superioridade cultural deste cavaleiro revela os moti-vos desta escolha

Grandes satildeo as vantagens que a Portugal adviratildeo de imitar neste como noutros casos o que na Europa se vai fazendo de mais moderno ainda que ao princiacutepio experimenteis dificuldades em meter na cabeccedila as tecnologias novas eu por mim sei da construccedilatildeo das tais torres o suficiente para os naturais daqui (hellip) (251)

131Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Groszlige Vorteile sind Portugal gewiszlig wenn es in diesem wie in anderen Faumlllen nachahmt was man in Europa an houmlchst modernen Dingen tut mag es euch anfaumlnglich auch schwerfallen die neuen Techniken in euren Kopf hinein-zukriegen ich meinerseits weiszlig vom Bau besagter Tuumlrme hinreichend viel um die hiesigen Eingeborenen zu unter-richten () (305)

Mesmo a traduccedilatildeo alematilde transmite a ideia de que a fala do cavaleiro Henrique perante o primeiro rei portuguecircs conteacutem uma paroacutedia do discurso poliacutetico actual que natildeo se cansa de propagar a imitaccedilatildeo da Europa avanccedilada representada pela capacidade eco-noacutemica e tecnoloacutegica de Alemanha em competiccedilatildeo com outras na-ccedilotildees Ao mesmo tempo projecta-se ndash apresentado como verdade de fora ndash a auto-imagem humilhante dos ldquonaturaisrdquo37 como matildeo-de--obra sem formaccedilatildeo agrave mercecirc das decisotildees de governantes que pac-tuam com os estrangeiros (252) como condiccedilatildeo da proacutepria geacutenese nacional No entanto a derrota da torre tatildeo bem construiacuteda que conduz ateacute agrave morte do seu construtor faz surgir a criacutetica dos ldquoen-genhos estrangeiros que tanto podem estar a favor como contrardquo (316) parodiando-se assim tanto a lsquolenda de auxiacuteliorsquo e a atitude colonizadora como o projecto portuguecircs de modernizaccedilatildeo europeia (Grossegesse 1995 228)

Reservando uma anaacutelise da constelaccedilatildeo transcultural entre o ca-valeiro alematildeo Henrique a sua ldquobarregatilderdquo Ouroana38 e o soldado Mogueime para outra ocasiatildeo centramo-nos num aspecto de jogo intertextual que ainda recebeu pouca atenccedilatildeo Face agrave ausecircncia do episoacutedio da torre moacutevel e da personalidade de Henrique de Bona na epiacutestola dirigida a Osberno eacute significativo que o romance sara-maguiano invente ldquoapontamentos para a carta de Osbernordquo (308) contendo estes em todo pormenor a histoacuteria do cavaleiro Henri-que A explicaccedilatildeo psicanaliacutetica de Ersatz para esta escrita do Frei Rogeiro39 tambeacutem eacute vaacutelida para o revisor Raimundo que insere na sua reescrita do Cerco de Lisboa a histoacuteria da conquista amorosa de Ouroana por Mogueime possibilitada pela morte do cavaleiro

132Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

alematildeo que espelha ndash atraveacutes dos tempos ndash a sua proacutepria lsquoconquis-tarsquo de Maria Sara

Com a ficccedilatildeo do texto apoacutecrifo inaugura-se uma hibridizaccedilatildeo transcultural das proacuteprias fontes histoacutericas possibilitando um amalgamar das narrativas dos cruzados com a Histoacuteria nacional e o lendaacuterio portuguecircs que culmina na releitura dos milagres do cava-leiro Henrique em simultacircneo com os milagres de Santo Antoacutenio o padroeiro mais popular de Lisboa A intersecccedilatildeo de milagres de ambos pelas leituras simultacircneas de Maria Sara e Raimundo eacute um acto que subverte tanto a procura da verdade histoacuterica como o conceito de identidades delimitadas por territoacuterio sangue e liacutengua Numa espeacutecie de metalepse o proacuteprio Frei Rogeiro apoacutes ter com-pilado ldquoos apontamentos que havia tomado durante uma volta que dera por todos os arraiaisrdquo (331) participa no episoacutedio milagroso ldquoComo o cavaleyro Amrique apareccedileo em sonhos a hum homem botildeo e como lhe disse que soterasem seu escudeiro a par delerdquo (Croacute-nica 51 cf Indiculum 84-85) cumprindo o papel daquele homem bom natildeo identificado

Mais significativo nesta leitura de milagres transformada em reescrita paroacutedica eacute o destaque atribuiacutedo agrave questatildeo de identida-des processos de deslocaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo culminando na trans-formaccedilatildeo de um milagre do cavaleiro Henrique numa espeacutecie de contra-mito da origem da liacutengua portuguesa ao narrar o milagre dos dois homens surdos-mudos que se deitaram ao lado do moi-mento do cavaleiro (Indiculum 83-84 Croacutenica 50-51) realccedila-se a incerteza da identidade deles ldquotinham vindo na frota poreacutem natildeo se sabe se ingleses aquitanos bretotildees flandrenses ou colonen-sesrdquo (335) Estando os dois homens assim jazendo ldquoadormeceram ambos e apareceu-lhes em sonho logo o cavaleiro Henrique (hellip) e falou agravequeles mancebosrdquo (336) ndash natildeo sabemos em que liacutengua ndash anunciando a sua cura de duvidoso efeito

(hellip) e eles acordando acharam que podiam ouvir e falar tambeacutem poreacutem falavam como gagos e de maneira que natildeo se entendia que liacutengua estavam falando se a dos ingleses

133Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ou aquitanos ou bretotildees ou flandrenses ou colonenses ou conforme natildeo poucos afirmavam a liacutengua dos portu-gueses (336)

Esta manipulaccedilatildeo natildeo de fontes histoacutericas mas de uma len-da convida para uma leitura metadiscursiva em vez de ldquocom voz chlara (hellip) contar a todo o povo o milagre que Deos em eles fizerardquo (Croacutenica 51) os dois ficam gagos No entanto o problema natildeo consiste em entender o que eacute que eles dizem mas em identificar a liacutengua que eles falam Nesta leitura o milagre reinterpretado enfa-tiza a visatildeo de uma hibridizaccedilatildeo das liacutenguas e das identidades no entanto consciente da imperfeita capacidade comunicativa que eacute aplicaacutevel agraves questotildees de revisatildeo e traduccedilatildeo

Tal como o revisor Raimundo Silva dentro da ficccedilatildeo o tradutor reescreve um texto anterior no entanto noutra liacutengua e para um leitor com outro horizonte cultural A procedecircncia das fontes histoacute-ricas e a apropriaccedilatildeo do cavaleiro Henrique pelo discurso da iden-tidade portuguesa demonstram a ineficaacutecia das definiccedilotildees puras de identidade e alteridade Em vez da tentativa de uma reproduccedilatildeo de uma liacutengua na outra no fundo irrealizaacutevel a visatildeo da hibridiza-ccedilatildeo das liacutenguas e identidades advoga uma recriaccedilatildeo naturalmente sempre parcial e imperfeita daquela heterogeneidade que Histoacuteria do Cerco de Lisboa exibe ao narrar a procura de uma ldquoverdaderdquo que ldquonatildeo pode ser mais do que uma cara sobreposta agraves infinitas maacutescaras variantes (hellip)rdquo (26) Para tal activa-se ldquooutro tipo de relaccedilotildees entre os elementos (hellip) porque as coerccedilotildees impostas pelas liacutenguas levam a diferentes possibilidades de contextualizaccedilotildees de remissotildees de encadeamentos de atribuiccedilatildeo de valores entre os elementosrdquo (Rodrigues 205) Se o romance reflecte claramente a diffeacuterance (Derrida 1967) como princiacutepio universal40 destacando os processos de traduccedilatildeo e reescrita este princiacutepio deve ser vaacutelido tambeacutem para a proacutepria traduccedilatildeo como propotildee Cristina Carneiro Rodrigues na continuaccedilatildeo de Rosemary Arojo (1993)

134Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

O original vive sobrevive na e pela sua proacutepria transfor-maccedilatildeo produzida pela leitura A traduccedilatildeo natildeo transporta uma essecircncia natildeo troca ou substitui significados dados prontos em um texto por significados equivalentes em outra liacutengua A traduccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo em que o laquotexto originalraquo se daacute por sua proacutepria modificaccedilatildeo em sua trans-formaccedilatildeo (Rodrigues 206)

O romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa interrelaciona esta con-diccedilatildeo de cada texto ser texto de textos transferidos traduzidos de outros textos em contextos histoacutericos sempre diferentes com a criacutetica da lsquoorigemrsquo da identidade individual e colectiva no sentido de transculturalidade e da ldquoculturersquos hibridityrdquo (Bhabha 1989 38) ambas com base expliacutecita na diffeacuterance Se reactivarmos a teoria de Jean Ricardou (1973) relativamente ao nouveau roman podemos dizer que a aventura da leitura escrita do revisor prefigura uma aventura semelhante do tradutor Tal como o revisor transformado em tradutor e autor ele transmite uma Histoacuteria do Cerco de Lis-boa recriada para outro leitor neste caso um leitor alheio natildeo soacute agrave narraccedilatildeo tradicional desta histoacuteria num discurso identitaacuterio mas tambeacutem agrave integraccedilatildeo da sua identidade cultural neste discurso Isto torna a traduccedilatildeo deste romance uma aventura de leitura e reescrita em certa medida jaacute prevista na Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Se no processo de traduccedilatildeo o tradutor ou tradutora tem que necessariamente tomar o lugar do autor e se apossar de seu texto para que esse possa sobreviver em outra liacutengua natildeo haacute como eliminar esse momento de usurpaccedilatildeo e con-quista que a reflexatildeo desconstrutivista flagra e desmascara (Arrojo 1993 82)

Curiosamente Rosemary Arrojo emprega a mesma metaacutefora de conquista utilizada para a aventura de Raimundo Silva que abrange a conquista amorosa de Maria Sara41 Eacute precisamente a mulher

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

126Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

uma homoniacutemia com o Osberno da epiacutestola (ainda tratado ndash errone-amente ndash como o seu autor) novamente recordada em ldquoo cruzado Osberno poreacutem natildeo o talrdquo27

Esta duplicaccedilatildeo de identidades com o mesmo nome adverte o leitor para ficar atento perante redefiniccedilotildees identitaacuterias como por exemplo dos sitiadores chamados ldquoos francos e os galegosrdquo28 sob comando dos cruzados e ldquoIbn Arrinque o Galegordquo (74) na perspetiva dos mouros recriada na mente de Raimundo Silva O almuadem na sua torre complementa ndash atraveacutes dos tempos ndash a posiccedilatildeo de Raimundo Silva ldquoque hoje quase tatildeo cego se vecirc como elerdquo (33) Significativamente o revisor apercebe-se ldquode que mora no preciso lugar onde antigamente se abria a Porta de Alfofardquo configurando-se assim topograficamente a incerteza (que corresponde ao des-narrar) ldquose Raimundo Silva eacute um si-tiado ou um sitiante vencedor futuro ou perdedor sem remeacutediordquo (75) Nos seus passeios por Lisboa ele revivifica uma cidade dividida entre zonas dos sitiados e dos atacantes entretecendo ldquodois temposrdquo (242) passado e presente29 A ambiguidade nos eixos de lugar e tempo transfere-se natildeo soacute agrave histoacuteria aplicando o tema da cegueira ateacute ao processo da sua recepccedilatildeo ldquo(hellip) esta [histoacuteria] de agora comeccedilada soacute poderaacute lecirc-la quem os olhos ti-ver luacutecidos e abertos natildeo um cegordquo (243) transfere-se tambeacutem agrave liacutengua na qual estaacute escrita o texto insinuando-se um regresso a outra fonte nas duas dimensotildees de identidade cultural e texto que evoca aquela transformaccedilatildeo da liacutengua castelhana em aacuterabe realizada nas uacuteltimas duas paacuteginas de Juan sin Tierra (1975) de Juan Goytisolo ldquo(hellip) as matildeos de Raimundo Silva pousam sobre a uacuteltima folha escrita umas linhas negras indecifraacuteveis talvez de araacutebiga liacutengua natildeo estivemos atentos agrave voz do almuademrdquo (Sara-mago 243) Na accedilatildeo mediadora do revisor confluem a voz aacuterabe do almuadem e a escrita latina do cleacuterigo Roger Na reescrita inicialmente soacute mental do lsquolivro do historiadorrsquo Raimundo Sil-va procura uma reconstruccedilatildeo contextualizada de ambos os lados (cristatildeos muccedilulmanos) por exemplo corrigindo o significado da cegueira do almuadem

127Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

() natildeo foi erro escrever porque enfim escrito estaacute que era cego o almuadem O historiador soacute fala de minarete e muezim talvez ignorasse que quase todos os almuadens naquele tempo e por muito tempo depois eram cegos (29

() es war kein Fehler und geschrieben ist es nun mal daszlig der Muezzin blind war Der Historiker der da lediglich von Minarett und Muezzin schreibt wuszligte vielleicht nicht daszlig fast alle Muezzins damals und noch lange danach blind waren (32)

O revisor identifica ldquominareterdquo e ldquomuezimrdquo como palavras li-gadas ao orientalismo dos seacuteculos XVIII e XIX Apesar de ser um fenoacutemeno transnacional europeu o orientalismo teve maior atracccedilatildeo na cultura francesa que espalhou para outras liacutenguas eu-ropeias as vozes aacuterabes importadas pela via oriental o Impeacuterio Otomano (Turquia) na sua expansatildeo europeia a partir do seacuteculo XIV (ponto alto conquista de Constantinopla em 1453) tinha dei-xado vestiacutegios nomeadamente na cultura austriacuteaca no acircmbito dos Tuumlrkenkriege (ponto de viragem Cerco de Viena em 1683) que serviram de base para o orientalismo francecircs Raimundo Silva pre-fere o uso da palavra ldquoalmuademrdquo de maior e mais antiga presen-ccedila na liacutengua portuguesa30 importada directamente e recuperada no Romantismo pelas Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano tal como ldquoalmaacutedenardquo em vez de ldquominareterdquo (Machado 62) A tra-duccedilatildeo alematilde natildeo assinala esta tentativa de maior lsquopurezarsquo histoacuterica no discurso sobre a identidade moura mantendo a denominaccedilatildeo invariaacutevel ldquoMuezzinrdquo embora exista a alternativa lexical menos usada de ldquoMuaddhinrdquo (Brockhaus 229)31

No contexto do pensamento poacutes-colonial esta reaquisiccedilatildeo dos processos de imaginaccedilatildeo depois das imposiccedilotildees coloniais europeias que comeccedila em princiacutepio pelo Romantismo (Herculano Garrett) revela a raiz histoacuterica da especificidade relacional portuguesa co-lonizada colonizadora isto eacute a harmonizaccedilatildeo mais ou menos voluntaacuteria da poliacutetica existente de poder regional na Peniacutensula Ibeacute-

128Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

rica com a ideologia colonizadora das cruzadas Para aleacutem de uma subtil reivindicaccedilatildeo da identidade moura Histoacuteria do Cerco de Lisboa se cinge quase unicamente agrave revisatildeo da identidade conquis-tadora na qual entra a identidade alematilde ndash um aspecto importante para a traduccedilatildeo Assim estabelece-se uma certa inversatildeo embora natildeo perfeita de identidade alteridade em geral o leitor alematildeo estaacute pouco familiarizado com a geacutenese da identidade portuguesa e ignora a configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica que eacute responsaacutevel pelo excesso identitaacuterio desconhecendo tambeacutem a participaccedilatildeo bem documentada de actores vindos de terras alematildes Eles aparecem no romance logo quando Raimundo Silva comeccedila a reler a epiacutestola na sua procura da ldquofonte limpardquo

(hellip) a informaccedilatildeo eacute de boa origem diz-se que directamente do ceacutelebre Osberno e assim podemos ficar a saber que es-tava o conde Arnoldo de Aarschot o qual comandava os guerreiros vindos de diversas partes do impeacuterio germacircni-co que estava Cristiano de Gistell chefe dos flamengos e bolonheses (hellip) (124)

Seguindo a teia intertextual regressamos ao texto-fonte que em contraste com a citada Croacutenica de Portugal de 1419 narra na perspectiva de uma expediccedilatildeo militar

Igitur apud portum de Dertemunde diversarum nationum et morum et linguarum gentes navibus cicrciter CLXIIII convenere Horum omnium trifariam partitur exercitus Sub comite Arnoldo de Arescot nepote Godefridi ducis a romani imperii partibus secedit exercitus Sub Christiano de Gistello flandrenses et bononenses32

A mudanccedila para ldquoimpeacuterio germacircnicordquo (124) corresponde agrave nota explicativa do tradutor JA de Oliveira33 No entanto natildeo se expli-

129Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ca a substituiccedilatildeo de ldquobononensesrdquo por ldquobolonhesesrdquo Naturalmen-te as duas mudanccedilas reflectem-se na traduccedilatildeo alematilde que toma o romance saramaguiano como texto-fonte

(hellip) Information aus verlaumlszliglicher Quelle dem Vernehmen nach direkt vom beruumlhmten Osberno persoumlnlich und also koumlnnen wir uns vergewissern daszlig da Graf Arnoldo de Aar-schot zugegen war der die aus verschiedenen Regionen des deutschen Kaiserreiches herbeigestroumlmten Krieger befehlig-te und Cristiano de Gistell der den Flamen und Bologne-sern vorstand (hellip) (150)

Na traduccedilatildeo alematilde nomes proacuteprios estrangeiros natildeo satildeo lsquore-patriadosrsquo nem o proacuteprio Osberne nem Arnold ou Christian que ficam todos na grafia romacircnica No entanto ldquoimpeacuterio germacircni-cordquo passa para ldquodeutsches Kaiserreichrdquo uma traduccedilatildeo que insinua uma projecccedilatildeo anacroacutenica do seacuteculo XIX (refundaccedilatildeo do Heiliges Roumlmisches Reich Deutscher Nation como Deutsches Kaiserreich em 1871) natildeo pretendida no texto-fonte Naturalmente a traduccedilatildeo alematilde ignora a possibilidade latente jaacute apagada no texto sarama-guiano de encontrar a identidade alematilde nos ldquobononensesrdquo mal transcritos em ldquobolonhesesrdquo34 Esta transcriccedilatildeo defeituosa surpre-ende porque eacute a personalidade do cavaleiro Henrique de Bona ausente na epiacutestola35 que teve o maior relevo individual na histo-riografia portuguesa entre os ldquosamtos cavaleyros martiresrdquo

Nesta tomada de Lisboa morerom alguns cavaleyros como martires e depois faziam muytos milagres amtre os quaes foy hum cavaleyro chamado Amriqe alematildeo o qual era de hũa vila que chamom Bona posta jumto de Colonha o qual foy enterado em Sam Viccedilemte honde fazia muytos milagres (hellip) (Croacutenica 50)

130Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Merecendo destaque na histoacuteria da fundaccedilatildeo do mosteiro de Satildeo Vicente com episoacutedios de acccedilatildeo milagrosa depois de morto (Indiculum 83-85 Croacutenica 50-52) Henrique de Bona torna-se uma personagem da Histoacuteria portuguesa digna de entrar nrsquo Os Lu-siacuteadas (VIII 18) Procede-se a uma apropriaccedilatildeo do estrangeiro colonizador o alematildeo Henrique torna-se depois de ter vertido ldquode gram voontade o seu sangue antre os mouros pola paixom do Nosso Salvador Jesu Cristordquo (Indiculum 83) no maior Santo Cavaleiro da Tomada de Lisboa Na Alemanha ele estaacute totalmente desconhecido a natildeo ser no acircmbito da retoacuterica diplomaacutetica bila-teral na qual aparece natildeo como maacutertir mas como fundador dos ldquolaccedilos da amizade secular que liga o povo da Alemanha ao de Por-tugalrdquo (Ehrhardt 11) projectando a ajuda dos cruzados na geacutenese do reino de Portugal numa lsquolenda de auxiacuteliorsquo para todas as eacutepocas posteriores

Numa abordagem criacutetica observamos um duplo branqueamen-to (1) da memoacuteria do saque cruel e devastador da Lisboa moura perpetrado pelos cruzados colonenses e flandrenses e (2) da rela-ccedilatildeo colonizadora entre aliados no contexto da Europa Cingimo--nos no acircmbito deste estudo agrave anaacutelise do episoacutedio da torre moacutevel No romance a ideia da sua construccedilatildeo eacute atribuiacuteda ao cavaleiro Henrique manipulando as fontes histoacutericas que falam de engenhos militares em competiccedilatildeo entre os diferentes grupos eacutetnicos ou destacam ldquoum engenheiro italiano natural de Pisardquo36 O discurso profeacutetico de superioridade cultural deste cavaleiro revela os moti-vos desta escolha

Grandes satildeo as vantagens que a Portugal adviratildeo de imitar neste como noutros casos o que na Europa se vai fazendo de mais moderno ainda que ao princiacutepio experimenteis dificuldades em meter na cabeccedila as tecnologias novas eu por mim sei da construccedilatildeo das tais torres o suficiente para os naturais daqui (hellip) (251)

131Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Groszlige Vorteile sind Portugal gewiszlig wenn es in diesem wie in anderen Faumlllen nachahmt was man in Europa an houmlchst modernen Dingen tut mag es euch anfaumlnglich auch schwerfallen die neuen Techniken in euren Kopf hinein-zukriegen ich meinerseits weiszlig vom Bau besagter Tuumlrme hinreichend viel um die hiesigen Eingeborenen zu unter-richten () (305)

Mesmo a traduccedilatildeo alematilde transmite a ideia de que a fala do cavaleiro Henrique perante o primeiro rei portuguecircs conteacutem uma paroacutedia do discurso poliacutetico actual que natildeo se cansa de propagar a imitaccedilatildeo da Europa avanccedilada representada pela capacidade eco-noacutemica e tecnoloacutegica de Alemanha em competiccedilatildeo com outras na-ccedilotildees Ao mesmo tempo projecta-se ndash apresentado como verdade de fora ndash a auto-imagem humilhante dos ldquonaturaisrdquo37 como matildeo-de--obra sem formaccedilatildeo agrave mercecirc das decisotildees de governantes que pac-tuam com os estrangeiros (252) como condiccedilatildeo da proacutepria geacutenese nacional No entanto a derrota da torre tatildeo bem construiacuteda que conduz ateacute agrave morte do seu construtor faz surgir a criacutetica dos ldquoen-genhos estrangeiros que tanto podem estar a favor como contrardquo (316) parodiando-se assim tanto a lsquolenda de auxiacuteliorsquo e a atitude colonizadora como o projecto portuguecircs de modernizaccedilatildeo europeia (Grossegesse 1995 228)

Reservando uma anaacutelise da constelaccedilatildeo transcultural entre o ca-valeiro alematildeo Henrique a sua ldquobarregatilderdquo Ouroana38 e o soldado Mogueime para outra ocasiatildeo centramo-nos num aspecto de jogo intertextual que ainda recebeu pouca atenccedilatildeo Face agrave ausecircncia do episoacutedio da torre moacutevel e da personalidade de Henrique de Bona na epiacutestola dirigida a Osberno eacute significativo que o romance sara-maguiano invente ldquoapontamentos para a carta de Osbernordquo (308) contendo estes em todo pormenor a histoacuteria do cavaleiro Henri-que A explicaccedilatildeo psicanaliacutetica de Ersatz para esta escrita do Frei Rogeiro39 tambeacutem eacute vaacutelida para o revisor Raimundo que insere na sua reescrita do Cerco de Lisboa a histoacuteria da conquista amorosa de Ouroana por Mogueime possibilitada pela morte do cavaleiro

132Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

alematildeo que espelha ndash atraveacutes dos tempos ndash a sua proacutepria lsquoconquis-tarsquo de Maria Sara

Com a ficccedilatildeo do texto apoacutecrifo inaugura-se uma hibridizaccedilatildeo transcultural das proacuteprias fontes histoacutericas possibilitando um amalgamar das narrativas dos cruzados com a Histoacuteria nacional e o lendaacuterio portuguecircs que culmina na releitura dos milagres do cava-leiro Henrique em simultacircneo com os milagres de Santo Antoacutenio o padroeiro mais popular de Lisboa A intersecccedilatildeo de milagres de ambos pelas leituras simultacircneas de Maria Sara e Raimundo eacute um acto que subverte tanto a procura da verdade histoacuterica como o conceito de identidades delimitadas por territoacuterio sangue e liacutengua Numa espeacutecie de metalepse o proacuteprio Frei Rogeiro apoacutes ter com-pilado ldquoos apontamentos que havia tomado durante uma volta que dera por todos os arraiaisrdquo (331) participa no episoacutedio milagroso ldquoComo o cavaleyro Amrique apareccedileo em sonhos a hum homem botildeo e como lhe disse que soterasem seu escudeiro a par delerdquo (Croacute-nica 51 cf Indiculum 84-85) cumprindo o papel daquele homem bom natildeo identificado

Mais significativo nesta leitura de milagres transformada em reescrita paroacutedica eacute o destaque atribuiacutedo agrave questatildeo de identida-des processos de deslocaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo culminando na trans-formaccedilatildeo de um milagre do cavaleiro Henrique numa espeacutecie de contra-mito da origem da liacutengua portuguesa ao narrar o milagre dos dois homens surdos-mudos que se deitaram ao lado do moi-mento do cavaleiro (Indiculum 83-84 Croacutenica 50-51) realccedila-se a incerteza da identidade deles ldquotinham vindo na frota poreacutem natildeo se sabe se ingleses aquitanos bretotildees flandrenses ou colonen-sesrdquo (335) Estando os dois homens assim jazendo ldquoadormeceram ambos e apareceu-lhes em sonho logo o cavaleiro Henrique (hellip) e falou agravequeles mancebosrdquo (336) ndash natildeo sabemos em que liacutengua ndash anunciando a sua cura de duvidoso efeito

(hellip) e eles acordando acharam que podiam ouvir e falar tambeacutem poreacutem falavam como gagos e de maneira que natildeo se entendia que liacutengua estavam falando se a dos ingleses

133Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ou aquitanos ou bretotildees ou flandrenses ou colonenses ou conforme natildeo poucos afirmavam a liacutengua dos portu-gueses (336)

Esta manipulaccedilatildeo natildeo de fontes histoacutericas mas de uma len-da convida para uma leitura metadiscursiva em vez de ldquocom voz chlara (hellip) contar a todo o povo o milagre que Deos em eles fizerardquo (Croacutenica 51) os dois ficam gagos No entanto o problema natildeo consiste em entender o que eacute que eles dizem mas em identificar a liacutengua que eles falam Nesta leitura o milagre reinterpretado enfa-tiza a visatildeo de uma hibridizaccedilatildeo das liacutenguas e das identidades no entanto consciente da imperfeita capacidade comunicativa que eacute aplicaacutevel agraves questotildees de revisatildeo e traduccedilatildeo

Tal como o revisor Raimundo Silva dentro da ficccedilatildeo o tradutor reescreve um texto anterior no entanto noutra liacutengua e para um leitor com outro horizonte cultural A procedecircncia das fontes histoacute-ricas e a apropriaccedilatildeo do cavaleiro Henrique pelo discurso da iden-tidade portuguesa demonstram a ineficaacutecia das definiccedilotildees puras de identidade e alteridade Em vez da tentativa de uma reproduccedilatildeo de uma liacutengua na outra no fundo irrealizaacutevel a visatildeo da hibridiza-ccedilatildeo das liacutenguas e identidades advoga uma recriaccedilatildeo naturalmente sempre parcial e imperfeita daquela heterogeneidade que Histoacuteria do Cerco de Lisboa exibe ao narrar a procura de uma ldquoverdaderdquo que ldquonatildeo pode ser mais do que uma cara sobreposta agraves infinitas maacutescaras variantes (hellip)rdquo (26) Para tal activa-se ldquooutro tipo de relaccedilotildees entre os elementos (hellip) porque as coerccedilotildees impostas pelas liacutenguas levam a diferentes possibilidades de contextualizaccedilotildees de remissotildees de encadeamentos de atribuiccedilatildeo de valores entre os elementosrdquo (Rodrigues 205) Se o romance reflecte claramente a diffeacuterance (Derrida 1967) como princiacutepio universal40 destacando os processos de traduccedilatildeo e reescrita este princiacutepio deve ser vaacutelido tambeacutem para a proacutepria traduccedilatildeo como propotildee Cristina Carneiro Rodrigues na continuaccedilatildeo de Rosemary Arojo (1993)

134Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

O original vive sobrevive na e pela sua proacutepria transfor-maccedilatildeo produzida pela leitura A traduccedilatildeo natildeo transporta uma essecircncia natildeo troca ou substitui significados dados prontos em um texto por significados equivalentes em outra liacutengua A traduccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo em que o laquotexto originalraquo se daacute por sua proacutepria modificaccedilatildeo em sua trans-formaccedilatildeo (Rodrigues 206)

O romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa interrelaciona esta con-diccedilatildeo de cada texto ser texto de textos transferidos traduzidos de outros textos em contextos histoacutericos sempre diferentes com a criacutetica da lsquoorigemrsquo da identidade individual e colectiva no sentido de transculturalidade e da ldquoculturersquos hibridityrdquo (Bhabha 1989 38) ambas com base expliacutecita na diffeacuterance Se reactivarmos a teoria de Jean Ricardou (1973) relativamente ao nouveau roman podemos dizer que a aventura da leitura escrita do revisor prefigura uma aventura semelhante do tradutor Tal como o revisor transformado em tradutor e autor ele transmite uma Histoacuteria do Cerco de Lis-boa recriada para outro leitor neste caso um leitor alheio natildeo soacute agrave narraccedilatildeo tradicional desta histoacuteria num discurso identitaacuterio mas tambeacutem agrave integraccedilatildeo da sua identidade cultural neste discurso Isto torna a traduccedilatildeo deste romance uma aventura de leitura e reescrita em certa medida jaacute prevista na Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Se no processo de traduccedilatildeo o tradutor ou tradutora tem que necessariamente tomar o lugar do autor e se apossar de seu texto para que esse possa sobreviver em outra liacutengua natildeo haacute como eliminar esse momento de usurpaccedilatildeo e con-quista que a reflexatildeo desconstrutivista flagra e desmascara (Arrojo 1993 82)

Curiosamente Rosemary Arrojo emprega a mesma metaacutefora de conquista utilizada para a aventura de Raimundo Silva que abrange a conquista amorosa de Maria Sara41 Eacute precisamente a mulher

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

127Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

() natildeo foi erro escrever porque enfim escrito estaacute que era cego o almuadem O historiador soacute fala de minarete e muezim talvez ignorasse que quase todos os almuadens naquele tempo e por muito tempo depois eram cegos (29

() es war kein Fehler und geschrieben ist es nun mal daszlig der Muezzin blind war Der Historiker der da lediglich von Minarett und Muezzin schreibt wuszligte vielleicht nicht daszlig fast alle Muezzins damals und noch lange danach blind waren (32)

O revisor identifica ldquominareterdquo e ldquomuezimrdquo como palavras li-gadas ao orientalismo dos seacuteculos XVIII e XIX Apesar de ser um fenoacutemeno transnacional europeu o orientalismo teve maior atracccedilatildeo na cultura francesa que espalhou para outras liacutenguas eu-ropeias as vozes aacuterabes importadas pela via oriental o Impeacuterio Otomano (Turquia) na sua expansatildeo europeia a partir do seacuteculo XIV (ponto alto conquista de Constantinopla em 1453) tinha dei-xado vestiacutegios nomeadamente na cultura austriacuteaca no acircmbito dos Tuumlrkenkriege (ponto de viragem Cerco de Viena em 1683) que serviram de base para o orientalismo francecircs Raimundo Silva pre-fere o uso da palavra ldquoalmuademrdquo de maior e mais antiga presen-ccedila na liacutengua portuguesa30 importada directamente e recuperada no Romantismo pelas Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano tal como ldquoalmaacutedenardquo em vez de ldquominareterdquo (Machado 62) A tra-duccedilatildeo alematilde natildeo assinala esta tentativa de maior lsquopurezarsquo histoacuterica no discurso sobre a identidade moura mantendo a denominaccedilatildeo invariaacutevel ldquoMuezzinrdquo embora exista a alternativa lexical menos usada de ldquoMuaddhinrdquo (Brockhaus 229)31

No contexto do pensamento poacutes-colonial esta reaquisiccedilatildeo dos processos de imaginaccedilatildeo depois das imposiccedilotildees coloniais europeias que comeccedila em princiacutepio pelo Romantismo (Herculano Garrett) revela a raiz histoacuterica da especificidade relacional portuguesa co-lonizada colonizadora isto eacute a harmonizaccedilatildeo mais ou menos voluntaacuteria da poliacutetica existente de poder regional na Peniacutensula Ibeacute-

128Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

rica com a ideologia colonizadora das cruzadas Para aleacutem de uma subtil reivindicaccedilatildeo da identidade moura Histoacuteria do Cerco de Lisboa se cinge quase unicamente agrave revisatildeo da identidade conquis-tadora na qual entra a identidade alematilde ndash um aspecto importante para a traduccedilatildeo Assim estabelece-se uma certa inversatildeo embora natildeo perfeita de identidade alteridade em geral o leitor alematildeo estaacute pouco familiarizado com a geacutenese da identidade portuguesa e ignora a configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica que eacute responsaacutevel pelo excesso identitaacuterio desconhecendo tambeacutem a participaccedilatildeo bem documentada de actores vindos de terras alematildes Eles aparecem no romance logo quando Raimundo Silva comeccedila a reler a epiacutestola na sua procura da ldquofonte limpardquo

(hellip) a informaccedilatildeo eacute de boa origem diz-se que directamente do ceacutelebre Osberno e assim podemos ficar a saber que es-tava o conde Arnoldo de Aarschot o qual comandava os guerreiros vindos de diversas partes do impeacuterio germacircni-co que estava Cristiano de Gistell chefe dos flamengos e bolonheses (hellip) (124)

Seguindo a teia intertextual regressamos ao texto-fonte que em contraste com a citada Croacutenica de Portugal de 1419 narra na perspectiva de uma expediccedilatildeo militar

Igitur apud portum de Dertemunde diversarum nationum et morum et linguarum gentes navibus cicrciter CLXIIII convenere Horum omnium trifariam partitur exercitus Sub comite Arnoldo de Arescot nepote Godefridi ducis a romani imperii partibus secedit exercitus Sub Christiano de Gistello flandrenses et bononenses32

A mudanccedila para ldquoimpeacuterio germacircnicordquo (124) corresponde agrave nota explicativa do tradutor JA de Oliveira33 No entanto natildeo se expli-

129Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ca a substituiccedilatildeo de ldquobononensesrdquo por ldquobolonhesesrdquo Naturalmen-te as duas mudanccedilas reflectem-se na traduccedilatildeo alematilde que toma o romance saramaguiano como texto-fonte

(hellip) Information aus verlaumlszliglicher Quelle dem Vernehmen nach direkt vom beruumlhmten Osberno persoumlnlich und also koumlnnen wir uns vergewissern daszlig da Graf Arnoldo de Aar-schot zugegen war der die aus verschiedenen Regionen des deutschen Kaiserreiches herbeigestroumlmten Krieger befehlig-te und Cristiano de Gistell der den Flamen und Bologne-sern vorstand (hellip) (150)

Na traduccedilatildeo alematilde nomes proacuteprios estrangeiros natildeo satildeo lsquore-patriadosrsquo nem o proacuteprio Osberne nem Arnold ou Christian que ficam todos na grafia romacircnica No entanto ldquoimpeacuterio germacircni-cordquo passa para ldquodeutsches Kaiserreichrdquo uma traduccedilatildeo que insinua uma projecccedilatildeo anacroacutenica do seacuteculo XIX (refundaccedilatildeo do Heiliges Roumlmisches Reich Deutscher Nation como Deutsches Kaiserreich em 1871) natildeo pretendida no texto-fonte Naturalmente a traduccedilatildeo alematilde ignora a possibilidade latente jaacute apagada no texto sarama-guiano de encontrar a identidade alematilde nos ldquobononensesrdquo mal transcritos em ldquobolonhesesrdquo34 Esta transcriccedilatildeo defeituosa surpre-ende porque eacute a personalidade do cavaleiro Henrique de Bona ausente na epiacutestola35 que teve o maior relevo individual na histo-riografia portuguesa entre os ldquosamtos cavaleyros martiresrdquo

Nesta tomada de Lisboa morerom alguns cavaleyros como martires e depois faziam muytos milagres amtre os quaes foy hum cavaleyro chamado Amriqe alematildeo o qual era de hũa vila que chamom Bona posta jumto de Colonha o qual foy enterado em Sam Viccedilemte honde fazia muytos milagres (hellip) (Croacutenica 50)

130Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Merecendo destaque na histoacuteria da fundaccedilatildeo do mosteiro de Satildeo Vicente com episoacutedios de acccedilatildeo milagrosa depois de morto (Indiculum 83-85 Croacutenica 50-52) Henrique de Bona torna-se uma personagem da Histoacuteria portuguesa digna de entrar nrsquo Os Lu-siacuteadas (VIII 18) Procede-se a uma apropriaccedilatildeo do estrangeiro colonizador o alematildeo Henrique torna-se depois de ter vertido ldquode gram voontade o seu sangue antre os mouros pola paixom do Nosso Salvador Jesu Cristordquo (Indiculum 83) no maior Santo Cavaleiro da Tomada de Lisboa Na Alemanha ele estaacute totalmente desconhecido a natildeo ser no acircmbito da retoacuterica diplomaacutetica bila-teral na qual aparece natildeo como maacutertir mas como fundador dos ldquolaccedilos da amizade secular que liga o povo da Alemanha ao de Por-tugalrdquo (Ehrhardt 11) projectando a ajuda dos cruzados na geacutenese do reino de Portugal numa lsquolenda de auxiacuteliorsquo para todas as eacutepocas posteriores

Numa abordagem criacutetica observamos um duplo branqueamen-to (1) da memoacuteria do saque cruel e devastador da Lisboa moura perpetrado pelos cruzados colonenses e flandrenses e (2) da rela-ccedilatildeo colonizadora entre aliados no contexto da Europa Cingimo--nos no acircmbito deste estudo agrave anaacutelise do episoacutedio da torre moacutevel No romance a ideia da sua construccedilatildeo eacute atribuiacuteda ao cavaleiro Henrique manipulando as fontes histoacutericas que falam de engenhos militares em competiccedilatildeo entre os diferentes grupos eacutetnicos ou destacam ldquoum engenheiro italiano natural de Pisardquo36 O discurso profeacutetico de superioridade cultural deste cavaleiro revela os moti-vos desta escolha

Grandes satildeo as vantagens que a Portugal adviratildeo de imitar neste como noutros casos o que na Europa se vai fazendo de mais moderno ainda que ao princiacutepio experimenteis dificuldades em meter na cabeccedila as tecnologias novas eu por mim sei da construccedilatildeo das tais torres o suficiente para os naturais daqui (hellip) (251)

131Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Groszlige Vorteile sind Portugal gewiszlig wenn es in diesem wie in anderen Faumlllen nachahmt was man in Europa an houmlchst modernen Dingen tut mag es euch anfaumlnglich auch schwerfallen die neuen Techniken in euren Kopf hinein-zukriegen ich meinerseits weiszlig vom Bau besagter Tuumlrme hinreichend viel um die hiesigen Eingeborenen zu unter-richten () (305)

Mesmo a traduccedilatildeo alematilde transmite a ideia de que a fala do cavaleiro Henrique perante o primeiro rei portuguecircs conteacutem uma paroacutedia do discurso poliacutetico actual que natildeo se cansa de propagar a imitaccedilatildeo da Europa avanccedilada representada pela capacidade eco-noacutemica e tecnoloacutegica de Alemanha em competiccedilatildeo com outras na-ccedilotildees Ao mesmo tempo projecta-se ndash apresentado como verdade de fora ndash a auto-imagem humilhante dos ldquonaturaisrdquo37 como matildeo-de--obra sem formaccedilatildeo agrave mercecirc das decisotildees de governantes que pac-tuam com os estrangeiros (252) como condiccedilatildeo da proacutepria geacutenese nacional No entanto a derrota da torre tatildeo bem construiacuteda que conduz ateacute agrave morte do seu construtor faz surgir a criacutetica dos ldquoen-genhos estrangeiros que tanto podem estar a favor como contrardquo (316) parodiando-se assim tanto a lsquolenda de auxiacuteliorsquo e a atitude colonizadora como o projecto portuguecircs de modernizaccedilatildeo europeia (Grossegesse 1995 228)

Reservando uma anaacutelise da constelaccedilatildeo transcultural entre o ca-valeiro alematildeo Henrique a sua ldquobarregatilderdquo Ouroana38 e o soldado Mogueime para outra ocasiatildeo centramo-nos num aspecto de jogo intertextual que ainda recebeu pouca atenccedilatildeo Face agrave ausecircncia do episoacutedio da torre moacutevel e da personalidade de Henrique de Bona na epiacutestola dirigida a Osberno eacute significativo que o romance sara-maguiano invente ldquoapontamentos para a carta de Osbernordquo (308) contendo estes em todo pormenor a histoacuteria do cavaleiro Henri-que A explicaccedilatildeo psicanaliacutetica de Ersatz para esta escrita do Frei Rogeiro39 tambeacutem eacute vaacutelida para o revisor Raimundo que insere na sua reescrita do Cerco de Lisboa a histoacuteria da conquista amorosa de Ouroana por Mogueime possibilitada pela morte do cavaleiro

132Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

alematildeo que espelha ndash atraveacutes dos tempos ndash a sua proacutepria lsquoconquis-tarsquo de Maria Sara

Com a ficccedilatildeo do texto apoacutecrifo inaugura-se uma hibridizaccedilatildeo transcultural das proacuteprias fontes histoacutericas possibilitando um amalgamar das narrativas dos cruzados com a Histoacuteria nacional e o lendaacuterio portuguecircs que culmina na releitura dos milagres do cava-leiro Henrique em simultacircneo com os milagres de Santo Antoacutenio o padroeiro mais popular de Lisboa A intersecccedilatildeo de milagres de ambos pelas leituras simultacircneas de Maria Sara e Raimundo eacute um acto que subverte tanto a procura da verdade histoacuterica como o conceito de identidades delimitadas por territoacuterio sangue e liacutengua Numa espeacutecie de metalepse o proacuteprio Frei Rogeiro apoacutes ter com-pilado ldquoos apontamentos que havia tomado durante uma volta que dera por todos os arraiaisrdquo (331) participa no episoacutedio milagroso ldquoComo o cavaleyro Amrique apareccedileo em sonhos a hum homem botildeo e como lhe disse que soterasem seu escudeiro a par delerdquo (Croacute-nica 51 cf Indiculum 84-85) cumprindo o papel daquele homem bom natildeo identificado

Mais significativo nesta leitura de milagres transformada em reescrita paroacutedica eacute o destaque atribuiacutedo agrave questatildeo de identida-des processos de deslocaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo culminando na trans-formaccedilatildeo de um milagre do cavaleiro Henrique numa espeacutecie de contra-mito da origem da liacutengua portuguesa ao narrar o milagre dos dois homens surdos-mudos que se deitaram ao lado do moi-mento do cavaleiro (Indiculum 83-84 Croacutenica 50-51) realccedila-se a incerteza da identidade deles ldquotinham vindo na frota poreacutem natildeo se sabe se ingleses aquitanos bretotildees flandrenses ou colonen-sesrdquo (335) Estando os dois homens assim jazendo ldquoadormeceram ambos e apareceu-lhes em sonho logo o cavaleiro Henrique (hellip) e falou agravequeles mancebosrdquo (336) ndash natildeo sabemos em que liacutengua ndash anunciando a sua cura de duvidoso efeito

(hellip) e eles acordando acharam que podiam ouvir e falar tambeacutem poreacutem falavam como gagos e de maneira que natildeo se entendia que liacutengua estavam falando se a dos ingleses

133Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ou aquitanos ou bretotildees ou flandrenses ou colonenses ou conforme natildeo poucos afirmavam a liacutengua dos portu-gueses (336)

Esta manipulaccedilatildeo natildeo de fontes histoacutericas mas de uma len-da convida para uma leitura metadiscursiva em vez de ldquocom voz chlara (hellip) contar a todo o povo o milagre que Deos em eles fizerardquo (Croacutenica 51) os dois ficam gagos No entanto o problema natildeo consiste em entender o que eacute que eles dizem mas em identificar a liacutengua que eles falam Nesta leitura o milagre reinterpretado enfa-tiza a visatildeo de uma hibridizaccedilatildeo das liacutenguas e das identidades no entanto consciente da imperfeita capacidade comunicativa que eacute aplicaacutevel agraves questotildees de revisatildeo e traduccedilatildeo

Tal como o revisor Raimundo Silva dentro da ficccedilatildeo o tradutor reescreve um texto anterior no entanto noutra liacutengua e para um leitor com outro horizonte cultural A procedecircncia das fontes histoacute-ricas e a apropriaccedilatildeo do cavaleiro Henrique pelo discurso da iden-tidade portuguesa demonstram a ineficaacutecia das definiccedilotildees puras de identidade e alteridade Em vez da tentativa de uma reproduccedilatildeo de uma liacutengua na outra no fundo irrealizaacutevel a visatildeo da hibridiza-ccedilatildeo das liacutenguas e identidades advoga uma recriaccedilatildeo naturalmente sempre parcial e imperfeita daquela heterogeneidade que Histoacuteria do Cerco de Lisboa exibe ao narrar a procura de uma ldquoverdaderdquo que ldquonatildeo pode ser mais do que uma cara sobreposta agraves infinitas maacutescaras variantes (hellip)rdquo (26) Para tal activa-se ldquooutro tipo de relaccedilotildees entre os elementos (hellip) porque as coerccedilotildees impostas pelas liacutenguas levam a diferentes possibilidades de contextualizaccedilotildees de remissotildees de encadeamentos de atribuiccedilatildeo de valores entre os elementosrdquo (Rodrigues 205) Se o romance reflecte claramente a diffeacuterance (Derrida 1967) como princiacutepio universal40 destacando os processos de traduccedilatildeo e reescrita este princiacutepio deve ser vaacutelido tambeacutem para a proacutepria traduccedilatildeo como propotildee Cristina Carneiro Rodrigues na continuaccedilatildeo de Rosemary Arojo (1993)

134Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

O original vive sobrevive na e pela sua proacutepria transfor-maccedilatildeo produzida pela leitura A traduccedilatildeo natildeo transporta uma essecircncia natildeo troca ou substitui significados dados prontos em um texto por significados equivalentes em outra liacutengua A traduccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo em que o laquotexto originalraquo se daacute por sua proacutepria modificaccedilatildeo em sua trans-formaccedilatildeo (Rodrigues 206)

O romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa interrelaciona esta con-diccedilatildeo de cada texto ser texto de textos transferidos traduzidos de outros textos em contextos histoacutericos sempre diferentes com a criacutetica da lsquoorigemrsquo da identidade individual e colectiva no sentido de transculturalidade e da ldquoculturersquos hibridityrdquo (Bhabha 1989 38) ambas com base expliacutecita na diffeacuterance Se reactivarmos a teoria de Jean Ricardou (1973) relativamente ao nouveau roman podemos dizer que a aventura da leitura escrita do revisor prefigura uma aventura semelhante do tradutor Tal como o revisor transformado em tradutor e autor ele transmite uma Histoacuteria do Cerco de Lis-boa recriada para outro leitor neste caso um leitor alheio natildeo soacute agrave narraccedilatildeo tradicional desta histoacuteria num discurso identitaacuterio mas tambeacutem agrave integraccedilatildeo da sua identidade cultural neste discurso Isto torna a traduccedilatildeo deste romance uma aventura de leitura e reescrita em certa medida jaacute prevista na Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Se no processo de traduccedilatildeo o tradutor ou tradutora tem que necessariamente tomar o lugar do autor e se apossar de seu texto para que esse possa sobreviver em outra liacutengua natildeo haacute como eliminar esse momento de usurpaccedilatildeo e con-quista que a reflexatildeo desconstrutivista flagra e desmascara (Arrojo 1993 82)

Curiosamente Rosemary Arrojo emprega a mesma metaacutefora de conquista utilizada para a aventura de Raimundo Silva que abrange a conquista amorosa de Maria Sara41 Eacute precisamente a mulher

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

128Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

rica com a ideologia colonizadora das cruzadas Para aleacutem de uma subtil reivindicaccedilatildeo da identidade moura Histoacuteria do Cerco de Lisboa se cinge quase unicamente agrave revisatildeo da identidade conquis-tadora na qual entra a identidade alematilde ndash um aspecto importante para a traduccedilatildeo Assim estabelece-se uma certa inversatildeo embora natildeo perfeita de identidade alteridade em geral o leitor alematildeo estaacute pouco familiarizado com a geacutenese da identidade portuguesa e ignora a configuraccedilatildeo colonizadora colonizada especiacutefica que eacute responsaacutevel pelo excesso identitaacuterio desconhecendo tambeacutem a participaccedilatildeo bem documentada de actores vindos de terras alematildes Eles aparecem no romance logo quando Raimundo Silva comeccedila a reler a epiacutestola na sua procura da ldquofonte limpardquo

(hellip) a informaccedilatildeo eacute de boa origem diz-se que directamente do ceacutelebre Osberno e assim podemos ficar a saber que es-tava o conde Arnoldo de Aarschot o qual comandava os guerreiros vindos de diversas partes do impeacuterio germacircni-co que estava Cristiano de Gistell chefe dos flamengos e bolonheses (hellip) (124)

Seguindo a teia intertextual regressamos ao texto-fonte que em contraste com a citada Croacutenica de Portugal de 1419 narra na perspectiva de uma expediccedilatildeo militar

Igitur apud portum de Dertemunde diversarum nationum et morum et linguarum gentes navibus cicrciter CLXIIII convenere Horum omnium trifariam partitur exercitus Sub comite Arnoldo de Arescot nepote Godefridi ducis a romani imperii partibus secedit exercitus Sub Christiano de Gistello flandrenses et bononenses32

A mudanccedila para ldquoimpeacuterio germacircnicordquo (124) corresponde agrave nota explicativa do tradutor JA de Oliveira33 No entanto natildeo se expli-

129Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ca a substituiccedilatildeo de ldquobononensesrdquo por ldquobolonhesesrdquo Naturalmen-te as duas mudanccedilas reflectem-se na traduccedilatildeo alematilde que toma o romance saramaguiano como texto-fonte

(hellip) Information aus verlaumlszliglicher Quelle dem Vernehmen nach direkt vom beruumlhmten Osberno persoumlnlich und also koumlnnen wir uns vergewissern daszlig da Graf Arnoldo de Aar-schot zugegen war der die aus verschiedenen Regionen des deutschen Kaiserreiches herbeigestroumlmten Krieger befehlig-te und Cristiano de Gistell der den Flamen und Bologne-sern vorstand (hellip) (150)

Na traduccedilatildeo alematilde nomes proacuteprios estrangeiros natildeo satildeo lsquore-patriadosrsquo nem o proacuteprio Osberne nem Arnold ou Christian que ficam todos na grafia romacircnica No entanto ldquoimpeacuterio germacircni-cordquo passa para ldquodeutsches Kaiserreichrdquo uma traduccedilatildeo que insinua uma projecccedilatildeo anacroacutenica do seacuteculo XIX (refundaccedilatildeo do Heiliges Roumlmisches Reich Deutscher Nation como Deutsches Kaiserreich em 1871) natildeo pretendida no texto-fonte Naturalmente a traduccedilatildeo alematilde ignora a possibilidade latente jaacute apagada no texto sarama-guiano de encontrar a identidade alematilde nos ldquobononensesrdquo mal transcritos em ldquobolonhesesrdquo34 Esta transcriccedilatildeo defeituosa surpre-ende porque eacute a personalidade do cavaleiro Henrique de Bona ausente na epiacutestola35 que teve o maior relevo individual na histo-riografia portuguesa entre os ldquosamtos cavaleyros martiresrdquo

Nesta tomada de Lisboa morerom alguns cavaleyros como martires e depois faziam muytos milagres amtre os quaes foy hum cavaleyro chamado Amriqe alematildeo o qual era de hũa vila que chamom Bona posta jumto de Colonha o qual foy enterado em Sam Viccedilemte honde fazia muytos milagres (hellip) (Croacutenica 50)

130Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Merecendo destaque na histoacuteria da fundaccedilatildeo do mosteiro de Satildeo Vicente com episoacutedios de acccedilatildeo milagrosa depois de morto (Indiculum 83-85 Croacutenica 50-52) Henrique de Bona torna-se uma personagem da Histoacuteria portuguesa digna de entrar nrsquo Os Lu-siacuteadas (VIII 18) Procede-se a uma apropriaccedilatildeo do estrangeiro colonizador o alematildeo Henrique torna-se depois de ter vertido ldquode gram voontade o seu sangue antre os mouros pola paixom do Nosso Salvador Jesu Cristordquo (Indiculum 83) no maior Santo Cavaleiro da Tomada de Lisboa Na Alemanha ele estaacute totalmente desconhecido a natildeo ser no acircmbito da retoacuterica diplomaacutetica bila-teral na qual aparece natildeo como maacutertir mas como fundador dos ldquolaccedilos da amizade secular que liga o povo da Alemanha ao de Por-tugalrdquo (Ehrhardt 11) projectando a ajuda dos cruzados na geacutenese do reino de Portugal numa lsquolenda de auxiacuteliorsquo para todas as eacutepocas posteriores

Numa abordagem criacutetica observamos um duplo branqueamen-to (1) da memoacuteria do saque cruel e devastador da Lisboa moura perpetrado pelos cruzados colonenses e flandrenses e (2) da rela-ccedilatildeo colonizadora entre aliados no contexto da Europa Cingimo--nos no acircmbito deste estudo agrave anaacutelise do episoacutedio da torre moacutevel No romance a ideia da sua construccedilatildeo eacute atribuiacuteda ao cavaleiro Henrique manipulando as fontes histoacutericas que falam de engenhos militares em competiccedilatildeo entre os diferentes grupos eacutetnicos ou destacam ldquoum engenheiro italiano natural de Pisardquo36 O discurso profeacutetico de superioridade cultural deste cavaleiro revela os moti-vos desta escolha

Grandes satildeo as vantagens que a Portugal adviratildeo de imitar neste como noutros casos o que na Europa se vai fazendo de mais moderno ainda que ao princiacutepio experimenteis dificuldades em meter na cabeccedila as tecnologias novas eu por mim sei da construccedilatildeo das tais torres o suficiente para os naturais daqui (hellip) (251)

131Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Groszlige Vorteile sind Portugal gewiszlig wenn es in diesem wie in anderen Faumlllen nachahmt was man in Europa an houmlchst modernen Dingen tut mag es euch anfaumlnglich auch schwerfallen die neuen Techniken in euren Kopf hinein-zukriegen ich meinerseits weiszlig vom Bau besagter Tuumlrme hinreichend viel um die hiesigen Eingeborenen zu unter-richten () (305)

Mesmo a traduccedilatildeo alematilde transmite a ideia de que a fala do cavaleiro Henrique perante o primeiro rei portuguecircs conteacutem uma paroacutedia do discurso poliacutetico actual que natildeo se cansa de propagar a imitaccedilatildeo da Europa avanccedilada representada pela capacidade eco-noacutemica e tecnoloacutegica de Alemanha em competiccedilatildeo com outras na-ccedilotildees Ao mesmo tempo projecta-se ndash apresentado como verdade de fora ndash a auto-imagem humilhante dos ldquonaturaisrdquo37 como matildeo-de--obra sem formaccedilatildeo agrave mercecirc das decisotildees de governantes que pac-tuam com os estrangeiros (252) como condiccedilatildeo da proacutepria geacutenese nacional No entanto a derrota da torre tatildeo bem construiacuteda que conduz ateacute agrave morte do seu construtor faz surgir a criacutetica dos ldquoen-genhos estrangeiros que tanto podem estar a favor como contrardquo (316) parodiando-se assim tanto a lsquolenda de auxiacuteliorsquo e a atitude colonizadora como o projecto portuguecircs de modernizaccedilatildeo europeia (Grossegesse 1995 228)

Reservando uma anaacutelise da constelaccedilatildeo transcultural entre o ca-valeiro alematildeo Henrique a sua ldquobarregatilderdquo Ouroana38 e o soldado Mogueime para outra ocasiatildeo centramo-nos num aspecto de jogo intertextual que ainda recebeu pouca atenccedilatildeo Face agrave ausecircncia do episoacutedio da torre moacutevel e da personalidade de Henrique de Bona na epiacutestola dirigida a Osberno eacute significativo que o romance sara-maguiano invente ldquoapontamentos para a carta de Osbernordquo (308) contendo estes em todo pormenor a histoacuteria do cavaleiro Henri-que A explicaccedilatildeo psicanaliacutetica de Ersatz para esta escrita do Frei Rogeiro39 tambeacutem eacute vaacutelida para o revisor Raimundo que insere na sua reescrita do Cerco de Lisboa a histoacuteria da conquista amorosa de Ouroana por Mogueime possibilitada pela morte do cavaleiro

132Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

alematildeo que espelha ndash atraveacutes dos tempos ndash a sua proacutepria lsquoconquis-tarsquo de Maria Sara

Com a ficccedilatildeo do texto apoacutecrifo inaugura-se uma hibridizaccedilatildeo transcultural das proacuteprias fontes histoacutericas possibilitando um amalgamar das narrativas dos cruzados com a Histoacuteria nacional e o lendaacuterio portuguecircs que culmina na releitura dos milagres do cava-leiro Henrique em simultacircneo com os milagres de Santo Antoacutenio o padroeiro mais popular de Lisboa A intersecccedilatildeo de milagres de ambos pelas leituras simultacircneas de Maria Sara e Raimundo eacute um acto que subverte tanto a procura da verdade histoacuterica como o conceito de identidades delimitadas por territoacuterio sangue e liacutengua Numa espeacutecie de metalepse o proacuteprio Frei Rogeiro apoacutes ter com-pilado ldquoos apontamentos que havia tomado durante uma volta que dera por todos os arraiaisrdquo (331) participa no episoacutedio milagroso ldquoComo o cavaleyro Amrique apareccedileo em sonhos a hum homem botildeo e como lhe disse que soterasem seu escudeiro a par delerdquo (Croacute-nica 51 cf Indiculum 84-85) cumprindo o papel daquele homem bom natildeo identificado

Mais significativo nesta leitura de milagres transformada em reescrita paroacutedica eacute o destaque atribuiacutedo agrave questatildeo de identida-des processos de deslocaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo culminando na trans-formaccedilatildeo de um milagre do cavaleiro Henrique numa espeacutecie de contra-mito da origem da liacutengua portuguesa ao narrar o milagre dos dois homens surdos-mudos que se deitaram ao lado do moi-mento do cavaleiro (Indiculum 83-84 Croacutenica 50-51) realccedila-se a incerteza da identidade deles ldquotinham vindo na frota poreacutem natildeo se sabe se ingleses aquitanos bretotildees flandrenses ou colonen-sesrdquo (335) Estando os dois homens assim jazendo ldquoadormeceram ambos e apareceu-lhes em sonho logo o cavaleiro Henrique (hellip) e falou agravequeles mancebosrdquo (336) ndash natildeo sabemos em que liacutengua ndash anunciando a sua cura de duvidoso efeito

(hellip) e eles acordando acharam que podiam ouvir e falar tambeacutem poreacutem falavam como gagos e de maneira que natildeo se entendia que liacutengua estavam falando se a dos ingleses

133Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ou aquitanos ou bretotildees ou flandrenses ou colonenses ou conforme natildeo poucos afirmavam a liacutengua dos portu-gueses (336)

Esta manipulaccedilatildeo natildeo de fontes histoacutericas mas de uma len-da convida para uma leitura metadiscursiva em vez de ldquocom voz chlara (hellip) contar a todo o povo o milagre que Deos em eles fizerardquo (Croacutenica 51) os dois ficam gagos No entanto o problema natildeo consiste em entender o que eacute que eles dizem mas em identificar a liacutengua que eles falam Nesta leitura o milagre reinterpretado enfa-tiza a visatildeo de uma hibridizaccedilatildeo das liacutenguas e das identidades no entanto consciente da imperfeita capacidade comunicativa que eacute aplicaacutevel agraves questotildees de revisatildeo e traduccedilatildeo

Tal como o revisor Raimundo Silva dentro da ficccedilatildeo o tradutor reescreve um texto anterior no entanto noutra liacutengua e para um leitor com outro horizonte cultural A procedecircncia das fontes histoacute-ricas e a apropriaccedilatildeo do cavaleiro Henrique pelo discurso da iden-tidade portuguesa demonstram a ineficaacutecia das definiccedilotildees puras de identidade e alteridade Em vez da tentativa de uma reproduccedilatildeo de uma liacutengua na outra no fundo irrealizaacutevel a visatildeo da hibridiza-ccedilatildeo das liacutenguas e identidades advoga uma recriaccedilatildeo naturalmente sempre parcial e imperfeita daquela heterogeneidade que Histoacuteria do Cerco de Lisboa exibe ao narrar a procura de uma ldquoverdaderdquo que ldquonatildeo pode ser mais do que uma cara sobreposta agraves infinitas maacutescaras variantes (hellip)rdquo (26) Para tal activa-se ldquooutro tipo de relaccedilotildees entre os elementos (hellip) porque as coerccedilotildees impostas pelas liacutenguas levam a diferentes possibilidades de contextualizaccedilotildees de remissotildees de encadeamentos de atribuiccedilatildeo de valores entre os elementosrdquo (Rodrigues 205) Se o romance reflecte claramente a diffeacuterance (Derrida 1967) como princiacutepio universal40 destacando os processos de traduccedilatildeo e reescrita este princiacutepio deve ser vaacutelido tambeacutem para a proacutepria traduccedilatildeo como propotildee Cristina Carneiro Rodrigues na continuaccedilatildeo de Rosemary Arojo (1993)

134Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

O original vive sobrevive na e pela sua proacutepria transfor-maccedilatildeo produzida pela leitura A traduccedilatildeo natildeo transporta uma essecircncia natildeo troca ou substitui significados dados prontos em um texto por significados equivalentes em outra liacutengua A traduccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo em que o laquotexto originalraquo se daacute por sua proacutepria modificaccedilatildeo em sua trans-formaccedilatildeo (Rodrigues 206)

O romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa interrelaciona esta con-diccedilatildeo de cada texto ser texto de textos transferidos traduzidos de outros textos em contextos histoacutericos sempre diferentes com a criacutetica da lsquoorigemrsquo da identidade individual e colectiva no sentido de transculturalidade e da ldquoculturersquos hibridityrdquo (Bhabha 1989 38) ambas com base expliacutecita na diffeacuterance Se reactivarmos a teoria de Jean Ricardou (1973) relativamente ao nouveau roman podemos dizer que a aventura da leitura escrita do revisor prefigura uma aventura semelhante do tradutor Tal como o revisor transformado em tradutor e autor ele transmite uma Histoacuteria do Cerco de Lis-boa recriada para outro leitor neste caso um leitor alheio natildeo soacute agrave narraccedilatildeo tradicional desta histoacuteria num discurso identitaacuterio mas tambeacutem agrave integraccedilatildeo da sua identidade cultural neste discurso Isto torna a traduccedilatildeo deste romance uma aventura de leitura e reescrita em certa medida jaacute prevista na Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Se no processo de traduccedilatildeo o tradutor ou tradutora tem que necessariamente tomar o lugar do autor e se apossar de seu texto para que esse possa sobreviver em outra liacutengua natildeo haacute como eliminar esse momento de usurpaccedilatildeo e con-quista que a reflexatildeo desconstrutivista flagra e desmascara (Arrojo 1993 82)

Curiosamente Rosemary Arrojo emprega a mesma metaacutefora de conquista utilizada para a aventura de Raimundo Silva que abrange a conquista amorosa de Maria Sara41 Eacute precisamente a mulher

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

129Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ca a substituiccedilatildeo de ldquobononensesrdquo por ldquobolonhesesrdquo Naturalmen-te as duas mudanccedilas reflectem-se na traduccedilatildeo alematilde que toma o romance saramaguiano como texto-fonte

(hellip) Information aus verlaumlszliglicher Quelle dem Vernehmen nach direkt vom beruumlhmten Osberno persoumlnlich und also koumlnnen wir uns vergewissern daszlig da Graf Arnoldo de Aar-schot zugegen war der die aus verschiedenen Regionen des deutschen Kaiserreiches herbeigestroumlmten Krieger befehlig-te und Cristiano de Gistell der den Flamen und Bologne-sern vorstand (hellip) (150)

Na traduccedilatildeo alematilde nomes proacuteprios estrangeiros natildeo satildeo lsquore-patriadosrsquo nem o proacuteprio Osberne nem Arnold ou Christian que ficam todos na grafia romacircnica No entanto ldquoimpeacuterio germacircni-cordquo passa para ldquodeutsches Kaiserreichrdquo uma traduccedilatildeo que insinua uma projecccedilatildeo anacroacutenica do seacuteculo XIX (refundaccedilatildeo do Heiliges Roumlmisches Reich Deutscher Nation como Deutsches Kaiserreich em 1871) natildeo pretendida no texto-fonte Naturalmente a traduccedilatildeo alematilde ignora a possibilidade latente jaacute apagada no texto sarama-guiano de encontrar a identidade alematilde nos ldquobononensesrdquo mal transcritos em ldquobolonhesesrdquo34 Esta transcriccedilatildeo defeituosa surpre-ende porque eacute a personalidade do cavaleiro Henrique de Bona ausente na epiacutestola35 que teve o maior relevo individual na histo-riografia portuguesa entre os ldquosamtos cavaleyros martiresrdquo

Nesta tomada de Lisboa morerom alguns cavaleyros como martires e depois faziam muytos milagres amtre os quaes foy hum cavaleyro chamado Amriqe alematildeo o qual era de hũa vila que chamom Bona posta jumto de Colonha o qual foy enterado em Sam Viccedilemte honde fazia muytos milagres (hellip) (Croacutenica 50)

130Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Merecendo destaque na histoacuteria da fundaccedilatildeo do mosteiro de Satildeo Vicente com episoacutedios de acccedilatildeo milagrosa depois de morto (Indiculum 83-85 Croacutenica 50-52) Henrique de Bona torna-se uma personagem da Histoacuteria portuguesa digna de entrar nrsquo Os Lu-siacuteadas (VIII 18) Procede-se a uma apropriaccedilatildeo do estrangeiro colonizador o alematildeo Henrique torna-se depois de ter vertido ldquode gram voontade o seu sangue antre os mouros pola paixom do Nosso Salvador Jesu Cristordquo (Indiculum 83) no maior Santo Cavaleiro da Tomada de Lisboa Na Alemanha ele estaacute totalmente desconhecido a natildeo ser no acircmbito da retoacuterica diplomaacutetica bila-teral na qual aparece natildeo como maacutertir mas como fundador dos ldquolaccedilos da amizade secular que liga o povo da Alemanha ao de Por-tugalrdquo (Ehrhardt 11) projectando a ajuda dos cruzados na geacutenese do reino de Portugal numa lsquolenda de auxiacuteliorsquo para todas as eacutepocas posteriores

Numa abordagem criacutetica observamos um duplo branqueamen-to (1) da memoacuteria do saque cruel e devastador da Lisboa moura perpetrado pelos cruzados colonenses e flandrenses e (2) da rela-ccedilatildeo colonizadora entre aliados no contexto da Europa Cingimo--nos no acircmbito deste estudo agrave anaacutelise do episoacutedio da torre moacutevel No romance a ideia da sua construccedilatildeo eacute atribuiacuteda ao cavaleiro Henrique manipulando as fontes histoacutericas que falam de engenhos militares em competiccedilatildeo entre os diferentes grupos eacutetnicos ou destacam ldquoum engenheiro italiano natural de Pisardquo36 O discurso profeacutetico de superioridade cultural deste cavaleiro revela os moti-vos desta escolha

Grandes satildeo as vantagens que a Portugal adviratildeo de imitar neste como noutros casos o que na Europa se vai fazendo de mais moderno ainda que ao princiacutepio experimenteis dificuldades em meter na cabeccedila as tecnologias novas eu por mim sei da construccedilatildeo das tais torres o suficiente para os naturais daqui (hellip) (251)

131Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Groszlige Vorteile sind Portugal gewiszlig wenn es in diesem wie in anderen Faumlllen nachahmt was man in Europa an houmlchst modernen Dingen tut mag es euch anfaumlnglich auch schwerfallen die neuen Techniken in euren Kopf hinein-zukriegen ich meinerseits weiszlig vom Bau besagter Tuumlrme hinreichend viel um die hiesigen Eingeborenen zu unter-richten () (305)

Mesmo a traduccedilatildeo alematilde transmite a ideia de que a fala do cavaleiro Henrique perante o primeiro rei portuguecircs conteacutem uma paroacutedia do discurso poliacutetico actual que natildeo se cansa de propagar a imitaccedilatildeo da Europa avanccedilada representada pela capacidade eco-noacutemica e tecnoloacutegica de Alemanha em competiccedilatildeo com outras na-ccedilotildees Ao mesmo tempo projecta-se ndash apresentado como verdade de fora ndash a auto-imagem humilhante dos ldquonaturaisrdquo37 como matildeo-de--obra sem formaccedilatildeo agrave mercecirc das decisotildees de governantes que pac-tuam com os estrangeiros (252) como condiccedilatildeo da proacutepria geacutenese nacional No entanto a derrota da torre tatildeo bem construiacuteda que conduz ateacute agrave morte do seu construtor faz surgir a criacutetica dos ldquoen-genhos estrangeiros que tanto podem estar a favor como contrardquo (316) parodiando-se assim tanto a lsquolenda de auxiacuteliorsquo e a atitude colonizadora como o projecto portuguecircs de modernizaccedilatildeo europeia (Grossegesse 1995 228)

Reservando uma anaacutelise da constelaccedilatildeo transcultural entre o ca-valeiro alematildeo Henrique a sua ldquobarregatilderdquo Ouroana38 e o soldado Mogueime para outra ocasiatildeo centramo-nos num aspecto de jogo intertextual que ainda recebeu pouca atenccedilatildeo Face agrave ausecircncia do episoacutedio da torre moacutevel e da personalidade de Henrique de Bona na epiacutestola dirigida a Osberno eacute significativo que o romance sara-maguiano invente ldquoapontamentos para a carta de Osbernordquo (308) contendo estes em todo pormenor a histoacuteria do cavaleiro Henri-que A explicaccedilatildeo psicanaliacutetica de Ersatz para esta escrita do Frei Rogeiro39 tambeacutem eacute vaacutelida para o revisor Raimundo que insere na sua reescrita do Cerco de Lisboa a histoacuteria da conquista amorosa de Ouroana por Mogueime possibilitada pela morte do cavaleiro

132Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

alematildeo que espelha ndash atraveacutes dos tempos ndash a sua proacutepria lsquoconquis-tarsquo de Maria Sara

Com a ficccedilatildeo do texto apoacutecrifo inaugura-se uma hibridizaccedilatildeo transcultural das proacuteprias fontes histoacutericas possibilitando um amalgamar das narrativas dos cruzados com a Histoacuteria nacional e o lendaacuterio portuguecircs que culmina na releitura dos milagres do cava-leiro Henrique em simultacircneo com os milagres de Santo Antoacutenio o padroeiro mais popular de Lisboa A intersecccedilatildeo de milagres de ambos pelas leituras simultacircneas de Maria Sara e Raimundo eacute um acto que subverte tanto a procura da verdade histoacuterica como o conceito de identidades delimitadas por territoacuterio sangue e liacutengua Numa espeacutecie de metalepse o proacuteprio Frei Rogeiro apoacutes ter com-pilado ldquoos apontamentos que havia tomado durante uma volta que dera por todos os arraiaisrdquo (331) participa no episoacutedio milagroso ldquoComo o cavaleyro Amrique apareccedileo em sonhos a hum homem botildeo e como lhe disse que soterasem seu escudeiro a par delerdquo (Croacute-nica 51 cf Indiculum 84-85) cumprindo o papel daquele homem bom natildeo identificado

Mais significativo nesta leitura de milagres transformada em reescrita paroacutedica eacute o destaque atribuiacutedo agrave questatildeo de identida-des processos de deslocaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo culminando na trans-formaccedilatildeo de um milagre do cavaleiro Henrique numa espeacutecie de contra-mito da origem da liacutengua portuguesa ao narrar o milagre dos dois homens surdos-mudos que se deitaram ao lado do moi-mento do cavaleiro (Indiculum 83-84 Croacutenica 50-51) realccedila-se a incerteza da identidade deles ldquotinham vindo na frota poreacutem natildeo se sabe se ingleses aquitanos bretotildees flandrenses ou colonen-sesrdquo (335) Estando os dois homens assim jazendo ldquoadormeceram ambos e apareceu-lhes em sonho logo o cavaleiro Henrique (hellip) e falou agravequeles mancebosrdquo (336) ndash natildeo sabemos em que liacutengua ndash anunciando a sua cura de duvidoso efeito

(hellip) e eles acordando acharam que podiam ouvir e falar tambeacutem poreacutem falavam como gagos e de maneira que natildeo se entendia que liacutengua estavam falando se a dos ingleses

133Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ou aquitanos ou bretotildees ou flandrenses ou colonenses ou conforme natildeo poucos afirmavam a liacutengua dos portu-gueses (336)

Esta manipulaccedilatildeo natildeo de fontes histoacutericas mas de uma len-da convida para uma leitura metadiscursiva em vez de ldquocom voz chlara (hellip) contar a todo o povo o milagre que Deos em eles fizerardquo (Croacutenica 51) os dois ficam gagos No entanto o problema natildeo consiste em entender o que eacute que eles dizem mas em identificar a liacutengua que eles falam Nesta leitura o milagre reinterpretado enfa-tiza a visatildeo de uma hibridizaccedilatildeo das liacutenguas e das identidades no entanto consciente da imperfeita capacidade comunicativa que eacute aplicaacutevel agraves questotildees de revisatildeo e traduccedilatildeo

Tal como o revisor Raimundo Silva dentro da ficccedilatildeo o tradutor reescreve um texto anterior no entanto noutra liacutengua e para um leitor com outro horizonte cultural A procedecircncia das fontes histoacute-ricas e a apropriaccedilatildeo do cavaleiro Henrique pelo discurso da iden-tidade portuguesa demonstram a ineficaacutecia das definiccedilotildees puras de identidade e alteridade Em vez da tentativa de uma reproduccedilatildeo de uma liacutengua na outra no fundo irrealizaacutevel a visatildeo da hibridiza-ccedilatildeo das liacutenguas e identidades advoga uma recriaccedilatildeo naturalmente sempre parcial e imperfeita daquela heterogeneidade que Histoacuteria do Cerco de Lisboa exibe ao narrar a procura de uma ldquoverdaderdquo que ldquonatildeo pode ser mais do que uma cara sobreposta agraves infinitas maacutescaras variantes (hellip)rdquo (26) Para tal activa-se ldquooutro tipo de relaccedilotildees entre os elementos (hellip) porque as coerccedilotildees impostas pelas liacutenguas levam a diferentes possibilidades de contextualizaccedilotildees de remissotildees de encadeamentos de atribuiccedilatildeo de valores entre os elementosrdquo (Rodrigues 205) Se o romance reflecte claramente a diffeacuterance (Derrida 1967) como princiacutepio universal40 destacando os processos de traduccedilatildeo e reescrita este princiacutepio deve ser vaacutelido tambeacutem para a proacutepria traduccedilatildeo como propotildee Cristina Carneiro Rodrigues na continuaccedilatildeo de Rosemary Arojo (1993)

134Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

O original vive sobrevive na e pela sua proacutepria transfor-maccedilatildeo produzida pela leitura A traduccedilatildeo natildeo transporta uma essecircncia natildeo troca ou substitui significados dados prontos em um texto por significados equivalentes em outra liacutengua A traduccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo em que o laquotexto originalraquo se daacute por sua proacutepria modificaccedilatildeo em sua trans-formaccedilatildeo (Rodrigues 206)

O romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa interrelaciona esta con-diccedilatildeo de cada texto ser texto de textos transferidos traduzidos de outros textos em contextos histoacutericos sempre diferentes com a criacutetica da lsquoorigemrsquo da identidade individual e colectiva no sentido de transculturalidade e da ldquoculturersquos hibridityrdquo (Bhabha 1989 38) ambas com base expliacutecita na diffeacuterance Se reactivarmos a teoria de Jean Ricardou (1973) relativamente ao nouveau roman podemos dizer que a aventura da leitura escrita do revisor prefigura uma aventura semelhante do tradutor Tal como o revisor transformado em tradutor e autor ele transmite uma Histoacuteria do Cerco de Lis-boa recriada para outro leitor neste caso um leitor alheio natildeo soacute agrave narraccedilatildeo tradicional desta histoacuteria num discurso identitaacuterio mas tambeacutem agrave integraccedilatildeo da sua identidade cultural neste discurso Isto torna a traduccedilatildeo deste romance uma aventura de leitura e reescrita em certa medida jaacute prevista na Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Se no processo de traduccedilatildeo o tradutor ou tradutora tem que necessariamente tomar o lugar do autor e se apossar de seu texto para que esse possa sobreviver em outra liacutengua natildeo haacute como eliminar esse momento de usurpaccedilatildeo e con-quista que a reflexatildeo desconstrutivista flagra e desmascara (Arrojo 1993 82)

Curiosamente Rosemary Arrojo emprega a mesma metaacutefora de conquista utilizada para a aventura de Raimundo Silva que abrange a conquista amorosa de Maria Sara41 Eacute precisamente a mulher

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

130Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Merecendo destaque na histoacuteria da fundaccedilatildeo do mosteiro de Satildeo Vicente com episoacutedios de acccedilatildeo milagrosa depois de morto (Indiculum 83-85 Croacutenica 50-52) Henrique de Bona torna-se uma personagem da Histoacuteria portuguesa digna de entrar nrsquo Os Lu-siacuteadas (VIII 18) Procede-se a uma apropriaccedilatildeo do estrangeiro colonizador o alematildeo Henrique torna-se depois de ter vertido ldquode gram voontade o seu sangue antre os mouros pola paixom do Nosso Salvador Jesu Cristordquo (Indiculum 83) no maior Santo Cavaleiro da Tomada de Lisboa Na Alemanha ele estaacute totalmente desconhecido a natildeo ser no acircmbito da retoacuterica diplomaacutetica bila-teral na qual aparece natildeo como maacutertir mas como fundador dos ldquolaccedilos da amizade secular que liga o povo da Alemanha ao de Por-tugalrdquo (Ehrhardt 11) projectando a ajuda dos cruzados na geacutenese do reino de Portugal numa lsquolenda de auxiacuteliorsquo para todas as eacutepocas posteriores

Numa abordagem criacutetica observamos um duplo branqueamen-to (1) da memoacuteria do saque cruel e devastador da Lisboa moura perpetrado pelos cruzados colonenses e flandrenses e (2) da rela-ccedilatildeo colonizadora entre aliados no contexto da Europa Cingimo--nos no acircmbito deste estudo agrave anaacutelise do episoacutedio da torre moacutevel No romance a ideia da sua construccedilatildeo eacute atribuiacuteda ao cavaleiro Henrique manipulando as fontes histoacutericas que falam de engenhos militares em competiccedilatildeo entre os diferentes grupos eacutetnicos ou destacam ldquoum engenheiro italiano natural de Pisardquo36 O discurso profeacutetico de superioridade cultural deste cavaleiro revela os moti-vos desta escolha

Grandes satildeo as vantagens que a Portugal adviratildeo de imitar neste como noutros casos o que na Europa se vai fazendo de mais moderno ainda que ao princiacutepio experimenteis dificuldades em meter na cabeccedila as tecnologias novas eu por mim sei da construccedilatildeo das tais torres o suficiente para os naturais daqui (hellip) (251)

131Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Groszlige Vorteile sind Portugal gewiszlig wenn es in diesem wie in anderen Faumlllen nachahmt was man in Europa an houmlchst modernen Dingen tut mag es euch anfaumlnglich auch schwerfallen die neuen Techniken in euren Kopf hinein-zukriegen ich meinerseits weiszlig vom Bau besagter Tuumlrme hinreichend viel um die hiesigen Eingeborenen zu unter-richten () (305)

Mesmo a traduccedilatildeo alematilde transmite a ideia de que a fala do cavaleiro Henrique perante o primeiro rei portuguecircs conteacutem uma paroacutedia do discurso poliacutetico actual que natildeo se cansa de propagar a imitaccedilatildeo da Europa avanccedilada representada pela capacidade eco-noacutemica e tecnoloacutegica de Alemanha em competiccedilatildeo com outras na-ccedilotildees Ao mesmo tempo projecta-se ndash apresentado como verdade de fora ndash a auto-imagem humilhante dos ldquonaturaisrdquo37 como matildeo-de--obra sem formaccedilatildeo agrave mercecirc das decisotildees de governantes que pac-tuam com os estrangeiros (252) como condiccedilatildeo da proacutepria geacutenese nacional No entanto a derrota da torre tatildeo bem construiacuteda que conduz ateacute agrave morte do seu construtor faz surgir a criacutetica dos ldquoen-genhos estrangeiros que tanto podem estar a favor como contrardquo (316) parodiando-se assim tanto a lsquolenda de auxiacuteliorsquo e a atitude colonizadora como o projecto portuguecircs de modernizaccedilatildeo europeia (Grossegesse 1995 228)

Reservando uma anaacutelise da constelaccedilatildeo transcultural entre o ca-valeiro alematildeo Henrique a sua ldquobarregatilderdquo Ouroana38 e o soldado Mogueime para outra ocasiatildeo centramo-nos num aspecto de jogo intertextual que ainda recebeu pouca atenccedilatildeo Face agrave ausecircncia do episoacutedio da torre moacutevel e da personalidade de Henrique de Bona na epiacutestola dirigida a Osberno eacute significativo que o romance sara-maguiano invente ldquoapontamentos para a carta de Osbernordquo (308) contendo estes em todo pormenor a histoacuteria do cavaleiro Henri-que A explicaccedilatildeo psicanaliacutetica de Ersatz para esta escrita do Frei Rogeiro39 tambeacutem eacute vaacutelida para o revisor Raimundo que insere na sua reescrita do Cerco de Lisboa a histoacuteria da conquista amorosa de Ouroana por Mogueime possibilitada pela morte do cavaleiro

132Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

alematildeo que espelha ndash atraveacutes dos tempos ndash a sua proacutepria lsquoconquis-tarsquo de Maria Sara

Com a ficccedilatildeo do texto apoacutecrifo inaugura-se uma hibridizaccedilatildeo transcultural das proacuteprias fontes histoacutericas possibilitando um amalgamar das narrativas dos cruzados com a Histoacuteria nacional e o lendaacuterio portuguecircs que culmina na releitura dos milagres do cava-leiro Henrique em simultacircneo com os milagres de Santo Antoacutenio o padroeiro mais popular de Lisboa A intersecccedilatildeo de milagres de ambos pelas leituras simultacircneas de Maria Sara e Raimundo eacute um acto que subverte tanto a procura da verdade histoacuterica como o conceito de identidades delimitadas por territoacuterio sangue e liacutengua Numa espeacutecie de metalepse o proacuteprio Frei Rogeiro apoacutes ter com-pilado ldquoos apontamentos que havia tomado durante uma volta que dera por todos os arraiaisrdquo (331) participa no episoacutedio milagroso ldquoComo o cavaleyro Amrique apareccedileo em sonhos a hum homem botildeo e como lhe disse que soterasem seu escudeiro a par delerdquo (Croacute-nica 51 cf Indiculum 84-85) cumprindo o papel daquele homem bom natildeo identificado

Mais significativo nesta leitura de milagres transformada em reescrita paroacutedica eacute o destaque atribuiacutedo agrave questatildeo de identida-des processos de deslocaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo culminando na trans-formaccedilatildeo de um milagre do cavaleiro Henrique numa espeacutecie de contra-mito da origem da liacutengua portuguesa ao narrar o milagre dos dois homens surdos-mudos que se deitaram ao lado do moi-mento do cavaleiro (Indiculum 83-84 Croacutenica 50-51) realccedila-se a incerteza da identidade deles ldquotinham vindo na frota poreacutem natildeo se sabe se ingleses aquitanos bretotildees flandrenses ou colonen-sesrdquo (335) Estando os dois homens assim jazendo ldquoadormeceram ambos e apareceu-lhes em sonho logo o cavaleiro Henrique (hellip) e falou agravequeles mancebosrdquo (336) ndash natildeo sabemos em que liacutengua ndash anunciando a sua cura de duvidoso efeito

(hellip) e eles acordando acharam que podiam ouvir e falar tambeacutem poreacutem falavam como gagos e de maneira que natildeo se entendia que liacutengua estavam falando se a dos ingleses

133Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ou aquitanos ou bretotildees ou flandrenses ou colonenses ou conforme natildeo poucos afirmavam a liacutengua dos portu-gueses (336)

Esta manipulaccedilatildeo natildeo de fontes histoacutericas mas de uma len-da convida para uma leitura metadiscursiva em vez de ldquocom voz chlara (hellip) contar a todo o povo o milagre que Deos em eles fizerardquo (Croacutenica 51) os dois ficam gagos No entanto o problema natildeo consiste em entender o que eacute que eles dizem mas em identificar a liacutengua que eles falam Nesta leitura o milagre reinterpretado enfa-tiza a visatildeo de uma hibridizaccedilatildeo das liacutenguas e das identidades no entanto consciente da imperfeita capacidade comunicativa que eacute aplicaacutevel agraves questotildees de revisatildeo e traduccedilatildeo

Tal como o revisor Raimundo Silva dentro da ficccedilatildeo o tradutor reescreve um texto anterior no entanto noutra liacutengua e para um leitor com outro horizonte cultural A procedecircncia das fontes histoacute-ricas e a apropriaccedilatildeo do cavaleiro Henrique pelo discurso da iden-tidade portuguesa demonstram a ineficaacutecia das definiccedilotildees puras de identidade e alteridade Em vez da tentativa de uma reproduccedilatildeo de uma liacutengua na outra no fundo irrealizaacutevel a visatildeo da hibridiza-ccedilatildeo das liacutenguas e identidades advoga uma recriaccedilatildeo naturalmente sempre parcial e imperfeita daquela heterogeneidade que Histoacuteria do Cerco de Lisboa exibe ao narrar a procura de uma ldquoverdaderdquo que ldquonatildeo pode ser mais do que uma cara sobreposta agraves infinitas maacutescaras variantes (hellip)rdquo (26) Para tal activa-se ldquooutro tipo de relaccedilotildees entre os elementos (hellip) porque as coerccedilotildees impostas pelas liacutenguas levam a diferentes possibilidades de contextualizaccedilotildees de remissotildees de encadeamentos de atribuiccedilatildeo de valores entre os elementosrdquo (Rodrigues 205) Se o romance reflecte claramente a diffeacuterance (Derrida 1967) como princiacutepio universal40 destacando os processos de traduccedilatildeo e reescrita este princiacutepio deve ser vaacutelido tambeacutem para a proacutepria traduccedilatildeo como propotildee Cristina Carneiro Rodrigues na continuaccedilatildeo de Rosemary Arojo (1993)

134Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

O original vive sobrevive na e pela sua proacutepria transfor-maccedilatildeo produzida pela leitura A traduccedilatildeo natildeo transporta uma essecircncia natildeo troca ou substitui significados dados prontos em um texto por significados equivalentes em outra liacutengua A traduccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo em que o laquotexto originalraquo se daacute por sua proacutepria modificaccedilatildeo em sua trans-formaccedilatildeo (Rodrigues 206)

O romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa interrelaciona esta con-diccedilatildeo de cada texto ser texto de textos transferidos traduzidos de outros textos em contextos histoacutericos sempre diferentes com a criacutetica da lsquoorigemrsquo da identidade individual e colectiva no sentido de transculturalidade e da ldquoculturersquos hibridityrdquo (Bhabha 1989 38) ambas com base expliacutecita na diffeacuterance Se reactivarmos a teoria de Jean Ricardou (1973) relativamente ao nouveau roman podemos dizer que a aventura da leitura escrita do revisor prefigura uma aventura semelhante do tradutor Tal como o revisor transformado em tradutor e autor ele transmite uma Histoacuteria do Cerco de Lis-boa recriada para outro leitor neste caso um leitor alheio natildeo soacute agrave narraccedilatildeo tradicional desta histoacuteria num discurso identitaacuterio mas tambeacutem agrave integraccedilatildeo da sua identidade cultural neste discurso Isto torna a traduccedilatildeo deste romance uma aventura de leitura e reescrita em certa medida jaacute prevista na Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Se no processo de traduccedilatildeo o tradutor ou tradutora tem que necessariamente tomar o lugar do autor e se apossar de seu texto para que esse possa sobreviver em outra liacutengua natildeo haacute como eliminar esse momento de usurpaccedilatildeo e con-quista que a reflexatildeo desconstrutivista flagra e desmascara (Arrojo 1993 82)

Curiosamente Rosemary Arrojo emprega a mesma metaacutefora de conquista utilizada para a aventura de Raimundo Silva que abrange a conquista amorosa de Maria Sara41 Eacute precisamente a mulher

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

131Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

Groszlige Vorteile sind Portugal gewiszlig wenn es in diesem wie in anderen Faumlllen nachahmt was man in Europa an houmlchst modernen Dingen tut mag es euch anfaumlnglich auch schwerfallen die neuen Techniken in euren Kopf hinein-zukriegen ich meinerseits weiszlig vom Bau besagter Tuumlrme hinreichend viel um die hiesigen Eingeborenen zu unter-richten () (305)

Mesmo a traduccedilatildeo alematilde transmite a ideia de que a fala do cavaleiro Henrique perante o primeiro rei portuguecircs conteacutem uma paroacutedia do discurso poliacutetico actual que natildeo se cansa de propagar a imitaccedilatildeo da Europa avanccedilada representada pela capacidade eco-noacutemica e tecnoloacutegica de Alemanha em competiccedilatildeo com outras na-ccedilotildees Ao mesmo tempo projecta-se ndash apresentado como verdade de fora ndash a auto-imagem humilhante dos ldquonaturaisrdquo37 como matildeo-de--obra sem formaccedilatildeo agrave mercecirc das decisotildees de governantes que pac-tuam com os estrangeiros (252) como condiccedilatildeo da proacutepria geacutenese nacional No entanto a derrota da torre tatildeo bem construiacuteda que conduz ateacute agrave morte do seu construtor faz surgir a criacutetica dos ldquoen-genhos estrangeiros que tanto podem estar a favor como contrardquo (316) parodiando-se assim tanto a lsquolenda de auxiacuteliorsquo e a atitude colonizadora como o projecto portuguecircs de modernizaccedilatildeo europeia (Grossegesse 1995 228)

Reservando uma anaacutelise da constelaccedilatildeo transcultural entre o ca-valeiro alematildeo Henrique a sua ldquobarregatilderdquo Ouroana38 e o soldado Mogueime para outra ocasiatildeo centramo-nos num aspecto de jogo intertextual que ainda recebeu pouca atenccedilatildeo Face agrave ausecircncia do episoacutedio da torre moacutevel e da personalidade de Henrique de Bona na epiacutestola dirigida a Osberno eacute significativo que o romance sara-maguiano invente ldquoapontamentos para a carta de Osbernordquo (308) contendo estes em todo pormenor a histoacuteria do cavaleiro Henri-que A explicaccedilatildeo psicanaliacutetica de Ersatz para esta escrita do Frei Rogeiro39 tambeacutem eacute vaacutelida para o revisor Raimundo que insere na sua reescrita do Cerco de Lisboa a histoacuteria da conquista amorosa de Ouroana por Mogueime possibilitada pela morte do cavaleiro

132Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

alematildeo que espelha ndash atraveacutes dos tempos ndash a sua proacutepria lsquoconquis-tarsquo de Maria Sara

Com a ficccedilatildeo do texto apoacutecrifo inaugura-se uma hibridizaccedilatildeo transcultural das proacuteprias fontes histoacutericas possibilitando um amalgamar das narrativas dos cruzados com a Histoacuteria nacional e o lendaacuterio portuguecircs que culmina na releitura dos milagres do cava-leiro Henrique em simultacircneo com os milagres de Santo Antoacutenio o padroeiro mais popular de Lisboa A intersecccedilatildeo de milagres de ambos pelas leituras simultacircneas de Maria Sara e Raimundo eacute um acto que subverte tanto a procura da verdade histoacuterica como o conceito de identidades delimitadas por territoacuterio sangue e liacutengua Numa espeacutecie de metalepse o proacuteprio Frei Rogeiro apoacutes ter com-pilado ldquoos apontamentos que havia tomado durante uma volta que dera por todos os arraiaisrdquo (331) participa no episoacutedio milagroso ldquoComo o cavaleyro Amrique apareccedileo em sonhos a hum homem botildeo e como lhe disse que soterasem seu escudeiro a par delerdquo (Croacute-nica 51 cf Indiculum 84-85) cumprindo o papel daquele homem bom natildeo identificado

Mais significativo nesta leitura de milagres transformada em reescrita paroacutedica eacute o destaque atribuiacutedo agrave questatildeo de identida-des processos de deslocaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo culminando na trans-formaccedilatildeo de um milagre do cavaleiro Henrique numa espeacutecie de contra-mito da origem da liacutengua portuguesa ao narrar o milagre dos dois homens surdos-mudos que se deitaram ao lado do moi-mento do cavaleiro (Indiculum 83-84 Croacutenica 50-51) realccedila-se a incerteza da identidade deles ldquotinham vindo na frota poreacutem natildeo se sabe se ingleses aquitanos bretotildees flandrenses ou colonen-sesrdquo (335) Estando os dois homens assim jazendo ldquoadormeceram ambos e apareceu-lhes em sonho logo o cavaleiro Henrique (hellip) e falou agravequeles mancebosrdquo (336) ndash natildeo sabemos em que liacutengua ndash anunciando a sua cura de duvidoso efeito

(hellip) e eles acordando acharam que podiam ouvir e falar tambeacutem poreacutem falavam como gagos e de maneira que natildeo se entendia que liacutengua estavam falando se a dos ingleses

133Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ou aquitanos ou bretotildees ou flandrenses ou colonenses ou conforme natildeo poucos afirmavam a liacutengua dos portu-gueses (336)

Esta manipulaccedilatildeo natildeo de fontes histoacutericas mas de uma len-da convida para uma leitura metadiscursiva em vez de ldquocom voz chlara (hellip) contar a todo o povo o milagre que Deos em eles fizerardquo (Croacutenica 51) os dois ficam gagos No entanto o problema natildeo consiste em entender o que eacute que eles dizem mas em identificar a liacutengua que eles falam Nesta leitura o milagre reinterpretado enfa-tiza a visatildeo de uma hibridizaccedilatildeo das liacutenguas e das identidades no entanto consciente da imperfeita capacidade comunicativa que eacute aplicaacutevel agraves questotildees de revisatildeo e traduccedilatildeo

Tal como o revisor Raimundo Silva dentro da ficccedilatildeo o tradutor reescreve um texto anterior no entanto noutra liacutengua e para um leitor com outro horizonte cultural A procedecircncia das fontes histoacute-ricas e a apropriaccedilatildeo do cavaleiro Henrique pelo discurso da iden-tidade portuguesa demonstram a ineficaacutecia das definiccedilotildees puras de identidade e alteridade Em vez da tentativa de uma reproduccedilatildeo de uma liacutengua na outra no fundo irrealizaacutevel a visatildeo da hibridiza-ccedilatildeo das liacutenguas e identidades advoga uma recriaccedilatildeo naturalmente sempre parcial e imperfeita daquela heterogeneidade que Histoacuteria do Cerco de Lisboa exibe ao narrar a procura de uma ldquoverdaderdquo que ldquonatildeo pode ser mais do que uma cara sobreposta agraves infinitas maacutescaras variantes (hellip)rdquo (26) Para tal activa-se ldquooutro tipo de relaccedilotildees entre os elementos (hellip) porque as coerccedilotildees impostas pelas liacutenguas levam a diferentes possibilidades de contextualizaccedilotildees de remissotildees de encadeamentos de atribuiccedilatildeo de valores entre os elementosrdquo (Rodrigues 205) Se o romance reflecte claramente a diffeacuterance (Derrida 1967) como princiacutepio universal40 destacando os processos de traduccedilatildeo e reescrita este princiacutepio deve ser vaacutelido tambeacutem para a proacutepria traduccedilatildeo como propotildee Cristina Carneiro Rodrigues na continuaccedilatildeo de Rosemary Arojo (1993)

134Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

O original vive sobrevive na e pela sua proacutepria transfor-maccedilatildeo produzida pela leitura A traduccedilatildeo natildeo transporta uma essecircncia natildeo troca ou substitui significados dados prontos em um texto por significados equivalentes em outra liacutengua A traduccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo em que o laquotexto originalraquo se daacute por sua proacutepria modificaccedilatildeo em sua trans-formaccedilatildeo (Rodrigues 206)

O romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa interrelaciona esta con-diccedilatildeo de cada texto ser texto de textos transferidos traduzidos de outros textos em contextos histoacutericos sempre diferentes com a criacutetica da lsquoorigemrsquo da identidade individual e colectiva no sentido de transculturalidade e da ldquoculturersquos hibridityrdquo (Bhabha 1989 38) ambas com base expliacutecita na diffeacuterance Se reactivarmos a teoria de Jean Ricardou (1973) relativamente ao nouveau roman podemos dizer que a aventura da leitura escrita do revisor prefigura uma aventura semelhante do tradutor Tal como o revisor transformado em tradutor e autor ele transmite uma Histoacuteria do Cerco de Lis-boa recriada para outro leitor neste caso um leitor alheio natildeo soacute agrave narraccedilatildeo tradicional desta histoacuteria num discurso identitaacuterio mas tambeacutem agrave integraccedilatildeo da sua identidade cultural neste discurso Isto torna a traduccedilatildeo deste romance uma aventura de leitura e reescrita em certa medida jaacute prevista na Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Se no processo de traduccedilatildeo o tradutor ou tradutora tem que necessariamente tomar o lugar do autor e se apossar de seu texto para que esse possa sobreviver em outra liacutengua natildeo haacute como eliminar esse momento de usurpaccedilatildeo e con-quista que a reflexatildeo desconstrutivista flagra e desmascara (Arrojo 1993 82)

Curiosamente Rosemary Arrojo emprega a mesma metaacutefora de conquista utilizada para a aventura de Raimundo Silva que abrange a conquista amorosa de Maria Sara41 Eacute precisamente a mulher

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

132Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

alematildeo que espelha ndash atraveacutes dos tempos ndash a sua proacutepria lsquoconquis-tarsquo de Maria Sara

Com a ficccedilatildeo do texto apoacutecrifo inaugura-se uma hibridizaccedilatildeo transcultural das proacuteprias fontes histoacutericas possibilitando um amalgamar das narrativas dos cruzados com a Histoacuteria nacional e o lendaacuterio portuguecircs que culmina na releitura dos milagres do cava-leiro Henrique em simultacircneo com os milagres de Santo Antoacutenio o padroeiro mais popular de Lisboa A intersecccedilatildeo de milagres de ambos pelas leituras simultacircneas de Maria Sara e Raimundo eacute um acto que subverte tanto a procura da verdade histoacuterica como o conceito de identidades delimitadas por territoacuterio sangue e liacutengua Numa espeacutecie de metalepse o proacuteprio Frei Rogeiro apoacutes ter com-pilado ldquoos apontamentos que havia tomado durante uma volta que dera por todos os arraiaisrdquo (331) participa no episoacutedio milagroso ldquoComo o cavaleyro Amrique apareccedileo em sonhos a hum homem botildeo e como lhe disse que soterasem seu escudeiro a par delerdquo (Croacute-nica 51 cf Indiculum 84-85) cumprindo o papel daquele homem bom natildeo identificado

Mais significativo nesta leitura de milagres transformada em reescrita paroacutedica eacute o destaque atribuiacutedo agrave questatildeo de identida-des processos de deslocaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo culminando na trans-formaccedilatildeo de um milagre do cavaleiro Henrique numa espeacutecie de contra-mito da origem da liacutengua portuguesa ao narrar o milagre dos dois homens surdos-mudos que se deitaram ao lado do moi-mento do cavaleiro (Indiculum 83-84 Croacutenica 50-51) realccedila-se a incerteza da identidade deles ldquotinham vindo na frota poreacutem natildeo se sabe se ingleses aquitanos bretotildees flandrenses ou colonen-sesrdquo (335) Estando os dois homens assim jazendo ldquoadormeceram ambos e apareceu-lhes em sonho logo o cavaleiro Henrique (hellip) e falou agravequeles mancebosrdquo (336) ndash natildeo sabemos em que liacutengua ndash anunciando a sua cura de duvidoso efeito

(hellip) e eles acordando acharam que podiam ouvir e falar tambeacutem poreacutem falavam como gagos e de maneira que natildeo se entendia que liacutengua estavam falando se a dos ingleses

133Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ou aquitanos ou bretotildees ou flandrenses ou colonenses ou conforme natildeo poucos afirmavam a liacutengua dos portu-gueses (336)

Esta manipulaccedilatildeo natildeo de fontes histoacutericas mas de uma len-da convida para uma leitura metadiscursiva em vez de ldquocom voz chlara (hellip) contar a todo o povo o milagre que Deos em eles fizerardquo (Croacutenica 51) os dois ficam gagos No entanto o problema natildeo consiste em entender o que eacute que eles dizem mas em identificar a liacutengua que eles falam Nesta leitura o milagre reinterpretado enfa-tiza a visatildeo de uma hibridizaccedilatildeo das liacutenguas e das identidades no entanto consciente da imperfeita capacidade comunicativa que eacute aplicaacutevel agraves questotildees de revisatildeo e traduccedilatildeo

Tal como o revisor Raimundo Silva dentro da ficccedilatildeo o tradutor reescreve um texto anterior no entanto noutra liacutengua e para um leitor com outro horizonte cultural A procedecircncia das fontes histoacute-ricas e a apropriaccedilatildeo do cavaleiro Henrique pelo discurso da iden-tidade portuguesa demonstram a ineficaacutecia das definiccedilotildees puras de identidade e alteridade Em vez da tentativa de uma reproduccedilatildeo de uma liacutengua na outra no fundo irrealizaacutevel a visatildeo da hibridiza-ccedilatildeo das liacutenguas e identidades advoga uma recriaccedilatildeo naturalmente sempre parcial e imperfeita daquela heterogeneidade que Histoacuteria do Cerco de Lisboa exibe ao narrar a procura de uma ldquoverdaderdquo que ldquonatildeo pode ser mais do que uma cara sobreposta agraves infinitas maacutescaras variantes (hellip)rdquo (26) Para tal activa-se ldquooutro tipo de relaccedilotildees entre os elementos (hellip) porque as coerccedilotildees impostas pelas liacutenguas levam a diferentes possibilidades de contextualizaccedilotildees de remissotildees de encadeamentos de atribuiccedilatildeo de valores entre os elementosrdquo (Rodrigues 205) Se o romance reflecte claramente a diffeacuterance (Derrida 1967) como princiacutepio universal40 destacando os processos de traduccedilatildeo e reescrita este princiacutepio deve ser vaacutelido tambeacutem para a proacutepria traduccedilatildeo como propotildee Cristina Carneiro Rodrigues na continuaccedilatildeo de Rosemary Arojo (1993)

134Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

O original vive sobrevive na e pela sua proacutepria transfor-maccedilatildeo produzida pela leitura A traduccedilatildeo natildeo transporta uma essecircncia natildeo troca ou substitui significados dados prontos em um texto por significados equivalentes em outra liacutengua A traduccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo em que o laquotexto originalraquo se daacute por sua proacutepria modificaccedilatildeo em sua trans-formaccedilatildeo (Rodrigues 206)

O romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa interrelaciona esta con-diccedilatildeo de cada texto ser texto de textos transferidos traduzidos de outros textos em contextos histoacutericos sempre diferentes com a criacutetica da lsquoorigemrsquo da identidade individual e colectiva no sentido de transculturalidade e da ldquoculturersquos hibridityrdquo (Bhabha 1989 38) ambas com base expliacutecita na diffeacuterance Se reactivarmos a teoria de Jean Ricardou (1973) relativamente ao nouveau roman podemos dizer que a aventura da leitura escrita do revisor prefigura uma aventura semelhante do tradutor Tal como o revisor transformado em tradutor e autor ele transmite uma Histoacuteria do Cerco de Lis-boa recriada para outro leitor neste caso um leitor alheio natildeo soacute agrave narraccedilatildeo tradicional desta histoacuteria num discurso identitaacuterio mas tambeacutem agrave integraccedilatildeo da sua identidade cultural neste discurso Isto torna a traduccedilatildeo deste romance uma aventura de leitura e reescrita em certa medida jaacute prevista na Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Se no processo de traduccedilatildeo o tradutor ou tradutora tem que necessariamente tomar o lugar do autor e se apossar de seu texto para que esse possa sobreviver em outra liacutengua natildeo haacute como eliminar esse momento de usurpaccedilatildeo e con-quista que a reflexatildeo desconstrutivista flagra e desmascara (Arrojo 1993 82)

Curiosamente Rosemary Arrojo emprega a mesma metaacutefora de conquista utilizada para a aventura de Raimundo Silva que abrange a conquista amorosa de Maria Sara41 Eacute precisamente a mulher

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

133Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

ou aquitanos ou bretotildees ou flandrenses ou colonenses ou conforme natildeo poucos afirmavam a liacutengua dos portu-gueses (336)

Esta manipulaccedilatildeo natildeo de fontes histoacutericas mas de uma len-da convida para uma leitura metadiscursiva em vez de ldquocom voz chlara (hellip) contar a todo o povo o milagre que Deos em eles fizerardquo (Croacutenica 51) os dois ficam gagos No entanto o problema natildeo consiste em entender o que eacute que eles dizem mas em identificar a liacutengua que eles falam Nesta leitura o milagre reinterpretado enfa-tiza a visatildeo de uma hibridizaccedilatildeo das liacutenguas e das identidades no entanto consciente da imperfeita capacidade comunicativa que eacute aplicaacutevel agraves questotildees de revisatildeo e traduccedilatildeo

Tal como o revisor Raimundo Silva dentro da ficccedilatildeo o tradutor reescreve um texto anterior no entanto noutra liacutengua e para um leitor com outro horizonte cultural A procedecircncia das fontes histoacute-ricas e a apropriaccedilatildeo do cavaleiro Henrique pelo discurso da iden-tidade portuguesa demonstram a ineficaacutecia das definiccedilotildees puras de identidade e alteridade Em vez da tentativa de uma reproduccedilatildeo de uma liacutengua na outra no fundo irrealizaacutevel a visatildeo da hibridiza-ccedilatildeo das liacutenguas e identidades advoga uma recriaccedilatildeo naturalmente sempre parcial e imperfeita daquela heterogeneidade que Histoacuteria do Cerco de Lisboa exibe ao narrar a procura de uma ldquoverdaderdquo que ldquonatildeo pode ser mais do que uma cara sobreposta agraves infinitas maacutescaras variantes (hellip)rdquo (26) Para tal activa-se ldquooutro tipo de relaccedilotildees entre os elementos (hellip) porque as coerccedilotildees impostas pelas liacutenguas levam a diferentes possibilidades de contextualizaccedilotildees de remissotildees de encadeamentos de atribuiccedilatildeo de valores entre os elementosrdquo (Rodrigues 205) Se o romance reflecte claramente a diffeacuterance (Derrida 1967) como princiacutepio universal40 destacando os processos de traduccedilatildeo e reescrita este princiacutepio deve ser vaacutelido tambeacutem para a proacutepria traduccedilatildeo como propotildee Cristina Carneiro Rodrigues na continuaccedilatildeo de Rosemary Arojo (1993)

134Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

O original vive sobrevive na e pela sua proacutepria transfor-maccedilatildeo produzida pela leitura A traduccedilatildeo natildeo transporta uma essecircncia natildeo troca ou substitui significados dados prontos em um texto por significados equivalentes em outra liacutengua A traduccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo em que o laquotexto originalraquo se daacute por sua proacutepria modificaccedilatildeo em sua trans-formaccedilatildeo (Rodrigues 206)

O romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa interrelaciona esta con-diccedilatildeo de cada texto ser texto de textos transferidos traduzidos de outros textos em contextos histoacutericos sempre diferentes com a criacutetica da lsquoorigemrsquo da identidade individual e colectiva no sentido de transculturalidade e da ldquoculturersquos hibridityrdquo (Bhabha 1989 38) ambas com base expliacutecita na diffeacuterance Se reactivarmos a teoria de Jean Ricardou (1973) relativamente ao nouveau roman podemos dizer que a aventura da leitura escrita do revisor prefigura uma aventura semelhante do tradutor Tal como o revisor transformado em tradutor e autor ele transmite uma Histoacuteria do Cerco de Lis-boa recriada para outro leitor neste caso um leitor alheio natildeo soacute agrave narraccedilatildeo tradicional desta histoacuteria num discurso identitaacuterio mas tambeacutem agrave integraccedilatildeo da sua identidade cultural neste discurso Isto torna a traduccedilatildeo deste romance uma aventura de leitura e reescrita em certa medida jaacute prevista na Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Se no processo de traduccedilatildeo o tradutor ou tradutora tem que necessariamente tomar o lugar do autor e se apossar de seu texto para que esse possa sobreviver em outra liacutengua natildeo haacute como eliminar esse momento de usurpaccedilatildeo e con-quista que a reflexatildeo desconstrutivista flagra e desmascara (Arrojo 1993 82)

Curiosamente Rosemary Arrojo emprega a mesma metaacutefora de conquista utilizada para a aventura de Raimundo Silva que abrange a conquista amorosa de Maria Sara41 Eacute precisamente a mulher

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

134Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

O original vive sobrevive na e pela sua proacutepria transfor-maccedilatildeo produzida pela leitura A traduccedilatildeo natildeo transporta uma essecircncia natildeo troca ou substitui significados dados prontos em um texto por significados equivalentes em outra liacutengua A traduccedilatildeo eacute uma relaccedilatildeo em que o laquotexto originalraquo se daacute por sua proacutepria modificaccedilatildeo em sua trans-formaccedilatildeo (Rodrigues 206)

O romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa interrelaciona esta con-diccedilatildeo de cada texto ser texto de textos transferidos traduzidos de outros textos em contextos histoacutericos sempre diferentes com a criacutetica da lsquoorigemrsquo da identidade individual e colectiva no sentido de transculturalidade e da ldquoculturersquos hibridityrdquo (Bhabha 1989 38) ambas com base expliacutecita na diffeacuterance Se reactivarmos a teoria de Jean Ricardou (1973) relativamente ao nouveau roman podemos dizer que a aventura da leitura escrita do revisor prefigura uma aventura semelhante do tradutor Tal como o revisor transformado em tradutor e autor ele transmite uma Histoacuteria do Cerco de Lis-boa recriada para outro leitor neste caso um leitor alheio natildeo soacute agrave narraccedilatildeo tradicional desta histoacuteria num discurso identitaacuterio mas tambeacutem agrave integraccedilatildeo da sua identidade cultural neste discurso Isto torna a traduccedilatildeo deste romance uma aventura de leitura e reescrita em certa medida jaacute prevista na Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Se no processo de traduccedilatildeo o tradutor ou tradutora tem que necessariamente tomar o lugar do autor e se apossar de seu texto para que esse possa sobreviver em outra liacutengua natildeo haacute como eliminar esse momento de usurpaccedilatildeo e con-quista que a reflexatildeo desconstrutivista flagra e desmascara (Arrojo 1993 82)

Curiosamente Rosemary Arrojo emprega a mesma metaacutefora de conquista utilizada para a aventura de Raimundo Silva que abrange a conquista amorosa de Maria Sara41 Eacute precisamente a mulher

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

135Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

que apoia a conquista de um texto que natildeo lhe pertence e motiva a sua sobrevivecircncia ou ateacute mesmo o seu auto-nascimento em con-formidade com a poeacutetica saramaguiana42 O romance acaba numa subtil reivindicaccedilatildeo do pneuma anterior ao logos personificado no almuadem que permanece depois de degolado ldquouma sombrardquo que respira sob ldquoo alpendre da varandardquo precisamente no lugar fron-teiriccedilo da Cerca Moura onde descansam Maria Sara e Raimundo Silva (P 348) A reivindicaccedilatildeo deste entre-lugar tambeacutem eacute vaacutelida para qualquer traduccedilatildeo da Histoacuteria do Cerco de Lisboa

Notas

1 O adveacuterbio lsquorecentementersquo refere-se ao contexto inicial deste estudo quando apresentado no Coloacutequio Internacional sobre Estudos de Traduccedilatildeo (orgs) Marian Schoenmakers amp Vera Fonseca Univ Utrecht (Holanda) Junho de 2006 Natildeo chegando a haver Actas deste evento agradeccedilo agrave Profordf Andreacuteia Guerini a oportunidade desta publicaccedilatildeo posterior

2 no fundo jaacute interiorizada como ldquocontra-imagem auto-humilhanterdquo (Lourenccedilo 75)

3 O leitor natildeo confunda os dois senhores Welsh e Welsch Parece-me uma coincidecircncia curiosa de precisamente o adjectivo homoacutefono ldquowelschrdquo (vindo do alematildeo antigo walasg e walahisc) denominar o outro o estrangeiro (= o indiviacuteduo vindo do Sul da Europa latino romano) oposto ao proacuteprio (= ldquodeutschrdquo vindo de diutisc = pertencente ao povo)

4 ldquoim Bewuszligtsein seines gegenwaumlrtigen Standorts in der historischen Reihe der Leserrdquo (Jauss 171) Todas as traduccedilotildees de bibliografia passiva satildeo do autor deste estudo

5 O texto portuguecircs e o texto da traduccedilatildeo alematilde (tradutor Andreas Klotsch) citados com as siglas P e T respectivamente

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

136Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

6 ldquoCultures are never unitary in themselves nor simply dualistic in the relation of Self to Otherrdquo (Bhabha 1989 35-36)

7 Para facilitar a leitura deste estudo falamos sempre do lsquolivro do historiadorrsquo para identificar o texto historiograacutefico cuja revisatildeo leva Raimundo Silva paulatinamente a actos de reescrita que por sua vez satildeo objeto da ficccedilatildeo do romance Histoacuteria do Cerco de Lisboa

8 ldquoEnquanto natildeo alcanccedilares a verdade natildeo poderaacutes corrigi-la Poreacutem se a natildeo corrigires natildeo o alcanccedilaraacutes Entretanto natildeo te resignesrdquo

9 Antigamente atribuiacuteda por alguns investigadores a Fernatildeo Lopes eacute publicada pela primeira vez em 1945 e recebe posteriormente a designaccedilatildeo Croacutenica de Portugal de 1419 (ed criacutetica de Adelino de Almeida Calado 1998) Para aleacutem dos mencionados o romance saramaguiano cita ainda o Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone (em latim seacutec XIII versatildeo portuguesa entre 1340 e 1400)

10 Esta visatildeo global europeia jaacute presente na Histoacuteria de Portugal Livro II de Alexandre Herculano (486-87) reaparece num texto jornaliacutestico motivado pelo ldquochoque violento entre duas culturasrdquo no Meacutedio Oriente por ocasiatildeo da Guerra do Iraque De passagem oferece-se uma versatildeo da conquista de Lisboa que mostra para aleacutem da habitual superficialidade histoacuterica uma surpreendente indiferenccedila relativamente agrave narrativa fundacional portuguesa ldquoOrganizaram-se ainda diversas cruzadas de menores dimensotildees Uma delas compostas por soldados ingleses e dinamarqueses conquistou Lisboa aos mouros (por iniciativa do bispo do Porto) em 1147 e entregou-a a D Afonso Henriques ndash que como sabemos tambeacutem participou no cercordquo (Martins 138)

11 Cf a anaacutelise dos ldquoJogos Intertextuaisrdquo no contexto teoacuterico de Bakhtin e Hutcheon in Caragea (2003 232-241) Ao destacar a capacidade do revisor para ldquopolifoacutenicos edifiacutecios verbaisrdquo (22) o romance saramaguiano revela claramente a consciecircncia deste contexto

12 ldquoLabrego ndash Indiviacuteduo cretino grosseiro provincianordquo (Nobre 93)

13 Istoria asediului Lisabonei Bucareste Ed Univers 1998 prefaacutecio sob o tiacutetulo ldquoJocul cu Istoriardquo [Jogo com a Histoacuteria] pp 5-16 Um estudo comparativo desta traduccedilatildeo estaacute em preparaccedilatildeo

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

137Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

14 ldquoJede Uumlbersetzung steht fuumlr einen Ausgangstext und statt eines Ausgangstextes in der Zielliteratur Ihre Kommentierung oder Nichtkommentierung entscheidet sich danach welcher Aspekt der Januskoumlpfigkeit akzentuiert wird Uumlbersetzungen sind aber auch in jeder Literatur ein privilegierter Ort zur Artikulation von Differenzqualitaumltenrdquo (Turk 3-4)

15 Trata-se de um documento encontrado na Biblioteca do Coleacutegio do Corpo de Cristo da Universidade de Cambridge copiado pelo paleoacutegrafo N E Hamilton e publicado pela primeira vez em 1856 numa versatildeo anotada por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Histoacuterica Scriptores vol I Baseia-se nela nomeadamente o famoso olisiponense Juacutelio de Castilho em Lisboa Antiga (vol II) realizando ldquoa mais pormenorizada narraccedilatildeo do cerco e da conquista de Lisboardquo nas palavras de outro olisiponense Augusto Vieira da Silva (Conquista 9) no prefaacutecio da ediccedilatildeo bilingue (latim portuguecircs) da carta provavelmente consultada por Saramago na geacutenese do seu romance

16 Vd a definiccedilatildeo no pacto dos sitiadores (ldquopactum inter me et francos quod scilet ego Hydefonxus rex portugalensiumrdquo Conquista p 50) e o louvor da conquista ldquomagnificatum est francorum nomen per universas Hyspaniae partes irruitque timor super mauros quibus verbum hujus actionis divulgabaturrdquo (Conquista 84)

17 ldquoEm rigor Portugal natildeo nasceu do Condado Portucalense a natildeo ser no que respeitou agrave dinastia reinante e agrave elite nobre que a circundava Quase todas as estruturas vigentes no Sul islacircmico ndash propriedade economia boa parte dos estrados meacutedios e inferiores da sociedade grande parte do municipalismo e da organizaccedilatildeo do Estado religiatildeo liacutengua e ateacute cultura ndash exerceram papel relevante na constituiccedilatildeo do novo paiacutesrdquo (Marques 69)

18 ldquo() es bestehen groszlige Zweifel ob der Erzbischof von Braga unseres lusitanischen Blutes ist nun ja schon in jenen alten Zeiten war die von uns bis heute aufrechterhaltene Fama im Schwang daszlig wir Leute von auszligen freundlich aufnehmen und sie mit Posten und Pfruumlnden versehen ()ldquo (240 negrito nosso)

19 (Alves 12) Natildeo conseguimos averiguar se a data da primeira ediccedilatildeo de Alves (2004)2 eacute anterior agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria do Cerco de Lisboa (1989) Importa referir que esta discussatildeo jaacute eacute antiga (David 1936 pp 43-45) Por isso Saramago pode ter lido comentaacuterios de vaacuteria origem Um ano apoacutes a publicaccedilatildeo a questatildeo eacute novamente discutida por Livermore (1990) que chega a identificar de forma convincente o autor como Raol um padre de identidade mista anglo-francecircs do ciacuterculo proacuteximo de Hervey de Glanvill Glanville que participa nos

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

138Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

acontecimentos que narra A identidade do destinataacuterio eacute Osberto of Bawdsey um cleacuterigo pertencente agrave poderosa famiacutelia Glanville em East Anglia

20 ldquoIndicto ab omnibus silentio episcopus sermonem coram omnibus lingua latina habuit ut per interpretes cujusque linguae sermo ejus omnibus manifestaretur qui sic incipit (hellip)rdquo (Conquista 27)

21 ldquoSed ne populorum conclamationibus vestrorum nostra turbetur oratio ex vobis eligite (hellip)rdquo ldquoOra para que com a algazarra dos vossos homens natildeo seja perturbado o que vos disser escolhei quem voacutes quiserdes (hellip)rdquo (Conquista 45) reproduzido tal qual no romance (45)

22 Ao traduzir ldquonacionalidaderdquo por ldquoAbkunftrdquo (origem) Na primeira ocorrecircncia de ldquoalgazarrardquo no discurso reacutegio a versatildeo alematilde conserva igualmente a palavra seguida pela sua traduccedilatildeo assinalando assim a diferenccedila ldquoNun damit die algazarra der wilde Laumlrm eurer Maumlnner nicht uumlbertoumlne und verwirre was zu sagen ihr gedenkt erwaumlhlt nach Belieben eure Sprecher (hellip)rdquo (53)

23 ldquoImfra quam cartae plurimis transmissae lingua caldea inscriptae repertae sunt Exemplum unius sicut per interpretem didici hujusmodi erat laquoAbbati Machumato Eburensium regi calamitas Lixbonensium (hellip)raquordquo (Conquista 63-64)

24 Uma consciecircncia jaacute assinalada desde o iniacutecio por exemplo no comentaacuterio criacutetico ldquo() mas balas natildeo eacute palavra daquele tempo as palavras natildeo podem ser levianamente transportadas de caacute para laacute e de laacute para caacute cuidado aparece logo algueacutem que diz Natildeo percebordquo (33)

25 ldquoEpiscopum vero civitatis antiquissimum praeciso jugulo contra jus et fas occiduntrdquo (Conquista 83) A re-imaginaccedilatildeo da matanccedila de todos os cristatildeos moccedilaacuterabes (comeccedilando pela degolaccedilatildeo do bispo) como resultado de uma lsquooperaccedilatildeo de limpezarsquo conforme a ideologia da pureza cristatilde (Bernardo de Claraval) que dominou a segunda cruzada (114748) eacute tema do recente romance 1147 O Tesouro de Lisboa (2006) de Paulo Moura A bibliografia natildeo inclui o romance de Saramago

26 Vd comparaccedilatildeo (Grossegesse 1994) No breve texto dedicado a Juan Goytisolo Saramago (1994) natildeo faz nenhuma referecircncia a esta obra nem a Juan sin Tierra (1975) falando soacute de ldquouma obra ampla e poderosa caracterizada por sucessivas rupturas tanto temaacuteticas como estiliacutesticas e eticamente marcada por uma implacaacutevel revisatildeo axioloacutegicardquo

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

139Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

27 (63) Na ocorrecircncia anterior (40) a traduccedilatildeo alematilde marca com ldquoNamensvetter des anderenrdquo (T 46) claramente este desdobramento

28 (175 247) No primeiro caso a traduccedilatildeo alematilde ainda fala de ldquoFranken und Gallierrdquo (T 211) em vez de ldquoGalicierrdquo (300) Numa dimensatildeo histoacuterica a identidade de ldquoFrankenrdquo eacute polivalente

29 No entanto natildeo chega a ocorrer uma ldquotroca de fiosrdquo no tecido da musa Clio como no conto A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho (1992) de Maacuterio de Carvalho concretamente entre a tentativa de uma reconquista aacuterabe de Lisboa em 1148 e a vida lisboeta de 1984 com lembranccedilas poacutes-revolucionaacuterias

30 O vocabulaacuterio de Joseacute Pedro Machado (69) refere a existecircncia das variantes ldquoalmoedamrdquo e almoaacutedamrdquo na Croacutenica da Tomada de Ceuta e no Livro do Falcoaria de Pecircro Menino do seacuteculo XV adaptaccedilotildees da palavra aacuterabe ldquoal-muadh-dhanrdquo (o pregoeiro que do alto da torre da mesquita chama agrave oraccedilatildeo)

31 No caso de ldquoalmaacutedenardquo natildeo haacute alternativa agrave traduccedilatildeo por ldquoMinarettrdquo (348 425)

32 Citado conforme a ediccedilatildeo bilingue de 1935 com traduccedilatildeo de Joseacute Augusto de Oliveira ldquoEm cerca de cento e sessenta e quatro navios reuniram-se no Porto de Dartmouth homens de diversas nacionalidades costumes e liacutenguas O exeacutercito formado por todos eles acha-se dividido em trecircs partes sob o comando do conde de Arnoldo de Aarschot neto do duque de Godofredo estatildeo os homens vindos das regiotildees do impeacuterio romano Cristiano de Gistell comanda os de Flandres e Bona (hellip)rdquo (Conquista 22)

33 ldquoEntenda-se o antigo impeacuterio germacircnicordquo (Conquista 22 nota 1) Nota eliminada em Alves (2004)

34 Aparecem tambeacutem ldquobolonensesrdquo (Conquista 46) No entanto seria errado identificaacute-los como vindo de Bolonha em Itaacutelia como sugere o texto saramaguiano e consequentemente a traduccedilatildeo alematilde Este grupo de cruzados ldquoque acampava juntamente com os flandrenses e colonenses na parte oriental da cidaderdquo foram ldquooriginaacuterios de Boulogne-sur-merrdquo (13) uma cidade portuaacuteria importante que os romanos chamaram Bolonia Ela pertence agrave diocese de Theacuterouenne (Taruanna) onde o bispo Milatildeo (Milo) acolheu os alematildees que haviam saiacutedo de Coloacutenia e

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

140Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

abenccediloou as naus da expediccedilatildeo antes de eles se encontraram com os outros em Dartmouth (Alves 73)

35 Neste texto referem-se repetidas vezes ldquocolonensesrdquo sempre unidos aos ldquoflandrensesrdquo (Conquista 4662) Supondo um conhecimento geograacutefico da proximidade entre Colonia e Bona a versatildeo ldquobononensesrdquo em vez de ldquobolonensesrdquo fica reforccedilada

36 Herculano (508) com base na carta do cruzado Arnulfo ao bispo Milatildeo (Epistola Arnulfi ad Milonem Episcopum Morinensem) Tanto Herculano (nota 138) como posteriormente Alves (nota 41) destacam a divergecircncia entre a carta de Arnulfo e a carta a Osberno Paulo Moura (2006 95) refere a procedecircncia do novo engenho de Pisa comentado como ldquoridiculamente modernordquo e ldquoa moda de Constantinoplardquo

37 A traduccedilatildeo ldquohiesige Eingeborenerdquo revela claramente o olhar colonizador do cavaleiro alematildeo

38 ldquobarregatilde de um cruzado alematildeordquo (254) O narrador analisa a dependecircncia histoacuterica e cultural desta palavra ao negar a sua aplicaccedilatildeo a Maria Sara ldquoque natildeo eacute barregatilde de ningueacutemrdquo ldquoas diferenccedilas que as haacute satildeo culturais sim senhorrdquo (255) Traduccedilatildeo alematilde que intenta reproduzir a historicidade ldquoBettschatzrdquo (310)

39 ldquo(hellip) diremos que natildeo podendo Frei Rogeiro satisfazer em Ouroana os apetites natildeo encontrou melhor exutoacuterio salvo outro qualquer secreto que exaltar ateacute agrave desmedida o homem que se gozava do corpo delardquo (309)

40 Basta citar a imagem central do romance ldquo(hellip) os livros estatildeo aqui como uma galaacutexia pulsante e as palavras dentro deles satildeo outra poeira coacutesmica flutuando agrave espera do olhar que as iraacute fixar num sentido ou nelas procuraraacute o sentido novo porque assim vatildeo variando as explicaccedilotildees do universo tambeacutem a sentenccedila que antes parecera imutaacutevel para todo o sempre oferece subitamente outra interpretaccedilatildeo a possibilidade de uma contradiccedilatildeo latente a evidecircncia do seu erro proacutepriordquo (26)

41 Perante esta analogia surpreende que a interpretaccedilatildeo do proacuteprio romance saramaguiano por parte de Rosemary Arrojo fique limitada agrave ldquoidealizaccedilatildeo romacircnticardquo do poder autoral (Arrojo 2003 203) negligenciando toda a riqueza de dialogismo e sucessiva reflexatildeo meta-discursiva

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

141Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

42 A anaacutelise do acto de traduzir como tema literaacuterio tambeacutem se aplica ao caso do revisor Raimundo Silva traduzir ldquosignifica uma renuacutencia dupla da subjectividade viva renunciar agrave plenitude do jogo dos significados e agrave constituiccedilatildeo do sentido proacuteprio (hellip) Na literatura o traduzir eacute representado como actividade de pessoas jaacute trans-feridas longe do seu proacuteprio Eu ou longe da vida activardquo (Klein 119-120) No caso do revisor a introduccedilatildeo do ldquoNatildeordquo inicia o abandono de conformidade passiva sendo a visibilidade textual do revisor o germe de um lsquoauto-nascimentorsquo (Grossegesse 1999 68-77)

Referecircncias

Alves Joseacute Felicidade (2004) Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147 Carta de um cruzado Inglecircs que participou nos acontecimentos Lisboa Livros Horizonte (2ordf ed)

Arrojo Rosemary (1993) Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago

______ (2003) ldquoA relaccedilatildeo exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel alguns comentaacuterios sobre Histoacuteria do Cerco de Lisboa de Joseacute Saramagordquo DELTA 19 Especial pp 193-207

Bassnett Susan (1998) ldquoThe Cultural Turn in Translation Studiesrdquo in Laurence Raw Guumllriz Buumlken Guumlnseli Soumlnmez Yacutethornccedili (eds) The History of Culture The Culture of History Ankara The British Council

Bhabha Homi (1985) ldquoSigns Taken for Wonders Questions of Ambivalence and Authority under the Tree outside Delhi May 1817rdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 102-122

______ (1989) ldquoThe Commitment to Theoryrdquo In id (1994) The Location of Culture LondonNew York pp 19-39

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

142Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

______ (1994) ldquoDissemiNation Time Narrative and the Margins of the Modern

Nationrdquo In id The Location of Culture LondonNew York pp 139-170

Brockhaus Lexikon (1989) Ediccedilatildeo Deutscher Taschenbuch Verlag 20 vols

Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) narrada pelo Cruzado Osberno testemunha presencial Texto latino Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis e sua traduccedilatildeo para portuguecircs pelo Dr Joseacute Augusto de Oliveira Prefaacutecio do Engenheiro Augusto Vieira da Silva Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa 1935

Caragea Mioara (2003) A leitura da histoacuteria nos romances de Joseacute Saramago Bucareste Ed Univ Bucareste

Croacutenica de Portugal de 1419 Ediccedilatildeo criacutetica de Adelino de Almeida Calado Aveiro Univ de Aveiro 1998

David Charles Wendell (1936) ldquoIntroductionrdquo in The Conquest of Lisbon De Expugnatione Lyxbonensi Trad CW David New York Columbia Univ Press reed 2001 (prefaacutecio bibliografia Jonathan Phillips)

Derrida Jacques (1967) Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterance Paris Seuil

Ehrhardt Marion (1980) ldquoAs primeiras notiacutecias alematildes acerca da cultura portuguesa Erste Nachrichten uumlber die portugiesische Kulturrdquo in id Rainer Hess e Juumlrgen Schmidt-Radefeldt (orgs) Portugal ndash Alemanha Portugal ndash Deutschland Coimbra Almedina 11-65 [bilingue com ilustraccedilotildees e bibliografia]

Goytisolo Juan (1970) Reivindicacioacuten del conde don Juliaacuten Meacutexico Joaquiacuten Mortiz Ed cit Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral 1976

______ (1975) Juan sin Tierra Biblioteca Breve Barcelona Seix Barral

Grossegesse Orlando (1994) ldquoDie Ruumlckforderung von Al Usbunardquo Tranviacutea 33 Berlin pp 7-9

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

143Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1995) ldquoDas Deutsche und das Europaumlische im Werk Joseacute Saramagosrdquo in Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (orgs) Mariacutelia dos Santos Lopes Ulrich Knefelkamp Peter Hanenberg Pfaffenweiler Centaurus

1995 pp 221-231

______ (1996) ldquoLa actualiad del lsquodesnarrarrsquo Joseacute Saramago ante la Historiardquo in Mundos de Ficcioacuten Investigaciones Semioacuteticas VI (Actas del VI Congreso AES 1994) (orgs) JM Pozuelos Yvancos Francisco Vicente Goacutemez Univ

Murcia volII pp 805-812

______ (1999) Saramago lesen Berlin edition tranviacutea

Herculano Alexandre (1980) Histoacuteria de Portugal ed cit Lisboa Bertrand (Tomo I)

House Juliane (2002) ldquoUniversality versus culture specificity in translationrdquo In Translation Studies Perspectives on an Emerging Discipline (org) Alessandra Riccardi New York Cambridge Univ Press pp 92-109

Indiculum fundationis Monasterii beati Vincentii ulixbone Versatildeo portuguesa Croacutenica da Tomada de Lisboa Ediccedilatildeo fac-similada paleograacutefica e criacutetica de

Fernando Venacircncio Peixoto da Fonseca Lisboa 1995

Iser Wolfgang (1972) Der implizite Leser Muumlnchen Fink

Jauss Hans Robert (1970) Literaturgeschichte als Provokation Frankfurt Main Suhrkamp

Kaufman Helena (1991) ldquoA metaficccedilatildeo historiograacutefica de Joseacute Saramagordquo Coloquio Letras 120 124-136

Klein Judith (1996) ldquoSinnzerstoumlrung und Tod Uumlbersetzen als Thema und Metapher der modernen Literaturrdquo In Literarische Polyphonie (org) Peter V Zima Tuumlbingen Gunter Narr 113-122

Lefevere Andreacute (1992) Translation Rewriting and the Manipulation of Literary Frame Routledge London New York

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

144Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Orlando Grossegesse

Livermore Harold (1990) ldquoThe Conquest of Lisbon and Its Authorrdquo Portuguese Studies 6 (1990) pp 1-16

Lourenccedilo Eduardo (1978) ldquoRepensar Portugalrdquo In O Labirinto da Saudade ed cit Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 41991 pp65-78

Machado Joseacute Pedro (1991) Vocabulaacuterio Portuguecircs de Origem Aacuterabe Lisboa Ed Notiacutecias

Marques AH Oliveira (1995) Breve Histoacuteria de Portugal Lisboa Presenccedila

Martins Luiacutes Almeida (1991) ldquoCruzadas Epopeia ou ignomiacuteniardquo Visatildeo nordm 451 25 de Outubro de 2001 pp 136-139

Moura Paulo (2006) 1147 O Tesouro de Lisboa Lisboa A Esfera dos Livros

Nobre Eduardo (1986) Dicionaacuterio de Calatildeo Lisboa Dom Quixote

Oliveira Joseacute Augusto de (1935) ldquoAdvertecircnciardquo In Conquista de Lisboa aos Mouros Lisboa Cacircmara Municipal de Lisboa pp 15-19

______ (1940) ldquoD Afonso Henriques empreendeu a conquista de Lisboa sem contar com o auxiacutelio dos cruzadosrdquo In Congresso do Mundo Portuguecircs 2ordm vol

Lisboa Comissatildeo Executiva dos Centenaacuterios

Pereira Joseacute Pacheco (2006) ldquoMal-amadosrdquo Puacuteblico 1 de Junho de 2006 p 5

Prince Gerald (1988) ldquoThe Disnarratedrdquo Style 221 pp 1-8

Ricardou Jean (1973) Le Nouveau Roman Paris Seuil

Rodrigues Cristina Carneiro (1999) Traduccedilatildeo e diferenccedila Satildeo Paulo UNESP

Saramago Joseacute (1989) Histoacuteria do Cerco de Lisboa Lisboa Caminho = P

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014

145Cad Trad Florianoacutepolis v 35 nordm especial 1 p 109-145 janjun 2015

Identidades cruzadas Histoacuteria do Cerco de Lisboa e

______ (1992) Geschichte der Belagerung von Lissabon Reinbek bei Hamburg

Rowohlt Trad Andreas Klotsch = T

______ (1994) bdquoJuan Goytisololdquo Espacio espaccedilo escrito vol 9 10 Badajoz

pp 7-8

______ (1996) The History of the Siege of Lisbon London The Harvill Press

Trad Giovanni Pontiero

Stoll Karl-Heinz (2005) ldquoTranslation als Kreolisierungrdquo httpwwwfb06uni-mainzdeinstiaavorltranskreopdf

Turk Horst (1992) ldquoUumlbersetzung ohne Kommentar Kulturelle Schluumlsselbegriffe und kontroverser Kulturbegriff am Beispiel von Goytisolos Reivindicacioacuten del Conde don Juliaacutenrdquo in Die literarische Uumlbersetzung als Medium der Fremderfahrung (ed) Fred Loumlnker Berlin pp 3-40

Welsch Wolfgang (1995) ldquoTranskulturalitaumlt Zur veraumlnderten Verfaszligtheit heutiger Kulturenrdquo Zeitschrift fuumlr Kulturaustausch 451 pp 39-44

Recebido em 01092014Aceito em 07112014